Jussara Fraga Portugal Educação geográfica: memórias, histórias de
vida e narrativas docentes repercute trajetórias
Professora Adjunta da Universidade do Estado da
de professores/as pesquisadores/as no ensino
Bahia (UNEB), Campus XI / Serrinha. Licenciada e na formação. Essas trajetórias estão sendo
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA
em Geografia. Especialista em Supervisão Escolar configuradas em diferentes regiões e recantos do
e em Avaliação. Mestre e doutora em Educação país, sejam no campo ou na cidade.
e Contemporaneidade (PPGEduC / UNEB). Os trabalhos apresentam matizes e peculiaridades
próprias de cada percurso, encharcados de
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA
Realizou estágio de doutorado sanduíche na
autenticidade, rigor, profissionalidade e também de
Faculdade de Educação da Universidade de
memórias, histórias de vida e narrativas docentes
muita “gentificação”, como diria Paulo Freire, sobre
São Paulo (FEUSP). Desenvolve trabalhos no a compreensão de nosso inacabamento. Cada qual
contexto da formação – inicial e continuada – de a sua maneira expressa em sua narrativa modos
professores de Geografia, atuando principalmente de (vi)ver e conceber o mundo e a geografia,
sobretudo no que tange a ensinar/aprender/
Vânia Alves Martins Chaigar
nos seguintes temas: prática de ensino de
formar/formar-se seja na escola, na universidade
Jussara Fraga Portugal
Geografia, estágio supervisionado, diversas
ou noutros espaços-tempos de sociabilidades e
linguagens e ensino de Geografia, Histórias de vida
convivências.
e narrativas autobiográficas de professores. Líder
Organizadoras
A educação geográfica, nesse sentido, é
do Grupo de Pesquisa Geo(BIO)grafar: Geografia,
Jussara Fraga Portugal construída na intersecção entre a experiência, o
memórias, histórias de vida e narrativas docentes
diversas linguagens e narrativas de professores conhecimento e a sensibilidade e, também, pelo
e pesquisadora do Grupo de Pesquisa (Auto) Vânia Alves Martins Chaigar desejo de afirmação da existência – digna, plural,
democrática – como chave para qualquer processo
biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/ Organizadoras formativo e pressuposto de sociedade.
PPGEduC/UNEB). Sócia efetiva e secretária
O que é bonito de se ver é que a seu modo cada
adjunta da Associação Brasileira de Pesquisa um/a acolhe incertezas e instabilidades, típicas de
(Auto)biográfica (BIOgraph). um tempo de transições paradigmáticas, como
Vânia Alves Martins Chaigar
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA mote para produzir e sugerir geografias, ou melhor,
bio-geo-grafias, como nos lembra Passeggi, em
seu prefácio. Pois que essas bio-geo-grafias sejam
inspiradoras para que cada professor/a e estudante
Professora do Instituto de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
memórias, histórias de vida e narrativas docentes de geografia deixem suas digitais impressas na
construção de um ensino que comporte saber-
Licenciada em Geografia e mestre em educação viver muitas e muitas geografias.
pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel);
Boa leitura!
doutora em educação pela Universidade do Vale
As organizadoras
do Rio dos Sinos (Unisinos). Possui pós-doutorado
em educação pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Pesquisadora
da área de formação de professores. Membro
do Programa de Pós-Graduação em Educação
da FURG, do Núcleo de Extensão e Pesquisa
Educação e Memória – EDUCAMEMÓRIA
(FURG/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Ensino,
Formação de Professores e Avaliação (Unisinos/
CNPq).
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva
Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
Assessor do Reitor
Paulo Costa Lima
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Diretora
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Conselho Editorial
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Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Ninõ El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria Vidal de Negreiros Camargo
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Jussara Fraga Portugal
Vânia Alves Martins Chaigar
Organizadoras
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA
memórias, histórias de vida e narrativas docentes
Salvador
EDUFBA
2015
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2015, autores.
Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA.
Feito o depósito legal.
Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1991, em vigor no Brasil desde 2009.
Capa, Projeto Gráfico e Editoração
Rodrigo Oyarzábal Schlabitz
Revisão
Raul Oliveira
Normalização
Rodrigo França Meirelles
Sistema de Bibliotecas - UFBA
E59 Ensino e pesquisa em educação geográfica: memórias, histórias de vida e narrativas docentes /
Jussara Fraga Portugal, Vânia Alves Martins Chaigar (Organizadoras). - Salvador :
EDUFBA, 2015.
325 p.
ISBN 978-85-232-1406-7
1. Geografia – Estudo e ensino. 2. Professores – Formação profissional. 3. Narrativas pessoais.
4. Prática de ensino - Histórias. I. Portugal, Jussara Fraga. II. Chaigar, Vânia Alves Matins.
III. Título.
CDU – 910.1
Editora filiada a
EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina,
40170-115, Salvador-BA, Brasil
Tel/fax: (71) 3283-6164
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SUMÁRIO
9 Prefácio
Maria da Conceição Passeggi
17 Apresentação
Inês Ferreira de Souza Bragança
Primeira Parte
Narrativas Docentes, Formação
e Estágio Supervisionado em Geografia
25 O estágio supervisionado em Geografia como um locus que
problematiza a identidade docente: narrativas de constituição em
roda
Cláudia da Silva Cousin
43 Memoriais, diários e portfólios: narrativas autobiográficas e
formação docente
Jussara Fraga Portugal
73 Narrativas como passaportes em zonas de fronteiras: Estágio
Curricular em Geografia
Marisa Terezinha Rosa Valladares
97 O estágio no percurso formativo docente: compartilhando saberes,
memórias e histórias
Solange Lucas Ribeiro
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Segunda Parte
Histórias de Vida, Trajetórias de
Formação e Docência em Geografia
113 Vivências e práticas na formação de professores
Antonio Carlos Pinheiro
127 A Geografia em diferentes contextos: a contribuição da escola do
campo à prática de ensino
Alexandra Maria de Oliveira
139 Narrativas docentes na/da fronteira: identidade, alteridade e
diferença na prática de ensino e na formação de professores de
Geografia
Flaviana Gasparotti Nunes
155 Narrativas de professores de Geografia: a escrita de si como
projeto de conhecimento e formação
Francisco das Chagas Rodrigues da Silva
Bárbara Maria Macedo Mendes
177 Docência em travessia: territórios da profissão e narrativas de
professores de Geografia em escolas rurais
Mariana Martins de Meireles
Elizeu Clementino de Souza
193 Subjetividades na formação docente: o que narram os professores
da roça?
Simone Santos de Oliveira
209 Entre fugas e aproximações das geografias: percursos por memórias
e conhecimentos de um quase geógrafo
Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
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Terceira Parte
A Vida Cotidiana nas Cidades:
Narrativas, Saberes e Geografias
237 Curtir, comentar e compartilhar – a fan page: cotidiano, narrativas
e memórias da cidade e do urbano nas aulas de Geografia
Hanilton Ribeiro de Souza
Rita de Cássia Barreto Sá
265 O jovem e a cidade: narrativas de suas percepções e de suas
práticas espaciais por professores de Geografia
Lana de Souza Cavalcanti
281 O estudo da cidade e o lugar na Geografia Escolar
Sonia Maria Vanzella Castellar
295 Aprendizagens e itinerários juvenis: cidade e cidadania sob o véu
de narrativas e memórias
Vânia Alves Martins Chaigar
319 Sobre os autores
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PREFÁCIO
Educação geográfica: por uma autopoiese do espaço
Maria da Conceição Passeggi
De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica
numa inserção na realidade, num contato analítico com o exis-
tente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente, prati-
camente. (FREIRE, 1999, p. 101)
“[...] e quanto mais formos capazes de dar conta a nós mesmos e
aos outros da experiência vivida, mais ela será vivida consciente-
mente […].”1 (VYGOTSKI, 2002, p. 78, tradução nossa)
Esta coletânea, organizada por Jussara Fraga Portugal, da Universidade do Es-
tado da Bahia (UNEB), e Vânia Alves Martins Chaigar, da Universidade Federal do
Rio Grande (FURG), reúne professores-pesquisadores de instituições brasileiras que
nos falam da educação geográfica em regiões que serpenteiam a costa atlântica do
país, do Nordeste ao extremo Sul, cortando caatingas no sertão, atravessando campos
de densos verdes e matas exuberantes, zonas urbanas e rurais. A diversidade do país e
suas faces valorizadas e estigmatizadas com suas histórias legitimadas, ou mal conta-
das, fazem parte das paisagens que professores e alunos revisitam em suas memórias,
suas pesquisas, refazendo histórias: as deles, enquanto narradores, as nossas como
leitores e a desse imenso Brasil. Sinto-me por isso muito honrada, mas, sobretudo,
agradecida pelo convite para prefaciar este livro, pois foram muitas as aprendizagens
1 [...] et plus nous sommes capables de rendre compte aux autres de l’expérience vécue, plus elle est vécue cons-
ciemment [...]
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e reflexões que foram se fazendo e se refazendo na leitura instigante de seus diferen-
tes capítulos.
Este livro, Educação geográfica: memórias, histórias de vida e narrativas docen-
tes, nos fala de experiências de transição, de travessias, de lugares nas fronteiras, de
não lugares, de espaços infinitos, de “esconderijos” do eu, expressos sob a forma de
múltiplas grafias: geo-grafias, foto-grafias, auto-bio-grafias.
Os autores focalizam momentos precisos, e por que não dizer preciosos, da
formação docente: o estágio supervisionado, a prática de ensino, o ingresso no ma-
gistério, nos quais parece abismar-se todo o currículo da licenciatura, colocando em
jogo o que se aprendeu, ou se deixou de aprender, para o pleno exercício da profissão
docente. Mas esses momentos de transição vivenciados por graduandos no ensino
superior desdobram-se, para os autores, em pesquisas, estudos e intervenções edu-
cativas na busca de outros ritos de passagem, que facilitem a travessia da vida aca-
dêmica para a vida do magistério, mais especificamente, os desafios do ensino e da
aprendizagem de Geografia na educação básica.
Há, precisamente, 11 anos, as Diretrizes Curriculares Nacionais (Resolução
CNE/CP n. 01, de 18 de fevereiro de 2002) preconizavam como princípio metodo-
lógico geral “a ação-reflexão-ação” e apontavam “[...] a resolução de situações-pro-
blema como uma das estratégias didáticas privilegiadas” (Art. 5o). As diretrizes dão
a entender que é a partir dessas “situações-problema” que os professores potenciali-
zarão competências referentes aos processos de investigação científica que lhes per-
mitirão, ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento de sua prática pedagógica e o aprimo-
ramento de sua atuação profissional junto a seus alunos. Nesse sentido, retomam, 40
anos depois, o que nos dizia Paulo Freire na epígrafe que escolhemos para abrir este
prefácio. Nos anos 1960, Freire já insistia sobre a necessidade de mudança de atitu-
de que permitisse desfazer uma “visão distorcida da teoria”, sugerindo que ela fosse
concebida não como abstração distanciada da realidade, mas como algo que deriva
do “contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plena-
mente, praticamente” (grifos nossos). É nesse sentido que teorizar queria dizer, para
ele, contemplar, ou seja: viver plenamente, praticamente, o que desperta em nós a
consciência crítica de nossas relações com o mundo. Contemplar a paisagem que nos
cerca, contemplar o ambiente em que vivemos, contemplar nosso território, nosso
espaço, nosso lugar, mas a partir de questionamentos promovidos por uma curiosi-
dade epistemológica e não por uma curiosidade ingênua, eivada de determinismos,
positivismos, objetivismos que distorceram por longo tempo a historicidade das si-
tuações-problema estudadas.
Cada capítulo nos leva a refletir sobre como romper com a visão linear e redu-
cionista da prática pela prática, que poderia retroceder, nas práticas pedagógicas, aos
10 | Maria da Conceição Passeggi
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princípios da racionalidade técnica. As múltiplas veredas palmilhadas pelos autores,
para o ensino e a pesquisa em educação geográfica, encontram-se no subtítulo da co-
letânea: memórias, histórias de vida e narrativas docentes. Como sugere Jussara Por-
tugal, na abertura de seu texto, “a busca por estratégias metodológicas que favoreçam
a formação prática de professores em formação inicial para o exercício da docência
na educação básica tem sido o objeto de desejo de muitos professores formadores, so-
bretudo daqueles que trabalham com os componentes curriculares: didática, prática
de ensino e estágio nos cursos de licenciaturas”.
As narrativas na primeira pessoa, escritas sob a forma de memoriais, diários,
portfólios, narrativas de formação, apresentam-se aqui como artefatos pedagógicos
que colocam no centro da formação a pessoa que se forma, propiciando-lhe um es-
paço-tempo de “reflexão-ação-reflexão” sobre as experiências vividas e a viver, na
escola e fora dela, seja como aluno, seja como professor, e que contribuíram ou con-
tribuirão de forma significativa para a sua formação existencial e profissional.
Delory-Momberger (2008) lembra que, tanto na linguagem mais coloquial
quanto nas criações mais elaboradas, cada um de nós transpõe “para uma repre-
sentação espacial o desenvolvimento temporal de [nossa] existência: linha, fio, ca-
minho, trajeto, estrada, percurso, círculo, carreira, ciclo da vida”. Para a autora, essas
imagens nos são tão familiares que perderam sua dimensão simbólica, ou seja, o
próprio ato de representação, nos fazendo esquecer que é pelo viés da escrita (gra-
fia), que essas imagens representam a existência. Para a autora, o curriculum vitae,
tão presente em nossas vidas, traz ecos dessa força original, uma vez que essa ex-
pressão é construída a partir do curriculum stellarum, o curso dos astros. De modo
que se “[...] a consciência dessa metáfora ou dessa crença cosmológica perdeu-se,
a linguagem que utilizamos para falar de nossa vida continua a representá-la e a
alimentar, de maneira consciente ou inconsciente, o sentido que lhe atribuímos”.
(DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 35) O percurso de nossa vida, a exemplo da
trajetória dos astros, se desenvolveria num espaço-tempo, com um ponto de par-
tida e um ponto de chegada, em círculos, “zigzags”, espirais etc. Resta-nos saber
como fazemos essa travessia, como transitamos nos espaços moventes, com eles ou
contra eles.
A criatividade dos pesquisadores e as memórias dos que nos contam suas his-
tórias nos levaram a percorrer as mais diversas paisagens, em itinerâncias consti-
tutivas de nós mesmos e nos convidaram a brincar com a inversão dos termos da
palavra “biogeografia”, como faz George Gusdorf (1991) com “auto-bio-grafia”. Per-
guntamo-nos como faz Wenceslao Machado de Oliveira Júnior em seu texto: “será
que a geografia pode ser entendida como uma produção narrativa, o que faz com
que a definição do que vem a ser geografia se dá muito mais com os elementos e as
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preocupações espaciais implicadas na narrativa do que propriamente com o obje-
to enfocado?” Escolhemos a palavra “bio-geo-grafia”, que já faz parte dos estudos
de Geografia, e propomos inverter os termos que a compõem com base em tantas
outras recomposições que evidenciam os sistemas semióticos utilizados para narrar
a vida: fotobiografia, videobiografia, cinebiografia, ludobiografia. Uma geobiografia
nos permitiria pensar em formas mais subjetivas das escritas (grafias) de nossas rela-
ções com o espaço (geo) ao longo da vida (bio). Numa geobiografia, o sujeito (auto)
reinventaria (poiese) as suas relações com o espaço, paisagens, territórios, cantos,
lugares, refúgios etc., e faria uma reflexão sobre as experiências vividas, errâncias,
itinerâncias, deambulações, paradas, caminhos reais ou imaginários em busca de de-
preender aspectos fundantes da historicidade de sua condição humana na Terra. E, a
partir daí, a criatividade poderia gerar muitas outras composições: geofotobiografia,
geovideobiografia etc. Seria possível pensar em uma geoludobiografia na qual se fala
dos lugares de brincadeiras, na infância, sob as árvores, em açudes, rincões etc.?
O que guardamos desta coletânea é, sobretudo, a forma como o conjunto dos
textos aprofunda e diversifica o olhar sobre a educação geográfica dentro de novas
matrizes. Ela situa as propostas apresentadas num momento de transição, de mu-
dança de atitude na formação e na pesquisa educacional. E como nos dizem, aqui,
Meireles e Souza, os autores dos diferentes capítulos evidenciam as potencialidades
da pesquisa (auto)biográfica ao tematizarem o ensino e a pesquisa em educação geo-
gráfica “[...] nessa travessia que é estabelecida entre o ser individual, que fala de si, e o
sociocultural que integra a realidade narrada, desvelando o modo como cada pessoa
mobiliza seus conhecimentos, suas experiências, suas energias, para ir dando forma
à sua identidade, num diálogo com seus contextos”.
Os pesquisadores apostam no que sugeria Vygotski, na epígrafe acima, ao
tratar da consciência como tema fundante da Psicologia e, por conseguinte, da
Educação. Para Vygotski (2002, p. 78, tradução nossa), “[...] quanto mais formos
capazes de dar conta a nós mesmos e aos outros da experiência vivida, mais ela é
vivida conscientemente (ela é compreendida, ela se fixa nas palavras, etc.)”.2 Ao
apostar que a criança, o jovem e o adulto são capazes de aprender ainda mais ao
refletir sobre sua experiência e tomar consciência de sua historicidade, essa apos-
ta resulta, sobretudo, de uma “descoberta” das ciências humanas, que prossegue a
passos largos, desde os anos 1980. Para Brockmeier e Harré (2003, p. 525), o espaço
ocupado, nos últimos 30 anos, pelas narrativas autobiográficas, orais ou escritas,
longe de ser mais uma abordagem teórica, ou um modismo, tornou-se “um novo
gênero de filosofia da ciência”, um caminho de maior refinamento da metodologia
2 [...] et plus nous sommes capables de rendre compte aux autres de l’expérience vécue, plus elle est vécue cons-
ciemment (elle est ressentie, elle se fixe dans le mot, etc.).
12 | Maria da Conceição Passeggi
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qualitativa e, para a pesquisa (auto)biográfica em Educação, um posicionamento
epistemológico e político. É nesse sentido que vemos uma inversão de paradigmas.
Ao introduzir a pesquisa e as práticas de reflexão no ensino superior desde o início
da formação, passamos de uma visão aplicacionista para uma percepção reflexiva
e agentiva do professor e do formador, em que a práxis docente torna-se espaço de
diálogo da empiria com a teoria, do pesquisador com o participante da pesquisa,
do sujeito com o objeto de conhecimento, permitindo questionar o saber cultural-
mente herdado na reinvenção de outros saberes. Se ainda custa a alguns professores
liberar-se, totalmente, das práticas disciplinares, das certezas teóricas, da rigidez do
método, da suspeita no poder da autoformação, as gerações que fomos formando
e as que serão por elas formadas caminham inelutavelmente em outra direção. E
a elas compete pensar o alcance da autoformação, da autoanálise e do autoconhe-
cimento como forma de apropriação do poder e do saber posicionar-se de forma
autônoma e emancipada no conhecimento que produzem no mundo, com o outro,
para uma vida melhor e instituições mais justas.
Essa aposta e essa promessa no ensino e na pesquisa em Educação nos fazem
pensar no que nos diz Boaventura de Souza Santos (2008) sobre uma “epistemolo-
gia do Sul” como forma de legitimar saberes e práticas de grupos sociais que foram
histórica e sociologicamente desacreditados ou esquecidos pelos cânones da ciên-
cia moderna. As memórias, histórias de vida e narrativas de professores são para
os pesquisadores fontes que aprimoram a pesquisa interpretativista, e para todos os
que se debruçam sobre suas aprendizagens, outros modos de auto(trans)formação
do que sabem e do que pensam sobre o sabem ao narrar a sua vida. Essas práticas se
inscrevem sob a forma de epistemologias do Sul ao incluir e respeitar as experiências
de conhecimentos do mundo da pessoa que narra. Experiências consideradas pelas
epistemologias do Norte apenas como objeto ou matéria-prima dos saberes domi-
nantes. A reflexão conduzida por professores e alunos, mediantes diferentes suportes
semióticos (escrita, fotos, cartas, mapas etc.) constituem-se pontes até então inexplo-
radas entre o saber erudito e o saber do senso comum, possibilitando trocas inter-
geracionais com as tradições culturais herdadas e as que emergem em novos tempos
nas narrativas lidas e ouvidas dos protagonistas da história educacional: professores,
pesquisadores, alunos, pais, cuidadores, gestores etc.
Excertos de memórias, de memoriais, portfólios e as fotografias que aqui en-
contramos revelam o esforço de reflexão dos narradores sobre suas vivências para
transformá-las em experiências formadoras, problematizando sua inserção no es-
paço público. As análises apresentadas nos mostram como se alternam reflexão-a-
ção-reflexão no processo de formação. Vemos como essas escritas de si rompem
com a linearidade da prática pela prática, realizando uma espiral hermenêutica
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cada vez mais ampla, em que a reflexão passa pelo mesmo ponto, mas a cada vez,
enriquecida por novas interpretações, como sugere Ricoeur (1994). No final do
percurso, as viagens que fizemos, por “entre curvas e ladeiras”, mostram que as
apostas que privilegiam a cidadania e a consciência histórica nos processos de
aprendizagem na cidade, no sertão, nas regiões de fronteira, na roça, nas caatingas,
nas periferias urbanas etc., são desafiadoras e nos desassossegam. A utilização das
narrativas autobiográficas como prática de formação e como fonte de pesquisa, tal
como se anuncia aqui, justifica-se pelo enraizamento no espaço sóciohistórico, no
movimento de emancipação que se realiza pela reflexão e pela ação com o outro,
com o mundo e consigo mesmo.
Esta coletânea anuncia um novo tempo nos processos de formação e de in-
serção na prática profissional docente. E para viver plenamente, praticamente, esse
tempo de transição, importa que as opções pelos rumos a tomar nasçam da com-
preensão crítica do desafio imposto por esse tempo de mudanças, pois somente as-
sim podemos nos tornar cada vez mais sensíveis, como nos diz Freire (1999, p. 54),
às contradições e aos dilemas que se aprofundam “[...] com o choque entre valores
emergentes, em busca de afirmação e de plenificação, e valores de ontem, em busca
de preservação. É este choque entre um ontem esvaziando-se, mas querendo perma-
necer, e um amanhã por se consubstanciar, que caracteriza a fase de trânsito como
um tempo anunciador”.
Maria da Conceição Passeggi
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal, 18 de fevereiro de 2013
Referências
BROCKMEIER, Jens; HARRÉ, Rom. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma
alternativo. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 525-535, 2003.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação. Figuras do indivíduo projeto.
Trad. Maria da Conceição Passeggi, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi. Natal:
EDUFRN; São Paulo: PAULUS, 2008.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
GUSDORF, George. Auto-bio-graphie. Paris: Odile Jacob, 1991.
14 | Maria da Conceição Passeggi
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RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, Tomo1, Campinas, SP: Papirus, 1994.
SANTOS, Boaventura de Sousa, A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal,
Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 80, 2008, 3. Acesso em: <http://rccs.revues.org/691>.
Disponível em: 18 fev. 201
VYGOTSKI, Lev. Conscience, inconscient, émotions. Paris: La dispute, 2002.
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APRESENTAÇÃO
Um convite à leitura ou sobre diferentes paisagens, memórias e
práticas educativas
Inês Ferreira de Souza Bragança
Foi com especial alegria que recebi o convite de Jussara Portugal e Vânia Chaigar
para escrever a apresentação do livro Educação geográfica: memórias, histórias de vida e
narrativas docentes. Ao aceitar o convite, entretanto, não sabia que me aguardava uma
experiência de leitura, fui fisgada desde as primeiras páginas e conduzida pelos autores
a diversos espaços-tempos formativos. Ao acompanhar as práticas de ensino, pesquisa
e produção do conhecimento de cada capítulo, pude apreciar diferentes paisagens e fui
remetida ao diálogo com minha própria experiência pessoal e docente.
Em 2013, a Geografia se chegou a mim silenciosa e potente como fazem os mo-
vimentos instituintes. Ao iniciar o semestre letivo, na Faculdade de Formação de Pro-
fessores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), fui recebida por
uma turma de 1° período da licenciatura em Geografia, com mais de 50 estudantes
para a disciplina Filosofia da Educação. No primeiro encontro, apenas as apresentações
pessoais − nomes, idades, expectativas sobre a docência –, mas ao longo do semestre
tive oportunidade de ouvir instigantes histórias de suas trajetórias escolares. Jovens, na
maioria entre 17 e 18 anos, vindos do sistema público de ensino, cheios de vitalidade
pessoal e acadêmica, desejando atuar como professores de Geografia.
No mesmo semestre, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Estácio de Sá, em uma disciplina eletiva que tematiza a formação docente, co-
nheci Roseli, professora de Geografia da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro.
Professora apaixonada e comprometida com o fazer docente, suas histórias, experi-
17
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ências e os desafios de sua prática docente enriqueceram nossos debates e aprendi-
zagens. Registro um trecho de sua autobiografia educativa: “sempre contam histórias
sobre crianças que desejam ser professoras, brincam de dar aulas. Cheguei a desejar
ser astronauta e viajar à lua, mas a luta da vida me tornou professora. Hoje tenho
muito orgulho de ser professora”.
Com os jovens estudantes e com a professora Roseli vivi, no primeiro semestre
de 2013, o encantamento pela educação geográfica. Em cada aula, as experiências e
narrativas mostraram a potência de ser professor(a) da educação básica e fortalece-
ram para todo grupo a aposta nas possibilidades emancipatórias da prática educativa.
Nesse contexto, a leitura do presente livro veio como um presente que me levou a
diferentes paisagens, memórias e práticas educativas. Partilho, a seguir, apenas lam-
pejos de cada capítulo, abrindo o convite ao círculo virtuoso que envolve a leitura e
suas múltiplas interpretações.
Na primeira parte do livro, encontramos textos que se articulam em torno do
tema “Narrativas docentes, formação e estágio supervisionado em Geografia”. O texto
“O estágio supervisionado em Geografia como um locus que problematiza a identidade
docente: narrativas de constituição em roda”, de Cláudia da Silva Cousin, apresenta a
experiência docente da autora com o estágio curricular supervisionado do curso de
licenciatura em Geografia, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), tendo
como objetivo discutir vivências e experiências no cotidiano das escolas parceiras, es-
pecialmente por meio das rodas de formação. As rodas favorecem a narrativa de si, as
escritas narrativas e a partilha entre os estagiários e professores da escola, apontando
para o diálogo, a formação e a construção coletiva entre universidade e escola básica.
O texto “Memoriais, diários e portfólios: narrativas autobiográficas e formação
docente”, de Jussara Fraga Portugal, traz, a partir da experiência docente da autora, a
discussão das potencialidades das escritas de si “como dispositivos formativos e auto-
formativos no âmbito da formação inicial de professores de Geografia, tendo como
referência situações experienciadas no projeto de investigação-formação ‘Traduzindo-
me: narrar histórias, geografar trajetórias’”. O referido projeto coloca ênfase nos escritos
por meio do memorial, do diário de formação e do portfólio como caminhos de refle-
xão ao longo das experiências formativas nas escolas-campos de estágio supervisiona-
do, em um processo de “Geo(Bio)grafização”, tomando o lugar como categoria central
para a narrativa de suas experiências pessoais, formativas e profissionais.
Marisa Terezinha Rosa Valladares, no texto “Narrativas como passaportes em
zonas de fronteiras: Estágio Curricular em Geografia”, entrelaça a narrativa de sua
trajetória de vida ao seu processo identitário docente de tornar-se professora da li-
cenciatura em Geografia a cada dia. Em suas palavras: “Lidar com meninos e meni-
nas da licenciatura da Geografia tem sido a minha grande (a)ventura formativa na
18 | Inês Ferreira de Souza Bragança
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docência. Cada turma faz em mim uma marca que transforma um pouquinho mais a
Marisa que sou, a professora que tento ser”. Nas narrativas de suas práticas no estágio
supervisionado, a Geografia brota das situações de ensino-aprendizagem, do contato
com a vida real dos diferentes contextos, favorecendo que os estudantes tornem-se
“praticantes” do cotidiano. Não como um “ensaio”, como muitas vezes perspectiva-
mos o estágio, mas como espaço-tempo de construção de “caminhos cognitivos iné-
ditos” por alunos e professores.
A primeira parte do livro faz seu alinhavo final com a tematização do “O
estágio no percurso formativo docente: compartilhando saberes, memórias e histó-
rias”, de Solange Lucas Ribeiro. O trabalho tem como objetivo “conhecer, analisar
e interpretar relatos de histórias de vida que permeiam e influenciam os percursos
formativos dos estudantes, bem como se o estágio tem sido uma experiência sig-
nificativa para a construção da identidade e para a formação do futuro docente”.
Nesse caminho, o texto apresenta uma discussão sobre a centralidade da escrita re-
flexiva na formação inicial para professores de Geografia, no contexto dos estágios
supervisionados.
A segunda parte do livro contempla sete capítulos e focaliza o tema “Histórias
de vida, trajetórias de formação e docência em Geografia”. Para começar, Antônio
Carlos Pinheiro apresenta suas memórias como professor, “Vivências e práticas na
formação de professores”, em diferentes instituições. Seu relato retoma momentos
fundamentais da formação docente no Brasil como a passagem do modelo “3+1”
para as propostas de articulação indissociável entre teorias e práticas, indicadas pe-
las Diretrizes Curriculares Nacionais. O autor ressalta, ao longo de sua experiência
docente, uma perspectiva de investigação que toma como foco as experiências, os sa-
beres e as histórias de vida dos professores, “indagando sobre a escolha profissional,
visão de educação e de escolar”, levando em conta as visões dos estagiários.
No texto “A Geografia em diferentes contextos: a contribuição da escola do
campo à prática de ensino”, Alexandra Maria de Oliveira partilha narrativas de pro-
fessores e alunos do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará
(UFC) com professores e alunos da escola do campo localizada no assentamento 25
de Maio em Madalena, no Ceará. Nesse contexto, relata a experiência do desenvol-
vimento de uma oficina geográfica, substituindo a perspectiva da prática de ensino
como laboratório pelo sentido da escola como “lugar de trocas, construção de conhe-
cimentos e aprendizagens significativas”. A ação proposta tem apontado para uma
prática pedagógica conjunta com outros professores, “sujeitos sociais na luta pela
terra e pela justiça social”.
A seguir, Flaviana Gasparotti Nunes problematiza o entrecruzamento cultu-
ral presente em escolas de fronteira, no texto “Narrativas docentes na/da fronteira:
Apresentação | 19
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identidade, alteridade e diferença na prática de ensino e na formação de professores
de Geografia”. Nessa proposta, analisa narrativas de professores de Geografia que
atuam no município de Ponta Porã (Mato Grosso do Sul, Brasil) e recebem grandes
contingentes de alunos oriundos de Pedro Juan Caballero (Paraguai). O objetivo do
trabalho consistiu em “analisar em que medida a Geografia como disciplina esco-
lar tem considerado (ou não) a diversidade cultural presente nas escolas fronteiriças
para trabalhar seus conteúdos”.
O texto “Narrativas de professores de Geografia: a escrita de si como projeto
de conhecimento e formação”, de Francisco das Chagas Rodrigues da Silva e Bárbara
Maria Macedo Mendes, apresenta uma significativa reflexão sobre o processo de for-
mação de professores de Geografia a partir de narrativas, tomando como perspectiva
os modos de aprender e ensinar, de tornar-se e ser professor, construídos ao longo
da vida. Aborda as narrativas autobiográficas como fonte de pesquisa e produção de
conhecimento, bem como suas potencialidades para a investigação da formação do-
cente. Registra-se, também, a análise das trajetórias de formação de alguns docentes,
indicando imagens e representações sobre Geografia e seu ensino, assim como suas
implicações no processo de tornar-se e ser professor de Geografia.
O texto “Docência em travessia: territórios da profissão e narrativas de pro-
fessores de Geografia em escolas rurais”, de Mariana Martins de Meireles e Elizeu
Clementino de Souza, toma como referência a abordagem (auto)biográfica de pes-
quisa, focalizando as “trajetórias de professoras de Geografia que moram na cidade e
exercem a docência na roça”. O trabalho busca por meio de narrativas docentes “com-
preender os sentidos que estas professoras atribuem à profissão e as escolas rurais”, as
experiências formadoras e os trajetos (cidade-roça-cidade) como “espaços-tempos”
formadores. O desenvolvimento da pesquisa apontou para uma docência que se faz
na travessia, de forma humanizadora, nas idas e vindas entre casa e escola.
Com o título “Subjetividades na formação docente: o que narram os profes-
sores da roça?”, Simone Santos de Oliveira coloca foco nas subjetividades presen-
tes no processo de formação inicial do professor de Geografia do Departamento de
Educação da Universidade do Estado da Bahia, através de fragmentos das histórias
de vida e formação desses professores. A pesquisa confere destaque às narrativas de
professores provenientes da roça, indicando que as escolas rurais constituem espaços
educativos heterogêneos. As dificuldades vividas e o modo como lembram desses
fragmentos de suas histórias de vida, indicam a importância que a rememoração e os
registros dessas experiências podem agregar ao contexto da formação inicial docente.
Concluindo a segunda parte, temos o texto “Entre fugas e aproximações das ge-
ografias: percursos por memórias e conhecimentos de um quase geógrafo”, de Wen-
ceslao Machado de Oliveira Jr., no qual o autor discute que “não existe uma geografia,
20 | Inês Ferreira de Souza Bragança
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mas muitas geografias”. A partir de uma reflexão sobre sua trajetória pessoal na rela-
ção com o conhecimento, o autor vai delineando sua compreensão sobre a Geografia,
desvelando a tessitura de uma “geografia subjetiva”. Por meio de metáforas como os
esconderijos, o mirante, a praça, as pontes e a agora, somos apresentados a múltiplos
atravessamentos entre a Geografia acadêmica e a Geografia Escolar.
A terceira e última parte do livro tematiza “A vida cotidiana nas cidades: nar-
rativas, saberes e geografias”. O texto “Curtir, comentar e compartilhar – a fan page:
cotidiano, narrativas e memórias da cidade e do urbano nas aulas de Geografia”, dos
autores Hanilton Ribeiro de Souza e Rita de Cássia Barreto Sá, desenvolve o estudo
da cidade e do urbano, como local de pesquisa e aprendizagem e aponta para o diá-
logo com o espaço vivido pelo aluno enquanto caminho potente na construção das
múltiplas dimensões do conhecimento geográfico. Nessa perspectiva, o texto destaca
as redes sociais, especialmente a fan page, como meio de criação de uma cidadania
participativa e de constituição de espaços sistemáticos de produção e socialização do
conhecimento.
No capítulo a seguir, Lana de Souza Cavalcanti tematiza “O jovem e a cidade:
narrativas de suas percepções e de suas práticas espaciais por professores de Geo-
grafia”, buscando investigar “junto com professores da rede de ensino de Goiânia e
de outros municípios da sua região metropolitana, as possibilidades de se trabalhar
com o tema da cidade tendo como referência aspectos do jovem e de sua cultura e as
produções da Geografia urbana”. No desenvolvimento do trabalho, foram realizados
grupos focais para discussão sobre o jovem, suas preocupações, percepções e práti-
cas, indicando o desenvolvimento de planejamentos contextualizados para o ensino
da Geografia.
O capítulo “O estudo da cidade e o lugar na Geografia Escolar”, de Sonia Maria
Vanzella Castellar, propõe uma discussão sobre a centralidade do estudo da cidade,
do lugar e do urbano na disciplina de Geografia. A primeira premissa desenvolvida é
que “o aluno dá significado à cidade porque conhece e vive nela, ela é real, é onde o
aluno tem suas experiências” e a segunda é que “a cidade é uma ótima síntese para se
estudar a articulação entre a sociedade e o meio físico, objeto de estudo da geografia”.
Nessa perspectiva, aponta para um processo de ensino-aprendizagem que pode ocor-
rer em diferentes espaços, incluindo os não formais, para além dos muros da escola,
na busca de um ensino mais investigativo e significativo para o aluno.
Finalizando a terceira parte e o livro, Vânia Alves Martins Chaigar discute o
tema das “Aprendizagens e itinerários juvenis: cidade e cidadania sob o véu de narra-
tivas e memórias”. Partindo do questionamento sobre o esvaziamento da “produção
de sentidos para a vida e/ou da sua reinvenção” e a forma como os jovens poderão
construir suas existências e relação com o lugar, o texto aponta para o investimento
Apresentação | 21
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“em ‘insurgências’ didático-pedagógicas”, apoiadas na pesquisa-formação (auto)bio-
gráfica. Nelas, docentes e discentes buscam formas de ensinar e aprender fundadas
no diálogo, no intercâmbio de culturas e partilha de saberes, abrindo caminhos para
pensar aprendizagens na/com a cidade, especialmente na graduação em Pedagogia.
A composição dos textos nos leva a sentidos de uma trama de múltiplos fios
epistêmicos, temáticos e de práticas educativas em paisagens de diversos estados bra-
sileiros, trama que se entretece tendo como referência a abordagem (auto)biográfica
de investigação-formação. Observamos nas últimas décadas um número crescente
de trabalhos ancorados da referida perspectiva, bem como o aprofundamento das
bases teórico-metodológicas do campo, especialmente por meio da realização dos
congressos internacionais sobre pesquisa (auto)biográfica e da fundação, em 2008,
da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph). A presente obra
insere-se nesse contexto de “desenvolvimento diferenciado” (PINEAU, 2006),1 tra-
zendo especial contribuição na interface com o campo da educação geográfica.
Na diversidade dos textos, observamos um caminho instituinte de “geo(bio)
grafização”, revelando múltiplas faces da pesquisa-formação narrativa. Os autores
partilham fragmentos de suas trajetórias de vida, destacando uma tessitura de en-
contros com “as geografias”, a educação e as narrativas, na construção de suas iden-
tidades pessoais e docentes. Indicam novas perspectivas de constituição do campo
curricular do estágio supervisionado, não como “ensaio” ou “laboratório”, mas como
“espaço-tempo” de construção coletiva da docência, tomando a escrita reflexiva por
meio de memoriais, diários e portfólios como potentes possibilidades formativas.
Apresentam uma riqueza de fragmentos narrativos de estudantes em processo de
formação inicial de professores de Geografia, como testamentos das relações estabe-
lecidas entre o urbano e o rural, os jovens e a cidade, a escola e os espaços não formais
de ensino-aprendizagem.
Na travessia dessas paisagens, memórias e práticas educativas, como disse ini-
cialmente, fui fisgada pela leitura e é o que desejo aos leitores, bem como a sensibili-
dade e abertura para novas interpretações e práxis.
Inês Ferreira de Souza Bragança
Entre Campinas e Niterói, 1 de setembro de 2013.
1 PINEAU, Gaston. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação exis-
tencial. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 329-343, maio/ago. 2006.
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Primeira Parte
Narrativas Docentes, Formação e
Estágio Supervisionado em Geografia
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O estágio supervisionado em Geografia como um
locus que problematiza a identidade docente:
narrativas de constituição em roda
Cláudia da Silva Cousin
Introdução
O texto que inicio a escrever busca partilhar algumas reflexões construídas a par-
tir dos estágios curriculares supervisionados do curso de licenciatura em Geografia, da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG), onde atuo como professora formadora.
Visa abordar questões referentes às vivências e experiências tramadas no cotidiano das
escolas parceiras durante os estágios e com a participação e partilha nas rodas de for-
mação que corroboram para promover o processo de (re)significação da prática docen-
te, a partir das aprendizagens construídas durante a formação de professores.
Os estágios supervisionados no curso de licenciatura em Geografia da FURG
permitem a inserção dos alunos estagiários no cotidiano de escolas parceiras, per-
tencentes a diferentes contextos socioespaciais do município do Rio Grande (RS)
(centro/periferia, espaço urbano/espaço agrário). Esse detalhe, marcado pelo distan-
ciamento físico, ao mesmo tempo que se constitui em um desafio para o acompa-
nhamento e supervisão, permite que torne mais complexa a compreensão do fazer
docente, pois os alunos, ao vivenciar diferentes realidades e participar semanalmente
da roda de formação, partilham as aprendizagens construídas e situações vivenciadas
nesses ambientes escolares, os quais possuem suas especificidades e particularidades,
pois estão carregados de signos e símbolos que constituem os lugares ao qual perten-
cem. O espírito da partilha na roda de formação permite que o estagiário compreen-
da que forma ao formar-se.
25
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O estágio supervisionado em Geografia também permite fomentar a parceria
e a articulação entre a universidade e a escola, espaços estes basilares para pensar e
discutir a formação de professores. Essa articulação tem caráter político, social, edu-
cativo e formativo. Com isso, a integração e o diálogo dos professores regentes das
classes em que são desenvolvidos os estágios de observação, participação e regência
com os alunos em formação inicial e com os professores orientadores/supervisores
são importantes, pois possibilitam pensar e discutir o ensino de Geografia, além de
qualificar e contribuir com o processo de ensinar e aprender. Convém destacar que
o diálogo neste texto é compreendido na perspectiva de uma educação problemati-
zadora.
Nos estágios, compreendemos o professor regente como um parceiro impor-
tante para o processo de formação, uma vez que esse conhece o fazer docente e vi-
vencia o cotidiano escolar, pois é ele que vive a realidade da escola. Por isso, esses
professores são convidados para acompanhar o processo de construção da proposta
de estágio, bem como o seu desenvolvimento e significação. Essa integração do pro-
fessor regente promove também a sua formação continuada, pois esse participa das
leituras propostas, da construção dos planejamentos e, também, das discussões que
são promovidas em torno das metodologias de ensino que serão utilizadas no pla-
nejamento das aulas, bem como sobre a avaliação, temática essa que perpassa todo o
processo educativo e que sempre se constitui em um desafio.
Nessa perspectiva, o estagiário estabelece um diálogo permanente com a trí-
ade de professores que orienta e supervisiona o estágio. O professor supervisor de
conteúdo pertence ao quadro responsável pela formação específica do curso de li-
cenciatura em Geografia. A parceria com esses professores é essencial, pois ampara
teoricamente o planejamento e a construção das propostas de estágio, bem como o
seu desenvolvimento e significação. Além disso, esses professores, por estarem inse-
ridos nessa proposta de formação, participando ativamente, muitas vezes, promovem
discussões em suas respectivas disciplinas, enfocando o ensino de Geografia e dando
ênfase à educação básica. Esse movimento qualifica o processo de formação e o torna
mais complexo.
Essa forma de sistematizar a orientação/supervisão dos estágios curriculares
supervisionados permite que tornemos mais complexo o diálogo sobre o contexto
escolar, e possamos planejar um conjunto de atividades que atendam a demanda da
turma em que é realizado o estágio, considerando suas especificidades e, com isso,
intensificar o processo de ensinar e aprender Geografia no lugar − a escola. Essa par-
ceria corrobora para romper com a concepção de que a escola é apenas um campo
para os estágios do curso de licenciatura e mostrar a importância de compreendê-la
como um lugar de formação, ou seja, com essa perspectiva é possível promover a
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parceria entre a universidade e a escola e quebrar o distanciamento muitas vezes exis-
tente, o qual fragiliza os processos formativos, ao invés de contribuir para torná-los
mais complexos.
Atualmente, um espaço importante que tem promovido a formação inicial e
continuada de professores da rede pública de ensino e, também, o estreitamento de
laços de parceria entre a universidade e a escola é o Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação a Docência (Pibid), da Universidade Federal do Rio Grande (FURG),
fomentado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Ca-
pes). Esse programa teve início na referida Instituição de ensino superior no ano de
2007, com a participação de quatro cursos de licenciatura (Química, Física, Biologia
e Matemática). Em 2009, os cursos de Artes visuais, Pedagogia, História, Português
(habilitação em inglês e habilitação em espanhol) passaram a integrar o programa,
além dos já existentes. Já em 2011, ocorreu a inserção dos cursos de licenciatura em
Geografia, Educação Física e Português (habilitação em francês), contemplando,
desta forma, todas as licenciaturas da instituição. Em 2012, foram elaborados dois
subprojetos interdisciplinares, que são: Educação ambiental e Gestão escolar. Esse
programa corrobora para intensificar a parceria entre estas instituições, bem como
intensifica o processo de formação inicial e continuada. Em 2013, o Pibid da FURG
contou com a elaboração de 15 subprojetos, presenciais e também na modalidade de
Educação a Distância, sendo a Geografia uma das licenciaturas presenciais.
A licenciatura em Geografia no edital de 2011, especialmente pela parceria
promovida pelo Pibid, atuou em duas escolas da rede básica de educação. Contou
com a participação de duas professoras supervisoras em exercício e com 12 bolsistas
de iniciação à docência, carinhosamente conhecidos e chamados de Geopibidianos.
Essas escolas parceiras também receberam estagiários do curso de licenciatura: uma
pertence à rede municipal de ensino e se localiza em um bairro periférico da cidade,
a outra está vinculada à rede estadual e situa-se na zona rural, sendo uma escola sede
que polariza alunos pertencentes aos diferentes distritos que compõem a zona rural
do município do Rio Grande (RS).
O estágio curricular supervisionado na formação de professores
de Geografia
A formação de professores na atualidade, planejado a partir da Resolução CNE/
CP n. 01, de 18 de fevereiro de 2002, que institui as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a formação de professores da educação básica, potencializa, nos alunos, a
necessidade de conhecer o cotidiano da escola, com sua dinâmica, a organização dos
O estágio supervisionado em Geografia como um locus que problematiza... | 27
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espaços e dos tempos escolares, suas rotinas, suas possibilidades, seus limites, bem
como, os sistemas de ensino e as políticas públicas vigentes. Isso acontece atualmente
nos cursos de licenciatura porque o estágio passou a ser compreendido como um
locus em que é possível à práxis pedagógica e, também, permite que os alunos – futu-
ros professores − tenham acesso e realizem suas inserções no lugar – a escola. Dessa
forma, rompe com a visão linear e reducionista que compreendia o estágio curricu-
lar supervisionado como apenas mais uma disciplina que integrava o currículo dos
cursos de formação, pois permite a inserção e o mergulho dos alunos no cotidiano
escolar.
Compreendo e corroboro com a ideia que emerge atualmente sobre a impor-
tância dos cursos de licenciatura propor organizações curriculares que perpassem vi-
vências no cotidiano escolar e que permitam a inserção na escola dos alunos em for-
mação, rompendo com a estrutura que promove essa somente no final do curso. As
vivências no cotidiano escolar precisam permear todo o processo formativo e tam-
bém estar presente, nas disciplinas de cunho específico, promovendo e fomentando
constantemente, diálogos formativos que problematizam o ensino de Geografia na
educação básica. Para Freire, talvez essa forma de pensar os processos de formação
pudesse ser compreendida como o inédito viável, ou um devir. No entanto, um pro-
cesso de formação que é compreendido como um empreendimento conjunto, o qual
possui o engajamento mútuo dos professores formadores e também dos alunos e é
constituído por um repertório compartilhado, engendrado pelo diálogo e partilha,
deixa de ser uma utopia para se tornar realidade. Essa forma de compreender a for-
mação de professores emerge articulado com a proposta das diretrizes curriculares
da licenciatura, a qual intenciona discutir acerca da importância das práticas pedagó-
gicas estarem entrelaçadas com o curso, perpassando o seu currículo, e não se reduzir
à realização da disciplina de estágio. Ou seja, o estágio curricular supervisionado
precisa envolver na sua totalidade as ações do currículo do curso de licenciatura.
Carlos e Dias (2012), ao discutir sobre a importância da prática pedagógica
nos cursos de licenciatura, pontuam que a necessidade de construir uma concepção
de prática como componente curricular, articulado e basilar a todo o processo de
formação, implicaria vê-la como uma dimensão do conhecimento presente, tanto
nas situações em que se discute a atividade profissional, como nas ocasiões em que se
promove seu exercício. O caso em discussão, vivenciado no curso de licenciatura em
Geografia da FURG, em sua organização curricular, possibilita que os alunos iniciem
esse processo de inserção no cotidiano das escolas já no começo do curso, especial-
mente através das disciplinas que compõem o núcleo comum das licenciaturas em
diálogo com as disciplinas específicas.
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Compreendo que conhecer o lugar − a escola, sua estrutura, suas rotinas, seus
conflitos e sua dinâmica – são fundamentais para a construção da identidade docente.
A escola é aqui compreendida como uma teia de relações (KIMURA, 2008) que se
constitui num importante locus para promover a construção do conhecimento. War-
shauer (2001), ao teorizar sobre a escola e seu papel social, destaca que ela se apresenta
hoje como uma unidade que, investida de maior autonomia, pode se transformar em
um espaço de ações profícuas no que se refere à formação de seus atores, não apenas
dos alunos, mas dos professores e demais profissionais que ali convivem e trabalham.
Pimenta e Lima (2004) enfatizam que a identidade do professor é construída ao
longo de sua trajetória como profissional do magistério. Já Farias e outros (2009), ao
teorizar sobre o processo de construção da identidade ou fazer docente, busca refletir
sobre a importância de aprender a ser e a estar na profissão. Nesse movimento, desta-
cam que a história de vida, a formação e a prática pedagógica constituem elementos
identitários da docência, pois é constituidor das maneiras como o professor se faz e
refaz, dialeticamente como profissional. A itinerância da vida, perpassada por dife-
rentes convivências, propicia experiências formadoras (FARIAS, 2009) da bagagem
social que o professor traz para a profissão. Defendem e destacam a importância de
pensar o professor como um sujeito de praxis. Para elas:
Isso implica, antes de qualquer coisa, entendê-lo como ser em
permanente constituição, produzido pelas condições sociais
concretas do lugar e do tempo em que atua e vive. Pensa-lo como
um ser inacabado e em constante aprendizado. (FARIAS et al.,
2009, p. 68)
Para Pimenta (2004), o estágio é uma oportunidade de aprendizagem da pro-
fissão docente, que:
Como componente curricular, o estágio pode não ser uma com-
pleta preparação para o magistério, mas é possível, nesse espaço,
professores, alunos e comunidade escolar e universidade traba-
lharem questões básicas de alicerce, a saber: o sentido da profis-
são, o que é ser professor na sociedade em que vivemos, como
ser professor, a escola concreta, a realidade dos alunos nas esco-
las de ensino fundamental e médio, a realidade dos professores
nessas escolas, entre outras. (PIMENTA, 2004, p. 100)
Para tanto, o estágio curricular supervisionado é importante para a formação
docente porque possibilita o fazer docente e potencializa o entrelaçamento do co-
O estágio supervisionado em Geografia como um locus que problematiza... | 29
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nhecimento teórico aprendido no curso de formação, com a prática em sala de aula,
em frente a diversas situações do cotidiano escolar, em busca de uma elaboração da
praxis docente. Esse é um momento importante, carregado de inúmeros conflitos que
precisam ser mediados a partir do diálogo e da possibilidade de estar na escola. Nesse
instante, os elementos, anteriormente pontuados por Farias e outros (2009), como
constituidores da identidade docente emergem intensamente, ou seja, os signos e
símbolos que formam a história de vida dos estagiários, articulados com o proces-
so de formação vivenciado na universidade descortinam o seu ser professor. Nesse
processo, o trio de professores orientadores/supervisores possui papel significativo,
pois são eles que precisam, nesse momento, através do diálogo, mediar os conflitos e
promover a discussão do professor como um sujeito inconcluso.
Os estágios curriculares supervisionados do curso de licenciatura em Geografia
da FURG ocorrem ao longo de quatro semestres. No entanto, a inserção dos alunos
no contexto escolar antecede esse processo, sendo potencializado pelas disciplinas
do núcleo comum das licenciaturas e também por algumas disciplinas específicas.
São marcados pela possibilidade da praxis educativa articulada com o permanente
exercício de escrita narrativa das vivências cotidianas nos registros, os quais são par-
tilhados na roda de formação. Estão organizados e sistematizados da seguinte forma:
a) Na disciplina de estágio em Geografia I e II, ocorrem as inserções no cotidiano
de uma escola de ensino fundamental e, também, em uma de ensino médio, res-
pectivamente. Esses estágios têm caráter investigativo e, por isso, tem por objetivo
aproximar, ainda mais, os estagiários do cotidiano e da cultura escolar, possibili-
tando o estabelecimento de elos entre estudantes e escolas, o aprofundamento do
conhecimento sobre a organização escolar e a construção de uma ética profissional
de respeito à escola pública e à comunidade ao qual pertence. As primeiras inser-
ções dos alunos no cotidiano das escolas começa a acontecer durante o processo de
formação, especialmente nas disciplinas de educação de jovens e adultos e didática.
Durante esses estágios, é solicitado aos alunos a realização de uma pesquisa sobre
a memória, o contexto e organização administrativa da instituição educativa em
que serão realizados os respectivos estágios. Além disso, solicita-se também buscar
a história da instituição, investigar sobre as comunidades que a escola engloba e
como se dá o processo de gestão escolar. Efetua-se uma análise do projeto pedagó-
gico da escola e do regimento escolar. Dessa forma, é realizada uma investigação
sobre a organização do espaço escolar, buscando os materiais pedagógicos dispo-
níveis e a relação da escola com o entorno e a comunidade. Após, é proposto aos
estagiários à realização de uma investigação sobre o planejamento, a organização
e as relações de poder na sala de aula: planejamento das aulas, avaliação, recursos
didáticos, integração com outras áreas do saber, organização da rotina de sala de
aula e as relações de poder na sala de aula. Para realizar essa investigação, os esta-
giários desenvolvem uma entrevista semiestruturada com a professora regente da
turma observada e conversas com o trio gestor da escola parceira. Todas essas ati-
30 | Cláudia da Silva Cousin
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vidades acima citadas são realizadas com a inserção sistemática dos estagiários nas
escolas parceiras, para realizar a observação e participação em seu cotidiano. Após
concluir essa etapa de observação e participação, os alunos começam o processo
de construção das propostas de estágio, as quais serão desenvolvidas no cotidiano
da sala de aula, no semestre seguinte, nas disciplinas de estágio em Geografia III
e estágio em Geografia IV, prevendo um mínimo de 12 horas/aula para cada nível
de ensino (fundamental e médio). As respectivas propostas precisam conter uma
pesquisa sobre o referencial teórico que fundamentará inicialmente as suas propo-
sições para o estágio, a partir das observações e investigações realizadas, bem como
o planejamento e sistematização das atividades propostas, além do sistema de ava-
liação, que perpassará todo o processo de ensinar e aprender. Por fim, se propõem
a realização de uma intervenção na escola, assumindo o papel de professor. Essa
intervenção consistirá no planejamento e realização de 2 a 4 horas/aula na sala de
aula investigada, com o acompanhamento da professora regente e, também, com a
orientação e supervisão dos demais professores que compõem o trio de supervisão.
b) As disciplinas de estágio em Geografia III e IV buscam auxiliar na organização,
preparação e realização das práticas pedagógicas de Geografia para o ensino
fundamental e médio, bem como orientar e acompanhar os estagiários em seus
processos de estágios supervisionados, orientando-os no planejamento e desen-
volvimento pedagógico de suas práticas. A metodologia de ensino destes estágios
aposta na potencialidade formativa das rodas de formação, tecidas na perspecti-
va de uma comunidade aprendente. A construção se alicerça na necessidade de
uma intervenção planejada nas escolas de ensino fundamental e médio, tendo por
base o referencial teórico já estudado durante o curso de formação inicial, leituras
complementares, trocas e socializações de experiências, orientações dirigidas e vi-
sitas/observações realizadas nas salas de aula no estágio supervisionado, além da
construção do registro reflexivo utilizando a escrita narrativa como artefato cultu-
ral que potencializa a formação. Dessa forma, tais considerações permitem que os
alunos desenvolvam o estágio de regência.
Em qualquer nível, seja no ensino fundamental ou no médio, é permitido que
os alunos façam a opção pela modalidade de ensino de educação de jovens e adultos.
Além disso, para que os alunos possam conhecer a realidade vivenciada em ambas
as redes de ensino, bem como sua dinâmica, estrutura e funcionamento, as professo-
ras formadoras sistematizaram que o estágio realizado no ensino fundamental fosse
realizado em uma escola da rede municipal e o estágio no ensino médio, em uma
escola da rede estadual. No entanto, guardada suas especificidades e particularidades,
ocorre a flexibilização para que todos os alunos possam realizar sua prática de ensino.
Nesse sentido, é importante destacar que, anualmente, poucos alunos realizam
os respectivos estágios na modalidade de educação de jovens e adultos (2010 – quatro
alunos, 2011 – dois alunos, 2012 – dois alunos, em ambos os níveis de ensino, 2013
– um aluno). Isso ocorre por causa de vários fatores, dentre eles, destaco: o curso de
O estágio supervisionado em Geografia como um locus que problematiza... | 31
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licenciatura é ofertado no período noturno, semelhante a essa modalidade de ensino,
o que dificulta o desenvolvimento do estágio em consonância com a frequência a
tal curso, além disso, os alunos que optaram por realizar os respectivos estágios su-
pervisionados nesta modalidade de ensino são trabalhadores que possuem vínculo
empregatício, o que inviabiliza a sua estadia na escola, durante o turno da manhã e/
ou tarde e, por fim, a educação de jovens e adultos, enquanto modalidade de educa-
ção enfrenta um fator limitante que corrobora para a baixa procura como campo de
estágio curricular supervisionado, o qual possui elevado índice de evasão escolar pre-
sente nas salas de aula, que dificulta as atividades dos estagiários em seu cotidiano.
O planejamento e a sistematização dos respectivos estágios supervisionados são
realizados sob a orientação da tríade formada pelos professores que acompanham in-
dividualmente cada aluno na escola parceira, seguido da participação e socialização
das aprendizagens construídas cotidianamente, na roda de formação, a qual acredita
na possibilidade de constituir uma comunidade aprendente que discute o ensino de
Geografia.
A importância da roda para a formação de professores na
perspectiva de uma comunidade aprendente
A constituição de uma roda de formação de professores, bem como a sua me-
diação, não é exercício fácil, pois exige do mediador sensibilidade para potencializar
o diálogo, as reflexões, as aprendizagens que são construídas pelas partilhas, assim
como o exercício da escuta sensível e da escrita. Warshauer (2001, p. 300), ao discutir
sobre a importância da roda, destaca que:
Cada um, com sua história individual, seu processo identitário,
suas características e talentos singulares, contribui na constru-
ção partilhada de uma história comum. Individualidades que, tal
como a urdidura na tecelagem ou no trançado de cestos, é a base
sobre a qual a história partilhada é construída através da trama
de suas vivências. [...] uma jornada em comum que deixa marcas
de sue trajeto espiralado no texto-tecido das histórias.
A simples organização da sala de aula, em que ocorre a discussão sobre as vi-
vências dos estágios supervisionados em roda, não significa realizar formação de
professores em roda. A crença na formação de professores de Geografia em roda se
dá pela potencialidade formativa desta para o processo educativo, por construir a
possibilidade do diálogo, da partilha, da escuta, da reflexão e da significação. War-
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shauer (2001) nos leva a pensar sobre a importância das rodas, principalmente en-
quanto processo partilhado, potencializado pela qualidade das interações. As rodas
de formação de professores, quando permeadas pela partilha, diálogo e amorosidade
permitem a tessitura de comunidades aprendentes, pois se tornam espaços que con-
tribuem para a construção da identidade docente.
Freitas (2010), ao discutir sobre a constituição e a importância das comuni-
dades aprendentes para a formação de professores, destaca que estas são lugares de
identidades que podem proporcionar a construção de trajetórias singulares e tam-
bém coletivas. O que define e amarra essas comunidades é a prática partilhada na
roda, permitindo a construção de modos de pensar, os quais ajudam a concretizar
melhor as ideias abstratas. Uma comunidade aprendente pressupõe o entrelaçamento
de três elementos, que são:
Figura 1 – Elementos que constituem uma Comunidade Aprendente
Fonte: adaptado de Wenger, (2001).
As aprendizagens construídas com o pertencimento às rodas de formação de
professores de Geografia, mediados pelas disciplinas de estágio supervisionado, po-
tencializam a formação de uma comunidade aprendente, em que o empreendimento
conjunto se constitui na observação, participação e planejamento do estágio de re-
gência desenvolvido nas escolas parceiras da rede municipal e estadual de ensino. O
repertório compartilhado consiste nos discursos emergentes, advindos das leituras e
diálogos promovidos pela mediação que se dá semanalmente na roda de formação,
e o engajamento mútuo mostra a forma como ocorre a construção da identidade
docente dos alunos estagiários em processo de formação inicial, articulado com as
experiências vivenciadas no cotidiano escolar e partilhadas na roda, bem como com
os diálogos tramados com os professores formadores.
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Para Brandão (2005), uma comunidade aprendente aprende também a ser co-
munidade enquanto aprende a fazer o que se propõe, no caso, a formação inicial de
professores em roda. Pontua que ninguém se educa sozinho, pois o que se aprende
provém de saberes e sentidos de outras pessoas, através de trocas, de reciprocidades,
de interações, em diálogo com Freire (1996).
Com a constituição de uma comunidade aprendente em roda de formação e
o começo do processo formativo é possível considerar que a roda, em um primei-
ro momento, estava sendo concebida pelos alunos apenas como estrutura, ou seja,
em círculo. Percebi isso porque inicialmente havia muito silêncio. Poucos falavam e
aqueles que partilhavam as aprendizagens construídas, os registros escritos e as lei-
turas propostas traziam para a reflexão, narrativas que elucidavam, principalmente,
experiências de “sucesso” que haviam vivenciado nas atividades propostas. Os me-
dos, os receios, as dificuldades, os erros, as surpresas, os imprevistos e os limites eram
considerados como fragilidades e, portanto, não eram partilhados com a comunida-
de aprendente em roda, sendo, no entanto, silenciados.
Ao problematizar a importância da partilha para as rodas, Warshauer (2001)
explica que o silêncio tem papel fundante na roda, pois ele atravessa as palavras.
Em um primeiro momento, considerei que aquele silêncio estava relacionado com
o fato dos alunos desenvolverem seus respectivos estágios em escolas localizadas em
diferentes contextos socioespaciais, com realidades distintas e situações particulares.
Com o tempo, percebi que esses elementos, considerados por eles como vivências
negativas, eram partilhados somente com a professora formadora, no final da roda
de formação.
A potencialidade formativa desses elementos, se partilhados, não eram com-
preendidos. Warshauer (2001, p. 143) pondera também que, para haver aprendiza-
gem e favorecer a formação em roda, é necessário que o “erro” e o desvio do plane-
jado possam ser entendidos como oportunidades para perceber a criatividade que
se manifesta através deles, provocada pelos desafios trazidos por uma situação nova.
Com base nessa autora, refletindo sobre a realidade vivenciada, gradativamente co-
mecei a convidá-los a partilhar com os demais alunos esses momentos que, certa-
mente, contribuiriam para o processo de formação de todos, devido a sua riqueza e
a sua contribuição pedagógica. Confesso que não foi um exercício fácil. No entanto,
semanalmente na roda, comecei a mediar essas partilhas com diretividade e amo-
rosidade e, nesse movimento, os estagiários foram gradativamente compreendendo
a importância dessas vivências para a formação da identidade docente e, com isso,
foram perdendo o receio de partilhar suas experiências. As vozes começaram a serem
entoadas e surgiu a necessidade de aprender a ouvir, de exercitar a escuta sensível, a
dialogar − outro desafio para os processos de formação de professores.
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Neste movimento, compreendi que passamos a avançar na roda, fazendo um
deslocamento de uma estrutura para um processo de formação inicial de professores,
por causa da qualidade das partilhas, das interações, dos diálogos que começaram a
ser tramados e construídos. As experiências e os saberes do “outro” começaram a ser
significados e compreendidos como essenciais também para a construção da identi-
dade docente dos estagiários. Em síntese, considero que as atividades propostas para
os estágios supervisionados estão promovendo a melhoria do ensino de Geografia
nas salas de aula da educação básica e tornando os processos formativos dinâmicos
e complexos. Além disso, a partilha na roda de formação, compreendida na pers-
pectiva de uma comunidade aprendente, possibilita que os sujeitos participantes do
estágio supervisionado façam também o exercício de se formar formando.
A narrativa como possibilidade de potencializar a formação de
professores
A pesquisa narrativa tem sido amplamente usada em diferentes áreas do co-
nhecimento e com denominações diversas, as quais descortinam várias maneiras de
fazer pesquisa, porém merece destacar o uso dela, principalmente, nas ciências so-
ciais e em Educação.
Para Clandinin e Conelly (2000), a narrativa é o fenômeno estudado, bem
como o método de estudá-lo. Esses autores diferenciam narrativa e história. Para
eles, o fenômeno constitui a história, e o método que a investiga e a descreve, a nar-
rativa (GALVÃO, 2005), ou seja, podemos considerar a narrativa tanto o fenômeno
estudado como uma abordagem de investigação-formação.
Ao adentrar no universo da narrativa é importante atentar para a questão da
temporalidade, pois um fato que é importante para revelar algum aspecto que contri-
buiu para a formação do sujeito aconteceu em um determinado tempo e espaço, que
precisam ser cuidadosamente considerados, por estarem impregnados de símbolos e
signos que contribuíram para o processo de formação dos sujeitos envolvidos. Dessa
forma, o que aconteceu no passado é narrado e, ressignificado no presente, produzin-
do um novo saber que estará associado ao futuro, especialmente quando usado em
um processo de formação inicial, como forma de significar as vivências e experiên-
cias construídas durante o estágio curricular supervisionado.
Entretanto, é interessante compreender que a narrativa acontece no presente
sobre o passado, sendo que ela já é capaz de apresentar alterações no passado em fun-
ção da sua compreensão sobre os acontecimentos narrados. Com isso, ela modifica
o presente e, quiçá, o futuro. Galiazzi e Mello (2005) enfatizam que, ao tratar sobre o
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pensamento narrativo, Clandinin e Conelly (2000) consideram que a temporalidade
é uma característica essencial. Enfatizam que:
Localizar os fatos e coisas no tempo é o modo de pensar sobre
elas. Quando se vê um evento, se pensa nele, não como uma coi-
sa acontecendo naquele momento, mas como expressão de algu-
ma coisa acontecendo em um período de tempo situado, consi-
derando que todo evento tem um passado, um presente e implica
em um futuro. (GALIAZZI; MELLO, 2005, p. 3)
Ao aproximar a narrativa da formação de professores, foi necessário considerar
também a importância e o significado da presença do “outro” no processo formativo
e, além disso, discutir a importância do narrar-se para a formação da identidade do-
cente. Considero que, ao se narrar, o estagiário em processo de formação inicial con-
tribui para o fortalecimento do seu processo de formação, tanto no aspecto pessoal
(individual e coletivo) quanto profissional, tendo em vista que as questões pedagógi-
cas, ao serem explicitadas, permitem uma tomada de consciência que pode levá-lo a
pensar no que faz (ações) e por que faz (motivos/escolhas). Esse exercício recursivo é
fundamental para a formação de professores, visto que pode auxiliar na compreensão
da sua atuação e escolhas profissionais.
Suarez (2008, p. 114), ao explicar a contribuição da pesquisa narrativa para a
formação de professores, considera que:
Ao contar suas histórias de ensino, os docentes autores desco-
brem sentidos pedagógicos parcialmente ocultos ou ignorados,
questões pedagógicas não nomeadas ou nomeadas de forma
pouco adequada. E quando conseguem se posicionar como
“antropólogos” de sua própria prática, quando conseguem dis-
tanciar-se dela para torná-la objeto de pensamento e podem
documentar alguns dos seus aspectos e dimensões “não docu-
mentados” percebem o que sabem e o que não conhecem ou não
podem nomear. Convertem sua consciência prática em discursi-
va, a questionam, os compõem, e a recompõem, a objetivam, a
fixam na escrita, a comunicam e a criticam.
Esse autor destaca o caráter formativo da narrativa por possibilitar que o pro-
fessor, quando se torna “antropólogo de sua prática”, consegue ressignificar sua atua-
ção docente e, com isso, buscar a melhoria da sua ação educativa. Nessa perspectiva,
podemos considerar que a narrativa pode ser realizada de diversas maneiras e tem na
escrita uma importante ferramenta.
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Assim como para Suarez (2008), Souza (2006) enfatiza que a Pesquisa Narrativa
potencializa no sujeito o contato com sua singularidade e o mergulho na interiorida-
de do conhecimento de si, ao se configurar como atividade formadora, porque reme-
te o sujeito para uma posição de aprendente e questiona sua identidade a partir de di-
ferentes modalidades de registro que realiza sobre suas aprendizagens experienciais.
Dessa forma, enquanto atividade formadora, a narrativa de si, nas rodas de formação
sobre as experiências vividas no estágio supervisionado, se caracterizam como pro-
cesso de formação e de conhecimento, porque se ancora nos recursos experienciais
engendrados nas marcas acumuladas das experiências construídas e das mudanças
identitárias vividas pelos sujeitos em processo de formação e desenvolvimento. Para
isso, utiliza o narrar-se em roda como possibilidade formativa, bem como o registro
narrativo que acredita no caráter formativo da escrita como artefato cultural. Essas
formas de produzir as narrativas de constuição são ferramentas difíceis, uma vez que
desafia os estagiários ao exercício da escrita, bem como, partilha suas experiências
formativas na roda, exercício, muitas vezes, complexo, pela dificuldade de dialogar.
Nesta perspectiva, a escrita é uma ferramenta importante na pesquisa narrativa
porque é a partir da relação dialógica entre escrever, ler, refletir e ressignificar que se
produz o pensamento. Penso que, ao escrever, os estagiários (re)pensam o próprio
processo de formação e descobrem possibilidades e limites do narrar, da perspectiva
que vê a própria vida, das palavras e da gramática que adquiriu para poder se contar
e se revelar. Trata-se, finalmente, de uma ação irrenunciável, que articula a escrita, a
leitura e o diálogo constituindo um objeto que, de outra forma, seria invisível, porque
estamos mergulhados nele: a vida como conhecimento, em toda a sua complexidade.
Ao tratar sobre as possibilidades da narrativa para a formação de professores,
Souza (2006) pontua que ela nasce, paradoxalmente, da dialética entre o vivido –
passado −, as prospecções do futuro, mas se potencializa nas reflexões e perguntas
do presente em função das aprendizagens, saber-fazer e conhecimentos implicados
na transformação e autotransformação do sujeito em formação inicial e continuada.
Neste sentido, a narrativa pode produzir reflexões interessantes no próprio nar-
rador e, por isso, pode contribuir para a transformação de quem narra, do pesquisa-
dor e do leitor. (TELLES, 2002) No mesmo sentido é que a formação de professores
em roda, na perspectiva de uma comunidade aprendente, aposta na elaboração da
narrativa como dispositivo que promove a reflexão e a formação.
A narrativa pode ser vista como uma maneira de interação entre percursos
pessoais e profissionais em uma perspectiva de construção pessoal. Os sentidos e
significados passam a ser o suporte para um contar histórias que, à medida em que
são narradas, vão mostrando como os sujeitos se constituem e estabelecem relações,
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tornando possível perceber a influência e a importância da formação inicial para o
processo de formação de professores.
A narrativa também tem por característica possibilitar o entendimento do nar-
rado, pois procura uma forma de racionalização integral próxima do contexto e da
cultura da qual provém. Do contrário, a narrativa não faria sentido. Faz-se necessá-
rio, pois, entender uma vida ao invés de explicá-la. Para Galvão (2005, p. 328):
A realidade cotidiana é percebida por cada um de nós de um
modo muito particular, damos sentido às situações por meio do
nosso universo de crenças, elaborado a partir das vivências, va-
lores e papéis culturais inerentes ao grupo social a que pertence-
mos. As representações nos permitem decodificar e interpretar
as situações que vivemos.
A compreensão da narrativa ocorre no momento presente, revelando ações que
dão início a novas realidades, sejam elas experiências, representações ou até mesmo
novas compreensões, em um movimento de inúmeras possibilidades.
Assim, ao orientar e supervisionar diferentes experiências, vivenciadas nos es-
tágios curriculares supervisionados, mais do que um resgate de história pessoal, foi
possível encontrar fragmentos que contam sobre o cenário no qual aquela história
ocorreu. Torna-se possível contar uma parcela da trajetória em uma perspectiva pes-
soal que passa a ser também coletiva. Desse modo, as pessoas que participam da
roda de formação com a perspectiva da narrativa, não são meros colaboradores, mas
autores de histórias que certamente contribuirão para o processo de formação e a
construção de novos saberes, quando partilhados.
Ainda com relação à narrativa, cabe retornar à questão da temporalidade e des-
tacar que ela permite uma (re)leitura do passado, possibilitando compreender o pre-
sente e apontando possibilidades para o futuro. Importante, pois facilita a revisão do
percurso de uma trajetória, seja ela acadêmica, pessoal ou profissional, de forma que
o passado seja percebido como elemento constitutivo do presente e passível de ser re-
visitado e ressignificado. Portanto, a temporalidade é geradora de um processo capaz
de reconstruir os diferentes tempos e espaços trilhados, possibilitando a construção
de um novo saber. Logo, a escrita da narrativa confronta o narrador e o leitor com
seu eu, possibilitando a busca de um maior entendimento pedagógico que se reflete
nas escolhas, nos diferentes contatos interpessoais estabelecidos, os quais nos cons-
tituem pessoal e profissionalmente, ou seja, a temporalidade também está associada
ao distanciamento. Esses dois processos permitem uma nova compreensão dos fatos,
produzindo saberes e aprendizagens significativas.
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Considerar o tempo não linear na formação da identidade docente é outra ca-
racterística da narrativa, uma vez que articula o presente ao passado e ao futuro com
o objetivo de reconstruir o percurso de vida relatado, facilitando a compreensão do
processo de formação do sujeito em uma perspectiva temporal. Nesse movimento,
retornamos a Farias e outros (2008), os quais trazem a história de vida, a formação e
a prática pedagógica como elementos basilares para a formação de professores, por
contribuir com o processo de construção da identidade docente.
Em síntese, compreendo que a reconstrução da realidade é fruto da articulação
entre passado, presente e futuro de maneira não linear como processo de formação,
ou seja, são realidades relatadas que criam outras realidades, por isso, a reconstrução
permanente como movimento de formação. Enfim, parece-me que o limite da narra-
tiva na formação inicial e talvez continuada de professores é não ter limites, porque o
caminho é trilhado lentamente, atentando para todos os aspectos que se entrelaçam à
medida que novas compreensões surgem em um vai e vem permanente.
Mergulhos reflexivos sobre a praxis docente mediados pela escrita
A socialização das vivências do estágio curricular supervisionado em Geogra-
fia, na roda de formação de professores, através da partilha, do planejamento e dos
registros, proporcionou o conhecimento de diferentes realidades, pois as escolas par-
ceiras se localizam em diferentes contextos socioespaciais. Além disso, as narrativas
também escritas se constituem em um artefato importante para a formação, pois per-
mite que os estagiários façam um mergulho reflexivo nos processos vivenciados no
cotidiano escolar e, a partir disso, sua ressignificação. Esse movimento é fundamental
para a sua formação. O sucateamento das escolas, a precariedade dos recursos, as di-
ferentes realidades vivenciadas, a evasão escolar, os indicadores do Índice de Desen-
volvimento da Educação Básica (Ideb), o descaso com a Educação, os baixos salários
e a falta de reconhecimento da profissão professor foram algumas das temáticas que
permearam o processo de mediação.
As vivências partilhadas, além de terem possibilitado um diálogo sobre as práti-
cas desenvolvidas e suas alternativas, também permitiram o conhecimento de todos,
de um espaço que muito havia sido trabalhado na teoria e que se constituiu em um
importante locus que promove o contato com a profissão professor, ou seja, permitiu
o estabelecimento de um diálogo que fomentou a realização da praxis pedagógica,
pela articulação no chão da escola, entre teorias discutidas e estudadas com a prática
permeada pelo fazer docente.
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Por fim, acredito que a partilha dos saberes e fazeres construídos pela comuni-
dade aprendente na roda são importantes para a formação dos futuros professores.
Esses estagiários em formação inicial, professores preocupados com as implicações
do fazer docente, com as trocas de experiência ocorridas durante as disciplinas de es-
tágio, fomentam a formação de um professor aberto ao diálogo sobre as suas práticas
e vivências. Além de aprender com suas próprias atividades e com as experiências
vividas no cotidiano da escola pelos demais integrantes da comunidade aprendente
na roda durante o estágio, o espaço de diálogo também permitiu o conhecimento do
universo escolar por diferentes ângulos, o que fará parte da vida dos futuros profes-
sores.
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Memoriais, diários e portfólios: narrativas autobiográficas e
formação docente1
Jussara Fraga Portugal
O que temos escrito é mais fácil de contar e compartilhar do que o
que simplesmente sabemos, pensamos ou sentimos. (ZABALZA,
2004, p. 29)
Escritas de si como estratégia de formação: notas introdutórias
A busca por estratégias metodológicas que favoreçam a formação prática de
professores em formação inicial para o exercício da docência na educação básica tem
sido o objeto de desejo de muitos professores formadores, sobretudo daqueles que
trabalham com os componentes curriculares: didática, prática de ensino e estágio nos
cursos de licenciaturas.
Nesta perspectiva, este texto tem como foco de discussão a potencialidade das
escritas de si/narrativas autobiográficas docentes através do uso de memoriais, di-
ários de formação e portfólios como dispositivos formativos e autoformativos no
âmbito da formação inicial de professores de Geografia, a partir das situações expe-
rienciadas no projeto de investigação-formação “Traduzindo-me: narrar histórias,
1 Parte das reflexões contempladas neste texto foi apresentada no II Encontro Luso-Brasileiro de Trabalho Docen-
te e Formação – Políticas, Práticas e Investigação: pontes para a mudança, realizado na Faculdade de Psicologia
e Ciências da Educação da Universidade do Porto (UP), na cidade do Porto, em Portugal, no período de 1 a 3
de novembro de 2013. O artigo intitulado “Traduzir-se: Geo(BIO)grafias de professores e formação docente” foi
publicado nos anais do referido evento.
43
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geografar trajetórias”2 (PORTUGAL, 2006), composto por 12 eixos temáticos que
entrecruzam histórias de vida, memórias da escola e das trajetórias de escolariza-
ção e narrativas das itinerâncias formativas no âmbito da formação docente, as quais
evidenciam narrativas de experiências singulares em espaços e tempos plurais cujas
marcas evidenciam os sentidos e os significados do vivido e retratam maneiras pró-
prias de contar as suas singulares histórias de vida, reportando-se às suas memórias
sobre as vivências e as situações experienciadas nos itinerários da vida.
Trata-se de um relato de experiência, contemplando alguns apontamentos
reflexivos sobre as situações formativas vivenciadas nas aulas de prática de ensi-
no em Geografia e estágio supervisionado no curso de licenciatura em Geografia
na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus XI, situada na cidade de
Serrinha,3 no Território de Identidade do Sisal4 (Figura 1), na região do semiári-
do baiano.
2 As práticas formativas experienciadas no projeto de investigação-formação “Traduzindo-me: narrar histórias,
geografar trajetórias”, são empreendidas nos componentes curriculares prática de ensino de Geografia e estágio
supervisionado I, II, III e IV, tendo como dispositivos formativos o memorial, o diário de formação e o port-
fólio; cujas narrativas contemplam três dimensões, a saber: trajetórias pessoais, trajetórias de escolarização e
trajetórias de formação acadêmico-profissional e 12 eixos temáticos: 1. Traduzindo-me: quem sou eu?; 2. Minha
infância e a entrada na escola; 3. Memórias escolares – ensino fundamental I; 4. Memórias escolares – ensino
fundamental II; 5. Memórias escolares – as vivências no ensino médio; 6. Memórias escolares – a Geografia na
minha vida: assim aprendi Geografia na educação básica; 7. Memórias escolares – a Geografia na minha vida:
as aprendizagens cartográficas; 8. Memórias escolares – assim fui avaliado(a); 9. A escolha da profissão docente
e do curso de Geografia; 10. Tornando-me professor(a) – as aprendizagens na Universidade do Estado da Bahia
(UNEB); 11. Tornando-me professor(a) – o estágio e a aprendizagem da/na e sobre a docência no ensino fun-
damental; e 12. Tornando-me professor(a) – os estágios e as aprendizagens da/na/sobre a docência no ensino
médio.
3 Cidade Polo do Território de Identidade do Sisal.
4 O território de identidade do sisal, mais conhecido como região sisaleira, está localizado no semiárido, na me-
sorregião do Nordeste baiano e é composto por 20 municípios: Araci, Barrocas, Biritinga, Candeal, Cansanção,
Conceição do Coité, Ichu, Itiúba, Lamarão, Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quinjingue, Retirolândia,
Santa Luz, São Domingos, Serrinha, Teofilândia, Tucano e Valente. Este território abrange uma área de 20.454
km², o equivalente a 3,6% do território baiano, com uma população total de 582.331 habitantes (Censo Demo-
gráfico – IBGE, 2010).
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Figura 1 – Territórios de identidade do SISAL -BA
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A proposta do projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”
assenta-se na narrativa das histórias de vida e na evocação e partilha das memórias
da escola e dos itinerários de escolarização (memorial) e das trajetórias de formação
profissional, com ênfase nos registros reflexivos grafados no diário de formação e no
portfólio, sobre as situações experienciadas no devir da docência nas escolas-cam-
pos dos estágios supervisionados. Nessa direção, coaduno com a posição de Cunha
(2010, p. 203) ao asseverar que “[...] trabalhar com as narrativas tem o propósito de
fazer a pessoa tornar-se visível para ela mesma”, enquanto “sujeito de sua própria
história”. (CUNHA, 2010, p. 202) Desse modo,
O uso didático da memória pedagógica e/ou história de vida
tem se revelado um interessante instrumento de formação. Esta
proposta tem sido a principal alternativa metodológica para a
concretização dos pressupostos teóricos de um processo ensi-
no-aprendizagem que tenha o sujeito e a cultura como pontos
básicos de referências. (CUNHA, 2010, p. 206)
Os objetivos dessa prática formativa são: 1) conhecer, através da escrita do
memorial, as histórias de vida e as itinerâncias de escolarização e formação dos
licenciandos em Geografia; 2) compartilhar memórias, histórias, experiências de
vida e formação; 3) identificar nos registros, no diário de formação/portfólio as
situações experienciadas nos percursos formativos nos estágios curriculares de-
senvolvidos nas escolas de educação básica no município de Serrinha e região; 4)
investigar como os professores de Geografia lidam com as dificuldades geradas nas
situações de sala de aula, no exercício da docência, nos estágios supervisionados
curriculares; 5) desenvolver a prática da pesquisa (auto)biográfica no contexto da
formação de professores atrelada à concepção de estágio enquanto espaço de pes-
quisa e a pesquisa no campo de estágio; e 6) evidenciar as potencialidades formati-
vas das escritas de si, através dos memoriais, diários e portfólios, como dispositivos
de investigação-formação.
Para contemplar tais propósitos, o projeto de investigação-formação “Tradu-
zindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”5 está organizado em duas fases que
5 A elaboração e o desenvolvimento das ações do projeto de investigação-formação “Traduzindo-me: narrar histó-
rias, geografar trajetórias” nos componentes de prática de ensino e estágio supervisionado I, II, III e IV no curso
de Geografia, campus XI da UNEB, na cidade de Serrinha, na Bahia, se constituem como os principais desenca-
deadores da pesquisa de doutoramento: “Quem é da roça é formiga!: Histórias de vida, itinerâncias formativas e
profissionais de professores de Geografia de escolas rurais” (2013), de autoria da pesquisadora Jussara Fraga Por-
tugal e da pesquisa de mestrado “Macabéas às avessas: trajetórias de professoras de Geografias da cidade na roça
– narrativas sobre docência e escolas rurais” (2013), da pesquisadora Mariana Martins de Meireles, no Programa
de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da UNEB (PPGEduC/UNEB), no âmbito da pesquisa
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se complementam. A primeira corresponde à produção das escritas das histórias de
vida e das memórias que os professores em formação inicial carregam de suas his-
tórias de escola, das itinerâncias de escolarização e formação na modalidade de me-
morial cujo objetivo é conhecer os professores, licenciandos em Geografia, para o
encaminhamento de outras atividades formativas, no âmbito dos componentes cur-
riculares prática de ensino em Geografia I, II, III e IV.
A outra fase abrange os registros no diário de formação e a documentação no
portfólio das situações experienciadas no devir do exercício da docência, nas etapas
correspondentes aos estágios curriculares supervisionados, a partir da segunda me-
tade do curso, desenvolvidas nas escolas de educação básica no município de Serri-
nha e região e em diferentes espaços não escolares.
As reflexões tecidas neste texto estão organizadas em quatro partes, além des-
sa introdução e das considerações finais. A primeira compreende a apresentação da
proposta formativa desenvolvida no âmbito do referido projeto de investigação-for-
mação, destacando os objetivos, os espaços e tempos da realização das atividades, a
abordagem teórico-metodológica, os eixos temáticos e os dispositivos de formação.
Em seguida, contempla uma discussão sobre a potencialidade das escritas de si no
formato de memoriais. A terceira parte, intitulada “Diários de formação: narrativas
dos itinerários de formação”, versa sobre os registros das memórias das trajetórias de
formação, durante os períodos correspondentes aos estágios curriculares supervisio-
nados. Por fim, a quarta e última parte, “Portfólios: caminhos trilhados na formação
docente”, retrata os modos como esses professores de Geografia em formação inicial
documentam e refletem sobre o trabalho docente, a escola e os seus cotidianos e a
formação no contexto do território da profissão.
A experiência: a história e o seu começo
O narrador enriquece a sua própria verdade com aquilo que vem,
a saber, apenas de ouvir. Saber narrar a sua vida é sua vocação,
sua grandeza é narrá-la inteiramente. (BENJAMIN, 1996, p. 81)
“Ruralidades diversas – diversas ruralidades: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas na escola do campo
Bahia/Brasil”, com financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e do Conselho
Nacional de Pesquisa (CNPq), sob orientação do professor dr. Elizeu Clementino de Souza, e da pesquisa “Me-
mória e formação de professores do campo: histórias de vida de alunos da especialização em educação do campo
e desenvolvimento territorial do semiárido brasileiro da UFRB (Turma I - 2011-2012)”, da pesquisadora Maria
Madalena Mota, no âmbito do curso de pós-graduação lato sensu em Educação do Campo e Desenvolvimento
Territorial do Semiárido Brasileiro, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), campus Amargosa,
sob a orientação do professor ms. Fabio Josué Souza dos Santos.
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O projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias” nasceu do
meu desejo de construir uma proposta de formação que possibilitasse conhecer, ana-
lisar e interpretar as histórias de vida e as itinerâncias de escolarização e formação,
através da escrita de si e das narrativas produzidas nas etapas de estágio, buscando
compreender como as histórias de vida e os processos formativos demarcam im-
plicações no processo identitário profissional e como esses sujeitos se constituem
professores de Geografia.
Tudo começou quando da minha aprovação no concurso público, em 2006,
ao assumir o componente curricular prática de ensino em Geografia I, na primeira
turma do então recém-implantado curso de licenciatura em Geografia, no campus XI
da UNEB. Na ocasião, objetivando o planejamento das atividades de ensino para o
semestre letivo, elaborei o projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar traje-
tórias” – uma proposta de investigação-formação em Geografia.
No primeiro encontro com a turma de 18 alunos, numa conversa informal,
apresentei ao grupo a referida proposta de formação, fiz algumas inferências sobre a
dinâmica e o papel da universidade enquanto relevante espaço formativo, a natureza/
objetivo do curso e as minhas intenções e concepções metodológicas, os instrumen-
tos e procedimentos avaliativos, tendo em vista atender a ementa do componente
curricular e o projeto pedagógico do curso. Em seguida, apresentei a proposta e os
encaminhamentos para a sua execução, a partir das seguintes ações: a primeira é a
constituição de uma roda de conversa onde cada um faria uma autoapresentação, de
forma sucinta, contemplando alguns tópicos básicos. No primeiro, “Traduzindo em
palavras: histórias de uma vida” o narrador contempla, na sua escrita, o seu autorre-
trato, no qual destaca dados relevantes da sua identidade, nome e significado, filiação,
origem (lugar onde nasceu, onde vive, o que faz, do que gosta) e as lembranças da
infância, da adolescência até os dias atuais. No segundo tópico, “Minha vida escolar:
memórias de escolarização/trajetórias formativas”, o professor-narrador, revisitando
as suas memórias do tempo de escola, relata as trajetórias de escolarização, descre-
vendo vivências escolares (onde estudou a educação básica, quais as recordações da
escola, dos professores marcantes, as dificuldades e as aprendizagens da Geografia
Escolar e as práticas avaliativas vivenciadas na escola). E no último tópico, “Cami-
nhos da profissão: tornar-se/ser professor de Geografia”, são contempladas questões
referentes às trajetórias formativas, à escolha do magistério como profissão, à opção
pelo curso de licenciatura em Geografia e às expectativas da formação inicial para o
exercício profissional.
Após esse momento sugeri, como segunda ação, que cada um fizesse alguns
apontamentos escritos sobre as expectativas a respeito do componente curricular, da
finalidade do curso e da universidade. A terceira ação diz respeito à criação de um
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banco de dados sobre os estudantes, tendo em vista a elaboração de estratégias de
intervenção individualizada nos processos de ensinar e de aprender. Inicialmente, o
dispositivo utilizado foi a escrita de um memorial sobre as histórias de vida. A esco-
lha do memorial justifica-se por ser um gênero textual que favorece a reconstituição
da história individual e das situações experienciadas nos itinerários da vida. A quarta
e última ação foi o registro por escrito das narrativas contadas oralmente – memorial
– descrevendo as experiências vivenciadas.
A proposta foi aceita pelos estudantes, (mesmo com algumas resistências), os
quais, ao longo do semestre, foram se mostrando envolvidos e seduzidos pelas refle-
xões e aprendizagens em torno de suas histórias de vida e seus percursos de forma-
ção, atribuindo sentido e significado às vivências enquanto atores/autores e protago-
nistas de seus processos formativos.
Memoriais: grafias de vidas, escritas de si
É a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossa vida;
é ela enfim, que dá uma história a nossa vida: não fazemos a
narrativa de nossa vida porque temos uma história; temos uma
história porque fazemos a narrativa da nossa vida. (DELORY-
MOMBERGER, 2008a, p. 37)
Concebido como “um texto de caráter científico onde o autor descreve a sua
trajetória estudantil e profissional de forma crítica e reflexiva”, (CARRILHO et al.,
1997, p. 3) com ênfase nas histórias de vida, o memorial, no contexto da proposta
do projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”, é um importan-
te dispositivo autobiográfico de investigação-formação que possibilita a escrita das
histórias de vida em formação, as quais “[...] tentam identificar as marcas deixadas
no caminho, para decodificar as direções que elas podem esboçar”. (PINEAU, 2011,
p. 29) Portanto, é um modo singular de traduzir a vida em palavras, “[...] testemunho
da experiência vivida [...]”. (BERTAUX, 2010, p. 65)
As escritas de si, no formato de memoriais, como prática de formação e proce-
dimento de acompanhamento e de intervenção educativa, são concebidas como “[...]
traduções dos registros das experiências retidas, contêm a força da tradição e muitas
vezes relatam o poder das transformações. […] São olhares que permitem tempos he-
terogêneos. É a história em construção. São memórias que falam”. (DELGADO, 2006,
p. 44) De fato, as memórias falam e, quando evocadas, permitem revisitar o passado
possibilitando às narrativas traduzirem histórias de vida que retratam as situações
experienciadas e as aprendizagens nas trajetórias de escolarização e de formação pro-
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fissional. Neste contexto, “[...] as escritas de si, como prática de formação, têm por
objetivo refletir e narrar sobre as experiências de aprendizagens e, eventualmente,
de ensino que marcaram o processo de formação da pessoa que narra” (NACARA-
TO; PASSEGGI, 2012, p. 210), pois a escrita do memorial, no contexto de formação,
contempla as memórias sobre as situações experienciadas no cotidiano escolar e as
narrativas sobre as aprendizagens na universidade.
Dessa forma, o memorial é compreendido como um relevante dispositivo de
formação. Ao mesmo tempo em que é considerado um meio de investigação é tam-
bém um instrumento pedagógico. Sobre essa dupla condição do memorial, Passeggi
(2008, p. 128) ressalta que:
[...] como meio de investigação contribui para a apreensão de
dispositivos sobre os percursos de formação e de dimensões do
cotidiano escolar, de questões vinculadas à profissão, além de
possibilitar a apreensão de diferentes processos de aprendiza-
gem, de conhecimentos e de formação, através das experiências
e modos de narrar as histórias individuais e coletivas expressas
nos memoriais de formação.
O memorial, texto escrito na primeira pessoa, caracteriza-se como uma forma
de registro de vivências, experiências, acontecimentos, memórias, reflexões e se tra-
duz numa narrativa de vida e de formação pessoal e profissional. Ao escrever sobre si,
o autor narra histórias sobre os itinerários de vida, de formação e de profissão. Nesse
contexto, esse dispositivo da escrita de si é concebido,
[...] como um gênero acadêmico autobiográfico por meio do
qual o autor se (auto) avalia e tece reflexões crítica sobre seu
percurso intelectual e profissional, em função de uma demanda
institucional. O interesse de sua narrativa é clarificar experiên-
cias para a sua formação e situar seus projetos atuais e futuros no
processo de inserção acadêmica e ascensão profissional. (PASSE-
GGI, 2008, p. 120)
Nesta mesma direção, Goodson (2004) afirma que o uso de escrita de narrati-
vas autobiográficas, tanto serve para explicar questões atreladas à identidade docen-
te, como serve como dispositivo no processo de construção desta identidade, no âm-
bito dos percursos formativos iniciais de professores, uma vez que tal gênero textual
favorece a reconstituição da história individual e das situações experienciadas.
As narrativas dos professores de Geografia em formação inicial no devir do
Projeto Traduzindo-me, foram produzidas após a audição da canção Gente tem so-
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brenome, de autoria de Toquinho, contemplando a seguinte questão: Traduzindo-me,
quem sou eu? Esta indagação possibilitou ao sujeito desempenhar ao mesmo tempo
o papel de autor, ator e narrador, pois
[...] a la pregunta de quién somos sólo podemos responder con-
tando una historia. Es al narrarnos a nosotros mismos en lo que
nos pasa, al construir el carácter (el personaje) que somos, que
nos construimos como individuos particulares, como un quién.
(LARROSA, 1996, p. 470)
Naquele momento, na sala de aula, todos falaram, de forma abreviada, sobre si,
uma autoapresentação. Após o relato oral de fragmentos das histórias de vida, solici-
tei que as histórias narradas fossem traduzidas em palavras, ou seja, que os mesmos
registrassem por escrito as suas narrativas.
De acordo com Josso (2004), o recurso biográfico no devir formativo permite
o exercício do “formar-se”. Ainda, sobre a importância da escrita autobiográfica no
âmbito da formação inicial docente, Souza (2006, p. 55) enfatiza que:
[...] a abordagem biográfica e o trabalho com histórias de vida
e narrativas de formação possibilitam um investimento na pes-
soa do professor, na sua dimensão profissional e na ampliação
da organização escolar, a partir das experiências e aprendizagens
construídas ao longo da vida.
Em seguida, foi solicitado que cada um produzisse, em casa, um texto – me-
morial – relatando as experiências significativas vivenciadas dentro e fora do espaço
escolar, desde a educação infantil até o ensino médio. Essa atividade – escrita da
narrativa das trajetórias de escolarização – no contexto da formação docente tor-
na-se relevante, porque “[...] permite ao sujeito compreender, em medidas e formas
diferentes, o processo formativo e os conhecimentos que estão implicados nas suas
experiências ao longo da vida”. (SOUZA, 2006, p. 59)
A passagem da narrativa oral para o texto escrito não foi um encaminhamento
aceito de imediato por parte do grupo. Alguns criaram/demonstraram resistência,
alegando que não sabiam como escrever um texto, narrando as suas experiências.
Outros alegaram que as suas vidas não apresentavam histórias interessantes para ser
contadas e que falar de si não era algo fácil, evidenciando, assim, a dificuldade que
temos de nos biografar, de desvelar para si, revelando-se para os outros. Talvez se-
jam marcas deixadas pela escola, que muitas vezes silencia as vozes e, também, das
práticas experienciadas no cotidiano das relações familiares. Escrever um memorial,
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narrando o processo de formação, segundo Passeggi (2008, p. 36), “[...] parece, aos
olhos de quem jamais o fez, uma tarefa fácil. Mas fixar na escrita o que se tenta pegar
no ar, o que foge e escapa a cada tentativa é um trabalho ao mesmo tempo laborioso,
sedutor e consideravelmente formador”.
Mesmo entendendo as resistências, reconhecendo a legitimidade das questões
postas pelos estudantes, prossegui com as atividades. Assim, conforme combinado,
na aula seguinte, os textos escritos deveriam ser socializados com o grupo. Para sen-
sibilizar e possibilitar a leitura das narrativas, iniciei a aula com o poema Traduzir-se,
de autoria de Ferreira Gullar, interpretado pelo cantor cearense Raimundo Fagner.
Embora tivesse explicado a importância e a necessidade da produção do tex-
to para futuros encaminhamentos didático-pedagógicos, uma parte do grupo con-
tinuou a apresentar resistência, alegando que não seria possível reconstruir, numa
folha de papel, as suas histórias de vida, desencadeando assim, os sentimentos de
medo, insegurança, receio e até, por parte de alguns, rejeição à proposta apresentada.
Segundo Souza (2006), tais argumentos dos professores, proferidos no início
dos processos formativos, à primeira vista, devem ser entendidos como algo normal,
uma atitude compreensível, uma reação pertinente, pois
Traduzir a vida em palavras significa, por um lado, o risco de se
revelar e de se expor na busca de explicações e justificativas que
clarifiquem atitudes e (in)decisões, mas também a certeza de que
traduzir é criar, traindo, para reinventar a tradição. (SOUZA,
2006, p. 267)
Mesmo depois de muita conversa, imprimindo um discurso argumentativo
sobre a importância de empreender um trabalho comprometido com a expressão
da singularidade do sujeito, para fins didáticos, alguns estudantes ainda continua-
ram apresentando reações desfavoráveis à proposta de investigação-formação, ale-
gando que não seriam capazes de fazer algo tão diferente e extremamente pessoal.
Então, sem muita opção, segui o conselho do escritor José Saramago (1996) e com-
preendi que era “[...] preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que manda,
[...] a nós compete-nos inventar os encartes com a vida.” Assim, resolvi parar de
justificar a proposta e tentar convencer o grupo que apresentava resistência a par-
ticipar do projeto e oportunizei aqueles que realizaram a tarefa solicitada a fazer a
leitura das narrativas.
A maioria dos estudantes que socializaram as narrativas destacou a dificuldade
em traduzir as suas histórias em palavras, conforme reflexão da estudante Maristela,
registrada na parte introdutória do seu memorial:
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As histórias de vida relatam fatos, vivências e situações experenciadas pelo sujeito no pro-
cesso de sua existência. Falar de si mesmo não é uma tarefa fácil, pois adentra a subjetivi-
dade que muitas vezes impossibilita as narrativas. Entretanto, o exercício de autonarrar-se
exige de cada um uma entrega, um compartilhar de si com o outro. Confesso que para
mim, não foi algo aceito de imediato. Registrar por escrito as minhas histórias e, sobretudo,
narrá-las para um grupo de colegas que como eu, também, se deparou, com uma proposta
formativa até então desconhecida, foi algo que nos surpreendeu. O medo de falar de mim,
contar minha história, escrever minhas vivências é um desafio que precisava ser enfrenta-
do. (Maristela6 – Memorial – ‘Traduzindo-me – Quem sou eu?’)
Como bem ressaltou Maristela, o ato de narrar a própria história de vida exige,
do sujeito, o pensar sobre as suas vivências e a sua trajetória pessoal, permeadas por
valores, atitudes e crenças que demonstram a sua visão de mundo, com implicações
na construção da sua identidade.
No âmbito do projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”,
a prática da escrita de si vem se constituindo como um relevante dispositivo de for-
mação, principalmente a escrita narrativa e/os registros reflexivos das situações expe-
rienciadas no contexto do exercício docente nas etapas correspondentes aos estágios
curriculares supervisionados, a partir das escritas no diário de formação e a elabo-
ração do portfólio reflexivo. Estes dispositivos possibilitam ao professor formador:
Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a
singularidade da sua história e, sobretudo o modo singular como
age, reage e interage com os seus contextos. Um percurso de vida
é assim um percurso de formação, no sentido em que é um pro-
cesso de formação. [...] O processo de formação pode assim con-
siderar-se a dinâmica em que se vai construindo a identidade de
uma pessoa. (MOITA, 2000, p. 115)
Desse modo, o referido projeto toma como ideia central a escrita do memo-
rial de formação cujas narrativas autobiográficas contemplam as histórias de vida,
bem como os registros dos percursos formativos na universidade e as experiências
no cotidiano escolar, no que concerne às aprendizagens da/na/sobre a docência nos
períodos dos estágios curriculares supervisionados, porque compreendo que “[...] ao
contarmos histórias adquirimos conhecimentos acerca de quem somos, isto é, como
nos constituímos e construímos nossas identidades sociais”. (RIOS, 2011, p. 30)
6 A identidade dos professores – narradores, autores, atores (personagens/protagonistas) deste texto – colabora-
dores da referida prática, contando as suas histórias de vida, formação e profissão, foi mantida na escrita deste
artigo, conforme combinado e autorizado pelos mesmos.
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Ainda sobre a possibilidade de pensar a formação a partir das narrativas auto-
biográficas, Passeggi (2008) destaca a contribuição das escritas de si registradas nos
memoriais e das ressonâncias no processo de reconstrução do sujeito, ressaltando
que “é a reflexão sobre a reflexão que oferece ao (futuro) professor as chaves para
o acesso ao processo histórico de sua formação, aos conhecimentos implícitos e às
novas formas de aprendizagem”. (PASSEGGI, 2008, p. 43)
Portanto, este trabalho tem como finalidade colaborar com os estudos e a refle-
xão sobre a relação existente entre percursos formativos, estratégias metodológicas e
práticas docentes. Esta proposta foi concebida porque acredito que “[...] narrar a his-
tória de nossa vida é uma auto-interpretação do que somos, uma encenação através
da narração [...]”. (BOLIVAR, 2002, p. 111) Para ilustrar, apresento duas narrativas
que demonstram como dois professores em formação se autoapresentam.
Elaine menina, crescida em Caldas do Jorro, filha de pessoas humildes, mãe dona de casa, pai
artesão e comerciante. Que sonhava em crescer e ter minha independência financeira, porém
ao completar a maioridade já havia também terminado o curso de magistério, o qual me fez
professora diplomada e em seguida, após aprovação em concurso publico fui inserida na rede
municipal de ensino, como professora dos anos iniciais do ensino fundamental, porém ainda
era pouco [...]. (Elaine – Memorial “Traduzindo-me – Quem sou eu?”).
Nasci no meio rural, tive uma infância muito difícil, pois comecei a trabalhar com seis
anos e dez meses na lavoura do sisal, temporada que até hoje traz grandes recordações e
marcas, as mais fortes são as cicatrizes no meu corpo. [...] Para estudar tive que andar 6
km a pé diariamente por isso, só tive acesso à escola aos nove anos de idade, quando fisi-
camente tive condições de encarar a lida no campo e ainda fazer esse trajeto até a escola.
Com muita dificuldade conclui o curso de Magistério – Nível Médio e me tornei professor
das séries iniciais no município de Araci... Lutei muito e por tudo isso me considero um
incansável. Cheguei à Universidade. Hoje, vejo que tudo que aconteceu comigo serviu para
fortalecer a minha caminhada que ainda não está completa. Serve também para lidar
com os meus alunos que também são oriundos do campo e vivem situações semelhantes às
minhas... (Antônio Sena – Memorial “Traduzindo-me – Quem sou eu?”)
Nestes excertos, o professor Antônio Sena e a professora Elaine fazem referên-
cia aos seus lugares de vivência e à sua infância, retratando as dificuldades e os so-
nhos nutridos. Enquanto o professor Antônio aborda a difícil situação experienciada
no contexto do trabalho infantil na lavoura do sisal, que durante décadas mutilou
milhares de trabalhadores rurais, inclusive crianças e adolescentes, no Território de
Identidade do Sisal, a professora Elaine destaca a sua origem e o modo como ingres-
sou no magistério, como profissão.
Pelo fato de ser da roça e conhecer a realidade local, Antônio Sena destaca
alguns elementos importantes. Para ele, ser/estar na roça e trabalhar como profes-
sor em escolas em territórios rurais possibilita pensar em estratégias de ensino que
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contemplem os repertórios de saberes, articulando os conteúdos curriculares com os
modos de vida dos seus alunos, já que, segundo Callai (2001, p. 136), cada “aluno é
um ser histórico que traz consigo e em si uma história e um conhecimento adquirido
na sua própria vivência”.
Nas narrativas de Elaine e Antônio Sena, o lugar é uma referência importan-
te, imprimindo sentido/significado a essa dimensão espacial, pois “[...] a partir da
experiência de cada um, o lugar se apresenta como vivenciado por seus habitantes”
(NOGUEIRA, 2004, p. 227) Os lugares compõem os cenários da vida, produzidos a
partir das vivências, dos sentidos e significados que cada um experiencia. Assim, o
“lugar demonstra a história das vidas que ali foram e estão sendo vividas” (CALLAI,
2011, p. 17), pois as experiências vividas no cotidiano demarcam sentimentos de fa-
miliaridade, de afetividade e de identidade, conforme destaca Cavalcanti (2008).
Assim, ficou evidenciada que
[...] a prática de registros reflexivos, em todo o desenvolvimento
da proposta, tendo o memorial como foco, é concebida como uma
relevante oportunidade de conhecer os itinerários do percurso dos
professores em formação, visando potencializar, dar sentido e sig-
nificado à essa formação e à práxis pedagógica. (PEREIRA, 2010,
p. 110)
Enfim, esta prática reflexiva de escrita de si, na modalidade do memorial, pos-
sibilita ao professor em formação uma análise de suas trajetórias de escolarização,
situando-as no contexto da sua história de vida. É um dispositivo que possui ainda
a qualidade de provocar transformações no modo como estes sujeitos percebem a si
mesmos, aos outros e à realidade em sua volta, constituindo-se num modo de “rein-
venção de si”. (JOSSO, 2004)
Diários de formação: narrativas dos itinerários de formação
A narrativa de formação é a narrativa de um fragmento de vida.
(ADÈLE CHENÉ, 2010, p. 136)
Após o trabalho com narrativas autobiográficas no formato do memorial, re-
solvi incorporar, a partir do quinto semestre,7 o diário de formação como dispositivo
7 O quinto semestre do curso de licenciatura em Geografia da UNEB, campus XI, corresponde à fase inicial das
atividades de estágio curricular supervisionado.
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formativo/reflexivo e, também, avaliativo. No diário, os alunos eram orientados a
tematizar questões emergentes no espaço escolar, articulando os dois norteadores, a
saber: a) narrar as histórias de vida, as memórias de escolarização/trajetórias forma-
tivas e as experiências sobre o processo de iniciação profissional – exercício da do-
cência; e b) registrar e analisar situações experienciadas durante os quatros períodos
correspondentes aos estágios curriculares supervisionados.
O diário de formação ancora-se na proposta defendida por Hess (2006) e é
inspirada nos estudos de Zabalza (2004). O diário, segundo (HESS, 2006, p. 92),
“[...] Mais que todas as outras formas de escrito, explora a complexidade do ser”.
Para Zabalza (2004, p. 13), nos diários “[...] os professores e professoras anotam
suas impressões sobre o que vai acontecendo em suas aulas.” Trata-se de caderno
utilizado pelos estudantes (professores em formação), no qual cada um, indivi-
dualmente, registra diariamente as situações experienciadas no devir do trabalho
desenvolvido nas escolas (campo de estágio) nos períodos dos estágios curricula-
res supervisionados, relatando e refletindo sobre as experiências. Segundo Zabalza
(2004), a utilização do diário possibilita ao professor, no exercício da profissão,
registrar as suas ações e as suas reflexões, a partir das suas percepções sobre as pró-
prias experiências, dando-lhes sentido e significados ao refletir sobre as vivências
narradas no cotidiano escolar.
Desse modo, os registros descritivos e analíticos das atividades planejadas e
realizadas, os acontecimentos nas escolas e as reflexões no/do/sobre os processos vi-
vidos são situações que retratam a prática docente permeada por significados e senti-
dos do que seja aprender e ensinar temas e conteúdos da Geografia Escolar. Ao grafar
as suas experiências no diário de formação, o professor explica e interpreta os acon-
tecimentos e as ações diárias na sala de aula, bem como em outros lugares da escola
e/ou fora dela (ZABALZA, 2004), uma vez que a narração é uma reflexão sobre o seu
percurso de aprendizagem da docência e constitui-se, também, numa autoavaliação
da sua própria atuação em aula. Desse modo, os professores, “[...] ao registrarem o
cotidiano nas folhas em branco visam eternizar a experiência profissional, conferir
sentido à sua existência, refletir sobre suas escolhas, refutar representações sobre o
magistério, fazer um balanço do vivido”. (MIGNOT, 2008, p. 105-106)
Ao contrário do vivenciado na etapa de construção do memorial, a introdução
do diário de formação no contexto das práticas do projeto “Traduzindo-me” não de-
sencadeou reações desfavoráveis à sua utilização. As expectativas de uma estudante,
grafadas na primeira folha do seu diário de aula e o reconhecimento da importância
do registro das vivências nos processos formativos ilustraram a situação e fortalecem
a minha crença na potencialidade formativa/reflexiva e avaliativa/autoavaliativa do
referido dispositivo. Assim, ela se colocou:
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Traçando rotas... Diário de formação [...]. Relatarei aqui a história vivida, registrando as
marcas diárias de nossos encontros e refletindo sobre cada momento e cada experiência de
aprendizagem, no que se refere ao componente Prática de Ensino e as experiências nos Está-
gios. [...] Dessa maneira, registrar por escrito as nossas experiências e observações nos per-
mite refletir sobre nossa aprendizagem, revendo nossos atos, organizando ideias e fazendo
uma ponte entre a teoria, o vivido e o aprendido. Assim, meu Diário de formação servirá de
base para uma aprendizagem sólida e significativa. (Mariana – Diário de formação, 2007)
A estudante Mariana aponta, na sua escrita, a possibilidade de ressignificar as
aprendizagens, as vivências e os saberes, estabelecendo relações com as situações ex-
perienciadas no âmbito da formação docente na universidade e suas possíveis resso-
nâncias no cotidiano escolar. Tal imbricamento favorece o acompanhamento do seu
processo de reflexão sobre a sua prática. Outros registros revelam “percepções sobre
o planejado e o vivido, possibilitando repensar sobre o trabalho docente, as aprendi-
zagens construídas e, consequentemente, uma revisitação do vivido, tendo em vista
aperfeiçoar a prática”. (SOUZA; CORDEIRO, 2010, p. 220)
O excerto da narrativa a seguir corrobora com a posição de Souza e Cordeiro
(2010) sobre a percepção do professor e a sua prática. Ao relatar uma situação expe-
rienciada na sala de aula, o professor César sinaliza a importância do planejamento
como etapa do trabalho docente.
Desde o primeiro dia quando apresentei o plano de ensino aos estudantes percebi que a
turma era interessada pela matéria. Isso me forçou a estudar e aprofundar mais os meus
conhecimentos sobre o tema que tinha proposto para ser ministrado nas próximas aulas.
Então, o elemento mais presente neste percurso foi o planejamento. Este ato foi importan-
tíssimo para guiar meus passos e permitir aos estudantes um aprendizado sobre o conteúdo
abordado. É sabido que o planejamento é uma ação relevante não só na atividade escolar
como também na própria vida. (César – Diário de formação)
A necessidade do planejamento das atividades antes da realização da prática
de ensino também foi uma questão contemplada por Hércules no seu diário de for-
mação. Neste fragmento da sua narrativa, esse professor em formação fala do grande
desafio de apresentar aos estudantes uma Geografia Escolar diferente, rica e diversa,
a partir da abordagem de conceitos/categorias de análise geográfica e a sua presença
no cotidiano de vivência dos estudantes.
Apresentar uma Geografia diferente foi nosso principal desafio! A todo o momento mostrá-
vamos aos alunos, quão rica e diversa é esta disciplina escolar e, como é fácil visualizá-la
no cotidiano. Em todas as aulas, ao trabalharmos com os conceitos de espaço geográfico,
lugar e paisagem nos remetíamos constantemente à realidade de Serrinha, e isso desperta-
va o interesse do alunado. Tais questões nos obrigavam a disponibilizar um tempo maior
para os planejamentos das atividades, das aulas. (Hércules – Diário de formação)
Memoriais, diários e portfólios | 57
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Os excertos das narrativas dos professores César e Hércules destacam a im-
portância do planejamento como uma etapa do trabalho docente, tendo em vista a
realização de uma proposta de ensino.
Inicialmente, com o uso deste dispositivo, cada um à sua maneira, partilhava as
suas histórias, registravam as suas observações e retratava as situações experiencia-
das, através de relatos meramente descritivos. Contudo, com a prática dos registros
no diário de formação, as produções escritas deixaram de ser apenas relatos descri-
tivos das situações formativas e das práticas desenvolvidas. Assim, gradativamente,
esses professores em formação inicial começaram a refletir sobre as experiências vi-
vidas na UNEB e nos espaços escolares, onde as atividades de estágio estavam acon-
tecendo, analisando criticamente as ações desenvolvidas, a dinâmica da sala de aula e
do ambiente escolar, relatando os medos, a insegurança, as dificuldades enfrentadas,
as limitações no exercício da docência, sobretudo, por aqueles que estavam experien-
ciando, pela primeira vez, a sala de aula na condição de professor.
Sobre os processos formativos, as narrativas escritas nos diários retratam mo-
mentos muitos significativos das histórias de vida, das vivências na universidade e
das implicações no fazer pedagógico cotidiano nas escolas de educação básica. Al-
guns registros apontam para a possibilidade de construção do saber geográfico a par-
tir da intervenção do professor nas aprendizagens dos alunos. Há também relatos
sobre mudanças na prática docente de alguns que atuam como professores na edu-
cação básica, desde o planejamento das aulas/atividades, bem como as metodologias
empregadas na abordagem dos conteúdos curriculares, e o reconhecimento do papel
formativo do curso de licenciatura, sobretudo dos componentes curriculares prática
de ensino em Geografia I, II, III e IV neste processo.
O excerto da narrativa de uma estudante que já exerce a profissão docente no
ensino fundamental II, em escolas públicas, no espaço rural, nos município de Con-
ceição do Coité e Barrocas, ilustra a afirmativa:
Tenho aprendido a ser professora, na prática, exercendo a profissão. Só consegui entrar
na universidade sete anos após começar a exercer a docência. O curso de Licenciatura
em Geografia foi um divisor d’água em minha vida, sobretudo no que concerne ao exer-
cício da docência. As situações/vivências formativas experienciadas nas aulas de Prática
de Ensino e Estágio Supervisionado têm favorecido a construção da minha identidade,
enquanto professora de Geografia de escolas do campo, potencializando o meu olhar para
o “mundo rural”. [...] Aprendi que para ser educadora é preciso compreender o espaço no
qual estamos inseridos, as dinâmicas que nele ocorrem, as relações que são estabelecidas,
reafirmando a necessidade de ressignificar através da mediação didática, os conteúdos
apreendidos e aprendidos na universidade. Ser uma professora de Geografia do/no campo
é um constante desafio... (Maristela – Diário de formação)
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Com isso, quero ressaltar que o argumento básico para empreender a referida
proposta de formação ancorada nas escritas autobiográficas, se sustenta na condição
de promover um ensino articulado à pesquisa. A vinculação entre o ensino e a pes-
quisa, em que o diário de formação se constituiu numa estratégia de formação, foi
pensada tendo em vista a realização das etapas do estágio supervisionado nas esco-
las de educação básica, onde os estudantes assumem os trabalhos relativos à docên-
cia, com vista ao aprofundamento do conhecimento sobre o processo de ensino e de
aprendizagem. Contudo, é pertinente destacar que a inclusão do diário de formação,
como fonte de pesquisa, foi concebido porque compreendo que o ato de pesquisar
inicia-se no cotidiano da sala de aula, superando, desse modo, a concepção tradicio-
nal de estágio cujo modelo vigente, ainda, retrata práticas burocráticas, centradas na
realização de aulas e na confecção de relatórios meramente descritivos e descontextu-
alizados das histórias de vidas e dos percursos formativos dos professores.
Assim, a proposta de um ensino atrelado à pesquisa, como eixo norteador das
atividades formativas desenvolvidas, pressupõe um princípio fundante debatido e
defendido por muitos pesquisadores no espaço acadêmico que é a reflexão sobre o
papel didático da pesquisa na formação inicial de professores.
Portanto, compreendo que é necessário considerar o conhecimento que se
constrói a partir das vivências cotidianas e as implicações do uso das histórias de
vida no âmbito do desenvolvimento de uma proposta de investigação-formação. Tais
princípios permitem situar o sujeito em formação no seu exercício de autoformação,
conforme salienta Pineau (2010), ao destacar que:
Permitindo aos sujeitos reunirem e ordenarem os seus diferentes
momentos de vida espalhados e dispersos no decurso dos anos,
a história de vida fá-los construir um tempo próprio que lhes
dá uma consistência temporal específica. A construção e a re-
gulação dessa historicidade pessoal são as características mais
importantes da autoformação [...]. Daí a grande importância da
história de vida para a construção e o conhecimento da autofor-
mação. (PINEAU, 2010, p. 172)
Isso favorece a análise, pelo professor em formação, dos caminhos percorridos
na construção da identidade profissional docente, como fica evidenciada nos regis-
tros de Mariana, no seu diário de formação.
Escrever sobre o processo de formação que estou vivenciado perpassa por uma ação-re-
flexão que exige de mim um olhar sensível sobre os meus referenciais para saber mais
e consequentemente aperfeiçoar as minhas práticas na sala de aula. Tais reflexões estão
sendo possíveis, mediante algumas situações formativas no contexto das aprendizagens no
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curso, aqui na Uneb, dentre elas posso destacar as análises realizadas a partir dos registros
no Diário de formação, bem como a escrita do memorial de formação docente e a cons-
trução do portfólio, instrumentos adotados pela professora de Prática de Ensino e Estágio
Supervisionado [...], nos quais reflito sobre os processos formativos, as aprendizagens e as
experiências vivenciadas nos espaços educativos, com ênfase no contexto da universidade,
sob uma abordagem que entrelaça memórias, histórias de vida e ensino de Geografia,
favorecendo a construção da identidade profissional. (Mariana – Diário de formação)
Este excerto narrativo de Mariana retrata a necessidade de desenvolver um pro-
jeto de formação docente, tendo como referencial a relação indissociável entre teoria
e prática, entre ensino e pesquisa, entre formação e autoformação. Nesse contexto,
“[...] os diários de aula, as biografias, os documentos pessoais em geral [...] consti-
tuem recursos valiosos de pesquisa-ação capazes de instaurar o círculo de melhoria
de nossa atividade como professores”. (ZABALZA, 2004, p. 27)
Este movimento alternativo de pensar, ensinar e aprender a Geografia, através
do recurso biográfico (narrativas autobiográficas, registros das trajetórias pessoal e
profissional, e as reflexões na e sobre a ação docente nos períodos de estágio), con-
figura a importância deste aporte teórico-metodológico como relevante dispositivo
e eixo organizador do trabalho na produção de conhecimentos no âmbito das li-
cenciaturas, superando assim, concepções e práticas adjetivadas como tradicionais
e, ainda, presentes nas realidades formativas nos cursos de formação de professores.
Como ressalta Souza (2006, p. 36), “[...] o trabalho com as histórias de vida ou com as
biografias educativas configura-se como um processo de conhecimento. Um conhe-
cimento de si”. Assim, “[...] ancorada na ideia da emancipação da pessoa, as histórias
de vida em formação propõem que o sujeito se aproprie de seu processo de formação
ao se tornar autor de sua história”. (DELORY MOMBERGER, 2008a, p. 16)
Portfólios: caminhos trilhados na formação docente
No processo da escrita de si, proposto pelo projeto “Traduzindo-me”, o portfó-
lio se constituiu noutro dispositivo extremamente relevante no processo de formação
desses professores, sobretudo por ser um registro reflexivo que visa à documentação
dos itinerários formativos vivenciados durante as etapas de estágio supervisionado
nas escolas públicas de Serrinha e região, bem como nas situações experienciadas em
espaços educativos não escolares.
A utilização do portfólio nas etapas de estágio supervisionado em Geografia
tem como finalidade a organização reflexiva de todas as atividades realizadas pelos
professores em formação, do quinto ao oitavo semestre do curso, quando acontecem
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as atividades nos períodos de estágio, correspondentes ao exercício da docência em
espaços escolares (ensino fundamental II e ensino médio) e, também, em espaços
educativos não escolares. É uma proposta que parte da necessidade de organizar os
textos, os conhecimentos, as práticas, as vivências, as atividades, enfim, tudo que for
desenvolvido desde o planejamento da primeira prática de ensino, acompanhado do
respectivo estágio, que inicia a partir da segunda metade do curso e se estende até o
fim do curso, totalizando quatro semestres/400 horas de atividades. Logo, neste con-
texto, o portfólio é concebido e experienciado como dispositivo formativo/reflexivo/
avaliativo e tem possibilitado o acompanhamento e a avaliação das práticas docentes
realizadas nestes espaços, permitindo ao professor tematizar a sua prática, a partir
da documentação e dos registros reflexivos dos itinerários formativos ao longo dos
estágios.
A documentação/seleção dos trabalhos que fazem parte do portfólio inclui tex-
tos descritivos e narrativos, os projetos de estágio, os planos de unidade (planos bi-
mestrais), planos de aula, atividades desenvolvidas, os procedimentos e instrumentos
avaliativos – relatórios, testes, trabalhos extras classe, sínteses, esquemas –, comentá-
rios, reflexões diversas que o estudante/professor em formação considerar importan-
tes no processo educativo.
Nessa perspectiva, o portfólio reflexivo/avaliativo é concebido como uma fonte
de pesquisa e, também, como uma estratégia de autorregulação da aprendizagem no
âmbito da formação docente, o qual possibilita que os professores “[...] analisem, or-
ganizem e explicitem processos de aprendizagem de caráter diverso, desde conceitos
científicos até conceitos mais pessoais de natureza autorreflexiva”. (SIMÃO; FLORES,
2006, p. 257)
Em cursos de licenciaturas isso se torna fundamental porque oportuniza que
o professor em formação compartilhe experiências, saberes e práticas, utilizando-se
de um referencial teórico-metodológico que promove análises e reflexões sobre a
constituição da sua identidade docente, além da possibilidade de desenvolver a sua
autonomia intelectual, percebendo-se como autor, ator e narrador das suas experi-
ências e vivências “[...] e assim construir outros olhares e conhecimentos sobre o ser
professor do ponto de vista da constituição da docência como exercício reflexivo de
autoformação”. (PERES; BRANDÃO, 2009, p. 47)
Desse modo, além de ser um dispositivo que possibilita a documentação e o
registro dos percursos e das situações práticas do/no exercício da docência, o por-
tfólio reflexivo também é considerado uma estratégia de avaliação formativa e auto-
avaliação, uma vez que se trata de um instrumento que contempla todo o processo
vivenciado no decurso da formação a partir da escrita de narrativas acerca das apren-
dizagens e da construção de conhecimentos e saberes.
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Sobre a função e o caráter formativo/avaliativo e autoavaliativo deste dispositi-
vo, as narrativas dos estudantes revelam algumas impressões acerca da sua inclusão
nas práticas avaliativas, conforme os relatos registrados nos portfólios construídos
durante as atividades do componente curricular estágio supervisionado em Geogra-
fia II, etapa que corresponde ao exercício da docência, em instituições escolares da
rede pública de ensino, que ofertam o ensino fundamental – II segmento.
Aponto como um dos elementos positivos neste processo foi o meu crescimento sobre con-
cepção e prática de avaliação, pois neste estágio, eu aprendi a relacionar as vivências dos
educandos com o seu desempenho nas atividades desenvolvidas. (Jamille – Portfólio)
Na minha concepção, a relevância em construir o portfólio reside essencialmente na sua
principal função: organizar e documentar todas as atividades empreendidas no período do
estágio e consequentemente possibilitar a autocrítica, reflexão e avaliação sobre os traba-
lhos desenvolvidos. (Lorraine – Portfólio)
O portfólio é um instrumento importantíssimo na formação docente. Possibilita que nós,
docentes-alunos reflitamos sobre nossas práticas pedagógicas, além de permitir também, a
articulação entre teoria e prática e a autoavaliação. (Maria Aparecida – Portfólio)
Pode-se, portanto, inferir a partir dos excertos das narrativas das professoras
em formação inicial, que o portfólio enquanto estratégia de formação,
[...] leva o sujeito, por um sentimento de autoria, a produzir co-
nhecimento de si e para si, pois, a partir do processo auto-nar-
rativo, o sujeito está fazendo uma reconstituição de significados
das experiências consideradas as mais importantes de sua vida.
(DIAS, 2005, p. 114)
Ou seja, “[...] ao mesmo tempo em que o sujeito organiza suas ideias para o
relato – quer escrito, quer oral – ele reconstrói sua experiência de forma reflexiva e,
portanto, acaba fazendo uma auto-análise que lhe cria novas bases de compreensão
de sua própria prática”. (CUNHA 1997, p. 3)
A cada término das etapas de estágio, os professores em formação apresentam
para o grupo (colegas e professor-formador) o memorial de formação, no qual narra
situações experienciadas no decurso das atividades realizadas nos espaços formati-
vos formais e não formais (campos de estágios), a partir dos registros inscritos nos
diários de formação e nos portfólios reflexivos. Nesse contexto, segundo Abrahão
(2008, p. 173), “as narrações dos memoriais não são apenas um constructo individu-
al; adquirem real significado quando situados no contexto histórico: Sócio político
econômico e cultural”. Este momento de partilha de experiências, aprendizagens e
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saberes é denominado “Mosaico de histórias: (com)partilhando experiências”, como
os relatos mais abaixo sinalizam.
Como destaca Dominicé (2010, p. 213), “cada narrativa é o reflexo da maneira
como o caminho percorrido foi compreendido, a formação definida e o processo
interpretado”. Desse modo, o exercício das escritas de e sobre si, com memoriais,
diários, portfólios, e a socialização das situações experienciadas no “Mosaico de his-
tórias” têm proporcionado diferentes aprendizagens e a reflexão e análise sobre o tra-
balho desenvolvido, teorizando sobre a prática, bem como sobre os diferentes modos
como cada um aprende a ser professor e como narra essa experiência do vir a ser, do
tornar-se professor.
A produção do portfólio para mim foi muito importante. Por se tratar de um instrumento
capaz de organizar todos os dados do estágio já se torna relevante e, principalmente, por
nos permitir fazer uma reflexão sobre o processo, possibilitando apreender o que foi bom e
o que deve ser melhorado. É um instrumento que pode ser consultado e analisado por nós
em qualquer momento. (Silvana – Portfólio)
Esse portfólio constituiu-se num importante instrumento reflexivo cujas análises perpas-
sam pela avaliação do contexto escolar com foco na experiência da docência, pela avalia-
ção formativa dos educandos e pela reflexão do meu próprio percurso de vida, destacando
as itinerâncias da minha formação profissional. Ele é para mim, um espaço próprio de
reflexão, singularizado, onde deixei minhas marcas. (Jamille – Portfólio)
Estes fragmentos das narrativas de Silvana e Jamille reafirmam que “[...] os por-
tfólios são vistos e utilizados como instrumentos [...] providenciando oportunidades
para documentar, registrar e estruturar os procedimentos e a própria aprendizagem
[...]” (SÁ-CHAVES, 2000, p. 15), capazes de testemunhar não só os resultados de-
correntes da formação, mas, principalmente, essencialmente as situações formativas
experienciadas, evidenciando, para além dos conhecimentos, os significados que o
autor lhes atribui, porque, ao narrar-se, o professor reflete sobre as próprias experiên-
cias, ou seja, no exercício do portfólio reflexivo, “[...] o narrador, narrando, se narra”.
(SÁ-CHAVES, 2000, p. 24)
E, neste texto, o narrador é o professor de Geografia, em formação inicial, que
ao narrar experiências, narra histórias – de vida, de trajetórias escolares e de forma-
ção, do fazer docente, de pessoas e de lugares e seus cotidianos – e, ao narrar histórias,
narra acontecimentos biográficos situados no tempo e no espaço. Então, nesse caso
específico, os professores geo(bio)grafizam-se, isto é, tomam o lugar para biografar-
se, para narrar as suas histórias pessoais, formativas e profissionais experienciadas
no decurso da vida, em diferentes contextos geográficos. Este modo como o sujeito
se apropria das suas histórias e concebe os lugares – casa, escola, sala de aula, praça
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públicas, teatros, dentre outros – como cenários da narração é compreendido como
“geo(bio)grafização”, ou seja, “[...] quando os sujeitos narram a si próprios, eles falam
de suas experiências historicamente construídas desde o lugar que ocupam, e são
essas histórias que produzem uma identidade particular, diferente [...]”. (RIOS, 2011,
p. 29) Nesse processo, o sujeito volta-se para si, para as suas histórias, com um olhar
sobre a própria constituição, compreendendo-se como autor, personagem, protago-
nista e narrador, dos seus percursos de vida, formação e autoformação, considerando
o lugar de onde narra à vida, o lugar onde dá forma ao vivido, ao experienciado, onde
a geo(bio)grafização acontece, onde o enredo das suas experiência é tecido, possibi-
litando uma interpretação de si, uma escrita de si.
Segundo Delory-Momberger (2008b, p. 93-94), “[...] quando nos ocupamos
de biografia, pensamos em termos de temporalidades: apreendemos o curso das
existências e das representações biográficas como construções no tempo”. Além
da dimensão temporal, sempre considerada na realização de pesquisas biográficas,
conforme sinaliza Delory-Momberger (2008b), tenho me dedicado, enquanto pro-
fessora-geógrafa que investiga trajetórias – de vida-formação-profissão – de pro-
fessores de Geografia, contemplar a dimensão espacial nas escritas de si por aqueles
indivíduos que se biografam, ou seja, atribuem-se uma forma na qual se reconhe-
cem como eles próprios, [...] levando em conta, a dimensão do espaço enquanto
dimensão da experiência e da biografização (DELORY-MOMBERGER, 2008b, p.
93, grifos no original), reafirmando, com isso, que “[...] toda biografia se inscreve
numa escritura do espaço, numa geografia”. (DELORY-MOMBEGER, 2012, p. 69)
e, “a importância da singularidade de um lugar” (MASSEY, 2000, p. 185) e suas im-
plicações na vida do sujeito que narra as suas histórias, tendo o lugar como cenário
da biografização.
À medida que o sujeito se apropria e se relaciona com o espaço, ele o torna um
lugar e confere sentido à narrativa. Esse modo singular de relação experiencial entre
o sujeito e o lugar – identidade e pertencimento –, traduzido nas narrativas, torna a
dimensão espacial das histórias e das biografias um elemento de referência que se
funde com o próprio sujeito que se narra, que se traduz, que se interpreta. Como so-
licita Delory-Momberger (2008b, p. 99), “[...] é preciso situar a experiência individual
de espaço e as construções biográficas às quais ele dá lugar”.
Desse modo, torna-se salutar pensar na apropriação do lugar, categoria de aná-
lise geográfica, como o cenário-referência que compõe as nossas histórias, onde vi-
vemos as experiências e onde as histórias acontecem cujos enredos são tecidos, são
narrados, são (com)partilhados, são geo(bio)grafados.
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Para finalizar, sem a intenção de concluir: algumas notas provisórias
[...] registrar é deixar marcas. Marcas de uma história vivida.
(WARSCHAUER, 1993, p. 61)
A minha experiência no decurso de uma trajetória de 27 anos no magistério, 15
deles no âmbito dos processos formativos de geógrafos-professores e de pedagogos,
tem demonstrado que há possibilidade de se criar condições favoráveis para a inclu-
são de novos procedimentos/estratégias formativos nos cursos de formação inicial
de professores (memoriais, diários e portfólios), potencializando, assim, a constitui-
ção da identidade pessoal e profissional docente que, segundo Pimenta e Anastasiou
(2002, p. 77):
Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, en-
quanto ator e autor, confere à atividade docente em seu cotidia-
no, em seu modo de situar-se no mundo, em suas história de
vida, em suas representações, em seus saberes, em suas angústias
e anseios no sentido que tem em sua vida o ser professor.
Ao empreender uma proposta de trabalho que contemplasse o entrelaçamen-
to de narrativas autobiográficas com registros reflexivos dos itinerários formativos,
através do uso de memoriais diários e de portfólios na licenciatura em Geografia,
na UNEB, campus XI, pretendia compreender como os sujeitos inseridos neste pro-
cesso se constituíam professores, a partir do exercício de reflexão sobre si, sobre os
itinerários de formação e inserção profissional, pois desse modo, acredito que se faz
necessário, no âmbito da formação inicial, nós – formadores de professores – com-
preender a historicidade do sujeito que busca, em seus percursos, perceber-se como
protagonista (ator) e autor da sua própria história pessoal e profissional, ou seja, tor-
na-se necessário considerar que o “professor é uma pessoa; e uma parte importante
da pessoa é o professor”. (NIAS, 1991, apud NÓVOA, 2000, p. 15)
Assim, enquanto leitora e intérprete das histórias autobiográficas, escritas e
narradas pelos professores de Geografia em formação inicial, pude compreender que
as imaginárias “insignificâncias”, destacadas no começo dessa história de formação,
revelavam uma pseudoinferiorização das próprias experiências e histórias de vida
narradas por seus protagonistas. Dessa forma, percebi que os saberes biográficos dos
fazeres discente e docente, articulados com as experiências do presente e as possibili-
dades do pensar sobre si, fazem com que o sujeito mostre-se como figura pública de
si e, ao escrever sobre si, evocando memórias de trajetórias de vida-formação, coloca
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em evidência acontecimentos no contexto da família, da escola, da formação e da
profissão, tornando-se autor, ator, protagonista e narrador das suas histórias.
Os processos formativos vivenciados na UNEB, campus XI, nas aulas de prática
de ensino e estágio supervisionado em Geografia, através da escrita de narrativas
autobiográficas e da documentação/registros reflexivos, foram significativos para a
compreensão dos acontecimentos biográficos que retratam momentos importantes
das suas histórias pessoais, das trajetórias de escolarização, das vivências na univer-
sidade e das implicações da formação acadêmica no fazer pedagógico cotidiano e no
processo identitário desses professores, além de fornecer pistas sobre questões per-
tinentes à aprendizagem da educação geográfica e da/na e sobre a docência e, nesse
contexto, a escola ocupa um lugar de destaque e figura-se como um espaço privile-
giado para a construção das primeiras impressões e aprendizagens dessa profissão.
Através da escrita dos memoriais e dos registros no diário de formação e no
portfólio, foi possível acompanhar os processos formativos dos meus alunos, durante
seus percursos formativos no âmbito da universidade e nas escolas públicas durante
os estágios. Vale salientar que estes recursos possibilitam ampliar os estudos em tor-
no dos saberes docentes, saberes da prática, processos reflexivos, formação do pro-
fessor pesquisador, articulação entre formação e pesquisa, por meio das histórias de
vida, revisitando as memórias e as narrativas autobiográficas e seu papel na constru-
ção da identidade dos docentes. Desse modo, no processo de geo(bio)grafização, ao
escrever e narrar as suas histórias, os professores se reinventam através da escrita, ao
investigar suas próprias histórias, atribuindo, assim, sentido e significado à formação
e à profissão docente, a partir de um lugar de anunciação.
O registro dessas experiências, nos itinerários de formação docente – memo-
riais, diários e portfólios – na forma de narrativa do saber-fazer, tem possibilitado
como afirma Souza (2006, p. 60),
um efeito formador por si só. Isso porque coloca o autor no cam-
po de reflexão, de tomada de consciência sobre sua existência, de
sentidos estabelecidos à formação ao longo da vida, dos conheci-
mentos adquiridos e das análises e compreensões empreendidas
sobre a sua vida, do ponto de vista psicológico, antropológico,
sociológico e linguístico que a escrita de si e sobre si exige. Signi-
fica entender que a narrativa escrita objetiva trabalhar o conhe-
cimento experiencial ao longo da vida e as possibilidades forma-
tivas construídas nas experiências vividas.
Este trabalho de investigação-formação tem favorecido uma reflexão acerca
dos dilemas e desafios enfrentados no território da formação inicial de professores,
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sobretudo, no que concerne à inclusão de práticas de ensino alternativas que pro-
movam um olhar mais apurado sobre as singularidades e interfaces das histórias de
vida – percursos pessoal e profissional – dos professores em formação e suas impli-
cações na construção da identitária profissional docente. Portanto, os conhecimentos
cotidianos que construímos ao longo das trajetórias pessoais possuem significados e
imprimem marcas no devir do trabalho pedagógico.
Também quero ressaltar que a arte de conhecer as histórias de vida dos alunos
pelo viés da escrita biográfica – memoriais, diários e portfólios – possibilitou a com-
preensão de que “quando queremos nos apropriar de nossa vida, nós a narramos. [...]
de certo modo, só vivemos nossa vida escrevendo-a na linguagem das histórias” (DE-
LORY-MOMBERGER, 2008a, p. 36) e que “[...] cada história de vida, cada percurso,
cada processo de formação é único”. (MOITA, 2000, p. 117)
Ao acompanhar, conhecer e interpretar as escritas narrativas dos meus alunos,
conhecendo os seus percursos formativos, as suas histórias, enquanto professora-for-
madora, tenho apreendido outros modos de ser e estar na docência, pois o memorial,
o diário de formação e o portfólio são concebidos como importantes fontes de inves-
tigação-formação e têm me possibilitado ressignificar/transformar/recriar as minhas
práticas, ao estabelecer outras formas de relações com o saber nas ações didático-pe-
dagógicas no território da formação de professores de Geografia.
Desta forma, é salutar o estímulo, desde a formação inicial ao exercício da es-
crita, com memoriais, diários de aulas, diários de formação, portfólios, relatórios de
estágios, tendo em vista que o dispositivo da escrita de si possibilita a reflexão e a
análise sobre os trabalhos desenvolvidos, teorizando sobre a sua prática, bem como
sobre os diferentes modos como, cada um de nós, aprendemos a ser professor, visto
que o vir a ser, o tornar-se professor, segundo Souza (2011, p. 88),
[...] é um exercício, uma aprendizagem experiencial e formati-
va inscrita na visão positiva que os sujeitos têm sobre si, sobre
suas memórias de escolarização e na superação e acolhimento
dos modelos formativos que viveram nos seus percursos de es-
colarização.
A escrita reflexiva sobre o trabalho pedagógico no cotidiano escolar, além de
descrever as experiências narradas pelos professores que vivenciam os processos de
ensinar e aprender Geografia possibilita pensar sobre a formação profissional e o
exercício da profissão, no que concerne às práticas, aos dilemas e os desafios en-
frentados na docência, contemplando as dimensões didático-pedagógicas e também
questões ligadas à organização e a gestão da escola, a sua dinâmica com os seus tem-
pos, ritmos, enfim, sobre/no e com o cotidiano da escola, enquanto locus do saber-
Memoriais, diários e portfólios | 67
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fazer docente, conforme sinalizam os professores Marcos e Cleidson nos excertos
narrativos a seguir:
Neste Estágio Supervisionado VI, foram muitas as dificuldades metodológicas. Nós esta-
giários estávamos sempre à procura de métodos que facilitassem a compreensão do conte-
údo, infelizmente muitos destes métodos não puderam ser aplicados pela falta de recursos
para o material produzido. Posso afirmar que os estágios anteriores me possibilitaram me-
lhores oportunidades para preparar aulas dinâmicas e mais envolventes, principalmente
porque o colégio dispunha de melhores recursos. Com as experiências vividas em sala de
aula, observei que a função do professor se torna cada vez mais cheia de regras a ser se-
guidas e com responsabilidades de “outros” sendo impostas a ele. Porém, nessas vivências
pude perceber inúmeras diversificações desse profissional da educação. E sobre o tema ser
professor pude fazer uma pequena reflexão do que percebi nesses quatro estágios e com
situações diversas. (Marcos – Portfólio)
Mesmo estando num curso de Geografia, licenciatura, um curso para formar professores, a
opção pelo magistério como profissão só foi idealizada ao final do Curso na UNEB, após as
experiências nos estágios curriculares. As vivências nas escolas onde realizei as atividades
contribuíram para abraçar a docência. Acredito que no início do curso, as primeiras expe-
riências nas escolas, orientadas pela professora de Prática de Ensino fortaleceu o caminho
que estava trilhando em direção ao exercício da docência. (Cleidson – Portfólio)
O trabalho formativo no projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar
trajetórias” parte da compreensão que “[...] o ato de narrar experiências existenciais
e/ou profissionais, devidamente mediado, permite transformar saberes implícitos em
conhecimento (pesquisa) e, ao mesmo tempo, promover a reinvenção de si (forma-
ção) [...]” (PASSEGGI; CARRILHO; BARBOSA, 2008, p. 240) e tem possibilitado
apreender “[...] o sentido que cada sujeito estabelece face às reconstruções de suas
trajetórias em seus textos narrativos a partir da história de sua vida e do recorte sobre
as vivências e aprendizagens acadêmicas”. (SOUZA; CORDEIRO, 2010, p. 219)
Por fim, desejo enfatizar que as narrativas docentes grafadas nos memoriais,
nos diários e nos portfólios, como dispositivos de formação inicial de professores, po-
dem ainda ser concebidas como importantes fontes de investigação sobre a Geografia
Escolar, sobre a formação acadêmica docente e as práticas pedagógicas desenvolvidas
nesses dois relevantes espaços e tempos formativos – a escola e a universidade.
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Narrativas como passaportes em zonas de fronteiras: Estágio
Curricular em Geografia
Marisa Terezinha Rosa Valladares
Professorando identidades em zonas de fronteiras
Pensar e dizer sobre o estágio curricular e sobre a prática de ensino na licen-
ciatura, para mim, é falar de minha vida. Não há como escapulir, pois entre análises
de mudanças de legislação, no meio das transformações das denominações de dis-
ciplinas, cargas horárias, na dureza insípida de aspectos legais e normativos, surgem
finas – mas potentes – fraturas que ensaiam linhas de fuga, permitindo aparecerem
delicadas filigranas de lembranças, de recordações das vivências de aprender e de en-
sinar, em companhia de tantas pessoas, guardadas na memória e ativas no cotidiano
docente, permitindo-me ser a Marisa que vou sendo.
Nem sempre fui professora de estágio e de prática de ensino. Isto é história de
20 anos na universidade. Posso somar a isto um pouco mais de tempo, pois professo-
rei estágios e práticas com meninas e meninos do antigo curso de normalista, o que
acrescenta uns cinco ou seis anos. Há um outro tempo que alonga meu olhar para
mais longe: são lembranças do meu viver como normalista e como licencianda, nos
estágios e nas práticas de ensino. Ainda assim sobra tempo, preenchido apenas com
sonhos e vida de menina e de menina-moça desejando e agindo para ser o que gosta-
ria de ser. E aí, os fios que movi teceram tramas por onde andei, sem saber que tudo
conspirava para eu ser professora. Isto: professora.
... quando eu era criança, queria ser bailarina. Tímida, magra e feia, entre muitos irmãos
e irmãs, eu sonhei ser linda, leve, famosa... A família matriarcal, tornada urbana pelo
êxodo rural, calcada em princípios severamente católicos, recursos financeiros esgotados
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por tentativas de negócios próprios, ofereceu um pálido curso de violino. Por mais que eu
tentasse me apaixonar pela ideia, o violino só se aproximava do meu desejo, quando eu o
comparava à pose clássica de bailarina sobre uma perna, numa pirueta de rodopio. Agi.
Nas festas da igreja ou da escola, os teatrinhos me abriram uma porta para a dança do
ballet. Não havia ninguém para ensinar – e a televisão ou a internet nem eram sonhos: só
não existiam... Atrevi-me com algumas amigas a ensaiar bailados. Precisávamos de tempo
e resolvi que podíamos ganhá-lo no contraturno do horário escolar. Mas, havia o dever
de casa. Então, pedia às mães que nos deixassem fazer os deveres juntas. E para andar
depressa com eles, eu ensinava, explicava, corrigia... E, para isto, mais e mais me aplicava
na escola. Todas nós, pretensas bailarinas, melhoramos na escola. Mas, o ballet foi se es-
garçando tal como as sapatilhas e lindas roupas de tule e de seda, bordadas de miçangas
e paetês que se soltavam... Só os deveres de casa e os trabalhos de pesquisas ficaram. Fui
virando professora... Mantive, todavia, minha alma de pequena bailarina no exercício diá-
rio, doloroso e prazeroso, de dançar a vida. O ballet permaneceu símbolo do belo desejado,
da harmonia almejada, da disciplina necessária para sonhar outros sonhos. O ballet me
empurrou para o magistério: treinar as colegas para dançar me apresentou ao bailado do
ensinaraprender1 juntos. E isto foi o princípio. De frustrada bailarina para uma manicure,
que precisava ganhar dinheiro necessário ao orçamento familiar, fui sendo convidada a
atuar como professora substituta eventual, depois docente de emergência, depois docente
normalista... aí...
Aprendi com outras professoras,2 como Josso (2004) e Abrahão (2006), que,
narrando-nos, vamos fiando nossa formação. E o que eu pensava que eram apenas
histórias para dizer a outras professoras o que eu havia vivido, enfrentado, apren-
dido e sido feliz – hiatos risonhos ou dramáticos nas discussões feitas com base
em estudiosos famosos – era, na verdade, um jeito de suscitar formação para nós
todas: em seu diálogo interior, elas aceitavam ou recusavam as alternativas que eu
lhes oferecia como possibilidades pedagógicas, mas que eram vivências minhas, e
sempre me apontavam outros caminhos com suas histórias e então, aprendíamos
juntas.
Aprender é uma mágica que não contém truques. Tem técnica, tem conheci-
mento, tem desejo, tem parceria. Não pode morrer ou esgotar em si. Só tem razão
se for multiplicada, daí precisa ser contada e “... a experiência que passa de pessoa a
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.” (BENJAMIN, 1994, p. 198)
Por isso, professores precisam ser narradores.
1 Esse jeito de pensar e expressar foi uma das muitas lições aprendidas com Carlos Eduardo Ferraço (2003), que
declara ter aprendido com Nilda Alves. Uso expressões que aglutinam palavras na tentativa de expressar o im-
bricamento produzido por elas no cotidiano, mais complexo do que sua agregação pela conjunção “e” ou pelo
sentido de fracionamento causado por sinais gráficos como hífen (-) e barra (/).
2 Usarei diversificadamente gêneros masculino e feminino, convidando todas as pessoas a se incluírem quando o
desejarem, evitando predomínio de um ou outro gênero e as rupturas causadas pela dupla denominação.
74 | Marisa Terezinha Rosa Valladares
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...a vida me empurrou para o magistério e acho que Deus riu e falou: ‘Não é que ela tem
jeito de professora mesmo?’ E então me abençoou. Deu-me ouvidos poderosos com duas
antenas de celular: captam conversas paralelas, cochichos, meias palavras, não para brigar,
mas para ‘sacar’ linhas de fuga que me ajudam – ‘antenada, hein professora?’ – a estar
mais perto de meus alunos. Deu-me também um par de pernas fortes, que já até foram
bem bonitas, compensando outras coisas não tão lindas. Estas pernas me ajudaram em
longas horas de pé, movimentando-me por salas de aula e entre escolas. Não gosto de pro-
fessoras sentadas, mesmo que agora tenha que me render a esta posição por puro cansaço.
Deus, ao saber da minha preferência por Geografia, deve ter pensado em me amparar
com coisas que me facilitassem explicações geográficas: meus cabelos são um instrumen-
tal rudimentar de climatologia – quando o vento sul vem lá longe e a umidade do ar se
anuncia, eles logo dão demonstração disso. E minha boca... bem, é um caso a parte. Sofri
como dentuça, quando adolescente, até que num assomo de coragem disse para eu mesma,
diante do espelho: ‘Você é dentuça.’ E comecei a rir, como quando era criança, desobede-
cendo meu bravo pai que dizia que mulher séria não ri mostrando os dentes... Mostrava e
mostro os meus dentes, mesmo sem rir. Eles são uma marca registrada de Marisa. E se me
perguntam para que servem estes dentes tão grandes, respondo só que é para sorrir. Meu
lindo marido, que amo tanto, diz que eles são para minha boca ficar grande, como deve ser
uma boca de professora: cheia de palavrinhas... (Ele é um doce!) Bem, aí, Deus fez questão
de demonstrar que pode sempre mais: caprichou em meus olhos e me deu um estrabismo
maravilhoso. Com ele, os alunos ficam doidos, pois enquanto pensam que eu estou olhando
para cá, demonstro-lhes estar vendo lá. Já pensaram como é isto em dia de prova? Então,
equipada com estas ferramentas, fiz-me professora. Tomei-me de pura paixão pela sala de
aula, pelo encontro com alunos, pelo insondável mistério de aprender e de ensinar. Vaguei
por muitas escolas: ricas, pobres, paupérrimas, públicas, particulares, urbanas, rurais, de
crianças, de jovens, de adultos, cursos técnicos, ensino fundamental, ensino médio, presen-
ciais, semipresenciais, a distância, ensino em módulos, ensino regular, ensino informal...
Aprendi mais do que ensinei e o que ensinei, aprendi também. Tenho ex-alunos doutores,
mestres, professores, enfermeiros, médicos, agricultores, donas de casa, advogados, presi-
diários, padres, pastores, pedagogos, homens, mulheres, pessoas. Tenho alunos doces, agri-
doces, salgados, apimentados, insossos, serenos, agitados, enjoados, solícitos, de todos os
jeitos e formas, mas, sobretudo, são todos amados...
Juntando minhas narrativas, percebi que elas me permitiam a produção, a sis-
tematização e a difusão de dados sobre a formação docente (afinal, estou na estrada
há muito tempo!). O estágio e as práticas de ensino pulsa(va)m como cintilações
na formação docente nelas potencializadas. Tais cintilações, visíveis nas leituras e
escrituras de vida e de mundo, que ouso apresentar, acendem miríades de luzinhas
de lembranças, de experiências sobre “aprendensina” e “ensinaprende”, que desejo
repartir. Na ousadia, reafirmo: “ensinaprende” e “aprendensina” desse jeito mesmo,
um preso no outro, pressupondo que se prende ao que se ensina a paixão pelo outro
e que se rende, na sina do aprender, ao imprevisível das redes de conhecimentos, a
paixão pelo mundo.
Narrativas como passaportes em zonas de fronteiras | 75
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Trançando aprendizagens em zonas de fronteiras
A prática de ensino e o estágio curricular são espaçostempos capazes de am-
pliar e de romper limites na formação docente. A importância que exercem sobre
esta formação é proporcional à intencional relação que travam sujeitos praticantes
de aprendizagens. São espaçostempos de aprendizagem que se efetivam nas zonas
de fronteiras (VALLADARES, 2009) entre teoria e prática, entre escola e academia,
entre a situação de estudante e a vivência de professor.
Zonas de fronteiras são lugares onde identidades se diluem e se tornam híbri-
das. Nas zonas de fronteiras, sujeitos se gestam, se gostam, se gastam e (de)gustam di-
ferentes sabores de vida, em seus projetos e tentativas de humanização. Nessas zonas
de fronteiras, os que por ali vivem, teimosamente presos a um território da fronteira,
perdem sua condição inicial de nômade ou migrante – estiveram na escola, foram à
universidade e voltaram para a escola, não voltam mais à universidade ou, então, es-
tiveram na escola, foram para a universidade e não querem ficar na escola. Estiveram
nômades, foram migrantes, hoje são moradores antigos. Outros desejam ardente-
mente um dos territórios da fronteira, são arrivistas3, repudiados pelos que ocupam
fixos espaços, pois nos fazem lembrar que, um dia, também foram recém-chegados.
E nós, que por ali transitamos nômades, migrantes talvez, carregados de sonhos e
aprendizagens para trocas e novas invenções, tornamo-nos híbridos, porque nem
somos da academia, nem somos da escola e somos de ambos – porque não somos
apenas professores ou apenas alunos, somos uns e somos outros, deixando de ser um
ou outro ou ambos, às vezes, em nossas transgressões, em nossas resistências, em
nossas teimosias e incompreensões. Somos sujeitos híbridos vivendo nossas histórias
de formação que contagiam a formação de outros sujeitos – e é preciso estar atento à
responsabilidade do que isto significa.
Professoras e licenciandos sabem bem disto. Querendo ou não, suas vidas se
impregnam do que vive(ra)m juntos, mesmo que não se lembrem quem era o aluno
ou como era o nome da professora cujas histórias marcaram suas lembranças ou
propiciaram a história que contam – histórias, lembranças e narrativas tão (in)ve-
rossimilmente suas, pois se constituem imersas na complexidade coletiva onde cada
pessoa vive. Tais processos resgatam a ideia de reminiscências, como junção da reme-
moração e da memória, como explica Benjamin (1994), na formação docente, com-
pondo imensa colcha de retalhos coloridos, com uma gama complexa de texturas e
de tessituras. Memórias e lembranças se esquivam entre conceitos de ordem psicoló-
3 Segundo Bauman (1998), são pessoas que desejam se incorporar a um lugar para onde migram, mas são repu-
diados pelos nativos, que se sentem ameaçados por eles, no sentido que os farão lembrar e serem lembrados
como arrivistas que foram um dia.
76 | Marisa Terezinha Rosa Valladares
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gica ou social, para se esparramarem como narrativas, no mais justo entendimento
de narradores.
As condições estratégicas de ensinar e de aprender, que o estágio e a prática de
ensino proporcionam aos seus sujeitos migrantes e nômades, justificam tais espaços-
tempos como fundamentais no processo formativo do magistério. Exigem um pre-
paro e um desempenho reflexivo-crítico. Oportunizam a intimidade necessária entre
o saber e o fazer (CURY, 2003), ao mesmo tempo em que proporcionam à formação
docente um saber e um fazer profissional, embora mantendo suas especificidades. A
importância do estágio e da prática de ensino não se restringe apenas ao momento
vivido nestes interstícios de nossa formação. Ela aparece com o relâmpago de lem-
branças de outros ensaios, de outras vivências como promessa do querer ser docente.
Trago em minha memória lembranças de minhas aulas de quando era menina. Eu repetia
em casa, com minhas bonecas, o que minha professora fazia: a mão levantada com uma
varinha para apontar as letras rabiscadas num pedaço de tábua, que imitava a lousa; a
voz empostada que se traía em diferentes tonalidades, da zanga ao carinho; a pose com o
sapato alto e o colar, que minha mãe abriu mão e deixou que se tornassem meus... Projetei
dali o meu futuro: eu queria tanto ser professora! Cada momento vivido foi em torno disto:
estudar para ser professora. Ainda me sinto como aquela professora que fui quando meni-
na. Sinto o passado me beijando o rosto, tão real que posso confundi-lo com o presente que
vivo: o carinho pelos alunos, tal como sentia de minha professora e que eu repetia com mi-
nhas bonecas, a vontade de ensinar que nem se perturba com o que chamam de bagunça,
a pose... ah! A pose que me custa comentários tantos entre colegas, respeito e querer bem
entre alunos! (Professora Y – Professora de escola, parceira no estágio)
Como destituir a força do desejo no que há de-vir? Como desconhecer a esté-
tica da atitude da docência? Como negar o voltar a ser, o sentimento de destituir da
utopia a imponderabilidade dela acontecer? Como ignorar o encontro entre um fu-
turo sonhado, um passado relembrado e um presente em acontecimento? A brinca-
deira de criança não perde a força formativa do que foi vivido, intensa e fugazmente,
mesmo que tome outro rumo.
O imbricamento entre memórias, lembranças e narrativas cria processos, mo-
vimentos e conhecimentos intimamente relacionados à forma como os lemos, os ou-
vimos ou os vemos e, sobretudo, com as formas de seu uso e de sua apreensão. É com
essa complexidade que os atravessamentos acontecem. O que me provoca é como
esses atravessamentos do fazer docente, do viver docente, do pensar docente, capazes
de se fazerem inesquecíveis se tornam potenciais formativos, em especial na Geogra-
fia, pela condição de efetuarem leituras das complexidades dos espaços geográficos,
das subjetividades dos lugares e dos territórios, além da beleza de paisagens.
As lembranças permitem e provocam um trânsito incessante entre a memória
e as narrativas, promovendo a atualização do passado – que flutua como uma fina
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luminosidade em torno do presente, envolvendo-o e ao lampejar, ilumina o passado,
o presente e o futuro num agora. Desta forma, o presente está sempre em formação,
trazendo em si o esgazeamento do passado que ainda o trama, enquanto pontas de
fios teimam em tecer um projeto de futuro possível.
Lidar com meninos e meninas da licenciatura da Geografia tem sido a minha grande (a)
ventura formativa na docência. Cada turma faz em mim uma marca que transforma
um pouquinho mais a Marisa que sou, a professora que tento ser. Aprender com alunos
é realizar o que tanto se discute na formação docente: juntar prática com teoria, tornar a
prática em teoria e fazer a prática da teoria. Com meus alunos aprendi que eu não posso
controlar tudo, até porque não sei como fazê-lo, e, quando pensei que sabia por que fazê
-lo, descobri com eles que não sabia e, parece, que ninguém sabe. Descobrimos juntos que
é possível escapar ao controle e que controlar é não deixar o outro seguir e crescer por si.
Muitos eventos me mudaram rumo a essas aprendizagens, mas um ficou marcado como
inesquecível. A turma estava oferecendo oficinas pedagógicas para as professoras de séries
iniciais e professores de Geografia da Educação Básica. Este evento havia nos esgotado em
correrias para arranjar materiais, em patrocínios de lanche, de cópias, de condução... De-
diquei-me e exigi planejamentos detalhados, minuciosos, checando mais de uma vez com
os grupos os materiais produzidos, os planos, os textos, as dinâmicas programadas. Um
grupo iria trabalhar com o teatro na Geografia e ficou acertado que ao final das oficinas,
todos os outros grupos e todos os estagiários iriam para o auditório do Centro de Formação
(onde aconteceria o evento) assistir uma peça denominada ‘Um buraco no céu’. Eu assisti
aos ensaios, dei palpites, ajudei a separar figurino, a preparar cenário... ‘Tudo certo, pro-
fessora, relaxa!’ Na véspera do evento, ainda preocupada, enviei para os meninos do grupo
de teatro, um e-mail dizendo das coisas que discutíramos juntos, reforçando pontos como
a posição de cada um no palco e a relação com o espaço vivido, percebido e concebido e
por aí fui... O evento correu bem, com imprevistos contornáveis, todo mundo satisfeito.
Aí, fomos para o teatro. A peça transcorreu como planejado – não, foi melhor do que en-
saiado, pensado e desejado. Ao terminar, os meninos estavam agradecendo, todo mundo
ouvindo... então, entrou outro aluno correndo e gritando ‘Pessoal, pessoal!’ Gelei. Achei
que algo trágico tinha acontecido. Ele subiu ao palco, ofegante, e disse: ‘Chegou esta carta
da professora Marisa para vocês’... Gelei mais. Será que só agora, alguém abrira o e-mail?
Os professores se entreolhavam, ninguém estava entendendo nada. O grupo de teatro sen-
tou à borda do palco. E leram minha carta:
Vila Velha, 20 de setembro de 2002.
Caros alunos e caras alunas,
Estou muito entusiasmada com a ideia de vocês usarem o teatro para ensinar Geografia.
Uma coisa que me preocupa é que, na maior parte das vezes que professores usam estra-
tégias para desenvolver estudos, a própria estratégia fica fora do estudo, ou seja, se vocês
vão usar o teatro para ensinar Geografia, como vivenciarão as categorias dessa ciência na
elaboração/organização/execução de peças teatrais? (1)
Sugiro pensar o palco como um espaço geográfico. Vocês podem explicar isso aos colegas?
O palco é um espaço físico e só se tornará um espaço geográfico quando as relações entre
vocês e ele o constituírem um espaço geográfico. Ao marcarem os locais do cenário, onde
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vão ficar os objetos e as pessoas, vocês estarão trabalhando para transformá-lo numa re-
presentação de outro espaço, de outro lugar (2) Percebam que ao se organizarem no palco,
para execução da peça, deverão colocar em prática verdadeiros exercícios de localização,
de orientação para os participantes da peça. É possível fazer uma analogia entre esses
procedimentos geográficos e a vida real? (3) Os limites de ação de cada personagem sobre o
palco devem ser bem marcados para que os atores não se atropelem, não fiquem de costas
para o público ou fora da visão de todos. A pessoa que fala deve ser o centro das atenções
(não necessariamente do palco) por isso as outras pessoas precisam tê-la como poder e lhe
dar poder, naquele momento. Isso lembra a vocês alguma caracterização e categorização
de espaço?(4) Os conteúdos tratados numa peça escolar precisam ser estimulantes, mas
não devem ser idiotizantes. Por exemplo, quando estereotipamos o caipira brasileiro, preci-
samos fazê-lo com respeito, retomando essa figura posteriormente para discutir atitudes de
respeito e ética.(5) Ao tratarmos de questões complexas, podemos remetê-las a um artifício
como um flashback, para explicar um pouco o que se trata.(6) Não vale cansar, vale atrair
e provocar interrogações.(7) Vale, também lembrar que o teatro pode ser desenvolvido com
diferentes fórmulas (8) Como vêem, não são poucas as exigências... Acredito que vocês –
competentes como são – encontrarão um jeito de dizer isso aos colegas na oficina que vão
desenvolver. Tomara que seja um jeito criativo, e, quem sabe? Teatral! (9) Daí, as pergun-
tas que agora assombram vocês, poderão ser respondidas por eles, não? Eles dirão se gosta-
ram ou não (10). Eles poderão destacar as aprendizagens mais importantes (11) Também
poderão acrescentar sugestões que enriquecerão o trabalho de vocês (12). Um beijão,
Marisa Valladares
Perceberam que há uns números no meio de minhas falas? Estes números eram marca-
ções feitas por eles. À medida que liam a carta, um ‘roubando’ o papel da mão do outro,
faziam intervenções nos assuntos marcados, expondo, perguntando e ouvindo respostas
do público... Receberam muitos aplausos, e eu, um ramo de flores. Estava pasma: eles me
surpreenderam, ultrapassando o planejado, fugindo às minhas tentativas de controle para
me dizer (sem falar!), do jeito delicado com que sempre me trataram: ‘Nós sabemos’... Ao
que lhes respondi com o olhar e agora, com essa declaração pública, que não se restringe a
eles só: ‘Vocês sabem, sim. Aprendi’... E continuo aprendendo...
Porque as fronteiras são criações humanas, as percepções de diferenças e de
diversidades, contidas nelas, ajudam a provocar aprendizagens. Se a prática de ensino
caracteriza a dinâmica fluida entre prática e teoria, o estágio a traz em si e vivencia
sua dimensão em mais uma instância de zona de fronteira, entre limites que se dila-
tam e se contraem: flui entre escola e academia, entre o que se pensa que se sabe e o
que se pensa e precisa saber fazer.
Sala de professora – UFES – 2007
Daqui a pouco terei um encontro com a turma de estágio supervisionado I, que vai re-
alizar um café pedagógico, depois do ‘Muro das lamentações’. Estes são dois ‘eventos’ no
estágio de Geografia. O ‘Muro das lamentações’ é o momento do estágio em que os alunos
retornam da aproximação com escolas. Então, lhes é dado a oportunidade de contar suas
(a)venturas. Nas aventuras há muitas desventuras. Em especial, nos estágios em turno
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noturno. Os alunos reclamam muito e contam das reclamações das escolas. Por isso o
‘Muro das lamentações’. Aí, para ‘recuperá-los’, associamos um café pedagógico: um lanche
coletivo, socializado, para que as observações feitas possam ser discutidas com um novo
sabor e saber. É no café que são feitas problematizações, sugestões e proposições sobre suas
percepções das escolas: entre eles mesmos e com os professores de estágio. As críticas se su-
avizam, com o doce chocolate, ou, acontecem despertas pelo café. Às vezes, surgem novas
proposições para aplicação do café pedagógico na escola: mapear os produtos servidos,
associar condições de solos, de climas, de relevo às possibilidades de produção, analisar e
cruzar linhas de espaço e de tempo de produção, apresentar em gráficos as categorias de
trabalhadores envolvidos na produção, avaliar impactos ambientais causados pela pro-
dução dos materiais do café pedagógico... O ‘Muro das lamentações’ às vezes ganha uma
faixinha dizendo: ‘Enquanto descansa, carrega pedras... mas o muro cai’. A escola fica
mais visível nas zonas de fronteiras desnudadas, sem o muro. Pois é, daqui a pouco estarei
lá. Então, sem lamentações.
Sala de aula – UFES – 2007
Um café da manhã para avaliar aprendizagens vividas nas zonas de fronteiras de estágio
supervisionado. Cada um traz dádivas de sabor diferente. Algumas, doces aprendizagens,
como delicadas imagens de apetitosos bombocados, vazaram a tela ou a página de estudos
sobre escolas e se tornaram vivências. Outras, lembranças com sabor salgado de lágrimas,
roladas entre cansaço, preocupação, nervosismo, decepção e até emoção de conquista, (re)
nascem no sabor de um patê que faz sucesso, embora tão simples... Borbulhas de refrige-
rante celebram cócegas na garganta. Mornos sabores de café e de chocolate entremeiam go-
les com risadas, aromas com relatos. Voltam à cena: um show no pátio da escola; palavras
grafadas numa porta; um reflexo fugidio num espelho no corredor... Para cada lembrança
de um menino e de uma aluna, uma imagem que não se repete igual para ninguém, tenta
dizer o vivido. A vida em grupo, guardada como unicamente nossa, é irremediavelmente
individual. Lembranças se tornam parte da gente e nos arrastam nas travessias das zonas
de fronteiras... O café pedagógico, às vezes, acontece depois de uma aula de campo, ou
antes, de uma ida a campo. No primeiro caso, aviva acontecidos. No segundo caso, prepara
acontecimentos...
Os espaçostempos do estágio e da prática de ensino, no ensino de Geografia,
têm uma vantagem extra: uma inserção em espaços geográficos, em tempo real. A
análise da comunidade, do entorno da escola e da própria escola como espaço geo-
gráfico aguça, oportuniza e valoriza o ensino de Geografia. As atividades propostas
incluem estudos e aulas em campo, miradas pela janela: geografias em ação na
aprendizagem. As experiências didáticas com filmes, músicas, propagandas, jogos,
textos, dentre outros recursos, propiciam oportunidades de relacionar a vivência
dos alunos em seus contextos espaciais com a Geografia que brota do instrumento
de estudo e do que ele trata. Mas o cotidiano de estágios e práticas de ensino de Ge-
ografia também proporciona tramas para se pensá-la no prisma do conhecimento
acadêmico.
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Conversávamos, eu e um grupo de estagiários no que chamávamos de ‘quartel-general’
(uma sala de aula vazia, emprestada pela direção da escola para nossos planejamentos,
reuniões, tempo entre aulas, enfim nossa ‘sala de professores’...) lanchando um cuscuz que
meu marido fizera para eu levar para eles, os estagiários. A conversa era multifacetada:
planos, procedimentos, questões da Geografia, implicâncias e brincadeiras entre amigos.
Alguns alunos da escola apareceram à porta: as meninas querendo atenção dos estagiários
e os meninos aproveitando para espichar o olhar para as estagiárias... O cuscuz também foi
olhado com gulodice. Então, uma estagiária falou: ‘Não gosto de comer com alguém olhan-
do assim... Fico pensando na fome de crianças na África, na Ásia’... Um colega lançou-lhe
um olhar crítico: ‘Não precisa viajar na Geografia mundial, ir tão longe: aqui dentro, na
escola, tem aluno com fome ou com pouca comida!’ Ela respondeu muito zangada: ‘Pior
ainda!’ A questão envolveu o grupo: ‘Estamos num mesmo mundo, mas situados em luga-
res diferentes. Estamos sempre num ‘dentro’ que é tocado pelo ‘fora’ o tempo todo.’ ‘É por
isso que a molecada prefere um tênis made in USA’: o de fora é mais chique’... ‘Também
por isso, na pressão da mídia, a gente acaba por se impressionar muito ou mais com o
sofrimento de outros povos, do que com quem está perto.’ ‘Pelo que tenho aprendido nestas
aulas, acho que a esperança é tentar trabalhar o ‘dentro’, sem esquecer o ‘fora’, aproveitan-
do o que ele nos ensina, trocando coisas, ideias. É fazer o ‘dentro’ o melhor possível para,
talvez, tocar o ‘fora’’.
No dia seguinte, um dos estagiários aproveitou um momento em que me isolei do grupo
e me pediu para ler o seguinte registro em seu portfólio: ‘No estágio vivemos na zona de
fronteira, como você diz, Marisa. Me parece que essa zona de fronteira fica separada do
mundo. Isolados aqui, estamos dentro dela e fora do mundo real. Mas eu sinto que você
nos puxa de lá para cá e de cá para lá: você nos provoca a fazer diferente dentro da escola,
mas trazendo o lá de fora para cá e levando da escola para a comunidade. Daí o show no
recreio, recortes de jornal sobre enchentes para estudar ocupação urbana... A provocação
para a criação do selo amigo do consumidor depois da pesquisa no comércio próximo...
Você faz com que o dentro e o fora se toquem. Será que conseguiremos fazer isto fora da
‘zona de fronteira’? Será que não nos tornaremos, também, professores cansados, desmo-
tivados, desinteressados? Será que lá fora da zona de fronteira saberemos como lidar com
alunos, com pais e com colegas tão diferentes uns dos outros, fazendo tocar seus mundos?
Numa sociedade cada vez mais excludente, discriminatória entre ricos e pobres, poderosos
e miseráveis, saberemos conciliar diferenças e fazer a diferença? Fico pensando na profes-
sora mais velha do grupo de Geografia, tão ‘maluquecida’, tão destoante do que eu acho
normal no ensino e fico também olhando o professor mais jovem, tão descompromissado,
tão se achando... E a professora dos segundos anos? Trabalha duro, mas tudo é do jeito que
ela quer... Parece que tem uma fantasia, uma segunda pele para cada professor’.
Lembrei-me de ter comentado, ligeiramente, sobre Bhabha (2005) e Fanon
(1983) ao discutir com a turma um estudo sobre racismo, xenofobia e discriminação
sociocultural.
Fui embora pensando: Como promover a autonomia de licenciandos no fazer docente, na
superação de meus pequenos limites, não permitindo que me tomem por modelo e meu
trabalho como padrão? Como provocá-los a se perceberem no estágio, entendido como
zonas de fronteiras? Como promover neles o diálogo com a diferença? Tantas dúvidas,
tantas inquietações... E ele me disse que eu faço o ‘fora’ e o ‘dentro’ se tocarem... Mas não
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há ‘fora’, sequer ‘dentro’: há uma trama que se percorre, da qual se faz parte, querendo ou
não, fugindo em direção escolhida ou imposta, voltando, indo, estando, sendo...
A Geografia brota das situações de ensino, proporcionando-nos chances de
problematizar sua compreensão e apreensão com licenciandos, passando-lhes ideia
de fazer acontecer também em suas aulas. Só não podem esperar que se repita o
mesmo fato, nem a mesma cena. A ideia do estágio como ensaio não coincide com a
recorrente afirmação de repetição. A repetição é um engodo: ela insiste em acontecer,
mas não resiste à criatividade do imprevisível cotidiano, onde tudo é mudança. Os
alunos e professores mudam e são diferentes. Traçam caminhos cognitivos inéditos.
Alunos e professores discordam entre si sobre vantagens e desvantagens do es-
tágio supervisionado, quando trazem à baila a questão da repetição como artificiali-
dade da situação de ensino:
Eu sei que todo mundo é estagiário. A gente fica só olhando: nossa professora com medo
de dar galho, vigia a gente: a senhora só olhando para dar notas, as estagiárias tudo ner-
vosinha. A gente ali. Tem hora que é bom. Quando fica chato, fico olhando o povo e vendo
quem vigia quem. Quero ver se quando virar professora mesmo vão ficar assim ou se vão
parar com a novela e vão encher o quadro de dever. Muita coisa é só pra você ver. Tem al-
gumas que é porque gosta. Dá nota boa. Talvez assim elas continuem... (Aluno do ensino
fundamental – 8ª série)
A ideia de artificialidade se desvanece na percepção do aluno de escola que
reconhece o momento do estágio como algo que precisa ser evidenciado em seu sig-
nificado, tanto quanto afirma sua importância para a formação docente: “Dá nota
boa. Talvez assim elas continuem.” Há uma denúncia em sua afirmação: se a escola,
se a sociedade, na sequência da ação formativa, desse uma boa “nota” aos professo-
res, talvez a educação fosse feita de outra forma. Talvez fosse possível manter, criar,
expandir o gostar, na qual o menino aposta. E que reconhece, na sala de aula.
A gente entende o que ele lê com a gente no livro. Ele dá exemplo e cobra da gente falar,
perguntar e escrever – que é meio chato, mas ele disse que precisa escrever. E a gente escre-
ve, a gente faz mapa, a gente olha figura, diz o que pensa. Ele pergunta e quando a gente
pergunta, ele pergunta de novo. Só depois responde. A aula acaba rapidinho. Eu nunca vou
esquecer este estagiário! (Aluno de escola)
Os licenciandos se ressentem da leitura equivocada que se faz do estágio, como
um momento de fingir ser professor, sem a (re)significação de sua importância como
momento de formação em serviço.
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Os alunos sabem que sou estagiária. A professora também. Todo mundo sabe. Eu também
– essa é a pior parte. Eu fico me olhando e me analisando o tempo todo... Fica a impressão
de que se os alunos fazem bagunça, é porque sou estagiária. Se ficam atentos, também. Não
sei como poderia ser diferente, mas acho que é preciso pensar num outro jeito... (Licen-
cianda em estágio em escola de ensino médio)
Também há manifestações de desagrado pela maneira pouco profissional e
pouco formativa com que o estágio é compreendido e tratado por professores e ges-
tores da escola:
Professora: A diretora brigou com um professor na frente de todo mundo, mandou a gente
sair do corredor (Ir pra onde, meu Deus? Pra que perguntei? Mandaram a gente tapar
buraco de aula vaga... Isso não é uma escola: é a sucursal do inferno... Isto não é estágio,
é castigo!) Eu fiquei pensando: Vai ser assim, meu Deus? Dá para ir embora? Como vocês
gostam, melhor como suportam isso? (Licenciando em estágio em escola de ensino fun-
damental).
Continuam:
A senhora estava na outra escola – não tem professora Marisa em duplicata, fessora? Aí,
faltou professor também na escola. Inventaram que a gente poderia substituir. Pensei: isso
não vai dar certo! A coordenadora foi até a sala de aula, com a gente, porque a gente exi-
giu. Tinha menino brigando, cadeira caída, uma confusão. A mulher deu um sermão e nos
entregou aos alunos (não foi o contrário, professora...). Então, depois de uns cinco minutos
de completo pânico, assumimos a turma e trabalhamos nossa aula. Não é que deu certo?
(Licenciando em estágio – escola de ensino fundamental)
A desimportância criada pela perversidade da falta de estrutura para o trabalho
docente nas escolas, assim como pela falta de profissionalismo causada pela formação
precária, pela ausência do rigor na avaliação permanente do trabalho docente, pelo
baixo compromisso com a docência como prática de cidadania planetária educativa,
pela desarticulação entre formação legal inicial e a formação continuada, tudo isto
mascara, engessa e deturpa a postura do docente. As repercussões da precarização e
da proletarização no trabalho docente se esparramam sobre a formação docente – re-
alizada em instituições acadêmicas ou escolares, como também nas zonas de frontei-
ras entre ambas – em redes cujos fios se cruzam na vida fora e dentro destas institui-
ções. Daí que esses mesmos fios sejam amarrados por normas e regulamentos legais,
determinados por políticas que se pretendem educacionais. (Des)afiar as prescrições
legais para tecer de novo, em táticas inventadas nos cotidianos de aprenderensinar
tem sido nossa prática de professoras, em todos os estágios de nossa carreira. Então,
cumpre enfrentar o desafio, de (des)atar fios que (des)amarram o fazer docente.
A autoria e a autonomia docentes vagam por linhas de fuga, resultantes do es-
tilhaçamento do modelo de escola etéreo, ideal, desconectado do momento atual das
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sociedades. Muitos professores vivem uma pseudológica fornecida pela rotina, como
suficiente justificativa para sua impotência aparente. O estagiário, quando ainda não
“viciado” por essa construção, questiona, critica e julga ser capaz de transformar o
que não concorda existir na escola.
A crítica não resolve o problema, só o coloca a nu. A constatação finge que
aponta dados para exigência de programas governamentais para mudanças. A de-
sesperança corrói possibilidades. A inoperância gesta a continuidade. Neste frágil
encontro, onde o diálogo se cala, reside a esperança de rupturas e novas posturas
docentes.
Ensaiando narrativas em zonas de fronteiras
O encontro do estágio, tempo em que se espera entusiasmo do licenciando,
com a experiência do docente em serviço, que se espera impregnada pelo saber fazer,
deve ser enriquecedor para os sujeitos envolvidos, de vez que o estudante pode con-
tribuir com a atualização de teorias e práticas, trazidas da produção acadêmica, para
operar como somatória e como troca formativa para o professor da educação básica,
também produtor do conhecimento na escola. Neste encontro, a troca é importante
para a formação continuada docente do licenciando e do professor. Narrativas de
professores, dizem desta contribuição, que não pode passar despercebida, pelo va-
lor de enriquecimento, ainda que marcado pela dor ou pelo desejo de fazer valer o
aprendido:
Estou perto de me aposentar. Não ligo pra mais nada: só para meus alunos. Não estou
morrendo de preocupação com a Geografia dos livros. Que importa a geo sem vida? Sou
do Conselho Tutelar: saio atrás deles. Todo mundo diz que sou doida, mas eu disputo eles
com as drogas. Tem que entender geo para não virar massa de manobra. Tem que cuidar
do planeta. Tem que passar pela escola para ter emprego. Mas, geo só pra vida, entender
porque meninos correm risco, porque devem fugir do risco. Sou professora, a geo me ajuda.
Mas, está chegando a hora de parar. Fica aí, para as meninas novas continuarem (Profes-
sora parceira de escola, no ensino fundamental e médio)
A professora recebe o licenciando e, mais do que lhe propiciar um modelo, diz
de sua escolha: mais do que favorecer a docência como processo restrito à área de
ensino, mostra sua extensão na vida. Felizmente, não é única. Felizmente, acredita
nos “novos”, não como inexperientes, mas como novos criadores de outros novos.
Mesmo quando há uma certa amargura, a professora de escola convoca para aquilo
que aprendeu.
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Como bem o diz a professora N., da escola, na escola com os estagiários, quando eles pe-
diram que ela falasse um pouco sobre a profissão professora e sobre si: ‘Tenho 50 anos de
idade, 31 anos de luta na profissão. Há seis anos trabalho de graça, porque quando comple-
tei o tempo para a aposentadoria, a legislação mudou: mudou a regra no meio do jogo! Já
passei por tudo: salário atrasado, contas vencidas, filhos querendo coisas, eu precisando de
coisas – tudo sem poder’. Nessa sua fala é perceptível que se sente lesada, sem estímulos e,
por conseguinte, o que a mantém atuando no mais estreito limite do cumprimento do dever
é um princípio moral que elaborou ao longo de sua vida, estendido ao campo profissional.
Há sinais claros de um desfalecimento no ímpeto de seu fazer docente, mas há pistas que
ela nega a desistência – ‘[...] tudo que é muito repetitivo se torna enjoativo. Infelizmente
nosso cotidiano é repetitivo.’ A repetição (re)negada, talvez o seja porque, inconscientemen-
te, é (re)conhecida como impossível de acontecer. O que se anuncia como repetitivo, o que
cansa, parece ser o exigente enfrentamento das dificuldades no dia a dia rotineiro – igual
sem sê-lo verdadeiramente: uma retomada constante e um refazer permanente das ações
docentes, um investir, um persistir em lutas pela educação tais como greves, manifestos,
discussões... E, contraditoriamente, professorar é processo, não expresso claramente, que
se caracteriza como irrepetível a cada momento, a cada dia, a cada tempo, em cada lugar.
Também há evidências de uma ‘teimosia’ na manutenção de coisas em que acredita e que
a sustentam num fazer compromissado, mesmo que cansado: ‘Geralmente, eu faço o plane-
jamento todo em casa, pois na escola o barulho e a agitação dos alunos me desconcentram.’
O que faz a professora N. em seus horários de planejamento na escola? Fui à busca de
descobrir. Encontrei a professora conversando com alunos que estão com ‘dificuldades’ na
sua disciplina. Estive com ela em conversas com professores, discutindo a organização da
escola, avaliação, desenvolvimento dos alunos, questões geográficas do mundo e do local
da escola. Pude vê-la subindo e descendo escadas com materiais para serem reproduzidos,
selecionando vídeos na sala de coordenação, corrigindo provas e exercícios. Muito discreta,
ela vive o seu modo de tecer conhecimento sem alardes. Seu desabafo, contudo, é um grito
para os licenciandos. Não esconde as mazelas e não se incomoda de lhes jogar a ‘dureza’
do magistério à cara: ‘O vídeo não funciona e os outros equipamentos só funcionam de
vez em quando. Às vezes, queremos usar o laboratório de informática, mas não é possível,
pois existem muitas turmas querendo usá-lo ao mesmo tempo. A SEDU4 está sempre usan-
do o laboratório ou o auditório para capacitações. Aqui tudo é imprevisto, você trabalha
dentro do imprevisto. Você sai de casa com um planejamento e aqui tudo se modifica. Eu
optei trabalhar com apostila, para que os alunos formulem os contextos. É um método que
funciona bem, entretanto uma turma conseguiu copiar a apostila, outra, não. Então, tem
hora que você dita o conteúdo, outra hora você escreve no quadro. Imagine alunos que vão
disputar o vestibular com alunos da escola particular e você não tem material para traba-
lhar. Algumas vezes tiro do meu próprio dinheiro para passar para eles [...] Tem condições
esses alunos disputarem com os de escola particular? Não tem, mesmo assim seis alunos
passaram na UFES o ano passado (Seus olhos estão marejados, ela fala com fúria) [...]
Quem está tentando ingressar na carreira de professor já vai sabendo que vai encontrar
muitos problemas pela frente. Eu estou saindo.’ (E sai mesmo, pede licença, ajeita os livros,
e vai embora. Nota-se que está triste, emocionada e com vergonha por ter se ‘empolgado’
– ela tão comedida, sempre!). Os alunos do grupo se mantêm em silêncio. Anotações são
feitas rapidamente. Alguém desliga o gravador. Ninguém tem vontade de comentar nada.
4 Secretaria de Estado de Educação do Estado do Espírito Santo.
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As concepções desta professora, que se faz fetiale5 em zonas de fronteiras do
estágio, são crenças do fazer. E mais: entrega-se inteira ao processo da educação com
um agir na escola. Como professora de Geografia, faz valer a geografia da vida, na
escola e a geografia da escola, na vida, convocando o colega em formação para o ser-
viço. Ensina: a Geografia não disputa nem lugar, nem espaço com o pedagógico, nem
o pedagógico transveste a Geografia. Integram-se.
No estágio, não se aprende apenas aquilo que o professor faz na escola: é possível aprender
o que é ser professor. Sensibilidades e escutas sensíveis, atentas aos significados de olhares,
de gestos, de silêncios, de falas que não são apenas palavras, permitem alcançar situações,
atitudes, ações, valores, competências, posturas que podem não ser modelos, mas são pis-
tas.
A professora trabalha com as turmas de sétima e oitava séries. Tem um temperamento
alegre, extrovertido e se relaciona com os alunos de maneira peculiar: aplica-lhes apelidos,
briga de maneira bem semelhante àquela que os adolescentes o fazem entre si, desmerece
-os na presença de todo mundo, interrompe explicações para acrescentar comentários ou
elucidações quando julga necessário e, também, para admoestar alunos quanto ao com-
portamento desinteressado ou desinquieto.
A despeito dessa forma de agir, censurada pelos estagiários, ela é muito querida pelos alu-
nos, que a abraçam e fazem piadas de suas maneiras. Ela não frequenta a sala dos pro-
fessores, onde a entrada de alunos é expressamente proibida: ela fica em sua sala, cercada
de alunos e funcionários da escola. Segundo um relato seu para os estagiários, quando se
apresentou a eles, não precisaria estar trabalhando mais, por dois motivos: um, seu marido
é aposentado e pode oferecer a ela o conforto desejado; outro, ela tem um problema sério
de coluna, causado por um acidente de carro e poderia se aposentar. Não pode subir e
descer escadas. Então, foi separada uma sala, no térreo, para suas aulas: é a sala ambiente
de Geografia. Lá ela guarda alguns livros, mapas, cartazes. Quando os licenciandos apre-
sentaram um projeto de estágio que incluiria jogos, kits de instrumentos geográficos para
enriquecer o ‘ambiente’ da sala, ela desconversou, disse que estava muito ocupada, depois
disse não ter como guardar. Perguntamo-nos o que a afastava da proposta, considerando
o seu incondicional apoio ao estágio e sua postura sempre aberta a aquisições, projetos,
experimentos para a escola. Uma aluna dela, sem querer, sugeriu uma pista: ‘Também,
né, se a gente deixar bússolas, jogos, dvds de Geo, globos, mais coisas, a sala vai ter que ser
dividida com outras turmas e professoras, né?’ As relações entre os sujeitos praticantes de
escola revelam solidariedades, parcerias, produção, mas são marcadas, também, por ações
solitárias, por posições que dividem, que abandonam, que separam.
Mas, não é só com professores que se aprende. A escola pulsa vida. A mulher
dos serviços gerais, o tio da cantina, o vigilante, todo mundo mostra o que é viver
escola e como a escola ajuda a (vi)ver a vida:
5 Sacerdotes especializados de Roma, que agiam na zona de fronteira, em situações de negociação, num ritual
destinado a criar um campo que servia de base e de teatro para militares, diplomatas ou comerciantes que avan-
çavam para além da fronteira. (CERTEAU, 1994)
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Eu gosto de trabalhar aqui na cantina. Os alunos e as alunas às vezes chegam aqui que-
rendo aprontar. Aí eu dou uma bronca e eles me pedem desculpas. Eu sou o tio da cantina.
Não vendo fiado e digo que é pra eles aprenderem a cuidar do dinheiro deles. Não gosto
de gritos, nem de empurrões. Eles me pedem conselhos sobre namoro, drogas, trabalho,
estudos. Acho que isto é fazer parte da escola. (Tio da Cantina)
Eu acho que os alunos precisam entender que isto é uma escola todo dia: eles não estão
num baile funk, onde podem entrar com bonés e fazendo farra. Acho que as professoras
deviam botar mais moral. Mas não é todo mundo que é assim. Ainda bem. Muitos param
pra falar comigo. Me contam coisas e eu digo o que penso que é certo. Acho que é mais fácil
falar comigo do que com o pai, que é mais velho, ou com a professora, porque eles sentem
vergonha. (Vigilante da escola – 2007)
E ainda:
Eu que vou falar, né gente? Mas se alguém quiser também pode falar. A gente está aqui
para ajudar. Às vezes, a gente percebe umas coisas estranhas, mas as coordenadoras não
dão ouvidos ao pessoal de apoio (risos do grupo). Aí, a gente tenta agir com os alunos: a
gente conversa, a gente aconselha, a gente briga. Até ameaça a contar para a diretora. Se
a gente consegue acertar, a gente fica feliz. A gente é mãe, é avó, é tia. A gente quer ver os
meninos e as meninas bem. Se a gente pudesse, a gente dava palpite, mas... (T. – pessoal
de apoio - 2007)
A importância do estágio também mora aí: zona de fronteira educativa entre
família, comunidade e escola. No estágio, é preciso aprender isto, como princípio de
vida coletiva, a ação conjunta rumo ao objetivo comum.
Outras aprendizagens nascem desta observação e deste contato com os meni-
nos e meninas da escola. Exatamente neste contato, quando é possível ver o mapa do
tempo do hoje, os limites destas zonas de fronteiras se expandem, se fazem flexíveis
permitindo-nos mirar o futuro, para nos prepararmos para ele.
Diário de um menino – Sobre meninos e meninas:
O que mais me impressiona no estágio é a capacidade de viver a vida, de enfrentar a vida,
de inventar a vida dos meninos e meninas da escola. É impressionante! Quando olho para
esses meninos na hora do recreio, não vejo garotos, vejo pessoas que sabem lidar madu-
ramente com seus problemas e com sua realidade. Fico me perguntando como é que, com
condições econômicas tão desfavoráveis, podem ser tão... ‘grandes’ – é, a palavra é essa
mesmo. Diante deles eu me sinto pequeno... “Professor não é aquele que sempre ensina, é
quem de repente aprende.” Não sei de quem é essa frase, mas ela se aplica: essas crianças
podem dar uma aula de vida para quem vive reclamando. Vejo nessa escola como o Brasil
é rico e ao mesmo tempo tão injusto. Rico por ter cidadãos como esses meninos e injusto por
colocá-los à margem de uma vida mais rica. Eu nasci na classe média, sempre tive tudo o
que quis. Nunca fui metade do que esses garotos são. (Bial – licenciando 2007)
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O mergulho nos cotidianos da escola, se narrado, provoca leituras de si simul-
tâneas à busca de compreensão do pulsar da vida que se nos apresenta. Essa reflexão
aguça o sentimento de empatia com os sujeitos participantes dos cotidianos, am-
pliando aprendizagens formativas para os licenciandos. Aos poucos, e não totalmen-
te (há diferentes modos de pensar as escolas, diferentes, também, entre si), resgata-se
o valor das escolas, dos alunos, das professoras. A partir das conversas, dos esforços
para fazer diferente – muitos estagiários acreditam, de imediato, que são capazes de
fazer melhor do que é feito nas escolas – e, então, experimentam, tentam, aprendem,
inventam.
A aula correu sem muitos incidentes. Tentei ao máximo me expressar de forma clara, ser
o mais útil possível e me relacionar de forma amigável com eles, respondendo às questões
levantadas e dizendo o que eu sabia responder – exceto em questões horripilantes como:
Quantos países existiam antes de 1948?! (Ani – licencianda – estágio supervisionado –
2007)
As lamentações dos alunos são, naturalmente, leituras de momentos, de uma
dimensão que pode ser comparada à parte emersa de um iceberg: elas sinalizam a
profundidade dos cotidianos, que tentam revelar, dizem da complexidade das com-
binações existentes nos cotidianos que procuram entender. Convidam ao mergulho
que pode revelar o iceberg imerso.
Meu erro foi dar-lhes liberdade para brincar, sorrir, comentar e conversar durante minha
exposição. Minhas gírias foram rapidamente absorvidas pelos alunos e isto me custou caro
nas aulas seguintes. A amizade foi confundida e coisas desagradáveis ocorreram durante
minha estadia na turma. Porém, não me abati e vi que se fazia necessário que eu mudasse
meu comportamento, já que a amizade tão próxima foi confundida. Parti então para uma
relação um pouco mais afastada para que o respeito fosse mantido em sala de aula. Eis aí
o problema: Não disse que seria amiga? Então aonde foi parar essa amizade frente a um
obstáculo? (LG – licencianda – 2007)
De um modo geral, na academia, os licenciandos cultivam uma vaidosa pre-
tensão de produção de conhecimento que tenta desconhecer, ignorar, desqualificar
a vida da escola, por mais bonitas que sejam as falas politicamente corretas de ne-
gação da hierarquização dos saberes de professores: por mais que seja enfatizado o
conhecimento em rede. Os “nós”, do jeito que se apresentam na academia, são apenas
amarraduras que rompem a transição de aprendizagens que aconteceriam de outro
jeito, se as redes não (a)prendessem. Os “nós” perdem o sentido de coletivo e ganham
o sentido nítido de amarraduras, de armaduras. Quando essa falsa percepção de su-
perioridade acadêmica começa a desmoronar, acontece um certo desequilíbrio e, às
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vezes, um desencanto com a docência, até um próximo momento exitoso nos seus
fazeres docentes.
Certo dia, fomos substituir um professor que faltou. A princípio, achamos que era só ocu-
par o tempo da turma. Um aluno pediu que fizéssemos uma revisão geral da matéria. A
conversa informal se tornou um debate sobre Geografia e temas ligados a ela e a vida deles.
[...] Acredito que este instante casual me ensinou a trabalhar uma aula como Marisa diz
e faz: planejar sem se amarrar, se preparar para o imponderável, estudar para acender a
paixão, se entregar, se jogar no encontro com o outro e aprender juntos. Foi o que fizemos,
mesmo que o planejamento tenha sido de outras aulas. Aprender a ser paciente com quem
aprende, aprender o que o aluno sabe com sua experiência de vida que a gente não viveu
(só ele) são conquistas diárias sobre a gente mesmo para ser professor. (Tio – licenciando
– 2007)
É comum licenciandos notarem, depois de algum tempo nas escolas, quando
o tempo do estágio lhes permite experimentar o dia a dia docente, a diferença entre
suas análises do fazer docente dos professores e a prática que eles, licenciandos, de-
senvolvem em suas aulas, em seus planos, em suas tarefas, exercícios, testes, textos.
Constatam que aquilo tão intensamente suscetível à crítica, aquilo que parecia passí-
vel de um julgamento pautado pela dicotomia certo-errado, é um processo pantano-
so, em que se escorrega do que parece certo ao que poderia ser melhor, daquilo que
se patina na dúvida ou do que se encharca de vontade de acertar.
Eu achei que estava abafando, até que os meninos começaram a perguntar: ‘O que vale
saber do Japão, se estamos no Brasil? Nem somos netos de japoneses para ir pra lá ganhar
mais dinheiro do que aqui’, diziam. Então, meio em pânico, ouvi a professora dizer: ‘E não
querem aprender como isto foi construído lá, depois da destruição pela guerra?’ Olhou
para mim, com um sorrisinho no canto da boca. Eu pensei: ué... (Jun – estagiário no
ensino fundamental)
A partir das inserções nas zonas de fronteiras, com a bagagem meio revirada
pelos eventos iniciais, licenciandos começam a estabelecer liames com professoras de
escola. Começam a se libertar de concepções equivocadas de uma superioridade aca-
dêmica, que verificam não ser consistente como pensavam. Então, começam a sentir
as dificuldades dos cotidianos escolares, que não conheciam. Começam a sentir as
alegrias, (com)paixões que viveram, quando estavam alunos de escola, do outro lado
da fronteira: não se lembravam mais ou se envergonhavam de lembrar.
Eu não sabia como resolver a questão. Entrei em pânico. A professora Marisa estava em
outra sala. Fui à mesa pensando ‘vou ter que dizer não sei’. A professora me preparou para
isto. Mas demorei tanto para conseguir um pouquinho de interesse dos alunos pelo tema.
‘Vou dizer que é tão irado que eu não me lembro...’ Aí, notei uma pessoa perto de mim:
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a professora N. Com firmeza e delicadeza, ela falou para os meninos: ‘Ah! Deixa eu falar
pra eles... Eu gosto muito deste assunto!’ E explicou, me pedindo para confirmar – e num
relâmpago, eu me lembrei de links que me ajudaram a aprender o problema naquele mo-
mento. Eu disse ‘obrigada’ com todas as letras depois, mas acho que meu olhar, meu deses-
pero, meu coração pulando falaram mais alto na hora certa da ajuda, dizendo: ‘obrigado,
professora sábia de Geo e de vida! Obrigado!’ (Al – licenciando 2007)
Os licenciandos, que apreendem esse movimento, estabelecem proximidades
novas com escolas, com professores e com alunos, com os quais se identificam, re-
conhecendo-os e a si mesmos como “sujeitos praticantes” (CERTEAU, 1994) nas/
das escolas, graças à similaridade das tentativas, dos esforços, das coisas que também
podem realizar nelas.
Original Message -----
From: Lu
Sent: Tuesday, May 22, 2007 10:20 PM Subject: reflexões
A viagem da pessoa já começa no assunto do e-mail... não tem problema porque viajar é
comigo mesmo. Hoje cheguei a uma conclusão... eu acho que estou gostando de dar aula
(ops: trabalhar aula... é o hábito), e sinceramente ainda não sei se isso é bom ou ruim...
quando eu estava lá na frente, nem fiquei nervosa, nem tremi, nem gaguejei, me senti
quase à vontade. Pensei assim: Meu Deus! será que isso é bom?Aí falei com Beth: não me
deixa gostar ‘disso’ não... Ah, tem mais: adorei os alunos, apesar deles terem um pouco de
dificuldade, eles demonstraram interesse... fiz até brincadeiras (de leve)... E, pra minha
surpresa, estou eu saindo da escola... e um dos alunos me chama e fala: ‘Tchau, professora!’
Poxa, ele deve ter gostado da aula, senão tinha me ignorado... Aí, Aí... vai saber o que o
futuro nos reserva... Ih! Por hoje é só. Até quinta! (Lu – licencianda – 2007)
É comum que graduandos cheguem às zonas de fronteiras do estágio curricular
balançando bagagens enormes, ainda não “arrumadas”, de informação e de opinião,
propiciadas e provocadas pela vivência intensa de estranhamento das possibilidades
de produção de dados que a academia se orgulha de fazer. Como graduandos, são
exigidos, por disciplinas especificas da área de estudo, a produzir mais em trabalhos
acadêmicos (tão diferentes e tão semelhantes aos que fizeram nas escolas). Tornam-
se vaidosos de seu pretenso saber. É comum que lhes pareça perda de tempo o estágio
supervisionado na escola, assim como desprezam as atividades dele, no meio de tanta
coisa que querem fazer. Como disse um estagiário “[...] o tempo fica pequeno porque
há um excesso de metas, de projetos individuais que se acumulam ao final do curso,
no tempo em que acontecem os estágios [...]” Não sabem bem, eles, como pouco sa-
bia eu que “[...] já passou o tempo em que o tempo não contava.”. (BENJAMIN, 1994,
p. 206) No decorrer do curso, falta-lhes tempo – tomado por pesquisas, trabalhos,
aulas, leituras, todo o arsenal exigido para que se tornem conhecedores da ciência
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estudada. Nos espaçostempos do estágio, a urgência continua, mas, parece-me que
nas zonas de fronteiras, a informação, o tempo, o trabalho, a opinião se lhes tocam,
talvez provocados pelo encanto do estrangeirismo de encontros consigo mesmos na
retomada da escola, dos alunos que foram um dia, dos professores de escola que tive-
ram em suas trajetórias e da incógnita de se tornarem “eles”.
Dia de tortura
A licencianda era ótima aluna, séria, compromissada, mas não queria ser professora. Mas
fazia licenciatura. A ideia é não perder a chance de mais um diploma, mais uma possível
oportunidade num momento de necessidade profissional. Como a aluna, muitas e muitos.
O estágio acontecia nas terças e nas quintas-feiras. Num domingo, manda-me um e-mail
com seu plano de aula, para ‘leitura e sugestões’. Comenta como era difícil cumprir com
tarefas para as quais não se sentia preparada e nem entusiasmada, apenas obrigada. E
acrescenta para fechar: ‘[...] até terça, dia de tortura [...]’. A sua tortura era minha tortura.
Como gostaria que ela não sofresse com algo que, como penso, é algo amoroso! Dias depois
recebo outro e-mail cujo assunto era ‘Dia de tortura, nunca mais. – Professora, eu estou
gostando. Meu Deus, será que serei professora?’
Aí, tudo mudou. Trabalhamos a aula, como a senhora diz. Conseguimos. Também não
fiquei achando que seremos felizes para sempre. Acho que o pessoal da escola precisa mais
de apoio do que nós. PS: Não nos deixa mais sozinhos lá não, viu?
Avaliação: Foi bom porque me senti útil. As professoras perguntavam e perguntavam. Coi-
sas que eu sabia. E o bom é que elas me contavam como haviam ‘errado’, como haviam se
frustrado, e como pensavam em fazer com minhas respostas e explicações. Elas me pediam
tudo: o plano, o Power Point, o texto... A troca foi maravilhosa. Quando a gente fazia uma
proposta elas corriam (literalmente) dentro da sala para fazer, trocando ideias entre si e di-
zendo pra gente outras formas de fazer o proposto na sala de aula. Aprendi. Aprendemos.
Senti que a escola foi à academia e a academia foi à escola. A troca que Marisa procura
ver estava lá, intensa. E eu faço parte delas: não quero mais ser professor universitário, vou
para a escola, primeiro. (A. – Licenciando 2007)
Como o passado não é um resultado a colher no presente e sequer uma acu-
mulação para o futuro, as vivências dos alunos não são determinantes para sua per-
formatividade como docentes. Narrativas de ex-alunos e de professores, que estão
na escola ou que trabalham com estágio curricular, dizem de antigas expectativas da
docência e posturas que não estavam previstas como futuro: estagiários que detesta-
ram o estágio curricular e amam ser professores, licenciandas que se apaixonaram
pela docência no estágio e odeiam a sala de aula, professores que não tiveram um
bom desempenho no estágio e são professores brilhantes etc.
Lembro-me quando iniciei na UFES e me perguntavam se eu gostaria de ser professora
algum dia e eu nem pensava, respondia na hora: ‘Eu não nasci para isso.’ Hoje em dia se
me perguntarem a mesma questão, direi: ‘Não tenho nada contra. Quem sabe um dia eu
possa vir a ser uma... professora?’ (Ani – licencianda – 2007)
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Apesar de estar fazendo a licenciatura não sei mais se quero ser professor. Entrei na UFES
contra todos lá em casa e hoje estou aqui em término de curso. Apesar da dúvida do que
vou ser quando crescer, acho a profissão fascinante. Olhava meus professores, na época
de escola, e ficava deslumbrado. No curso, descobri que na Geografia há uma área para
pesquisas científicas fora da educação. Acho o máximo E QUE HOJE É O QUE MAIS ME
ATRAI. Mas, por segurança, vou terminar a licenciatura. (Iel – licenciando – 2007)
Esperançando em zonas de fronteiras
Na inquietude de aprender com esses espaçostempos tão intensamente vivi-
dos, busco pistas que me ajudem a trabalhar com essa cotidianidade de formas que
formam, convencida de que “os cotidianos estão pulsando muito mais fortemente
do que qualquer análise que façamos ‘com’ eles”. (FERRAÇO, 2007, p. 87) Perscrutar
cotidianos não é só mergulhar no que produzem, é perguntar-se o que se pode apren-
der e fazer aprender com eles. Isto é um exercício muito significativo para meninas e
meninos que fazem sua iniciação na escola. As questões e possíveis respostas que se
(per)seguem, nem sempre se revelam, pois não conseguem conter toda a complexi-
dade da simplicidade dos cotidianos vividos.
No corredor interno do andar superior da escola tinha um espelho grandão, desses que se
colocam em banheiros escolares. Eu me surpreendia com ele, pois passando de uma sala
para outra, via o deslizar do meu vulto e levava um susto. Ficava achando que ele dava
movimento à paisagem escolar. Às vezes, eu parava diante dele e me olhava, ajeitando o
cabelo, encolhendo a barriga. Da sala destinada aos estagiários, eu comecei a perceber
que o espelho também fascinava alunos e alunas da escola: era comum vê-los fazendo o
que eu fazia – paravam à frente e arrumavam o cabelo, ajeitavam a roupa ou se olhavam
simplesmente. Curiosa, continuei olhando e fui descobrindo que, enquanto se fitavam no
espelho, vigiavam a porta da sala de professores ou da coordenação. Notei que, às vezes,
furtivamente, um ou mais alunos desciam a escada lateral, que dava para o pátio. Eles fu-
giam das salas de aula! Eles controlavam o retorno de professores que tinham se ausentado
das salas ou a chegada da coordenadora no espaço de circulação, pela imagem do espelho,
enquanto se olhavam nele. Era, também, um jeito de vigiar colegas que queriam ver, sem
dar ‘pista’ que estavam olhando. Conversando com uma auxiliar de serviços gerais, per-
guntei-lhe de quem fora a ideia de colocar o espelho no pátio interno e ela me disse que
fora dela: o espelho, no banheiro, vivia rabiscado de batom, de pincel hidrográfico. Era,
também, motivo para aglomeração no banheiro feminino (sujando-o mais, causando bal-
búrdia lá dentro, onde não se podia ver). Então, ela resolveu colocá-lo lá. Meio sorrindo,
me disse que já havia percebido que os alunos usavam-no para controlar o movimento
no pátio interno. Conversei com a coordenadora procurando saber o que ela achava do
espelho na circulação. Ela disse que nunca havia pensado naquilo. Os professores acharam
graça em minha observação: ele estava lá há tanto tempo que ninguém o notava a não
ser para mandar os meninos saírem de lá. Os estagiários também me olharam meio que
em dúvida: E daí? Mas alguns passaram a observar e me diziam: ‘Até os rapazes se olham
nele’. Os alunos da escola só fizeram rir quando perguntei o que achavam do espelho no
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corredor. Eu achei o espelho inesquecível. Ele me fez pensar nas paisagens compostas por
nós. Também me trouxe Certeau (1994), com sua compreensão de táticas e estratégias:
o controle de uns e de outros, ações e reações, usos e fazeres. O espelho me disse também
de autoestima, de vaidades. Ele me fez pensar no que dizem e deixam de dizer as paredes
da escola (nem um cartaz nas paredes, só o espelho) e o silencioso grito dos arranjos do
cotidiano na arquitetura escolar. O caso do espelho acabou quando voltamos em outro
semestre. Não estava mais lá. Eu me senti culpada: o inesquecível para mim era invisível
para muitos e ao fazê-lo visível, ele sumiu...
São essas “descobertas” dos cotidianos da escola que revelam o intrincado des-
tes cotidianos que ensinam e que deixam aprender. Pergunto-me hoje: Será que os
professores, de fato, não sabiam dos jogos de apreensão da sua aproximação pelo es-
pelho? Talvez em sua azáfama diária, este fosse mais um dos fatos com os quais esta-
belecessem jogos de poder com alunos? Estratégias, táticas, astúcias certeaunianas...
(CERTEAU, 1994) Indagar os cotidianos com esses acontecimentos não aprisiona
respostas, liberta possíveis descobertas, nem sempre animadoras...
Tenho 40 alunos, em média, nas salas de aula, numa sucessão de uma hora para cada
uma, até alcançar cinco aulas num turno. Começo a aula com um cumprimento e passo
à leitura do livro e explicações. Quando vejo que estão cansados, peço para abaixarem as
cabeças e ficarem cinco minutos em silêncio. Ninguém sabe como consigo isto. É só não dar
entrada. Assim que puder, saio desta vida. Vou esquecer isto. Isto não me interessa como
formação. Isto me causa deformação. (Professor parceiro na escola – 2007)
Não me interessam essas coisas de didática, de pensar o valor de ensinar a Geografia. Inte-
ressa-me que os alunos aprendam, se destaquem na escola, nos concursos. Aí preciso saber
Geografia, isto é que importa. Quem sabe a matéria dá boas aulas. A técnica é se atuali-
zar, saber lidar com as mídias, com competência. E impor respeito. O resto, professora, é
show. Aprende quem vê e quem quer fazer. Eu nasci sabendo! (Professor de estágio – Rio
Grande do Sul)
Alguns professores perdem a condição de se fazerem narradores, na concepção
de Benjamin (1994), porque fazem do seu narrar um modelo que exigem ser seguido,
ignorando a impossibilidade de transferir experiência ou formação. (JOSSO, 2004)
Diferentemente, há professores e professoras que são fetiales e expandem as zo-
nas de fronteiras, numa espécie de “corrida de bastão” na qual apanham o aprendido
e tentam levá-lo até onde podem, na certeza de que outros corredores continuarão
a levar suas crenças até mais adiante. É nesta equipe em que me engajo. O modo de
carregar o bastão muda, o suor do trabalho de levá-lo à frente o impregna com outras
substâncias que o metamorfoseiam, os ventos dos espaçostempos por onde correm o
bafejam com odores novos, texturizam-no com poeira cósmica de outros saberes e,
então, o bastão já não é mais o mesmo. Por isso, às vezes, o perdemos ou nos surpre-
endemos porque ele está tão diferente do que foi antes...
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Fica-me a esperança, quando vejo alunos dessa geração como narradores, pe-
gando o bastão e correndo com ele, criando novas histórias, libertos de modelos, de
prescrições que aprisionam. Vejo-os tornando os bastões em discos de luzes, gestadas
como cintilâncias de novas propostas, de inventivas apostas, promessas plenas de
há-de-vir.
Na escola, os cotidianos são feitos de matéria de vida. Os sonhos habitam os
desejos e movem ações para tornar os cotidianos mais possíveis de se viver, pela es-
perança em mudanças, pela alegria de conquistas, pela aprendizagem de superações.
O dia parece ter voado. Reorganizei os registros dos estudos em campo. Separei e-mails.
Coletei, em uma pasta, cópias da legislação de ECL. Li num relance o desabafo de uma
professora de escola sobre suas condições de trabalho que dificultam o seu bem-fazer do-
cente. Ao olhar para fora, o entardecer ficou nostálgico. Lembrei-me da professora, vendo-
me no espelho da vida: meu imenso cansaço, depois de três turnos de aulas, durante tantos
anos. Pela janela da minha sala, num relance, vi chegando homens e mulheres para as
aulas do noturno e voltei ao presente. Estou na universidade desde cedo. O almoço foi um
lanche. O livro que eu queria ler pedi emprestado. Olhei as horas e vi que acabara o hiato
entre os afazeres. Outra turma de estágio. Um batom, um perfume. Como arrumei os pa-
péis, pensei que devia me arrumar também para continuar a vida na pesquisa em zonas de
fronteiras: juntei meu passaporte de migrante híbrida e dei uma mexida em minha mala.
Acomodei desejos de leituras para quando for possível. Inventei espaços para portfólios,
bilhetes, e-mails, equilibrei um GPS6 num cantinho para não ficar perdida entre tantas
coisas para aprender, dobrei direitinho um mapa de pesquisa, guardando-o no meio do
meu diário, enchi de novo meu cantil de paciência com uma fórmula potente para escuta
sensível. Amarrei firme algumas promessas como mochila, nas costas, para não perder a
noção de seu peso em minha vida. Preparei o despertador para chamadas pontuais: horas
adiantadas para a travessia de amplidões, horas tardias para descansos entre múltiplas ca-
minhadas. Bem escondido, no meio de tantas coisas recém-(re)arrumadas para a ‘viagem’,
guardei um naco grande de coragem, misturada a um bom punhado de esperanças. Achei
(acho) que iria (vou) precisar muito delas...
Assim, revendo meu caminhar nas zonas de fronteiras, aqui narrados num fei-
xe de lembranças, que inclui minha história como menina, como mulherprofessora,
penso que não fecho um círculo, aspiro uma espiral. Quero sonhar novos atos de uto-
pias, quero (re)tratos de outras promessas, quero escre(vi)ver novas histórias, mesmo
em relevos rugosos. Mais vale inundar vales de sol, perscrutar baías verdes de espe-
ranças, procurar por baixo de pedras em córregos alegres. Desejo que o licenciando
e a professora se sintam acolhidos nessas narrativas, reconhecendo o valor de expe-
riências que trançam entre vozes silenciadas e outras que teimam em se fazer ouvir.
6 GPS – Global Positioning System (Sistema de Posicionamento Global). aparelho que permite indicar a localiza-
ção precisa de um objeto, de um sujeito ou de um lugar por meio do sistema que lhe dá o nome.
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Volto às primeiras linhas desta minha narrativa e desejo mais do que já tive:
ouso tomar a sapatilha para ensaiar novas (an)danças, migrante que sou, fetiale que
me proponho continuar sendo, em trocas, em zonas de fronteiras, como poetiza em
prosa, Calvino (2009, p. 38-39).
A oitenta milhas de distância contra o vento noroeste, atinge-se
a cidade de Eufêmia, onde os mercadores de sete nações conver-
gem em todos os solstícios e equinócios. Mas o que leva a subir
os rios e atravessar os desertos para vir até aqui não é apenas o
comércio das mesmas mercadorias [...] Não é apenas para com-
prar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite,
ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos
ou barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra
que se diz – como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”,
“sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de
irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E [...] na
longa viagem de retorno, quando [...] bambaleando nos camelos
ou nos juncos, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o
lobo terá se transformado em um outro lobo, a irmã numa irmã
diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia,
a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e
equinócios.
Referências
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96 | Marisa Terezinha Rosa Valladares
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O estágio no percurso formativo docente: compartilhando
saberes, memórias e histórias
Solange Lucas Ribeiro
Introdução
A complexidade da prática docente contemporânea implica em uma maior re-
flexão dos formadores no/sobre o fazer docente no processo de formação inicial dos
professores, isto é, a graduação. Para tanto, é necessário atentar para os contextos de
formação, academia/escola básica e para os sujeitos envolvidos. E, aqui, quero dar
visibilidade ao estágio como um processo de ensino/aprendizagem em que docentes
e discentes aprendem, desde que esse componente curricular transcenda a dimensão
burocrática, constituindo-se em um momento de crescimento para estagiários e pro-
fessores, tanto os da escola básica quanto os professores universitários supervisores
de estágio. Para os estagiários, porque propicia uma melhor formação, ao aproxi-
má-los da realidade do futuro campo de atuação, para os professores da escola bá-
sica, pela possibilidade de compartilhar saberes com os estagiários, rever e atualizar
sua prática, e, para nós, professores orientadores, porque nos permite avaliar nossa
prática, sinalizando as lacunas da formação de nossos alunos, apontando às novas
demandas da formação, mais compatíveis com a realidade, com vistas ao redimen-
sionamento da ação docente.
O presente texto tem como objetivos conhecer, analisar e interpretar relatos de
histórias de vida que permeiam e influenciam os percursos formativos dos estudan-
tes, bem como se o estágio tem sido uma experiência significativa para a construção
da identidade e para a formação do futuro docente. Para tanto, analisa diários re-
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flexivos e memoriais elaborados por estudantes, no contexto da formação inicial de
licenciandos do curso de Geografia, nos estágios supervisionados.
Memórias e histórias: a importância dos registros no estágio
Considerando que na formação do sujeito aprendente, epistêmico, a reflexão
é indispensável para que a vivência se constitua de fato uma experiência, pois como
nos adverte Josso (2010, p. 48), “[...] vivemos uma infinitude de transações, de vi-
vências; essas vivências atingem o status de experiências a partir do momento que
fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado,
percebido e sentido”. Assim, a produção de diários reflexivos e memoriais pelos alu-
nos, durante os estágios, assume uma importância ímpar, porque propicia a reflexão,
contribuindo de forma significativa para o processo de formação inicial, permitindo
refletir na e sobre as ações e situações experienciadas nas escolas, campos de estágio,
e nas aulas desse componente curricular.
Nessa linha de pensamento, Zabalza (1994, p. 95) complementa que o ato de
escrever sobre uma situação vivenciada “[...] arrasta consigo o fato de a reflexão ser
condição inerente e necessária à sua redação” e ressalta que “[...] é o diálogo que o
professor, através da leitura e da reflexão, trava consigo mesmo acerca da sua atuação
[...]”, que permite revê-la, com certo distanciamento do momento em que tal situação
ocorre. Daí, a importância dos registros. No caso do presente estudo, os diários e me-
moriais, pois segundo o referido autor, o fato de escrever implica em reflexão, em um
referencial, contemplando um caráter histórico e longitudinal da narração.
Nesse sentido, o ato de escrever propicia a aproximação teoria/prática, pensa-
mento/ação, identificando e questionando as lacunas de sua atuação, os problemas
no/do cotidiano escolar e, enfim, oportuniza ressignificar sua prática, bem como
construir a sua identidade e autonomia docentes.
No delineamento dessas reflexões, o memorial de formação como registro de
um processo, de uma travessia, de uma lembrança refletida de acontecimentos, em
que o sujeito é protagonista e o autor é, ao mesmo tempo, escritor/narrador/perso-
nagem da história, ganha relevância, por ser uma forma de registro de vivências,
experiências, memórias e reflexões que podem tornar público o que pensam e sen-
tem os futuros profissionais, propiciando difundir o conhecimento produzido em
seu cotidiano. Além disso, por ser um gênero textual predominantemente narrativo,
circunstanciado e analítico, que combina elementos de textos narrativos com ele-
mentos de textos expositivos, teóricos, que apresentam conceitos e ideias, abre dife-
rentes possibilidades para um tratamento mais literário, ou mais reflexivo, ou ainda,
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a combinação de ambos, a depender das memórias e das escolhas do autor. (PRADO;
SOLIGO, 2007)
Desse modo, permite ao licenciando ou ao professor, ao escrever/registrar sua
prática, repensar, perceber, confrontar e questionar, tanto a sua formação inicial
quanto o ser professor e, mais especificamente, ser professor de Geografia. Nesse
sentido, as narrativas se tornam um importante instrumento para o entendimento
de fatores que podem obstaculizar ou potencializar os processos de formação inicial,
foco central desse artigo, embora reconheça que o processo de profissionalização do-
cente não se esgota na formação inicial, mas é um continuum. De igual modo, Chené
(2010, p. 132) destaca que “[...] se o formador torna possível que o autor da formação
seja também autor de um discurso sobre sua formação, este último terá acesso, por
sua palavra, ao sentido que dá à sua formação e, mais ainda, a si próprio”.
Desse modo, tais narrativas nos permitem conhecer fatores que podem in-
fluenciar na opção pelo curso e, também, na construção da identidade do professor,
na sua formação e, consequentemente, na sua atuação futura como profissional e, o
que é mais importante, dar vez e voz aos estudantes, que não costumam ser ouvidos,
pois há quase uma presunção de estudiosos da academia de teorizar sobre a formação
docente ou sobre a escola básica de forma bastante assimétrica, sem ouvir segmentos
importantes que vivenciam esses cotidianos. Sobre isso, Cunha (2010, p. 74) acres-
centa que
[...] uma das possíveis causas situa-se na autoridade cultural da
universidade, que assume certa soberba que a estimula a não
lançar um olhar para si mesma, enquanto se autoriza a teorizar
sobre os outros. A universidade torna-se hábil em indicar as me-
todologias e teorias que a escola básica deve assumir, mas pouco
disposta a colocar na berlinda os seus próprios processos de en-
sinar e aprender
Assim, na tentativa de reverter ou minimizar essa realidade, é preciso que nos
pautemos na perspectiva thompsiana de escrever “a história vista de baixo”, ou seja,
levando em conta quem está do outro lado. Dessa forma, em consonância com o
pensamento de Thompson (1965 apud SHARPE, 1992, p. 41-42), faz-se necessário
resgatar o pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do
tear manual obsoleto, o artesão utopista [...]. Suas habilidades e
tradições podem ter-se tornado moribundas. Sua hostilidade ao
novo industrialismo pode ter-se tornado retrógrada. Seus ideais
comunitários podem ter-se tornado imprudentes. Mas eles vive-
ram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não.
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Nessa perspectiva de se escrever “a história vista de baixo”, resgatando as expe-
riências das pessoas que vivenciam de fato a situação, a exemplo do soldado que está
à frente da batalha e não só a visão do comandante, porque, a partir das necessidades
desses sujeitos, é possível um conhecimento mais aprofundado e compatível com a
realidade escolar, para que possamos dialogar com outro e não apenas falar para o
outro. Assim, acreditamos que o processo de escuta ao estudante é imprescindível
para conhecermos o que interfere em sua formação.
Paulo Freire (2004) também compartilha dessa preocupação ao formular a pe-
dagogia do oprimido, do silenciado, porque “[...] o desrespeito à leitura de mundo do
educando revela o gosto elitista, portanto, antidemocrático, do educador que, desta
forma, não escutando o educando, com ele não fala. Nele deposita seus comunica-
dos”. (FREIRE, 2004, p. 123) Ademais, acrescenta que ensinar exige saber escutar,
pois não é falando aos outros, de cima para baixo, como donos da verdade que apren-
demos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles.
É nesse contexto que muitos teóricos, estudiosos do campo da formação docente,
“[...] subvertendo a lógica que predominava na pesquisa educacional, esvaziada dos
sujeitos que protagonizam o processo ensino-aprendizagem” (MIGNOT, 2007, p. 47),
ampliam o interesse pelas memórias e narrativas de futuros professores ou de profis-
sionais que já atuam, procurando saber o que influencia na escolha pelos cursos de
licenciatura e, consequentemente, no ser professor, bem como as lacunas de sua for-
mação, na perspectiva daqueles que experienciam a sala, a cultura, os rituais, enfim, o
cotidiano da escola básica quer seja como estagiário, quer seja como professor.
As narrativas possibilitam conhecer e compreender várias dimensões da for-
mação docente, pois como esclarece Souza (2007, p. 3):
o trabalho, centrado nas histórias de vida, diários biográficos e
narrativas de formação, adota, além da reflexividade, outros as-
pectos e questões relativas à subjetividade e à importância de se
ouvir a voz do professor ou compreender o sentido da investi-
gação-formação, centrada na abordagem experiencial, por par-
tir da teoria da atividade do sujeito, que aprende a partir da sua
própria história
O referido autor destaca ainda que, nas últimas décadas, o discurso acadêmico
de valorização da pesquisa referente à formação de professores e ao seu desenvolvi-
mento profissional, articulando-se com as categorias teóricas no campo dos saberes
docentes, tais como identidade, história de vida, profissionalização e desenvolvimen-
tos pessoal e profissional vêm se intensificando bastante, acompanhando um movi-
mento internacional de formação ao longo da vida, que toma a experiência do sujeito
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adulto como fonte de conhecimento e de formação, denominada de “abordagem ex-
periencial”. Assim, as implicações pessoais e as marcas construídas na trajetória indi-
vidual/coletiva, expressas nos relatos escritos, revelam aprendizagens da formação e
sobre a profissão. Morin (2005, p. 47) nos lembra que
conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e
não separá-lo dele. Como vimos, todo conhecimento deve con-
textualizar seu objeto, para ser pertinente. Quem somos? É in-
separável de onde estamos? De onde viemos? Para onde vamos?
Interrogar nossa condição humana implica questionar primeiro
nossa posição no mundo.
No quadro dessas reflexões, é válido destacar que nos estágios supervisionados
em Geografia, com o objetivo de identificar elementos e fatores que mais influencia-
ram na escolha pelo curso de licenciatura em Geografia, para tornar-se um professor,
bem como as fragilidades e potencialidades da formação inicial, com vistas a, respec-
tivamente, minimizá-las ou fortalecê-las, foi solicitada a escrita de um memorial de
formação e de diários reflexivos sobre experiências no estágio. Tais narrativas foram
muito reveladoras e, por vezes, impactantes. Alguns excertos foram analisados a seguir.
As narrativas no estágio: entrelaçando histórias de vida e
formação docente
Uma identidade profissional se constrói a partir da significação social da pro-
fissão, da revisão constante desses significados sociais e das tradições. Essa identida-
de se constrói, também, através do significado que cada professor, enquanto ator ou
autor, confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu
modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus
saberes, de suas angústias, de seus anseios e do sentido que tem em sua vida o ser
professor. A identidade é construída ao longo de sua trajetória como profissional do
magistério. No entanto, é no processo de sua formação que são consolidadas as op-
ções e intenções da profissão. Assim, a identidade vai sendo construída com as expe-
riências, com a história pessoal, no coletivo e na sociedade. (PIMENTA; LIMA, 2004)
A partir dessas considerações, importa saber como a história pessoal e o con-
texto social do licenciando implicam nessa opção pelo curso, bem como na constru-
ção da identidade docente e no ser professor de Geografia, já que essa área de conhe-
cimento tem sido desvalorizada, por motivos diversos, a exemplo do que esclarece
Cacete (2002, p. 206)
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[...] Conforme verificamos em nossa investigação sobre os mo-
tivos da escolha do curso de licenciatura em Geografia é muito
provável que a forma como se ensina e a “ideia” que se constrói
acerca da Geografia como disciplina escolar, sejam determinante
na escolha (ou não) pelo curso de Geografia no nível superior.
Assim, a criação de uma demanda para os cursos superiores de
Geografia passa também pelo redimensionamento do ensino de
Geografia na escola básica cuja formação adequada de professo-
res é requisito básico para tal intento.
Nos memoriais produzidos, é possível constatar que muitos licenciandos não
fizeram a opção pelo curso de licenciatura em Geografia por um desejo próprio, por
vocação, que nas palavras de Rubem Alves (2012), significa “um chamado interior de
amor: chamado de amor por um ‘fazer’”, mas fizeram-na por facilidade de ingresso,
por fatores econômicos como indicam alguns fragmentos dos memoriais:
Para ser sincera, nunca tive vontade de ser professora, sempre achei que não tinha o dom
de ensinar, mas precisava passar em uma universidade pública e, nas licenciaturas, a con-
corrência era mais baixa. (E1)
Minha decisão era ingressar no curso de Psicologia na UFBA, o que tentei por dois anos
[...] Continuamente, ouvi que ser professor não era uma profissão que dava futuro. [...]
mas, apesar dessas palavras, eu descobri o quanto para mim é importante contribuir para
o aprendizado de alguém. (E2)
Fiz vestibular para Administração de empresas [...], contudo, a falta de preparo não per-
mitiu que uma das 40 vagas fosse minha. [...] a cidade em que me criei, no sertão, não tem
muitas opções de emprego e paga um dos melhores salários da região aos profissionais da
educação, o que me levava de vez em quando a pensar em ser professor. (E3)
Optei no vestibular por Enfermagem [...] tentei o curso durante 4 anos e meio e não fui
aprovada [...] aí surgiu a ideia de fazer Geografia, pensava em fazer bacharelado e migrar
depois para engenharia. Durante um estágio, na escola pública, confesso que nos primeiros
dias de aula fiquei assustada, principalmente, quando ia à sala dos professores e ouvia
“caia fora enquanto é tempo”, “você tem muita coragem, ser professor não é nada bom”.
[...]. Mas as dificuldades foram surgindo e quando conseguia superá-las era muito grati-
ficante. Os alunos gostaram de mim e me procuravam para conversar, pedir conselhos e
pude compreender o quanto é importante ser professor, vou concluir a licenciatura e pre-
tendo ser professora, quero fazer a diferença na sala de aula. (E4)
Um professor da universidade me disse: fique longe da sala dos professores, se não você
acaba desistindo do curso. (E7)
Os excertos anteriores evidenciam que existem múltiplas identidades nos alu-
nos das licenciaturas, mesmo tendo optado por esses cursos. Isso perpassa, dentre ou-
tros fatores, pela desvalorização do professor no contexto social. Considerando que
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a identidade do sujeito é (des)construída na interação com o meio sociocultural, no
qual os discursos são internalizados e vão imprimindo sentimentos acerca de si mes-
mo, do outro e do mundo que o cerca, os discursos circulantes e o status acadêmico
e social dos cursos trazem implicações negativas para a construção da identidade de
licenciandos/licenciados, isto é, no querer ser professor. Isso fica claro na narrativa da
licenciada E2 quando afirma que ouviu reiteradas vezes que “ser professor não dava
futuro a ninguém”. Isso talvez explique a opção de licenciandos em se autodefinirem
como futuros geógrafos, biólogos, historiadores e não como professores.
Dessa forma, a (des)construção da identidade profissional está na dependência
da valorização em relação à determinada categoria como, também, da remuneração
e das condições de trabalho que a sociedade lhe confere. Alguns relatos explicitam
situações de constrangimento frente à família e amigos, ao revelarem a opção pelos
cursos de licenciatura, a exemplo do que narra E6: “Quando disse que iria fazer Geo-
grafia, minha família e meus amigos ficaram surpresos e me perguntavam, insistente-
mente, ‘mas você além de escolher a profissão de professor ainda vai optar por Geogra-
fia, uma matéria super chata e decoreba?’”.
No fragmento anterior, entra um aspecto que merece destaque, a visão que ain-
da permeia o imaginário popular sobre a Geografia Escolar, como um saber mnemô-
nico, inútil, fragmentado, sem significado, acrítico, advinda da forma como essa dis-
ciplina foi/é ensinada na escola básica, apesar dos esforços de renovação, dessa área
de conhecimento, empreendidos nas últimas décadas, buscando atribuir significado
à Geografia que se ensina para os alunos. Para tanto, incluindo e destacando conte-
údos e dimensões importantes como, por exemplo, o lugar, a vida cotidiana, como
referência e escala de análise obrigatória, a articulação local-global, a questão am-
biental, a alfabetização cartográfica, a incorporação de outras formas de linguagem
e de leitura da realidade, possibilitando-lhes seu aprendizado, o desenvolvimento de
um raciocínio espacial e, enfim, uma educação geográfica. (CAVALCANTI, 2010)
Observamos, assim, que as reações dos familiares e amigos de E6, sobre a es-
colha pela licenciatura em Geografia, devem ter sua origem nas memórias que tais
pessoas têm das aulas de Geografia e da imagem da profissão docente, na atualidade.
Esse último aspecto é, muitas vezes, reforçado pelos próprios professores que, devido
à precarização do trabalho docente cuja complexidade é cada vez maior, transfor-
mam a sala dos professores em lócus de queixas, como evidenciam os relatos de E4
e E3, quando foram aconselhados pelo professor da unidade onde faziam estágio a
“cair fora enquanto é tempo”, ou ainda, advertidos por um docente da academia: “Fi-
que longe da sala dos professores, senão você acaba desistindo do curso”.
O excerto do memorial do licenciando E1 suscita uma acentuada preocupação,
pelo fato da opção ter sido feita em decorrência da facilidade de ingresso na licencia-
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tura, devido à baixa concorrência. Tal fato deve-se a uma imbricação de fatores que
também estão expressos nos fragmentos de memoriais citados, como o baixo status
social da profissão, a baixa remuneração, dentre outros e, em consequência, a pouca
demanda.
Entretanto, é válido ressaltar que, apesar da escolha inicial não ter sido por con-
siderar a licenciatura em Geografia objeto de desejo, muitos acabam, durante o curso
de licenciatura, desconstruindo a imagem negativa da Geografia e, principalmente,
da sala de aula, durante o estágio de regência. Durante a socialização dos diários re-
flexivos, uma licencianda relatou:
Fui para a regência apavorada, pois peguei uma turma que fazia parte do ‘corredor da
morte’ – local assim denominado por concentrar as turmas de alunos repetentes ou que
apresentavam distorção série/idade, considerados ‘bagunceiros’, que ocupavam as piores
salas da escola. Agora, finalizando o estágio, concluo que dei sorte, eles gostaram de mim,
talvez pela forma respeitosa e afetiva com que procurei tratá-los, me procuravam para
conversar, pediam conselhos, acabei gostando da turma e percebendo que a situação não
era tão feia como diziam e me sentindo importante. (E4)
Assim, observamos que o estágio também oportuniza desconstruir mitos, em
relação aos alunos, principalmente, da escola pública, porque se costuma rotulá-los
como aqueles que nada querem, que nada sabem, onde é impossível se realizar um
bom trabalho. Essa ideia é, muitas vezes, veiculada pelos próprios professores que,
devido às frustrações com a carreira docente, estendem tais frustrações para os que
nela pretendem ingressar.
Diante de situações adversas, como as relatadas nos memoriais ou diários,
quase todos concordam com Alarcão (2001), de que a escola precisa de uma mu-
dança de paradigmas. Porém, para mudá-la, é preciso modificar o pensamento so-
bre ela. É preciso refletir sobre a vida que lá se vive, em uma atitude de diálogo com
os problemas e as frustrações, os sucessos e os fracassos, mas também em diálogo
com o pensamento, o próprio e o dos outros. A autora, fazendo uma analogia com
a expressão “professor-reflexivo”, desenvolve o conceito de escola reflexiva, conce-
bendo-a como
[...] a escola que se pensa e que se avalia em seu projeto educa-
tivo é uma organização aprendente. [...] Aberta à comunidade
exterior, dialoga com ela. Atenta à comunidade interior, envolve
todos na construção do clima da escola, na definição e na reali-
zação do seu projeto, na avaliação da sua qualidade educativa.
(ALARCÃO, 2001, p. 26)
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Nesse contexto, a academia também deve se inserir para dar a sua contribui-
ção. Para tanto, precisa rever paradigmas, abrir-se para a escola básica, com base em
interações simétricas e dialógicas. E, nessa direção, o componente estágio supervisio-
nado apresenta-se como uma possibilidade, porque possibilita trocar experiências,
pesquisar, trabalhar saberes, habilidades, objetivos, posturas, analisar representações
sociais, tendo por base uma prática crítica, planejada, reflexiva, sobretudo quando
usa instrumentos que oportunizam aos sujeitos narrar seus dilemas, refletindo-os
com seus pares e professores na busca coletiva e propositiva para a solução de pro-
blemas.
Sól (2004, p. 100) ratifica essa afirmação ao enfatizar “o potencial que possui
a reflexão coletiva sistematizada na localização de questões, reflexões e mudanças”,
evitando que o futuro professor reproduza, ingenuamente, o discurso vigente e tome
consciência da relevância de seu compromisso social. “É na leitura crítica da profis-
são diante das realidades sociais, que se buscam os referenciais para modificá-los”.
(PIMENTA, 1999, p. 19) Esse exercício de reflexão, de aprender com o outro, expe-
rienciar novos papéis e desenvolver trabalho colaborativo pode reconstruir identida-
des, desde que transcenda a dimensão da crítica, da denúncia e seja mais propositiva.
A relação universidade/escola básica, como já foi dito anteriormente, tem se
caracterizado pela assimetria, quando licenciandos e professores adentram o espaço
escolar, a sala de aula, apontam as falhas, os aspectos negativos da ação docente, da
gestão da escola, mas não apresentam contrapartida à escola. Como diz um colega,
também professor de estágio supervisionado, é uma relação “vampiresca”, que vai
desgastando cada vez mais a relação e a parceria universidade/escola como mostra o
fragmento do diário de estagiária (E9), no estágio I, de observação do espaço escolar,
ao descrever seu primeiro contato com a escola: “Nunca fui tão mal recebida em um
lugar, parecia que eu estava invadindo e perturbando a ordem pública”.
Nessa relação, há uma culpabilização de uma instância para a outra, pelas di-
ficuldades, pelos problemas e insucessos que permeiam os estágios, em que ambas
resistem a fazer a mea culpa.
Frente a essa situação, surgem, inevitavelmente, os questionamentos: O estágio
tem se constituído uma experiência significativa para a formação docente ou apenas
o cumprimento de uma exigência legal, burocrática? Alguns, exageradamente, suge-
rem até o fim do estágio.
No entanto, Borges (2010) ressalta que o estágio supervisionado pode dar uma
importante contribuição, visto que é um momento privilegiado de contato com a sala
de aula, tendo a articulação teoria/prática como um princípio do processo formativo
e propõe a predisposição dos segmentos envolvidos e das instituições formativas para
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romperem com o isolacionismo e com territórios do conhecimento fortemente deli-
mitados, destacando como uma possibilidade o trabalho coletivo.
Creio que não podemos esquecer a importância desse componente curricular,
no entanto, precisamos exercitar a resiliência, tão necessária ante a complexidade
da prática docente, em que os desafios da escola e da formação se multiplicam e as
competências exigidas ao professor se ampliam, para que ele possa responder às múl-
tiplas e emergentes demandas. Dentre essas, ressaltamos a questão do atendimento à
diversidade, visto que a escola sempre buscou e valorizou a homogeneidade. Diante
disso, toda a estrutura da escola foi/é pensada e planejada para isso. Na contempora-
neidade, essa diversidade tem se acentuado, com a implantação e implementação da
política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva (2008), em que os
alunos, com deficiências sensoriais, físicas e transtornos globais do desenvolvimento
passam a ser atendidos na rede regular de ensino.
Entretanto, apesar do incremento dessa política é oportuno destacar que o tra-
balho do professor ainda é muito solitário. Por isso, são compreensíveis os desabafos
relatados como, por exemplo, no memorial de E6, em que um docente na sala dos
professores diz “Você é corajosa em escolher ser professora, nos dias de hoje, pois, como
se não bastasse tudo que a gente enfrenta, agora, tenho até que ensinar a cegos e surdos”.
(E9)
No bojo dessas reflexões, o estágio como componente que possibilita a articu-
lação teoria-prática, a pesquisa colaborativa, permite-nos desenvolver as três dimen-
sões consideradas importantes e necessárias à formação: a dimensão dos saberes, que
se referem aos conhecimentos teóricos já construídos, como os processos investiga-
tivos em contextos reais, isto é, a partir de um processo de escuta dos problemas do
cotidiano escolar, a dimensão das competências, ou seja, o saber fazer para os proces-
sos de intervenção, e a dimensão das atitudes, para que não nos centremos no déficit,
mas nas potencialidades, no que o estudante é capaz de fazer. (RODRIGUES, 2008) A
esse respeito, Miranda (2008, p. 16) também nos alerta de que “[...] não basta obser-
var e/ou denunciar, faz-se necessário enfrentar as situações e construir alternativas
de ação. O estágio é, portanto, uma ação educativa e social, uma forma de intervir na
realidade”. Sobre isso, Jesus (2008, p. 75) nos alerta que os
professores das escolas comuns vêm sendo despotencializados
em seu saber-fazer de diferentes maneiras, dentre as quais se des-
taca o discurso do “não-saber-lidar”, não estar preparado para
“trabalhar com a diversidade dos alunos”. [...] Duas questões se
colocam: como chegamos a constituir esse discurso de negação
e, “se os docentes não estão preparados”, o que é necessário para
tal?
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Nesse sentido, a autora defende a busca de práticas potencializadoras do sa-
ber-fazer. É preciso ir além do discurso do “não estar preparado” reivindicar e criar
condições para a reflexão individual e coletiva, problematizando e provocando mu-
danças que contribuam, dentre outras coisas, para a inclusão escolar.
O estágio, por ser uma prática supervisionada e que busca refletir as situações
-problema cotidianas, à luz da teoria, poderá dar uma significativa contribuição, des-
de que transcenda a dimensão da prática só como instrumentalização técnica ou
como uma imitação de modelos, formada a partir da observação, imitação e repro-
dução de modelos experienciados, ao longo da vida escolar e acadêmica. Essa prática
traz sérias implicações por ser conservadora de hábitos, ideias, valores, desconsi-
derando os novos contextos, as novas e complexas demandas da educação. E, nessa
perspectiva, o estágio, com uma carga horária de quatrocentas horas, se redimen-
sionado, inscreve-se no rol de possibilidades de ruptura da dicotomia teoria/prática,
ainda, tão presente no imaginário de alunos e até de professores.
Considerações finais
Os memoriais formativos, tanto na formação inicial quanto continuada, opor-
tunizam rever o percurso formativo para que, através de um processo de reflexão,
possamos compreender algumas particularidades inerentes à profissão docente e
potencializar o conhecimento de si e do outro, pois ao historicizar sua vida, o sujei-
to não o faz com base na cronologia dos fatos, mas na importância que esses fatos
tiveram para o mesmo. A seletividade de nossa memória filtra aquilo que para nós é
irrelevante, mantendo o que tem sentido.
Daí a importância que as narrativas orais e escritas dos licenciados ou profes-
sores têm, visto que, na tessitura de tais narrativas, há um realce do que realmente
marcou a vida desses sujeitos, funcionando como indicadores dos pontos que obsta-
culizam ou potencializam a formação da identidade e da prática docentes.
Nos últimos anos, o estágio tem sido alvo de inúmeras críticas e questionamen-
tos, sendo apontado como algo burocrático, que não cumpre a função para o qual
foi criado. Mas embora reconheçamos suas lacunas, continuamos a considerá-lo de
suma importância, e as narrativas dos alunos indicam isso. Entretanto, consideramos
a urgência de se rever posturas, com destaque em relação à academia, para que esta
não confisque para si o poder de única detentora do saber, verticalizando a relação
e falando de cima para baixo, mas aprenda a falar com os segmentos envolvidos no
estágio, inclusive, os professores da escola básica. Quando isso acontecer, o estágio se
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constituirá em lócus de possibilidades para o aprendizado de licenciandos, professo-
res regentes da escola e professores orientadores/supervisores de estágio.
Nessa perspectiva, todos têm a crescer. O licenciando, pela oportunidade de
aproximação da realidade de seu futuro campo de atuação, com os problemas e de-
safios que lhe esperam e com o apoio de profissionais experientes (professor regente
e professor supervisor de estágio) e dos próprios colegas, durante as aulas, com os
quais podem compartilhar a insegurança inicial, os dilemas, as angústias e a busca
de soluções. Os professores da escola básica porque podem dialogar com a academia,
partilhar discussões teóricas, avaliar sua própria prática e os professores supervisores
(universitários) também aprendem a conhecer as novas demandas da escola básica,
para rever as lacunas de seus alunos e ressignificar sua prática docente, fazendo uma
melhor articulação teoria/prática.
Nessa direção, tencionamos que as partes que compõem a formação docente,
se complementem, contemplando posturas que priorizam o diálogo, a troca de expe-
riências, a interação, a cooperação, enfim, o trabalho colaborativo, ultrapassando a
lógica aplicacionista da prática, concepção de estágio ainda tão presente na formação
de professores.
Argumentamos, ainda, em favor de uma postura colaborativa que parta do
princípio de que todos os envolvidos, em um contexto particular, trabalhem juntos
no sentido de lidar com as barreiras à educação, experimentadas pelos alunos, favo-
recendo a construção coletiva do conhecimento, sem negligenciar a atenção indi-
vidualizada, pois conhece as necessidades e potencialidades de cada um, conforme
orienta Ainscow (2009). É oportuno destacar que essa perspectiva de trabalho é im-
prescindível, quando pensamos em uma escola inclusiva.
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Segunda Parte
Histórias de Vida, Trajetórias de
Formação e Docência em Geografia
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Vivências e práticas na formação de professores
Antonio Carlos Pinheiro
Introdução
Escrever um texto cuja referencia é a memória pode parecer arriscado, prin-
cipalmente quando se trata das lembranças daquele que a escreve, no entanto são
recordações que também se referenciam em vivências e práticas ocorridas na atuação
em cursos de formação de professores em mais de 20 anos de trabalho nos cursos de
Pedagogia e Geografia.
Refletir a própria história de vida e as experiências vivenciadas e acumula-
das durante o exercício profissional é um processo que leva o sujeito que relata a
repensar suas ações no presente e no passado. Rememorar fatos (re)significando e
reeditá-los por meio das narrativas das experiências vividas e imaginadas represen-
ta uma reconstrução e uma reinvenção por meio da memória, reedição constante
da identidade que, por sua vez, é construída e reconstruída no presente numa re-
lação de exclusão e inclusão, ou seja, pode-se excluir pela recordação aquilo que
não foi significativo ou que simplesmente não queremos lembrar e incluir outros
fatos, dando nova cor para enfatizá-lo como algo importante. (PINHEIRO, 2013)
De qualquer forma, escolhemos, mesmo que inconscientemente, o que queremos
lembrar num processo seletivo e subjetivo. Como aponta Bosi (1994), pensar o
passado no presente ocorre por referenciais atuais, o momento já foi vivido num
tempo-espaço determinado e distante. Nessa perspectiva, recordar é um exercício
do aqui-agora, sempre presente.
Como professor, ingressei na escola básica em 1986 atuando até 1992, quando
saí para me dedicar exclusivamente ao ensino superior. Na formação de professores,
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trabalhei no antigo curso magistério na modalidade de ensino médio e em cursos su-
periores de Pedagogia e Geografia. Esse texto apresenta memórias e questionamentos
de práticas que relatam algumas experiências na Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-Campinas), de 1992 a 2003, na cidade de Campinas, em São Paulo,
na Universidade Federal de Goiás (UFG), de 2004 a 2007, na cidade de Goiânia, em
Goiás, na Universidade Federal de São Paulo, de 2007 a 2012, no campus Guarulhos,
São Paulo, e, atualmente, desde 2012, na Universidade Federal da Paraíba, em João
Pessoa. Em todas essas instituições, trabalhei com formação de professores nas mais
diversas modalidades, lidando com futuros profissionais dos anos iniciais do ensino
fundamental, professores especialistas para a segunda etapa do ensino fundamental e
médio, e também para a educação de jovens e adultos.
Essas andanças por diversas instituições em variadas regiões do país podem até
causar estranheza para algumas pessoas. Confesso que não foi premeditado, depois
de Campinas fui me deixando levar pelas circunstâncias da vida. Apesar das experi-
ências que tenho acumulado, evidencio ter a sensação de que sempre estou no come-
ço, ao mudar de cidade e de lugar de trabalho, acredito potencializar o aprendizado
entre as diferenças e semelhanças dos lugares, me permitindo pontuar aspectos para
discutir permanências e mudanças na formação de professores desde os anos iniciais
até o ensino médio. Além disso, a atuação na pós-graduação também me permite
apontar elementos para pensar a formação do professor do ensino superior. Nesse
artigo centro a atenção na graduação.
A formação do professor de Geografia, desde a década de 1970, tem sido
realizada de forma fragmentada e desprovida de um locus definido. Em algumas
Instituições de Ensino Superior (IES), encontra-se em institutos específicos, ou
seja, onde o curso de Geografia – licenciatura e bacharelado, ou apenas a licen-
ciatura – é ministrado. Em outras IES, são de responsabilidade dos centros ou das
faculdades de Educação. Em várias IES privadas, podem estar aglutinadas com
outros cursos.
Tradicionalmente, nos curso de licenciatura, as disciplinas pedagógicas são de
responsabilidade dos centros de Educação. Os alunos faziam (fazem) três anos nos
institutos específicos e, após este período, geralmente no quarto ano, recebiam (re-
cebem) um concentrado de disciplinas pedagógicas. Nesse conjunto, estão a prática
de ensino e o Estágio supervisionado. Essa organização curricular acabava (acaba)
desarticulando as disciplinas pedagógicas com as específicas da Geografia e, muitas
vezes, os professores desconheciam (desconhecem) as particularidades dos campos
de conhecimento. Esse modelo é chamado de 3+1.
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Do modelo tradicional às Diretrizes Curriculares Nacionais
Entrei na PUC-Campinas em 1990, aprovado em concurso público para atuar
nas disciplinas de Geografia econômica e Geografia humana II, no curso de Geogra-
fia, e na disciplina de Geografia humana e econômica no curso de Ciências Sociais.
Na época, nessa universidade, o curso de Geografia era apenas de licenciatura e o
modelo praticado era o 3+1. Por ter sido aluno de alguns professores do curso, du-
rante os mais de dez anos de atuação nessa universidade tive vários problemas de
relacionamento, principalmente por parte dos professores que já estavam no curso
quando estudava. Parece-me que nunca me aceitaram como parte do corpo docente,
exemplo era o tratamento nas reuniões e nos corredores do departamento, em geral
me ignoravam e tinha pouco espaço para expor minhas ideias.
Nessa época, participava das reuniões na delegacia de Ensino, onde conheci
as professoras Silvia Regina Mascarim e Maria Ligia Brandt, então assistentes peda-
gógicas de Geografia, ambas me integraram na discussão da proposta curricular do
estado de São Paulo, em destaque naquele momento. Por meio delas participei de
vários eventos e, desde 1989, iniciamos em Campinas o movimento para criação e
instalação da seção-Campinas da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB). Na-
quele tempo os debates entre os geógrafos eram acirrados, estávamos no auge da
Geografia crítica. No momento, as disputas se davam entre os que se diziam críticos e
os chamados tradicionais. Na prática, as discussões era uma disputa de poder, porque
todos estavam do mesmo lado, mas a briga era para afirmar quem era mais crítico.
Em geral, os professores da PUC-Campinas tinham um discurso que se apro-
ximava da Geografia crítica, porém algumas práticas se distanciavam das propostas
do grupo da AGB-Campinas. Hoje penso que o comportamento deles demonstrava
mais medo do que diferenças de ideias com as propostas da AGB. A partir dos mea-
dos da década de 1990, o curso da PUC-Campinas enfrentava uma crise: gradativa-
mente a cada ano havia menos candidatos para o vestibular, até que, no ano 2000, a
universidade decidiu fechar o curso. Como ainda faltavam algumas turmas para con-
cluir o curso, e nesse ano finalizava o mandato do atual coordenador do curso, sem
nenhum candidato, fui eleito coordenador. Claro que minha condução para a função
refletia o desinteresse dos professores antigos em resgatar o curso, já tinham perdido
a crença na retomada da Geografia na universidade. Antes disso, jamais deixariam
que assumisse tal cargo.
Aproveitando da experiência da escola básica, da militância na AGB, decidi
reformular o curso, apoiando nas discussões das Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCNs) e aproveitando para introduzir, juntamente com a licenciatura, o bacharelado.
As Diretrizes Curriculares Nacionais de Geografia foram aprovadas pelo parecer CNE/
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CES 492/2001 e homologado em 25 de janeiro de 2002. Além da mudança radical, ti-
nha que sensibilizar a reitoria para encampar a proposta. Nesse ano, assumi a disciplina
de prática de ensino e a de estágio supervisionado. Sem apoio dos antigos professores
e do Instituto de Ciências Humanas onde estava o curso de Geografia, aproveitei a
reestruturação da universidade e articulei o curso de Geografia, que passou a ser um
departamento, para ser aberto por um novo centro, o de Ciências Exatas e Ambientais.
Em 2001, com a reabertura do curso de Geografia, a PUC-Campinas ofereceu
60 vagas no vestibular, e o curso com novo formato teve todas as vagas preenchidas.
O aluno ingressante obtinha duas habilitações (bacharelado e licenciatura). Desde o
início, os graduandos tinham contato com as disciplinas pedagógicas e específicas da
Geografia. Segui na chefia do departamento até o final de 2002. Nesse ano, quando
os antigos professores perceberam o potencial do novo modelo de curso, decidiram
retomar o controle do departamento.
No novo modelo, ministrava as disciplinas de Educação, sociedade e natureza,
assim como prática de ensino de Geografia. Na primeira, optei por ações que pudes-
sem aproximar os alunos com a realidade local, realizamos trabalhos de campo na re-
gião de Campinas, articulando os conteúdos da sala de aula com problemas do coti-
diano. Geralmente, as temáticas eram eleitas pelos alunos. O propósito de incorporar
o trabalho de campo como metodologia objetivava desenvolver nos alunos determi-
nadas habilidades, como a capacidade de observação, análise da realidade de forma
concreta sistematizando o conteúdo desenvolvido na sala de aula e atuação como
geógrafo e educador social. Nessa perspectiva, estudar o lugar representava reunir
um conhecimento suficiente para poder compreender diversos problemas do local, e
assim sugerir algumas soluções. Além do estudo do lugar, tínhamos como proposta
realizar ações, em especial práticas educativas não formais, com a comunidade local.
Na disciplina de prática de ensino adotamos a pesquisa como metodologia para
a realização dos estágios nas escolas. Concebíamos o espaço escolar como um lu-
gar específico influenciado por um conjunto de fatores que deveriam ser analisados,
como as características do bairro, o perfil socioeconômico e cultural da comunida-
de envolvida, o meio ambiente circundante, a localização no contexto da cidade. A
orientação ia além de observar a prática dos professores da escola, pois além disso,
os estagiários deveriam aplicar os conhecimentos geográficos para contextualizar a
escola. Os critérios para a confecção dos relatórios finais dos estágios deveriam com-
preender as regras acadêmicas, não diferenciando de qualquer relatório de pesquisa.
Essa experiência demonstrou que a licenciatura não se diferencia em nada de
qualquer curso acadêmico de bacharelado. Ao incorporar os métodos da pesquisa
científica na formação do professor, notamos que potencializamos a preparação des-
se profissional, demonstrando que o professor pode utilizar dos métodos investigati-
116 | Antonio Carlos Pinheiro
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vos científicos na sua prática de ensino, sejam formais como não formais. Com isso, a
Geografia, no âmbito escolar, pode contribuir como disciplina e como conhecimento
de apoio para os professores e gestores conhecer a escola e o seu contexto espacial.
A formação de professores na universidade pública – um novo mundo
Conclui o mestrado em 1997 em Educação e, em 2003, o doutorado em Ge-
ociências na Unicamp, em Campinas. Nesse ano sai da PUC-Campinas e, em 2004,
realizei concurso na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Em Goiânia, na UFG, aprendi novos sotaques, senti outros aromas, ampla lu-
minosidade, outro clima. Quando cheguei a Goiânia, fazia muitas críticas, em geral,
referenciadas em minhas experiências enquanto estudante e docente nas universida-
des de São Paulo. Críticas que refletiam preconceitos baseados em um modo de fazer
as coisas que acreditava ser o certo. Pouco a pouco fui assimilando e sendo assimila-
do por aquele lugar. Foi em 2006 que tive o maior exemplo de solidariedade de meus
colegas, quando, em um curto período de tempo, sofri duas tragédias, a perda de dois
homens da minha vida, meu pai em maio e, em agosto, meu único irmão. Foi notável
a paciência de meus colegas, me substituindo, me ajudando com meus orientados,
demonstrando preocupação com meus sentimentos. Relato estes fatos para justificar
as atribulações que vivi naquele ano cujas influências refletiram na minha atuação
profissional. Tive que abandonar a coordenação do curso, pois fui obrigado a ficar
afastado da UFG durante um mês, além de minhas ausências mensais indo à Bragan-
ça Paulista para cuidar de minha mãe.
Na UFG, trabalhei no Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (Iesa), no cur-
so de graduação em Geografia e no programa de pós-graduação em Geografia. No
curso de Geografia, trabalhei com várias disciplinas eletivas de caráter pedagógico e
outras disciplinas de caráter optativo. Das disciplinas pedagógicas, destaco as de Di-
dática e prática de ensino de Geografia e a de Estágio supervisionado. Das disciplinas
optativas, trabalhei com a disciplina América Latina: estudos regionais, no mestrado,
ministrei em 2005 a disciplina de Geografia, mídia e práticas educativas e, em 2006,
no curso de especialização em Educação ambiental, a disciplina de Metodologia do
ensino superior.
Quando cheguei à UFG, o curso de Geografia estava em processo de reformu-
lação curricular, presenciei os embates entre aqueles que defendiam a postura que
para ser um bom professor bastava fazer um bom curso de bacharelado, ou seja, que a
formação clássica para um geógrafo garantia que o mesmo exercesse bem o magisté-
rio. Felizmente, os que pensavam assim não era a maioria, havia entre os professores
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um grupo que defendia a especificidade da formação do professor levando em conta
as sugestões das DCN. Entre as várias propostas do currículo proposto, destaco a
visão da pesquisa para a licenciatura. Na proposta, a pesquisa, além de constituir-se
como atividade acadêmica, é entendida como procedimento de ensino, podendo ser
difundida para todos os níveis escolares, devendo, como aponta o PPP/IESA/UFG
(2005, p. 12), “ser trabalhado como atitude de indagação sistemática e planejada dos
alunos, uma autocrítica e questionamento constante”. A pesquisa era entendida como
prática disseminada para todos os profissionais como instrumento de compreensão
e construção constante de conhecimentos da realidade. Nessa perspectiva, dissociar
a pesquisa do ensino na universidade é um grande equívoco, pois o papel desta ins-
tituição é promover a pesquisa em todos os cursos, seja para a formação do bacharel
como a do professor. Desse modo, capacitar para a pesquisa é função primordial da
escola básica e da universidade, considerando as devidas escalas de tratamento.
Das experiências com as várias disciplinas, destaco as trabalhadas na gradua-
ção, relacionadas à licenciatura. Estas disciplinas me proporcionaram uma aproxima-
ção com a realidade das escolas de Goiânia e de algumas cidades da região metropoli-
tana. Esse contato foi fundamental para conhecer vários espaços de vida. A partir das
observações, notei aspectos semelhantes nos comentários dos alunos na experiência
que tive na PUC-Campinas, como afirmações do tipo: os professores realizam seus
planos de trabalho com base nos livros didáticos, existem nas práticas dos professo-
res predominância de aulas expositivas, há a preocupação entre os professores com
o comportamento dos alunos, em geral reclamando das suas “indisciplinas”, entre
outras afirmações. Passei a refletir sobre as semelhanças entre os apontamentos dos
alunos da PUC e da UFG. Indagava: Como estas permanências podem sobrepor tem-
pos e espaços diferentes, mesmo tendo consciência das diferenças locais e temporais?
Será que existe uma força invisível que perdura nos discursos dos professores, ultra-
passado tempos e espaços? Como suas práticas cotidianas se diferenciam no tempo
-espaço escolar de lugares distintos?
Foi assim que resolvemos iniciar um trabalho de investigação considerando
as experiências, os saberes e as histórias de vida dos professores, indagando sobre a
escolha profissional, visão de educação e de escola. Este trabalho também levava em
conta as próprias visões dos estagiários. Com base nas suas observações e entrevistas
com os professores das escolas, passaram a revelar, por meio de suas experiências de
vários anos de escolarização, as suas concepções de educação e de escola. Entre as
permanências espaço-temporais, destacamos a força das disciplinas, tanto a concebi-
da como modelo de comportamento, como a que delimita um conjunto de conheci-
mentos. Esta predominância nos discursos dos professores revelava uma “estrutura”
ideal que se impunha como um modelo universal de como deve ser a escola, seja ela
em Campinas ou em Goiânia.
118 | Antonio Carlos Pinheiro
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A investigação que realizamos revelou diversas questões como: valorização da
hierarquia na distribuição dos alunos na sala de aula, separando os que sabem dos
que não consegue aprender – o ideal de um modelo curricular universal na tentativa
de homogeneizar os mesmos conteúdos para todos os alunos, entre outros aspectos.
No entanto, ao observar as práticas dos professores e suas relações com o saber-fazer
cotidiano, descobrimos situações ímpares, como o caso de uma professora que deci-
diu abolir o livro didático por considerá-lo difícil demais para seus alunos. A referida
professora utilizava recortes de revistas, jornais, desenhos, dramatização, saídas para
observar o entorno da escola. Segundo o estagiário, nem sempre ela sabia aproveitar
as riquezas das atividades que fazia, mas ele notava que havia entre ela e seus alunos
uma empatia de saberes comuns e um clima de felicidade compartilhada entre o gru-
po, e as pessoas estavam sempre dispostas a realizar tarefas cujas iniciativas surgiam
tanto da parte da professora como dos alunos.
Em Goiânia, também utilizei a metodologia da pesquisa nos estágios com re-
sultados positivos. Além disso, experimentei o trabalho coletivo. Além da docência
vivenciei a criação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Geográfica (Ne-
peg). Esse núcleo aglutinou pesquisadores e professores para discussão, organização
de eventos, publicação de resultados de pesquisa e de opinião. Foi uma experiência
única e muito exitosa, tanto que na atualidade o Nepeg aparece no cenário nacional
como referência nas discussões sobre o ensino de Geografia. Na UFG, trabalhei com
inúmeras pessoas, dentre elas destaco Lana Cavalcanti, Vanilton de Souza, Lucineide
Pires, Anna Maria Kovacs Khaoule e o inesquecível amigo Genésio Amorim, que nos
deixou em 2012.
Tardif (2002) afirma que os saberes profissionais dos professores são temporais,
estão relacionados com sua história de vida e, sobretudo, com sua história de vida
escolar. Antes mesmo de ser professor ele já experimentou a escola, adquiriu conhe-
cimentos específicos, vivenciou a prática docente dos seus professores, suas crenças,
a qual constitui parte da sua formação como professor. Assim, em cada local que
trabalhei, aprendi mais sobre a formação do professor e com isso ampliei a minha
própria formação.
A experiência na formação para professores dos anos iniciais do
ensino fundamental
Em 2007, fui trabalhar na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em
Guarulhos. Em parte por entusiasmo, mas fundamentalmente por necessidade de
cuidar da minha mãe que morava em Bragança Paulista, a 75 km de Guarulhos, e
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tinha ficado sozinha com o falecimento do meu pai e do meu irmão um ano antes.
Na verdade, não havia naquele momento uma função específica como docente na
área da Geografia no campus da Unifesp. Cheguei juntamente com todos os colegas
para inaugurar o campus, produto da ampliação da Unifesp no contexto do projeto
“Reuni”.1 Fui para o curso de Pedagogia.
Na Unifesp, em 2007, trabalhei com as práticas pedagógicas programadas
(PPP). A PPP é uma unidade curricular do curso de Pedagogia, organizada como um
programa de preceptorado cuja finalidade é proporcionar espaço para a aprendiza-
gem prática dos profissionais em formação, levando para o interior da universidade
a realidade educacional em sua complexidade, nas escalas local, regional, nacional e
global. A PPP tem um caráter prático, cada professor propõe uma temática e os alu-
nos aderem espontaneamente conforme seus interesses.
No início, trabalhei em conjunto com outros professores no mapeamento das
escolas da cidade de Guarulhos, estabelecendo contato com a prefeitura do municí-
pio. No segundo semestre, iniciei um projeto com um grupo de alunos de estudo do
bairro onde se localiza o campus, denominado de “Comunidade de aprendizagem:
estudo do meio no bairro dos Pimentas – Guarulhos” cujo objetivo central era iden-
tificar e conhecer os serviços educativos existentes no local, considerando as mo-
dalidades formais e não formais. Esse trabalho teve tanto um caráter de pesquisa
como possibilitou atividades de extensão. Com o propósito de aproximar os grupos
que desenvolviam práticas educativas não formais, realizamos vários encontros para
ouvir as lideranças do bairro. O bairro dos Pimentas é a maior área administrativa
do município e o mais populoso. No censo de 2000, o Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE) registrou um total de 132.450 habitantes, concentrando
12,35% do total do município. Nos últimos anos, o bairro tem recebido inúmeras
melhorias, tanto nas suas imediações, quanto internamente, porém, nos mapas de
inclusão/exclusão social, apresenta índices preocupantes. A metodologia utilizada foi
o trabalho de campo, que inicialmente não teve um roteiro predefinido. Com apoio
de um mapa: decidimos andar livremente pelo bairro, conversando com as pesso-
as, frequentando lugares públicos, como praças e feiras livres. Durante as saídas de
campo, registramos as observações, por meio de fotos, vídeo e relatórios individuais.
Em 2008, organizamos o projeto “Rede de ações educativas não formais no
bairro dos Pimentas”, gerando dois grupos para estudos de caso: um investigou um
1 O Reuni é um programa de apoio a planos de reestruturação e expansão das universidades federais, que tem
como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior. O Reuni foi instituído pelo
Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007, e é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educa-
ção (PDE). Disponível em: <http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25&I-
temid=28>. Acesso em: 20 mar. 2013.
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cursinho popular: o “Cursinho popular dos Pimentas”, e o outro, o “Programa Edu-
criança – um confronto entre o educar e o cuidar”.
Em 2009, organizamos o projeto: “Redes de ações educativas formais e não
formais no bairro dos Pimentas: o sistema de saúde e o espaço urbano”. O grupo do
vespertino trabalhou com as relações entre as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as
escolas do bairro dos Pimentas, e o grupo do período noturno, com as questões de
saúde do bairro e suas relações com as lideranças comunitárias e populares locais. As
questões que motivaram o estudo são: como as ações educativas em saúde, desenvol-
vidas no bairro, influenciam o lugar de vida da comunidade local? Quais as relações
das ações promovidas pelas UBS nas escolas e seus resultados para os alunos? Em
relação ao ensino formal, observamos que as ações praticadas pelas UBS nas escolas
se integram pouco com as áreas de conhecimento curricular e em geral têm sido
complementares as práticas escolares, interagindo de forma irregular com os conte-
údos ministrados.
Em 2010, desenvolvemos o projeto “Conexões entre práticas educativas for-
mais e não formais em ambiente em Guarulhos”. Esse projeto tinha um núcleo no
bairro de Bonsucesso, vizinho do bairro dos Pimentas, envolvendo várias escolas
municipais e a Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Guarulhos. Os
alunos da Unifesp visitaram três escolas participantes do projeto, para entrevistar
gestores e professores.
Também atuei no Programa de Residência Pedagógica (PRP) do Departamento
de Educação da Unifesp. A PRP é uma organização de estágio curricular que visa a
formar pedagogos. Esses profissionais em formação são paulatinamente inseridos em
diferentes contextos escolares, objetivando superar as desconexões existentes entre te-
oria e prática, usualmente presentes em sua formação. Ao longo do processo de for-
mação dos futuros professores, a partir da segunda metade do curso, os alunos experi-
mentam quatro tipos de modalidades de residência pedagógica: na educação infantil,
nos anos iniciais do ensino fundamental, na educação de jovens e adultos e na gestão
educacional. Os alunos residentes, com participações organizadas, vivenciam práticas
pedagógicas e de gestão das escolas públicas de educação básica, totalizando a carga
horária de 300 horas estabelecida pelas DCN do Ministério da Educação para o curso
de graduação em Pedagogia. (PINHEIRO; SILVA, 2010) Também ministrei a disciplina
de Conteúdo e metodologia para o ensino de Geografia para os alunos de Pedagogia.
Em todas as atividades realizadas na Unifesp, senti forte apego pela pesqui-
sa. O formato do curso, com as PPP e a residência pedagógica, possibilitava ações
investigativas de aproximação das discussões acadêmicas com a realidade. Na Uni-
fesp trabalhei com pessoas extremamente compromissadas com a educação em todas
as modalidades. Da minha experiência com o trabalho coletivo aprendido na UFG,
Vivências e práticas na formação de professores | 121
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acrescentei o trabalho colaborativo adquirido na Unifesp, em Guarulhos. Tenho boas
recordações e muito agradecimento pelos colegas com quem trabalhei, foi um apro-
fundamento na área da Educação e na crença que é possível haver solidariedade no
ambiente acadêmico. Agradeço a Célia Giglio, Claudia Vóvio, Claudia Barcellos e
Jorge Barcelos, entre outros colegas.
As formas tradicionais permanecem na formação e na prática dos
professores
Acredito que sempre é possível aprender mais, e que cada lugar onde traba-
lhamos apresentam novos desafios para pensar o presente e o futuro. Em 2011, me
afastei para realizar pós-doutorado. A pesquisa ocorreu na Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. Para a investigação foi utilizada as metodologias bio-
gráficas onde se insere o gênero de história de vida e autobiografia. Por meio de en-
trevistas, abordei a trajetória formativa dos professores – escolar e profissional, a prá-
tica docente e como trabalham a Geografia nos anos iniciais do ensino fundamental.
Os critérios para escolha dos professores foram definidos considerando aqueles que
concluíram o curso de Pedagogia da Unifesp – campus Guarulhos, mas anteriormen-
te cursaram o magistério na modalidade do ensino médio e atuam como professores
na escola básica dos anos iniciais do ensino fundamental.
A reflexão sobre os depoimentos dos professores, por meio da metodologia
autobiográfica, possibilitou conhecer a escola por dentro. A entrevista permitiu para
os professores entrevistados perceber como sua prática atual é influenciada pela sua
formação escolar e profissional. A pesquisa evidenciou que a formação dos profes-
sores ocorre desde que ele entra na escola nos anos iniciais, continuando por toda
sua escolarização e continua depois na sua prática docente. O gênero de pesquisa na
modalidade de história de vida aproximou o pesquisador do sujeito pesquisado, esta-
belecendo uma relação de proximidade e provocando em ambos uma reflexão sobre
sua trajetória escolar, formação profissional e prática docente.
A pesquisa com os quatros professores constatou que eles continuam a ser pagos
para dar aula e não para pensar. As poucas horas que restam para pensar, ele próprio
deseja fazer outras coisas. A quantidade de controle para atingir metas, seja propagada
pelas diretrizes ou seja pelos manuais que tentam controlar o trabalho do professor,
amplia suas atribuições na escola. Essas exigências estão praticamente no meio desses
constrangimentos moldados para reproduzir um modelo que não comporta o que o
próprio discurso oficial sugere ou o que as diretrizes recomendam, ou seja, que o pro-
fessor tenha autonomia para desenvolver seu trabalho na sala de aula e na escola.
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Os entrevistados, quando recordam da Geografia, lembram-se de temas como:
bairro, planeta, clima, planalto, vegetação. Quando perguntado sobre suas dificulda-
des para ensinar a matéria, respondem que não ensinam porque lembram pouco do
conteúdo. Alguns disseram que reconhece a importância desse conteúdo, mas da for-
ma como tiveram na escola, nem sempre consideravam significativo para a sua vida.
As dificuldades dos professores entrevistados para trabalhar com a Geografia
e outros componentes curriculares se relacionam com o ensino que tiveram na sua
formação básica escolar. Nesse sentido, as disciplinas específicas de metodologias
nos cursos de formação inicial são insuficientes. Com exceção da língua e da ma-
temática, todas as outras disciplinas são dadas em um semestre, impossibilitando o
aprofundamento dos conteúdos específicos de cada área. Os professores atribuem as
dificuldades para trabalhar com esses conteúdos nos anos iniciais, a sua formação
escolar. Diante disso, considera-se que é preciso repensar o ensino, em especial de
Geografia, em todas as modalidades, desde o ensino fundamental, passando pelo
ensino médio até a universidade. Também é fundamental repensar os cursos de li-
cenciatura de Geografia que darão o embasamento para que os professores e outros
profissionais compreendam a sua importância como instrumento para entender o
mundo. Os professores especialistas em Geografia na escola básica, por meio de um
ensino significativo, são essenciais na formação dos professores dos anos iniciais e
para a inserção dessa área na formação de todos os sujeitos na sociedade. A íntegra da
pesquisa foi publicada no livro Lugares de professores: vivências, formação e práticas
docentes nos anos iniciais do ensino fundamental, lançado em 2013.
Novos ares no calor do nordeste
Em 2011, fui convidado para me redistribuir para a Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Apesar de estar bem na Unifesp, em Guarulhos, ir para a UFPB seria
a possibilidade de voltar a ministrar prática de ensino no curso de Geografia, orientar
os alunos de licenciatura no estágio e voltar para a pós-graduação. Além disso, des-
frutar de uma qualidade de vida melhor, numa cidade mais tranquila.
Cheguei à UFPB em 2012, no início do ano, mas oficialmente fui empossado
em abril por falhas administrativas. Fui para o Centro de Educação, onde estão
todos os professores que atendem as licenciaturas. Logo que cheguei, passei a mi-
nistrar as disciplinas da licenciatura no curso de Geografia e de ensino de Geogra-
fia para os alunos de Pedagogia. Também fui credenciado na pós-graduação em
Geografia. Apesar do montante de trabalho, considero que no início atingi todos
os meus objetivos.
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Aos poucos, depois que cheguei na UFPB, fui conhecendo alguns professores,
em especial do Centro de Educação e da pós-graduação em Geografia, mas não fui
apresentado e nem recebido oficialmente pelas chefias e nem pelo conjunto dos pro-
fessores de Geografia, não conheço a maioria dos professores e acredito que também
não devem me conhecer. Em geral, percebi que não existe no departamento de Geo-
grafia a prática do acolhimento dos que ingressa: esse fato pode refletir no trabalho
coletivo.
Na medida em que fui conhecendo a universidade, passei a me inteirar de
alguns problemas, em especial do curso de Geografia. Consta que o mesmo até o
presente o curso não apresentou o projeto pedagógico de acordo com as DCN, prin-
cipalmente para a licenciatura. Ouvindo e observando professores e alunos, notei
o quanto o curso mantém uma postura tradicional reforçando a antiga dicotomia
– bacharelado versus licenciatura. Evidente que esse problema não é exclusivo dessa
universidade, porém depois de dez anos de publicação da DCN, percebe-se que a dis-
cussão sobre a formação do professor ainda é difícil. Será que o desinteresse pela ati-
vidade docente em vários cursos de graduação, revela desvinculação/desvalorização
entre as atividades de ensino-pesquisa na formação do professor? Desde que cheguei
à UFPB, os professores da área de ensino não foram convidados para participar de
reunião sobre a reformulação curricular. Por isso considero que depois de atravessar
dez anos de mudanças, voltei ao patamar que estava na PUC-Campinas. Evidente
que pretendemos, a partir destas impressões, iniciar uma investigação para entender
melhor a amplitude do problema.
Na UFPB, no Centro de Educação, me integrei a um grupo de pesquisa onde
posso desenvolver o trabalho coletivo. Na disciplina de Prática de ensino introduzi
a metodologia de pesquisa para a realização dos estágios. Além disso, iniciamos a
prática de saída de campo como possibilidade metodológica para discutir o ensino
de Geografia, articulando as discussões acadêmicas com a realidade local. A proposta
é pensar a Geografia como disciplina escolar e como conhecimento para entender o
contexto escolar para além da escola formal. Nessa perspectiva, praticamos a educa-
ção geográfica e a Geografia da escola concomitantemente, utilizando os métodos
científicos da pesquisa acadêmica na organização e confecção dos relatórios finais
dos estágios.
Considerações finais
Como disse no início desse artigo, minha opção foi apoiar na memória para
falar de saberes e práticas formativas. Mas para escrever este texto fiz consultas em
124 | Antonio Carlos Pinheiro
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arquivos e outros escritos passados. Realmente, é um risco falar da própria experiên-
cia, se desnudar frente ao outro. No entanto, essa rememoração é um registro de uma
experiência de vida, ainda que resumida, objetivando abordar um viés, nesse caso a
experiência com a formação de professores. Poderia falar de apenas um lugar, mas
quero demonstrar pela minha trajetória que tempo-espaço nem sempre andam jun-
tos. O que chamamos tradicional num tempo-espaço passado, permanece em outro
tempo-espaço presente.
Na PUC-Campinas, vivi o medo da mudança, a desconfiança. Por muitos anos
tive demasiado respeito por pessoas que hoje percebo o quanto se aproveitaram do
seu tempo na universidade para manter o controle sobre os outros. Por outro lado,
não hesitaram em mudar de opinião para garantir seus interesses, me refiro aqui ao
curso de Geografia, que por anos manteve o mesmo currículo e quando se esgotou
a ponto de se extinguir, praticamente o abandonaram. Porém, quando o novo curso
foi proposto, voltaram todos reivindicando seu lugar mantendo o mesmo comporta-
mento de sempre.
Na UFG, foi uma revolução, uma luta, uma disputa qualificada. Apesar das
dolorosas reuniões, as pessoas não fugiam da discussão, se enfrentavam e por fim en-
tenderam que é possível a convivência de ideias divergentes. Apesar das dificuldades,
creio que a melhor forma de trabalho coletivo é se encontrar de corpo e alma presen-
te e no presente. Hoje só ouço elogios do Iesa e, em especial, do grupo de ensino de
Geografia que lá trabalham.
Na Unifesp, éramos todos novatos naquele lugar, fomos nos descobrindo e ao
mesmo tempo o lugar onde estávamos. Havia os sonhadores, os idealizadores e aque-
les que odiavam o campus de Guarulhos, porém além das discussões coletivas existia
a possibilidade de trabalhar em grupos e com aqueles que me aproximei exerci o
trabalho colaborativo.
Na UFPB, ainda é cedo para fazer considerações categóricas, creio ser normal
a estranheza das pessoas, sobretudo em relação a uma pessoa que com quase 30 anos
de magistério mude tanto de lugar. Porém, acredito nas pessoas e mesmo que às vezes
seja pessimista em relação ao ensino formal, penso ser possível inventar outras possi-
bilidades de saber-fazer. A educação se comporta como um elástico que estica e volta,
mas nunca para o mesmo lugar, acreditando nisso que continuo no campo da forma-
ção de professores. Para finalizar, a proposta apresentada durante o texto é aproximar
as práticas de pesquisa com a formação dos professores, utilizando metodologias que
estabeleçam analogias entre as discussões acadêmicas de sala de aula com a realidade
do mundo cujo movimento ocorre em constante mutação.
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Referências
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais. Brasília,
2002. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=12991>. Acesso em: 20 abr. 2013.
PINHEIRO, Antonio C.; SILVA, Jorge L. B. A Geografia na formação de professores no
departamento de Educação da Unifesp. Boletim Paulista de Geografia, v. 1, n. 89, São Paulo,
abr. 2010.
PINHEIRO, Antonio Carlos. Lugares de Professores: vivências, formação e práticas docentes
nos anos iniciais do ensino fundamental. São Paulo: Ed. Porto de Ideias, 2013.
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. Projeto Político Pedagógico do curso de Geografia
modalidades: Licenciatura e Bacharelado. Instituto de Estudos Sócio Ambientais/UFG, 2005.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia.
São Paulo: Unifesp/Campus Guarulhos, 2006.
126 | Antonio Carlos Pinheiro
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A Geografia em diferentes contextos: a contribuição da
escola do campo à prática de ensino
Alexandra Maria de Oliveira
Introdução
Na direção de fortalecer a relação universidade e escola básica, o trabalho com
a prática de ensino em Geografia tem procurado indagar sobre que contribuições
podemos desvendar em modalidades diferenciadas de educação para pensar a for-
mação docente e a disciplina escolar na leitura da realidade social do campo. Nesse
texto específico, abordo um momento no processo de socialização de narrativas de
professores e alunos do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ce-
ará (UFC) com professores e alunos da escola do campo localizada no Assentamento
25 de Maio em Madalena, no Ceará.
A Geografia, como disciplina escolar, tem papel relevante no entendimento
dos processos que envolvem a relação sociedade e natureza, e o estágio curricular
tem possibilitado um reconhecimento de nossa prática docente no trabalho com a
disciplina no mundo da escola. A escola do campo é vista como uma proposta que
nasceu de demandas dos movimentos camponeses na construção de uma política
educacional para os acampamentos e assentamentos de reforma agrária. Essa inter-
pretação é relevante na compreensão da realidade que envolve a escola do campo, que
se encontra no processo de espacialização da luta camponesa.
Os processos de espacialização e territorialização dos movimentos sociais no
campo e a contribuição da Geografia agrária na leitura sobre as transformações terri-
toriais recentes presentes no campo brasileiro têm sido o fundamento de uma matriz
teórica que tem por base a teoria social. Apresenta trabalhos pioneiros na análise
127
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sobre os movimentos socioterritoriais e a educação do campo com ênfase em meto-
dologias de aprendizagens em conjunto – com respeito, autonomia e dignidade – va-
lores necessários à educação do povo do campo.
Geografia e escola nas lutas no campo
A Geografia brasileira tem em sua sistematização um vasto campo teórico pau-
tado na discussão sobre a história, a memória, a origem e os processos que compõem
a formação territorial brasileira. O paradigma da questão agrária trouxe influências
teóricas e práticas para se estudar o movimento desigual, contraditório e combinado
do território brasileiro e suas transformações recentes. Nessa construção, o território
tem sido um conceito chave que se apresenta no centro da discussão.
Na Geografia agrária, o estudo do território como categoria primordial de
investigação tem sido fundamentado em livros, teses e dissertações, com autores
como Raffestin (1993), Oliveira (1998) e Fernandes (2006). Para Oliveira (1998),
o território deve ser entendido como síntese contraditória da espacialidade que a
sociedade tem e desenvolve. [...] Os territórios são espaços geográficos e políticos,
onde os sujeitos sociais discutem, planejam e constroem seus projetos de vida e de
lutas sociais. No processo, os sujeitos sociais organizam-se por meios de relações
de classe para desenvolver seus territórios. Nesse contexto, Fernandes (2006) acres-
centou o fato de que a educação proposta pelos movimentos camponeses não existe
fora do território, assim como a cultura, a economia e outras dimensões mais. Esse
autor trouxe para a Geografia agrária a importância de se compreender a dimensão
educativa contida nos processos de espacialização e territorialização da luta pela
terra no Brasil.
De acordo com Oliveira (1998), a formação territorial capitalista no campo
brasileiro está marcada pelos processos de territorialização do capital e de mono-
polização do território pelo capital, encontrando-se, ainda, esse fenômeno contra-
ditoriamente marcado pelo processo de expansão da agricultura camponesa. Esta
tem nas ocupações, nos acampamentos e nos assentamentos rurais, ações efetivas de
resistência e luta pela reforma agrária.
A leitura geográfica proposta tem como pressuposto a educação do campo,
que se encontra na denominada “pedagogia do movimento”. (CALDART, 2004) A
discussão original dos conceitos de educação do campo, pedagogia do movimento
e escola do campo, nasceu de demandas dos movimentos camponeses na constru-
ção de uma política educacional para os acampamentos e assentamentos de reforma
agrária brasileiros. Assim, a posse da terra passa a ser condição para se viabilizar
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um conjunto de outras lutas: por estrutura viária básica, por escola e por educação
contextualizada. Esse é um fato extremamente relevante na compreensão dos proces-
sos políticos e sociais que envolvem a escola do campo. De acordo com Fernandes
(2006), foi da demanda específica por educação nos acampamentos e assentamentos
do movimento dos trabalhadores rurais sem terra que nasceu o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e a Coordenação Geral de Educação do
Campo. Nesse sentido, a educação do campo deve ser compreendida como um pro-
cesso em construção que contempla, em sua lógica, a política que pensa a educação
como parte constitutiva e essencial para o desenvolvimento do campo a partir do
projeto popular.
O movimento de luta pela reforma agrária dos últimos anos desenvolveu e con-
quistou diferentes dimensões sociais, políticas, econômicas e territoriais no país. No
Ceará, a conquista de frações do território capitalista que estão sendo apropriadas
pelos camponeses na luta pela terra tem contribuído para o fortalecimento do setor
de educação nos assentamentos. Após uma década no Ceará, o Pronera foi permi-
tindo a conquista de espaços e modalidades de ensino que se ampliam fortalecendo
a relação campo-cidade ou universidade escola básica do campo. As lutas do povo
acampado e assentado dentro e fora dos acampamentos e assentamentos tornaram-se
um recurso poderoso na espacialização das lutas camponesas. Essas estão desenvol-
vendo no território conquistado o trunfo proposto por Raffestin (1993), ao defender
esse sentido como um poderoso conceito do campo geográfico.
A análise da educação presente no campo brasileiro passa, nos dias atuais, pela
leitura de dois projetos inconciliáveis: o projeto oficial e o projeto popular. Um ma-
joritário feito em nome das relações hegemônicas, que acaba sendo pactuado, e um
popular, defendido pelos movimentos sociais e representações camponesas que aten-
de as necessidades básicas do povo do campo. Assim, a manutenção de diferentes for-
mas de produção e trabalho na terra camponesa, a luta por direitos e, ainda, por uma
educação do campo, é parte constitutiva da luta pela reforma agrária dinamizada no
seio dos movimentos e das representações camponesas.
A construção recente de uma leitura sobre o campesinato brasileiro e a luta por
uma educação que contemple os saberes, as práticas e as experiências no campo tem
sido apresentada por Stedile e Fernandes (1999) e Arroyo e Fernandes (1999), entre
outros.
No Ceará, a luta pela terra construída historicamente por sujeitos sociais, mui-
tas vezes geograficamente isolados nos sertões, tem nos dias atuais a resposta às suas
ações na conquista de frações do território capitalista que vai para a mão dos cam-
poneses organizados em movimentos e representações camponesas. Assim, não há,
portanto, como desconsiderar a importância dos assentamentos rurais no país. Para
A Geografia em diferentes contextos | 129
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Leite, Heredia; Medeiros (2004), os assentamentos são vistos como ponto de chegada
de um processo de luta pela terra e tornam-se ponto de partida para uma nova con-
dição de vida. Eles estão produzindo um novo perfil produtivo nos municípios, na
organização social da produção e da família, nas condições de vida e na participação
política local e regional.
Conforme Arroyo (2004), a organização social, a luta por direitos, trabalho e
educação são ações constitutivas de um processo em que o campesinato se constitui
sujeito cultural. Por isso, não se deve separar produção de educação, nem separar
produção de escola. A produção do trabalho familiar na leitura pedagógica dos movi-
mentos sociais e das representações camponesas é mais do que produção, é momento
de encontro e de trocas de saberes no processo de aprendizagem. Desse modo, estu-
dar saberes e práticas pedagógicas do campo coloca-nos diante do desafio de dar sen-
tido às palavras a partir do conhecimento específico e das experiências individuais e
coletivas construídas na convivência com o povo do campo.
O processo de investigação tem sido desenvolvido com professores licenciados
no curso de Pedagogia da terra que trabalham nos anos iniciais do ensino funda-
mental e são considerados polivalentes. Assim como em Oliveira e Silva (2009), os
currículos escolares e o material didático que se encontrou na escola, de uma manei-
ra geral, desconsideram a diversidade de fatos e ações da realidade local, realizando,
portanto, um ensino estagnado, descontextualizado, porém comprometido com a
construção da aceitação passiva de novas formas de socialização do capitalismo ou
com relações propostas pela política educacional oficial.
Paralelo a isso, a escola do campo é produto de seus sujeitos, os trabalhadores e
trabalhadoras do campo, e suas especificidades construídas nas trajetórias de lutas de
suas organizações. A escola do campo está vinculada aos interesses dos camponeses,
uma educação contextualizada e a favor de um projeto de desenvolvimento popular
para o campo.
Oficina geográfica com professores em serviço nas escolas do
campo
A proposta de trabalhar uma oficina geográfica com professores de Geografia
das escolas do campo foi um desafio que surgiu durante as aulas de prática de ensino
em Geografia e em visitas de acompanhamento da pesquisa nos assentamentos ru-
rais. Na construção da prática de ensino, a ideia da escola como laboratório de estudo
foi substituída pela ideia da escola como o lugar de trocas, construção de conheci-
mentos e aprendizagens significativas.
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No processo de construção, o contato inicial com a comunidade do Quieto foi
feito através de viagem de reconhecimentos às escolas no mundo rural. Após as visi-
tas de campo e participação em reuniões pedagógicas na Secretaria de Educação do
município de Madalena, no Ceará, propusemo-nos a construir uma oficina geográfi-
ca com os professores da escola básica, no intuito de fortalecer o ensino da Geografia
discutido na escola. A proposta foi aceita pelo grupo e encaminhada pelos colegas
que viabilizaram o trabalho com o compromisso de que fosse estabelecida uma ati-
vidade em conjunto, a ser realizada na escola do Quieto, assentamento 25 de Maio.
A opção pelo estudo de caso e a escolha da comunidade do Quieto se deu
quando fomos informados da proposta pedagógica desenvolvida, com traços da pe-
dagogia da terra, e pela disponibilidade da comunidade-escola em trabalhar com a
universidade.
O assentamento 25 de Maio está composto de 18 comunidades distribuídas
em sua área localizada entre os municípios de Madalena, Boa Viagem e Quixara-
mobim, na depressão sertaneja do sertão central cearense, distante cerca de 150 km
da cidade de Fortaleza, e 30 km do núcleo urbano do município de Madalena. Foi
fruto de uma ocupação organizada pelos camponeses e apoiada pelos sindicatos
rurais, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem-Terra (MST). De acordo com os camponeses, havia a necessidade
de uma organização política capaz de superar a situação de submissão em que se
encontravam.
O dia 25 de maio, data marcada para a ocupação organizada pelo MST, deno-
mina hoje a antiga fazenda São Joaquim, de propriedade do sr. Wicar Parente Pes-
soa, abrangendo uma área de 22.992 hectares, imóvel considerado improdutivo no
cumprimento da função social, compreendendo terras exploradas e mata virgem.
Nela residiam 50 famílias na condição de moradores, inseridos no assentamento e na
luta pela reforma agrária. Completados 15 dias da ocupação, foi assinada a emissão
de posse da terra em 9 de junho de 1989. Para Azevedo (1992), foi o processo mais
rápido até então ocorrido no estado, tendo sido possível devido à organização do
MST, bem como devido à conjuntura política existente em nível estadual e federal em
relação ao primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (1986).
O atual prédio da escola no assentamento foi construído a partir da doação de
uma cidadã alemã (Jette Joop) – via Cruz Vermelha Brasileira (em parceria com a
prefeitura de Madalena) – que disponibilizou recursos financeiros necessários para
a construção da escola na forma como se encontra hoje. Essa atitude contribuiu para
que a comunidade a homenageasse, colocando seu nome na placa comemorativa
apresentada no descerramento do novo prédio. A escola do Quieto (como é conhe-
cida na localidade), além de ser referência em termos de organização e trabalho no
A Geografia em diferentes contextos | 131
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assentamento, apresenta-se em excelente estado de conservação, condição necessária
para a prática pedagógica proposta. O prédio tem cerca de dois anos e possui seis sa-
las de aula, uma secretaria, uma cozinha, três banheiros, tendo ao lado um posto de
saúde. Antes do prédio atual, a escola funcionava em um antigo galpão da cooperati-
va que hoje, ainda, mantém salas de aula e área de estocagem de parte dos produtos
produzidos no assentamento.
Nas visitas de campo, sempre fomos recepcionados por professoras que mo-
tivavam a proposta e contribuíam com a construção na abertura do diálogo, com
questionamentos e a troca de material didático. Após oito meses de observação, le-
vantamento e sistematização dos dados, a oficina foi proposta para o período do
planejamento pedagógico municipal – janeiro de 2009. Na construção do diálogo,
muitos dos professores mostraram a necessidade de um instrumental que os ajudasse
em sua prática cotidiana. Nesse sentido, as atividades emergiram das necessidades
reais do professorado local.
As atividades foram compostas de aulas expositivas, dialogadas com temáticas
como: a questão da propriedade privada no Nordeste, a luta pela terra e paisagens
geoambientais e educação ambiental na prática pedagógica dos professores de Ge-
ografia. Também foi proposto um trabalho de campo na região do entorno da área
do assentamento com o objetivo de se contextualizar as questões teóricas propostas.
A abertura dos trabalhos foi iniciada com uma mística que enfatizou a educa-
ção do campo e a união entre os moradores da cidade e do campo na luta por uma
reforma agrária – com escola, terra e dignidade.
Para Stedile e Fernandes (1999), a mística é a força, a energia cotidiana, que tem
animado a família sem-terra a continuar na luta, ajudando cada pessoa a enxergar e
a manter a utopia coletiva. É o momento no qual aquele sentimento, materializado
em símbolos, que nos faz sentir que não estamos sozinhos, e são os laços que nos
unem uns aos outros lutadores, que nos dão mais força para prosseguir na constru-
ção de um projeto coletivo. No MST, a mística tem uma dimensão educativa muito
importante: para os militantes mais antigos, ajuda a cultivar os valores e a memória
simbólica que os mantém a caminho, para as novas gerações ou para cada sem-terra
que ingressa no movimento, ajuda na disposição pessoal de entrar no processo e a
vivenciar as ações de forma mais humana e plena, sendo uma espécie de ritual de
acolhida, que faz as pessoas se sentirem parte do movimento mesmo antes de conhe-
cer toda a sua dinâmica.
Observamos que toda a dimensão da formação humana, da sociabilidade, da
integração e do compromisso entre os grupos, esteve posta nesse momento de aco-
lhida, considerado por todos repleto de alegrias e intencionalidades. Nessa leitura,
concordamos com Maia (2008) quando analisa a mística no MST como um processo
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educativo. Ao final desse momento e como uma forma de mostrar o orgulho, a orga-
nização e a força do movimento, os militantes entoaram o hino do MST e passaram a
palavra para nós professores da UFC.
Após uma breve apresentação do grupo, contextualizamos e colocamos os ob-
jetivos da oficina geográfica, demonstrando compromisso e respeito ao movimento
de educação do campo proposto pelo MST. A luta pela reforma agrária foi abordada
com base na leitura de orientação dialética marxista sobre o papel da propriedade
privada da terra no Nordeste. No debate, foi possível uma ampla discussão sobre
a concentração fundiária, a função social da terra e o significado dos movimentos
sociais e das representações camponesas na luta pela terra e a conquista de frações
do território.
A leitura sobre unidades geoambientais e as diferentes paisagens existentes no
semiárido brasileiro foi mais um tema abordado. As aulas expositivas dialogadas pre-
zaram por desvelar a especificidade dos diferentes ambientes que compõem o territó-
rio brasileiro e, em especial, exploraram a realidade cearense.
O trabalho de campo foi proposto como um instrumento fundamental na for-
mação dos docentes que trabalham com o ensino de Geografia. A área priorizada
para o estudo foi o sertão central. Iniciamos no interior do assentamento discutindo
a questão da propriedade privada e a constituição das relações sociais no campo, a
partir de evidências que íamos observando nas narrativas, tais como: a diferença no
sentido da construção de cercas de proteção e cercas de divisão presente ao longo das
propriedades, a forma como a pecuária extensiva é utilizada como reserva de valor
e/ou reserva patrimonial pelos proprietários de terra rentistas, ou seja, aqueles que
se apropriam da renda da terra sem nada produzir na mesma, e as diferentes funções
que a terra vai adquirindo a partir do uso social.
Durante o trajeto entre Madalena, Quixeramobim, Quixadá, Choro e de volta
para Madalena, foram feitas paradas para fazer a leitura geográfica da diversidade
paisagística presente nas subáreas contidas na paisagem dominada pela depressão
sertaneja, que se apresenta interrompida por maciços residuais (serrotes) e relevos
residuais (inselbergs). Essas formas de relevos (plano e suave ondulado), em contato
com o clima semiárido (regime hídrico concentrado), constituem tipos de vegetação:
caatinga arbustiva e arbórea típicas da região. A vulnerabilidade natural dos solos
encontrados: neossolos litólicos (rasos e pedregosos), luvissolos (rasos e argilosos) e
vertissolos (pouco profundos e muito argilosos) na relação de manejo e usos a partir
de práticas inapropriadas como as queimadas, os plantios em áreas de forte declive
ou, ainda, o uso excessivo. Como consequência, foi possível detectar várias manchas
de vegetação com formações secundárias e solos com alterações na composição ori-
ginal, o que revelou um quadro com fortes traços de degradação ambiental.
A Geografia em diferentes contextos | 133
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Constatamos que a região possui solos produtivos do ponto de vista de sua
fertilidade natural, porém a falta de água e de orientação técnica tem contribuído
para o uso insustentável deles, havendo, portanto, uma predisposição ao processo de
desertificação na região. As terras no assentamento poderiam ser mais produtivas
se, de fato, a orientação técnica estivesse presente, já que a existência dos açudes tem
amenizado a falta de água. Outros temas como educação ambiental, qualidade de
vida, moradia e saúde foram intensamente trabalhados com os professores.
No processo, uma nova leitura geográfica da diversidade ambiental presente
no sertão central cearense foi sendo formada. Em todo o trabalho de campo foram
feitas colocações, anotações e levantados questionamentos sobre as condições so-
cioambientais presentes na área percorrida. No contato com a realidade regional, os
professores foram tomando ciência do grau de degradação ambiental presente no
sertão e da necessidade de se fortalecer uma campanha a favor do não uso de técnicas
de degradação da natureza ou a favor da educação ambiental.
Ao final da oficina, houve um momento de socialização do trabalho de campo,
mediante narrativas, no qual foi fortalecida a importância da relação conhecimento
específico curricular e saberes práticos e experiência dos professores na formação
docente. Também foram detectados problemas práticos como: o pouco conhecimen-
to por parte dos professores da Geografia como ciência que discute o espaço, a neces-
sidade de propor nas aulas conteúdos relacionados com as formas de trabalho e uso
da terra, lutas sociais e educação ambiental. Foram propostas discussões que possam
trazer procedimentos e atitudes diferenciadas na relação dos camponeses com o tra-
balho agrícola e houve, ainda, o encaminhamento para a construção de um relato de
campo.
Foram distribuídos e indicados textos como contribuição para o embasamento
teórico e para a reflexão da prática docente. Essa atividade procurou atender alguns
princípios: trabalhar a Geografia Escolar, os conhecimentos e as experiências dos
professores, comunidade e alunos como base para o ensino, levar ao conhecimento
do professorado diferentes linguagens para a construção da Geografia Escolar, ela-
borar práticas metodológicas de ensino que permitam explorar leituras do campo a
partir das questões sociopolíticas (estrutura fundiária, uso da terra e reforma agrária)
e questões geoambientais (depressão sertaneja, planícies fluviais, maciços residuais e
relevos residuais) presentes na região. Foi, portanto, um trabalho dialogado e cons-
truído em conjunto com os professores a partir de necessidades presentes em suas
práticas docentes.
Desenvolver a pesquisa acadêmica com a geografia e a formação de professo-
res tem sido uma proposta bastante discutida e desenvolvida no trabalho docente.
(PONTUSCHKA; OLIVEIRA, 2002) A prática com os professores da escola do cam-
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po foi uma opção construída em conjunto e considerada uma surpresa gratificante
por parte dos sujeitos sociais envolvidos. Essa leitura revela, por um lado que a re-
lação universidade e escola básica do campo está posta como um desafio em nossa
formação. E, por outro lado, demonstra que, mesmo com todos os seus limites, a
Geografia tem muito a contribuir com a escola do campo, como mostram as narra-
tivas a seguir:
O trabalho de vocês foi bom porque a gente vai conhecendo o que nunca conheceu e reco-
nhecendo o que já conhecia. Isso vai ajudando uns e outros a se unir e se entender. (Prof.
Vicente)
A troca de experiência vivenciada na interação entre os participantes nos possibilitou uma
troca de experiência, ou seja, mais aprendizagem sobre o nosso lugar. (Profª. Eliane)
Foi muito bom trabalharmos juntos. Fortaleceu bastante possibilitando-nos mais subsídios
para intervir de forma consciente junto aos nossos educandos. Espero que outros momen-
tos aconteçam. (Profª. Ecília)
Os relatos apresentados pelos professores foram fundamentais para se fazer um
encaminhamento na perspectiva da continuidade na construção da relação propos-
ta inicialmente. Encerramos esse momento com satisfação em relação aos objetivos
propostos para o período específico, muito embora saibamos que é preciso um tra-
balho contínuo comprometido com o processo de lutas camponesas. Também ficou
evidente a necessidade do retorno ao assentamento no sentido de produzir instru-
mentos teóricos e práticos cada vez mais eficazes no trabalho de leitura da relação
escola do campo e geografia escolar.
Considerações finais
O trabalho de pesquisa e extensão na relação escola básica do campo e univer-
sidade vai-se ampliando e aperfeiçoando, também, por intermédio da prática social.
Há uma grande diferença no modo como desenvolvemos a oficina com os professo-
res em serviço na escola do campo e os famosos “pacotes educativos” desenvolvidos
no interior de gabinetes burocráticos que, muitas vezes, são impostos aos professores.
Nossa ação, como professores e pesquisadores, tem se transformado a partir de nossa
prática pedagógica, refletida e analisada em conjunto com outros professores, sujei-
tos sociais na luta pela terra e pela justiça social. O trabalho de ação-reflexão-ação na
prática docente tem permitido o desenvolvimento de educadores que assumem para
si o compromisso com a transformação da realidade em que atua.
A Geografia em diferentes contextos | 135
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A forma dialogada de pensar o conhecimento como um saber em conjunto
contribuiu para uma avaliação satisfatória por parte da comunidade e dos docentes
e discentes envolvidos nos trabalhos. Na avaliação final ficou claro que, no início
das atividades, o professorado teve dificuldade para entender o que exatamente seria
desenvolvido na oficina. A própria linguagem foi algo que precisou ser trabalhada
para poder ser entendida. Também, optamos por ir (re)construindo as atividades em
campo, respeitando a dinâmica da escola, da comunidade e os limites entre os profes-
sores. Assim, todas as atividades foram refeitas no grupo e apresentadas e novamente
modificadas, se preciso fosse, juntamente com as professoras.
A insegurança e a confusão inerentes ao início das atividades foram dando lu-
gar à iniciativa, ao conhecimento, à autonomia e à autoconfiança. A opção por essa
forma de trabalho se deu em virtude da liberdade, do compromisso e do respeito dos
professores, militantes, pesquisadores e da comunidade com o trabalho desenvolvido
na escola.
A experiência realizada nos colocou o desafio de produzir, juntamente com
os sujeitos sociais que vivenciam o ambiente escolar nas comunidades do campo,
um instrumental capaz de fortalecer o ensino de Geografia e a proposta pedagogia
da terra. Esse encaminhamento tem exigido um repensar nossas práticas docentes,
ficando como regra o fato de ser fundamental o trabalho coletivo desenvolvido na
trajetória. A pesquisa apresentada se insere dentro das análises teóricas que discutem
a educação do campo como parte constitutiva da luta pela terra presente na história
do campesinato brasileiro.
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Narrativas docentes na/da fronteira: identidade, alteridade e
diferença na prática de ensino e na formação de professores
de Geografia
Flaviana Gasparotti Nunes
Introdução
Embora historicamente a escola tenha sido utilizada como instrumento vei-
culador de uma ideologia nacional e também da existência de uma cultura e iden-
tidade única que remete a uma determinada nação, partimos do entendimento de
que em seu interior há um entrecruzamento de culturas, mesmo dentro de um
mesmo país, pois a cultura é algo amplo que vai além de delimitações de ordem
físico/territorial.
Neste texto, pretendemos problematizar algumas questões relativas a esse en-
tendimento partindo de elementos presentes em narrativas de professores de Geo-
grafia atuantes em escolas localizadas em área de fronteira. Tais narrativas compõem
um conjunto de entrevistas realizadas com professores de Geografia no desenvolvi-
mento de dois projetos de pesquisa que coordenamos.1
O desenvolvimento dos referidos projetos foi motivado, principalmente, pela
constatação de que muitas escolas no município de Ponta Porã (Mato Grosso do
Sul, Brasil) recebem grandes contingentes de alunos oriundos de Pedro Juan Cabal-
lero (Paraguai). As duas cidades fazem parte da “fronteira seca” entre os dois países,
1 Os projetos de pesquisa em questão são os seguintes: “Construções e representações do conceito de fronteira na
fronteira Brasil-Paraguai: aportes para o ensino de Geografia”, financiado pela Fundação de Apoio ao Desenvol-
vimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT) e “Interculturalidade
e ensino de Geografia: um estudo a partir da fronteira Brasil-Paraguai em Mato Grosso do Sul”, financiado pelo
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) (Processos 400673/2010-0 e 475580/2010-9).
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no entanto, devido às condições econômicas desiguais entre as duas nações, muitas
famílias paraguaias registram seus filhos no Brasil para que eles tenham acesso à
educação formal brasileira. Sendo assim, esses alunos de cultura paraguaia, falando
castelhano e guarani, muitos dos quais são a maioria dos matriculados em algumas
dessas escolas, acabam sofrendo com a rotina escolar que se pauta no contexto cultu-
ral da sociedade brasileira.
A pesquisa ocorreu em seis escolas públicas localizadas no município de Pon-
ta Porã, em Mato Grosso do Sul. A escolha dessas se deu a partir de informações
fornecidas por representantes da Secretaria Municipal e da Secretaria Estadual de
Educação que apontaram estas como as que possuíam número mais significativo de
alunos oriundos do Paraguai.2 O objetivo maior da pesquisa é analisar em que medi-
da a Geografia como disciplina escolar tem considerado (ou não) a diversidade cul-
tural presente nas escolas fronteiriças para trabalhar seus conteúdos, principalmente
aqueles que envolvem mais diretamente os conceitos de fronteira, lugar e território,
tomando por base as concepções e práticas dos professores da disciplina.
A pesquisa envolveu vários procedimentos, mas focaremos nossa atenção neste
texto em algumas narrativas que integram as entrevistas realizadas com professores
de Geografia atuantes nas escolas pesquisadas.
Nosso objetivo aqui é problematizar questões como diferença, identidade e
cultura e seus desdobramentos nas práticas pedagógicas da Geografia a partir dos
elementos presentes nas próprias narrativas docentes.
Para isso, num primeiro momento, caracterizaremos o contexto no qual se in-
serem as escolas nas quais atuam os professores de Geografia cujas narrativas serão
aqui analisadas. Tal contexto apresenta como elemento fundamental para sua com-
preensão o próprio conceito de fronteira e seus desdobramentos no que diz respeito
à identidade, alteridade e diferença.
A partir da contextualização das escolas e das problemáticas que as envolvem,
apresentamos alguns trechos de narrativas de professores de Geografia destacando
elementos presentes nas mesmas que propiciam a reflexão sobre diferença, identi-
dade e alteridade no âmbito das práticas pedagógicas desenvolvidas no cotidiano
escolar.
2 As escolas públicas envolvidas na pesquisa são: Escola Polo Municipal Ramiro Noronha, Escola Polo Municipal
João Carlos Pinheiro Marques, Escola Estadual Mendes Gonçalves, Escola Estadual João Brembatti Calvoso,
Escola Estadual Geni Marques Magalhães e Escola Estadual Pedro Afonso Pereira Goldoni. Curiosamente, tais
escolas apresentam uma característica em comum: todas estão localizadas paralelas à linha do limite internacio-
nal entre Brasil e Paraguai, o que facilita os deslocamentos de um lado a outro da fronteira.
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A fronteira e a escola da/na fronteira
Para esclarecermos melhor a situação a partir do qual foram produzidas as nar-
rativas dos professores de Geografia que embasam nossas reflexões, consideramos
importante discutirmos algumas questões que envolvem a escola nas áreas de fron-
teira, realidade na qual os mesmos atuam.
Inicialmente, devemos esclarecer que pensamos a fronteira na direção da con-
cepção de José de Souza Martins (1997) que a toma como um lugar em que os vá-
rios grupos humanos, ali localizados, produzem diversos tempos históricos, ou seja,
uma geografia a manifestar os desencontros temporais da história: “o desencontro na
fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos
está situado diversamente no tempo da História”. (MARTINS, 1997, p. 151)
Nessa direção, fronteira passa a ser o território de invenção do outro, onde o in-
divíduo procura se reconhecer frente aquilo que é imposto, ou aceito, como o único,
e aquilo que vivencia como alteridade e diferenças. Essa alteridade decorre do fato de
que o outro possui uma temporalidade, por conseguinte uma história, diferente da
nossa. Tal desencontro de temporalidades instaura a consciência de que não existe só
uma linha, ritmo e evolução histórica, aquela que entendemos como nossa.
Eis um dos grandes entraves no processo de aceitação do outro, ou seja, enten-
der e respeitar que numa mesma espacialidade podem ocorrer e conviver diferentes
temporalidades e histórias.
Massey realiza uma reflexão de fôlego sobre esta questão a partir da compre-
ensão do espaço como esfera da possibilidade da existência de multiplicidade, no
sentido da pluralidade contemporânea, como esfera na qual distintas trajetórias coe-
xistem. Nas palavras da autora:
Além disso, sob a modernidade, não apenas o espaço foi conce-
bido como dividido em lugares delimitados, como esse sistema
de diferenciação foi também organizado de uma maneira parti-
cular. Resumindo, a diferença espacial era concebida em termos
de sequência temporal. “Lugares” diferentes eram interpretados
como estágios diferentes em um único desenvolvimento tem-
poral. Todas as estórias de progresso unilinear, modernização,
desenvolvimento, a sequência dos modos de produção [...] re-
presentava essa operação.[...]. (MASSEY, 2008, p. 107)
Lander, por sua vez, toca nesta questão ao discutir o que chama de “constitui-
ção colonial dos saberes” destacando que tal constituição operou-se a partir de uma
Narrativas docentes na/da fronteira | 141
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distinção espacial, baseada na ideia de atraso e progresso, entre o mundo ocidental
ou europeu e os “outros”, o restante dos povos e culturas do planeta. Segundo o autor:
A conquista ibérica do continente americano é o momento
inaugural dos dois processos que articuladamente conformam
a história posterior: a modernidade e a organização colonial do
mundo. Com o início do colonialismo na América inicia-se não
apenas a organização colonial do mundo, mas – simultaneamen-
te – a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da me-
mória (Mignolo, 1995) e do imaginário (Quijano, 1992). Dá-se
início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX
e no qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço
e do tempo – todas as culturas, povos e territórios do planeta,
presentes e passados – numa grande narrativa universal. Nes-
sa narrativa, a Europa é – ou sempre foi – simultaneamente o
centro geográfico e a culminação do movimento temporal [...].
(LANDER, 2005, p. 10)
Fica evidente, a partir das ideias dos dois autores, a dificuldade colocada para
se pensar a possibilidade de existência de diferentes trajetórias e historicidades numa
mesma espacialidade. A resistência em aceitar tal possibilidade é que faz da fronteira
um lugar de tensões, estranhamentos e conflitos. Sendo assim, embora a fronteira
propicie o contato e a troca, é também inerente a ela revelar e colocar em contato a(s)
diferença(s).
Esta concepção amplia aquela que restringe o entendimento de fronteira como
limite divisório entre dois territórios político-administrativos. Raffestin (2005, p. 10)
chama atenção para o fato de que “a representação que a cultura ocidental faz atual-
mente da fronteira é de uma pobreza tão absoluta, que precisa ser alertada, pois ela é
uma negação de toda uma história [...]”
No entendimento do autor, a fronteira vai muito mais além do fato geográfico
que ela realmente é, pois ela não é só isso, é também um fato social de uma riqueza
considerável pelas conotações diversas nele implícitas. Em suas palavras:
[...] Sem dúvida, também, porque mais do que um fato geográfi-
co e um fato social, a fronteira é um fato biológico incrustado no
hipotálamo. Espaço-temporal, a fronteira é também bio-social:
ela delimita um “para cá” e outro “para lá”, um “antes” e um “de-
pois”, com um limite marcado e uma área de segurança. (RAF-
FESTIN, 2005, p. 11)
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Neste sentido, além de divisão e isolamento das diferenças, a fronteira pode tam-
bém implicar numa realidade específica, marcada por uma relação de troca cultural
entre os diferentes povos aí residentes, ou seja, as áreas de fronteiras podem representar
áreas de conflitos culturais entre povos diferenciados, assim como também podem sur-
gir como áreas de trocas interculturais e os consequentes hibridismos culturais.
Tal fato é bastante evidente quando analisamos as situações vivenciadas coti-
dianamente nas escolas da fronteira Brasil-Paraguai, mais especificamente no muni-
cípio de Ponta Porã.
Ponta Porã, localizada no Mato Grosso do Sul, Brasil, e Pedro Juan Caballero,
capital do departamento de Amambay, no Paraguai, são cidades localizadas numa
fronteira seca, separadas unicamente por uma zona neutra, uma faixa de poucos me-
tros que as comissões limítrofes reservam nas fronteiras urbanas secas e que pertence
aos estados vizinhos. Entre as duas cidades não existem barreiras que dificultem ou
impeçam a comunicação entre seus habitantes, o que favorece o contato cotidiano
entre as populações de ambos os países. A fronteira, neste caso, ultrapassa o sentido
comum de limite, de divisão ou de delimitação, carregando uma carga contraditória,
pois se separa também evidencia identidades indicando espaço de tangência e de
potenciais identificações (sociais, culturais, econômicas e políticas).
Os estudos de Pereira (2002, 2009) constataram a presença significativa de alu-
nos oriundos do Paraguai em escolas brasileiras, especificamente no município de
Ponta Porã. No entanto, a autora afirma que “[...] as pesquisas revelam que a escola
fronteiriça ignora a sua condição, imperando uma relação formal que anula as di-
ferenças, em virtude da força homogeneizadora da escola”. (PEREIRA, 2002, p. 51)
Outra pesquisadora dos processos educativos em escolas de fronteira, Fedatto
aponta que a escola de fronteira não é diferenciada, entre outros motivos, porque os
professores não recebem formação para tal atuação, ou seja, desde a graduação estes
não estão preparados para trabalharem com tal realidade (FEDATTO, 2005, p. 495),
mesmo que esta esteja à sua volta, muitos não sabem como fazer a relação entre teoria
e prática, o que culmina na homogeneização do ensino.
As duas pesquisadoras citadas chamam atenção para uma questão fundamen-
tal em relação às escolas fronteiriças: a anulação das diferenças devido à homoge-
neização que a escola impõe. Sobre a homogeneização imposta pela escola, Candau
(2008, p. 15) destaca que:
Hoje esta consciência do caráter homogeneizador e monocultu-
ral da escola é cada vez mais forte, assim como a consciência da
necessidade de romper com esta e construir práticas educativas
em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam
cada vez mais presentes.
Narrativas docentes na/da fronteira | 143
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Outros autores3 também têm destacado a necessidade da escola voltar-se para
essa reflexão, na medida em que “as políticas públicas educacionais, bem como a se-
leção de conteúdos, as práticas pedagógicas e a lógica da escolarização, orientam-se
por princípios monoculturais que são aplicados a sujeitos sociais despregados de suas
bases sociais. [...]”. (CAPELO, 2003, p. 111)
A partir do exposto, fica evidente que, devido às especificidades das áreas de
fronteira (neste caso a fronteira internacional), os processos educativos formais, no-
tadamente aqueles ocorridos nas instituições escolares, precisam estar em sintonia
com as particularidades locais. É com base nessa problemática que iremos, a seguir,
analisar as narrativas dos professores de Geografia atuantes na fronteira.
As narrativas docentes: quando o “outro” se revela nas
concepções dos professores
Com base no exposto até aqui, destacaremos algumas falas de professores de
Geografia4 atuantes no contexto já descrito, no sentido de refletirmos quanto às con-
cepções expressas pelos mesmos em relação à diferença, alteridade e identidade e
seus desdobramentos no que diz respeito à prática pedagógica da Geografia.
Devemos esclarecer que pensamos a identidade na relação com a diferença,
conforme proposto por Silva (2000, p. 82):
A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam,
sempre, as operações de incluir e excluir. Como vimos, dizer “o
que somos” significa também dizer “o que não somos”. A iden-
tidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre
quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está
incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa
demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica
3 Nos últimos anos, tem se desenvolvido no Brasil um campo de pesquisa abordando essa problemática envol-
vendo pesquisadores de várias áreas do conhecimento, sobretudo da Educação, que tem produzido um conjunto
significativo de publicações sobre o assunto. Entre esses pesquisadores podemos destacar: Vera Candau, Ana
Canen, Reinaldo Matias Fleuri, Antonio Flávio Moreira, entre outros.
4 Todos os trechos das narrativas destacados a partir deste momento estão presentes no trabalho de Terenciani
(2011). Esta autora utilizou nomes fictícios para garantir o anonimato dos professores entrevistados, pois em
seu entendimento: “[...] o elemento da não identificação possibilitou que estes se manifestassem de forma mais
aberta e à vontade durante as entrevistas. Ademais, acreditamos que as identificações não são necessárias para o
trabalho, haja vista que buscamos compreender, mediante a pesquisa qualitativa e por amostragem, a prática do-
cente de professores de Geografia da cidade de Ponta Porã, sem que para isso tenhamos de identificar os sujeitos
da pesquisa.”. (TERENCIANI, 2011, p. 20)
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dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma
forte separação entre “nós” e “eles” [...].
O autor acrescenta, ainda, que essa demarcação de fronteiras e a separação e
distinção entre “nós” e “eles” supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam re-
lações de poder.
Sendo assim, destacamos, a seguir, trechos de narrativas de dois professores de
Geografia nas quais expressaram suas concepções a partir do questionamento a eles
direcionado quanto ao que pensavam sobre a presença de alunos de origem para-
guaia na escola brasileira:
[...] no ano passado [2009], no 9º ano os alunos só falavam o
Guarani. Tive que intervir... os professores não conseguem en-
tender o que está sendo dito. Fui lá e falei pra eles não falarem
mais o Guarani, porque se estão aqui [na escola] são brasileiros
e tem que se comportar como brasileiro [...]. (Entrevista realiza-
da com a professora Roberta, concedida a Cirlani Terenciani em
abril de 2010). (TERENCIANI, 2011, p. 152)
[...] Só que a partir do momento em que eles estão em escolas
brasileiras, eles se dizem brasileiros, são brasileiros, documenta-
damente brasileiros e assim que nós o vemos, não tem distinção
entre o brasileiro e o paraguaio, porque aqui na escola, os dois
são brasileiros. Agora [...] continuam agindo como se fosse pa-
raguaios... falam a língua deles dentro de sala de aula e isso é
uma dificuldade para nós. (Entrevista realizada com a professora
Patrícia, concedida a Cirlani Terenciani em novembro de 2010).
(TERENCIANI, 2011, p. 152)
Nas duas narrativas apresentadas, comparece de forma bastante clara a con-
cepção dos professores de que o aluno de origem paraguaia é “diferente” do aluno
brasileiro. O elemento principal que caracteriza essa diferença e, na concepção das
professoras, dificulta o trabalho em sala de aula é a língua. A primeira professora
afirma que, de certa forma, “proibiu os alunos de falarem o guarani porque se ‘eles’
estão na escola brasileira tem que se comportar como brasileiros”. A segunda narra-
tiva também denota esta compreensão destacando, inclusive, o fato de que ao serem
“documentalmente brasileiros” não devem mais agir “como se fossem paraguaios,
falando a língua deles5 dentro da sala de aula”.
5 Embora no Paraguai a língua guarani seja um idioma oficial, pois desde 1992 o governo paraguaio reconheceu
a língua guarani e a língua espanhola como línguas oficiais do país, tornando o Paraguai o único país bilingue
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A utilização, por parte das professoras dos termos “eles”, “língua deles” expressa
claramente a identificação do aluno paraguaio como o “outro”, o diferente de “nós”.
Comparece, aqui, a ideia de uma construção identitária pautada exclusivamente nos
referenciais do Estado-Nação: de um lado, nós, brasileiros, e do outro lado, eles, os
paraguaios.6
No entanto, como já destacamos anteriormente, na fronteira tais construções
identitárias apresentam fissuras e se constituem em processos complexos, conforme
aponta Terenciani (2011, p. 188):
Nesse sentido, os sujeitos fronteiriços vivenciam cotidianamente
múltiplos territórios, tanto em escalas individuais de apropriação
simbólica, quanto em escalas maiores, relacionadas ao controle
efetivo que os Estados (Brasil e Paraguai) têm sobre os mesmos,
na qual, os moradores locais, cidadãos da fronteira, convivem
num movimento marcado pelo trânsito entre territórios, cultu-
ras e identidades (brasileiros e paraguaios, guarani/espanhol e o
português). Estes elementos marcam as fronteiras entre o “eu”
e o “outro”, entre o “nós” e o “eles”, que se configura muito mais
que meras fronteiras geográficas e políticas, mas como fronteiras
identitárias que influenciam direta e indiretamente no contato e
proximidade entre estes sujeitos.
Na narrativa de outra professora, quando questionada sobre a presença do
aluno de origem paraguaia na escola brasileira, podemos identificar elementos que
apontam o preconceito de alguns professores atuantes nas escolas da fronteira em
relação a esses alunos:
Existe uma resistência muito grande aqui na fronteira. Eu já ouvi
professores, colegas meus dizerem assim: ‘Ah, eles vem estudar
aqui, eles que tem que se adaptar, não somos nós que temos que
se adaptar a eles’, isso é doloroso né? Então, eles esquecem da
dívida que temos para com o Paraguai por conta da Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai, né? Esquecem de que a hege-
monia na fronteira ta nas mãos dos brasileiros, né? Que é uma
da América Latina, existe um grande preconceito em relação ao seu uso, por ser considerado uma língua de
“ignorantes”. (TERENCIANI, 2011, p. 55)
6 Silva (2000, p. 85) afirma que as identidades nacionais são constituídas a partir da criação de laços imaginários
que permitam “ligar” pessoas, que, sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem nenhum “sentimen-
to” de terem qualquer coisa em comum. Na opinião do autor: “a língua tem sido um dos elementos centrais desse
processo – a história da imposição das nações modernas coincide, em grande parte, com a história da imposição
de uma língua nacional única e comum. [...]”
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porção de coisas que acontecem nesse contexto de fronteira e
que a criança é que tem que se virar ‘ela é que se vire’, se ela não
aprende o problema é dela. (Entrevista realizada com a professo-
ra Marina, em novembro de 2010, concedida a Cirlani Terencia-
ni). (TERENCIANI, 2011, p. 151)
Esta professora reconhece que o preconceito em relação aos paraguaios e ao
Paraguai se faz presente na concepção dos próprios professores, que teriam o papel
de, ao contrário, promoverem situações e um ambiente de ensino-aprendizagem em
que as diferenças fossem respeitadas e pudessem dialogar.
Silva (2000), ao discutir identidade e diferença e suas relações com os sistemas
de representação que lhe dão suporte e sustentação, aponta as implicações pedagó-
gicas e curriculares dessas conexões entre identidade e representação e afirma que:
[...] A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer
oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolves-
sem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das
formas dominantes de representação da identidade e da diferen-
ça. (SILVA, 2000, p. 92)
Considerando esta afirmação de Silva na relação com as ideias presentes na
próxima narrativa a ser apresentada, percebemos que a concepção expressa não é
um fato isolado ou de responsabilidade exclusiva do indivíduo professor. A fala do
professor expressa, na verdade, a concepção social presente nas formas dominantes
de representação da identidade e da diferença.
Além disso, mais uma vez, explicita-se o fato de que alguns professores pos-
suem uma concepção distinta em relação aos alunos entendidos como “diferentes”.
Neste sentido, destacamos a narrativa do professor que afirma de maneira incisiva
que os alunos paraguaios “atrapalham” as aulas:
Olha, não existe projeto que tente trabalhar com esta diversida-
de, e isso parte também da direção da escola, que também não
faz nada para se adaptar a isso, ta. [...] Como ele [o aluno] tem
toda essa cultura paraguaia, acaba atrapalhando as aulas, porque
ele está em contato com o que acontece no Paraguai e não no
Brasil, né? (Entrevista realizada com o professor José, concedi-
da a Cirlani Terenciani em novembro de 2010). (TERENCIANI,
2011, p. 152-153)
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Nesta narrativa, o preconceito e distinção em relação ao “outro” relaciona-se
com o fato da “cultura do outro atrapalhar as aulas”. Aqui, podemos perceber, de
forma clara, que os processos educativos escolares pautam-se exclusivamente num
único referencial de cultura. Esta questão nos remete à discussão sobre a educação
numa perspectiva intercultural que, segundo Fleuri (2003, p. 31-32):
[...] deixa de ser assumida como um processo de formação de
conceitos, valores, atitudes baseando-se uma relação unidire-
cional, unidimensional e unifocal, conduzida por procedimen-
tos lineares e hierarquizantes. A educação passa a ser entendida
como o processo construído pela relação tensa e intensa entre
diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamen-
te por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos
culturais em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem
suas respectivas identidades, torna-se um ambiente criativo e
propriamente formativo, ou seja, estruturante de movimentos de
identificação subjetivos e socioculturais. Nesse processo, desen-
volvesse a aprendizagem não apenas das informações, dos con-
ceitos, dos valores assumidos pelos sujeitos em relação, mas so-
bretudo a aprendizagem dos contextos em relação aos quais esses
elementos adquirem significados.[...]
O autor aponta para uma concepção de educação que questiona e rompe sig-
nificativamente com os pressupostos que hegemonicamente têm orientado os pro-
cessos educativos formais, principalmente na educação escolar, conforme pudemos
observar na própria narrativa do professor.
Uma espécie de contraponto a concepção de que os alunos “diferentes” atrapa-
lham as aulas pode ser identificado na narrativa de outra professora:
[...] se não se respeita a identidade deles, as peculiaridades des-
sas cidades, como a gente vai poder ensinar direito, como vai
aprender direito, que tipo de cabeça a gente vai formar, né? Vai
acabar criando pessoas, formando pessoas que... reproduzem os
mesmos preconceitos, porque a impressão que dá é que o brasi-
leiro, ele... o brasileiro ele se identifica com a Europa, e ele dá as
costas para os outros povos latinos, como se ele fosse melhor, dá
pra perceber isso né? O meu receio é que essas crianças acabem
reproduzindo tudo isso no futuro [...]. (Entrevista realizada com
a professora Marina em novembro de 2010, concedida a Cirlani
Terenciani). (TERENCIANI, 2011, p. 155)
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Nesta fala, a professora destaca o fato de que a própria escola reproduz os pre-
conceitos dos brasileiros em relação aos paraguaios tendo em vista que os professores
não “respeitam a identidade deles, as peculiaridades dessas cidades”.
Na narrativa a seguir, além do preconceito em relação aos alunos paraguaios, o
professor afirma que:
Eu acho isso que é muito pouco positivo a presença destes alunos
paraguaios na escola daqui de Ponta Porã. [...] Eu acredito que
pelo aluno ter toda essa cultura paraguaia [...] o aluno fica o dia
todo lá no Paraguai falando o guarani, não é nem o espanhol é
o guarani mesmo, chega aqui ele mistura tudo, a cabeça dele, eu
acho que deve confundir tudo, não só a geografia, mas qualquer
tipo de disciplina. Ele chega aqui completamente perdido, não
consegue fazer a ligação do que está sendo discutido com a ma-
téria. (Entrevista realizada com o professor José, em novembro
de 2010). (TERENCIANI, 2011, p. 172)
A partir das ideias presentes na fala do professor, notamos que existe uma con-
cepção de que a diferença representada pelo aluno de origem paraguaia é vista como
um fator negativo na escola. Na opinião do professor, o fato do aluno ter um convívio
cotidiano com a língua e costumes do Paraguai causa uma “confusão”, pois o aluno
chega à escola e “mistura tudo”. Mas podemos, então, questionar: Não seria esse o
elemento que propiciaria o contato com a diversidade e as potencialidades culturais
presentes no cotidiano da fronteira? Não seria possível que a escola utilizasse essa es-
pecificidade para desenvolver processos de ensino-aprendizagem mais adequados à
realidade de seus alunos, ao invés de impor a homogeneização desses processos com
base num único referencial de conhecimento e cultura?
Essa é uma situação, no mínimo, contraditória, tendo em vista o fato de que a
Geografia, como disciplina escolar, deve considerar as especificidades dos lugares de
vivência dos alunos e as diversas realidades socioespaciais presentes na sala de aula
para trabalhar e desenvolver habilidades que possibilitem ao aluno realizar a leitura
do espaço de forma mais ampla.
Temos, a partir dessas falas dos professores, a formalização no espaço escolar
de uma tradição historicamente construída sobre o desconhecimento do outro, do
preconceito e da ideia de superioridade social. Na escola, portanto, temos a terri-
torialização do tempo histórico uniforme e padronizador da lógica estatal sobre a
materialidade de diferentes temporalidades que ali resistem. Justamente no lugar em
que se deve formar o cidadão com habilidades intelectuais e comportamentais de
solidariedade, respeito à diversidade e de compromisso para com os valores culturais
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e humanos fundamentais para a construção de uma sociedade diversamente livre e
integradora, temos a prática da visão autoritária e preconceituosa, que nega ao outro
se construir enquanto um ser que traça sua própria temporalidade no mesmo terri-
tório. (CANCLINI, 1997; CANDAU, 2008)
Ao justificarem a uniformização cultural a partir da imposição de valores, lín-
gua e atitudes de um território, enquanto Estado-Nação, que institucionalmente se
construiu por uma única perspectiva histórica – a que se reverbera na língua oficial,
na generalização de gostos e costumes eleitos a partir da oficialização dos mesmos
como expressões de nossa brasilidade – os professores reproduzem uma série de de-
sinformações que não permitem aos alunos melhor se localizarem e se orientarem
no mundo a partir de suas condições de estarem num lugar de fronteira. Reduzem o
“outro” a mero elemento a ser adaptado ao que “nós” entendemos dele.
No entanto, ao assim procederem, esquecem-se de que o “nós” só se efetiva na
relação com os “outros”: nenhum “nós” existe isoladamente ou de forma pura, pois
somos uma construção em movimento, em contato e mudança, sempre na intera-
ção com os “outros”, pois sempre somos “outros” além de “nós”. (SAID, 1995; HALL,
2006) Quando o professor não aceita essa condição de sermos sujeitos em constru-
ção no contato com o mundo, negando ao outro em sua diversidade, inviabiliza-se
a possibilidade de nos reconhecermos de fato, pois se enrijece a leitura que se tem
de “nós”, fixando-a num estereótipo de superficialidade e generalização idealizada,
muito distante da realidade.
Ao enrijecer o conhecimento em alguns aspectos, elimina-se toda a multiplicida-
de e diferencialidade inerente à dinâmica espacial da vida. Em nome, ou fundamentan-
do-se nessa padronização histórica de quem somos “nós”, inviabiliza-se entender que
nós somos diversos, que somos múltiplos e que nos transformamos, principalmente
porque nossa formação se deu e se dá no encontro com os muitos “outros”, encontros
que ocorrem em cada lugar em que o mundo acontece, inclusive na escola.
Considerações finais: o que as narrativas podem apontar para a
Geografia Escolar e para a formação de professores dessa área
Acreditamos que as narrativas dos professores de Geografia aqui apresentadas
trazem elementos que provocam a reflexão sobre o papel da Geografia como disci-
plina escolar, bem como sobre a formação de professores nessa área na atualidade.
Podemos perceber que a partir das questões relativas à diferença, identidade e alte-
ridade presentes nas concepções dos professores, é necessário refletirmos sobre os
fundamentos nos quais as mesmas se constroem.
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Uma desses fundamentos é, sem dúvida, a concepção hegemônica de Geografia
(ligada ao currículo oficial e sua gênese com o Estado-Nação), que precisa ser ques-
tionada e repensada no sentido da construção de uma outra concepção, na qual esta
disciplina seja pensada como um instrumento para o exercício cognitivo de apreen-
são dos fenômenos que se espacializam em diversas escalas.
Essa concepção, que necessita ser superada no âmbito da Geografia Escolar,
por sua vez, relaciona-se ao fato de que esta tem como base os conhecimentos e con-
cepções da Geografia acadêmica que se constituiu no âmbito da ciência moderna.
Na medida em que as bases desse conhecimento são questionadas, evidenciam-se os
limites do conhecimento científico e a necessidade do diálogo com outros saberes
para a compreensão da realidade e isso traz desdobramentos também para a escola.
Neste sentido, o questionamento ao saber científico ocidental como única re-
ferência para as disciplinas e currículos escolares tem sido destacado para repensar
o papel da escola e das diferentes disciplinas que compõem o seu currículo. Gabriel
(2008, p. 213-215), ao referir-se ao atual momento como “tempos pós”, afirma que a
escola está:
[...] “sob suspeita”, em que a questão da produção dos saberes
nos remete diretamente às problemáticas da verdade, da racio-
nalidade e da objetividade do conhecimento no processo de legi-
timação dos conteúdos considerados válidos a serem ensinados
e aprendidos. [...].
Ao afirmar que a escola está “sob suspeita”, a autora questiona sua função, tendo
em vista que o próprio projeto societário no qual ela foi concebida mostra sinais de
esgotamento, assim como a racionalidade e a objetividade do conhecimento também
são questionados enquanto base para a legitimação dos conteúdos considerados vá-
lidos a serem ensinados e aprendidos.
Sendo assim, podemos supor que devido à própria concepção de Geografia
hegemônica (herança de sua gênese) – na qual os conteúdos estão pré-estabelecidos
de acordo com essa concepção e basta aplicá-los fazendo algumas adequações – a
Geografia não é entendida/concebida como uma disciplina alfabetizadora, instru-
mento para a compreensão das práticas socioespaciais que permeiam a existência dos
sujeitos nas mais diversas escalas. Isso traz implicações para o trabalho pedagógico
cotidiano na escola, pois conforme verificamos nas narrativas dos professores, há um
enrijecimento do conhecimento em alguns aspectos, eliminando-se toda a multipli-
cidade e diferencialidade inerente à dinâmica espacial da vida.
Deve-se destacar, também, que a própria formação docente em grande parte
está embasada nesta mesma concepção de conhecimento pautada na racionalidade e
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objetividade da ciência moderna, o que dificulta que se superem os seus limites por
parte do professor, produzindo outras formas de conhecimento no interior da escola,
inclusive mais articulado com as especificidades cotidianas dos sujeitos que ali se
encontram, como é o caso das escolas fronteiriças.
Percebe-se que a atuação do professor no contexto escolar não permite o exer-
cício do pensar criativo para as situações que se colocam, ou seja, diante dos conflitos
e tensões que cotidianamente surgem de forma inesperada no interior da escola, o
professor não se sente em condições de elaborar pensamentos que estabeleçam sen-
tidos e perspectivas para abordar as dificuldades e rusgas que ali acontecem. O má-
ximo que consegue é apenas reproduzir um discurso elaborado alhures, por outros
tidos como especialistas em suas áreas científicas.
Neste sentido, podemos dizer que a prática cotidiana do exercício profissional
e os processos desenvolvidos ao longo da formação universitária não capacitam o
professor para ir além dos limites do conhecimento científico e, por conseguinte,
produzir outros conhecimentos a partir das próprias condições colocadas no uni-
verso escolar: tanto a prática profissional quanto o processo de formação visam tão
somente restringir a função desse profissional a reproduzir o que já foi elaborado e
consolidado por outros.
Nas narrativas dos professores aqui destacadas, ficou evidente a dificuldade
deles em articularem as condições e características específicas da escola em área de
fronteira e, por conseguinte, dos sujeitos ali presentes, com a proposta maior de Ge-
ografia Escolar pautada nos referenciais da Geografia acadêmica.
Daí o fato de ser muito presente, nas concepções dos professores, a ideia de que
a diferença, o diferente, identificado no “outro”, atrapalha, dificulta o desenvolvimen-
to das aulas e dos conteúdos da Geografia sempre pensado a partir da homogeneiza-
ção baseada num único referencial de conhecimento e de cultura.
Em nome da necessidade de uma uniformização curricular e cultural, nega-se
ou ignora-se as potencialidades inerentes à diferença, elemento presente de forma
intensa no cotidiano da escola fronteiriça e de fundamental importância para a com-
preensão das diferentes espacialidades que configuram a realidade da fronteira, lugar
de vivência desses alunos.
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Narrativas de professores de Geografia: a escrita de si como
projeto de conhecimento e formação
Francisco das Chagas Rodrigues da Silva
Bárbara Maria Macedo Mendes
Introdução
O tema da formação de professores é debatido hoje em larga escala, abrangen-
do uma grande variedade de pesquisas no mundo todo, com um lugar de destaque na
preocupação de especialistas de diferentes áreas, políticos e gestores públicos. Nesse
contexto, vimos surgir algumas concepções, desaparecer e/ou atualizar outras, mu-
dando-se a forma de pensar a formação do professor. Foi assim que, nas últimas três
décadas, a formação do professor passou a ocupar a centralidade da problemática
educacional, sendo constantemente abordada como resposta a muitas das questões
que envolvem a escola e o ensino.
Essa é uma tendência mundial, mas sua maior efervescência se configura nos
países ocidentais, principalmente na Europa, na América do Norte e na América La-
tina, onde a questão da formação docente ganhou maior visibilidade e importância,
sobretudo a partir das formulações decorrentes do movimento de profissionalização
do ensino e dos professores. Tal movimento surge, a princípio, nos países anglo-sa-
xões e, posteriormente, na Europa, dando origem a uma espécie de “onda nova” cujos
efeitos rapidamente se espalharam e passaram a influenciar a forma de conceber a
educação, especialmente em relação à prática de formação de professores.
Do ponto de vista ético, político e ideológico, o movimento de profissiona-
lização do ensino e, em particular, dos professores, busca renovar os fundamentos
epistemológicos do ofício de professor, constituindo um movimento quase interna-
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cional e, ao mesmo tempo, um horizonte para onde convergem os dirigentes políticos
da área de Educação, as reformas das instituições educativas e as novas ideologias
da formação e do ensino. (TARDIF, 2008) O movimento de renovação do ensino e
dos professores representa uma verdadeira mudança de paradigma, originando uma
epistemologia da prática docente, caracterizada pelo conhecimento do trabalho do
professor em todas as suas dimensões.
Trata-se de uma nova visão, que se volta para os professores como seres huma-
nos, considerando suas trajetórias profissionais e seu ciclo de vida pessoal e profis-
sional, que constituem os aspectos nucleares de toda proposta de mudança e apri-
moramento profissional docente. (BOLÍVAR, 2002) Configura-se, assim, a partir da
década de 1980, uma literatura pedagógica internacional baseada em estudos sobre
a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as autobiografias do-
centes e o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores. (NÓVOA, 2000)
Nessa perspectiva, os estudos sobre as itinerâncias de vida, escolarização e for-
mação pessoal e profissional ganharam importância na investigação e entendimen-
to de questões relacionadas aos processos educativos escolares. Com isso, a questão
central da formação docente e, por conseguinte, da escola e do ensino, coloca em
evidência a necessidade de se compreender o processo de formação docente a partir
dos modos particulares e coletivos de tornar-se e ser professor, considerando experi-
ências educativas pessoais e profissionais vivenciadas pelos professores em diferentes
contextos, tempos e espaços, ao longo da vida.
De acordo com Cavalcanti (2012), o campo da pesquisa em ensino de Geo-
grafia no Brasil está em processo de ampliação, desenvolvimento e reconfiguração,
surgindo novos caminhos, ampliando e redefinindo os espaços, objetos e métodos de
investigação. Nesse âmbito, destacamos os estudos baseados nas histórias de vida e
experiências educativas do professor, vivenciadas em diferentes contextos (no ensino
básico, nos cursos de formação inicial e continuada e no exercício da profissão), e
suas implicações nos modos de tornar-se e ser professor de Geografia, de aprender e
ensinar Geografia, ou seja, na constituição da Geografia Escolar. Esses estudos, em-
bora ainda em pequena quantidade, indicam a configuração de uma linha de traba-
lho, articulada com a Didática da Geografia com foco na epistemologia da formação
e prática docente em Geografia, examinando os processos (trajetórias, itinerâncias,
percursos, histórias de vida pessoal, escolar e profissional) de formação e suas resso-
nâncias na atividade educativa de ensinar Geografia na escola, com as produções de
Portugal; Souza, (2013); Souza; Portugal; Meireles, (2012); Rios et al, (2012); Silva,
(2010); dentre outros.
Diante disso, objetivamos neste texto refletir sobre o processo de formação
do professor de Geografia a partir de narrativas docentes, com foco nos modos de
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aprender e ensinar Geografia, de tornar-se e ser professor, construídos ao longo da
vida. Para isso, evidenciamos as narrativas autobiográficas como fonte de pesquisa
e produção de conhecimento, bem como suas potencialidades para a investigação
da formação docente. Além disso, analisamos as trajetórias de formação de alguns
professores, revelando imagens e representações por eles construídas acerca da Ge-
ografia e seu ensino, assim como suas implicações no processo de tornar-se e ser
professor de Geografia.
Narrativas autobiográficas: a escrita de si como projeto de
conhecimento
Enquanto metodologia de pesquisa, a origem da autobiografia está associada
a uma mudança paradigmática no âmbito das Ciências sociais, nomeadamente da
Sociologia e da Antropologia, que tiveram seus postulados científicos contestados
por perspectivas mais modernas de análise da realidade. Essa mudança colocou em
evidência a necessidade de se repensar a forma de ver e estudar a realidade, de se esta-
belecer um novo estatuto científico capaz de dar conta de explicar as pequenas coisas,
o cotidiano, o simples, o comum, em detrimento das grandes explicações. Assim,
consistiu na retomada do singular, do específico, do pessoal, como forma de respon-
der às questões que se inscrevem ao nível da pessoa, dos diferentes modos de ser e
estar no mundo. O que levou a estabelecer e potencializar a relação entre o singular e
o universal, o específico e o geral, a pessoa e o mundo, tendo em vista que “[...] se nós
somos, se todo indivíduo é, a reapropriação singular do universal social e histórico
que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma
práxis individual”. (FERRAROTTI, 1988, p. 26-27, grifo do autor)
Como método de investigação científica, as narrativas autobiográficas vêm se
desenvolvendo sob uma perspectiva particular: a de estabelecer a relação entre a pes-
soa e o mundo e, assim, fazer compreender a inquestionável implicação entre o eu e
o outro, entre a singularidade de uma vida e as grandes estruturas da vida humana.
A pessoa não vive e nem se faz sozinha e sua trajetória tem uma implicação históri-
ca e social, ou seja, sua forma de ser e estar no mundo tem a ver com as condições
contextuais existenciais que marcam toda sua vida. A potencialidade das narrativas
autobiográficas como fonte de pesquisa está no fato que a história de vida de uma
pessoa pode revelar muito além de simples acontecimentos, caracterizando-se como
meio de compreensão dos contextos, dimensões e implicações pessoais que constro-
em historicamente cada indivíduo na interface consigo mesmo, o outro e o mundo a
sua volta, considerando que
Narrativas de professores de Geografia | 157
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todas as narrações autobiográficas relatam, segundo um corte
horizontal ou vertical, uma praxis humana. [...] toda a praxis
humana individual é actividade sintética, totalização activa de
todo um contexto social. Uma vida é uma praxis que se apropria
das relações sociais (as estruturas sociais), interiorizando-as e vol-
tando a traduzi-las em estruturas psicológicas, por meio da sua
actividade desestruturante-reestruturante. Toda a vida humana se
revela, até nos seus aspectos menos generalizáveis, como a sín-
tese vertical de uma história social. Todo o comportamento ou
acto individual nos parece, até nas formas mais únicas, a síntese
horizontal de uma estrutura social. (FERRAROTTI, 1988, p. 26,
grifo do autor)
O interesse pelas narrativas autobiográficas no meio científico é a expressão de
um movimento social que trouxe a perspectiva dos sujeitos face às estruturas e aos
sistemas, da qualidade face à quantidade, da vivência face ao instituído. (NÓVOA,
2000) Isso significa tomar o próprio sujeito, em sua forma de ver, experienciar e re-
presentar o mundo e as coisas que o constituem como objeto de análise da realidade e
subsídio para a produção de conhecimento relativo à vida e à prática social das pesso-
as. As narrativas autobiográficas centradas nas histórias de vida pessoais afirmam-se
como possibilidade de tomar a experiência humana como objeto de conhecimento,
passivo de mensuração, análise e interpretação.
Na área da Educação, as narrativas vêm sendo utilizadas basicamente em três
projetos: 1) na construção de conhecimentos e desenvolvimento de capacidades e
atitudes; 2) no desenvolvimento pessoal e profissional de professores; e 3) na inves-
tigação educativa. (REIS, 2008) Na pesquisa sobre formação de professores, as nar-
rativas autobiográficas configuram-se como projeto de conhecimento de aspectos
muito sutis, ao nível das dimensões mais íntimas e pessoais dos docentes, revelando
personalidades, identidades, comportamentos e contextos relativos aos processos
formativos e as suas práticas educativas.
Nesse processo, o professor ocupa um lugar central, sendo ele próprio o ele-
mento norteador do conhecimento a ser produzido sobre sua vida, sua pessoa e sua
prática social e profissional, pois é de sua prática e suas necessidades formativas que
partirmos: é através dele e com ele que investigamos e é para ele, enquanto profissio-
nal educador, que se justifica qualquer iniciativa de investigação nesta perspectiva.
A pesquisa com narrativas autobiográficas de professores tem um propósito funda-
mental, o de dar vez e voz ao professor e, dessa forma, oportunizar-lhe aprender,
crescer e se desenvolver a partir de suas experiências pessoais e profissionais, num
“processo de caminhar para si”, o qual se caracteriza
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[...] como um projeto a ser construído no decorrer de uma vida
cuja atualização consciente passa, em primeiro lugar, pelo proje-
to de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, va-
lorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e
com o ambiente humano e natural. (JOSSO, 2004, p. 59)
As narrativas autobiográficas de professores inscrevem-se como processo in-
trínseco de conhecimento e autoconhecimento, potencializando a escrita de si como
projeto de pesquisa e formação, numa perspectiva de autoformação centrada na ex-
periência. Como projeto de formação, a construção da narrativa centrada nos per-
cursos formativos oportuniza a pessoa que conta a própria história de vida retomar
suas vivências passadas na interface passado e presente, individual e coletivo, pessoa
e mundo que, ao assumir a forma de experiência, potencializa o caráter formador
desse processo. Isso porque a situação de construção da narrativa coloca o ator (nar-
rador) num campo de reflexão, de tomada de consciência sobre sua existência, de
sentidos atribuídos à formação ao longo da vida, de conhecimentos adquiridos, de
análises e compreensões sobre a vida, do ponto de vista psicológico, antropológico,
sociológico e linguístico que a narração de si e sobre si exige. (SOUZA, 2006)
Com isso, a fertilidade das narrativas autobiográficas das trajetórias de forma-
ção dos professores representa a possibilidade de produzir um conhecimento mais
adequado para compreendê-los como pessoas e como profissionais e, portanto, mais
útil para descrever e para mudar as práticas educativas. (NÓVOA, 2000) A investiga-
ção baseada em narrativas autobiográficas abre uma perspectiva para a apreensão e
compreensão do processo constitutivo do professor, enquanto pessoa e profissional,
em sua relação consigo mesmo, o outro e mundo. Essa perspectiva de investigação
tem como uma de suas principais características a possibilidade de produzir conhe-
cimento a partir da relação entre o singular e o universal, a pessoa e o seu contexto,
configurando-se como uma dialética da experiência, dos diferentes modos de ser e
estar no mundo.
Do ponto de vista epistêmico-metodológico, a argumentação central das narra-
tivas dos percursos formativos de professores é a dimensão da experiência no contex-
to da vida da pessoa, tomada como objeto de conhecimento e viés de interpretação da
realidade, onde a experiência é tomada como experiência formadora, caracterizada
como processo de aprendizagem e conhecimento, elaborado em três níveis: 1) das
aprendizagens e conhecimentos existenciais; 2) das aprendizagens e conhecimentos
instrumentais e pragmáticos; e 3) das aprendizagens e conhecimentos compreensivos
e explicativos. (JOSSO, 2004) A experiência formadora refere-se à implicação global
do sujeito com sua própria existência, uma vez que
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[...] a formação experiencial designa a atividade consciente de
um sujeito que efetua uma aprendizagem imprevista ou volun-
tária em termos de competências existenciais (somáticas, afeti-
vas, conscientes), instrumentais ou pragmáticas, explicativas ou
compreensivas na ocasião de um acontecimento, de uma situ-
ação, de uma atividade que coloca o aprendente em interações
consigo mesmo, com os outros, com o meio natural ou com as
coisas, num ou em vários registros. (JOSSO, 2004, p. 55)
A experiência formadora diz respeito ao processo de constituição psicossomá-
tica da pessoa, ao modo como cada um aprende e (re)significa essa aprendizagem
em relação a si mesmo, ao outro e ao mundo, e à capacidade de transformação das
vivências particulares em experiências, a partir da tomada de consciência de si mes-
mo e de suas interações com as outras pessoas e com o meio social e natural. Diz res-
peito, pois, às vivências que marcam a vida de cada indivíduo e que os transformam
naquilo que são enquanto pessoa e profissional. No âmbito da formação docente, a
experiência formadora tem a ver com os processos educativos, com a aprendizagem
da profissão e com o desenvolvimento profissional do professor, dentro e fora dos
programas de formação, ao longo de sua trajetória escolar e profissional.
A pesquisa centrada nas narrativas docentes parte da concepção de que os pro-
cessos educativos, de aprendizagem e desenvolvimento pessoal/profissional compre-
endem a implicação da pessoa consigo mesma e com os contextos onde se consti-
tuem suas experiências pessoais e profissionais de formação. A pesquisa baseada nas
narrativas autobiográficas de professores tem por finalidade revelar o vivido para
além dos fatos e acontecimentos, constituindo uma forma particular de apreensão
da experiência e, na medida do possível, da complexidade que a caracteriza, consi-
derando que
[...] a narrativa de formação serve de charneira para a compre-
ensão da experiência, pois engloba e ultrapassa o ‘vivido’. Encon-
tramos nela o antes e o depois, o fora e o dentro da experiência
presente, com o distanciamento próprio da escrita. Para mais,
os percursos narrativo e discursivo tecem no texto a dinâmica
da relação com o saber, da relação com os outros e também da
relação com os diferentes aspectos do eu. (CHENÉ, 1988, p. 94,
grifo do autor)
Não obstante, não é toda a experiência que se apresenta na narrativa autobio-
gráfica, pois o relato da experiência é, na verdade, um fragmento de vida e, na sua
construção, a pessoa (o narrador) encontra-se afastada de si própria, de modo que,
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por mais que se conte a experiência esta nunca cabe por inteiro na narrativa. (CHE-
NÉ, 1988) No processo de investigação não temos acesso direto à experiência do
outro, de forma que lidamos apenas com a representação dessa experiência por meio
do ouvir contar, dos textos, da interação que se estabelece e das interpretações fei-
tas. (GALVÃO, 2005) Dessa forma, na narração/escrita de si a pessoa lembra o que
aconteceu, coloca a experiência em uma sequência e joga com a cadeia de aconteci-
mentos que constroem a vida individual e coletiva, de modo que contar histórias im-
plica estados intencionais e preserva perspectivas particulares. (JOVCHELOVITCH;
BAUER, 2007)
Esse processo de lembrar e narrar os acontecimentos que circunscrevem a ex-
periência é mediado pelas condições existenciais da pessoa, pelos modos particulares
com que cada um se coloca diante de si mesmo, dos outros e do mundo. A escrita
de si se constrói na interface experiência, lembrança e narrativa (relato), consistindo
em um processo de (auto)conhecimento e revelação a partir das formas singulares
com que cada um vivencia, apreende e representa o mundo e as coisas que o consti-
tui. Nas narrativas autobiográficas, a experiência revela-se a partir da perspectiva do
sujeito, pela ótica de quem a vivenciou, evidenciando os modos como cada pessoa se
(re)conhece e se representa diante de si mesma, do outro e dos diferentes contextos.
A escrita de si revela muito mais que os acontecimentos circunscritos, informando
também as implicações da pessoa com sua experiência, a forma como ela vê, sente,
avalia, julga, compreende e representa sua história de vida.
A narrativa escrita apresenta-se, então, como uma tentativa de
dar acesso a um percurso interior que evolui correlativamente
(mesmo quando há desfasamentos temporais) para um percurso
exterior caracterizado por acontecimentos, atividades, desloca-
mentos, relações contínuas e encontros, pertenças etc. É preci-
samente na exposição por meio da linguagem das componentes
objetivas deste itinerário exterior que se exprime, implícita ou
explicitamente, o olhar lançado sobre ele e as dimensões sensí-
veis que dão cor a essas vivências ou experiências. Assim, a nar-
rativa escrita fornece no próprio movimento da sua escrita fatos
tangíveis, estados de espírito, sensibilidades, pensamentos a propó-
sito de, emoções e sentimentos, bem como atribuições de valores.
(JOSSO, 2004, p. 186, grifo do autor)
Do ponto de vista processual, a escrita de si compreende uma atividade de ela-
boração intelectual e de socialização do pensamento, reconstituindo a experiência
vivida a partir de suas significações no contexto de vida da pessoa que se coloca
numa narrativa autobiográfica. Na pesquisa sobre formação de professores que se
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utiliza de narrativas autobiográficas centradas, no plano da interioridade a pessoa
que narra se deixa levar pelas associações livres para evocar as suas experiências e
organizá-las numa coerência narrativa em torno do tema da formação e, no plano da
exterioridade, a socialização da autodescrição de um caminho, com as suas continui-
dades e rupturas, envolve competências verbais e intelectuais que estão na fronteira
entre o individual e o coletivo. (JOSSO, 2004) Nesse processo, o acesso à experiência
narrada se dá através das recordações-referências, que representam, simbolicamente,
aquilo que o autor da narrativa compreende como elementos constitutivos de sua
formação, haja vista significarem, ao mesmo tempo, uma dimensão visível que apela
para as percepções ou para as imagens sociais, e uma dimensão invisível que apela
para emoções, sentimentos, sentidos ou valores, constituindo
[...] experiências que podemos utilizar como ilustração numa
história para descrever uma transformação, um estado de coisas,
um complexo afetivo, uma idéia, como também uma situação,
um acontecimento, uma atividade ou um encontro. E essa his-
tória me apresenta ao outro em formas socioculturais, em re-
presentações, conhecimentos e valorizações, que são diferentes
formas de falar de mim, das minhas identidades e da minha sub-
jetividade [...]. (JOSSO, 2004, p. 40)
Essas recordações-referências configuram-se como dispositivo de acesso à
lembrança, seleção e organização de vivências singulares que circunscrevem a ex-
periência, externando, reconstruindo e apresentando-a a partir das implicações da
pessoa com seu processo de formação. Na pesquisa sobre formação de professores, as
recordações-referências inscrevem-se como lembranças de fatos, acontecimentos, si-
tuações e momentos que marcam os percursos formativos dos docentes, do ponto de
vista da formação, da aprendizagem da profissão e do desenvolvimento pessoal/pro-
fissional. Essas lembranças, por sua vez, configuram-se como “microssituações”, ou
episódios significativos (JOSSO, 2004), que são “[...] marcadas pelos acontecimentos
vividos pelos sujeitos e, na maioria das vezes, são transformadas em experiências e
carregadas de um forte componente emocional [...]”. (SOUZA, 2006, p. 63)
Na pesquisa educacional e, em especial, na pesquisa sobre formação de profes-
sores, a utilização das narrativas autobiográficas significa, numa visão ampla, a valo-
rização da perspectiva do sujeito a partir da epistemologia dos processos formativos.
Ou seja, significa colocar o professor, em todas as suas dimensões, enquanto pessoa,
profissional e ator social, na centralidade de seu processo de formação e das questões
que se formulam em torno deste. Trata-se, pois, de descobrir e considerar o estatuto
pessoal e singular do professor. Ao contrário da perspectiva positivista, que valori-
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za a objetividade e pretende reforçá-la através do distanciamento entre investigador
e investigado, a pesquisa fundamentada nas narrativas assume-se como subjetiva e
valoriza essa subjetividade na tentativa de compreender a realidade, convidando os
investigados a falarem de si mesmos, dando-lhes a palavra. (REIS, 2008)
A pesquisa narrativa, ao valorizar e explorar as dimensões pessoais dos sujeitos,
através de uma abordagem subjetiva do objeto de conhecimento, tem a vantagem de
favorecer a perspectiva do sujeito, em suas dimensões mais sutis, ao considerar suas
emoções, sentimentos, percepções, vivências e trajetórias de vida. Assim, a narrativa
pode dar sentido à experiência humana, de modo que “[...] a narrativa surge como
a metodologia mais adequada à compreensão dos aspectos contextuais, específicos
e complexos dos processos educativos e dos comportamentos e decisões dos profes-
sores [...]”. (REIS, 2008, p. 23) Na pesquisa sobre formação de professores, em que se
pretende dar conta de aspectos íntima e inextricavelmente ligados à subjetividade,
à singularidade e às dimensões mais pessoais dos investigados, o uso das narrativas
docentes potencializa a investigação, abrangendo um nível mais elevado de compre-
ensão da realidade.
Trajetórias de formação: imagens e representações da Geografia e
seu ensino, modos de tornar-se e ser professor
Neste estudo, partimos do pressuposto que o processo de formação docente
acontece ao longo da vida, compreendendo experiências sociopessoais e profissio-
nais, dentro e fora dos ambientes próprios da formação, nos espaços escolares, no
trabalho e nas demais instâncias de convivência e interação social. Entendemos que
o professor se constitui daquilo que ele é enquanto pessoa, ator social historicamente
situado, que construiu uma história até vir a ser o que ele é hoje. (SILVA, 2010) Logo,
compartilhamos da ideia de que o professor é, antes de qualquer coisa, uma pessoa e
que ele não existe fora da pessoa que é, pois “[...] não é apenas uma parte de nós que
se torna professor [...]”. (ASHTON-WARNER apud HOLLY, 2000, p. 82)
A maneira como o professor ensina depende diretamente daquilo que é ele
enquanto pessoa (NÓVOA, 2000), de tal forma que seu estilo de vida, dentro e fora
da escola, suas identidades e culturas ocultas repercutem fortemente nos modelos de
ensino e na prática educativa. (GOODSON, 2000) Há muitos fatores que influenciam
o modo de pensar, de sentir e de atuar dos professores, no decorrer do processo de
ensino: o que são como pessoas e os seus diferentes contextos biológicos e experien-
ciais. (HOLLY, 2000)
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Enquanto pessoa, o professor vivencia diversas experiências, no decurso da
vida, as quais vão marcando e demarcando sua personalidade, sua identidade, seus
modos de ser e estar no mundo, o que implica numa forma particular de se tornar e
ser professor. Essas experiências vivenciadas pelos professores são, em grande parte,
a fonte dos saberes, dos conhecimentos, competências, habilidades, técnicas e méto-
dos que eles mobilizam na prática docente. A família e o ambiente de vida social, a
educação no sentido lato, a educação básica, os cursos de formação de professores, os
estágios, a formação continuada, a mobilização dos recursos pedagógicos, a prática
docente na escola e na sala de aula, o convívio e a troca de experiência com os pa-
res compreendem fontes sociais de aquisição dos saberes dos professores. (TARDIF,
2008)
As vivências e experiências de vida pessoal, profissional e social dos professo-
res têm um caráter formativo, configurando-se como espaço-tempo de formação e
aprendizagem do trabalho docente. Os processos de aprender a profissão, ou seja, de
aprender a ensinar, de aprender o trabalho docente, de aprender ser professor são
processos de longa duração e sem um estágio final estabelecido a priori. (MIZUKA-
MI, 1996) A formação pedagógica dos professores é tecida em uma relação socioin-
dividual que se deu no contexto da trajetória escolar, dos cursos de formação e da
prática profissional. (SAVELI, 2006)
Nessa perspectiva, o saber profissional do professor compreende um conheci-
mento dinâmico e não estático que se desenvolve ao longo da trajetória acadêmico
-profissional, em diferentes momentos: na experiência como discente quando, ainda
como aluno o professor transita pelo sistema educativo e assume uma determinada
visão da educação marcada, por vezes, por estereótipos e imagens da docência difí-
ceis de serem superados, na formação inicial, que tem um papel decisivo não apenas
na promoção do conhecimento profissional, mas de todos os aspectos da profissão
docente, promovendo as primeiras eventuais mudanças na forma de o futuro profes-
sor encarar atitudes, valores e funções relativas à docência, na vivência profissional
imediatamente posterior no campo da prática educacional que leva à consolidação
de um determinado conhecimento profissional (assumindo-se esquemas, pautas e
rotinas da profissão), e na formação permanente que tem como uma de suas fun-
ções questionar ou legitimar o conhecimento profissional posto em prática. (IMBER-
NÓN, 2000)
Assim, concebemos a formação docente como um processo que se dá no de-
correr da trajetória de vida pessoal e profissional do professor, compreendendo suas
experiências como aluno na educação básica e nos cursos de formação inicial, e como
profissional no exercício da docência, na perspectiva de uma formação contínua e
fundada nas aprendizagens experienciais. Por isso, o conhecimento dessas experi-
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ências é importante para se compreender o processo de formação docente, conside-
rando as implicações das trajetórias de formação nos processos de aprendizagem do
saber-ensinar.
No âmbito deste estudo, as narrativas autobiográficas de professores de Ge-
ografia permitiram apreender experiências educativas vivenciadas na trajetória de
escolarização básica, ou pré-profissional. Os fatos, momentos e situações lembrados
e relatados pelos professores avultaram como experiências que marcaram suas traje-
tórias de formação, considerando que as vivências narradas destacam-se das demais
em função das motivações que os levaram a revisitarem suas práticas passadas de
formação. Essas lembranças revelam imagens e representações construídas a cerca da
Geografia e seu ensino no decorrer das trajetórias de escolarização dos professores,
as quais, em tese, apresentam-se como marcadores identitários com fortes repercus-
sões nos modos de tornar-se e ser professor de Geografia.
Experiências de escolarização pré-profissional: caminhos da
aprendizagem docente
A aprendizagem da profissão docente não é restrita a uma fase específica, em-
bora existam períodos que marcam mais significativamente os percursos formativos
e profissionais do professor. As práticas educativas anteriores à formação acadêmica
(universitária) caracterizam-se como fontes importantes de seus saberes profissio-
nais docentes, considerando que essas vivências oportunizam um contato direto do
futuro professor com a realidade da escola e do ensino. O contato prévio do professor
com sua futura profissão se dá pela socialização do ensino ou, especificamente, pela
socialização do professor enquanto aluno, o que permite concluir, entre outras coisas:
a) que uma boa parte do que o professor sabe sobre o ensino, sobre os papeis dos pro-
fessores e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida e, sobretudo, de
sua história de vida escolar; b) que o professor é um trabalhador que entra em conta-
to com seu ambiente de trabalho muito antes de assumir sua função profissional, de
modo que todo professor, antes de assumir a função docente, foi aluno e vivenciou,
durante um tempo significativo, o cotidiano da profissão que veio a exercer; c) que
as experiências escolares vivenciadas na condição de aluno imprimem na personali-
dade do futuro professor um conjunto de crenças, representações e certezas relativas
à atividade docente, fenômenos estes que permanecem fortes e estáveis ao longo do
tempo; d) e que os alunos, ao passarem pelo curso de formação, não modificam suas
crenças anteriores sobre o ensino e que quando começam a trabalhar como professo-
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res são, principalmente, essas crenças que eles reativam para solucionar seus proble-
mas profissionais. (TARDIF, 2008)
Há fortes indícios de que os saberes adquiridos ao longo da trajetória de esco-
larização pré-profissional têm um peso importante na composição dos saberes que
serão mobilizados e utilizados em seguida no exercício da docência. No decorrer de
sua trajetória escolar, o futuro professor internaliza um conjunto de conhecimen-
tos, competências, habilidades, técnicas, bem como de concepções, crenças, repre-
sentações, hábitos, valores etc., “[...] os quais estruturam a sua personalidade e suas
relações com os outros (especialmente com as crianças) e são reatualizados e reutili-
zados, de maneira não reflexiva mas com grande convicção, na prática de seu ofício
[...]”. (TARDIF, 2008, p. 72) Nessa perspectiva, a experiência como discente, cada vez
maior, que é partilhada com a maioria da população, que pressupõe uma socialização
do ensino a partir das concepções e crenças, permanece como uma marca às vezes
mais importante que a formação inicial profissional desenvolvida nos cursos de for-
mação. (IMBERNÓN, 2000)
As experiências escolares do professor, enquanto aluno dos níveis primários e
intermediários de ensino, na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino
médio, configuram-se como espaços e tempos importantes para a aprendizagem do
trabalho docente, ou seja, para a constituição e o desenvolvimento de um modo par-
ticular de se tornar e ser professor. De fato, é na trajetória escolar, desde os primeiros
anos de escolarização, que todo professor começa a se aproximar da profissão que
um dia irá exercer, vivenciando cotidianamente as rotinas, os rituais e as práticas
peculiares a sua função de docente. O professor é, antes de qualquer coisa, antes de
se tornar professor, um aluno, um aprendiz que vivenciou e, em situações especiais,
ainda vivencia o cotidiano e o contexto do ensino do ponto de vista de quem aprende,
de quem participa do processo ensino-aprendizagem na condição de aluno. Ao longo
da trajetória escolar o futuro professor internaliza a cultura da escola e do ensino, da
docência e da profissão docente, constituindo um repertório de saberes, os quais,
seguramente, implicarão fortemente no seu modo de ser professor.
No campo da formação de professores, alguns estudos ressaltam a importância
da história de vida dos professores, particularmente a de sua socialização escolar para
se compreender algumas questões relativas à formação e à prática pedagógica, como
a escolha da profissão, a forma de ensinar e a relação afetiva no e com o trabalho
docente. (TARDIF; RAYMOND, 2000) Esses estudos mostram que o saber-ensinar,
à medida que exige conhecimentos da vida, saberes e competências que dependem
da personalidade dos atores, de seu saber-fazer pessoal, tem sua origem associada à
história de vida familiar e escolar dos professores. Com isso, mostram que a relação
do professor com a escola já se encontra estruturada e que as etapas anteriores de sua
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socialização profissional não ocorrem num terreno neutro, de modo que o tempo de
aprendizagem do trabalho não se limita à duração da vida profissional, mas inclui
também a existência pessoal dos professores, os quais, de certa forma, aprenderam
seu ofício antes de iniciá-lo.
Muitos estudos autobiográficos permitem identificar experiências familiares,
escolares ou sociais citadas pelos alunos (futuros professores) como fontes de suas
convicções, crenças ou representações e apresentadas frequentemente como certe-
zas, relacionadas com diversos aspectos do ofício de professor: papel do professor,
processo ensino-aprendizagem, características dos alunos, estratégias pedagógicas,
gestão da classe etc. (TARDIF; RAYMOND, 2000) Esses estudos concluíram que as
autobiografias mencionam que experiências vivenciadas antes do curso de formação
profissional inicial para a docência levam não somente a compreender o sentido da
escolha da profissão, mas influem também na orientação e nas práticas pedagógicas
atuais dos professores.
Neste estudo, focamos as experiências escolares pré-profissionais vivenciadas
por professores de Geografia no ensino fundamental e médio, revelando as implica-
ções dessas práticas educativas em seus processos de formação e aprendizagem da
docência, de se tornar e ser professor de Geografia. Para tanto, na análise das narra-
tivas privilegiamos dois aspectos, compreendendo o início da escolarização e os pri-
meiros contatos com o saber geográfico e as lembranças das aulas e dos professores
de Geografia ao longo da educação básica, explicitando vivências e acontecimentos
que marcaram singularmente a trajetória escolar dos professores nessa fase específica
de suas vidas.
Início da escolarização e primeiros contatos com o saber geográfico
As lembranças do início da escolarização, bem como dos primeiros contatos
dos professores com o saber geográfico, configuram-se como contextos singulares
de aprender e se relacionar com o ensino de Geografia, abrindo caminho para se
compreender seus processos de formação. Ao lembrar-se de seus primeiros anos de
escolarização, os professores implicaram-se em uma viagem pela infância, pela es-
cola e pelo contexto social da época, identificando espaços, tempos, pessoas, situa-
ções e acontecimentos que marcaram significativamente suas trajetórias escolares.
De maneira geral, os professores guardam em suas lembranças uma imagem positiva
da escola, caracterizada como um lugar aconchegante, alegre e divertido, por vezes
identificado com a casa, o ambiente sociofamiliar, reafirmando a ideia de que as ex-
periências educativas têm uma implicação pessoal e de que a formação extrapola
os limites da escola, articulando-se com a vida da pessoa em diferentes dimensões,
tempos e espaços:
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[...] Guardo com muita estima este nome, o da tia Lua, que a memória não mais me
permite relembrar a fisionomia, assim como lembro vagamente de alguns coleguinhas de
classe. Guardo, ainda, junto às boas lembranças dos brinquedos lego e daqueles de montar,
estilo engenheiro, dentre outros, algumas das minhas tarefas escolares (ainda hoje com
minha mãe), em que tudo que sabia fazer era pintar, recortar, colar e escrever meu nome
sob a forma de várias bolinhas. No pátio, além das brincadeiras de correr, os eventos fol-
clóricos do estado de Pernambuco, são lembranças bastante caras [...] Lembro vagamente
dos professores, mas muito nitidamente de muitos dos coleguinhas, das brincadeiras e his-
tórias inventadas, inclusive de uma fuga realizada com uma coleguinha de nome Violeta
que, pelo fato de muito parecer comigo, muito clara e magrinha, mentíamos para o vigia
dizendo que éramos gêmeas e que iríamos para casa porque nossa mãe estaria chamando.
Na verdade, o motivo das mentiras era um parque maravilhoso que se localiza logo atrás
do prédio da escola cujo nome não recordo, mas que jamais esqueci das lindas e enormes
árvores, o cheiro do eucalipto tão característico e marcante, flores coloridas, aquela névoa
condizente com o clima frio da região, a cata das flores (?) do pinheiro que, muito utili-
zado para enfeites de Natal, para nós servia bastante para enfeitar nossas brincadeiras.
Gostávamos muito de cantar na escola, na hora do recreio com minhas colegas. Era o auge
do Balão Mágico, A Casa de Brinquedos e outros discos de músicas infantis que meu pai
nos presenteava e que nos fazia muito bem [...] Nesse período, tinha um amor incondicio-
nal por meus livros, pela realização das tarefas ajudadas pela minha mãe, sempre muito
exigente e presente. Adorava reproduzir os desenhos dos livros [...] As festas folclóricas
sempre muito presente na minha memória estudantil porque é uma marca nas escolas do
meu Estado. As comidas típicas, danças, músicas, lendas, gincanas, palestras educativas
sobre combate a doenças, passeios à zona rural do município. Tudo isso é muito presente e
sempre fez da escola um ambiente muito agradável para mim. Jamais enfadonho ou uma
obrigação. (P1)
[...] Eu me lembro muito bem desse período, principalmente por que eu estudava numa
escola onde minha mãe trabalhava, que hoje está aposentada. Nessa escola eu cursei todo
o ensino fundamental (antigo ginásio). Apesar de minha mãe trabalhar lá, eu gostei de
ter estudado nessa escola. Minha mãe era muito rígida, e às vezes ficava no meu pé, mas
ela sempre foi muito marcante na minha vida e fez com que eu me tornasse uma pessoa
responsável desde muito cedo. Então, eu sempre fui um aluno que tirava boas notas, por
que eu não gostava de tirar nota baixa, sempre procurei estudar, prestava atenção às aulas,
participava das aulas com os professores [...] Outra coisa que marcou muito esse período
foram as amizades que eu fiz, os colegas da escola, as pessoas, os professores, que eu jamais
esqueci. Ainda hoje lembro de alguns professores, principalmente da professora de que me
ensinou a ler, por que eu tinha mais dificuldade em relação aos outros alunos e ela soube
reconhecer o problema e me dar uma atenção especial [...] A escola, naquele tempo, era um
lugar muito bom, agradável, bem diferente da escola de hoje, infelizmente. Naquele tempo
eu gostava de ir à escola, me sentia bem, tinha vontade de voltar, antes mesmo de terminar
as férias. Hoje as crianças não têm o mesmo prazer, não veem a escola como um bom lugar,
agradável, como nós, na minha época, sentíamos. Eu sou professor e infelizmente tenho de
reconhecer isso [...]. (P2)
[...] Era uma escola com boa estrutura: salas amplas, grande espaço de recreação, cantina,
biblioteca, consultório odontológico e um pequeno laboratório de ciências. Tive uma exce-
lente professora, bastante atenciosa, cuidadosa no trato com crianças, tanto do ponto de
vista didático-pedagógico quanto do psicológico e afetivo. As atividades por ela desenvolvi-
das naquele primeiro ano foram bastante variadas e misturavam atividades de maternal,
jardim de infância e alfabetização, especialmente no primeiro semestre, do qual eu já saí
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sabendo ler e escrever. Naquela época a impressão que eu tive foi a de estar em uma exce-
lente escola: era próxima da minha casa, bem organizada, segura, aulas divertidas e, que
eu me lembre, ficamos sem aula por falta de professor apenas somente dois dias naquele
ano. Sem falar que havia lanche de qualidade e acompanhamento odontológico periódico
na própria escola. Uma marca do período do regime militar da época, além dos bons re-
cursos da escola, era a ‘formação’ antes de entrar nas salas de aula. Cada turma formava
uma fila para cantar o Hino Nacional e o ‘Hino da criança’. Em seguida cada professora
conduzia sua turma à sala de aula, ainda em fila [...]. (P3)
[...] Era um tempo bom, eu gostava de ir à escola, das aulas, dos professores, dos colegas,
das brincadeiras, das atividades e festividades que realizávamos. Não lembro muito bem
da primeira vez que entrei numa sala de aula, como aluna, mas me recordo que era uma
boa escola, pequena, mas muito aconchegante, bonita, com as paredes coloridas, com flo-
res, desenhos de animais, florestas. Lembro que tinha também um parquinho, onde brincá-
vamos na hora do recreio. Eu era muito comportada, sempre procurando seguir as normas
da escola, fazer minhas atividades e não me meter em confusão. As aulas eram boas, algu-
mas até divertidas, principalmente as aulas de artes, porque pintávamos, desenhávamos,
fazíamos colagem, objetos de papel e outras “obras de arte”. Nas primeiras séries tive bons
professores, mas me lembro principalmente da professora de ciências, que tive na terceira e
quarta séries, porque suas aulas eram muito divertidas e interessantes, porque ela sempre
tinha uma novidade, uma nova experiência. Essa professora nunca ensinava só o conte-
údo do livro, ela sempre contextualizava, mostrava como era na prática [...] Na verdade,
eu sempre lembro dessa professora, quando vou planejar minhas aulas, procurando fazer
como ela fazia, contextualizando o conteúdo, para tornar a aula mais agradável, mais
interessante para os alunos [...]. (P4)
Quanto ao saber geográfico, somente a partir de sua formalização enquanto
disciplina curricular é que começa a aparecer nas lembranças dos professores da pes-
quisa, sendo identificado como um conhecimento secundário e de abordagem tradi-
cional, do ponto de vista do processo ensino-aprendizagem. Em geral, as lembranças
dos professores relativas às primeiras aulas de Geografia remetem à última série do
antigo primário (4ª série), momento em que esta área de conhecimento é ensinada
juntamente com a História, numa disciplina chamada Estudos sociais. Nenhum dos
professores fez referência a contatos com o saber geográfico antes deste momento,
no entanto, em tese, a abordagem da Geografia pode acontecer em todos nos níveis
e séries de ensino, considerando que o temário geográfico tem a ver com a vida, a
organização socioespacial do homem em suas múltiplas relações com a natureza e a
sociedade. Contudo, nas lembranças dos professores sobre as primeiras aulas de Ge-
ografia predominam as referências a práticas tradicionais de ensino, destacando-se a
ênfase aos conteúdos e aos processos de memorização da matéria estudada:
[...] Meus primeiros contatos com a Geografia aconteceram na quarta série do então giná-
sio, hoje chamado de ensino fundamental. Na época, a Geografia não era uma disciplina
independente, o que existia era uma disciplina chamada Estudos sociais, que contemplava
os conteúdos da Geografia e da História [...] A professora de Estudos Sociais era a mais
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jovem e, acima de tudo, a mais exigente de todas. Até mesmo no temperamento era uma
pessoa complexa, alternando docilidade e paciência com uma fúria assustadora. Mas con-
seguia colocar objetividade e beleza no assunto, além de variar de forma enriquecedora a
metodologia de trabalho. Era do tipo que não dava ‘sossego’ aos alunos, ou seja, não havia
uma única forma de agradá-la, de tirar notas boas. Tudo parecia incerto e imprevisível e
isso assustava muitos alunos, como assusta até hoje na já viciada metodologia do ensino
médio da escola pública. Os trabalhos deveriam ser impecáveis na estrutura que ela pedia,
entregues impreterivelmente no prazo. Naqueles dias ela já ensaiava o que eu conheceria
depois na faculdade por ‘seminários’, em forma de competições entre grupos da turma.
De alguma forma, consegui me sair muito bem em todas as disciplinas, principalmente
em Estudos Sociais, conseguindo o melhor desempenho individual da escola em todas as
séries. Naquele ano percebi claramente o relativismo do jargão ‘professor ruim’. Pra mim
a presença dela em sala de aula fascinava mais que assustava, pois no final das contas,
se você aprendeu de verdade, vai considerar ruim aquele professor que não o estimulou a
superar seus limites ou pelo menos a conhecê-los. O ensino da matéria Geografia pra mim
foi muito mais memorização que discussão, o que foi até bom pois adquiri uma base efi-
ciente de conteúdo e acredito também que não me sairia bem em discussões filosóficas por
falta de maturidade e vivência, requisitos que só aflorariam muitos anos depois [...]. (P3)
[...] Eu me lembro que só comecei a ter contato com a Geografia na quarta série do pri-
mário (que hoje chamamos de ensino fundamental) na disciplina de Estudos sociais, onde
estudávamos tanto aspectos geográficos quanto aspectos históricos da sociedade, da natu-
reza e do homem. Eu não gostava muito das aulas de Estudos sociais, por que eram muito
monótonas, descritivas, onde tínhamos que memorizar nomes de lugares, cidades, estados,
países, rios, formas de relevo, tipos de vegetação, de clima, enfim, eram aulas extremamen-
te decorativas, de memorização do conteúdo, com pouca ou mesmo sem nenhuma relação
com a realidade dos alunos. Isso para mim era um sofrimento, pois sempre tive dificuldade
de decorar, de memorizar as coisas de forma mecânica, como era exigido nas aulas de
Estudos sociais. Lembro que eu nunca me saia bem nas avaliações (provas), conseguindo,
com muita dificuldade, somente a nota mínima para passar de ano. Minha professora de
Estudos sociais era até esforçada, mas não conseguia envolver a turma, criar situações
interessantes, que motivasse os alunos, que fugisse do tradicional. Mesmo dispondo de al-
guns recursos, como mapas, globos, materiais para confeccionar maquetes e até mesmo
recursos para realizar aulas de campo, viagens para conhecer outros espaços, nossas aulas
de Estudos sociais tinham quase sempre a mesma rotina: leitura do livro e resolução de
exercícios [...]. (P4)
[...] Que eu me lembre, meus primeiros contatos com o saber geográfico aconteceram na
quarta série do antigo primário, atual ensino fundamental, na disciplina de Estudos so-
ciais que, naquela época, compreendia tanto os conteúdos de Geografia quanto os conte-
údos de História. Não me recordo bem, mas lembro que eram aulas muito tradicionais,
voltadas para a descrição de paisagens e de objetos da natureza, como nomes de rios,
tipos de vegetação, de climas, de formas de relevo, de cidades, países etc. Não havia uma
visão crítica da realidade, do espaço geográfico, ou seja, do mundo e das relações entre os
homens e entre estes e o meio físico-natural. Na parte de História não era diferente, de
modo que a professora se detinha em falar de datas, acontecimentos históricos, como o
descobrimento do Brasil, a Independência, a abolição da escravatura, a Insurreição Minei-
ra e outras revoltas. Também não havia uma visão crítica dos acontecimentos históricos.
Nesse período, obviamente, eu não me interessei nem um pouco por Geografia, até mesmo
por que não tinha nenhum estímulo, diante de aulas que não chamavam a atenção dos
alunos, o que era uma pena, pois o conhecimento geográfico é muito rico em informações
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e cheio de possibilidades de novas descobertas, de novos horizontes, novos olhares, desde
que seja trabalhado de forma adequada, fazendo-se sempre uma relação com a realidade
dos alunos. A professora de Estudos Sociais, que eu não me recordo o nome, talvez nem
entendesse o que era Geografia, visto que lhe faltava formação específica, pois ela tinha
somente o pedagógico (formação específica para o magistério das séries iniciais), uma prá-
tica muito comum na época. Além disso, a escola não dispunha de muitos recursos, para
as aulas práticas, o que poderia melhorar muito o processo ensino-aprendizagem [...]. (P1)
[...] eu lembro que comecei a estudar Geografia somente na quarta série do ensino funda-
mental (antigo primário). Provavelmente eu tenha estudado Geografia antes deste perío-
do, mas eu não me lembro. Na quarta série estudávamos Geografia junto com a História,
numa disciplina chamada de Estudos sociais. Não me lembro muito dessa época, mas me
recordo que as aulas eram interessantes, principalmente por que estudávamos aspectos da
natureza, como a vegetação, o clima, o relevo, bem como aspectos da sociedade, como a
população, as atividades econômicas, as cidades, o campo. Eu gostava da parte de história,
mas eram os aspectos geográficos que chamavam mais a minha atenção, sendo que desde
muito cedo eu comecei a gostar de Geografia. Lembro que a professora era muito exigente
e ‘durona’, mas isso não interferiu muito no meu gosto pela área, pois eu ficava fascinado
com as imagens, as paisagens de outros lugares, de lugares distantes da minha realidade,
como se fosse um outro mundo, um mundo que eu não conhecia e que através do livro de
Geografia eu podia conhecer. Uma das minhas atividades preferidas nas aulas de Estudos
sociais era desenhar ou reproduzir mapas e paisagens, bem como colar figuras em carto-
linas, para representar algum aspecto da natureza ou da sociedade. Eu estudava numa
escola pública que, como ainda hoje acontece, não dispunha de materiais didáticos para
tornar as aulas mais interessantes, de modo que na maioria das vezes a professora de Estu-
dos sociais quase sempre dava aula somente com o livro didático, onde cada aluno lia uma
parte do texto para que, em seguida, todos pudessem responder os exercícios. Dessa parte
eu não gostava, pois era muito cansativo, mas mesmo assim eu me dedicava bastante, pois
sempre procurei ser um bom aluno [...]. (P2)
Essas imagens e representações que os professores guardam da escola e de seus
primeiros contatos com o saber geográfico, em especial de suas primeiras aulas e
professoras de Geografia (Estudos sociais), remetem a uma concepção particular de
ensino-aprendizagem. Em tese, essa concepção tem uma implicação formativa, con-
siderando que muito do que somos hoje como professores herdamos dos professores
com os quais convivemos ao longo de nossa trajetória escolar, pela assimilação e in-
corporação de seus modos de ser e fazer docente. De fato, o saber-fazer, as artes dos
mestres da educação do passado deixaram suas marcas na prática dos educadores dos
nossos dias, de tal modo que suas dimensões ou seus traços mais permanentes sobre-
vivem em todos nós. (ARROYO, 2007) Trata-se de uma herança cultural docente, a
partir da qual construímos, consolidamos, reafirmamos e/ou ressignificamos nossas
concepções, crenças e representações relativas à educação, à escola e ao ensino, cons-
tituindo um modo singular de saber-ensinar, de se tornar e ser professor.
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Lembranças marcantes das aulas e dos professores de Geografia
No contexto deste estudo, as lembranças das aulas e dos professores de Geogra-
fia com os quais os interlocutores da pesquisa conviveram ao longo da educação bási-
ca, em especial nas séries finais do ensino fundamental (5ª a 8ª série) e ensino médio,
ao serem privilegiadas em suas narrativas, configuram-se como experiências singu-
lares de formação, que marcaram significativamente suas trajetórias de formação. De
modo geral, as lembranças reveladas nas narrativas dos professores sobre as aulas e
os professores de Geografia com os quais conviveram na educação básica aparecem,
quase sempre, caracterizadas por práticas tradicionais do ensino de Geografia, reve-
lando imagens bastante negativas da profissão que vieram a exercer. Assim, no de-
correr dos seus processos de escolarização na educação básica, as aulas de Geografia
correspondiam a práticas burocráticas de abordagem do ensino cujas consequências
mais imediatas manifestavam-se na falta de interesse e motivação dos alunos:
[...] Em geral, as aulas que tive durante a educação básica eram bastante de memorização,
ou seja, os professores exploravam os conteúdos de forma que os alunos apenas precisavam
decorá-los para tirar uma boa nota na avaliação e isso era estendido a todas as disciplinas.
Em relação aos professores de Geografia, estes também exploravam o conteúdo de maneira
superficial, voltados apenas à memorização do assunto explorado em sala de aula. Parecia
que o professor não se preparava para trabalhar aquele conteúdo, pois já escrevia tudo no
quadro de forma ‘mecânica’, ou seja, ele decorava tudo e aquela aula se repetia nas outras
salas do mesmo jeito. As aulas de Geografia eram ministradas de forma muito cansativa,
com extensos textos, sem nenhuma motivação tanto dos professores quanto dos alunos e
isso fazia da disciplina ser rotulada como decorativa e sem muita importância. Em fim,
as aulas de Geografia sempre foram chatas, pois eram muito monótonas, as respostas dos
exercícios grandes, de modo que não havia dinamicidade nas aulas [...]. (P4)
Do fundamental eu não me recordo bem dos professores de Geografia. As aulas eram sem-
pre aquela Geografia totalmente tradicional, decorativa, descritiva [...] Eu me recordo bem
das aulas e dos professores de Geografia que tive no ensino médio. Eu tinha um professor de
Geografia que não dava motivação nenhuma para nenhum aluno, mas como eu gostava
de Geografia, independente do professor, eu gostava dessa disciplina e eu me recordo que
ele, mesmo sendo assim, fraco, procurava passar algum conhecimento que ele tinha, e eu
me recordo que ele pedia para agente desenhar mapas, identificar as capitais do Brasil, e
sempre eu, da sala, era quem se destacava. Ele perguntava e eu acertava todas as capitais
do Brasil, sabia os estados, desenhava corretamente os mapas e ele ficava impressionado
comigo, por que ele me comparava com os outros alunos e eles praticamente não estavam
por dentro de nada da disciplina e, assim, eu me destacava nas aulas desse professor. Ape-
sar dele não ter sido um professor que tenha contribuído para me incentivar a gostar da
disciplina, como eu já tinha interesse pela Geografia, independente do professor, suas aulas
me marcaram, mesmo sendo uma contradição, por que como era possível eu me interessar
pela disciplina se o professor não tinha motivação nenhuma? Por que geralmente você se
interessa pela disciplina quando o professor lhe motiva, mas comigo não, eu me interessei
pela disciplina mesmo tendo um professor sem motivação nenhuma [...]. (P2)
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[...] Ao longo da educação básica, sobretudo no ensino fundamental (da 5ª a 8ª), estra-
nhamente, muito pouco me apeguei aos estudos geográficos. Durante todo esse nível tive
uma só professora, a tia Estrela Dalva, que embora fosse o xodó de todos, tinha aulas
muito tradicionais e de certa forma cansativas, exceto quando contava suas histórias que
todos gostavam muito. Embora muito querida, tínhamos bastante resistência ao seu estilo
de certa forma “agressivo”, pois usava palavras muito duras e inadequadas para crianças
da nossa idade. Lembro muito da sua presença em sala de aula, mas muito raro dos seus
conteúdos [...]. (P1)
[...] as professoras de geografia que tive trabalhavam os conteúdos de Geografia de uma
forma banal, sem muitas exigências, bem diferente da 4ª série. Meus colegas e eu nos
sentíamos subaproveitados, em relação ao ano anterior, tanto que não houve dificuldade
nenhuma em conquistar a aprovação em todas as disciplinas logo no início do 2º semestre.
A Geografia, a História pra mim começaram a significar ramos superficiais do conhe-
cimento, resumidos em paisagens, nomes, números e datas. Sem muitos desafios, houve
também uma consequente acomodação de nossa parte. Brincávamos mais, estudávamos
menos, e tínhamos aprovação certa, sem muito esforço. De fato, era mais tranquilo para
professores também, pois eles lidariam com poucas recuperações e reprovações no final de
cada ano [...] Os conteúdos de geografia não eram estimulantes, nem despertavam minha
curiosidade, que foi redirecionada para as aulas práticas de carpintaria e técnicas comer-
ciais por serem conteúdos e habilidades novas no currículo e que tiravam os alunos da
rotina [...]. (P3)
Contudo, entre aproximações e distanciamentos, os professores foram cons-
truindo suas crenças e concepções relativas ao ensino de Geografia o que, certamen-
te, tem uma forte implicação formativa, à medida que seus modos de ser e fazer do-
cente foram influenciados, positivamente ou não, por essas imagens e representações
construídas no decorrer de suas experiências como alunos na educação básica. Por
isso, ressaltamos os momentos e vivências que marcaram a trajetória escolar pré-pro-
fissional desses professores, que se configuram como experiências formadoras singu-
lares, com importantes implicações em seus processos de formação e aprendizagem
do trabalho docente, de tornar-se e ser professor de Geografia.
Mais algumas considerações
As narrativas autobiográficas docentes permitem aos professores refletirem
sobre o passado e o presente de suas trajetórias de formação, descrevendo con-
textos, estruturas, relações e processos que envolvem a constituição dos espaços e
tempos dessa formação. (BRITO, 2007) A evocação das lembranças dos professores
relativas às suas experiências de formação vivenciadas em diferentes momentos e
fazes da vida escolar, acadêmica e profissional, podem (des)revelar o tecido so-
ciohistórico no qual essas experiências foram produzidas. Considerando isso, en-
Narrativas de professores de Geografia | 173
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tendemos que uma narrativa docente pode revelar, entre outras coisas, os modos de
produção das disciplinas escolares, as políticas e práticas curriculares, as concep-
ções pedagógicas e os modelos de ensino e formação de professores predominantes
em determinada época e lugar da história das instituições e projetos educacionais,
tendo em vista diferentes escalas de análise (locais, nacionais e supranacionais) e
suas interrelações.
Compreendendo a pesquisa educacional e, especialmente, a pesquisa sobre for-
mação de professores como espaço de reflexão sobre a escola, o ensino, a profissão
docente e os processos formativos docentes, ressaltamos as possibilidades e poten-
cialidades deste estudo como fomento para pensar e repensar a atualidade destes e de
outros temas relacionados à educação. Nesse sentido, destacamos que a formação de
professores precisa ser (re)pensada, do ponto de vista de seus princípios, pressupos-
tos e fundamentos, considerando as necessidades formativas docentes provocadas
pelas demandas da prática profissional. Indicamos, pois, a partir das constatações
deste estudo, que a formação do professor deve partir do professor, ao mesmo tempo
em que deve ter nele a sua caixa de ressonância, ou seja, a formação deve ser pensada,
planejada e desenvolvida de acordo com as necessidades formativas do professor, que
por sua vez refletem as demandas da escola e do ensino.
Ainda a título de sugestão e reflexão, indicamos que a formação docente deve
considerar as histórias de vida pessoais e profissionais, as trajetórias formativas e suas
implicações na constituição dos modos de ser e fazer docente, de forma que temas
como as marcas dos processos de escolarização na formação pessoal/profissional do
professor, as experiências marcantes de formação vivenciadas ao longo da vida, os
tempos, lugares e pessoas que deixaram marcas e que influenciam o modo de pensar
e fazer do professor sejam problematizados e debatidos no contexto dos cursos de
formação inicial e continuada, a fim de que se convertam em meios de formação.
No caso dos professores de Geografia, a narrativa de suas experiências edu-
cativas pode ajudar a responder, por exemplo, como essa disciplina escolar tem se
constituído, como se dá seu processo de composição curricular, organização e de-
senvolvimento do ensino em determinado período de sua história, que movimen-
tos, mudanças, rupturas e evoluções marcam essa história, que concepções de ensino
e Geografia (visão de mundo) fundamentam as políticas e práticas curriculares de
formação dos professores, como essas políticas e práticas respondem, localmente, a
modelos nacionais ou supranacionais de formação docente: enfim, que Geografia os
professores aprenderam, como aprenderam e que Geografia estão ensinando e aju-
dando a construir na escola.
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176 | Francisco das Chagas Rodrigues da Silva / Bárbara Maria Macedo Mendes
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Docência em travessia: territórios da profissão e narrativas
de professores de Geografia em escolas rurais
Mariana Martins de Meireles
Elizeu Clementino de Souza
Primeiros atravessamentos
É preciso ver o que não foi visto [...]. É preciso voltar aos passos
que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado
deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.
(SARAMAGO, 1984, p. 76)
Chegar à escola, por vezes, não é uma tarefa simples e embora esse seja um
trajeto corriqueiro realizado pelas professoras que moram na cidade e exercem a do-
cência em escolas rurais, o mesmo trajeto exige daqueles que o realizam uma postura
de persistência e coragem diante das adversidades que atravessam seus caminhos.
Durante minhas observações dentro dos carros, indo para as escolas, escutei por di-
versas vezes e pela voz de muitas professoras a seguinte frase: “Essa vida aqui não é
fácil”. O percurso é, por um lado, marcado pelo silêncio, de quem não só aprecia a
paisagem do sertão, mas de quem parece guardar as especificidades da labuta diária
de ser professor no meio rural, por outro lado, movidas pelo balanço do carro, onde
vidas e histórias circulam, essas mesmas professoras narram singularidades de uma
docência que se faz em trânsito, entre estradas e pontes, entre cactos e mandacarus,
entre chegadas e partidas.
Os caminhos até a escola, registrados durante a pesquisa de campo, demarcam
uma paisagem peculiar do sertão. Dentro do carro, entre curvas e ladeiras, é possível
observar a caatinga, os poucos animais que circulam debaixo de muito sol, alguns
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botecos e algumas casas bastante separadas. Mesmo marcado pela seca, o trajeto tem
muitas exuberâncias, mas é preciso destacar aqui que um de seus ápices é revela-
do pelo espetáculo diário de um pôr do sol tipicamente sertanejo. Para além dessas
questões, o percurso (cidade-roça-cidade) tem se constituído como um “espaço-tem-
po” onde docência e vida estão entrelaçadas. As narrativas das professoras demarcam
bem como os deslocamentos entre a casa e a escola tem se tornado também um espa-
ço produtor da profissão, exigindo dessas professoras, em constante travessia, que “é
preciso recomeçar a viagem. Sempre”. (SARAMAGO, 1984, p. 76)
Nesse sentido, tomadas por essa continuidade de travessia, as professoras são
mobilizadas a ver em seus trajetos o que está lá, o que acontece em seus cotidianos,
mas que nem sempre é pensado, enxergado e visualizado por elas, por isso, como
destaca José Saramago (1984), “é preciso voltar aos passos que foram dados, para os
repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles”. A intenção, portanto, é que, ao fala-
rem sobre os trajetos realizados entre a cidade e a roça, elas possam ver o que sempre
se veem, mas desta vez pensando sobre tais questões com profundidade.
O texto é resultante de estudos e pesquisas que tomam as trajetórias de profes-
soras de Geografia que moram na cidade e exercem a docência na roça como objeto
de investigação.1 A intenção é, através de narrativas docentes, compreender os sen-
tidos que estas professoras atribuem à profissão e às escolas rurais, com vistas a des-
tacar as trajetórias (vida-formação-profissão) experienciadas pelas professoras, bem
como os trajetos (cidade-roça-cidade) que elas realizam cotidianamente até a escola.
Tais professoras lecionam Geografia em áreas rurais nos municípios de Tucano e Ser-
rinha, ambos localizados no território de identidade do sisal, no semiárido baiano.
A pesquisa está ancorada em uma metodologia de cunho qualitativo, por se
tratar de um processo de reflexão e análise minuciosa das trajetórias de vida-forma-
ção-profissão das professoras de Geografia da roça e seus deslocamentos geográficos
cidade-roça-cidade. Para tanto, toma como metodologia a abordagem (auto)biográ-
fica, visto que ela comporta um movimento de investigação sobre o processo de for-
mação e permite, através das narrativas docentes, entender, de modo retrospectivo
1 O presente texto corresponde à versão revisada e ampliada do trabalho apresentado no V Congresso Internacio-
nal de Pesquisa (Auto)biográfica (Cipa) e resulta da pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa (Auto)
biografia, Formação e História Oral (Grafho), com vinculação à pesquisa “Diversas ruralidades-ruralidades di-
versas: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas em escolas do campo Bahia-Brasil”, realizada em regime de
colaboração entre a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB) e a Universidade de Paris 13/Nord – Paris8/Vincennes–Saint Denis (França), que contou com financia-
mento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) (edital temático Educação 004-2007)
e do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) (edital Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas – 2008-2010
e edital universal – 2010-2013). O texto vincula-se também a pesquisa “Multisseriação e trabalho docente: dife-
renças, cotidiano escolar e ritos de passagem” financiada pela FAPESB, no âmbito do Edital 028/2012 - Ptáticas
pedagógicas inovadoras em escolas públicas e do MCTI/Cnpq, Chamada Universal no. 14/2014.
178 | Mariana Martins de Meireles / Elizeu Clementino de Souza
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e prospectivo, as subjetividades, os sentidos e os sentimentos das professoras no seu
processo de formação e no exercício da profissão.
A potencialidade da pesquisa (auto)biográfica situa-se nessa travessia que é es-
tabelecida entre o ser individual, que fala de si, e o sociocultural, que integra a reali-
dade narrada, desvelando o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos,
suas experiências, suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálo-
go com seus contextos. Trata-se, portanto, de uma metodologia em que as vidas se
narram e circulam. (ARFUCH, 2010) Nessa pesquisa, a abordagem (auto)biográfica
possibilita um movimento de investigação sobre a profissão docente, possibilitando,
através das narrativas docentes, entender os sentimentos e as representações cons-
truídas pelas professoras no seu processo de transitoriedade e deslocamentos cidade
-roça-cidade, considerando as implicações dessas questões no devir da profissão em
escolas rurais e na construção de suas identidades docentes.
Vinculadas a essas questões, a pesquisa (auto)biográfica com professoras se ins-
creve na valorização da vida humana, uma vida que se organiza e se constrói segundo
uma experiência tornando-se real e possível de ser acessada a partir da elaboração
e socialização de uma narrativa. Por isso, são historias narrativizadas e experiências
únicas, de modo que, ao narrarem suas trajetórias, os sujeitos se percebem como
protagonistas de suas experiências, podendo, ao mesmo tempo, recordar o passado,
pensar sobre dilemas do presente elaborando por vezes explicações para tais ques-
tões. Trata-se, portanto de “[...] explorar as formas e operações segundo os quais os
indivíduos biografizam suas experiências” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 185),
construindo uma trajetória particular inscrita em uma realidade coletiva.
Perspectivadas assim, as narrativas docentes são vistas como possibilidades de
dar visibilidade às vozes das professoras, a fim de compreender/apreender os sentidos
que estas atribuem à profissão em escolas rurais a partir das experiências construídas
durante o trajeto até a escola. Desse modo, a compreensão dos itinerários profissionais
permite a constituição de um inventário de experiências profissionais vivenciadas, ao
tempo em que permite também uma compreensão mais global da pessoa do professor.
As professoras dessa investigação, ao serem consideradas como protagonistas e
sujeitas de suas próprias histórias, foram então convidadas a elaborar potencialidades
reflexivas sobre seus trajetos, voltando para si mesmas e para seus cotidianos docen-
tes através da verbalização de suas narrativas. Assim sendo, buscamos compreender
“[...] o que o sujeito oferece a seu próprio ser quando ele se observa, decifra-se, in-
terpreta-se em suas ações, descreve-se, julga-se, domina-se, quando se narra para si
mesmo” (LARROSA, 2000, p. 61) e para os outros seus itinerários vividos.
A partir dos pressupostos teóricos e metodológicos da abordagem (auto)bio-
gráfica, utilizamos como procedimentos de coleta de dados, observações e entrevistas
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narrativas individuais. No que se referem às entrevistas individuais, nessas, o sujeito
possui tempo necessário para responder as provocações, sem sofrer a interrupção do
entrevistador, o qual deixa livre para expor sua história, a partir de um recorte signi-
ficativo de sua experiência de vida e profissão (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2010)
configurando-se como um despontar de vozes (auto)biográficas.
A opção por entrevistas narrativas justifica-se, portanto, porque nesse tipo de
entrevista os sujeitos falam de si e de suas trajetórias com profundidade, a partir
de um esquema livre de perguntas não estruturadas, com características específicas.
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2010) A entrevista narrativa parte do pressuposto de
que toda experiência humana pode ser anunciada mediante uma narrativa, visto que
desde sempre o homem encontrou maneiras de contar história, de falar da vida. Por
isso, a narrativa “[...] está simplesmente ali como a vida [...] nunca existiu em ne-
nhum lugar, um povo sem narrativa”. (BARTHES, 1993, p. 253)
Desse modo, a narrativa perspectiva uma forma autêntica de revelar coisas so-
bre a vida humana e também sobre a profissão, uma vez que estas dimensões são
indissociáveis. A pesquisa inspira-se também, metodologicamente, nos pressupostos
da entrevista narrativa autobiográfica cunhada por Schutze (2010). Ao considerar seis
passos de análise, o autor apresenta indicadores para compor uma compreensão mais
completa dos dados (textos) narrados. Dessa forma, é possível conferir importância
aos fatos narrados, às estratégias, aos argumentos, buscando identificar/apreender
os sentidos que cada uma das professoras-narradoras atribui aos trajetos realizados.
Para a constituição das fontes de pesquisa, foram priorizadas, neste texto, as nar-
rativas de cinco professoras que moram na cidade e exercem a docência em escolas
rurais, recolhidas mediante entrevistas narrativas individuais, tomando como recorte
narrativo e interpretativo as experiências vivenciadas durante o trajeto cidade-roça-ci-
dade. As entrevistas foram realizadas individualmente, em local e horário acertados em
comum acordo com as professoras, cada uma das entrevistas teve aproximadamente
uma hora e meia/duas horas de duração e, depois disso, foram transcritas e devolvidas
a cada uma delas, que, ao lerem suas narrativas, autorizaram, mediante um termo de
consentimento, o seu uso e publicação das mesmas nesta pesquisa.
A análise das narrativas decorre do esforço mútuo que, por um lado, escuta
e, por outro, interpreta as experiências narradas, como uma espécie de “giro her-
menêutico” (RICOUER, 1976), ao buscar os sentidos que saltam das experiências
narradas. Assim, a partir de uma “hermenêutica de si”, aqui entendida, como o modo
que cada professora narra, compreende e atribui sentidos aos trajetos feitos, tendo
em vista suas implicações no território da profissão. A intenção foi, portanto, clarifi-
car/ampliar os significados expressos nas narrativas docentes, buscando interpretar/
compreender as significações que os fatos narrados têm no devir de suas experiências
pessoais e profissionais.
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Tal compreensão perpassa pelo entendimento de que os fatos são narradas com
palavras e sentidos singulares, revelados a partir da experiência e da vida de quem
conta sua história, em um movimento de “figuração de si” e “biografização” (DE-
LORY-MOMBERGER, 2012) de suas trajetórias. Entendida assim, “[...] a narrativa
não é apenas uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los, tanto
no tempo como no sentido”. (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2010, p. 92) Ao contar
suas histórias, cada sujeito revela as experiências vividas, recorda suas trajetórias e
partilha sentidos “[...] numa voz que testemunha algo que só o sujeito conhece”. (AR-
FUCH, 2010, p. 72)
A presente pesquisa toma ainda observações espontâneas e assistemáticas para
apreender as trajetórias das professoras suas posturas e falas, suas memórias, o aflo-
rar de uma profissão que acontece ali na sala de aula, mas também acolá, no carro,
nos trajetos, entre os caminhos e atalhos, na chegada da escola e na volta para casa.
Além das observações das práticas das professoras, são realizadas observações du-
rante os deslocamentos geográficos feitos pelas professoras. Em uma perspectiva de
ida e vinda, de olhares em movimento, este instrumento acompanha todo percurso
investigativo e compreende observações realizadas nos deslocamentos por entender
que também este é um “entre-lugar” de anunciação e produção da profissão docente.
A pesquisa tem desvendado que na estrada, nos trajetos, vida e profissão se imbri-
cam, e à medida que caminhos são percorridos o cotidiano se revela de maneira
irreverente e inusitada, possibilitando reinvenções no âmbito pessoal e profissional
das professoras.
Docência em travessia: narrar a vida, viver a profissão
[...] O real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia. (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 50)
A imagem da travessia, bastante peculiar na literatura rosiana, inspira parte da
escrita desse texto, ao fomentar uma alusão que nos ajuda a pensar em outros movi-
mentos que marcam a docência em Geografia em escolas rurais, sobretudo quando
destacamos os deslocamentos geográficos das professoras da cidade que trabalham
em escolas rurais do sertão baiano. A marca da travessia desencadeada por Guima-
rães Rosa (1986) é fértil para problematizar/pensar essa docência em travessia, pois,
assim como propõe o poeta, as travessias percorridas pelas professoras da cidade até
as escolas rurais não se constituem apenas como um translado, um deslocamento
espacial: o ato de fazer travessias, por sua vez, é considerado como sendo um exercí-
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cio do olhar apurado do que passa, acontece, exprimindo os muitos “deslocamentos”
(geográficos, simbólicos e experienciais) das professoras itinerantes.
Ao narrarem suas travessias e translados, estas professoras são mobilizadas a
enxergar além do lugar comum e captar a peculiaridade da paisagem, das pesso-
as e de seus colegas professores, prestando atenção em situações que não estavam
evidentes, mas que fazem parte de seus cotidianos pedagógicos, ao discutirem vida
e profissão no “espaço-tempo” de seus deslocamentos até a escola e na volta para
casa. Assim sendo, a viagem-travessia feita por cada uma das professoras permite que
muitas coisas aconteçam, atestando, em certa medida, que aquele que viaja possui o
“eu movente”, que, ao mesmo tempo em que viaja, pensa, reflete e atribui sentidos a
profissão e aos descolamentos feitos, podendo provocar mudanças no ser individual
(pessoa) e no ser profissional (professor) ao longo da travessia.
Considerando este contexto, conferimos então status aos deslocamentos geo-
gráficos das professoras (cidade-roça-cidade), perspectivando desse modo que “[...]
o real não está [apenas] na saída [cidade] nem na chegada [escola rural]; ele se dispõe
para a gente é no meio da travessia”. (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 50) Nessa do-
cência em travessia, muitos encontros, de várias ordens, como pessoal e profissional,
acontecem, desencandeando o que Bakhtin (1988) denominou de “cronótopo da es-
trada”, compreendido pelos vários tipos de encontros que acontecem pelo caminho
quando pessoas se colocam em movimentos alternados: de entrada e de saída, de
começo e de fim do percurso, de chegada e de partida, do perto e do longe, de rural
e de urbano, constituindo, o que poderíamos chamar, de “dialética da travessia”, con-
ferindo um caráter cíclico da vida e da docência, presentes nos itinerários narrados
pelas professoras dessa investigação.
Desse modo, consideramos que, assim como as obras rosianas, a travessia é
quase sempre compreendida como um movimento de aprendizado, que acontece de
modo individual e coletivo para cada uma das professoras. Nos caminhos percor-
ridos, professoras revelam suas vidas, narram suas práticas e inventários docentes,
atribuindo assim sentidos e significados a experiência da travessia. Os caminhos,
atravessados pelas professoras, até as escolas rurais, são marcados por uma paisagem
peculiar do sertão, com suas caatingas de árvores verdes e cinzas, com suas flores e
plantas, roças, arados, cancelas e animais, entre um povoado e outro, ali estão essas
escolas, que, assim como umbuzeiro,2 mesmo com suas condições peculiares, enfren-
tando muitas adversidades, são portadoras de vida e geradoras de esperanças para os
sujeitos inseridos nesses contextos rurais.
2 Também conhecida como “árvore sagrada do sertão”, pela sua capacidade de armazenamento de água e pela vida
que resguarda em sua raiz, em seus galhos secos e de cor cinza (aparentemente sem vida).
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Todos os trajetos até as escolas rurais começam com estradas asfaltadas e em
certo momento continuam em estradas de chão/terra. São estradas possíveis de se-
rem trafegadas sem muitos transtornos, embora alguns trechos, sobretudo, os que
são cortados por pontes, apresentem situações de risco para os que diariamente atra-
vessam esses caminhos, em virtude das más condições estruturais dessas pontes. Ou-
tros trechos são marcados por áreas propícias a atolamentos, alagamentos e areal, o
que também dificulta e torna difícil a chegada até a escola.
Os caminhos percorridos pelas professoras dessa investigação, também de-
nominado de movimentos pendulares,3 são diferentes e carregam particularidades
no que se referem às condições das estradas, transportes em sua maioria precários,
paisagens, distância geográfica que varia de 8 km a 52 km, e tempo gasto no deslo-
camento cidade-roça-cidade, que varia entre 15 minutos e 2 horas, tempo suficiente
para que as professoras pensem a vida e falem sobre a profissão.
Quadro 1 – Deslocamentos geográficos
Professora Escola Município Zona rural que Deslocamento
onde mora trabalha geográfico (km)
cidade-roça
Professora Mirian Padre Cícero Araci Quererá 8
Professora Marta São Vicente Serrinha Mombaça 12
Professora Eliciana Cristóvão Colombo Araci Riacho do Boi 12
Professora Kaína Castelo Branco Tucano Mandacarú 52
Professora Adriana José Valdir de Santana Tucano Rua Nova 18
Fonte: Pesquisa de campo, março de 2012.
Este quadro apresenta informações importantes, no que concerne aos deslo-
camentos feitos pelas professoras. São deslocamentos variados e, em certa medida,
bastante provocativos para se pensar que profissão é essa que, também, se faz no
caminho até a escola e na volta para casa? A profissão docente se faz também nessa
travessia, entre o urbano – espaço da vida, e o rural – território da profissão. Nesse
sentido, tais deslocamentos se constituem como espaços em que também, se pensa,
se questiona e se produz a profissão. Os deslocamentos são, portanto, “entre-lugares”,4
3 A expressão “movimento pendular” é utilizada para designar os movimentos cotidianos das populações entre o
local de residência e o local de trabalho.
4 O conceito de “entre-lugar” decorre da ascensão de determinados fenômenos e elementos que passaram, no-
tadamente nas últimas décadas do século XX, a demarcar a necessidade de novos olhares e interpretações das
relações humanas exercitadas nas regiões periféricas do complexo espacial do mundo, principalmente quanto ao
sentido de pertencimento das pessoas em relação a esses locais (BHABHA, 2010).
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um terceiro espaço físico, simbólico e subjetivo, produtor e anunciador da profissão
docente.
Nesse “entre-lugar”, compreendido através do trajeto que cada professora rea-
liza, são estabelecidas relações entre o lugar (cidade) de cada professora com o lugar
de seus alunos (roça), configurando-se como um espaço de ligação entre o modo da
vida urbano e rural. Assim, “[...] ao explorar esse terceiro espaço, temos a possibi-
lidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos”.
(BHABHA, 2010, p. 69) Esses deslocamentos, considerados como, portanto, “entre
-lugares”, são espaços movidos pela lógica espacial (percursos cidade-roça) e por uma
lógica imaterial e subjetiva, que ocorre em cada professora ao realizar a travessia
cotidianamente, significando, em diferentes âmbitos, a vida e a profissão.
Desse modo, o “entre-lugar” pode possibilitar a elaboração de estratégias de
subjetivação singular e coletiva, que dão início a novos signos de identidade (BHA-
BHA, 2010) e a novas maneiras de compreender os contextos. Portanto, o “entre-lu-
gar” move o reconhecimento de um outro lugar e de uma outra posição das coisas,
possibilitando a invenção criativa da existência humana, do encontro com o outro,
a partir de uma identidade docente construída pela posição do eu no mundo e nos
espaços que ocupam, e nos caminhos que atravessam, o que mobilizam, de algum
modo, uma reinvenção de si em cada professora, mediante o ato de pensar e produzir
a profissão dentro do carro, entre idas e vindas, entre chegadas e partidas.
O “entre-lugar” é um local intersticial (BHABHA, 2010), isto é, um lugar onde
a passagem confere movimento, desestabiliza as polaridades entre vida e profissão,
permitindo que elas se mesclem e, ao mesmo tempo, permaneçam separadas em suas
singularidades. Tomado assim, o conceito de “entre-lugar” sinaliza um determinado
arranjo espacial, caracterizado por ser fronteira e passagem, de modo que, ao mesmo
tempo em que separa e limita, possibilita o contato e aproxima. Configura-se como
um local de passagem, de movimento para as professoras, que, ao pegarem o cami-
nho da escola, buscam razões e sentidos para estar ali, fazendo o que fazem.
É, portanto, no “entre-lugar”, onde o horizonte e as fronteiras estão mais além,
que as professoras buscam o estabelecimento de sentidos possíveis para significar
a vida e a profissão. Nesse entremeio vida e profissão se entrelaçam, fazendo desse
“entre-lugar”, proposto pelos deslocamentos geográficos, um lugar onde, também, se
pensa e produz a profissão, onde se olha e fala da vida. Esses deslocamentos possibi-
litam as professoras trocar experiências, socializar os dilemas e alegrias da docência,
demarcando aprendizagens e situações específicas para quem realiza cotidianamente
os percursos cidade-roça-cidade.
Nesse sentido, narra a professora Mirian:
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Então o trajeto se a gente for pensar pelo lado bom, e esquecer o que é ruim, deixar o que
é ruim de lado porque não engrandece em nada, o trajeto ele tem os seus ganhos, tem suas
coisas boas, engraçadas, divertidas, servem até pra espantar a tristeza às vezes. [...] Na
estrada, a gente conversa de um tudo, um solta piada, outro fala de quem comeu mais pão,
o que vamos comer amanhã, como é que vai ser determinado festejo da escola, como foi
a aula, se aconteceu alguma coisa na escola que chamou a atenção, tipo a indisciplina de
aluno, vamos comentando daqui até lá, a vida do aluno, da família, do pai, do aderente,
até chegar lá na cidade [...]A gente fala de traição, de coisas sobre a nossa vida, de quem é
que está na escola bagunçando, de quem não está, do que foi que aconteceu com o proble-
ma da merenda, além disso, é um momento de perceber também se o colega está triste, se
está bem. (Professora Mirian, entrevista narrativa, 2012)
O excerto dessa narrativa revela que o tempo gasto no deslocamento feito pelas
professoras não é um tempo perdido, nem somente de murmurações e reclamações
da estrada. Durante os deslocamentos feitos, as professoras falam da vida, das ten-
sões em sala, do cotidiano com os alunos, da interação com a família-comunidade,
das dificuldades encontradas no dia a dia, dos afazeres domésticos, da preocupação
com família, das alegrias e tristezas da vida. Esta narrativa expressa ainda sentidos
profundos sobre o tempo do trajeto e como o mesmo é otimizado pelas professoras
para falarem de si e de seus dilemas e conquista na profissão. Desse modo, o que fica
explícito, é que no caminho para escola e na volta para casa, ali mesmo dentro do
carro, vida e profissão estão bastante imbricadas.
O relato da professora Kaína ratifica essas questões no que concerne aos des-
locamentos:
No trajeto é comum a gente conversar e elaborar projetos para a escola maravilhosos, um
fala uma coisa, vamos fazer assim, outro fala outra, esse mês a gente vai fazer desse jeito
[...] então assim, o carro, o trajeto, é um espaço onde fluí coisas fora do comum, não tenha
dúvidas disso. Além disso, a gente consegue ouvir muitas lamentações, parece que todo
mundo ali dentro do carro sabe da vida de cada um. Como a gente não tem muito tempo
para se reunir nos intervalos, a gente fala muito dentro do ônibus, que o aluno é isso, que
a gente precisa fazer isso na sala de aula, é assim a gente acaba se reunindo dentro do
ônibus, se pudesse contar os ACs (reuniões pedagógicas) dentro do ônibus seria perfeito,
porque é onde a gente conversa mais. Eu acho muito produtivo, sem dúvidas é bem produ-
tivo, porque a gente conversa, o professor fala, é o encontro de todos os professores com a
direção, então ali a gente fala do professor, a gente fala que o aluno está fazendo isso, que
a gente tem que mandar chamar o pai, e fala de pai de aluno, no carro procuramos buscar
soluções para diversas situações dentro e fora da profissão. Falamos de tudo, o que está
dando certo [...] você não tem noção de coisas que sai de dentro daquele carro, de choro, de
alegria, de risada, de tudo e tem dias que a gente dar tanta risada, está tão bem que a gente
que nem vê o tempo passar. (Professora Kaína, entrevista narrativa, 2012)
O ato de narrar as experiências e situações vivenciadas no trajeto permite a
professora Kaína não apenas elencar fatos ocorridos durante o percurso, mas, sobre-
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tudo, validar a importância que o trajeto confere para a profissão. Ao possibilitar a
organização de projetos para escola, a socialização de ideias dos professores, a escuta
de suas propostas nesse “espaço-tempo” de travessia, as professoras pensam a profis-
são de modo particular e coletivo. Os diálogos são tão profícuos que esta professora
considera que durante o percurso ocorrem reuniões pedagógicas bem mais provei-
tosas dos que as que ocorrem na escola. O que fica explícito é que o movimento de
aproximação dentro do carro e o tempo que poderia ser desperdiçado se constituem
para estas professoras como espaços que fomentam a discussão e o encontro dos
professores que, ao partilharem questões de sua existência, buscam soluções para
situações vinculadas ao campo da profissão e da vida.
As questões narradas pela professora Adriana se aproximam em partes com
os sentidos expressos na narrativa da professora Kaína, mas de outro modo, proble-
matiza também questões emblemáticas no que concerne aos trajetos realizados até
a escola. Com tom bastante ponderado, comum à “meiguice” de sua pessoa, assim
narra a professora Adriana:
[...] É, a gente sai de Tucano 11:45 e chega na escola por volta de 12:20h, não é que seja
longe, mas [...] a gente vai num carro que não tem muitas condições, tem um vidro ali
trincado, às vezes o carro tá sujo, má conservação mesmo do próprio dono. O dono que é
o motorista, dele se tem muitos relatos de muitas pessoas que não tem coragem de andar
com ele porque ele não enxerga bem, ele já é um senhor de idade, tem mais de 60 anos,
então ele não enxerga bem, já relatei isso em várias reuniões, já chorei em várias reuniões,
porque eu tenho trauma de estrada e tal, já relatei muito em reuniões só que hoje eu já
prometi pra mim mesmo que não falo mais nada sobre isso. (Professora Adriana, entre-
vista narrativa, 2012)
Ao narrar, com detalhes, questões sobre o trajeto feito da cidade até a roça, a
professora Adriana destaca o tempo gasto em cada travessia, as condições estruturais
do carro, bem como o risco que corre por conta do motorista que sofre com proble-
mas de visão, isso a deixa bastante angustiada e a fez se sentir insegura nos processos
de deslocamento de casa para escola. Desse modo, ao narrar algumas situações, por
alguns momentos revela sentimentos de medo, ao realizar essa travessia quase que
diariamente. De certo modo, tais sentimentos estão vinculados a acontecimentos de
sua história de vida. Em outros momentos de sua entrevista, esta professora narra
a morte de sua mãe, fato ocorrido em sua infância, durante uma das viagens de sua
família nas imediações do trecho Salvador-Tucano. É importante destacar que tal fato
biográfico marcou profundamente sua história de vida, a ponto de deixar traumas/
marcas negativas em relação a essas questões que envolvem estradas e deslocamen-
tos, o que a faz lutar por melhores condições estruturais do trajeto.
Nesse sentido, narra:
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[...] o trajeto em si, possui uma estrada em condições péssimas, a gente fica meio que tremen-
do daqui até lá, porque a gente não vê uma boa condição na estrada. Fica melhor quando
chove, porque é uma estrada que tem muita poeira e eu sou muito alérgica, eu sofro demais
com isso, sofro mesmo, tem dias que eu chego na escola mal, sem condições até de dar aulas,
mas dou [...] a paisagem em si, é uma paisagem típica do sertão, muitas vezes a gente vê
animais mortos na estrada, muitas vezes animais soltos na estrada por negligencia do dono,
o que é um perigo. [...] Mas de verdade, o bonito de se vê da paisagem é quando chove, porque
você vê a modificação da paisagem e é possível apreciar melhor a geografia tão presente nesse
trajeto. O que me desagrada é a questão da estrada, da poeira, por conta da minha da minha
renite alérgica. (Professora Adriana, entrevista narrativa, 2012)
Os sentidos atribuídos aos trajetos são marcados pelas péssimas condições da
estrada, pelos perigos presentes no tráfego de animais e pelo sofrimento advindo de
sua renite alérgica, intensificada pela poeira da estrada, causando implicações em seu
trabalho em sala de aula, como bem sinaliza em sua narrativa: eu sofro demais com
isso, sofro mesmo, tem dias que eu chego na escola mal, sem condições até de dar aulas,
mas dou [...]. Por essa razão, sendo esta uma das questões que mais a desagrada no
trajeto, tendo em vista questões de saúde, esta professora prefere dias chuvosos, sem
poeira, período também onde as paisagens do sertão ficam mais bonitas, o que pos-
sibilita uma melhor apreciação da geografia presente na travessia.
Conferindo relevância a essa docência, que também se faz em travessia, a pro-
fessora Adriana toma outras “posições avaliativas” (SCHUTZE, 1987) sobre o trajeto,
desta vez ressaltando as relações interpessoais e profissionais estabelecidas durante
seus deslocamentos geográficos:
[...] no carro é muito divertido, porque a gente tem uma turma muito divertida, a gen-
te vai brincando, conversado sobre diversos assuntos, vai contando piadas, [...] é muito
bom, nessa questão das relações pessoais, é ótimo. [...] Geralmente a gente conversa sobre
as peculiaridades, o que tá acontecendo na cidade etc. [...] Muitas vezes a gente fala de
alunos, a gente até brinca que é um mini AC dentro do carro, muitas vezes acontece isso:
conversamos, ‘Ah, tal aluno faz isso em minha aula’. ‘Ah, mas em minha aula ele não faz
isso, porque a gente percebe que alunos tratam professores de maneira diferentes, então às
vezes a gente vai relatando isso mesmo a gente acaba discutindo coisas da profissão mesmo
e vendo a melhor forma de resolvê-las’. (Professora Adriana, entrevista narrativa, 2012)
No excerto dessa narrativa, esta professora destaca a diversão e o convívio sa-
dio, afetivo e produtivo estabelecido com seus colegas de trabalho proporcionados
pelo “espaço-tempo” da travessia. Dentro do carro, além de conteúdos pessoais, in-
formativos, são discutidos também conteúdos de cunho pedagógico, didáticos, po-
tencializando as discussões, conferindo a importância de reuniões pedagógicas a
esses momentos, também destinados para pensar questões vinculadas à profissão,
significando assim esse “espaço-tempo” (im)posto pelo deslocamento e buscando ali
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mesmo, dentro do carro, cada um à sua maneira, resolver coletivamente os problemas
que surgem no cotidiano pedagógico, dessa docência que atravessada por movimen-
tos individuais e coletivas, entrelaça diferentes sujeitos, histórias espaços e contextos.
Esse movimento de encontro com o outro e com as experiências individuais
e coletivas, fundadores dessa docência, que se faz em travessia, são partilhadas na
também narrativa da professora Mirian:
A gente só tem tempo de analisar o outro, eu falo do colega de trabalho e talvez de conhe-
cê-lo no carro, porque na escola somente não dar. [...] Então, as pessoas que vão comigo
no carro eram minhas amigas e são mais por conta dessa aproximação, você senta junto,
não é só falar, como eu estou sentada junto aqui com você, um colado do outro, é uma
questão de afeto, até uma questão física, corporal, que você tem com a pessoa, porque o
carro proporciona isso. Então é o tocar, é o sentir o outro que você não sente por causa da
agonia, porque a profissão não deixa, porque você entra em uma sala e vai para outra, sua
vida é corrida, são não sei quantos empregos, são não sei quantas coisa para dar conta.
(Professora Mirian, entrevista narrativa, 2012)
Os sentidos que esta professora atribui à sua experiência durante o deslo-
camento de ida e vinda até a escola toma uma dimensão bastante humanizada da
relação com o outro, dos que junto com ela fazem o trajeto diariamente, um outro,
que neste caso, se configura como mais que um colega de profissão, o carro tem
possibilitado estreitar laços de amizade e fazer destes professores muito mais que
um grupo de profissionais. Há, portanto, nessa narrativa, significações que ultra-
passam o sentido físico de atravessar diariamente os caminhos do sertão, tomando
essa travessia como um espaço de conhecer a si mesmo e o outro, uma vez que na
escola os tempos e ritmos estipulados pelos horários e calendários, a carga horária
extensiva de trabalho muitas vezes não possibilita tais aproximações, transforman-
do professores em apenas reprodutores de tarefas, à medida que tecnificam suas
relações e são privados de espaços, como este do trajeto, que favorecem o conheci-
mento de si mesmo e do outro.
Nessa mesma direção, relata a professora Eliciana
Eu gasto geralmente dez minutos, pela BR 316, eu venho de carro próprio, com outros dois
colegas de trabalho, é muito divertido porque a gente vem conversando, falo mais de coisas
íntimas mesmo nas conversas, porque meus colegas do são amigos mesmos de muitos anos,
são amigos e não somente colegas de trabalho, da escola a gente fala pouca coisa, mas
sempre sai uma coisa ou outras sobre a nossa profissão. (Professora Eliciana, entrevista
narrativa 2012)
Os sentidos expressos na narrativa da professora Eliciana validam que durante
o percurso (cidade-roça-cidade) é possível interagir com os colegas, estreitar os laços
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de amizade, de contar e ouvir histórias engraçadas, socializar algumas angústias e
alegrias do ser professora. Afinal, são muitos os assuntos que partilham nas idas e
vindas, entre uma curva e outra, entre uma paisagem e outra, entre uma parada e
outra. São “espaços-tempos” que saltam os muros da escola, que possibilitam pensar
vida, a própria profissão, os desafios, as dificuldades e as particularidades e especifi-
cidades de ser docente em escolas rurais.
No que concerne aos aspectos físicos dos deslocamentos geográficos feitos
pelas professoras dessa pesquisa, estes se realizam, em alguns casos, em condições
precárias do ponto de vista dos transportes, das estradas e das condições mínimas de
segurança, como aponta em seus relatos as professoras colaboradoras desta pesquisa.
Por se tratar de um percurso casa-cidade para a escola-roça, a gente precisa iniciá-lo um
pouco antes do que, por exemplo, se eu ensinasse na cidade [...] Então, logo depois do meio
dia, eu tenho que já está a caminho do “ponto”. O deslocamento é feito em um transporte
municipal, carros alternativos, que são usados para transportar os professores/as para a
escola. Esse transporte passa por diversos pontos da cidade, e isso é um dos motivos de
muitas vezes chegarmos depois do horário previsto para o inicio da aula. Outra questão
são as péssimas condições da estrada, que durante a época de chuva, ficam ainda piores.
Não conto às vezes que enfrentamos situações do tipo “o carro atolou”, e com isso não era
possível chegar a até a escola nesse dia. Durante esse percurso, é possível interagir com os
colegas, contar e ouvir situações engraçadas, socializar algumas angustias e alegrias de ser
professora [...]. (Professora Marta, entrevista narrativa, 2012)
A narrativa desta professora sinaliza questões sobre o deslocamento, apontan-
do as condições físicas desse trajeto e as dificuldades enfrentadas nesse itinerário,
além de sinalizar implicações desse movimento no exercício cotidiano de ensinar
em escolas rurais, isso fica evidente quando aponta a questão do tempo escolar que
é reduzido, comprimindo ainda mais o tempo na escola, isso quando por outras ad-
versidades as aulas são suspensas porque as professoras não conseguiram chegar à
escola. Contudo, esse deslocamento não é feito apenas de dissabores, para esta pro-
fessora, possibilita também trocar experiências, ouvir o outro e socializar os dilemas
e alegrias da docência, demarcando aprendizagens e situações específicas para quem
realiza cotidianamente o percurso cidade-roça-cidade.
Ainda sobre as questões de deslocamento, outra professora sinaliza:
Eu trabalho em uma localidade que é uma das mais distantes da sede à aproximadamente
50 km (estrada de chão), por isso preciso sair de casa sempre às 11:00h da manhã, é muito
cansativo, pois além do trabalho é muito tempo na estrada, eu só chego em casa as 19:00h,
todos os dias com relação à aprendizagem posso lhe afirmar que é a melhor, pois vivencia-
mos todos os dias o caminho que a maioria de nossos alunos percorre para ir à escola, e isso
faz com que a gente possa pensar em uma forma diferenciada de trabalhar com os mesmos,
respeitando suas vivências. (Professora Kaína, entrevista narrativa, 2012)
Docência em travessia | 189
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O trajeto realizado, por cada uma das professoras, mesmo exigindo delas mui-
tos deslocamentos físicos, simbólicos e experiências, se constitui também como um
espaço de aprendizagem, de socialização das experiências docentes, possibilitando
ainda reflexões sobre o espaço de vivência dos estudantes. É como se, ao fazerem os
trajetos diariamente, cada vez mais, essas professoras se apropriem do cotidiano e da
vida rural. Esse movimento, de certo modo, permite a cada uma delas, além de fala-
ram de si, pensarem a docência e as práticas a serem desenvolvidas no exercício da
profissão, na perspectiva de contemplar as singularidades do mundo rural.
As narrativas socializadas revelam as particularidades e os sentidos que cada
professora atribui aos deslocamentos geográficos feitos de casa para escola e da roça
para cidade. Em cada uma de suas falas, as professoras demonstram como o trajeto
se constitui como um “espaço-tempo” de pensar a profissão e projetar a vida. Assim
sendo, nesse movimento de travessia, reconstroem a si mesmos como pessoas e pro-
fessoras, reelaboram suas práticas e projetos profissionais mediante táticas singula-
res, suscitadas, sobretudo, em seus trajetos cotidianos.
Atravessamentos finais
Eu atravesso as coisas, e no meio da travessia (não) vejo! (GUI-
MARÃES ROSA, 1986, p. 50)
Não há como negar, por sua vez, que transpor caminhos, romper fronteiras,
realizar descolamentos geográficos e fazer travessias são movimentos presente no
andamento da vida do sertanejo, como bem exprimem as obras rosianas. A partir das
narrativas socializadas, esse movimento da travessia cidade-roça-cidade também fica
bastante explicitado através das histórias contadas pelas professoras de escolas rurais
do sertão baiano. Assim sendo, mediante as narrativas e os ditos que emergiram nas
entrelinhas deste trabalho, torna-se relevante, pois fomentar a discussão sobre a pro-
fissão docente no âmbito das escolas rurais, com vistas a compreender, sobretudo
as trajetórias e os trajetos das professoras da cidade em escolas da roça. E, median-
te as representações construídas por tais professoras, bem como suas condições de
trabalho e de descolamentos, sistematizar e entender como ocorrem determinadas
práticas e quais as implicações desses movimentos cidade-roça-cidade no exercício
da docência.
As adversidades dos trajetos e os desgastes físicos, além dos riscos que eles
oferecem, são quase invisibilizados nas narrativas docentes. Ao narrarem suas ex-
periências positivas construídas durante o trajeto, estas professoras significam esse
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“espaço-tempo” construtor da profissão. Revelar essas questões tão presentes no co-
tidiano de professoras rurais e dar visibilidade aos seus deslocamentos geográficos
cidade-roça-cidade, compreendendo-o como um espaço produtor da profissão e da
vida é que confere originalidade, sensibilidade a este trabalho de investigação, abrin-
do outras possibilidades de pesquisar a profissão professor e adentar outros univer-
sos pertinentes à docência, sobretudo em espaços rurais.
A pesquisa aponta ainda uma docência que também se faz nessa travessia, tor-
nando-se uma docência humanizada, em que vidas são contadas, histórias circulam,
pessoas se encontram, experiências são partilhadas, a profissão se faz na singularida-
de de uma coletividade de professores. Na estrada, com chuva e sol, poeira e ventania,
buracos e pontes, no balanço do carro, vida e profissão se misturam, de modo que
falar de uma coisa se confunde com a outra. Uma profissão que também é produzida
e territorializada dentro do carro, no caminho para escola e na volta para casa.
A pesquisa revela que esse olhar para a vida e para aos trajetos realizados pelas
professoras apontam a necessidade de reparar ainda mais na pessoa do professor e
em sua atuação docente, demarcando singularidades e subjetividades impressas em
seus trajetos diários até a escola e da escola para casa. O que se observa é que nesse
movimento de falar de si e de suas experiências, cada professora oferece a si mesmo
a oportunidade de retomar os seus trajetos, descrever as situações, observar os fatos
e interpretá-los. Quando narram a si mesmas estas professoras, decifram-se, buscam
a explicação para os fatos e procuram dar sentido às experiências que atravessam.
Referências
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Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
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Docência em travessia | 191
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Subjetividades na formação docente: o que narram os
professores da roça?
Simone Santos de Oliveira
Tecendo algumas considerações iniciais
Este trabalho nasce do entrecruzamento de três lugares diversos, mas que se
interrelacionam e se complementam.
O primeiro emerge das minhas experiências como professora executora de
um projeto de extensão da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus XI,
Serrinha, intitulado “Linguagem cinematográfica e formação docente: histórias de
vida, memórias e narrativas (auto)biográficas”,1 ao me deparar com muitas histórias
de vida de estudantes oriundos da roça, de diferentes espaços rurais que integram
os municípios próximos a Serrinha, na Bahia, no contexto da formação docente no
curso de licenciatura em Geografia e em Pedagogia. Além disso, concomitantemente,
emerge também das minhas experiências como pesquisadora no mestrado ocorrido
durante os períodos de 2009 a 2011, no Programa de Pós-graduação em Desenho,
Cultura e Interatividade, oferecida pela Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS), ao pesquisar a linguagem cinematográfica na formação de professores.
O segundo surge das experiências proporcionadas pelo projeto “Traduzindo-
me: narrar histórias, geografar trajetórias”2 cujo principal objetivo é conhecer, anali-
1 Projeto de extensão coordenado pela professora Jussara Fraga Portugal, cujo principal objetivo é contribuir com
a formação de educadores, no sentido de articular essa formação às suas história de vida, a partir da linguagem
cinematográfica relacionada à discussão sobre histórias de vida, memórias e narrativas (auto)biográficas nos
processos formativos iniciais de professores de Geografia e Pedagogia, no campus XI, da UNEB.
2 As práticas formativas experienciadas no projeto de investigação-formação “Traduzindo-me: narrar histórias,
geografar trajetórias”, são empreendidas nos componentes curriculares prática de ensino de Geografia e estágio
193
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sar e interpretar, através da escrita de memoriais, as histórias de vida e as itinerâncias
de escolarização e formação dos professores de Geografia, pois o ato de evocar a me-
mória, segundo Souza (2007), é “[...] algo que não se fixa apenas no campo subjetivo
[...] situa-se também no contexto histórico e cultura. A memória é uma experiência
histórica indissociável das experiências peculiares de cada indivíduo e de cada cultu-
ra”. (SOUZA, 2007, p. 63)
O terceiro, e último, emerge das contribuições dos suportes teóricos sugeridos
na proposta do componente curricular Educação, subjetividade e formação do edu-
cador, oferecida no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneida-
de (PPGEduC), da UNEB, campus I, Salvador, ao discutir as questões que envolvem
as subjetividades e a formação de professores.
Vale ressaltar que este trabalho é um cruzamento desses três lugares, intentando
apresentar as subjetividades presentes no processo de formação inicial do professor
de Geografia inserido no Departamento de Educação da UNEB, campus XI, a partir
de fragmentos das histórias de vida-formação desses professores cujas narrativas são
permeadas de sentidos e de subjetividades, que afloram a partir das trajetórias que os
constituem, enquanto pessoas e profissionais em formação.
O veio metodológico utilizado neste trabalho fundamenta-se nas histórias de
vida, configuradas enquanto estratégia de pesquisa pessoal e coletiva, politicamente
desestruturadas de certos paradigmas tradicionais de investigação. É relevante apro-
priarmos-nos do pensamento de Souza (2006), quando este afirma, sobre os estudos
com as histórias de vida, que se trata de uma forma de mediar estratégias que permi-
tem ao professor “[...] tomar consciência de suas responsabilidades pelo processo de
sua formação, através da apropriação retrospectiva do seu percurso de vida”. (SOU-
ZA, 2006, p. 262) O mesmo autor enfatiza ainda a necessidade de realizar pesquisas
educacionais, tendo como pano de fundo as narrativas das trajetórias de escolariza-
ção e formação. Deste modo, justifico a escolha do referencial teórico-metodológico
que fundamenta a produção deste trabalho.
supervisionado I, II, III e IV, tendo como dispositivos formativos o memorial, o diário de formação e o port-
fólio; cujas narrativas contemplam três dimensões, a saber: trajetórias pessoais, trajetórias de escolarização e
trajetórias de formação acadêmico-profissional e 12 eixos temáticos: 1. Traduzindo-me: quem sou eu?; 2. Minha
infância e a entrada na escola; 3. Memórias escolares – ensino fundamental I; 4. Memórias escolares – ensino
fundamental II; 5. Memórias escolares – as vivências no ensino médio; 6. Memórias escolares – a Geografia na
minha vida: assim aprendi Geografia na educação básica; 7. Memórias escolares – a Geografia na minha vida:
as aprendizagens cartográficas; 8. Memórias escolares – assim fui avaliado(a); 9. A escolha da profissão docente
e do curso de Geografia; 10. Tornando-me professor(a) – as aprendizagens na Universidade do Estado da Bahia
(UNEB); 11. Tornando-me professor(a) – o estágio e a aprendizagem da/na e sobre a docência no ensino fun-
damental; e 12. Tornando-me professor(a) – os estágios e as aprendizagens da/na/sobre a docência no ensino
médio. Este projeto foi elaborado e coordenado pela professora Jussara Fraga Portugal, no ano de 2006 e encon-
tra-se em andamento até a presente data.
194 | Simone Santos de Oliveira
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O contexto das narrativas dos professores na formação
Souza (2011, p. 95), ao falar sobre o uso das narrativas, coloca que na escrita de
uma narrativa “[...] a arte de evocar e de lembrar remete o sujeito a eleger e avaliar
a importância das representações sobre sua identidade, sobre as práticas formativas
que viveu, [...]”, além de analisar as “[...] situações fortes que marcaram escolhas e
questionamentos sobre suas aprendizagens [...]”. A afirmativa deste autor retrata a
minha intencionalidade quanto ao uso de narrativas no processo de formação inicial
de professores do curso de licenciatura em Geografia da UNEB, campus XI, Serrinha,
pois a “escrita de si” tem nos possibilitado conhecer as trajetórias de vida e de for-
mação dos alunos, ao fazê-los rememorar e refletir sobre suas existências, sobre as
suas itinerâncias pessoais, conhecer quem são, como vivem, os planos e itinerâncias
que fizeram para chegar onde estão hoje (UNEB) e, sobretudo, evocar das reminis-
cências escolares situações vivenciadas na escola localizada nos espaços rurais cujas
marcas simbólicas são impressas na memória e fazem esses professores em formação
desenharem outras trajetórias a serem percorridas a partir da reflexão sobre suas
vivências.
Nesta acepção, Souza (2007, p. 66) ainda salienta que narrar “[...] é anunciar
uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos
um significado”, pois quando um sujeito narra suas itinerâncias, “[...] parte dos sen-
tidos, significados e representações que são estabelecidas à experiência. A arte de
narrar, como uma descrição de si, instaura-se num processo metanarrativo porque
expressa o que ficou na sua memória”. (SOUZA, 2011, p. 170)
Nesta perspectiva, a intenção neste artigo é apresentar as subjetividades im-
plícitas nas narrativas das trajetórias de vida de alguns professores de Geografia em
formação inicial, oriundos da roça,3 de diferentes espaços que compõem o território
de identidade do sisal,4 contemplando as memórias sobre quem são esses sujeitos, de
onde eles vêm, como foram as primeiras experiências com a escola na perspectiva de
discutir a dimensão da subjetividade nos processos de singularização dos sujeitos,
uma vez que a “subjetividade significa uma permanente constituição do sujeito pelo
3 Para Rios (2011, p. 80), a roça é um “[...] espaço particular delimitado, observado o conjunto das relações sociais
baseadas fortemente em amplos laços familiares e tempo de residência”. Termo aqui utilizado em substituição do
espaço rural por compreendê-lo como um lugar repleto do sentimento de pertencimento, portanto, de identi-
dade, de onde vêm muitos dos nossos estudantes que se encontram no processo de formação inicial docente no
campus XI da UNEB, Serrinha, Bahia.
4 O território de identidade do sisal, mais conhecido como região sisaleira, está localizado no semiárido da me-
sorregião do Nordeste baiano, composto por 20 municípios: Araci, Barrocas, Biritinga, Candeal, Cansanção,
Conceição do Coité, Ichu, Itiúba, Lamarão, Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quinjingue, Retirolândia,
Santa Luz, São Domingos, Serrinha, Teofilândia, Tucano e Valente. Este território abrange uma área de 20.454
km², o equivalente a 3,6% do território baiano.
Subjetividades na formação docente | 195
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reconhecimento do outro e do eu” (MOLON, 2003, p. 120), sendo, portanto, enten-
dida como algo em construção, fazendo ligações e articulações tecidas em conjunto.
(SCOZ, 2011)
Assim, neste artigo, intento socializar algumas das subjetividades subentendi-
das nos fragmentos das trajetórias de vida de alguns professores em formação inicial,
oriundos da roça, com histórias de vida tão singulares cujas memórias da infância e
escolares são evidenciadas e devem ser consideradas para compreender como eles
estão se constituindo professores de Geografia e agregam elementos ao seu contexto
formativo docente no campus XI da UNEB, contemplando os eixos temáticos 1 a 4 do
projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”.
Sobre a narrativa, Delory-Momberger assim pontua:
A narrativa do outro é assim um dos lugares onde experimenta-
mos nossa própria construção biográfica; onde ela pode deslo-
car-se, reconfigurar-se, alargar seu horizonte; onde ela se põe à
prova como escrita de si. A narrativa do outro é, de certo modo,
um laboratório das operações de biografização que realizamos
sobre nossa própria vida, nas condições de nossas inscrições
sócio-históricas e de nossos pertencimentos culturais. Ao soli-
citar nossas representações e nossos saberes de experiências, a
narrativa do outro nos remete à figuração narrativa na qual nos
produzimos como sujeito de nossa biografia. (DELORY-MOM-
BERGER, 2008, p. 62)
Complementando a citação do Delory-Momberger, Souza (2006b), coloca que
a abordagem biográfica configura-se como um conhecimento de si, das relações que
são estabelecidas com o processo formativo e com as aprendizagens que se consti-
tuem ao longo de uma trajetória de vida, ao enfatizar que é através da abordagem
biográfica que “o sujeito produz um conhecimento de si, sobre os outros e sobre o co-
tidiano, o qual revela-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências
e dos saberes, ao narrar com profundidade”. (SOUZA, 2006b, p. 36)
O lugar da subjetividade na formação docente
Falar de formação de professores é, ao mesmo tempo, buscar compreender as
relações estabelecidas entre subjetividade e a construção da identidade docente, uma
vez que na “[...] dimensão da subjetividade encontra-se a consciência, a vontade, a
intenção, a afetividade, o pensamento [...]”. (MOLON, 2003, p. 120) Neste sentido,
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entender como os estudantes se constituem professores é buscar nas suas narrati-
vas de vida e de formação os elementos objetivos5 e subjetivos6 que os constituem
como pessoa e como profissional em formação, pois “[...] os fenômenos subjetivos
não existem por si mesmos e nem afastados da dimensão espaço-temporal e de suas
causas” (MOLON, 2003, p. 83), e, em sentido mais amplo, podemos considerar “[...]
o mundo como o lugar de constituição da subjetividade, um mundo físico, biológico
e também, imaginário, simbólico e social”. (MOLON, 2003, p. 120)
Deste modo, a aprendizagem está estritamente ligada à subjetividade, pois ela
decorre das nossas trajetórias e tem uma historicidade, numa relação dialética en-
tre o “eu” e o mundo real e simbólico, uma vez que a aprendizagem ocorre quando
“[...] o homem se configura na práxis, numa ação relação dialética transformadora,
mutuamente modificante com o mundo”.7 (QUIROGA, 1994, p. 47, tradução nossa)
Portanto, a aprendizagem é construída no cotidiano, nas relações estabelecidas com
os outros e com a nossa própria realidade, com o mundo que nos envolve.
Assim sendo, é impossível dissociar subjetividades e aprendizagens, bem como
subjetividades e formação docente, pois aprendemos a ser e a estar na docência a par-
tir dessas relações que mantemos com os outros e com o mundo, como bem coloca
Quiroga (1994, p. 49) ao dizer que “[...] A representação do mundo resulta de uma
estruturação cognitiva implicitamente incorporada do processo de aprendizagem”8
(tradução nossa), ou seja, a forma como aprendemos gera uma concepção de sujeito,
de poder, de professor, de identidade, a partir das vivências e aprendizagens no de-
correr de um processo, de uma vida.
Scoz (2011, p. 27) coloca que a identidade é uma “[...] (re)construção subjeti-
va de uma definição de si, pelas diversas maneiras a partir das quais os indivíduos
tentam dar conta de suas trajetórias (familiares, escolares, profissionais) por meio de
uma história [...]” cujas narrativas retratam experiências que o sujeito viveu e que
adquiriu significativas aprendizagens, pois o
[...] sujeito adquire singularidade na relação com o outro, em
relação ao outro, sendo o outro uma complexidade que se apre-
senta e se representa de diferentes modos, quais sejam, o outro
5 Aqui entendidos como as posições sociais que se encontram os sujeitos, os estudantes, professores em formação.
6 Já os elementos subjetivos são entendidos como um conjunto de maneiras pelas quais os sujeitos tentam dar
conta de suas itinerâncias pessoais e profissionais para justificar a sua posição, num dado momento da história
de sua vida.
7 “[...] el hombre se configura em uma práxis, em uma actividad transformadora, em uma relación dialética, mu-
tuamente modificante com el mundo”. (QUIROGA, 1994, p. 47)
8 “La representación del mundo, el prima cognitivo es uma estruturación elaborada e incorporada implícitamente
em el processo de aprendizaje”. (QUIROGA, 1994, p. 49)
Subjetividades na formação docente | 197
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corporificado, o outro imaginário, o outro difuso, o outro sim-
bólico, outro anônimo, o outro generalizado, o outro oculto, o
outro outro e o outro eu. (MOLON, 2003, p. 120)
Deste modo, Molon afirma que o sujeito se constitui a partir da interação com
o outro e do reconhecimento de si e do outro na sua formação. Esta autora ainda
coloca que a subjetividade significa “[...] uma permanente constituição do sujeito
pelo reconhecimento do outro e do eu” (MOLON, 2003, p. 120), e isso fica claro em
muitos excertos narrativos de muitos estudantes com os quais temos convivido no
campus XI da UNEB, em Serrinha.
Ainda sobre o (re)conhecimento de si, Josso (2008, p. 28) coloca que
Abordar o conhecimento de si pela perspectiva das transforma-
ções do ser-sujeito vivo e cognoscente, no tempo de uma vida,
mediante as atividades, os contextos de vida, os encontros, os
acontecimentos de sua vida pessoal e social e as situações que ele
considera como formadoras e, com freqüência, fundadoras, é con-
ceber a construção identitária, ponta do iceberg da existencialida-
de, como um conjunto complexo de componentes. Por um lado,
como uma trajetória que é feita por um tensionamento entre as
heranças sucessivas e as novas construções e, por outro lado, feita
igualmente por um relacionamento dialético da aquisição de co-
nhecimentos, de saber fazer. De saber pensar, de saber estar com
relação ao outro, de estratégias, valorizações, comportamentos,
novas valorizações que são visadas mediante o percurso educa-
tivo escolhido. As projeções de si, que alimenta os momentos de
reorientação, são reexaminadas em suas significações no presente
e colocadas na perspectiva do futuro, explicitadas e interrogadas
em sua lógica de emergência. Essas antecipações contam a di-
nâmica de formas projetadas da existencialidade. Essa trajetória
coloca, então, em cena um ser-sujeito relacionado com pessoas,
com contextos e consigo mesmo, numa tensão permanente entre
os modelos possíveis de identificação com outrem (conformação)
e aspirações à diferenciação (singularização).
Portanto, a subjetividade ocupa um lugar imprescindível na formação do pro-
fessor, pois não podemos considerar o processo formativo docente, desvinculado das
trajetórias de vida pelas quais passaram os nossos alunos, uma vez que “[...] a iden-
tidade que cada um de nós constrói como educador baseia-se num equilíbrio único
entre as características pessoais e os percursos profissionais” (NÓVOA, 1995, p. 32),
198 | Simone Santos de Oliveira
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ou seja, das subjetividades presentes nos modos de ser e de viver de quem é da roça
ou da cidade.
Alunos oriundos da roça: o que revelam as histórias narradas?
Ao acompanhar um pouco mais de perto um grupo de estudantes em proces-
so de formação docente em licenciatura em Geografia da UNEB de Serrinha, pude
verificar a riqueza das histórias e trajetórias que os alunos trazem consigo, sobretudo
para pensarmos como esses sujeitos estão se constituindo professores graduados9 no
território do sisal. Muitos são oriundos de diversos espaços rurais – comumente cha-
madas de roça, sobretudo por eles – que constituem a região do sisal e trazem para
o processo formativo docente elementos de suas itinerâncias pessoais e, também,
profissionais, que nos levam a analisar as subjetividades presentes na formação destes
professores.
Para Santos (2006. p. 92),
[...] a roça é um rural específico, um rural retalhado em peque-
nas ou mesmo minúsculas propriedades, destinadas à agricul-
tura de subsistência. Propriedade, lugar de trabalho, de labuta,
onde, em conjunto, a família lavra a terra e dali tira seu sustento,
e, ao mesmo tempo, plantação, fruto da lavra da terra, lavoura,
a roça, é, digamos, o paradigma de uma forma de vida marginal
que define as populações rurais empobrecidas.
Esta definição dada por Santos (2006) sobre a roça fica bem clara quando pro-
curamos compreender como os professores estão se constituindo a partir das narra-
tivas feitas no decorrer do processo de formação.
Tainara,10 ao falar de si, das lembranças vividas na roça e das aprendizagens
escolares, assim coloca:
Sou de Barrocas, Bahia [...] Lembro-me com saudades do tempo que me divertia com as
brincadeiras mais simples, como pular corda, macaquinho, boca de forno, de cozinha, de
boneca... brincadeiras simples que satisfazia os desejos de criança. [...] Meu gosto pelos
estudos afloraram desde muito cedo. [...] Por ser tão dedicada aos estudos, eu não faltava
9 Alguns alunos quando entram na universidade já atuam como professores não graduados. Atuação profissional
que decorre de uma formação docente a nível médio – curso de magistério profissionalizante, oferecido na edu-
cação básica, sendo extinto em meados dos anos de 1990.
10 Os nomes dos professores em formação em licenciatura em Geografia da UNEB, campus XI, foram mantidos,
sob autorização dos mesmos.
Subjetividades na formação docente | 199
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as aulas. As épocas de plantio de milho e de feijão, na roça, para mim era um tormento,
pois meus pais me levavam junto e eu sofria com a ideia de faltar às aulas e isso levava
eu e meus irmãos a jogar muitas sementes de feijão e milho dentro de um único buraco,
na intenção de acabar logo com aquele trabalho na roça e voltarmos para casa para po-
dermos ir para a escola. Quando as sementes germinavam e crescia a plantação, meu pai
observava que plantávamos de forma errada e reclamava muito porque fazíamos isso.
[...] Rememorar a escola é lembrar dos meus primeiros anos escolares, da escola pública
na roça, na zona rural, das situações relacionadas à falta de materiais que dificultavam o
trabalho dos professores para desenvolver suas aulas de maneira mais eficiente. Porém, em
meio à precária condição de trabalho, uma professora adotou uma maneira de ser criativa
nas aulas e despertou o interesse e a curiosidade dos alunos, ao realizar atividades com
desenhos e pinturas nas sextas-feiras. O interessante é que, como não tínhamos lápis de cor
disponível na escola, a professora nos levava para fora da sala para pegarmos folhas e flores
das plantas que tinham próximo da escola para pintarmos os desenhos. Além disso, em
outros momentos, ela mandava a gente desenhar e ilustrar o desenho com colagem usando
a areia e folhas secas, oriundas dos lugares que vivíamos. Em outros dias, mandava a gente
desenhar a partir de uma folha seca embaixo da nossa folha de caderno. Lembro bem que
as atividades eram simples, mas nesses dias as aulas eram bem divertidas e prazerosas.
[...] A escola para mim era o lugar do “novo”, o lugar das novas descobertas, da diversão,
da brincadeira e conversa com os meus amigos, o lugar da “liberdade”, já que meu pai não
deixava a gente sair de casa. [...] Também estudei no PETI e me possibilitava ler livros que
não estavam no meu alcance. (Tainara – Fragmentos das atividades desenvolvidas no
projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar trajetórias”, nos eixos: 1) Traduzin-
do-me: quem sou eu?, 2) Minha infância e a entrada na escola, 3) Memórias escolares
– ensino fundamental I e 4) Memórias escolares – ensino fundamental II, 2011)
Essas lembranças de Tainara retratam as alegrias e as dificuldades de quem
moram na roça, pois não é fácil viver e estudar neste espaço, sobretudo por causa do
seu cotidiano entre a escola e o dia a dia na lida com a terra, da qual esses sujeitos
retiram o seu sustento, implicando na divisão do tempo de muitos jovens, tirando-os
da escola. Em sua narrativa, esta aluna, professora de Geografia em formação, tam-
bém coloca o caráter lúdico das atividades realizadas pela professora, ao relatar sobre
o esforço que ela fazia para tornar as aulas prazerosas, ao rememorar as práticas com
o desenho e pintura, quando a docente utilizava os recursos que a natureza oferece,
como flores, folhas e areia para realizar atividades que, segundo Tavares (2008), po-
dem ser consideradas como imprescindível no processo de maturidade emocional
das crianças e jovens, ao colocar que é “[...] essencial para a conquista da maturidade
emocional em sua vida infantil, juvenil e adulta, pela experiência direta e pelo signi-
ficado que proporcionam”. (TAVARES, 2008, p. 101)
Outros professores de Geografia em formação inicial, como Edilson e Gení,
também retratam as mazelas presentes na escola da roça, os problemas enfrentados,
a evasão escolar, a falta de maiores investimentos nestes espaços educativos, sendo
evidenciados nos seguintes excertos:
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O meu pai é tucanense, minha mãe é araciense e eu nasci no povoado de Pedra Solta, no
município de Araci, no seio de uma família que é para mim uma honra, [...] Recebi dos meus
pais a devida educação doméstica de saber respeitar as pessoas. Neste povoado onde eu nasci
não existia a presença da escola. Na época da infância de minha mãe as coisas eram ainda
mais difíceis, pois ela só foi para a escola quando já era adulta para cursar as séries iniciais do
ensino fundamental, chegando somente a concluir a 3ª série. Meu pai conseguiu ir um pouco
mais longe e estudou até a 5ª série. Quando eles nos contam as suas histórias, as dificuldades
que passaram, sobretudo no que se refere ao estudo, é aí que percebemos o quanto era difícil
ter acesso à escola, aos estudos. [...] A minha trajetória estudantil começa no povoado de
Pedra Alta, e Araci, aos seis anos de idade, quando conheci o ABC. Nesta época, meu pai era
comerciante e vendia livros para as séries iniciais e neste período de estudo o ABC e a cartilha
eram os meus bons amiguinhos. Quando fui para escola, eu já lia algumas palavras e isso
deixou a professora surpresa. Na série seguinte, no ano de 1978, eu não achei tão fácil, pois o
ABC na escola da roça não me preparou para a realidade da escola da cidade. Neste mesmo
ano meus pais mudaram para a sede da cidade de Araci, onde continuei os estudos dos anos
do Fundamental. Era aluno aplicado, ativo, ficava atento às aulas e às explicações das pro-
fessoras, embora o ensino desse ênfase à memorização, mas eu tinha facilidade em decorar
as coisas e sempre tirei notas boas. Na 3ª e 4ª séries foram as que mais obtive progresso com
os estudos, pois tivemos a oportunidade de estudar com a professora Francisca, conhecida
como Chiquinha, que exigia o máximo de nós e sempre estive preocupada conosco. (Edilson
– Fragmentos das atividades desenvolvidas no projeto “Traduzindo-me: narrar histórias,
geografar trajetórias”, nos eixos: 1) Traduzindo-me: quem sou eu?, 2) Minha infância e a
entrada na escola, 3) Memórias escolares – ensino fundamental I, e 4) Memórias escolares
– ensino fundamental II, 2011)
Estudei até a 5ª série no Povoado do Canto, no município de Serrinha. Na série seguinte
mudei para o povoado Boa Vista 3, quando meu pai faleceu. Lá encontrei apoio e conse-
lhos para muitas situações vivenciadas. Estudei no Colégio André Negreiros e na Escola
Dermeval Oliveira, sendo acolhida por todos os professores que me incentivaram a buscar
sempre o conhecimento e a não desistir dos meus sonhos que era concluir o ensino médio.
Se hoje eu estou aqui na UNEB, agradeço aos incentivos desses professores, pois eles tam-
bém são responsáveis por eu estar aqui hoje, embora nunca tenha sonhado ser professora,
mas quando escolhi o curso de Geografia, me espelhei em uma professora do ensino médio
que ensinava maravilhosamente bem [...] No período em que estudava as séries iniciais na
roça, isto é, na zona rural, para manter os filhos nas escolas, era muito difícil para os nos-
sos pais e muitas crianças iam estudar somente para ter uma refeição na escola. Não passei
por isso, mas recordo que meu pai sempre trabalhou arduamente na roça e em algumas
cidades para que eu e meus irmãos não parássemos de estudar. Recordo que nas escolas
onde estudei, sempre faltava material, os salários dos funcionários atrasavam muito, mas
eles sempre estavam ali presentes, sobretudo, os professores. Estes sempre nos falavam de
suas experiências, das dificuldades enfrentadas para chegar aonde eles chegaram e prin-
cipalmente do prazer de ser um professor comprometido com a construção do saber. Não
posso esquecer as brincadeiras, dos aromas e da discriminação que sofria quando fui estu-
dar na cidade, quando falava que vinha da roça, da zona rural. (Gení – Fragmentos das
atividades desenvolvidas no Projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geografar traje-
tórias”, nos eixos: 1) Traduzindo-me: quem sou eu?, 2) Minha infância e a entrada na
escola, 3) Memórias escolares – ensino fundamental I, e 4) Memórias escolares – ensino
fundamental II, 2011)
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Esses excertos narrativos de Edilson e Gení retratam as dificuldades da popu-
lação que mora e vive na/da roça, especialmente no que concerne ao acesso à edu-
cação. Estas e outras problemáticas são evidenciadas tanto nos excertos narrativos
destes professores em formação, quanto em outros. Um fato marcante é quando
Edilson sinaliza que a escola da roça não lhe preparou para a realidade da escola
da cidade. Tal afirmativa pode estar relacionada à falta de prioridade do poder
público para com as escolas rurais, como ausência de maiores investimentos nos
recursos humanos e materiais, necessários ao trabalho pedagógico, pois a escola da
roça nunca foi a prioridade do poder público, embora muitos programas tenham
surgidos nos últimos tempos para melhorar a qualidade de ensino ofertado nos
espaços rurais, mas ainda sim, não consideram as especificidades dos sujeitos que
vivem nestes lugares, por supervalorizar um modelo de ensino urbanocêntrico.
Este fato também fica evidenciado quando Gení retrata a discriminação que sentia
quando foi estudar na escola da cidade quando falava que era da roça, fato evidente
no excerto de sua narrativa.
Apesar das dificuldades enfrentadas por esses estudantes, em suas narrativas
fica demonstrado o sentimento de pertencimento ao lugar de onde vem, a lembrança
dos professores que tiveram nesses espaços educativos rurais. Sobre esta última colo-
cação, evidencia José Antônio, ao dizer que:
[...] Alguns fatos marcaram a minha infância no período do primário e permanecem vi-
vas na minha mente, como a música Menina da Aldeia da dupla sertaneja Lourenço e
Lourival. Essa música recorda momentos felizes quando eu e minha irmã Terezinha se-
guíamos todas as tardes para a fazenda Trocado, em Serrinha, para estudar na residência
da professora Maria da Paz, e sempre cantávamos essa música no caminho. (José Antônio
– Fragmentos das atividades desenvolvidas no Projeto “Traduzindo-me: narrar histórias,
geografar trajetórias”, nos eixos 1) Traduzindo-me: quem sou eu?, 2) Minha infância e a
entrada na escola, 3) Memórias escolares – ensino fundamental I, e 4) Memórias escolares
– ensino fundamental II, 2011)
Ao retratarem o modo como os professores davam aulas com os poucos recur-
sos que tinham, estes professores em formação em Geografia sinalizam as aprendi-
zagens adquiridas, apesar dos inúmeros problemas que cercavam o ensino na roça.
Ao narrar sobre suas lembranças escolares, suas vivências na escola da roça,
José Antônio aborda na sua narrativa que a escola que estudava na zona rural reu-
nia muitos estudantes de idades diferentes, inclusive ele e sua irmã mais velha eram
acolhidos na escola onde estudaram, localizada na casa da professora, na Fazenda
Trocado, no município de Serrinha, Bahia.
Sobre esta categoria teórica, a roça, Santos (2003, p. 149) enfatiza que ela possui
múltiplos sentidos que imbricam na caracterização desse lugar, podendo significar:
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1) a localidade distante da cidade (assim, parece ser sinônimo de
“zona rural”: “Moro na roça”);
2) pode ser referido também como sinônimo de “terreno”, pro-
priedade (“Eu tenho uma rocinha”; “Vamos na roça de Fulano?);
3) ainda pode se referir à plantação “roça de milho”; “roça de
mandioca”; “roça de feijão”).
Ainda segundo este autor, esses múltiplos sentidos se complementam e se en-
trelaçam na vida cotidiana do povo que vive nesses espaços, na “roça”, ora determi-
nada como “zona rural”, apesar desta ser insuficiente para traduzir o sentido que a
expressão “roça” exprime e carrega, pois as escolas rurais são caracterizadas como
espaço que agrega no seu interior, numa mesma classe, crianças e adolescentes com
idades, séries, níveis de aprendizagens e conhecimentos variados. Almeida (2005, p.
286) ainda coloca que:
Muitas são as adversidades que acompanham a educação rural.
Poucas e precárias escolas, distantes umas das outras, dificul-
dades de comunicação, ausência de orientação metodológica e
didática, falta de verbas públicas na escolarização, deficiência
na formação de professores, currículos por vezes inadequados,
poucos materiais pedagógicos, falta de livros, entre outros.
Portanto, as escolas rurais constituem-se como espaços educativos heterogê-
neos, tendo a diversidade como fator preponderante, sendo muitas vezes chamado
de escola da roça, termo bastante utilizado como sinônimos em diversas áreas do
interior do Nordeste do Brasil, e que evidencia as subjetividades dos sujeitos oriun-
dos deste espaço e agregam elementos ao processo formativo docente, ao retratarem
o modo como viviam e como os professores da roça superavam as dificuldades do
fazer pedagógico, limitado pelo pouco ou nenhum recurso, para dar aulas nas escolas
localizadas nos territórios rurais.
Algumas (in)conclusões
Os excertos narrativos dos estudantes Tainara, Edilson, Gení e José Antônio
revelam muitas subjetividades, apesar deles possuírem muitos elementos em comum
como, por exemplo, nasceram e viveram, grande parte ou em totalidade, suas vidas
na roça.
Subjetividades na formação docente | 203
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Ficam evidenciadas nos fragmentos narrativos desses estudantes as dificulda-
des pelas quais passaram para se inserirem no processo de escolarização, a dificulda-
de para chegar à escola devido à labuta na roça, a distância percorrida entre a casa e a
escola rural, o deslocamento da roça para a cidade para concluir a educação básica, a
falta de infraestrutura das escolas nos territórios rurais, a falta de recursos didáticos/
pedagógicos, as limitações dos professores e seus incentivos para que eles pudessem
avançar nos estudos e adentrar na universidade. Enfim, o modo como lembram es-
tes fragmentos de suas histórias de vida, retratam a importância que estas experiên-
cias podem agregar ao seu contexto formativo docente na UNEB, em Serrinha, bem
como à sua futura atuação como professores licenciados.
Deste modo, essas experiências vivenciadas por Tainara, Edilson, Gení e José
Antônio, professores de Geografia em formação, evidenciam que as subjetividades
são muitas e como é importante o lugar do outro na construção da identidade pessoal
e profissional, pois a “[...] categoria identidade permite levantar relações entre as-
pectos individuais e aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos [...]” (SCOZ,
2011, p. 28) que caracterizam a nossa história de vida e de formação. Rios (2008)
também faz referência ao lugar do outro na formação, ao dizer que
A formação recebida pelo professor influencia a articulação
de sua identidade pessoal com a identidade profissional, assim
como sua relação com o ensino, a aprendizagem e o conheci-
mento, originando dificuldades de trabalhar o contexto sócio-
cultural que envolve os espaços escolares. (RIOS, 2008, p. 54)
Corroborando com a afirmativa de Rios (2008), Souza (2004) pontua o papel
do professor e da escola, além das histórias tecidas no dia a dia, na aquisição de
aprendizagens, ao colocar que
É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas no nosso cotidia-
no que aprendemos dimensões existenciais e experienciais sobre
nós mesmos, sobre os outros e sobre o meio em que vivemos. No
entrecruzamento de nossas aprendizagens, a escola exerce um
papel singular, visto que neste espaço ‘convivemos’ e internaliza-
mos papéis sociais apreendidos no cotidiano familiar. (SOUZA,
2004, p. 78)
Deste modo, não podemos ignorar ou descartar a dimensão subjetiva do sen-
tido de ser e de viver de quem mora, vive e trabalha na roça, bem as perspectivas do
professor formador.
204 | Simone Santos de Oliveira
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Scoz (2011), ao discutir identidade e subjetividade de professores, recorre às con-
cepções de autores como Fernando González Rey, para enfatizar que a “[...] subjetivi-
dade não é algo ordenado e definido de uma vez por todas, mas expressa a partir da
confluência de uma série de sentidos de elevada variabilidade”. (SCOZ, 2011, p. 26)
Assim, como professora formadora dos componentes curriculares de prática
de ensino e estágio supervisionado em Geografia, no contexto da UNEB, campus XI,
Serrinha, tenho dado ênfase às subjetividades desses estudantes quando busco com-
preender como eles estão se constituindo professores, sobretudo aqueles oriundos da
roça, pois temos observado, através dos registros nos diários de bordo,11 no processo
de formação inicial de professores no território do sisal, assim como nas narrativas
dos estudantes no projeto de extensão universitária “Linguagem cinematográfica e
formação docente: histórias de vida, memórias e narrativas (auto)biográficas” e nas
experiências proporcionadas pelo projeto “Traduzindo-me: narrar histórias, geogra-
far trajetórias” que a escola no meio rural, ou da roça, como é enfatizado por Santos
(2003) e por muitas pessoas que vivem neste território de identidade, não tem servi-
do para ajudar os sujeitos desses espaços a entenderem e compreenderem as contra-
dições que marcam a sua realidade e melhorar significativamente a sua qualidade de
vida, nem tampouco tem contribuído para preparar esses sujeitos a traçarem um fu-
turo melhor, desvalorizando a sua cultura, supervalorizando a cultura “urbanocêntri-
ca”, colocando o polo urbano como fonte de progresso e valores dominantes impostos
ao conjunto da sociedade, e aumentando os deslocamentos populacionais. Isso foi
muito evidenciado nas narrativas dos estudantes ao relacionarem as discussões no
projeto de extensão “Linguagem cinematográfica e formação docente: histórias de
vida, memórias e narrativas (auto)biográficas”, sobretudo nos momentos de discus-
são da película fílmica Nenhum a menos, ao sinalizar as dificuldades que as crianças e
suas famílias do meio rural passam para sobreviver, obrigando-os, muitas vezes, a se
deslocarem para a cidade em busca de melhores oportunidades de emprego e renda.
Portanto, as discussões sobre subjetividades e formação docente não se encer-
ram aqui, mas diante da retratação da realidade dos espaços rurais e das subjetivida-
des dos sujeitos, expressas nas narrativas dos professores de Geografia em formação
que moram, vivem e trabalham na roça, têm evidenciado que as escolas rurais ne-
cessitam considerar os anseios da população desses territórios, criando um ambiente
educativo que recupere, forme e fortaleça os valores humanos e, assim, valorizar o
meio onde eles vivem para que possam interagir melhor nesses espaços e reconhecê
-los como resultantes dessas interações. Tal necessidade também ficou evidenciada
11 Instrumento avaliativo muito utilizado nos processos formativos iniciais docentes no Departamento de Educa-
ção da UNEB, campus XI, Serrinha, nos componentes curriculares prática de ensino e estágio supervisionado em
Geografia.
Subjetividades na formação docente | 205
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nas discussões finais do componente curricular educação, subjetividade e formação
do educador, oferecida no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contempo-
raneidade (PPGEduC), da UNEB, campus I, Salvador, quando discutimos as questões
que envolvem as subjetividades e a formação de professores.
Vale ressaltar que, além das escolas rurais, os espaços formativos de professores
licenciados necessitam propiciar uma formação que também considere as subjeti-
vidades implícitas nas trajetórias de vida dos docentes que estão formando, pois as
narrativas de professores em formação de territórios “[...] rurais possibilitam socia-
lizar alguns aspectos das trajetórias, das experiências e das práticas desenvolvidas, a
partir de lembranças que remetem a um lugar singular [...]” (SOUZA, PORTUGAL,
MEIRELES, 2012, p. 240), pois essas lembranças remetem também a uma experiên-
cia específica, carregada de subjetividades que os livros e as discussões, em versões
oficiais, muitas vezes não contemplam, como reafirmam estes mesmos autores ao
discutirem os sentidos que ficam ao analisar as narrativas docentes em seus percur-
sos de pesquisa e investigação com professores de territórios rurais.
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208 | Simone Santos de Oliveira
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Entre fugas e aproximações das geografias:1 percursos por
memórias e conhecimentos de um quase geógrafo
Wenceslao Machado de Oliveira Júnior
Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte.
Existem somente artistas. (E. H. Gombrich)
Geografias pessoais e locais narrativos
Trago como epígrafe deste ensaio biográfico duas frases que iniciam o livro His-
tória da Arte, de E. H. Gombrich (1999), que, no meu entender, resumem de maneira
privilegiada o que tentarei apontar ao longo dos escritos que se seguem: de que não
existe uma geografia, mas muitas geografias, uma vez que 1) elas são produzidas so-
cialmente/historicamente, por homens e mulheres no exercício mesmo de suas pro-
duções e vontades de poder; 2) sob o nome Geografia são postas e legitimadas obras
distintas em épocas distintas; 3) a legitimação do que ganha a chancela de ser ou não
Geografia se dá não só no plano das obras, mas também, e muitas vezes principal-
mente, no plano das pessoas, ou seja, uma vez considerada geógrafa uma dada pessoa
todas as obras de sua autoria caberão melhor sob o nome Geografia, enquanto que
não sendo considerado geógrafo o autor de uma obra, esta passará por um processo
mais severo de legitimação para se colocar sob o nome Geografia e pode mesmo não
ser aí incluída e aceita como tal; e 4) uma vez aceita como sendo Geografia, uma de-
1 Estes escritos foram feitos inicialmente para a conferência de encerramento da XIII Semana de Geografia da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 2008, tendo sido alterados e acrescidos para esta publicação
como capítulo de livro.
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terminada obra pode alterar o que se entende como sendo Geografia para parte ou
toda uma comunidade de geógrafos.
Em outras palavras, geógrafos e geografias se coconstituem mutuamente. Au-
tointitular-me de quase geógrafo é uma maneira de dizer que escrevo buscando sin-
tonias com esta ciência, ainda que estas sintonias muitas vezes escapem no momento
seguinte.
Para além de Gombrich (1999), os encantamentos e ensinamentos de muitos
autores que li direta ou indiretamente cruzarão minhas frases. Somente alguns deles
serão nomeados explicitamente. A maioria deles permanecerá nas entrelinhas.
Este texto se configurou a partir de lembranças esparsas acerca de meus in-
cômodos com a Geografia acadêmica e de como esses incômodos me levaram a ter,
num primeiro momento, uma relação de fuga em relação a esta área do conhecimen-
to acadêmico e sua comunidade de produtores, os geógrafos e, nos últimos tempos,
uma relação de aproximação desta mesma comunidade e do conhecimento que pro-
duzem sob o nome Geografia.
Mas antes me utilizo das palavras, sempre sábias e mineiras, de Riobaldo/Gui-
marães Rosa (1965, p. 95), para dizer da memória:
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,
cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho
que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo
sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu
real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela, hoje vejo que
eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado.
Assim eu acho, assim eu conto.
Junto com este personagem, que conta suas veredas pelo grande sertão a um
visitante, digo ser eu diferente pessoa hoje que nos momentos a serem relatados a
vocês. No entanto, nos dias que correm, assim eu acho, assim contarei.
Para contar de minha relação com as geografias, irei me utilizar de imagens
espaciais traduzidas em palavras: esconderijos, mirantes, praças e pontes. O objetivo
desta forma de construir minha fala é também ele acadêmico e está em sintonia com
minhas intenções de apontar que isto que chamei de fuga foi também uma aproxima-
ção com outra geografia, daí o título conter geografias, no plural.
Ao me utilizar destas imagens espaciais busco apontar a possibilidade narrativa
da existência de geografias subjetivas em cada um de nós, bem como estas poderem
vir a ser de interesse da Geografia acadêmica.
Dito de outra forma, o que busquei ao escrever foi construir uma reflexão sobre
minha trajetória pessoal como sendo a relação entre um homem e o conhecimen-
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to, na qual busco apontar o que entendo por conhecimento e consequentemente o
que entendo por Geografia. Posso adiantar que considero Geografia muito mais uma
forma de conhecer que uma forma de conhecimento. Por isto também, ao construir
estes escritos sobre mim como sendo uma geografia subjetiva de minha própria exis-
tência em relação às preocupações com o espaço de vida humano, estou me dando a
conhecer por meio da Geografia, ainda que, por uma parte ampla da comunidade de
geógrafos, este conhecimento aqui produzido não seja entendido como geográfico.
É deliberadamente uma provocação que faço para pensarem aquela famosa e
insistente pergunta “O que é Geografia?” para além dos confrontos corporativos en-
tre áreas do conhecimento acadêmico. Pensá-la, sim, no interior da própria geogra-
fia, onde esta pergunta se molda de outra maneira, “Isto é geografia?”
Será que a Geografia pode ser entendida como uma produção narrativa, o que
faz com que a definição do que vem a ser Geografia se dá muito mais com os elemen-
tos e as preocupações espaciais implicadas na narrativa do que propriamente com o
objeto enfocado?
Dito de outra maneira, se a Geografia é uma produção narrativa, não será o
foco no espaço exterior, físico, social, visível e mensurável que definirá um trabalho
de pesquisa e pensamento como geográfico, mas seria também geográfico tudo aqui-
lo que se destina a entender as relações interiores – íntimas, invisíveis, incomensurá-
veis – que os homens e as sociedades travam com a dimensão espacial da existência,
por exemplo, o sentido cultural das palavras cujas imagens são espaciais, como as
que utilizarei a seguir para nomear os locais narrativos que elegi para contar-lhes
minha trajetória, ou seja, compor o território acadêmico que construí nos últimos
30 anos, desde que concluí o curso de Geografia na Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF).
É como se eu lhes perguntasse: Será que os sentidos dados às palavras e ima-
gens que aludem – e este é um verbo importante nas teorias da comunicação, aludir
– a formas espaciais são de interesse da Geografia enquanto produção acadêmica?
Quando Paulinho da Viola canta que a Portela “foi um rio que passou em minha
vida, e o meu coração se deixou levar”, este rio seria geográfico? E o coração seria,
uma vez que ele aqui tem o sentido de centro? E os verbos passar e levar não teriam
que lidar com seus sentidos de deslocamento e movimento espaciais para que a letra
da música, sua poesia, possa ser entendida?
Desta forma, estou a radicalizar, propondo compreender que esta separação
entre exterior e interior é inexistente e sempre que estamos a falar de uma dimensão
estamos a lidar com a outra, uma vez que elas se fazem mutuamente, no jogo tenso
das vontades de poder gestadas e geridas em cada universo cultural de produção de
objetos e sentidos, um deles sendo a comunidade geográfica.
Entre fugas e aproximações das geografias | 211
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Voltando ao fio condutor principal destes escritos, este caminho de construir
uma narrativa por meio de locais/lugares onde as ações se dão é uma proposição te-
órica dos meus estudos sobre cinema. A partir dela tomo os filmes como compostos
por locais narrativos que se alinhavam e dão existência à geografia do filme, sendo
esta uma das portas para o entendimento dele.
Trago, para exemplificar o que disse acima, imagens que sintetizam fotografi-
camente duas cenas do filme Cidade de Deus (MEIRELLES, 2002), que compõem, na
verdade, uma única sequência fílmica, na qual se dá a criação de dois locais narrati-
vos que “localizam” os personagens que participam de cada uma das cenas em locais
éticos e morais opostos.
Figura 1 – Dois locais em um único lugar
Fonte: Filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles
Os cenários – as locações – que aludem a lugares geográficos fazem parte da
linguagem do cinema e estão a nos dizer que estes personagens estão em universos
sociais e morais distintos, apesar de viverem num mesmo lugar geográfico, o bairro
Cidade de Deus, onde brincavam todos juntos num campo de futebol, em cena pou-
co anterior a estas duas. Num ensaio sobre este filme, escrevi:
Como espectadores do filme, assistimos a esta sequência feita
de duas cenas como a dois fatos que ocorrem simultaneamente
no tempo. Na primeira delas acompanhamos o diálogo um tan-
to desesperançado entre Busca-Pé e Barbantinho ainda crianças
sobre o que vão ser quando crescerem. O cenário é um pequeno
trecho de mangue, cheio de árvores, onde os dois meninos na-
dam e sobem nos galhos. Ao fundo, um horizonte amplo e céu
azul. Cores frias – verdes, azuis e brancos – e transparências, to-
madas feitas em sua maioria de baixo para cima, sons provenien-
212 | Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
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tes da natureza, de pequenos animais e movimentos da água. Na
outra parte desta sequência, acompanhamos a conversa entre os
três rapazes do Trio Ternura e mais Dadinho sobre o futuro no
crime ou fora dele. O cenário é um local em construção, onde se
notam tijolos empilhados e outros materiais comuns em cons-
truções de alvenaria. Ao fundo, uma parede de tijolos aparentes,
chapando o horizonte a menos de 3 metros. Em primeiro plano,
uma armação de ferros de construção formando um gradeado
que antecede – e enjaula – as falas e gestos dos personagens. Co-
res quentes – vermelhos, alaranjados e marrons, tomadas leve-
mente de cima para baixo ou em closes, nos trazem a sensação
de confinamento, a despeito da animada conversa travada pelos
personagens.
Entre estas duas cenas, que compõem o que entendo como uma
só sequência de sentido na narrativa deste filme há apenas um
corte seco. Como as duas cenas têm mais ou menos o mesmo
tempo de duração, a simultaneidade e a oposição entre elas fica
ainda mais salientada. Enquanto o tempo – duração – das duas
aponta identidade e relação entre elas, o espaço apresentado em
cada uma delas – distinto em amplitude e estética – diz que esta
identidade e esta relação são por oposição e descontinuidade
de sentido. Num dos locais estariam os bons, no outro os maus.
(OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 17)
Minha fala será como se eu contasse um filme, elencando os locais narrativos
onde estive e estou – dois esconderijos, um mirante, uma praça, duas pontes e uma
ágora –, cada um deles dando uma imagem espacial do sentido que têm e tiveram
estes momentos de minha vida. São estes locais que compuseram o território do meu
conhecimento e do meu trabalho como acadêmico, nas suas relações de fuga e apro-
ximação com a Geografia.
Medos, cantos e esconderijos
Gosto de pensar que meu estar vivo se dá e se deu numa busca de conhecer o
mundo à minha volta para conseguir entender os meus medos e os dos outros: medos
como marcas sociais de poderes distintos. A partir disto também buscar entender os
meus desejos e os dos outros, as minhas ações e as dos outros, uma vez que não existo
a não ser em relação aos outros, sejam estes outros tomados como os demais seres
humanos ou os objetos e características que compõem o espaço geográfico. No fundo
estou a dizer que os tais outros existem em mim e que existo neles e somente assim.
Entre fugas e aproximações das geografias | 213
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Em outras palavras, não existe o ser, mas o ser-com ou o ser-aí, na relação com, em
relação a. Os ventos existencialistas são facilmente notados nesta minha perspectiva
de entender-me e aos outros.
Nesta busca de entender os medos que levam aos atos de conhecer e ao conhe-
cimento, devo dizer que, quando ainda estudante em Juiz de Fora, tinha muito medo
de ser inocente demais. A professora Valéria Trevizani Burla de Aguiar, minha pri-
meira guia na Geografia e na Educação, uma vez disse que eu era pueril. E era mes-
mo. Ainda sou. Naquele momento ela esteve no lugar de um deus que revela aquilo
que eu tentava esconder. São sempre os deuses que nos revelam a nós mesmos. Eles
nos atiram coisas que dizem de nós próprios. Esta é uma ideia que permanecerá aqui
apenas como linha de fuga ao texto, uma vez que não entrarei em maiores detalhes,
apesar de considerar James Hillman (1993) e seus escritos sobre os deuses da cidade
e da alma uma possibilidade instigante de se pensar o espaço para além de suas ma-
terialidades.
Retomando meu relato, devo dizer que não era somente a puerícia de Lima
Duarte que eu tinha realmente a esconder naqueles anos.
Por isto, porque meu segredo era outro, mesmo tendo minha ingenuidade re-
velada, continuei muito tempo sem conseguir formular a pergunta certa para enten-
der o porquê do medo de ser revelado, e segui vivendo boa parte de minha vida em
esconderijos.
Esconderijo é uma palavra que traz em si algo eminentemente espacial. Ba-
chelard (1972) usou a palavra “cantos” em seu livro A poética do espaço para dizer de
algo semelhante ao que chamo aqui de esconderijos. Estes cantos são aqueles locais
para onde vamos quando queremos estar a sós, onde sentimos que tudo ali diz de
nossa presença e nossa memória, os objetos, as cores, os cheiros. Um segundo sentido
espacial para esconderijo, também existente nos cantos bachelardianos, é dado pelas
distâncias. Distâncias que nos separam dos outros e nos remetem a nós mesmos com
mais intensidade.
Mas se pensarmos no sentido mais comum da palavra esconderijo, aquele que
de fato tenho como o mais intensamente vivido por mim, encontraremos um terceiro
movimento que é o de abrigar aqueles que estão em condição marginal na sociedade,
aqueles que, sob o ponto de vista dos dominantes da ordem, devem ser retirados da
vida pública ou mesmo da vida, e que, por isto, inventam um local onde se escondem
para viver, ainda que não publicamente.
Se seguirmos o pensamento de Hannah Arendt (1981), todos aqueles que se
escondem são homens e mulheres que perdem a condição humana, uma vez que esta
só é inteira quando vivemos juntos, existindo no mundo como morada dos homens,
no plural, ou seja, agindo em público, no campo do político.
214 | Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
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Mas não é bem assim. A negação de uma ordem social é ao mesmo tempo a
afirmação radical dela mesma. No livro No ventre da besta – cartas de prisão, seu
autor, Jack Henry Abbot (1982), um homem que viveu praticamente a vida inteira
em orfanatos, prisões e instituições de reclusão de infratores, descreve a sociedade
americana nas suas minúcias mais cruéis e revela muito desta sociedade e de onde
ela se ampara para construir sua força e grandiosidade: na exclusão de uma parte das
pessoas que nela nasceram. O que busco apontar com o exemplo tirado do livro de
Abbot é como, do interior mesmo de locais fechados, dos esconderijos, o exterior se
mostra. Mais uma vez é Bachelard (1972) e sua dialética do exterior e interior a ins-
piração para este pensamento.
Também dos esconderijos nos quais me meti, sinto ter entendido o exterior que
me ameaçava e dele participado, muitas vezes inconscientemente, de maneira ativa.
Cabe salientar aqui que o tal exterior que me ameaçava era exatamente a Geografia
acadêmica.
Tomemos o primeiro destes esconderijos no qual entrei para fugir da Geografia
presente na academia, para entender como exterior e interior se fazem mutuamente.
O primeiro esconderijo: a área de Educação
Mais de 30 anos atrás, nos idos do final da década de 1980, me formei em
Geografia na UFJF. Durante minha graduação, fui monitor no Colégio de Aplicação
João XXIII e foi lá que descobri um jeito de me esconder da Geografia acadêmica: ser
professor e ter na Educação meu lugar de preocupação, estudo e engajamento.
Mas por que fugir da Geografia? O que sentia era que a Geografia acadêmica
na qual eu estava inserido me permitia entender melhor as dinâmicas da natureza e
também a entender melhor as dinâmicas sociais, mas não me ajudava a entender a
mim mesmo e aos meus medos, desejos e ações.
Era o período forte da Geografia crítica. Ainda que em Juiz de Fora fossem
bastante insipientes as discussões desta perspectiva da comunidade nacional de geó-
grafos, os ares das explicações gestadas nas grandes teorias oriundas do materialismo
histórico e dialético chegaram e se instalaram entre alguns de nós, alunos à época,
com grande força em termos políticos e nos levavam a sermos marxistas e críticos.
Vivíamos os anos entre o movimento das Diretas e a Assembleia Constituinte de
1988.
Hoje penso que não éramos nem marxistas e nem críticos, no sentido que a pa-
lavra crítica tem na expressão Geografia crítica, mas sim assumíamos as explicações
genéricas e generalizantes que a entrada dos estudos marxistas na comunidade na-
Entre fugas e aproximações das geografias | 215
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cional de geógrafos trouxe para as periferias desta comunidade. Desta forma, tudo já
vinha explicado e já estava explicado pela e na grande teoria, que destinava à História
e à Economia todos os entendimentos da sociedade.
Aquela perspectiva nos dava um enorme alento e conhecimento para nos sen-
tirmos atuar na cena política brasileira do final da ditadura. Ainda que as leituras
fossem poucas e os aprofundamentos pequenos – eu realmente fui ler Karl Marx
cinco anos depois de formado – tinha diante de mim um mundo que se descortina-
va como possível de maior liberdade. A liberdade entendida como uma conquista
social, vinculada à redução das opressões econômicas. Meu maior engajamento se
deu no destino de ser professor, pois a educação se descortinava como o lugar onde
a conscientização poderia se dar de forma mais ampla. Naqueles tempos, as palavras
de Paulo Freire eram, sem dúvida, minhas guias.
Mas a busca por liberdade não se limitava a isto, ao exercício político, pois
naquele momento, para muitos de nós, jovens universitários, a liberdade tinha que
ser total. E isto, no meu caso, passava além do conhecimento do mundo e das rela-
ções sociais mais justas economicamente, uma vez que minha maior opressão, sendo
oriundo de família burguesa, não era a econômica. Enfim, não era livre e a Geografia
acadêmica focada no marxismo não me ajudava a entender o porquê eu não era livre
ou não me sentia livre.
Naqueles anos do final da década de 1980 e começos dos anos 1990, no interior
da Geografia como área do conhecimento acadêmico, a busca por liberdade passava
sempre e quase que exclusivamente pelas questões econômicas, sociais, coletivas e,
portanto, atinentes a uma ampla escala de ação e preocupação. Em suma, a liberdade
era pensada na esfera da macropolítica. Ainda que me engajasse como estudante e
depois professor, o fazia como parte dos grupos sociais aos quais pertencia. Não me
engajava como pessoa, uma vez que as lutas que travava não levavam à minha maior
liberdade e menor medo, mas a maiores liberdades sociais e menores medos outros,
não sendo eles aqueles que me afetavam.
Na Educação, no entanto, eram já muito mais nítidos os efeitos das teorias
oriundas dos movimentos sociais de liberdade individual: feminismo, movimento
negro, movimento gay, ecumenismo religioso etc., já se faziam presentes nas preocu-
pações educativas. Com isto, ao me aproximar desta área do conhecimento, conse-
guia entender melhor a minha falta de liberdade como um fato social e não somente
pessoal. Os constrangimentos religiosos e de gênero eram melhor compreendidos
fora do constrangimento teórico imposto pela teoria de explicação predominante-
mente econômica.
216 | Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
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Mas não só isto, uma vez que ali também estavam mais claras as possibilidades
de mudança social efetivadas nas ações micropolíticas, realizadas na escala das rela-
ções pessoais.
Pelos motivos acima, ainda que não consciente deles, elegi, naqueles anos de fi-
nal de curso e início profissional, a Geografia Escolar e o trabalho de professor como
meu lugar de ação no mundo. Isto persiste até hoje.
Foi assim, após alguns anos de trabalho e engajamento junto à Geografia Esco-
lar, que fui parar na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) para fazer mestrado.
O segundo e mais perfeito esconderijo: a Faculdade de Educação
da Unicamp
Tão perfeito que sigo lá até hoje.
É este o local de onde falo. Um local fora da Geografia, que me permite pensar a
mim mesmo como um quase geógrafo, como aparece no subtítulo. Este local me per-
mitiu e ainda permite ter um caminho acadêmico que toca nos autores da Geografia
acadêmica sem fazer deles os meus guias e principais companheiros de jornada.
Sem dúvida é deste local, que hoje é muito mais um canto que um esconderijo,
que me dirijo aos meus leitores e alunos, que me dirijo a vocês. É dele que busco reco-
nhecimento e é em seu interior que realizo, nos últimos anos, minhas aproximações
com a Geografia acadêmica.
Foi na Faculdade de Educação da Unicamp que a Geografia novamente se fez
presente em mim de maneira mais frequente, uma vez que meu concurso foi para
prática de ensino em Geografia e minhas primeiras turmas de alunos foram compos-
tas totalmente por formandos da licenciatura de Geografia da Unicamp.
Foi neste segundo “esconderijo” que meus estudos nas áreas de Educação, Lin-
guagem e Cinema se cruzaram de maneira efetiva com as preocupações geográficas
e foi então, e só então, eu diria, que se fez claro para mim que estas preocupações
geográficas nunca me abandonaram em todo o meu percurso acadêmico, mesmo
quando sentia que todo o meu esforço era de ruptura. Foi deste local que lancei as
pontes de que tratarei mais à frente.
Chegarei nelas depois. Para manter esta narrativa com o fio cronológico que
criei, primeiro vou comentar um pouco dos dois locais – o mirante e a praça – onde
se deram minhas primeiras reaproximações com a Geografia acadêmica e que me
permitiram, inclusive, ser aprovado no concurso que fiz para a Faculdade de Educa-
ção da Unicamp na interface entre Educação e Geografia.
Entre fugas e aproximações das geografias | 217
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O mirante: a Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Rio Claro
Antes de finalizar meu doutorado fui ser professor de didática no Departa-
mento de Educação da Unesp, de Rio Claro. Famosa para a Geografia acadêmica,
Rio Claro era a cidade na qual moravam Lívia de Oliveira e Antonio Christofoletti,
autores que havia lido na graduação. O último não cheguei a conhecer pessoalmente.
Conheci Lívia no primeiro ano em que morava lá e nos tornamos admiradores
mútuos desde então. Tudo começou quando ela leu minha dissertação de mestrado
(OLIVEIRA JÚNIOR, 1994) e a achou bonita, além de totalmente geográfica, o que
eu, até então, negava.
Nossas histórias têm muitos acasos, ironias e mata-burros. A Unesp de Rio
Claro foi um dos meus acasos e um dos meus mata-burros, pois lá fui obrigado, pelo
departamento no qual fui professor, a trabalhar com o curso de Geografia e a desco-
brir que pensar e conversar sobre o espaço geográfico era mais que uma graduação
em mim, era uma obsessão. Bastou o destino me dar a oportunidade e lá fui eu. Mas
bem de leve.
A maior contribuição que dei aos alunos da Unesp foi no campo das lingua-
gens. Eu era professor em vários cursos de graduação, nos quais lecionava a discipli-
na didática e cheguei a ter um grupo de pesquisa sobre arte e linguagens, no qual a
maioria dos alunos era dos cursos de Pedagogia e Educação Física.
Nesta história de minhas relações com a Geografia, era como se eu estivesse
num mirante, olhando a paisagem de longe, notando seus detalhes e suas relações,
sem estar presente nela.
A Geografia se aproximava pelas bordas.
Primeiro chegou a mim pelo Laboratório de Ciências e Geografia, com a Ro-
sângela Doin de Almeida e sua pesquisa sobre atlas municipais escolares, na qual me
envolvi por conta da enorme presença de imagens nos atlas, notadamente das ima-
gens fotográficas, cotidianas ou aéreas.
Foi, inclusive, por conta de uma conversa sobre fotografia aérea que me apro-
ximei de seu grupo. Havia uma fotografia aérea de Rio Claro num grande pôster na
parede. Um dia, Rosângela conversava com uma de suas orientandas sobre o modo
de leitura dela e o dos mapas.
Entrei na conversa apontando o quanto a leitura destas fotografias aéreas é dis-
tinta da realizada nos mapas e semelhante àquela que fazemos das fotografias co-
muns, destacando serem linguagens distintas que davam origem a obras distintas: fo-
tos aéreas, mapas e fotos comuns. Cada uma destas linguagens tem vínculo e história
numa cultura de entendimento do mundo, criando para si um conjunto de formas de
códigos de produção e leitura gerador de uma educação dos sentidos daqueles que
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convivem com as obras oriundas destes universos culturais de produção. Dito de ou-
tra forma, lemos fotografias e fotografias aéreas a partir da nossa memória visual das
formas físicas existentes diante de nós no mundo tridimensional que se apresenta aos
nossos olhos ao longo da vida. Daí não precisarmos de legenda para lermos tais obras
da cultura fotográfica, uma vez que utilizamos a memória da forma visual das coisas
para identificarmos o que há nelas e estabelecermos relações entre seus elementos.
Não é bem assim, pois a realidade é tridimensional e a fotografia é bidimen-
sional – portanto, a fotografia codifica de alguma maneira o real fotografado a partir
de sombreamentos, distâncias, ângulos – mas nossos hábitos de convivência com os
objetos produzidos a partir da perspectiva de foco único – fotos, filmes de cinema
e tevê, por exemplo – nos faz ver nestes objetos aquilo que não está neles, mas que
sentimos estar ali dada a grande verossimilhança entre o que vemos ali e o que verí-
amos se estivéssemos diante do mesmo cenário no mundo tridimensional cotidiano,
o chamado real.
Seja como for, as questões sutis da leitura fotográfica não se punham naquele
momento, pois o que nos interessava era a distinção entre esta leitura e a realizada
nos mapas, uma vez que os lemos a partir de um conjunto de códigos bem mais cla-
ros como códigos, e que são entendidos muitas vezes sem que a legenda seja necessá-
ria tal a força das convenções cartográficas ocidentais. No entanto, a rigor, todo mapa
demandaria de uma legenda para ser lido por alguém de uma cultura que não fosse
aquela na qual o mapa foi elaborado.
Desta forma, tínhamos que as fotografias aéreas têm sua leitura a partir do
real visível, da memória visual das formas naturais e sociais e os mapas uma leitura a
partir da legenda e da memória visual dos símbolos cartográficos. Portanto, como a
cultura visual demandada para a leitura de uma é distinta da do outro, suas leituras
não são equivalentes.
Destas conversas desdobraram-se inúmeras outras e talvez seja destes tempos o
surgimento de uma das perguntas teóricas que mais me acompanha: Representação
ou apresentação?
Os mapas e fotos apresentam um lugar ou o representam? Normalmente penso
que eles o apresentam, pois eles devem ser tomados como discursos sobre este lugar
e não como uma coisa que diz daquele lugar tal qual ele de fato é. Ou seja, mapas e
fotos não são neutros em relação ao que mostram, uma vez que participam da cons-
trução de nossas memórias acerca daquele lugar e, com isto, agem efetivamente sobre
ele, uma vez que mediam nossas ações destinadas a eles, atuando (in)diretamente
sobre este lugar.
Vou voltar nesta questão um pouco mais à frente.
Entre fugas e aproximações das geografias | 219
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Por hora devo dizer que o trabalho de pesquisa compartilhado com a Rosânge-
la e os demais pesquisadores do Grupo Atlas foi minha primeira grande parceria com
a comunidade geográfica da academia e culminou com a organização de um número
dos Cadernos Cedes – Formação de Professores e Atlas Municipais Escolares (2003).
Durante meus quatro anos na UNESP, cheguei mesmo a ser colaborador junto
ao Programa para Educação Tutorial (PET) Geografia, devido às minhas aproxima-
ções com os alunos e alguns professores do Departamento de Geografia de lá, em
especial à professora Samira Kahil, tutora deste programa à época.
Como podem perceber, deste “esconderijo” que foi o Departamento de Educa-
ção da UNESP, já dei miradas na direção daquilo que me incomodava, a Geografia
acadêmica, e foi de lá que participei do que foi meu segundo local de aproximação
com a Geografia, aquele que aqui denominarei de minha “praça” no interior do ter-
ritório da geografia.
A praça: os encontros de prática de ensino de Geografia
Nos tempos da UNESP, reiniciei minhas idas aos congressos e encontros de geó-
grafos. Era uma obrigação de trabalho, uma vez que eu, como professor universitário,
não podia permanecer longe das discussões que se travavam nos fóruns acadêmicos
atinentes ao que fazia. Já havia participado da Associação Nacional de Pós-Gradua-
ção e Pesquisa em Educação (ANPEd), na área de Educação, e resolvi retomar meus
contatos com a área de Geografia também. Não na Geografia propriamente dita, mas
no entroncamento entre ela e a Educação. Encontrei meus principais interlocutores
e companheiros de reflexão junto aos ENPEGs, os Encontros Nacionais de Prática
de Ensino de Geografia: são eles Tomoko Paganelli (Universidade Federal Flumi-
nense – UFF), Gisele Girardi (Universidade Federal do Espírito Santo – UFES), Jörn
Seemann (Universidade Regional do Cariri – URCA), Ângela Katuta (Universidade
Estadual de Londrina – UEL), Cláudio Benito Ferraz (UNESP, Presidente Prudente)
e Nídia Pontuschka (Universidade do Estado de São Paulo – USP).
Nos encontros nacionais de prática de ensino de Geografia, já me sinto em
casa. A despeito das disputas e diferenças, cheguei mesmo a coordenar grupos de
trabalho e discussão (GTD’s) e mesas redondas, bem como participar de algumas
delas. Tributo às minhas participações nos ENPEG’s os convite que recebi, desde
então, para compor outras comissões científicas e mesas redondas em encontros de
geógrafos, sempre nas interfaces com a Educação ou as linguagens.
Enfim, nestes encontros, eu estava numa “praça”, onde me encontrava com co-
nhecidos para conversas, memórias e planos. Planos e pesquisadores que, entre afetos
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e preocupações comuns, vieram a materializar-se na ágora que é a rede de pesquisa
“Imagens, Geografias e Educação”, da qual falarei mais adiante.
Para chegar às instigantes conversas e discussões da ágora, duas pontes se fize-
ram anteriormente.
A primeira ponte: as pesquisas e a educação visual da memória
Se minha fuga da Geografia acadêmica se deu porque os conhecimentos desta
não me levavam ao meu melhor entendimento no mundo, meu retorno a ela se deu
por aquela área de conhecimento que me permitiu me entender nele: a linguagem,
seja esta tomada como palavra e literatura, seja como imagem do cinema ou da fo-
tografia.
Meus estudos sobre linguagem e educação, em especial sobre linguagem do
cinema, foram como uma ponte que construí sobre o território narrativo de minha
trajetória acadêmica e profissional.
Esta ponte construí pelos meus dois trabalhos de pesquisa acadêmica gerado-
res dos títulos de mestre e doutor em Educação, bem como pelas minhas pesquisas
acerca da Educação visual contemporânea (ALMEIDA, 1999) junto ao Laboratório
de Estudos Audiovisuais (Olho), da Faculdade de Educação da Unicamp, criado e
coordenado pelo professor Milton José de Almeida. Uma ponte que revela o quanto,
mesmo em meus locais de fuga, me preocupava com o espaço geográfico.
Minha dissertação (OLIVEIRA JÚNIOR, 1994), um dos pilares da ponte, tem
como título A cidade tele-percebida – em busca da atual imagem do urbano e nela
aparecem mais de 100 desenhos de cidades presentes na mídia nacional: Brasília, Rio
e São Paulo. Todos estes desenhos foram feitos por jovens de Campinas. Ali, em meu
mestrado, já está posto o meu incômodo com a Geografia como conhecimento posi-
tivo. Na dissertação, a cidade é entendida não como algo que se manifesta fisicamente
no espaço da superfície do planeta, mas também como algo que se faz nas imagens e
palavras dela ditas e tomadas como sendo parte de sua realidade.
Em outras palavras, ali já aparecia a ideia que hoje é muito forte em meus escri-
tos e pesquisas de que os lugares geográficos são, eles próprios, produtos narrativos,
que se constituem tanto daquilo que se manifesta física e socialmente neles quanto
dos discursos e falas que se dobram sobre eles. Dito de outra forma, o que se diz do
Rio de Janeiro – seja em palavras ou imagens – é tanto o Rio de Janeiro quanto todas
as construções e pessoas e relações naturais e sociais que se dão naquele ponto do
território brasileiro. Isto porque não nos relacionamos e agimos em relação a um
lugar – o Rio de Janeiro, por exemplo – somente com o que existe lá, mas sim, e
Entre fugas e aproximações das geografias | 221
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principalmente talvez, pelo que sabemos de lá – este saber não é apenas informativo,
mas também e fortemente afetivo (medos, atrações, simpatias, amores etc.). O afeti-
vo é aquilo que nos afeta, seja de uma forma ou de outra, aquilo que nos marca e se
mantém em nossa memória, de modo a tornar-se mediação em nossa maneira de nos
relacionarmos com este lugar.
Dito de outra maneira, somos afetados pelos mais diversos tipos de experiên-
cias que temos com os lugares, tomando experiência como sendo tudo aquilo que nos
toca, que nos acontece, que nos passa (LARROSA, 2002), distinguindo-se, portanto,
de informação ou notícia, uma vez que estas seriam aquilo que acontece, aquilo que
se passa, mas não necessariamente deixando marcas em nós.
É neste caminho de pensamento que Geografia seria o entendimento das rela-
ções e ações que os homens travam com o espaço geográfico e seus elementos. Estas
relações são aquelas que mediam como agimos no espaço e que, portanto, gestam
a forma dos lugares. E elas são formadas em nós tanto pelas experiências corporais
diretas – aquelas valorizadas nos trabalhos de campo e estudos do meio – quanto nas
experiências mediadas – pelas teorias ou por mídias diversas, notadamente as imagé-
ticas. Estas últimas cada vez mais são responsáveis por uma grande quantidade dos
conhecimentos e saberes que temos dos espaços e lugares.
Além disto, estas relações que travamos com o espaço geográfico, seus lugares
e processos, são tanto econômicas e sociais quanto simbólicas, umas intervindo nas
outras, dependendo de que situação social vivemos, de que grupo social pertence-
mos, de que lugar de poder atuamos.
Penso, portanto, que, nos dias que correm, conhecer o espaço é também pensar
sobre como ele é inventado diariamente diante de nós pelas câmeras e narrativas da
TV, lembrando sempre da observação de Susan Sontag (2004, p. 4): “A sabedoria úl-
tima da imagem é dizer: ‘isto é uma superfície’. Agora pense. Ou melhor, sinta, intua.
O que está além disso? Como deve ser a realidade? Se parece com esta imagem?”
Foi na tentativa de entender melhor as imagens, bem como entender como a
linguagem audiovisual se configura – e configura os lugares e fenômenos geográficos
– que me dediquei a estudar o cinema enquanto linguagem no meu doutorado.
Minha tese, o outro pilar da mesma ponte, chamou-se Chuva de cinema: na-
tureza e cultura urbanas (OLIVEIRA JÚNIOR, 1999), e foca-se na linguagem do
cinema e nas diversas maneiras como ela se apropria do fenômeno natural da chuva
e o transforma em dado da cultura – produto social –, trazendo para a chuva sen-
tidos outros para além daqueles que a relação entre homem e natureza já haviam
dado a ela. O foco dos estudos iniciado na tese é tomar o espaço do cinema tanto
como materialidade/cenário no qual se desenrolam as ações dos personagens, quanto
como sentido/ambientação na qual o entendimento das ações é compreendida pelos
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espectadores. Esse sentido é parte e impregna os elementos espaciais que lhe deram
existência. Ambientação/cenário é sentido e o sentido se faz das ambientações/cená-
rios, como apresentei no início deste texto, ao comentar as duas imagens sínteses de
cenas do filme Cidade de Deus.
Tanto a tese quanto a dissertação se misturam hoje nas pesquisas que desenvol-
vo e oriento em meu pequeno grupo de orientandos que estudam as relações entre a
educação visual contemporânea e o pensamento espacial.
Atualmente, tenho lido escritos de geógrafos que se dedicam a estudar as lin-
guagens nas quais os conhecimentos geográficos são produzidos ou apresentados,
mas a grande reviravolta vivida por mim em relação a autores da geografia se deu
com a leitura do livro Pelo espaço – uma nova política da espacialidade, de Doreen
Massey (2008), o qual se tornou meu maior amparo para pensar o espaço geográfico
como algo em aberto, atravessado por forças – trajetórias – múltiplas e heterogêneas
que o fazem ser, sobretudo, uma eventualidade.
Meus trabalhos têm sido classificados por alguns geógrafos que estudam teoria
da Geografia como sendo parte da Geografia humanista ou humanística, o que já me
dá um lugar na Geografia acadêmica, ainda que este lugar seja controverso e ambíguo
no interior da comunidade de geógrafos.
A segunda ponte: a Geografia Escolar
Em todos estes anos, nunca estive distante das conversas e tensões em torno
da Geografia Escolar, entendendo-a sempre como sendo algo distinto da Geografia
acadêmica, mas mantendo, pelas tradições escolares brasileiras, uma íntima relação
com esta última.
Mas como entendo a Geografia Escolar como algo distinto da Geografia aca-
dêmica, sempre evito em minhas aulas e cursos, bem como em meus escritos sobre
Geografia Escolar, dizer que as proposições educativas são de trabalhar com Geo-
grafia, buscando descolar uma coisa da outra, descolar o conhecimento escolar do
acadêmico, ampliando a liberdade do primeiro em relação ao segundo. As pesquisas
em Sociologia do currículo feitas, por exemplo, por Ivor Goodson (2001), são muito
elucidadoras das relações entre a comunidade acadêmica dos geógrafos e as tensões
que se dão nas escolas acerca de qual conhecimento deve ser ensinado aos alunos.
No caminho de realizar a distinção antes apontada sobre estas duas geografias,
busco outras formas de dizer, como, por exemplo, no título de um texto coletivo pro-
duzido como texto-base de um curso para professores em Campinas, no ano de 2003:
“Cinco eixos orientadores de práticas educativas escolares voltadas a iniciar reflexões
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sobre o espaço geográfico nos primeiros quatro anos do ensino fundamental e na
educação infantil”. (OLIVEIRA JÚNIOR et al., 2005)
Notem que não chamamos de Geografia aquilo que se destina às escolas, mas
sim de “reflexões sobre o espaço geográfico”. Esta prática visa a efetivar a distinção
dita acima, entre Geografia Escolar e Geografia acadêmica, visto que a equivalên-
cia entre as duas tem se dado em grande parte pela utilização de um mesmo nome
– Geografia – para estes dois conjuntos de conhecimentos que são distintos, ainda
que mantenham íntimas relações e interinfluências mútuas ao longo da história da
escolarização brasileira.
Também no intuito de relativizar a importância demasiada do conhecimento
acadêmico nas instituições e currículos escolares, nas propostas de atividades educa-
tivas que realizo junto aos licenciandos e aos cursos de formação continuada ou em
exercício, o conhecimento do espaço geográfico fica, de algum modo, localizado em
– submetido a – algo que seria mais importante do ponto de vista da escolarização,
aquilo que entendo poder chamar de conhecimento escolar, ou seja, um percurso
para o conhecer.
Isto pode ser melhor notado no enunciado da proposta de estudo do meio,
presente no mesmo texto-base citado logo acima.
Estudos do meio
Fizemos um ‘esquema’ com alguns ‘passos’ a serem realizados
durante ações educativas num estudo do meio, assumindo que
estes passos visam ser momentos e formas de produzir conheci-
mentos (saberes escolares). Em cada um desses ‘passos’ se busca
lidar com algum tipo de reflexão sobre o que é produzir conhe-
cimento, portanto esse ‘esquema’ não visa propor uma sequência
a ser seguida, mas indicar algumas das possibilidades que um
Estudo do Meio tem de produzir práticas educativas que, ao in-
vés de somente reproduzir o que já foi dito sobre um dado lugar,
possam colocar os alunos na condição de produzir conhecimen-
tos acerca desse lugar e ao mesmo tempo refletir sobre os limites
e tensões desses conhecimentos por eles produzidos.
Cabe ainda dizer que a escolha por realizar ou não cada um des-
ses ‘passos’ deve ser do professor ou da classe ou da escola, tendo
em vista os objetivos e limitações de cada Estudo. Salientamos
que seria mais interessante que cada Estudo do Meio [esperamos
que muitos possam ser realizados...] se organizasse de uma ma-
neira diferente dos demais, de modo a permitir outras conversas
acerca das influências que o modo de produzir os conhecimen-
tos têm sobre os próprios conhecimentos produzidos. E, mais
interessante ainda seria se as pessoas envolvidas no Estudo in-
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ventassem outros ‘passos’, outros jeitos de fazer com que conhe-
cimentos sejam produzidos em situações escolares. (OLIVEIRA
JÚNIOR et al., 2005, p. 134)
Nos próprios nove “passos” estabelecidos como formas de produzir conheci-
mentos na escola, notamos que o conhecimento do lugar, o estudo do meio, está
submerso num processo de conhecer que é mais amplo, uma vez que a “ida ao lugar”
é apenas o sexto dos passos elencados, e eles se iniciam pelas “impressões subjetivas”
e vão até a “elaboração de narrativas”, passando pela “criação dos eixos de busca”,
“pesquisa de fontes de informações”, “descoberta de conhecimentos nestas fontes”,
“organização de materiais”, “elaboração/organização dos diversos registros e fontes” e
“apresentação dos grupos/eixos”.
Em breve resumo de nossa perspectiva, o lugar, o meio, não é um ponto ou
área da superfície terrestre que está disponível aos nossos sentidos para ser conhe-
cido, mas é também, e sobretudo, fruto da nossa forma de aproximação deste ponto
da superfície do planeta. Dito de outra maneira, a forma de conhecer é criadora do
lugar, portanto um estudo do meio é também o estudo de como o conhecemos, das
mediações e estratégias que temos para conhecer um dado ponto ou área da superfí-
cie do planeta ao qual damos um nome específico, como rua Augusta, assentamento
Chico Mendes, vale do Ribeira, cidade de Campinas, Mata Atlântica. Nesta pequena
lista, fica claro que a própria escala do meio, do lugar que buscamos conhecer, é uma
questão de escolha.
Nossa proposta de conhecer concebe o conhecimento como algo que está na
relação entre as pessoas e o mundo no qual elas vivem, o conhecimento se localiza
neste “entre”. Não é uma proposta de conhecer aquilo que está no mundo, tomado
como externalidade de nós próprios, seja externalidade da mente, do corpo ou da
cultura. Nesta proposta de conhecer está incluído necessariamente o conhecimento
daqueles que conhecem, o que faz com que não seja possível, numa primeira mira-
da pelo menos, incluir a Geografia produzida na escola com os saberes dos alunos
– Geografia Escolar – no conjunto de conhecimentos chancelados como Geografia
acadêmica, pelo simples fato destes alunos não poderem ser considerados geógrafos.
A ágora: a rede “Imagens, Geografias e Educação”
Na praça que se fez nos ENPEGs, muitas boas prosas surgiram e aos poucos
alguns dos pesquisadores decidiram criar outras oportunidades para conversarmos
sobre as linguagens e a Geografia, sobretudo em sua face escolar, mas não só. Ao
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longo de mais ou menos dez anos de conversas e encontros, formatamos um evento,
o “Colóquio Internacional A Educação pelas imagens e suas geografias”, e uma rede
de pesquisa, “Imagens, Geografias e Educação”. Esta última foi consolidada com seis
núcleos acadêmicos: Campinas/São Paulo (UNICAMP/USP/UNIFESP), Dourados
(Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD/UNESP-Presidente Prudente),
Vitória (UFES), Crato (URCA), Natal (Universidade Federal do Rio Grande do Nor-
te – UFRN) e Florianópolis (Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC/
Colégio de Aplicação, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC).
Estes núcleos se criaram em torno de grupos de pesquisa já existentes que atu-
am na mesma interface entre as imagens, as geografias e a Educação ou realizam pes-
quisas e escritos que cruzam e intensificam as buscas que vimos realizando em tor-
no de dois grandes eixos imbricados: 1) na descoberta/enfrentamento das políticas
contemporâneas efetivadas nas/pelas imagens no pensamento espacial e no ensino
de geografia; e 2) na criação de poéticas com e nas imagens que façam estas políticas
derivarem delas mesmas, promovendo, parafraseando Doreen Massey (2008), uma
paisagem mais desafiadora para se pensar o espaço.
A perspectiva central das ações e pesquisas desta da rede “Imagens, Geografias
e Educação” é afetar nossos pensamentos acerca do espaço como dimensão da Edu-
cação e da vida, bem como afetar os percursos curriculares escolares a partir do con-
tato com as obras visuais ou audiovisuais pesquisadas ou criadas no âmbito da rede.
O financiamento alcançado no edital UNIVERSAL do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 2011, tem-nos permitido
adensar os conhecimentos teóricos em torno das criações em imagens, notadamen-
te vídeos, fotografias e mapas, pelos grupos de pesquisa da rede, os quais reúnem
professores doutores, alunos de graduação e pós-graduação, além de professores das
redes de ensino. Tendo em vista o quanto obras em linguagem audiovisual, fotográ-
fica e cartográfica atuam na educação visual e, portanto, participam das políticas de
criação de memórias públicas acerca do espaço geográfico, nossa aposta é a de reali-
zar obras que tenham potência poética no burilamento da imaginação espacial e que
venham a se constituir como obras de circulação em ambientes educativos, visto que
cada núcleo se propõe trabalhar em estreita relação com professores de Geografia e
outras disciplinas, tanto nos estudos acerca da Educação pelas/nas/com as imagens
quanto na criação de obras visuais e audiovisuais que venham a configurar não só
geografias menores (OLIVEIRA JÚNIOR, 2009), mas também, percursos ou forma-
tos curriculares outros (AMORIM, 2004; CORAZZA, 2010), tornando o desenvolvi-
mento da rede de pesquisa uma ação com poder de mobilização curricular no campo
do ensino de Geografia e da formação de professores.
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Como escopo central de nossas pesquisas, em grande medida, estamos a nos
perguntar, junto com Oneto (2009, p. 200): “que forças seriam capazes de nos bloque-
ar e que convidariam a algo da ordem da resistência?”.
Penso que os pesquisadores da rede identificaram forças bloqueadoras nos três
campos onde atuamos no e com o pensamento: nas imagens, na Geografia e na Edu-
cação. Em cada um deles fomos convidados a criar resistências, lembrando sempre
que a ideia de resistência com a qual temos lidado, proveniente da chamada filoso-
fia da diferença, não é a da contraposição ou da superação de uma coisa por outra
tida como melhor. Resistir é da ordem do colocar em devir alguma coisa para que
ela comporte nela mesma outras potencialidades. (DELEUZE, 2005; ASPIS, 2011;
PELLEJERO, 2009) Resistir é fazer existir alguma coisa – a cartografia, a fotografia, o
vídeo, a Geografia, a Educação – desde dentro dela mesma, fazê-la reexistir-se outra
ao ser conectada a outros elementos que antes não a compunham. Daí a importância
de criarmos ou descortinarmos obras em imagens que tenham aquilo que Deleuze
e Guattari (2003) chamaram de potência menor no enfrentamento daquilo que nos
bloqueia o pensamento porque já nos parece “sempre-já” dado.
Sendo assim, enfrentar as forças que bloqueiam não é se contrapor a elas, mas
sim buscar estabelecer certos combates àquilo que impede, nelas mesmas, o pensa-
mento de variar, de derivar, de delirar em outras direções que poderiam vir a ser po-
tentes para se inventar outras maneiras de habitar o mundo, habitar aquela coisa – a
cartografia, a fotografia, o vídeo, a Geografia, a Educação – que gostaríamos tivesse
um caráter mais vívido, mais desafiador e intrincado em nossas existências contem-
porâneas.
Estes combates são, portanto, entendidos como produtivos, pois que se dão em
atos de criação de novas possibilidades, de novas obras que venham a atuar no pensa-
mento ao criar variações naquilo que está bloqueado. Em nosso caso, nas linguagens
em imagens, na Geografia e na Educação.
É por isto que a rede vem se desdobrando em três combates que nos propuse-
mos. Cada trabalho escrito ou em imagens combate em uma, duas ou nas três frentes
que estão diante de nós como forças a nos pressionar a ação e o pensamento.
Em breve resumo, seriam estes os três combates:
a) Combate no campo das imagens: assumindo a inerente dimensão educativa e
subjetivadora que as imagens têm em si mesmas (assim como qualquer objeto da
cultura) nos voltamos a fazer experiências e proposições de como poderíamos e
podemos lidar com as imagens de outras maneiras, de modo a desacostumar a
nós mesmos, aos professores e alunos de maneira geral, os sentidos e significados
que damos a elas (exemplo: fotografia e audiovisual como um documento do real,
como prova factual-verídica da existência de algo, como neutralidade capaz de nos
dar a ver a realidade em si mesma, desconsiderando que a forma de mostrar este
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algo é também parte dos sentidos e significados que grudam numa certa imagem).
Parece-nos que a principal ação educativa (subjetivadora) de uma imagem é nos
dizer como devemos experimentar a imagem, nos expor a ela, como imagem (DE-
LEUZE, 2004). Nossa ação tem sido, sobretudo, em fazer com que as imagens –
mapas, fotos e vídeos – não sejam vistos apenas como portando certos conteúdos
espaciais, mas também como formas culturais que expressam estes conteúdos de
certas maneiras – estéticas e éticas – que colam a estes conteúdos alguns significa-
dos que não estão expressos na informação espacial ali dada, mas na maneira como
esta informação espacial é ali apresentada em cores, ângulos, tamanhos, focos, se-
quências etc;
b) Combate no campo do (conceito de) espaço: assumindo que o pensamento espa-
cial geográfico tem sido, de certa maneira, aprisionado numa concepção reduto-
ra do que seja o espaço (como algo extensivo, sobre o qual se dispõem as coisas,
como algo fechado e já estruturado, passível de ser representado, e como algo que
se dá fora das imagens, as quais simplesmente o capturariam/registrariam) bus-
camos problematizar algumas destas perspectivas ao lidar com outras maneiras
de abordar o espaço a partir de outros conceitos, tais como os de eventualidade,
multiplicidade e abertura, propostos por Doreen Massey (2008), ao mesmo tempo
que buscamos criar, em imagens, obras que se configurem como geografias meno-
res (OLIVEIRA JÚNIOR, 2009), efetivando pequenas rasuras e desvios na forma
maior de se pensar o espaço geográfico;
c) Combate no campo da Educação: assumindo que a sociedade contemporânea é
refratária aos modos como a Educação vinha se dando ao longo do último século,
buscamos experimentar outras formas de compor as ações educativas, entendendo
que estas experimentações podem ser realizadas: 1) sobre as forças/trajetórias inu-
manas que compõem a Educação contemporânea (tanto escolar como não escolar)
ao criarmos ou lidarmos com imagens que fogem dos sentidos e lugares culturais
já estabelecidos para as imagens (seja dentro ou fora dos percursos escolares), uma
vez que ao forçarmos o aparecimento de outras formas imagéticas em atividades
educativas estamos forçando também os professores e alunos a terem que lidar
com as imagens (as novas e as já institucionalizadas) a partir de outras possibilida-
des de pensamento e criação; e/ou 2) este combate pode se dar diretamente sobre
as forças/trajetórias humanas – sobretudo docentes – ao promover experimenta-
ções em práticas formativas de professores, de modo que eles pensem em possíveis
percursos curriculares que não se apoiem no saber como acúmulo de informações
e opiniões (há várias buscas de ruptura com a educação como informação) e tam-
bém que estes professores venham a lidar com as imagens e linguagens de maneira
menos prescritiva-gramatical (informação onde o pensamento é estabilizado num
pequeno – ou único – significado) e mais aberta-expressiva (onde o pensamento
acontece a partir das imagens-que-são-mais-que-informações, sem negar a infor-
mação nelas presente, mas escapando deste sentido único instituído a elas nos am-
bientes escolares). Em outras palavras, nosso combate no campo da Educação seria
devolver às imagens o sentido e a potência de linguagem ao colocá-las no lugar de
algo expresso nela e não (só) de alguma coisa que representa algo ausente dela.
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É nesta estimulante ágora onde hoje me localizo como pesquisador de questões
atinentes à Geografia.
Um círculo não redondo
Finalizando este percurso pessoal, digo que minha intenção foi de apresentar
o quanto nosso percurso acadêmico é resultante de tensões subjetivas, acasos profis-
sionais, relações pessoais de simpatia e acolhimento, engajamentos políticos diversos,
buscas de entendimento da vida, tanto pessoal quanto socialmente organizada.
São estas muitas situações que nos geram os locais narrativos com os quais
podemos montar nossa narrativa geográfica, sempre a posteriori. Os meus foram os
esconderijos, o mirante, a praça, as pontes e a ágora. Imagens espaciais que buscam
tornar mais compreensível o percurso por mim montado nestes escritos biográficos.
São imagens tomadas a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva. Ao
assumir esta perspectiva, assumi uma visão de mundo que pode ou não ser a mais
verdadeira. Para esta conversa com pessoas que participam da comunidade da Geo-
grafia acadêmica tenho para mim que esta foi a melhor perspectiva, a de quem fala
de perto, a pouca distância daquilo que é seu interesse.
Na segunda parte do ensaio Distância e perspectiva, Carlo Ginzburg (1999) dis-
cute quem teria, dada sua posição social, o conhecimento mais legítimo para dizer
do seu semelhante ou do seu diferente. Este autor nos apresenta como mote para
seus pensamentos argumentos de natureza ao mesmo tempo artística e geográfica,
iniciando pelas justificativas dadas por Maquiavel, um “homem de berço humilde”,
para dar conselhos ao príncipe. Escreveu Maquiavel:
Não gostaria que fosse tido por presunção um homem de baixa
e ínfima condição ousar discorrer sobre e regular os governos
dos príncipes; porque, assim como os que desenham as paisa-
gens se postam lá embaixo na planície para observar a natureza
dos montes e dos lugares altos, e, para observar a dos lugares bai-
xos se postam no alto dos montes, assim também para conhecer
bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe, e para conhecer
bem a dos príncipes é preciso ser popular. (MAQUIAVEL apud
GINZBURG, 1999, p. 189-190)
Ginzburg mais à frente toma cartas trocadas entre Descartes e a princesa do
Palatinado como argumentos opostos aos de Maquiavel. Escreveu Descartes (apud
GINZBURG, 1999, p. 192):
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Porque o lápis só representa as coisas que se vêem de longe; mas
os principais motivos das ações dos príncipes são muitas vezes
circunstâncias tão particulares que, se não formos príncipes nós
mesmos, ou não estivermos partilhando por muito tempo seus
segredos, nem poderíamos imaginar.
Ginzburg ainda traz os escritos de Leibniz, que pondera sobre os escritos de
Maquiavel e Descartes sobre as conclusões acerca do conhecimento a partir do olhar
dos que desenham paisagens. Escreveu Leibniz (apud GINZBURG, 1999, p. 193):
E assim como uma mesma cidade, vista de diferentes lados, pa-
rece diferente, e é como que multiplicada em perspectiva, assim
também, dada a multiplicidade infinita das substâncias simples,
existem como que diferentes universos, os quais, no entanto, não
passam de perspectivas de um só, conforme os diferentes pontos
de vista de cada mônada.
Ao final, traz as palavras de Chladenius, as quais, segundo Ginzburg, são as
que pautam o trabalho do historiador atual, sua visão de conhecimento. Escreveu
Chladenius (apud GINZBURG, 1999, p. 194):
Uma rebelião será percebida de diferentes formas por um súdito
fiel, por um rebelde, por um estrangeiro, por um cortesão, por
um habitante da cidade, por um camponês.
Não cabe aqui discutir os rumos que Carlo Ginzburg dá ao seu ensaio, mas
sim chamar a atenção para o fato de que as relações entre perspectiva e verdade são
antigas e persistem ainda hoje.
Minha posição em meio a conversas tão importantes entre pensadores tão po-
tentes em suas argumentações é, digamos, mais etnográfica. O conhecimento mais
verdadeiro não está propriamente na posição social que ocupamos – do ponto de
vista com o qual observamos a realidade, mas sim na leitura que fazemos desta posi-
ção/perspectiva ao dizer dos integrantes dela própria – nossos semelhantes/próximos
– ou de outra posição social – alguns de nossos diferentes/distantes.
O ponto de vista da minha relação com a Geografia acadêmica é uma pers-
pectiva/posição de quem está distante, de quem olha de fora e se aproxima. Se eu
assumisse outro ponto de vista, por exemplo, o das minhas relações com a Educação,
os locais que aqui aparecem como esconderijos, como a Faculdade de Educação da
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Unicamp, seriam figurados como casas e não como esconderijos, e a perspectiva se-
ria a de quem está próximo e olha de dentro.
Fica a vocês a condição de localizar minhas palavras na perspectiva/posição
que ocupo e entender tanto a minha posição quanto as minhas palavras em relação à
Geografia como provenientes desta posição/perspectiva.
Sendo assim, cabe, ao final do percurso, perguntar: Minhas aproximações com
a Geografia acadêmica apontam meu retorno àquele local de onde fugi?
Como resposta pessoal, eu diria: sim e não.
Sim, porque me aproximo da comunidade geográfica e sou legitimado em seu
interior, o que faz de minha produção uma obra da Geografia acadêmica.
Não, porque esta comunidade geográfica hoje não mais entende como Geogra-
fia o mesmo que entendia na década de 1980, o que faz com que meu retorno não
seja àquilo do qual fugi, mas outra coisa, uma outra Geografia, de margens muito
mais amplas.
Para finalizar de vez, trago novamente palavras de Riobaldo, personagem que
também busca se conhecer ao contar sua história para o ouvinte-leitor. As palavras
deste personagem resumem, a meu ver, a minha trajetória aqui apresentada, por isto
as escolhi como ponto final e linha de fuga desta mesma trajetória, uma vez que a
repetição é tanto uma conclusão quanto uma tentativa de entender e diferir:
Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrança-
do. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor
tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou
contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas
a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e
da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao
suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a
gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não
sabe, não sabe!. (ROSA, 1965, p. 108)
Continuarei contando esta história, não só o que virá, mas também o que já se
foi no tempo cronológico, pois não sendo este o único tempo onde vivemos, a histó-
ria muda, se refaz, no próprio viver e contar.
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Terceira Parte
A Vida Cotidiana nas Cidades:
Narrativas, Saberes e Geografias
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Curtir, comentar e compartilhar – a fan page: cotidiano,
narrativas e memórias da cidade e do urbano nas aulas de
Geografia
Hanilton Ribeiro de Souza
Rita de Cássia Barreto Sá
Introdução
Inutilmente, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bas-
tiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em
forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de
quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria
o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das
relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do
passado. [...] A cidade se embebe como uma esponja dessa onda
que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra
como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas
a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da
mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos
corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros
das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990, p. 14-15)
Andando pela cidade, seja onde habitamos ou seja em outra que eventualmente
visitamos, sentimos a necessidade constante de localização e orientação. Compor-
tamento natural e geográfico, pois é essencial que conheçamos o espaço para nos
sentirmos seguros, como nos afirma Tuan (1983, p. 203), “[...] sentir um lugar leva
tempo, se faz com experiências”. Porém, para que possamos apreender melhor o es-
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paço urbano, visando a sua transformação, torna-se imprescindível, além da vivên-
cia, um olhar crítico e reflexivo sobre a realidade que ali é (re)construída, ou seja, as
atividades que se realizam no ambiente urbano, bem como os processos sociais que
ocorrem e também se materializam na cidade.
Na busca por uma experiência mais íntima com a cidade, via apreensão ple-
na desse espaço, somos remetidos à mitologia grega, especificamente ao enigma da
esfinge: “Decifra-me ou devoro-te”. Mas não é a cidade capitalista industrial uma
esfinge moderna, à medida que nos requer que a decifremos constantemente, para
que não sejamos devorados ou aprisionados por ela? Diante de tal questão, Calvino
(1990), ao narrar as conversas entre o imperador Kublai Khan e o mercador venezia-
no Marco Polo, nos alerta que a cidade não conta o seu passado, ela o guarda em cada
detalhe, para que a decifremos e compreendamos que em seu espaço há a materia-
lização das experiências vividas e das práticas sociais das sociedades que a constru-
íram/constroem, ao longo do tempo, reverenciando a memória como resultado de
uma relação particular entre passado/presente.
As formas do espaço objetivo, captadas pelos sentidos – visão, e o subjetivo
baseado nas experiências e vivências do indivíduo, portanto em sua história, estão
intermediados para compor a trama dos lugares. Sendo assim, as formas urbanas
mais antigas e seus símbolos/signos guardam a memória do lugar que necessitam
ser apreendidas, através de outros olhares, vivências, experiências e narrativas dos
habitantes mais antigos, a fim de reforçar os laços identitários com tal espaço. Nessa
discussão sobre a cidade e a sua história, Rolnik (2004, p. 9) também destaca que:
O próprio espaço urbano se encarrega de contar parte de sua
história. A arquitetura, esta natureza fabricada, na perenidade
de seus materiais tem esse dom de durar, permanecer, legar ao
tempo os vestígios de sua existência. Por isso, além de continente
das experiências humanas, a cidade é também um registro, uma
escrita, materialização de sua própria história.
Porém, mesmo a cidade narrando uma parte da sua história e, sendo ela, a
personagem principal, torna-se necessário, como destaca Rolnik, que a decifremos
plenamente, à medida que, considerada como uma escrita, um registro da vida social
e das experiências de vida que ali se materializaram, é preciso que seu alfabeto –
ações, valores, signos, símbolos, contradições e exclusões – seja decodificado e com-
preendido, a fim de que possamos apreender o passado e também o presente, seja
preparando as transformações necessárias a um futuro onde a cidade seja realmente
um direito de todos. Rolnik (2004) ainda destaca que as alterações nas formas e fun-
ções do espaço urbano acabam por lhe conferir novos significados, escrevendo assim
238 | Hanilton Ribeiro de Souza / Rita de Cássia Barreto Sá
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um novo texto, com novos registros, ou seja, novas experiências e relações humanas
e sociais que remodelam constantemente tal espaço. Daí a necessidade constante de
reflexão sobre a cidade e o urbano. Dessa forma, “[...] é como se a cidade fosse um
imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases”. (ROLNIK,
2004, p. 18)
Santos (1978 apud MORAES, 1981, p. 123) destaca que “[...] o espaço é a mora-
da do homem, mas pode ser também a sua prisão”. Assim, não basta apenas uma des-
crição da cidade, dos seus aspectos e lugares, pois como nos lembra Calvino (1990,
p. 14), “[...] a cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço
e os acontecimentos do passado”. O espaço urbano, formado por uma multiplicidade
de ações, valores, signos, símbolos, contradições e exclusões, necessita ser analisado
e estudado para que a realidade que ali se constitui, na maioria das vezes, perversa
e excludente, possa ser apreendida, subsidiando as transformações necessárias para
devolver o direito à cidade a todos os seus habitantes.
Assim, é preciso um entendimento mais profundo do que seja tal espaço e como
se dão as relações que o (re)constroem. Seguindo essa linha, podemos demonstrar
aos nossos alunos que a cidade e o urbano vão muito além da moradia e das ativida-
des ali exercidas, mas que perpassam por relações diversas, complexas e contraditó-
rias, que precisam ser analisadas e apreendidas, se desejamos uma cidadania plena
e reflexiva, construída no e para o lugar. Nesse sentido, Santos (2000, p. 113-114)
também enfatiza que:
A possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de so-
luções a serem buscadas localmente. [...] Nisso, o papel do lugar
é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um
espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que per-
mite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação
sobre o presente e o futuro. A existência naquele lugar exerce um
papel revelador sobre o mundo.
Outro olhar sobre a cidade – vivências, cotidiano e aprendizado
Ao planejarmos a maior parte dos temas ligados à Geografia, no ensino básico,
nós, professores, na maioria das vezes, sempre recorremos ao livro didático ou aos
programas de curso como únicas fontes de consulta, quase sempre destacando destes
a listagem de assuntos e conteúdos a serem trabalhados no ano letivo. Essa postura
impede que vejamos que a maioria dos conteúdos geográficos está ao nosso redor, no
nosso espaço vivido.
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Com o trabalho sobre a cidade e o urbano também ocorre isso: temos o objeto
de estudo que desejamos ao nosso redor, mas ficamos presos ao livro didático e à sala
de aula, como se a cidade onde vivêssemos também não fornecesse subsídios e infor-
mações para a produção do conhecimento geográfico. Rolnik (2004, p. 12) destaca
que “não se está nunca diante da cidade, mas quase sempre dentro dela”, enfatizando,
além da importância de tal fenômeno/processo na história da humanidade, a sua
presença e a sua influência em nossas vidas.
Calvino (1990, p. 59) nos alerta que “[...] jamais se deve confundir uma cidade
com o discurso que a descreve”. No entanto, ele mesmo pondera: “Contudo, existe
uma ligação entre eles.” Assim, as referências utilizadas pelo indivíduo ou pelos gru-
pos para construção de um discurso que a descreva como cidade perpassam pelo que
é guardado na memória de ambos e que representam as rupturas, as permanências,
os arranjos, os valores presentes em cada momento histórico, pois retomando Calvi-
no, “[...] as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que
o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas
perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa”. (CALVI-
NO, 1990, p. 44) A cidade entra em cena como receptáculo de todos esses processos e
como produtora de lugares, os quais ganham este significado a partir das referências,
“produzidas por um conjunto de sentidos”. (CARLOS, 1996, p. 22)
Nessa perspectiva, o estudo sobre a cidade/urbano deve pautar-se não apenas
na mera descrição ou observação passiva do espaço, mas, sobretudo, nas experiên-
cias e vivências individuais e coletivas, à medida que tais referências são necessárias
aos indivíduos para que eles criem o sentimento de pertencimento aos lugares, tão
importante para a identidade pessoal, ao recorrerem à memória como fonte de in-
formações (lembranças e significados), as quais estão relacionadas ao que se vivencia
num determinado tempo e espaço. Carlos (1996, p. 29) pontua:
O sujeito pertence ao lugar como este a ele, pois a produção do
lugar liga-se indissociavelmente à produção da vida [...] No lugar
emerge a vida, pois aí se dá a unidade da vida social. Cada sujei-
to se situa num espaço concreto e real onde se reconhece ou se
perde, usufrui e modifica, posto que o lugar tem usos e sentidos
em si.
A complexidade e a importância do tema “cidade/urbano” requerem uma nova
perspectiva de ensino e aprendizagem. Assim, Schäffer (2003, p. 111) enfatiza que:
“refletir sobre a unidade temática cidade/urbano no ensino básico impõe uma re-
visão do papel deste tema na geografia e da forma como o estudo da cidade tem
sido veiculado em propostas curriculares”. Schäffer (2003) ainda pondera que, em
240 | Hanilton Ribeiro de Souza / Rita de Cássia Barreto Sá
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tal revisão sobre o tema, precisamos de uma nova perspectiva de análise nas aulas
de Geografia: “O estudo geográfico da cidade, mais do que propiciar a descrição da
mesma, visa sua compreensão e transformação, na medida em que vê no indivíduo
(morador, aluno) o agente de produção e transformação”. (SCHÄFFER, 2003, p. 113)
Seguindo a discussão, Fernandes (2009, p. 59-60) vem destacar a importância
da cidade como processo educativo:
O espaço da cidade é um local de ações sociais, políticas, poéti-
cas, culturais, de procedimentos de resistência e de criatividade,
de relação entre espaços de circulação, de encontro, de vivências,
fruição, que coloca em contato diferentes formas de pensar, sen-
tir, agir e se colocar dos grupos sociais, fruto de seus repertórios
e contextos culturais [...]. Pensar a cidade como objeto de pes-
quisa, entendendo-a como espaço educativo é tê-la como uma
especificidade educacional, fora do contexto escolar.
Martins (2011, p. 146) também enfatiza a importância da cidade na produção
do conhecimento:
Constituída por práticas socioespaciais, a cidade educa os que
nela vivem. Como prática educativa, por se ela mesma forma e
conteúdo, a cidade é a base de socialização dos processos consti-
tutivos da sociedade contemporânea. Pensar a educação, com e
neste espaço, significa tê-la como espaço que educa formal e in-
formalmente os sujeitos, como nos adverte Paulo Freire (1995).
Desse modo, observa-se a importância da cidade como espaço de ensino e
de aprendizagem, pois se trata do local onde o indivíduo constrói e amplia a sua
identidade e a sua cidadania, bem como do território onde melhor se vislumbram
a organização e a reprodução da sociedade capitalista: relações de produção/traba-
lho, acumulação do capital, normatização da vida e usos do espaço, símbolos e sig-
nos, contradições e exclusões, dentre outros. Assim, o espaço da cidade constitui-se
num arsenal imprescindível para a reflexão e a interpretação do mundo. Santos
(1998, p. 37) destaca que “[...] é pelo lugar que revemos o mundo e ajustamos nossa
interpretação”.
Dessa forma, o ambiente urbano torna-se um espaço de educação, principal-
mente para a cidadania ativa e reflexiva, à medida que o apreendemos pela vivência,
pela experiência e pela diferença. Como afirma Santos (1998, p. 83): “A cidade é o
lugar em que o mundo se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos
homens a diferença. Por isso, a cidade é o lugar da educação e da reeducação”.
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Nesse sentido, notamos quanto o estudo sobre a cidade e o urbano pode ser
mais proveitoso e produtivo se utilizarmos o próprio objeto como local de pesquisa
e aprendizado, realizando aulas contextualizadas e próximas do cotidiano de nossos
alunos, rompendo, assim, com as barreiras impostas pela rigidez curricular/disci-
plinar da Geografia no ensino básico. Nessa direção, Santos (1998, p. 121) também
vem reforçar a importância de uma educação contextualizada e reflexiva, visando à
formação plena do cidadão:
Para ter eficácia, o processo de aprendizagem deve, em primeiro
lugar, partir da consciência da época em que vivemos. Isto sig-
nifica saber o que o mundo é e como ele se define e funciona, de
modo a reconhecer o lugar de cada país no conjunto do planeta
e o de cada pessoa no conjunto da sociedade humana. É desse
modo que se podem formar cidadãos conscientes, capazes de
atuar no presente e de ajudar a construir o futuro.
Na proposição de uma escola e uma Geografia cada vez mais próximas da reali-
dade do aluno, ou seja, uma Geografia que busca, no cotidiano do aluno, as respostas
para os conceitos e teorias trabalhados em sala de aula e no livro didático, é preciso
que ultrapassemos fronteiras: das salas de aula e dos muros da escola, trabalhando
diretamente com o objeto de estudo de nossa ciência – o espaço geográfico – a fim
de aliar teoria e prática, ensino e pesquisa, na construção do conhecimento. Comple-
mentando tal discussão, Kaercher (2007, p. 75) enfatiza:
Parece-nos claro que, o ensino de geografia, como aliás o de
qualquer outra área, só será válido se conseguir fazer um diálogo
com o mundo real, extra-escolar, isto é, que supere uma visão,
ainda muito arraigada em nós professores, de que o estudo serve
para o genérico iluminar cabeças, ilustrar mentes, uma espécie
de enciclopedismo ilustrado, cultura geral. A geografia escolar
tradicional se enquadra bem dentro deste perfil de ciência desin-
teressada, repassadora de informações atualizadas, contemporâ-
neas aos alunos.
E ainda acrescenta:
Mas se construirmos com eles o conhecimento e os conceitos
que ultrapassam as definições prontas, decoradas e tão cobradas
nos velhos e chatos questionários e provas, estaremos superando
a chatice geografia. Se trabalharmos a partir de coisas próximas
a eles e explicarmos a lógica que ordena a organização dos espa-
242 | Hanilton Ribeiro de Souza / Rita de Cássia Barreto Sá
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ços, então nossos alunos poderão integrar-se com facilidade às
novidades, porque construíram operações mentais que os dei-
xaram em condições de fazer relações entre esta e aquela esco-
la, porque lhes demos as ferramentas para eles construírem seu
conhecimento, enfim porque eles relacionarão suas aulas com a
vida, farão relações entre escola e vida, geografia e política, geo-
grafia e natureza, geografia e cidade, enfim geografia e seu coti-
diano. (KAERCHER, 2007, p. 78)
É no diálogo maior com o mundo, com o espaço vivido do aluno, que pode-
remos realmente construir um conhecimento geográfico pautado na reflexão sobre
a realidade, não apenas da cidade, mas também do campo, da política, da indústria,
do comércio, da população, do meio ambiente, enfim, dos vários temas da Geografia,
subsidiando a construção do conhecimento e, consequentemente, o diálogo-ação, ou
seja, a transformação da sociedade e do espaço, como destaca Oliveira (2004, p. 66):
“Quanto mais o professor de Geografia opera a relação dos conhecimentos locais
com o conteúdo disciplinar, melhor seria sua desenvoltura profissional, no parâme-
tro do diálogo-ação”.
Como discutido, o ensino e a aprendizagem a partir da realidade/cotidiano
pressupõem não apenas a construção do conhecimento, mas também a conversão
dos saberes construídos em ação para transformação da realidade. Tal processo passa
pela formação ou ampliação da cidadania do indivíduo, tendo a escola e a Geografia
papéis fundamentais em tal ação educativa. Nesse contexto, os estudos sobre a cidade
e o urbano, a partir da análise e da reflexão do espaço vivido do aluno, têm também
um enfoque na formação da cidadania e na gestão do lugar. Nessa discussão, Schäffer
(2003, p. 116), nos esclarece:
O porquê de estudar a cidade ou o urbano nas aulas de geografia
decorre da resposta a uma pergunta anterior e mais ampla: Por
que estudar geografia? Tal importância decorre de ser a cidade o
espaço no qual, com mais clareza, se visualizam a forte alienação
entre o trabalho e a natureza, a máxima acumulação do capital,
a intensidade das contradições e dos conflitos de interesse, mas,
sobretudo, onde surgem as maiores possibilidades de organiza-
ção de movimentos com o objetivo de transformação social. [...]
A cidade e o urbano estão presentes, nessas propostas, como ins-
trumento de promoção de uma educação que se volta à forma-
ção de uma cidadania consciente, atuante, capaz de levar o aluno
a refletir sobre seu papel como agente de construção do espaço
através da análise crítica da realidade que o cerca.
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Sendo assim, concebemos as cidades como fomentadoras da cidadania, à me-
dida que revelam, concretizadas ou camufladas em seu espaço, as ações, valores, con-
tradições, conflitos e exclusões entre as classes sociais. Santos (1987, p. 63) enfatiza
tal função, ao destacar que “as cidades têm um grande papel na criação dos fermentos
que conduzem a ampliar o grau de consciência. Por isso são um espaço de revelação”.
Porém, tal revelação, a fim de ampliar a cidadania dos indivíduos, só será possível se
vivermos e experimentarmos a cidade onde vivemos nas aulas de Geografia, fazendo
relações entre as teorias e conceitos e a realidade.
Portanto, a fim de superarmos a memorização, a passividade e a mera repetição
dos conteúdos e conceitos já estabelecidos que constam nos livros didáticos, deve-
mos aproximar a Geografia do cotidiano. O estudo de suas temáticas, especialmente,
nesse caso, os estudos sobre a cidade e o urbano devem buscar, assim, a renovação
do conhecimento geográfico e a formação cidadã, pois como destacam Ponstuscka
e outros (2007), ensinar e aprender não significa apenas dominar conteúdos, mas,
sobretudo, utilizar tais saberes para desvendar e compreender a realidade do mundo
para dar sentido e significado à aprendizagem. Já Kaercher enfatiza que a apreensão
plena do mundo se dará quando rompermos as fronteiras da sala de aula/escola, le-
vando a geografia para o mundo dos alunos:
Se conseguirmos construir com os alunos (e não apenas mostrar,
falar, ‘catequizar’) a ideia de que o espaço não é (só) sinônimo
de física (espaço sideral), de matemática (a sala de aula mede
4m x 8m), mas sim sinônimo de território, espaço geográfico,
local onde ele vive, anda, enxerga, toca, estaremos trazendo a
geografia para o mundo dele, tirando-a dos livros didáticos e do
quadro-verde, dois entes tão distantes (afetivamente falando). Se
mostrarmos que este espaço está impregnado de sua ação, que
fazemos geografia no nosso dia a dia, através do trabalho, que
é a constante relação sociedade-natureza, então teremos mais
chance de realizar um diálogo real entre professores e alunos.
(KAERCHER, 2007, p. 81)
A educação científica na análise e interpretação da cidade e do
urbano
Na busca pela superação de um ensino-aprendizagem apenas construído atra-
vés dos saberes cristalizados nos livros didáticos, e que são repassados com baixa re-
flexividade nas salas de aula, e buscando aproximar também a construção do conhe-
244 | Hanilton Ribeiro de Souza / Rita de Cássia Barreto Sá
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cimento geográfico do cotidiano dos alunos, percebe-se, na educação científica, uma
oportunidade de superar a memorização, a passividade e a acomodação na produção
do conhecimento, bem com a distância entre o aluno e o objeto de estudo, ou seja,
entre a teoria e a prática. Segundo Castrogiovanni e outros:
O ensino somente por conteúdos parece não satisfazer mais. Pre-
cisamos trabalhar com questões que evoquem a prática, a reali-
dade contextualizada do aluno, com suas necessidades, seus in-
teresses, suas tensões. É preciso trabalharmos de forma coletiva,
(inter) relacionada. Na Geografia não deve ser diferente. E nem
pode, afinal a Geografia é o cotidiano, é a paisagem, é a relação
entre os sujeitos, e estes com os lugares, entre tantas outras varia-
ções possíveis. (CASTROGIOVANNI; ROSSATO; CÂMARA;
LUZ, 2007, p. 22)
Sabemos que a pesquisa é um processo que visa a pôr o aluno/pesquisador
em contato com realidades ou problemas desconhecidos, ou que ainda precisem de
maior reflexão para a sua apreensão. Nesse sentido, no ensino básico, a educação
científica vem cumprir vários papéis, que vão desde a integração entre a teoria e a
prática, o ensino e a pesquisa, até a ressignificação do processo de construção do
conhecimento, tendo em vista que a pesquisa leva o aluno a conhecer o mundo pelo
seu olhar, confrontando ideias e saberes. Enfim, é buscando, analisando, refletindo e
questionando, para apreender a realidade, que o aluno também se descobre produ-
tor de conhecimento. Nessa perspectiva, Suertegaray, apud Castrogiovanni e outros,
enfatiza:
Pesquisa significa compreender o mundo através de respostas
que construímos sobre este mesmo mundo. Estas respostas são
expressão da interação entre sujeitos, e entre sujeitos e objetos.
Pesquisar pressupõe conhecer o outro – o outro sujeito, o outro
objeto. O ato de pesquisar é um ato de conhecimento, portanto,
é parte do processo de educação. (SUERTEGARAY, 2002 apud
CASTROGIOVANNI et al., 2007, p. 22)
Sendo assim, concebemos que a educação científica tem a capacidade de ino-
var e resgatar algo perdido ou esquecido no ensino básico: o prazer de conhecer, de
construir o conhecimento. Cremos que tal realidade – desencanto, desesperança e
desinteresse – que reina no ambiente escolar, se apoie justamente na falta de desafios
e de sedução que tomou conta da escola atual, pois um ensino-aprendizagem pauta-
do, na maioria das vezes, no conteudismo, na passividade, na distância da realidade e
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no repasse e memorização de informações, não desperta a curiosidade, a dúvida e a
investigação no aluno, tornando-o mero espectador passivo do processo de ensino e
de aprendizagem. Assmann (2003, p. 29) vem enfatizar que:
Precisamos reintroduzir na escola o princípio de que toda mor-
fogênese do conhecimento tem algo a ver com a experiência do
prazer. Quando esta dimensão está ausente, a aprendizagem vira
um processo meramente instrucional. [...] Mas a experiência de
aprendizagem implica, além da instrução informativa, a reinven-
ção e construção personalizada do conhecimento. E nisso o prazer
representa uma dimensão-chave. Reencantar a educação signi-
fica colocar ênfase numa visão da ação educativa como enseja-
mento e produção de experiências de aprendizagem.
Ainda nessa discussão, Castrogiovanni (2007, p. 44) vem complementar que:
O ensino fundamental e o médio devem ser, acima de tudo, de-
safiadores, capazes de despertar o interesse dos alunos para a
resolução dos problemas que a vida apresenta. Hoje, na pós-mo-
dernidade, a escola deve proporcionar os caminhos necessários
para que os sujeitos/alunos possam compreender o cotidiano,
desenvolvendo e aplicando competências.
Nessa perspectiva, ao utilizarmos a educação científica em nossas aulas, além
de desenvolvermos competências através dos desafios da resolução de problemas
presentes no seu espaço vivido, testando e reconstruindo saberes, estaremos também
auxiliando nosso aluno na formação e ampliação de sua cidadania. Ao pesquisar, ele
estará se envolvendo com as questões locais e despertando, assim, a sua reflexão so-
bre as ações, valores, contradições/conflitos e exclusões que acontecem e se configu-
ram em seu espaço vivido. Com isso, vemos que trabalhar o cotidiano dos alunos nas
aulas de Geografia implica levá-los a desvendar o mundo, como afirma Pontuschka
e outros (2007, p. 97):
Além de dominar conteúdos, é importante que o professor de-
senvolva a capacidade de utilizá-los como instrumentos para
desvendar e compreender a realidade do mundo, dando sentido
e significado à aprendizagem. À medida que os conteúdos dei-
xam de ser fins em si mesmos e passam a ser meios para a inte-
gração com a realidade, fornecem ao aluno os instrumentos para
que possa construir uma visão articulada, organizada e crítica
do mundo.
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Assim, os autores vêm demonstrar que os professores devem ter maior intimi-
dade com a educação científica, inserindo o processo investigativo no cotidiano da
prática pedagógica do ensino básico, pois se trata de um forte aliado da produção e
recriação autônoma do conhecimento.
Se considerarmos a docência como atividade intelectual e práti-
ca, revela-se necessário ao professor ter cada vez mais intimida-
de com o processo investigativo, uma vez que os conteúdos, com
os quais ele trabalha, são construções teóricas fundamentadas na
pesquisa científica. Assim, sua prática pedagógica requer de si
reflexão crítica e constante criação e recriação do conhecimento
e das metodologias de ensino, o que pressupõe uma atividade
de investigação permanente que necessita ser apreendida e valo-
rizada. (PONTUSCHKA; PAGANELLI; CACETE, 2007, p. 95)
Diante do exposto, vemos que a educação científica deve fazer parte do pro-
cesso pedagógico do ensino básico. Assim, ao trabalharmos com a temática “cidade/
urbano”, se torna necessário tê-la como objeto de pesquisa, a fim de superarmos a
parcialidade e a superficialidade com as quais ainda entendemos tais processos, o
que reduz em muito a nossa capacidade reflexiva. Nesse contexto, Fernandes, a partir
das discussões de Bernet (1997), destaca a questão da parcialidade na apreensão da
cidade:
Fatores como classe social, o lugar de residência, o grupo gera-
cional, o trabalho, os hábitos familiares ou de ócio de cada qual
determinam que cada indivíduo não conheça mais que uma par-
cela ou uma dimensão muito limitada de sua cidade. Isso se dá
porque, na realidade, uma cidade está composta de muitas cida-
des diferenciadas, objetiva e subjetivamente: a cidade dos jovens
e a cidade dos mais velhos; a dos ricos e a dos pobres; a noturna e
a diurna; a cidade da marginalização e a cidade que mostram os
postais. (FERNANDES, 2009, p. 64-65)
Bernet (1997, p. 30 apud FERNANDES, 2009, p. 64) vem enfatizar a questão da
superficialidade em tal processo:
Informalmente aprendemos a usar quotidianamente a cidade,
mas aprendemos muito menos a entendê-la e a decodificá-la
além da obviedade. Informalmente descobrimos a aparência da
cidade, mas não detectamos sua estrutura; conhecemos sua atu-
alidade, mas desconhecemos sua gênese e sua prospecção.
Curtir, comentar e compartilhar – a fan page | 247
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Enfim, observamos que através do processo investigativo podemos superar
com nossos alunos a parcialidade e a superficialidade presentes na análise da cida-
de e do urbano, à medida que a pesquisa propicia o contato real com o objeto de
estudo e tal experiência favorece, ainda, maior vivência do espaço vivido, desvelan-
do sua formação, seus valores e signos: seus problemas, conflitos e exclusões. Tuan
(1983, p. 21) conclui que “[...] quando residimos por muito tempo em determinado
lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém a sua imagem pode não ser nítida,
a menos que possamos também vê-lo de fora e pensemos em nossa experiência”.
As novas mídias no ensino e aprendizagem da Geografia
As mudanças que vêm ocorrendo em todas as instâncias do mundo moderno e,
em especial, no processo de aquisição de informações e na rapidez com que elas são
disseminadas, estão levantando alguns questionamentos acerca do papel da Educa-
ção e da escola frente a esta realidade. O uso das atuais tecnologias de comunicação
coloca-nos diante de um grande desafio, não de incorporá-las apenas como recursos/
instrumentos de ensino, mas promovendo a utilização consciente das informações
para intervir no processo de gestão do espaço. Puerta e Nishida (2007, p. 124-125)
vêm enfatizar que:
No decorrer da última década surgiu um novo mundo, com
grandes mudanças, principalmente no campo das telecomunica-
ções. A escola, como espaço celular da sociedade, deve acompa-
nhar essa revolução tecnológica para que os educandos sejam ci-
dadãos da cibercultura. Concordamos que as novas tecnologias
da informação e da comunicação interferem na organização do
trabalho e da ideias, e justamente por isso é preciso aprender a
utilizá-las como ferramenta auxiliar na tomada de decisões para
não nos tornarmos usuários acríticos.
A preocupação com o papel que as novas tecnologias devem assumir no con-
texto educacional é pertinente, uma vez que não se trata apenas de colocar máquinas
em sala de aula ou nos laboratórios das escolas. É necessário construir uma práxis
pedagógica a partir dos recursos tecnológicos existentes e disponíveis, não só na es-
cola, mas também aqueles que fazem parte do cotidiano dos estudantes. José Aquino
Júnior (2007, p. 79) destaca que “[...] a escola não é uma célula isolada e deve es-
tar integrada às ações da própria sociedade. Na atualidade, com o desenvolvimento
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tecnológico acelerado que estamos vivenciando, a escola precisa ficar atenta e estar
conectada à realidade”.
A utilização das novas tecnologias de informação e comunicação, como fer-
ramentas capazes de contribuir para a construção de um conhecimento associado
à influência que tais recursos exercem sobre os jovens, mais adaptados e inseridos
no mundo digital, oferecem uma grande oportunidade para a discussão de questões
consideradas relevantes na formação de cidadãos capazes de intervir na realidade.
O uso das redes sociais é, sem dúvida alguma, a chance de se criar um canal
de comunicação para compartilhar informações e ideias, a partir da interação no
ambiente virtual, este considerado como uma sala de aula sem paredes, sem cartei-
ras, uma nova arquitetura para o cenário educacional, mais apropriada a esse estágio
que estamos vivenciando, no qual suas ferramentas de comunicação estão criando
novas formas de convivência, de comportamento, de aprendizagem. Puerta e Nishida
(2007, p. 126) destacam que “[...] esse mundo, que diariamente se transforma, muda
o sujeito-usuário, seus hábitos e as ferramentas da inteligência de que ele necessita
para acessar e trabalhar as informações disponíveis”.
Assim, a escola deve se colocar como articuladora desse processo, pois não há
mais como pensar a educação atual sem o uso das novas tecnologias digitais. Estamos
diante da necessidade de uma política educacional voltada para uma proposta que
reveja as concepções e práticas sociais adotadas até então. A observação da realidade
local e o diagnóstico das situações-problema podem levar à conscientização quanto à
realidade local, incentivando a implementação de soluções efetivas pelos indivíduos
que aí residem, a fim de gerir e transformar o espaço vivido.
A escola, através das novas mídias, como recursos didáticos da educação cien-
tífica e da prática pedagógica cotidiana, pode se tornar um instrumento fundamen-
tal para a construção de uma consciência reflexiva sobre a realidade, subsidiando a
formação de uma cidadania participativa e proativa no/do lugar. Para Lopes (2011,
p. 99) “[...] não existe educação descolada de um projeto político e de que todo
projeto educacional, por ser ‘político-pedagógico’, porta em si uma proposta de so-
ciedade, um ideário de humanismo”. Sendo assim, concebemos que as novas mídias
e a educação científica surgem como recursos técnicos alternativos para o fomento
do conhecimento em busca de novas formas de gestão e transformação da realida-
de do lugar. Para Santos (2000, p. 96), lugar é “[...] chão da população, isto é, sua
identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence”. Portanto,
o sentido de pertencimento e de identidade em relação ao seu lugar é considerado
um fator essencial à intervenção das pessoas no processo de gestão.
As redes sociais, quando bem articuladas, podem ser um poderoso meio para a
criação de uma cidadania mais participativa no lugar, pois devemos ter um pensamen-
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to voltado para o global, mas agir localmente para que isso aconteça. O desenvolvimen-
to de ações e projetos em âmbito local, interligados por meio das redes de comunicação,
deve ser promovido, especialmente pelas escolas, espaço sistemático de produção e so-
cialização do conhecimento, como nova base material das relações sociais.
O novo paradigma da Educação exige que a escola se ajuste, redimensionando
o papel do professor, do aluno, da sala de aula, dos conteúdos e métodos pedagógicos
ao uso das tecnologias para a criação de ambientes de aprendizagem fora da sala de
aula, ou melhor, a instrumentalização para esta aprendizagem, uma vez que o uso da
tecnologia da informação cria novas condições de produção do conhecimento.
A experiência de utilizar a fan page, como interface produtiva na análise do es-
paço da cidade, das suas questões intrínsecas e subjetivas, da discussão e da troca de
informações e aprendizagens consiste na perspectiva de utilizar tal ferramenta para
desenvolver a autonomia e a capacidade de comunicação dos estudantes, no tocante
à análise de conceitos espaciais/geográficos elementares para a compreensão da sua
realidade. Além disso, tal ferramenta pode proporcionar, como auxiliar do processo
pedagógico, a dinamização das aulas e a interação aluno e escola e entre vida e apren-
dizagem, à medida que a aula não terminaria na sala de aula, mas continuaria em
outros espaços e tempos: “Uma aula produtiva é aquela em que o aluno trabalha além
do tempo e do espaço da aula, porque foi desafiado a buscar soluções para problemas
verdadeiros e a levar dúvidas para além dos muros da escola”. (JÚNIOR, 2007, p. 79)
Enfim, destacamos a utilização da fan page ou página de fãs, específica do Fa-
cebook, direcionada a empresas, marcas ou produtos, organizações, associações e
autônomos que visam uma maior interação entre suas atividades e seu público alvo.
Observamos o potencial que tal mídia possui para a interação, a discussão, a produ-
ção e o compartilhamento do conhecimento geográfico, nas redes sociais, tão utili-
zadas pelas crianças, jovens e adultos, na atualidade, complementando dessa forma
as aulas em sala e os momentos de pesquisa, seja em campo ou na própria internet.
Conforme Júnior (2007, p. 82), “[...] acreditamos que o acesso às novas tecnologias
possa também melhorar a organização lógica das ferramentas da inteligência dos
alunos, na medida em que traz novos componentes para acessar informações, orga-
nizá-las e utilizar-se delas”. E, para concluir, deixamos o alerta de Puerta e Nishida
(2007, p. 130):
A multimídia pode, então, ser considerada uma ferramenta mo-
derna que busca novas tecnologias para se desenvolver, trazendo
de volta ao aluno o prazer da descoberta. A multimídia aparece
no ensino para auxiliar e complementar as aulas, e não para to-
mar o lugar do professor, que deve continuar sendo o orientador
do aluno na construção de um roteiro de investigação.
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Castro Alves, Bahia – uma cidade, vários lugares – o uso da fan
page na análise da cidade e do urbano
Com vistas a modificar e inovar o ensino e na aprendizagem sobre a cidade e o
urbano com os alunos da 3ª série do ensino médio do Colégio Estadual Polivalente
de Castro Alves, na Bahia, integrando teoria e prática, ensino e pesquisa, além de se
utilizar das novas mídias em tal processo, é que planejamos e desenvolvemos o pro-
jeto “Castro Alves/BA – Uma cidade, vários lugares”, no segundo bimestre de 2012.
É preciso salientar que este projeto é uma experiência formativa que relata ou-
tras visões dos alunos com o espaço vivido, utilizando-se da pesquisa in loco (entre-
vistas, relato de vivências e memórias). Destacamos que tal experiência tinha como
objetivos: a) refletir sobre o processo de urbanização, partindo da realidade local
para a global, permitindo a análise e a discussão dos valores, da memória, dos sím-
bolos e signos urbanos, do processo de apropriação e reprodução espacial – contra-
dições, conflitos e exclusões – bem como examinar os problemas urbanos de Castro
Alves; b) discutir a identidade e a cidadania dos castroalvenses, bem como o papel e a
importância da participação cidadã na gestão local; c) inserir a educação científica no
cotidiano das aulas de Geografia do ensino médio, a fim de tornar o aluno um prota-
gonista ativo e reflexivo do processo de ensino-aprendizagem e, enfim; d) utilizar as
novas mídias – fan page (Facebook) – como um recurso didático, para discutir a cida-
de e o urbano, especificamente de Castro Alves, gerando, assim, interação entre pro-
fessor e alunos, alunos e alunos, alunos e comunidade, comunidade e comunidade.
Dessa forma, destacamos os procedimentos metodológicos adotados em sua
realização. Salientando que se trata de um roteiro básico a ser adaptado por quais-
quer professores, de Geografia, ou de outras áreas, que desejem realizar tal experiên-
cia pedagógica:
a) Planejamento do projeto e suas ações pelos professores de Geografia e de outras
disciplinas interessadas na experiência, executado durante os horários de atividade
complementar (planejamento);
b) Criação de um perfil no Facebook: Geografia Castro Alves,1 a fim de administrar
a fan page do referido projeto, bem como as demais páginas criadas para outros
temas;
c) Criação/formatação da fan page: Castro Alves/BA – Uma cidade, vários lugares;2
1 <http://www.facebook.com/#!/geografiacastroalves>.
2 <http://www.facebook.com/#!/pages/Castro-AlvesBa-Uma-Cidade-Varios-Lugares/211419228985209>.
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d) Postagem do projeto na fan page, contendo orientações para o seu desenvolvimen-
to;
e) Apresentação e discussão do projeto com as turmas:
• Divisão dos grupos de trabalho. Como as turmas eram formadas por alunos
da zona urbana e rural do município, e muitos sem acesso a internet fora
do espaço escolar, a divisão dos grupos baseou-se nos seguintes critérios:
a) as equipes foram formadas a partir de alunos que já possuíam perfil no
Facebook, para administração das postagens; b) os grupos deveriam ser
compostos por alunos da zona rural e urbana da mesma turma, a fim de
facilitar a interação no processo de pesquisa e postagem;
• Orientações gerais para a execução do projeto pelos grupos de trabalho:
postagens, formatação das postagens, inserção de comentários, pesquisa de
campo, interação entre os grupos, seleção e postagens das fotografias de
cada temática do projeto, dentre outras.
f) Atividades semanais de pesquisa, com questões baseadas em temáticas relativas à
cidade e ao urbano:
• Atividade de pesquisa I: Formação do espaço urbano e identidade;
• Atividade de pesquisa II: Cidade – funcionalidade e influência regional;
• Atividade de pesquisa III: A cidade e seus problemas sociais;
• Atividade de pesquisa IV: Globalização e uso do espaço urbano;
• Atividade de pesquisa V: Cidade e planejamento urbano.
g) Apresentação e discussão da pesquisa efetuada pelos grupos, em sala de aula, nar-
rando as experiências vividas e coletadas a partir dos temas, além de refletir sobre
a realidade local, estendendo tal debate para os âmbitos nacional e global. As inter-
venções e orientações dos professores direcionavam a produção do conhecimento
para os conteúdos selecionados/trabalhados;
h) Seleção e registro fotográfico dos espaços, aspectos e/ou atividades da cidade/urba-
no que refletissem a temática pesquisada;
i) Postagem das fotografias com os respectivos comentários na fan page;
j) Interação entre os grupos na fan page, curtindo, comentando e compartilhando
fotografias e comentários;
k) Avaliação das postagens efetuadas pelos professores envolvidos.
A seguir, selecionamos algumas fotografias e relatos postados pelos grupos de
trabalho na fan page, a partir das temáticas pesquisadas/trabalhadas, demonstrando
como ocorreu a apreensão da cidade e do urbano em Castro Alves, pelos nossos
alunos.
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• Formação do espaço urbano e identidade
A casa mais antiga da nossa cidade. O casarão onde morou o poeta Castro Alves foi cons-
truído em 1820, na época de Curralinho. Hoje é um patrimônio histórico cultural e biblio-
teca onde podemos dizer que o casarão é o cartão postal da nossa cidade. Nossa história
precisa ser preservada, cuidada, lembrada. Nossa equipe escolheu o casarão porque como
nós já tínhamos dito, ele é o cartão postal, o coração da nossa cidade. A existência desse
patrimônio aumenta o nosso conhecimento sobre a história da nossa Castro Alves. Local:
Praça Dionísio Cerqueira. (GRUPO DE TRABALHO: BRUNO, GEISA, PALOMA, CA-
RINA. 3º A MAT, 2012)
Figura 1 – Casarão da Fazenda Curralinho – Biblioteca e Centro
Fonte: Acervo dos autores (2012).
Figura 2 – Fábrica Charutos/Grêmio e Palacete dr. Rafael Jambeiro
Fonte: Acervo dos autores (2012).
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A nossa cidade ainda tem vários casarões antigos, temos como exemplo a Fábrica Central
de Charutos de Francisco de Barros Lordello, localizada na Praça da Liberdade, antiga
Praça São José. A fábrica de charutos era uma das fontes de renda da nossa cidade. De-
pois de desativada, ela virou “O Grêmio”, que funcionou como um clube carnavalesco por
alguns anos. Já funcionou também como antiquário e hoje esse casarão está sem uso e à
venda. (GRUPO DE TRABALHO: ELIÚDE, JAMILE, JÉSSICA, FERNANDA, AMIS-
TERDAN. 3º A MAT, 2012)
O Palacete de dr. Rafael Jambeiro, que foi construído no ano de 1922, fica situado na Av.
Rafael Jambeiro e tem uma grande historia, só que apagada aos olhos da população, um
local onde servia de armarinho e que vendia de tudo, principalmente sapatos, tecidos,
linhas etc. Décadas atrás, esse local era bastante importante para toda a população castro-
alvense, hoje se encontra em uma situação bastante precária. (GRUPO DE TRABALHO:
IVANILDO, EDSON MARQUES, TIAGO, ALOÍSIO. 3º A MAT, 2012)
Como podemos notar, nas Figuras 1 e 2 e nos relatos, as discussões giraram
em torno da preservação do patrimônio histórico local, destacado como importante
para a fundamentação da identidade dos castroalvenses. Porém, os grupos de traba-
lho também relataram a decadência das formas urbanas mais antigas da cidade, pois
algumas se encontram em ruínas e outras estão à venda, podendo, inclusive, desa-
parecer, apagando parte da nossa história. Com isso, notou-se a pouca importância
que a sociedade e o poder público local conferem à preservação do patrimônio da
cidade, esquecendo-se que a memória dos seus habitantes é um fator importante
para a criação e a ampliação da identidade e da cidadania das pessoas. Santos (1999,
p. 263), ao discutir a importância da memória para os lugares e indivíduos, afirma
que “[...] quando um homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar cuja
história desconhece cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa
alienação.” E a alienação é a porta de entrada de todos os processos que destroem os
lugares, ou se não destroem também não os faz crescer, ao contrário, serve para ali-
mentar a apatia, a acomodação, o desrespeito ao coletivo. Gera também a perda das
referências – culturais, históricas, econômicas, geográficas – que servem como amál-
gama na produção da identidade e como combustível para o processo de apropriação
plena que se manifesta através da configuração espacial, das formas que o lugar vai
assumindo ao longo do tempo.
• Cidade – Funcionalidade e influência regional
A especialização de nossa cidade é baseada no comércio, não só em lojas, mas sim na feira
livre, que consiste na venda de verduras, frutas e legumes, que acontece nos dias de quarta-
feira, sexta-feira e a parte maior no sábado. Produtores de vários lugares, tais como Itatim,
Varzedo, Santa Terezinha, Milagres, entre outros, vêm vender os produtos e muitos vêm
comprar. (GRUPO DE TRABALHO: NELMA, TAIRLA, MARÍLIA, TAISE, OSCAR.
3º B MAT, 2012)
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Figura 3 – Feira Livre de Castro Alves/BA
Fonte: Acervo dos autores (2012).
A feira livre de nossa cidade tem uma variação de produtos, e uma suma importância para
todos nós habitantes. Recebendo muitas pessoas de outras cidades, como Santa Terezinha
e Itatim, entre outras, é de fundamental importância para a economia de nosso município,
pois os comerciantes da cidade e os da zona rural têm a oportunidade de vender seus pro-
dutos e com o lucro investir em novos. (GRUPO DE TRABALHO: IVANILDO, EDSON
MARQUES, TIAGO, ALOÍSIO. 3º A MAT, 2012)
Figura 4 – Clínica Médica e Loja em rede
Fonte: Acervo dos autores (2012).
Destacamos que os alunos perceberam que as redes de transporte e comuni-
cações, bem como as atividades econômicas de um lugar, revelam sua funcionali-
dade (comercial e de serviços, industrial e agropecuária), determinando também
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o nível de influência que ele possui em sua região (em qual nível da hierarquia ur-
bana a cidade/município se insere). Nesse sentido, observaram também que nossa
cidade, sendo de pequeno porte, possui como funcionalidade principal a agrope-
cuária, visto que a feira livre é sua maior e mais importante atividade econômica.
Porém, o setor comercial e de serviços (clínicas particulares, hospital regional, ban-
cos, supermercados, lojas em rede etc.), também se destacam, pois hierarquizam
os municípios vizinhos e de menor porte econômico, tais como Santa Teresinha,
Itatim, Rafael Jambeiro e Varzedo. É preciso ressaltar que os alunos ainda destaca-
ram a influência regional de Santo Antônio de Jesus em relação à nossa cidade e
às outras do Recôncavo sul da Bahia, narrando nas discussões em sala de aula suas
experiências de viagem a estes centros para realizarem algumas atividades que o
município de Castro Alves não oferece.
Além de observarem a funcionalidade e a influência regional atual de nosso
município, alguns grupos conseguiram avançar, utilizando-se das narrativas dos mo-
radores mais antigos, para entender o papel de destaque de Castro Alves há algumas
décadas atrás, pois tal local era um importante entreposto ferroviário comercial da
região, bem como grande produtor e beneficiador de fumo. Destacamos que tais ba-
ses econômicas entraram em decadência, nas décadas de 1970 e 1980, respectiva-
mente, levando o município à estagnação e à crise, perdendo assim a sua importância
e influência.
Figura 5 – Antigos armazéns de fumo e antiga estação ferroviária
Fonte: Acervo dos autores (2012).
A estação ferroviária de Castro Alves, que antes era um ponto de grande importância em
nossa cidade, era utilizada por trens cargueiros... e de grande importância para a popu-
lação castroalvense e da região. Está em estado de abandono e sem aproveitamento. Isso é
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um desrespeito para um patrimônio tão importante. (GRUPO DE TRABALHO: ADRIE-
LE, CAROLINA, JANILE, JÉSSICA. 3º C MAT, 2012)
Esse é um antigo casarão que funcionava como armazém de fumo há muitos anos, e fez
parte das casas comerciais de Castro Alves, e que hoje funciona como serraria. Escolhemos
esse casarão porque ele contribuiu com a história comercial e econômica de nossa cidade.
(GRUPO DE TRABALHO: JÁDILA, LAYLLA, VALDINEI LIMA, JARBAS. 3º B MAT,
2012)
• A cidade e seus problemas sociais
Figura 6 – Diferenciação na urbanização de ruas/bairros de Castro Alves, Bahia
Fonte: Acervo dos autores (2012).
Figura 7 – Loteamento Edson Costa Leão
Fonte: Acervo dos autores (2012).
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Com a observação das áreas centrais e periféricas, podemos notar as diferenças sociais e
econômicas. No centro, a urbanização é melhor, há uma grande concentração de lojas,
farmácias, mercados e segurança melhor. Enquanto na periferia, dificilmente encontra-
mos áreas comerciais, bem como serviços de saneamento básico, ruas calçadas. O lixo é
espalhado na rua, esgoto a céu aberto, há uma desigualdade social enorme. São problemas
visíveis no dia a dia das pessoas que moram nas areas periféricas. (GRUPO DE TRABA-
LHO: LUZIVÂNIA, ELISÂNGELA, IAGO, DILTON. 3º C MAT, 2012)
Castro Alves é uma cidade que, como outras, apresenta desigualdade social e econômi-
ca, e que se manifesta através da paisagem urbana. Basta compararmos as áreas centrais
com as periféricas que podemos perceber os principais problemas sociais urbanos da nossa
cidade, como por exemplo: a falta de saneamento básico, limpeza, serviços, segurança,
calçamentos, entre outros. No entanto, a realidade de vida da população mais pobre pode
se transformar reunindo as comunidades para reivindicar os seus direitos. (GRUPO DE
TRABALHO: DANIELE, MARIANA, JULIANA, DANIEL. 3º C MAT, 2012)
A cidade de Castro Alves, assim como as demais cidades, é um conjunto de lugares, ela não
pode ser considerada homogênea, pois há uma divisão entre centro e periferia, além disso,
a urbanização não chega a todos. No conjunto habitacional Pe. Piazza, por exemplo, não
há calçamento nas ruas, nem coleta de lixo. Enfim podemos visualizar vários problemas.
(GRUPO DE TRABALHO: NELMA, TAIRLA, OSCAR. 3º B MAT, 2012)
Uma rua urbanizada tem planejamento anterior à construção e divisão dos lotes,
valorizando seus imóveis próximos. Porém, na nossa cidade, a urbanização acontece
muitas vezes em benefício da elite castroalvense, como vemos no Loteamento Edson
Costa Leão. (GRUPO DE TRABALHO: EDICSON, NADSON, LUCIANO, VITOR.
3º B MAT, 2012)
Nesta temática – a cidade e seus problemas sociais – notamos nos relatos, em
sala de aula e na fan page, que os alunos conseguiram detectar e discutir as contra-
dições socioeconômicas da sociedade capitalista, concretizadas na paisagem urbana
castroalvense, evidenciando as diferenças sociais, os conflitos e as exclusões existen-
tes na cidade e materializados nas formas urbanas, nos valores, nas ações sociais e
governamentais. Também é preciso destacar a discussão feita pelos alunos quanto à
importância do envolvimento e da união da comunidade (participação cidadã) para
a solução dos problemas que se apresentam no bairro/rua. Na Figura 7 e num dos
relatos, ainda notamos que os alunos evidenciam a apropriação do espaço urbano e
do poder municipal pelas elites, tendo em vista a crítica em relação ao Loteamento
Edson Costa Leão, promovido pela iniciativa privada, mas com apoio do poder pú-
blico local, onde a urbanização foi planejada e executada antes da venda dos lotes,
possuindo água, luz elétrica, ruas asfaltadas, rede de drenagem, jardins, calçadas e
estacionamento. Tal realidade está em contraposição à realidade local, onde várias
ruas da cidade, especialmente as mais carentes e periféricas, surgidas e povoadas há
várias décadas, continuam carentes de tais serviços.
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• Globalização e uso do espaço urbano
A maioria dos castroalvenses vivem hoje na cidade. Até mesmo a população que não vive
na cidade tem um modo de vida globalizado, diminuindo as distâncias e diferenças nas
categorias de espaço urbano e rural, pois ambos têm acesso à internet, TV a cabo, telefone
fixo e móvel etc. (GRUPO DE TRABALHO: ANTONIO MARCOS, JEFERSON, JU-
LIAN LENO, ADRIANA. 3º ANO A MAT, 2012)
Figura 8 – Aparelhos tecnológicos, sede da Wanax, provedor de internet local
Fonte: Acervo dos autores (2012).
Hoje em dia, a globalização afeta diretamente e indiretamente a sociedade castroalvense,
beneficiando a população em sua facilidade na comunicação e notícias do desenvolvimento
global, pelo acesso da internet, contribuindo para informações que podem gerar melhor ins-
trução para os jovens e adultos no meio profissional. (GRUPO DE TRABALHO: EDICSON,
NADSON, LUCIANO, VITOR. 3º ANO B MAT, 2012)
Notamos que os alunos perceberam a ligação intrínseca entre globalização e re-
volução tecnológica, pois destacaram que os meios de comunicação e informação es-
tão alterando as relações sociais, educacionais, culturais, políticas e econômicas, seja
entre pessoas e/ou empresas do mesmo lugar ou de outros espaços, e como isso tem
influenciado a relação espaço-tempo. Também apontaram as mudanças de relação
das pessoas com seu espaço vivido, seja através do maior conhecimento da realidade
ou devido ao isolamento e/ou afastamento do convívio social e urbano provocados
pelas novas mídias.
• Cidade e planejamento urbano
Infelizmente, Castro Alves é uma cidade que não possui um bom planejamento urbano,
por isso a ocupação dos espaços públicos, como praças e ruas pelo comércio informal, e
uma grande desorganização na feira livre, acabam prejudicando a comunidade, impe-
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dindo a utilização desses espaços corretamente. Se houvesse alguma estrutura e um bom
planejamento, a cidade seria mais organizada, as pessoas ficariam bastante satisfei-
tas, além de acabar com os problemas sociais e ajudar no desenvolvimento econômico.
(GRUPO DE TRABALHO: DANIELA, MARIANA, JULIANA, DANIEL. 3º ANO C
MAT, 2012)
Figura 9 – Praça da Liberdade e Praça Dionísio Cerqueira (centro da cidade)
Fonte: Acervo dos autores (2012).
Previamente acreditávamos que Castro Alves tinha um planejamento urbano, ao estudar-
mos o assunto descobrimos que não. As ruas não são asfaltadas, as barracas de ambulantes
postas em lugares impróprios, como na Praça da Liberdade. Isso tudo mostra a inexistên-
cia de planejamento. (GRUPO DE TRABALHO: BETINA, DANILE, JAMIEL MACIEL,
ELIANA. 3º ANO B MAT, 2012)
Nesta temática, os alunos enfatizaram mais a apropriação dos espaços públicos
da cidade (praças, jardins, ruas, calçadas etc.), pelo comércio informal, bem como
a desorganização no trânsito da cidade. Além disso, também salientaram a falta de
planejamento das ruas, principalmente nos bairros periféricos, bem como nos dis-
tritos do município, os quais carecem de organização e infraestrutura. Além disso,
destacaram a centralização administrativa e política do poder local e a existência
fictícia do Plano diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) da cidade, pois nunca
foi colocado em prática, à medida que é visível a desorganização da cidade. Enfim,
concluíram que, sem um planejamento urbano, e também sem a participação da co-
munidade, não há desenvolvimento local.
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Tecendo algumas considerações
Diante do exposto, destacamos que com tal experiência formativa, pudemos
percorrer outros caminhos – educação científica e uso de novas mídias na constru-
ção do conhecimento geográfico, ao propiciar o contato dos alunos com a memória
e a realidade atual do seu espaço urbano, através das narrativas dos castroalvenses
entrevistados.
Devemos destacar que o projeto teve alguns imprevistos e problemas: a difi-
culdade de acesso de alguns alunos à internet, por conta de residirem na zona rural,
além de dificuldades na escrita, oriundos, respectivamente, de uma exclusão tecno-
lógica e de uma alfabetização deficiente. Porém, tais problemas foram solucionados
de forma satisfatória pela inserção de alunos com acesso a internet nas equipes que
tinham problemas, e também a liberação do Facebook no laboratório de informática
da escola, para os alunos participantes, durante a execução do projeto. É preciso des-
tacar o auxílio dos professores de língua portuguesa, literatura brasileira e redação na
correção de alguns comentários antes das postagens na fan page.
Percorrer novos caminhos gera temor e apreensão, à medida que, mesmo pla-
nejando, não temos como prever se alcançaremos os objetivos propostos. Porém, o
prazer do novo, da descoberta e da criação, do fazer diferente, da possibilidade de
mudar a realidade da sala de aula na produção do conhecimento é o que move e
inspira o professor para que ouse e tenha coragem de arriscar, buscando se atualizar
e inserir novas ferramentas em sua prática docente, tendo em vista que, ao fazer isso,
também estará se aproximando do mundo em que vive a maioria dos nossos alunos,
já conectados ao mundo digital. Assim, podemos destacar que o referido projeto foi
fundamental para mudarmos a relação na produção do conhecimento, percebendo
que os alunos do ensino básico também podem fazer pesquisa e produzir saberes,
tendo o professor como orientador do processo.
Enfim, destacamos que ao estudar a cidade e o urbano, também passamos a
nos conhecer melhor, especialmente o nosso papel nesse processo. E cremos que
esse foi o principal objetivo do projeto – não apenas a produção dos saberes sobre
o tema, mas, sobretudo, a formação e/ou ampliação da cidadania para a gestão do
lugar. Nesse sentido, Kaercher (2011, p. 122), deixa-nos uma reflexão: “Conhecer
nossa cidade pode ser um belo presente para conhecermos a nós mesmos, e vice-
versa. Conhecer a nós mesmos pode ser uma maneira de melhor conhecer e cuidar
de nossa cidade”.
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O jovem e a cidade: narrativas de suas percepções e de suas
práticas espaciais por professores de Geografia
Lana de Souza Cavalcanti
A cidade e as práticas espaciais cotidianas – uma linha de análise
A cidade é objeto de estudo de diferentes áreas científicas. Na Geografia, ela
tem sido entendida como um produto e como condição da vida social da maioria
das pessoas, sobretudo no mundo ocidental contemporâneo. Nessa condição, ela ex-
pressa a dinâmica das relações sociais que se estabelecem no seu cotidiano, em suas
diversas dimensões, entre elas a econômica. Ao longo da história e na atualidade, a
malha urbana das cidades tem sido delineada em conformidade com as decisões de
grupos sociais dominantes, locais ou globais, em contradição com os diferentes in-
teresses dos grupos dominados, resultando em um conjunto indissociável de ações e
de objetos. Esse conjunto-produto, que é a espacialidade (SANTOS, 1996), ao mesmo
tempo condiciona as práticas humanas a se realizarem que, por sua vez, resultam em
novas espacialidades, num processo contínuo de produção/reprodução do espaço.
Compreender as cidades dessa maneira direciona o olhar para as possibilida-
des de enxergar nas espacialidades urbanas a expressão de diversidade de grupos, de
práticas, de sonhos, de rotinas, de estilos, já que elas são lugar, potenciais ou efetivos,
da diferença, do contato, do conflito, da vida coletiva cotidiana. Esse olhar geográfico
pode perceber que na própria forma de produção das cidades estão materializados
os modos de vida, em seus aspectos materiais (o trabalho, a produção de objetos, os
edifícios e equipamentos urbanos, a moradia) e também em seus aspectos simbólicos
(os movimentos rotineiros, a arte, a música, a cultura, as práticas culturais de toda
natureza).
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A preocupação com o cotidiano nas cidades, na perspectiva das práticas e das
percepções de diferentes grupos, tem orientado meu trabalho de pesquisa para as
relações entre essa temática e a formação e prática cidadãs. (CAVALCANTI, 2012,
2011, 2008) Com efeito, essa linha de análise urbana destaca a importância do espaço
público – em sua potencialidade de lugar do encontro, do diferente, do confronto, da
disputa – como elemento para a prática da gestão urbana democrática e participativa,
que favorece o exercício da cidadania. A cidade, nesse entendimento, é um ambiente
complexo da vida coletiva e é um espaço público por excelência, ainda que na dinâ-
mica atual das grandes cidades seu caráter realmente público possa ser subsumido a
uma lógica da coisificação das pessoas e de suas relações e da apropriação privada, o
que tem sido obstáculo para se efetivar esse seu caráter.
Percebe-se, assim, uma relação entre os modos de produção desse espaço e
os modos de existência das pessoas que ali vivem. Essa relação coloca, por sua vez,
a tarefa de pensar, imaginar, propor, novos modos de vida possíveis dentro de um
ambiente já construído, mas que pode ser reconstruído. A quem está sendo deman-
dada essa reconstrução? Aos técnicos do urbanismo? Aos estudiosos da cidade? Se se
pensa na cidade como construção social, sua reconstrução, na perspectiva do que se
deseja para a vida social, está a cargo da sociedade inteira, aos seus cidadãos. Essa é,
portanto, uma tarefa cujo cumprimento depende da participação da escola, com suas
finalidades formativas. A formação das pessoas para a vida cotidiana urbana, que ali-
mente o propósito de reverter em alguma medida a lógica da produção das cidades,
grandes e pequenas, para se efetivar o caráter público dos seus lugares, é, portanto,
demanda da escola e do ensino de Geografia. E daí surgem indagações, como: A
escola tem assumido essa demanda? Esses temas de reflexão do urbano estão sendo
tratados nas aulas de diferentes disciplinas e especificamente nas aulas de Geografia?
Como eles estão sendo tratados? Como podem ser tratados?
A reflexão acerca de determinados aspectos da dinâmica das cidades resulta na
orientação do ensino de Geografia tendo como um dos focos a formação do conceito
de espaço urbano, no sentido de capacitar as pessoas para ampliar possibilidades
de usufruto da cidade (LEFEBVRE, 1991) e de luta por participação em sua gestão.
Formar conceito de cidade e de espaço urbano1 tem o sentido de contribuir com a
apropriação, por parte dos estudantes, de uma ferramenta importante para a análise
geográfica do mundo. Aprender a ver geograficamente a cidade, a partir de seus ins-
trumentos conceituais, significa percebê-la em seu conteúdo, entender seus arranjos
em conexão com a produção social, incluindo aí, como processos complementares, a
1 Tenho escrito vários textos com referência a meu entendimento de cidade, espaço urbano e sua relevância no
ensino de Geografia, porém destaco aqui uma publicação (CAVALCANTI, 2008) que teve justamente como
propósito reunir vários deles no sentido de permitir dar a essa temática maior consistência e coerência.
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expansão urbana, a segregação espacial nos lugares da cidade, a valorização de deter-
minadas áreas, abordar também esses arranjos como resultantes do jogo articulado
dos interesses de quem habita a cidade (temporariamente ou não). Esse entendimen-
to articula-se com o desenvolvimento de capacidades e habilidades necessárias aos
deslocamentos do aluno, cotidianos ou não, que são fundamentais para o usufruto
pleno do direito à cidade, indo além das possibilidades restritas ao local onde vive em
seu cotidiano imediato.
A proposta de trabalhar a cidade no ensino, com a perspectiva exposta ante-
riormente, tem privilegiado os seguintes conceitos geográficos:
Figura 1 – Conceitos geográficos e o ensino de cidade
A par disso, e para cumprir o objetivo de formar conceitos, na linha das formu-
lações de Vygotsky (2000), há de se preocupar com o aluno e com seu mundo social,
como partes referentes de todo o processo de ensino e de aprendizagem escolar. As-
sim, é relevante ao professor saber o que ensinar, em que circunstâncias vai ensinar,
mas também quem são os alunos – sujeitos do processo. E, para isso, deve-se buscar
os sentidos e significados dos conteúdos ensinados para os alunos, considerando sua
experiência vivida, mas também propiciando elementos que permitam a eles a ge-
neralização, própria do pensamento conceitual, e que possam com isso ultrapassar o
imediato da percepção empírica. Nesse foco do ensino, recomenda-se ao professor
trabalhar com outras escalas de análise e com outras dimensões da formação huma-
na, como a emocional, a social e não somente a cognitiva e a racional. Esse modo de
encaminhar o processo de ensinar tem resultado na preocupação com o jovem esco-
lar, com sua vida cotidiana e suas relações com a escola, como será tratado a seguir.
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O jovem como sujeito de práticas e de conhecimentos espaciais –
seu lugar no ensino de Geografia
A linha de análise da cidade e do ensino de Geografia tem me levado a destacar
como objetivo do ensino de Geografia a educação geográfica para a vida urbana com
participação cidadã. Conforme já abordado, a vida urbana movimenta-se por dife-
rentes racionalidades, por racionalidades dominantes (vinda geralmente da ordem
distante, LEFEBVRE, 1999), mas também por outras racionalidades, por resistências
que ocorrem no lugar e dependem da organização coletiva das classes e dos grupos
sociais, da definição e conquista de territórios e da prática cidadã. A possibilidade de
ampliação dessas racionalidades nas cidades brasileiras, por exemplo, no sentido de
fazer frente à hegemonia da racionalidade capitalista e de permitir uma lógica urbana
alternativa, depende de ações políticas de diferentes grupos e segmentos da socieda-
de, entre eles os jovens escolares. Por entender que a história da humanidade guarda
uma dimensão de alternativa ao que está posto, defende-se como parte de um projeto
educativo a importância de se conhecer percepções e práticas espaciais de jovens es-
colares com o desejo de ampliar com isso a compreensão da realidade urbana, o que
é, por sua vez, necessário para ajudar na formação cidadã desses jovens, com o intuito
de que tenham uma inserção efetiva e consciente na construção de uma sociedade e
de uma cidade mais humanista, mais democrática, mais inclusiva.
Esse trabalho se insere, portanto, na linha de investigação “Geografia e ensino de
cidade”, potencializando as possibilidades de ensinar essa temática para ampliar a com-
preensão dos alunos sobre sua vida cotidiana, sobre suas práticas espaciais, sobre a di-
nâmica espacial de diferentes lugares. Nesse sentido, considera-se alguns elementos que
caracterizam esses jovens na vida contemporânea, a partir do que apontam estudiosos
no tema (OLIVEIRA, 2007; TURRA NETO, 2011; PAIS, 2006, 2004; NOVAES, 2006;
CHARLOT, 2000; CATANI E GILIOLI, 2008; DAYREL, 1996; CANCLINI, 2007): a
juventude é uma categoria social que deve englobar uma diversidade de elementos de
identificação, devendo-se falar em juventudes, para explicitar o pressuposto de que há
diferentes jovens, a depender dos contextos sociais e espaciais a que pertencem, a idade
não é definidora dessa categoria, mas serve para balizar a maioria dos estudos a respei-
to, sendo que a faixa entre 15 e 24 anos tem sido utilizada com frequência, em sua re-
latividade, nessa linha de investigação, é importante para sua definição a característica
de que os jovens estão em uma fase transitória da sua vida, entre a infância e o mundo
adulto, na qual iniciam uma rotina de práticas independentes da tutela dos mais velhos
e buscam autonomia e reconhecimento por suas identidades, sem as referências ante-
riores aos pais e/ou familiares, práticas em que a vida de grupo é muitas vezes a via pela
qual conseguem se afirmar nesse intento de autonomia.
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Para esse estudo, é importante considerar os jovens que frequentam escolas, en-
tendendo que, mesmo ali, sua identidade de jovem muitas vezes, de fato ou no desejo,
suplanta sua identidade de aluno.2 E, na escola, eles têm a oportunidade, por meio
do ensino de disciplinas, como a Geografia, de refletir sobre os processos e práticas
que realizam em seu projeto de identificação juvenil e seus resultados na produção e
reprodução do espaço da cidade.
Esses sujeitos sociais vivem seu dia a dia na busca de identificações, a partir de
sentimentos de pertencimento e de afeto dos grupos dos quais participam, consti-
tuindo redes em suas práticas cotidianas. Nesse dia a dia, demonstram forte relação
com os meios de comunicação e informação, criando vínculos constantes com re-
des virtuais: eles têm uma motivação, portanto, pelo mundo das imagens, valorizam
atividades, de trabalho ou de lazer, que dá sensação de prazer imediato, liberdade e
independência. Para esses processos de identificação, o consumo é relevante, favo-
recendo a marcação simbólica de diferenças e de distinção, para além simplesmente
de adesão ao mundo de mercadorias. Essa é uma das razões do grande atrativo que
exercem, por exemplo, inúmeros objetos (por isso mesmo, tais objetos de consumo
de jovens são tão explorados no mundo do comércio), artefatos tecnológicos, roupas
e acessórios de marcas que estão na moda, programações culturais em voga, lingua-
gem e estilos musicais, entre outros.
O desejo que eles têm de consumir esses objetos não está ligado obrigatoria-
mente às mercadorias em si mesmas, mas ao que elas representam simbolicamente,
no sentido de identificar quem os usa, como os utiliza, o que fazem quando estão
“consumindo” esses objetos e o que os outros fazem com quem os usa, por exemplo:
como são vistos pelos adultos ou por seus pares ao utilizarem determinados obje-
tos, ao se vestirem de determinada maneira. São, portanto, parte de sua cultura, pois
ao construírem suas identidades, em tempos, lugares e com objetos específicos, eles
também estão construindo culturas. Suas práticas são plenas de significados, são cul-
turais, revelam seus desejos, expressam seus valores. São maneiras que encontram de
interpretar, de incorporar (em seu corpo mesmo) e de manifestar suas próprias con-
cepções de mundo, de vida, de lugar, de espaço. Nesse sentido, a análise dos jovens e
de suas práticas espaciais compõe, ou deve compor, os saberes docentes, sobretudo
para orientar o trabalho com os alunos, considerando-os como sujeitos também por-
tadores de conhecimentos.
2 Sobre a identificação, é relevante registrar aqui o entendimento, com a contribuição de Woodward (2009), de
que esse processo não deve ser entendido como responsável pela construção de identidades essencialistas e na-
turais, mas como relacionais, históricas e sociais. Nessa compreensão, a identidade não é unificada, é marcada
pela diferença, por meio de símbolos, vinculada a condições sociais e materiais. Nesse sentido, é melhor falar em
identificações (pelo caráter plural e dinâmico) e não em identidade.
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Jovens escolares e os professores de Geografia – narrando
percepções e reflexões
Com o propósito de investigar, junto com professores da rede de ensino de
Goiânia e de outros municípios da sua região metropolitana, as possibilidades de se
trabalhar com o tema da cidade tendo como referência aspectos do jovem e de sua
cultura e as produções da Geografia urbana, foi constituído, como etapa da pesquisa,
um grupo focal. Esse grupo foi composto por professores de Geografia, da rede bá-
sica de ensino, com experiência no ensino médio, nível escolar no qual estão predo-
minantemente os jovens estudantes na faixa etária recortada para a pesquisa (entre
15 e 24 anos). Inicialmente, aceitaram participar do grupo nove professores, mas
efetivamente, durante todo o trabalho somente participaram sete. Duas professoras
participaram apenas de um dos encontros, e nele suas falas contribuíram bastante
com as discussões, pois demonstravam muita experiência com jovens escolares, por
essa razão, suas narrativas foram consideradas no conjunto. Entre os componentes
que participaram efetivamente de todas as reuniões do grupo, estavam também dois
alunos da graduação em Geografia, que realizavam estágio em escolas públicas de
ensino médio.
Foram previstos dez encontros quinzenais, no período de novembro de 2011
a junho de 2012, com temas específicos para cada encontro. O objetivo foi cons-
tituir um grupo de discussão, obedecendo às orientações da pesquisa qualitativa,
com um número reduzido de pessoas que estivessem juntas com o propósito de
interagir no debate sobre o jovem, sobre suas preocupações, percepções e práticas.
Considero que esse objetivo, ao final dos encontros, foi alcançado, pois os temas
eram efetivamente geradores de discussões, de depoimentos relevantes para com-
preender os jovens escolares, mas também porque propiciaram reflexões sobre a
importância de se considerar temas como aqueles para planejar e realizar o ensino
de Geografia.
Levando em consideração os temas previamente selecionados para cada en-
contro e as discussões que foram se destacando ao longo das reuniões, foi possível
organizar as narrativas dos professores sobre seus alunos em eixos mais amplos e
reveladores da cidade por eles “habitada”.
Jovem e vida escolar na visão de professores de Geografia
“Os alunos gostam muito da escola, mas não gostam tanto das aulas.”
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Nos primeiros encontros do grupo de discussão, os temas selecionados para
gerar o debate diziam respeito a traços da cultura dos jovens escolares, de sua relação
com a escola e suas expectativas futuras.
Na percepção dos professores, os jovens seus alunos são na maioria solteiros,
embora em geral eles se casem cedo. Eles têm medo do desemprego, mas aqueles que
frequentam o período noturno são predominantemente trabalhadores, destacando-
se que muitos trabalham na “ilegalidade”, na informalidade, com a família, por exem-
plo. Eles relatam que o comportamento de seus alunos, principalmente as mulheres,
em relação ao sexo, alguns com menos de 15 anos, indica que a maioria tem vida
sexual ativa, e que, para eles, meninos e meninas, o sexo parece ser uma “diversão”,
pois eles são “liberados” em relação a essa prática.
Seu relacionamento com a escola e com os trabalhadores da escola (coorde-
nadores, professores, funcionários) é bom, predominam as boas relações. Para eles,
a escola é, em geral, um lugar de encontro, um lugar de sociabilidade. Isso explica
porque muitas vezes percebem que eles gostam da escola, que eles ficam pelo pátio
ou nas imediações até depois da aula, mas não gostam tanto das aulas. Uma das ra-
zões de eles não gostarem das aulas, apontadas pelos professores, é que “a escola [os
trabalhos escolares] é conservadora, é lenta, morosa, o tempo do aluno é outro”. A
relação com os colegas é positiva, eles notam certo companheirismo entre eles, falam
de grupos, de tribos que eles formam, até mesmo dentro das classes.
A relação com os professores é de distanciamento, pois como disseram no gru-
po, o “aluno não se aproxima do professor, só [o faz] para coisas práticas e formais
[...] o professor tem dificuldade em enxergar o aluno como alguém preocupado e
o aluno não vê o professor como alguém que pode ajudar a discutir os problemas”.
Além disso, disseram, o professor vê o aluno “pelo lado negativo”, com problemas de
disciplina, mas principalmente, de desinteresse. E, perguntados sobre que aspectos
positivos os professores em geral veem nos seus alunos, os componentes do grupo
responderam com destaque: a facilidade com a tecnologia, o gosto por desafios que
os deixam motivados, a criatividade e a disposição em arriscar mais.
No que diz respeito ao que esperam como futuro dos estudos, para os profes-
sores, os alunos do ensino médio que frequentam a escola pública de periferia não
tem expectativa quanto à continuidade dos estudos. A maioria nem pensa em curso
superior. Não pensam em universidade, principalmente na Universidade Federal de
Goiás, “[...] o vestibular é algo distante”. Eles comentaram também a pequena pro-
cura por licenciaturas, e atribuem a isso o fato de que a profissão do professor é
desvalorizada.
O jovem e a cidade | 271
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Jovens e práticas espaciais cotidianas: a geografia dos jovens
escolares na visão de professores de Geografia
“Os jovens conhecem pouco a cidade, tem um apego grande ao bairro e às tor-
cidas organizadas”.
Logo nas primeiras reuniões, os professores já destacavam algo que os preocu-
pa bastante que é o pouco conhecimento que os seus jovens estudantes têm da cida-
de. E, ao mesmo tempo, assinalavam também a forte ligação que eles possuem com o
bairro onde moram, de onde se sentem pertencentes. Ao longo das discussões, essas
constatações dos professores foram se explicitando melhor, quando os temas centrais
das discussões eram: o jovem e a sua cidade, jovens e práticas espaciais cotidianas.
Os professores relatam que acham que os alunos circulam pouco pela cidade,
sobretudo os que não trabalham e se deslocam por ela no carro de seus pais. Alguns
que trabalham vivenciam mais a cidade, pois se deslocam com mais frequência para
outros lugares diferentes de seu bairro, embora não vejam algumas de suas dimen-
sões. Para eles, os jovens têm medo de circular pela cidade, tem aversão a lugares
públicos, e relacionam isso ao problema da violência, ou mesmo ao que chamam
de “máquina/indústria da segurança”. Alguns também destacam os hábitos atuais de
forte ligação dos jovens com os aparatos eletrônicos, sobretudo para utilização da
internet, levando-os a ficarem muito tempo em casa, isolados. Conforme relatam:
“os espaços públicos são vazios, acho que não há interesse, e também as pessoas tem
medo de sair na rua, por problemas de violência”, e “não há possibilidade de pensar
em transformar a cidade, se a pessoa não conhece o lugar em que vive”. Ou como
narra um deles:
[...] nas minhas aulas, [...] a percepção espacial deles é tão pouca, tão apática, que até difi-
culta. Como exemplo tem também [o conteúdo] a questão da especulação imobiliária... do
capital imobiliário... de espaços vazios... Eles não conhecem. Daí eu fiquei pensando, ah,
é porque é periferia, então vamos pensar no centro... mas até mesmo no centro, o Teatro
Goiânia, por exemplo, que é um símbolo histórico de Goiânia, cara, eles não conhecem.
Ao se referirem ao forte apego que os jovens têm em relação ao bairro ou à
“região” onde moram, falam que eles estão preocupados mais com o local e com suas
necessidades imediatas, “nada mais amplo”. Conforme comentam: “há um certo pre-
conceito com a política, quando vai falar de assunto de política na sala de aula, eles
tem até aversão a temas políticos, uma questão de cultura. É uma contradição, isso é
grave”... “... eles questionam mais coisas locais: ônibus, segurança, no bairro... preocu-
pação ambiental, não se vê pessoas se mobilizando pra isso...”
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Os professores destacam, de todo modo, algumas práticas que revelam sua “po-
litização” (na fala de um deles), quando buscam se reafirmar configurando espaços de
jovens, formando territórios: são as práticas em eventos culturais, esportivos (mesmo
que não seja envolvidos em torcidas organizadas), as pichações, atividades religiosas,
prática do funk. Essas práticas, segundo lhes parece, ocorrem em boa medida porque
os jovens têm necessidade de serem vistos, para serem reconhecidos: de se senti-
rem “mais fortes”. No debate sobre essas práticas, houve bastante destaque aos bailes
funks, como uma prática que tem mobilizado os jovens atualmente, e as pichações,
também como prática típica desses sujeitos. Houve opiniões “divididas” sobre se essa
é uma prática com fundo político, de contestação, ou se pode tão somente revelar um
vandalismo, um “oba-oba pela adrenalina que proporciona”. Em um aspecto, as falas
convergem: há uma associação entre as práticas de pichação, com motivação “territo-
rial”, e as torcidas organizadas de futebol.
Essas práticas dos jovens são realizadas também na escola, ou em articulação
com ela. Nesse lugar, os alunos se reúnem, formam “tribos” ou grupos, às vezes com
rivalidades (principalmente, em relação ao futebol), envolvem-se em eventos cultu-
rais e esportivos. Segundo um professor: “eles tentam usar a escola como extensão
dos grupos”.
Outro aspecto destacado, ao centrar o debate nas práticas dos jovens, é que eles
não têm muita opção de espaço de lazer: “é mais espaço privado”, segundo um deles,
“muitos frequentam as feiras noturnas, pois às vezes é a única opção de lazer, eles até
faltam à aula [no período noturno] para ir à feira”. Perguntava, então, qual (ou quais)
seria as maiores reivindicações dos jovens a respeito de lugares de lazer e aos lugares
da cidade em geral. Os professores responderam que seriam, em primeiro lugar, pra-
ças: “é o que eles mais querem: uma praça estruturada, com espaço maior, com qua-
dra de vôlei, de futebol, um pit dog [‘carrinho’ de lanches], com cooper. Seria um lugar
onde eles pudessem conversar e namorar”. E apontaram também: quadra de futebol,
shoppings, mais postos de trabalho (segundo um deles, há uma grande preocupação
dos jovens quanto às suas possibilidades de conseguir trabalho), transporte público
(há também uma grande preocupação dos jovens quanto a suas possibilidades de
deslocamentos pela cidade) e asfalto (para lugares que ainda não tem esse “equipa-
mento”). Destacaram nesse aspecto que os alunos que trabalham têm preocupação
com o transporte coletivo, mas os que não trabalham trazem como principal deman-
da o shopping, como espaço emblemático de lazer, e que está na maioria das vezes em
lugares longe da periferia.
Pelas narrativas dos professores, pode-se inferir sobre o que se destaca como
lugares que os jovens demandam na cidade, seja por suas preferências quanto a prá-
ticas de lazer seja por suas preocupações na vida cotidiana. Essa percepção dos pro-
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fessores é confirmada pelos jovens, a julgar por resultados de pesquisas anteriores.
Nelas, também as praças e as feiras noturnas são lugares destacados para os jovens
como referência de suas práticas espaciais cotidianas. (MARTINS, 2004; CAVAL-
CANTI, 2004) Segundo resultado de pesquisa na região sudoeste de Goiânia, Caval-
canti (2004, p. 155) comenta:
A praça aparece como um dos projetos de lazer e cultura que
os jovens da região mais gostariam que o governo realizasse em
seus bairros [...], juntamente com o ginásio de esportes [...]. Ou-
tro dado que reforça a importância das praças para os jovens é
o fato de que, ao citar os principais problemas do bairro, 25%
dos jovens apontaram problemas quanto à área de lazer, e destes,
18% destacaram as praças, explicando que os problemas estão
relacionados com a falta de cuidados com as mesmas [...] Outro
espaço público a ser destacado no bairro é o destinado tempora-
riamente a feiras noturnas.
Nessas outras pesquisas, a rua aparece, também, como um importante espaço
público, que deve ser destacado, como o fazem alguns autores (LEFEBVRE, 2002;
CARLOS, 1996; BORJA, 2003), para a compreensão do significado do espaço urbano
e para a orientação do planejamento e da gestão das cidades. Relacionando esse dado
ao que narram os professores, pode-se destacar a rua como uma expressão do bairro
e do apego dos jovens aos bairros onde vivem. Mas não se trata da rua vista ape-
nas como lugar da passagem, da circulação rápida e impessoal de pedestres, carros
e ônibus no dia a dia das cidades. A relevância das ruas, nessa argumentação sobre
práticas de jovens, tem a ver com suas possibilidades para a vida nos bairros, para a
vida coletiva, como lugar onde é possível a manifestação de grupos, onde ocorrem
apropriações temporárias por determinados segmentos da sociedade, seja para expor
suas reivindicações, seja para buscar, nela mesma, sua sobrevivência: pedindo, men-
digando, vendendo, toda sorte de coisas, de mercadorias, a quem nela passa. A rua,
além disso, é lugar de lazer, de encontro, de circulação de informação, de manifesta-
ções populares. É também ponto de referência simbólica. Nesse sentido, a rua pode
e efetivamente é lugar da prática dos jovens escolares, lugar onde podem conversar,
namorar, dançar, juntar-se em grupo.
Em um dos debates estabelecido no grupo focal, surgiram também as dife-
rentes práticas, considerando-se a questão de gênero: os meninos e as meninas. Os
meninos gostam mais de futebol, de esportes, vão para a rua, as meninas ainda são
mais da casa, tem ainda obrigações de cuidar da casa, dos irmãos mais novos, e seu
lazer muitas vezes está associado a esse maior recolhimento em lugares privados –
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elas se juntam em grupos nas casas, para “se arrumarem”, por exemplo, ou para sim-
plesmente conversarem. Essas práticas espaciais de gênero parecem se reproduzir na
escola, segundo os professores, as meninas ficam muito tempo nos banheiros, “se ar-
rumando”, cuidando da estética, enquanto que os meninos ficam no pátio, praticando
esportes e observando as meninas que “ficam horas se enfeitando’.
A Geografia Escolar e o jovem na visão de professores
“A Geografia ajuda a ter uma percepção, uma leitura da cidade, dos diversos
lugares.”
Nos últimos encontros do grupo de discussão, os temas eleitos para o debate
foram: os jovens e a aprendizagem em Geografia, os conteúdos geográficos e a vida
cotidiana dos jovens, e a Geografia urbana e as práticas espaciais de jovens. Com o
propósito de debater sobre esses temas, as conversas giraram principalmente em tor-
no das possibilidades de a Geografia trabalhar com os problemas que já haviam sido
destacados, sobretudo sobre a relação dos jovens com a cidade.
Os professores em geral afirmam que a Geografia é uma disciplina importan-
te para a aprendizagem dos jovens, pois pode “levar” certos conceitos à realidade
do aluno. Embora tenham tido dificuldades em apontar conteúdos específicos que
seriam mais relevantes para contribuir com a ampliação dos conhecimentos sobre
cidade, acabaram citando alguns como a desigualdade social [nas moradias], a mobi-
lidade urbana, equipamento público, a indústria, o mapa.
Destacaram, com respeito a esse último, a cartografia e os trabalhos com mapas
mentais como aspectos relevantes do ensino de Geografia, por meio do qual se pode
explorar suas representações de locais da cidade ou do bairro. Relatam, nesse sentido,
atividades que desenvolvem com os alunos abarcando a elaboração de mapas men-
tais, e afirmam que a maioria demonstra conhecer as principais referências dos locais
solicitados (geralmente são solicitados trajetos/mapas mentais casa/escola). Segundo
disseram, é possível perceber que quando eles têm necessidade de se deslocarem pela
cidade (principalmente aqueles que trabalham), eles acabam aprendendo melhor e
é mais fácil desenvolver atividades de representação. Uma professora dá exemplo,
sobre isso, de duas alunas gêmeas, que moravam em um condomínio horizontal fe-
chado, e que não conseguiam realizar a tarefa que ela havia solicitado de desenhar um
mapa mental representando a área compreendida entre a casa e a escola, e segundo
seu entendimento, elas não conseguiam fazê-lo porque não tinham nem um ponto
de referência. Segundo a professora, elas alegavam que não se lembravam. De todo
modo, esses relatos dão alguns indícios de problemas com o ensino de Geografia,
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pois eles se referem a alunos do 3º ano do ensino médio, que já tiveram vários anos
de aprendizagem geográfica, no entanto, o que eles concluíram na discussão é que os
alunos representam seu espaço com base na experiência: “o que eles conseguem fazer
é fruto da experiência empírica, não da aprendizagem em Geografia”. Seus mapas
mentais são basicamente centrados em seu mundo/lugar imediato. Segundo disse-
ram, a maioria não conseguiria fazer um croqui da cidade tendo como centro a parte
central (o centro histórico) e representando, a partir daí, bairros ou regiões da cidade,
fora de seu alcance imediato.
A explicitação das preocupações com o pouco conhecimento que os jovens
têm sobre a cidade, advindo, segundo o que eles pensam, da pouca vivência com seus
diferentes lugares, levou a distinguir como uma metodologia positiva para o ensino
de Geografia o trabalho de campo. Sobre essa metodologia, eles debateram bastante
nas reuniões do grupo, apontando suas “qualidades” para a aprendizagem, sua tradi-
ção no ensino de Geografia, as dificuldades quanto à sua realização considerando as
condições de estrutura e funcionamento das escolas. De modo geral, todos concor-
daram que o trabalho de campo é uma boa estratégia para ajudar o aluno a conhecer
a cidade. É uma atividade motivadora para os alunos, pois foge da rotina, permite a
saída da escola e das aulas tradicionais: no entanto, como adverte um professor, eles
preferem o novo, eles gostam do novo, da novidade, quando eles vão para locais da
cidade ou das imediações da escola que eles já conhecem, eles perdem um pouco
da motivação porque julgam que já conhecem tudo desse lugar. Esse me parece um
ponto interessante para pensar a respeito do trabalho de mediação didática do pro-
fessor, no sentido de direcionar as motivações dos alunos, levando-os a perceberem
aspectos, elementos do lugar que podem ser mais bem apropriados por meio de uma
leitura geográfica. Essa foi uma “vantagem” do trabalho de campo relatada por uma
professora, utilizando-se de uma experiência que teve:
...E foi interessante, porque eles conhecem o espaço, vivenciam o lugar diariamente, mas
eles não faziam determinados tipos de leitura. Quando perguntamos pra eles quais os equi-
pamentos eles têm, quais não têm, quanta distância eles percorrem pra ir a um banco [....]
aí é que eles começam a fazer a leitura de fato do espaço. A gente levou a um ponto mais
alto, pra mostrar a parte mais preservada. ... Eles puderam perceber toda essa organização
espacial. Nesse sentido o trabalho de campo é importantíssimo para os alunos. E às vezes
o aluno não consegue fazer essa leitura sozinho, só ouvindo, e quando você leva o aluno
de fato para o local, ele mesmo consegue fazer essa leitura, quando você faz um questio-
namento a mais.
Enfim, a Geografia pode sim ajudar o aluno a conhecer a cidade e a se sentir
parte integrante de sua produção. Ela pode ajudar a fazer um tipo de leitura da ci-
dade, a leitura do “geógrafo”, à semelhança do olhar do skatista que, conforme relata
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um professor, ele próprio um ex-skatista, ressalta determinados elementos: “quando
eu era skatista, via a cidade totalmente diferente do que vejo hoje, o olhar para os
bancos, as escadas, o corremão – eu via como ‘pico’, como alternativas de manobra”.
O que ensina essa “aproximação” com a Geografia urbana dos
jovens?
Os depoimentos levantados no percurso dessa investigação, aliados a outras
investigações já realizadas com preocupações semelhantes, resultaram em alguns
“ensinamentos”.
Em primeiro lugar, um aspecto que perpassou as discussões foi o fato de que os
jovens têm um modo próprio de viver a cidade, e que isso é importante de ser consi-
derado pelos professores, com destaque para os professores de Geografia, que estão
todo o tempo abordando temas da espacialidade que podem ser relacionados com a
vida urbana desses jovens.
Também as discussões “ensinaram” que os jovens trazem uma grande necessi-
dade de viver em grupo (essa é uma necessidade apontada por mais de uma pesquisa
sobre a temática da juventude) e isso pode ser canalizado por atividades da Geografia
– daí o trabalho de campo como um bom exemplo.
Os resultados da pesquisa ensinaram ainda que são muitos os “tipos” de jovens
e suas características são diversificadas demais para permitir que eles sejam rotu-
lados, estereotipados, padronizados. Os professores devem ter abertura, atitude de
respeito e disponibilidade para se aproximarem dos seus alunos, de um modo que ul-
trapasse a formalidade do desempenho de papéis sociais/profissionais de professor/
aluno para ver no aluno a pessoa que ele é. Porém, nessa relação, predomina os papéis
de professor e de aluno, a relação então é de, enquanto aluno, o professor conseguir
lidar com a pessoa, para que essa pessoa, como aluno, possa produzir melhor, apren-
der mais, e, por sua aprendizagem, ser melhor como pessoa – não no sentido moral,
mais no sentido mais humano e universal.
A experiência com essa pesquisa, e com o estudo sobre a temática da juventude
e do jovem na escola, tem ensinado coisas e reafirmado outras, tem dado mais consis-
tência a aspectos do processo de ensino e aprendizagem que antes eram pra mim pró-
ximos ao intuitivo. Essa é uma aprendizagem pessoal, que pode servir para reflexão
de outros professores, e de outros formadores de professores, ajudando-os de algum
modo a encontrar caminhos mais fecundos para, articulados a lutas explicitamente
políticas, fazer a crítica às imensas fragilidades da escola básica, sobretudo a pública,
e para atuar nas práticas escolares atendendo às demandas sociais de formação con-
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sistente, de aprendizagem escolar, para a vida social contemporânea democrática,
justa, participativa.
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O estudo da cidade e o lugar na Geografia Escolar
Sonia Maria Vanzella Castellar
Introdução
Modernas contribuições teóricas e empíricas propõem a cidade e o lugar de
vivência como temas estruturantes do currículo escolar. A maioria das populações
vive em áreas urbanas e o campo, em muitos países, também está se “urbanizando”,
em função das mudanças nas relações de trabalho e de produção. A cidade passa a
ser compreendida não apenas como um conteúdo geográfico, um objeto disciplinar,
mas como um objeto de vivência pessoal e de ensino. Tal mudança de enfoque exige
alteração de profundidade em relação à forma de se conceber o currículo escolar e
a prática docente, ainda que sejam processos de longa extensão temporal no âmbito
das escolas.
Fazer da cidade um objeto central de estudo é, certamente, um dos métodos
mais eficazes para o ensino de Geografia, particularmente quando nossa realidade
é, cada vez mais, a de alunos urbanos já nascidos no século XXI. Isso decorre das
premissas abaixo elencadas e um dos modos para sua aplicação, objeto de testes em-
píricos continuados, é o descrito na segunda parte do presente texto. Essas premissas
estão fundamentadas nas pesquisas que fazemos desde 2007 sobre o estudo da cidade
e o processo de ensino e aprendizagem.
Portanto, a discussão que faremos terá como base por que ensinar Geografia a
partir do estudo da cidade, do lugar e do urbano pode tornar a Geografia uma disci-
plina escolar mais interessante. Neste sentido, a primeira premissa é que o aluno dá
significado à cidade porque conhece e vive nela, ela é real, é onde o aluno tem suas
experiências. A segunda premissa é que a cidade é uma ótima síntese para se estudar
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a articulação entre a sociedade e o meio físico, objeto de estudo da Geografia. Essas
premissas são o pano de fundo para a análise que faremos sobre a importância do
estudo da cidade.
O sentido do estudo sobre a cidade, o urbano e o lugar de
vivência1
Nas pesquisas realizadas entre 2007 e 2010, em parceria com Lana Cavalcanti e
Helena Callai, respectivamente da Universidade Federal de Goiás e da Universidade
de Ijuí, sob o nome de As concepções de cidade, lugar e a cultura urbana: um estudo
comparativo entre professores, notamos que os professores das três cidades – Goiânia,
Ijuí e São Paulo – tinham uma visão negativa da cidade. Chamou-nos atenção esse
fato e, perseguindo essa mesma temática com outras pesquisas, entendemos que a
concepção sobre a cidade e o lugar precisa ser mais aprofundada nas formações ini-
ciais e continuada.
Assim, neste contexto, a visão que, de certa forma, predomina entre os profes-
sores, é a de que a cidade tem muitos problemas, mas a ideia é superar essas opiniões
passando a articular o que se vê cotidianamente com as teorias da Geografia para
que os alunos possam entender como se dá a produção do espaço urbano. Podemos,
então, afirmar que a cidade não é ruim ou boa, nem caótica ou planejada, a cidade é
e todas as cidades são organizadas de maneira semelhante, com suas histórias e seu
meio físico e localização e todas têm, sem dúvidas, seus problemas.
Entender a cidade e o lugar de vivência passa por fazer a leitura da realidade, do
mundo. Abordamos diferentes escalas de análise, mas também de algo que faz senti-
do para o aluno, porque ele vive nesses lugares: são concretos, fazem sentido para ele.
Lendo, por exemplo, a forma com as redes (transportes, água, energia) articulam-se
ou como ocorrem as conexões entre os bairros, o aluno poderá entender como se dá
a produção do espaço urbano. Porque perceberá como se dá o serviço público em seu
bairro, como o sistema de transporte atende a população local. Isso significa enten-
der como os fatores históricos influenciam a organização de um determinado lugar,
ampliando os olhares em relação a ele e ao mundo. E, por meio da cidade, entender
os fluxos comerciais e a maneira como os objetos estão sendo fabricados, criando di-
nâmicas de intercâmbios entre si, a partir de qualquer lugar do mundo. Dessa forma,
o aluno compreenderá os fluxos comerciais e a produção das mercadorias.
1 Parte deste tópico reproduz texto da autora a ser publicado pela Universidade Pedagógica Nacional da Colômbia,
como capítulo de um livro organizado pelo grupo de pesquisa Rede Latinoamericana de Pesquisadores sobre
Cidades.
282 | Sonia Maria Vanzella Castellar
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O estudo da cidade nos permite analisar a expansão territorial urbana, a ma-
neira como ocorre a produção do espaço urbano. Desse modo, trazemos para a si-
tuação de aprendizagem elementos para a análise que superam a superficialidade
conceitual, mas permitem uma análise do processo por meio da contextualização dos
cenários tanto da cidade quanto do campo.
Podemos, todavia, entender a cidade como o lugar de vivência, onde se situa a
maior parte da população mundial, onde se estabelecem as relações de troca entre a
produção e o consumo e onde se gestam redes de relações funcionais em múltiplas
escalas superpostas. As relações sociais são predominantemente produtoras de es-
paços fragmentados, dicotomizados e conflitivos. Por sua diversidade, criam vários
tipos de territórios, que são contínuos em áreas extensas ou descontínuos em pontos
e redes, formados em diferentes escalas e dimensões. Tais inter-relações promovem
movimentos dos espaços sociais e dos territórios que estão articulados com os tipos
de trabalho presentes na cidade, incluindo aqueles anteriores ao processo de indus-
trialização.
No entanto, há também a ideia do lugar de vivência, de pertencimento, her-
deiro da história dos objetos e pessoas que dão significado e se confundem com a
história do lugar e de seus habitantes. Articular a ideia de lugar de vivência com o
de cidade possibilita o entendimento de que a vida cotidiana transcorre nas redes
organizadas e itinerários da cidade e, ainda, de que as mudanças culturais produzidas
pelas raízes do local ou pela globalização da sociedade, da informação e do consumo
constituem um dos elementos mais significativos para a organização da vida urbana.
Ao associarmos a ideia de lugar de vivência com a ideia de bairro, estamos
afirmando que o bairro pertence à cidade, referenciando-se à sua história, seus mo-
radores, sua formação, com igrejas, praças, feiras, futebol. Enfim, por meio dessa
dinâmica, percebe-se que o lugar de vivência é onde se estabelecem relações sociais,
que precisam ser compreendidas.
Nesta perspectiva teórica, Seabra (2003, p. 46) contribui para entendermos o
papel do bairro na cidade, na medida em que
[...] tornou-se possível pensar sobre a cidade e o urbano mobi-
lizando o conceito teórico do bairro. Logo, a urbanização pôde
ser compreendida e descrita a partir do bairro como um proces-
so prático que se explicita teoricamente: no bairro se implantam
estruturas da modernidade, nesta direção mobiliza-se positiva-
mente a sociedade (o próximo e o distante), mas aprofundando
sempre as separações, pois que se generaliza a economia de tro-
cas, e é neste nível da prática social, identificado como o vivido,
lugar das experiências existenciais, que se realiza, como abstra-
ção concreta, a reprodução da sociedade.
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O conhecimento das potencialidades do lugar e das capacidades de ação das
pessoas que ali vivem é condição fundamental para fazer do lugar algo que interesse
a quem nele vive. Essas potencialidades são marcas decorrentes da estrutura física do
lugar, do contexto em que se insere, das formas de organização das pessoas para rea-
lizar seu acesso aos bens e da forma como se constitui o tratamento da diferença e da
justiça social. Cada cidade tem suas particularidades, mas existem problemas gerais
que, ao se mostrarem nos lugares específicos, assumem sua singularidade.
Portanto, estudar a cidade como lugar de vivência exige conhecer as histórias
dos lugares, as condições em que se inserem, tanto do ponto de vista do quadro na-
tural, quanto das condições sociais e políticas e das diferenciações culturais. Cada
cidade apresenta marcas que lhe são características, mas cada uma delas também
responde a questões globais, externas à sua região, e que precisam ser consideradas
tanto na perspectiva global quanto local. Nesse sentido, a cidade, com todas as suas
formas, educa e modela o comportamento das pessoas que a habitam, através dos
códigos de comportamentos nos espaços públicos e privados. (CASTELLAR, 2010)
Entendendo que a cidade está localizada em um meio físico associado ao pro-
cesso de produção do espaço que é produzido pelo trabalho em diferentes momentos
históricos, estabelece-se uma relação entre sociedade e natureza. Daí considerarmos
que o estudo da cidade sintetiza essa relação. Em 1956, Pierre Monbeig (p. 9) escre-
veu que
É um erro comum e persistente pretender tomar e ensinar fatos
geográficos isolados e atomizados. Não é a altitude das Agulhas
Negras que é um fato geográfico, mas o conjunto de maciços
constituídos por certas categorias de rochas situado em determi-
nado conjunto orográfico submetido a certas condições climáti-
cas, que determinam certa distribuição de vegetação, originando
certos modos de ocupação do solo pelo homem e tornando pos-
síveis certos produtos.
Percebemos que a preocupação de Monbeig está no fato de o estudo geográfico
mobilizar uma rede conceitual como, por exemplo, rocha, formação de maciços ro-
chosos, localização, condições climáticas, uso do solo e produção. Além, é claro, de
chamar a atenção para o olhar que podemos estimular nos alunos, incentivando-os a
observar, descrever, estabelecer relações, selecionar, não para formar alunos geógra-
fos, mas para ensiná-los a pensar sobre o lugar onde vivem, formando-os para lerem
criticamente o espaço urbano.
Reforçando a ideia de que a Geografia Escolar tenha o lugar, a cidade e o urbano
como focos principais, os alunos passariam, portanto, por um processo de aprendiza-
284 | Sonia Maria Vanzella Castellar
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gem no qual articulariam uma rede conceitual, sendo que a partir dela poderiam-se
organizar outras e dessa maneira se estimularia – o empírico do estudo da cidade – o
aluno a articular a sociedade e a natureza, o que fará mais sentido para ele em função
das inter-relações conceituais: essa seria uma dimensão espacial do conhecimento
científico.
A superação da dicotomia entre Geografia humana e Geografia física (da natu-
reza) passa por fazer o aluno perceber por que há moradias em lugares de riscos, por
que as áreas de lazer muitas vezes estão distantes do seu local de moradia, por que
acontece uma enchente, qual a importância do rio na organização do espaço da cida-
de em que vive, o que se mostra na análise a partir do estudo de Ross (2004, p. 198):
[...] Os problemas ambientais existentes em áreas urbanizadas
são de tamanha ordem de grandeza, que comprometem o uso
dos recursos naturais e refletem uma intensa diminuição da
qualidade de vida, tanto da população que reside nas áreas de
proteção, quanto daquela que se utiliza das águas cada vez mais
contaminadas pelos esgotos, lixos e sedimentos [...]
Os problemas ambientais e sociais existentes nas áreas de prote-
ção aos mananciais refletem, de um lado, a incapacidade do po-
der público de fazer cumprir a lei, e de outro, o fato de que onde
prevalece um elevado estado de miséria, as questões de moradia
e da sobrevivência são prioritárias [...]
Essa citação revela que a compreensão de um tema como “recursos hídricos em
áreas urbanizadas” faz sentido quando as questões são tratadas de maneira integrada,
mas não apenas no discurso destituído de conteúdo: o aluno precisa conhecer cor-
retamente conceitos como área de manancial, vertente, saneamento básico, e saber
localizar as áreas em questão, distinguir a dinâmica dos rios, saber que existem leis
que tratam do ambiente e das responsabilidades do poder público. E o professor pre-
cisa saber quais são os conceitos pertinentes a serem trabalhados, precisa ter noção
da dimensão espacial e temporal do conhecimento, saber onde encontrar materiais
para serem pesquisados e como fazer as articulações necessárias para mediar a com-
preensão do objeto que está sendo estudado.
Ao tratar das cidades “industriais”, aquelas cuja expansão significativa se dá
por força do desenvolvimento industrial capitalista dos países que as abrigam – que
foram se expandindo de articulações de guetos de corporações a bairros operários
e industriais, a bairros comerciais e financeiros, mudando a paisagem dos lugares e
organizando as vias de circulação e novas redes de transportes –, é preciso compreen-
der a dimensão histórica da organização das cidades pós-revolução industrial. Nesse
O estudo da cidade e o lugar na Geografia Escolar | 285
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contexto, acentuam-se dois fenômenos paradoxais: de um lado, a homogeneização
dos espaços e da sociedade, de outro, a ampliação das desigualdades, com o agrava-
mento de alguns problemas (que se tornaram globais), como a exclusão social, as de-
sigualdades socioeconômicas, a violência, a fragmentação territorial, o desemprego e
a contaminação ambiental.
Nesse sentido, estudar a cidade em Geografia é trazer para o currículo escolar
essas dimensões do estudo sobre a cidade, é compreender as relações da cidade, na
cidade e a cidade, como afirma Bernet (1993), enquanto o lugar das contradições e
como um fenômeno dual. Para isso acontecer, o estudo da Geografia mnemônica
deve ser substituído pela plena educação geográfica.
O conhecimento das potencialidades do lugar e das capacidades de ação das
pessoas que ali vivem é condição fundamental para o exercício de fazer do lugar
aquilo que interessa a quem nele vive. Essas potencialidades são marcas decorrentes
da estrutura física do lugar, do contexto em que se insere, das formas de organização
das pessoas para realizarem seu acesso aos bens e da forma com que se constitui o
tratamento da diferença e da justiça social.
O lugar e a cidade: a vivência e a teoria
Organizar o conteúdo escolar a partir do lugar de vivência do aluno significa
elaborar atividades de aprendizagem que sejam também instrumentos multidiscipli-
nares para que o aluno amplie sua compreensão da própria ciência geográfica e de
suas interações com a experiência pessoal.
A análise do “fenômeno cidade” pode acontecer, do ponto de vista teórico, ao
se trazer para o currículo escolar a cidade enquanto espaço de aprendizagem, com-
preendendo-se sua função, sua gênese e o processo histórico no qual foi produzida,
estabelecendo uma nova referência para a Geografia Escolar.
Em relação à educação geográfica, para superar a superficialidade conceitu-
al, destaca-se o método da análise da realidade vivida. Nessa perspectiva, torna-se
possível aos alunos sair do estágio de mera decodificação de informações quantita-
tivas ou morfológicas ou de impressionismo de aparências. Ao se aprofundarem as
decodificações sobre a cidade, busca-se entendê-la como uma nova organização do
território, como articulação de espaços descontínuos e fragmentados e como parte
da experiência real de vida do aluno. Daí não se retomar as temáticas escolares em
relação ao que está próximo ou distante, o entorno ou as delimitações tradicionais
da cidade em tipos de bairros, por exemplo. Ainda que tais conteúdos sejam “mais
fáceis” de entendimento, pela simplificação do objeto que se busca conhecer, sua re-
286 | Sonia Maria Vanzella Castellar
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levância é diminuta – e, por vezes, deletéria – em um projeto educativo que busca
possibilitar a compreensão efetiva e a apropriação de conhecimento transformador
sobre a cidade como método por excelência para uma real compreensão geográfica
de lugares e espaços.
Estudar a cidade não significa descrever a paisagem e seus problemas, localizar
onde há mais ou menos concentração vertical, as dificuldades e a abrangência da
circulação ou apenas contar as diferenças econômicas entre os bairros. Os alunos
precisam compreender que a cidade tem várias dimensões, que há várias cidades, que
possuem arranjos espaciais diversos, gestados não só em função do meio físico, mas
do planejamento urbano e de sua sobredeterminação econômica. Há que articular
fenômenos como a expansão das áreas urbanas – e mesmo subterrâneas (estacio-
namentos, fiação de luz e telefonia, metrô) – com os fenômenos produtivos e/ou
culturais que têm lugar no urbano. Não temos dúvidas de que essa proposta implica
mudar a organização do currículo de geografia na escola. Entretanto, isso significa
que o professor deve ter autonomia para estabelecer a maneira como conduzir sua
aula em função da sua realidade.
Há de se mostrar que a cidade ideal não existe, mas na cidade real os trabalha-
dores não são invisíveis e há muitas contradições de classe, como afirma Rodrigues
(2007, p. 75), a qual ainda acrescenta em sua análise que
a desigualdade socioespacial demonstra a existência de classes
sociais e as diferentes formas de apropriação da riqueza produzi-
da. [...] A desigualdade socioespacial se agudiza com a chamada
acumulação flexível do capital e predomínio do neoliberalismo.
Conquistas históricas dos trabalhadores são desmanteladas com
a hegemonia da ideologia do neoliberalismo.
Essa ideia discutida por Arlete Rodrigues (2007) nos remete às premissas que
apresentamos, e dessa maneira podemos tratar a cidade produzida espacialmente
numa concepção fordista ou pós-fordista, intensificando a ideia de que cidade não
é harmônica e com relações sociais conflituosas. O estudo da cidade ainda nos faz
relembrar também o papel do Estado e a lógica da segregação socioespacial e isso é
necessário para que o aluno tenha clareza da sociedade em que vive. Nesse sentido,
Spósito (2010, p. 130) afirma que
Também podemos considerar as mudanças decorrentes da
retração da atividade industrial, que resultam do relativo es-
gotamento das formas fordistas de produção, que orientaram
a reestruturação das plantas urbanas e a relocalização das ati-
O estudo da cidade e o lugar na Geografia Escolar | 287
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vidades produtivas, muitas vezes distantes das unidades de
gestão, gerando centralização industrial, no plano econômico
e espacial, e desconcentração espacial, no plano da ativida-
de produtiva. Essas mudanças que remontam às três décadas,
também, geram áreas de transição, a partir de diferentes or-
dens, desde as relativas à produção capitalista do espaço ur-
bano, até às de natureza mais social, quando o poder público
se ocupa de promover a refuncionalização dessas áreas para
construir algum mercado de trabalho novo ou uso de solo
portador de significado relevante.
A partir do estudo conduzido com profundidade teórica, o aluno entende o sig-
nificado do lugar de vivência, do pertencimento, reflete sobre padrões de segregação
na gestão dos problemas urbanos – sejam eles de que natureza forem –, associa fenô-
menos ambientais à gestão de recursos naturais (água, esgoto, saneamento, emissão
de poluentes etc.), de preferência comparando o que acontece em diversas realidades
de outras cidades, estados ou países com sua experiência pessoal. Estudar o lugar de
vivência é vincular a ele questões que estão presentes em várias escalas de análise
e permitir a associação criativa e referenciada na experiência concreta, de evidente
maior capacidade de transmissão e fixação de conhecimentos.
Além disso, devemos considerar a noção do tempo como mais um constituin-
te do espaço geográfico: observamos diversos elementos em que o tempo pode ser
percebido, tanto no que se refere ao cotidiano quanto à natureza, pois o modelado do
relevo, as avenidas e ruas, as indústrias e os campos, por exemplo, revelam em suas
formas simultaneamente o passado e o presente. Tudo isso resulta de um processo na
produção e organização do espaço, analisado a partir das relações sociais, econômi-
cas, políticas, culturais e ambientais.
No espaço geográfico encontramos os objetos técnicos, transformados ou não:
nele há relações simbólicas e afetivas, que revelam as tradições e os costumes, indo
além da relação ser humano-natureza. Nesse contexto, ao observar os elementos que
compõem o espaço vivido, o aluno perceberá a dinâmica das relações sociais presen-
tes na organização e produção desse espaço, o que significa, também, compreender o
processo de construção de sua identidade individual e coletiva.
Assim, o estudo da cidade na perspectiva que estamos propondo contribui
na formação do conceito de identidade: leva a buscar a ocupação dos lugares no
passado e presente em sua relação histórica e com as dinâmicas da natureza, em
uma visão menos fragmentada e ajuda a entender a diversidade da organização dos
lugares.
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A aprendizagem investigativa e significativa
Entendemos que ao docente cabe estabelecer a relação entre o ensino e a apren-
dizagem, entre o conhecimento que será ensinado e o sujeito que aprende. Ao pro-
fessor delega-se a escolha de uma estratégia de aprendizagem, preferência essa in-
fluenciada por múltiplas variáveis. (CHARNAY, 1996, p. 38) Portanto, na perspectiva
de uma aprendizagem significativa e investigativa, espera-se que o estudo da cidade
proponha observar as áreas comerciais, o centro histórico, as áreas residenciais, a
ocupação irregular, a exclusão geográfica, permitindo ao aluno a compreensão do
valor da cidade e de seus conflitos e contradições espaciais.
O exemplo que trouxemos é uma experiência sobre o estudo da cidade realiza-
da em uma escola pública. Esse exemplo constitui uma ação didática em espaço não
formal de aprendizagem – o bairro – e que pode ajudar a elaborar um cenário válido
para muitos lugares do Brasil. Cabe ressaltar que são muitos os lugares submetidos
às condições geradas pela desigualdade das classes sociais, pelas mudanças na eco-
nomia, pelo inchaço brutal das periferias das grandes cidades e pela falta de investi-
mento em educação básica, cultura e saúde. Esse estudo não precisa ser realizado em
uma metrópole, em qualquer cidade ou mesmo em áreas rurais.
A localização do bairro e da escola de que nos ocupamos permite destacar al-
guns dados que auxiliam na análise do contexto, compreendendo, por exemplo, quais
os possíveis impactos na vida da população local da falta de infraestrutura de lazer,
atividades culturais, saúde e serviços. Com essas informações, podemos estabelecer
alguns parâmetros para analisar as principais características dos jovens desse bairro
que frequentam a escola diretamente implicada nesta pesquisa.
A zona leste de São Paulo, por exemplo, é a região do município com o menor
grau de urbanização e as maiores taxas de crescimento e densidade populacional, po-
breza e violência. Assim, ela é marcada por uma elevada demanda social e, ao mesmo
tempo, é uma das mais carentes do ponto de vista econômico e cultural: indicadores
mostram que a média de anos de estudo no local é de 6,84, atingindo em alguns
lugares o índice de 4,82, enquanto no município é de 7,67 anos. O índice de evasão
escolar é ali três vezes maior que o de outras regiões da cidade. Os piores índices são
encontrados nos extremos da periferia da cidade, o que implica a exclusão da popu-
lação dos centros culturais e uma maior dificuldade de acesso à escola.
Entretanto, nem todos os bairros possuem as mesmas características, podemos
encontrar um bairro que apresenta densa urbanização e escassez de vegetação, com
predomínio de residências. Fotos aéreas, mapas e bases de dados da Prefeitura de São
Paulo revelam que as vias de circulação têm pouca arborização e carecem de praças
de jardins.
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Conforme dados organizados pela Secretaria do Meio Ambiente do Município
de São Paulo e Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, há manchas no bair-
ro indicando grande quantidade de prédios. Já o Parque do Carmo destaca-se pela
presença de vegetação, com uma cobertura remanescente de Mata Atlântica. Essas
manchas indicam também mais de 60% de residências – verticais e horizontais – de
baixo padrão, além de uma pequena área de comércio e serviços.
Chama a atenção a vulnerabilidade social que atinge grande parte da população
de Itaquera, mas principalmente a que vive na periferia do município. Vale afirmar que
o conceito de vulnerabilidade mede a capacidade de combate aos perigos sociais sem
que o cidadão sofra, em longo prazo, uma potencial perda de bem-estar. Essa extensa
ideia pode ser reduzida ao “sentimento de insegurança de um potencial sofrimento que
as pessoas poderão temer”, ao sentimento de que “algo terrível” pode acontecer, que
“lançará a ruína”, medindo a vulnerabilidade social pela pobreza. Em São Paulo, apro-
ximadamente três milhões de habitantes vivem em condição de maior privação social, e
há bairros que apresentam uma taxa que varia de média a altíssima privação social, em
função da baixa renda da população (média mensal entre R$ 700 e R$ 800), sendo que
cerca de 13% dos chefes de família não têm renda e apresentam baixo nível de escola-
rização. Os chefes de família têm, em média, 6,6 anos de escolarização, e aqueles com
mais de dez anos de estudo correspondem a 24,6%. A partir desse quadro, é possível
afirmar que há ali uma maior vulnerabilidade social, na medida em que os filhos não
estudam, o que implica desemprego e aumento dos riscos sociais no bairro.
Outro dado que reforça a privação social no bairro é a falta de equipamen-
tos culturais: a escola e a comunidade localizam-se em um bairro que possui três
bibliotecas públicas, um centro cultural, mas nenhum cinema, museu, patrimônio
histórico, casa de shows e concertos ou teatro, considerados indicadores culturais até
2007. O shopping ficou pronto por volta de 2007, podendo-se então acrescentar suas
salas de cinema como novos equipamentos, ainda que não tenham sido fruto de uma
política pública de investimento em cultura.
Fazendo referência ao contexto socioeconômico em que se encontra a escola,
temos como objetivo identificar a existência de uma multiplicidade de relações e es-
feras de ação – e dar sentido à escola –, podendo então reconhecer os protagonistas
da comunidade escolar que estamos investigando, considerando suas experiências
particulares. É uma análise que nos ajuda a estabelecer parâmetros para a compre-
ensão do lugar, o espaço lugar, no qual está inserida a escola e onde os alunos vivem.
O espaço lugar, segundo Garrido Pereira (2009, p. 109), como experiência par-
ticular e coletiva, permite revelar a essência do ser humano e entender as possibi-
lidades infinitas que ele tem de relacionar-se afetivamente para além de si mesmo,
incluindo novos mundos que se fazem no plano da imaginação.
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Ao realizar uma pesquisa sobre o bairro ou uma região de qualquer município
do Brasil, podemos identificar as concepções sobre lugar, cidade e urbano e, ain-
da, podemos comparar com outros lugares do mundo. Durante o estudo notamos a
maneira como os alunos foram se apropriando do lugar da vivência a partir de um
projeto investigativo que propiciava a articulação com muitas realidades que foram
historicamente se formando, por meio de pesquisa, de leitura de mapas e dados, tex-
tos científicos e jornalísticos, debates a partir de uma atividade que deu significado à
geografia que se ensina.
Considerações finais
O ensino é um desafio permanente para o professor, uma tarefa complexa que
envolve valores, concepção de mundo, cultura, experiências, critérios para selecionar
conteúdos e avaliá-los, entre outros aspectos da dinâmica do cotidiano da escola.
Além disso, destacamos a preocupação do professor com o processo da aprendiza-
gem e com a definição de trabalhos que desenvolvam a capacidade de interpretação
e explicação de seus alunos.
Interessa-nos marcar a diversidade com que se aborda o processo de ensinar e
de aprender. Esse processo é uma prática social que não se pode entender de maneira
mecânica. Assim, é preciso ter clareza dos fundamentos teórico-metodológicos que o
conduzem, para saber o que ensinar e, principalmente, como, para que e para quem
ensinar.
As mudanças e as demandas sociais em relação à formação dos alunos e à ma-
neira como estes se apropriam do conhecimento são questões fundamentais da so-
ciedade atual. Pensar o que, como, para que e para quem ensinar pode ser pertinente
para ressignificar o currículo escolar, trazendo-se com isso novos desafios para o
professor ao assumir que a aprendizagem pode ocorrer além dos muros da escola.
A partir da compreensão das alterações sociais e da demanda na aprendizagem
entendemos a importância que o ensino de geografia tem e para isso devemos ousar
na forma e no conteúdo, respeitando a realidade dos docentes, mas arriscando pro-
por que o ensino e a aprendizagem é um processo que pode ocorrer em diferentes
espaços, incluindo os espaços não formais como parques, praças, bairros, museus,
superando os muros da escola. Dessa maneira, tratamos das duas premissas apresen-
tadas no início do texto para se pensar em um ensino mais investigativo e significa-
tivo para o aluno.
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Aprendizagens e itinerários juvenis: cidade e cidadania sob o
véu de narrativas e memórias
Vânia Alves Martins Chaigar
Sei que não tenho idade
Sei que não tenho nome
Só minha juventude
O que não é nada mal1
Os versos acima, do compositor e músico pelotense Vítor Ramil, presentes na
canção Sapatos em Copacabana, encerram pistas sobre algumas importantes ques-
tões contemporâneas tais como juventude e identidade. Escritos nos anos 1980, per-
sistem atuais, talvez mais ainda na medida em que ser jovem passou a ser um dos
grandes desejos de parcela considerável da humanidade. Então, parece não ser “nada
mal” essa condição. Será mesmo?
Em que situações e perspectivas estão sendo forjadas as cidadanias juvenis e
que legado de cidadania nós, os ditos adultos, estamos deixando para eles? Esta é
uma preocupação constante que carrego para o espaço da sala de aula no difícil papel
de formadora de professores, nos cursos de licenciatura em que trabalho.
“Não podemos pregar cidadania sem sermos cidadãos”. (NÓVOA, 2009, p. 68)
Ao destacar esta afirmativa no início deste texto, desejo evidenciar um incômodo da
pessoa professora pesquisadora a tecer este estudo: a pouca conversão do currícu-
lo formal de cursos formadores de professores em cidadania ativa, segundo tenho
1 RAMIL, Vitor. Sapatos em Copacabana. In: Tango. 1986 (LP). Versão (modificada) deste texto foi apresentada
no V Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica. Porto Alegre, 2012.
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observado. Há certo descolamento entre intencionalidades contidas nos currículos
e a conversão das mesmas em ações no solo da cidade ou mesmo da sala de aula,
constituindo um paradoxo. Como pregar cidadania sem ser cidadão? O autor citado
considera que seja um desafio da docência contemporânea produzir a liga entre o
discurso e a corporeidade do mesmo.
Ao mesmo tempo, pesquisa atual divulgada pelo Núcleo de Estudos da Vio-
lência, da Universidade de São Paulo (USP), está a mostrar que houve arrefecimento
da indignação sobre violências e arbitrariedades contra a pessoa no país. Embora a
maioria dos entrevistados tenha se mostrado contrária a práticas desrespeitosas, em
comparação com a mesma pesquisa feita no ano de 1999, menos brasileiros estão se
importando com os “suspeitos, acusados e condenados”.2 (PRESTES, 2012)
Ainda assistimos a barbáries repetindo episódios dolorosos que, na história do
país, estão a desmascarar a “cordialidade” brasileira cantada em prosa e verso.
Nos últimos anos, segundo o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos,
com base no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde,
o número de homicídios contra jovens cresceu 346% entre 1980 e 2010,3 sendo a
principal causa da morte de jovens de até 19 anos no Brasil, segundo a fonte.
A pesquisa também indica o crescimento, no país, da morte de crianças e jo-
vens no trânsito, sendo que, entre 2000 e 2008, os números se estabilizaram e volta-
ram a crescer novamente a partir desse ano: “O principal motivo foi o aumento das
mortes envolvendo motociclistas: 376,3% entre 2000 de 2010”.4
Diante de fatos como esses, não há como desconsiderar que existe, de certo
modo, um processo de anúncio da morte do futuro na medida em que se destroem –
no presente – os sujeitos que o estabeleceriam.
Afinal, como justificar tanto descuido, tanta violência e falta de consideração
envolvendo os mais jovens e frágeis?
Do ponto de vista da Sociologia, podem estar associadas à histórica falta de
cidadania a que tem estado relegada boa parte da população. Estudos reiteram que
manifestações violentas da sociedade, em distintos momentos, estão correlacionadas
a crises no processo civilizatório e à inexistência de vigor no conceito de cidadania
no país já que
[...] a grande massa do povo, incluídos os imigrantes, foi destina-
da aos deveres do trabalho e não aos direitos da cidadania. Por
longo tempo ficou subjugada ao poder pessoal dos potentados
2 Ver Prestes (2012).
3 Ver <http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/mapa-da-violencia-contra-jovens/>. Acesso: 16 set. 2012.
4 Ver <http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/mapa-da-violencia-contra-jovens/>. Acesso: 16 set. 2012.
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da roça, à justiça privada e discricionária dos que têm dinheiro
e poder. Essa é a justiça que o povo conhece. (MARTINS, 2008,
p. 161)
Longo tempo em condições de subalteridade e sob os auspícios de camadas so-
ciais pouco afeitas ao entendimento e atendimento de demandas por cidadania, uma
parcela da sociedade, por vezes, parece ficar anestesiada diante de violências ou mes-
mo propensa a cometê-las, conforme observamos cotidianamente, sobretudo contra
grupos vulneráveis como mulheres, crianças, jovens, velhos, homossexuais etc.
É difícil deixar de perceber um aumento da banalização da violência combi-
nada com sentimentos de impotência e indiferença frente à enxurrada de notícias,
por exemplo, que diariamente invade as telas de TVs e páginas de jornais impressos
ou virtuais, que pouco ou nada edificam a condição que temos outorgado a nossa
espécie: humana.
Formas escancaradas de barbárie evidenciam que velhos desafios como os
colocados por Adorno (2000), após haver vivenciado os horrores do nazifascismo,
ainda estão a nos provocar. Refletiu o filósofo que o empenho primeiro da educação
doravante seria o de ajudar as sociedades a tirarem os pés da barbárie, ser um ins-
trumento para promover o recuo da barbárie. Pelo visto não estamos obtendo muito
sucesso!
Nesse sentido, a convivência nos centros urbanos, sobretudo neles, incorpora
um cotidiano, no qual o vocábulo cidadão não faz muito eco, a não ser no sentido
mais (ego)centrado em que os direitos percebidos e reivindicados sejam apenas e tão
somente o seu – particular e desvinculado do outro, o alterno.
Parece-me que esteja a ocorrer em certa medida uma negação da alteridade!
Nesses cenários, a cidade sugere uma abstração, por vezes fria e vazia, embora a
incessante – e desgastante – mobilidade (como agora é moda dizer), do vai e vem das
pessoas, deslocando-se de um local para outro sistematicamente. Parte dos citadinos
não consegue situar ou destacar acontecimentos em seus próprios bairros ou, ainda,
nos percursos feitos diariamente, a não ser quando esses são evidenciados pelas mí-
dias. Simplesmente deslocam-se, da casa para o trabalho, do trabalho para o estudo,
do estudo para o consumo etc. Mas não produzem costuras entre um espaço e outro,
não percebem a totalidade que perfaz a cidade, suas nuances e similaridades.
Vista dessa forma, a cidade é um conjunto de fatias desconectadas entre si.
Pais, ao ponderar sobre as relações produzidas nas cidades contemporâneas,
assinalou que as repetições vividas diariamente impedem que as pessoas percebam
de fato a cidade como espaço relacional. Diz: “Quem vive numa cidade redundante
que se repete em sua trivialidade, parece não a (vi) ver como desejaria, perdido em
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percursos quotidianos dominados por rotinas de deslocação próprias de quem não
passa de um passageiro, alguém de passagem” (PAIS, 2009, p. 30), como se fosse um
turista na própria cidade.
Nessa circunstância, e em constante aprisionamento – no trânsito, nas filas etc.
–, os indivíduos colocam-se numa situação de “isotopia de evasão” (idem), na qual
o imaginário é chamado a desempenhar um papel de escape perante situações cons-
tantemente adiadas.
Outra situação de fuga é denominada pelo autor de “isotopia das paixões”, em
que os desejos também são aprazados (novas aprendizagens, viagens, encontros etc).
O autor lembra que o urbanismo destaca muito a dimensão do espaço, mas que o
tempo também tem um papel importante na cidade, porquanto a vida está tomada
por um presentismo (“não deixar para depois o que se pode fazer agora”), também
empurra para um amanhã o que poderia fazer hoje (“um dia farei”). Há fragilidade
na concretização desses desejos que, para o sociólogo, são “projeções de vida que não
vão além de rabiscos de ação de concretização indeterminada”. (PAIS, 2009, p. 32)
Assim a vida, em boa parte, permanece suspensa, empurrada com a barriga, como
se diz.
O sociólogo português também considera que há grandes fraturas na cidade
produzidas pelo olhar domesticado, capturado por outdoors que, a cada instante,
chamam a atenção dos transeuntes para o desejo, a vontade incessante de comprar,
produzem necessidades e dispersam a atenção sobre o espaço local. Essa atração do
olhar para os cartazes publicitários e outras mídias, estrategicamente posicionadas,
impede que a “cidade patrimonial” (PAIS, 2009, p. 34) seja apreendida (daí o desejo
em ser turista na própria cidade). “O olhar que predomina na cidade por onde ha-
bitualmente circulamos tende a ser um olhar domesticado, flutuante, oblíquo, fugaz,
descentrado, inscrito num cerimonial urbano de, quando muito, ver em que param
as modas”. (PAIS, 2009, p. 34)
Calvino, por sua vez, ao filosofar sob a pele de seu personagem Marcovaldo, e
apontar as apartações e o caráter inabitável da sua cidade, reclamou que “os felinos
domésticos são prisioneiros de uma cidade inabitável”. (CALVINO, 1994, p. 115) E
justificou: “A cidade dos gatos e a cidade dos homens estão uma dentro da outra, mas
não são a mesma cidade. Poucos gatos lembram o tempo em que não havia diferença:
as ruas e as praças dos homens eram também ruas e praças dos gatos...”. (CALVINO,
1994, p. 115)
Essa cidade, negada aos gatos, também é suprimida às pessoas que não conse-
guem enxergar suas humanidades nela refletidas: encontros, desencontros, abraços,
sonhos, imaginários, invenções, festejos etc. Assim, como ser cidadão? E como aju-
dar as crianças e jovens a sê-lo em espaços – aparentemente – tão inóspitos?
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De fato, ao pensar a cidade sob a lógica global, em macroescala, aquela mercan-
tilizada em que os espaços são próprios apenas à acumulação capitalista ou dela de-
rivados, é pouco provável que a encontremos também como produtora da existência
de homens e gatos e plantas e todas as formas de existências.
Nesse contexto de esvaziamento da produção de sentidos para a vida e/ou da
sua reinvenção, como os jovens estarão constituindo suas existências e relação com
o lugar?
Rio Grande é uma cidade com 198.051 habitantes (IBGE, 2011) e, para os pa-
drões do interior do Rio Grande dos Sul, é considerada de porte médio. Faz parte do
conjunto das cidades mais antigas do estado que, juntamente com Porto Alegre, Rio
Pardo e Santo Antônio da Patrulha, surgiram de povoações que remontam ao século
XVIII.
A cidade portuária, com altíssimo índice de urbanização, que alcançou os 96%
em 2010, vive desde meados deste século uma etapa diferenciada na sua ocupação.
Está em marcha um processo de reurbanização, muito em decorrência da instalação
de um polo naval5 e pela concorrência de pessoas de distintas regiões brasileiras que
chegam a Rio Grande, em busca de trabalho e estudo, principalmente.
Do ponto de vista macropolítico e econômico, a cidade de Rio Grande tem
grande importância geopolítica para a reorganização do capital no Brasil meridional:
porto, hidrovias, ferrovia, proximidade de minérios localizados no Uruguai – país
vizinho etc., convergem para destacá-la no cenário nacional e nos projetos (neo)de-
senvolvimentistas do atual governo brasileiro.
Nesse sentido, parece que os sujeitos do local não têm tido muita oportunidade
para pensar sobre o assunto, pois os fatos ocorrem em grande velocidade e, aos pou-
cos, espaços vão sendo transformados, inclusive com remoções de populações tradi-
cionais. Relações assimétricas e discursos dissociados de práticas sociais são algumas
das marcas observadas, ratificando a desimportância epistemológica/existencial do
local frente ao global, ainda mais em tempos de (mais uma) crise do capital.
Sousa Santos (2007) tem alertado sobre esta discrepância global/local e ques-
tionado a validade dos conhecimentos produzidos noutros contextos cujas teorias
são dissociadas de práticas sociais, pois para quem vive no sul “as teorias estão fora
do lugar: não se ajustam as nossas realidades sociais”. (SOUSA SANTOS, p. 19) E
acrescenta que “não é de um conhecimento novo que necessitamos; o que neces-
sitamos é de um novo modo de produção de conhecimento. Não necessitamos de
alternativas, necessitamos é de um pensamento alternativo às alternativas”. (SOUSA
5 No momento da revisão final deste texto, este contexto do Polo Naval vive uma crise face às incertezas econômi-
cas e políticas do país.
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SANTOS, 2007, p. 20) Ou seja, mais do que teorias, carecemos de paradigmas que
nos auxiliem a viver melhor.
O sociólogo também tem reiterado que, nessas circunstâncias, por conta des-
sas assimetrias, ocorre “desperdício da experiência” e muita produção deixa de ser
conhecida e efetivamente socializada. Os conhecimentos locais são considerados in-
feriores porque qualquer coisa que não se encaixe na “monocultura” do pensamento
ocidental é tida como não crível. Como contraposição a essa monocultura, Sousa
Santos (2007, p. 32) propõe que seja mobilizada uma “sociologia das insurgências”
concretizada por uma “sociologia das emergências” (SOUSA SANTOS, 2007, p. 34),
isto é, que abarque aquilo que ainda não está constituído, mas que já emite sinais de
sua existência.
Os jovens rio-grandinos, assim como os demais da sua geração, constroem suas
cidadanias, portanto, em meio a cenários de violência, dispersão, supressão, assime-
tria, invisibilidade, mas também, de “insurgências” como a dos conhecimentos e re-
lações peculiares ao lugar, permeadas por projetos identitários.
A melhor maneira de nós, docentes formadores de professores, lidarmos e
ajudarmos jovens a pensarem-se e pensarem nessas construções/construtos não sa-
bemos muito bem. Apresenta-se como uma das dificuldades termos sido forjados
noutros contextos históricos e fortemente afetados por metanarrativas, dualidades
e fundamentalismos epistemológicos. Sobretudo, pela razão única de inspiração ilu-
minista.
Muitos de nós, entretanto, temos investido em “insurgências” didático-pedagó-
gicas, parte delas apoiada na experiência e nas possibilidades da pesquisa-formação,
de cunho (auto)biográfico. Nelas, docentes e discentes pactuam formas de ensinar e
aprender promovidas por ações mediadas pelo diálogo, pelo intercâmbio de culturas
e pela partilha de saberes, numa tentativa de produzir ligas entre discursos e ações,
conforme esteve a vaticinar Nóvoa (2009) no início deste texto.
Embora o contexto histórico possa ser caracterizado como de recuo do coletivo
frente à exacerbação do individualismo, a formação de professores não pode prescin-
dir ou abrir mão de uma cultura colaborativa, quer entre professores, quer entre es-
tudantes, quer entre estudantes e professores. Formar-se é reconhecer que nos consti-
tuímos socialmente, que estamos entremeados uns com os outros, queiramos ou não.
Larrosa (2002) propõe um conhecimento que é, acima de tudo, construído na e
pela experiência acontecimento. Para o autor, “a experiência funda uma ordem epis-
temológica e uma ordem ética” (LARROSA, 2002, p. 26) e permite, assim, que o
conhecimento se concretize em sua relação com a vida. Os intercâmbios e partilhas
entre docentes e discentes impõem-se na contramão do descarte da experiência hu-
mana, corroborando para que novos modos de ensinar e aprender venham à tona e,
300 | Vânia Alves Martins Chaigar
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com eles, a recuperação do significado de conviver. Sobretudo, para que o conceito
de cidadania se efetive a partir do mundo experienciado e plugado no lugar e seja
exercitada no presente, ao invés de postergada ao futuro!
Bosi (1994) ratifica a importância em dar corporeidade aos discursos produ-
zidos no cotidiano como forma da sua viabilização e para que os mesmos não sejam
desabonados junto aos jovens. E questiona: “O que poderá mudar enquanto a criança
escuta na sala discursos igualitários e observa na cozinha o sacrifício constante dos
empregados? A verdadeira mudança dá-se a perceber no interior, no concreto, no
cotidiano, no miúdo; os abalos exteriores não modificam o essencial.” (BOSI, 1994,
p. 73)
No miúdo da vida cotidiana, portanto, contrariando metanarrativas e o peso
da globalização totalizante, efetiva-se a possibilidade da reação do humano frente às
violências que a inviabilizam como projeto coletivo. Na pequena escala nos realça-
mos, superamos obstáculos, podemos cultivar o outro e projetar o futuro. Com isso,
não estou a desconhecer a força da história coletiva e de seus condicionantes, mas a
dimensionar o lócus das (re)existências e a apostar no alento da experiência aconte-
cimento (LARROSA, 2002) como fator de transformações.
Simultaneamente, alguns pesquisadores da perspectiva autobiográfica têm des-
tacado o seu caráter formador, na medida em que os sujeitos imergem nas próprias
trajetórias e percursos e, a partir daí, produzem reflexões que propiciam viradas epis-
têmicas e existenciais. Essas reflexões-ações constituem-se sob o âmbito da “pesqui-
sa-formação (autobiográfica)” (PINEAU, 2011) e permitem construir uma “sensibili-
dade positiva e ativa do que nos acontece”, compreender as próprias ações e projetar
o futuro, ou seja, “identificar as marcas deixadas no caminho, para decodificar as
direções que elas podem tomar”. (PINEAU, 2011, p. 29)
Nesse quadro, as narrativas e a memória têm especial destaque posto terem
elementos que produzem significações individuais e coletivas além de prováveis elos
identitários. Bosi (1994) faz uma distinção entre informação e narrativa, entendendo
que enquanto a primeira se esgota rapidamente assim que a novidade é comunicada,
a segunda “está concentrada em limites como a da semente e se expandirá por tempo
indefinido”. (BOSI, 1994, p. 87) Segundo a autora
o narrador é um mestre do ofício que conhece seu mister: ele
tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida in-
teira. Seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele
extraiu da própria dor; sua dignidade é a de contá-la até o fim,
sem medo. Uma atmosfera sagrada circunda o narrador. (BOSI,
1994, p. 91)
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Nas narrativas não há assimetrias e subalteridades: a experiência é o arrimo
gerador de reconhecimento, respeito e aprendizagens. Há circularidades que alimen-
tam e são alimentadas por memórias partilhadas, visto que “o grupo é suporte da
memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso seu passado”. (BOSI, 1994,
p. 414) Há, portanto, nesse contexto, a produção de credibilidade entre o narrador,
quem o escuta e a narrativa partilhada.
No caso da graduação e em cursos de licenciatura cujo compromisso maior é
preparar no presente professores para o futuro, parece oportuno pensar e organizar o
trabalho educativo, tomando experiências de vida de discentes (e docentes) associan-
do-as aos contextos históricos nas quais se produzem e problematizando-as, para que
daí extraia substratos para mediações/intervenções na/com a sociedade.
Pensando e agindo sob a influência desses paradigmas, tenho enfatizado o en-
sino com pesquisa voltado a aprendizagens na/com a cidade. Sobretudo na gradu-
ação, no curso de Pedagogia, venho desenvolvendo projetos formativos, nos quais
estudantes intercambiam com a cidade, suas histórias de vida, narrativas e memórias,
visando daí extraírem – e produzirem – parcela de seus aportes estéticos-afetivos-é-
ticos-epistemológicos.
Considero a investigação fundamental, mas diferentemente do stricto sensu, no
qual tem o papel principal de produzir conhecimento, na graduação tem a função de
desenvolver a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1997) e, através dela, exercitar
a dúvida, a incerteza, a interrogação e, com isso, o pensamento crítico.
Ao darem atenção aos caminhos e às gentes da cidade, com as quais cruzam,
durante os percursos investigativos – pela imersão na “memória dos passos perdidos”
(CERTEAU, 1998) – aprendizagens são produzidas e imaginários, ressignificados.
Essas imergências, muitas vezes, se constituem em exercícios de cidadania e repercu-
tem em novos olhares sobre si, o outro e o lugar.
O recorte de pesquisa que desejo corroborar deu-se a partir de estágio pós-
doutoral6 no qual apurei alguns desdobramentos nas discências de 103 estudantes
que participaram do projeto “Memórias, lugares e a cidade”, desenvolvido em três
turmas do segundo ano de Pedagogia, entre os anos de 2009 e 2010, e resultaram na
produção de 30 investigações.
As referidas investigações fizeram parte do plano de ensino da disciplina me-
todologia de ensino de Ciências Sociais que previa em sua carga horária, cerca de 40
horas para estudos complementares. Em disciplinas como essa, os professores deci-
6 “Memória, formação de professores e protagonismo discente: estudantes de Pedagogia e a relação com a cidade”,
orientado pela profª drª Cleoni M. Barboza Fernandes. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC/RS), 2011.
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dem com suas turmas o tipo de estudo a ser realizado que, por ser anual, proporciona
experimentações e aprofundamentos difíceis de ocorrerem quando semestral.7
O percurso do trabalho dividiu-se em duas etapas. A primeira, realizada no
primeiro semestre, envolvia mobilização através de oficinas de histórias de vida, cur-
tas-metragens e documentários, leituras e abordagens conceituais, elaboração dos
projetos, orientações metodológicas e seminário para socialização dos planos (du-
rante o ano de 2009, também ocorreram encontros com estudantes de Geografia e
visita orientada pela cidade).
A segunda etapa, no decorrer do segundo semestre, contemplava os trabalhos
de coleta de dados, leituras temáticas, sistematizações, elaboração de relatório de pes-
quisa e a socialização da produção em seminário de extensão. Os trabalhos, em am-
bos os anos, encerraram com autoavaliações sobre os respectivos processos.
Em 2009, o projeto foi desenvolvido em uma turma da Pedagogia noturna, teve
a participação de 35 alunas8 e houve a produção de dez pesquisas.9 Em 2010, duas
turmas da Pedagogia foram envolvidas, uma no diurno e outra no noturno, somando
68 alunos e resultando numa produção de 20 pesquisas (dez em cada turma).10
Nos dois anos letivos, os trabalhos realizados focaram temas que destacaram
patrimônio/cultura, lazer/turismo, história de vida, trabalho, crianças e idosos.
7 A partir do 1o semestre/2015 todas as disciplinas do curso de Pedagogia da FURG passaram a ser semestrais.
8 A referida turma foi constituída 100% por mulheres.
9 “Rio Grande: sua memória e geografia sob o ponto de vista infantil”; “A memória da primeira grande indústria
da cidade e do estado: a Rheingantz revela saberes educativos”; “A praia do Cassino, os molhes da Barra e o navio
Altair; Balneário Cassino: tecendo memórias e histórias”; “A Praça Tamandaré na História”; “Na singularidade
do passado com o presente: Praça Xavier Ferreira, histórias e mitos”; “Biblioteca Pública Rio-grandense: saberes
e viagens”; “Cemitério do Rio Grande: espaço de memórias, culturas e histórias”; “Memórias da Santa Casa de
Rio Grande”; “Dogelo Schenque: memórias de uma intensa trajetória marcadas por sonhos e desafios”.
10 No curso diurno, foram realizadas as seguintes pesquisas: “O Colégio Lemos Júnior na visão de ex-alunos”; “Mo-
mento de transição: De CTI - Colégio Técnico e Industrial Professor Mário Alquatti para Instituto Federal de
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS”; “Memórias do Asylo: velhice amparada ou abandonada?”;
“Memórias de Senhoras”; “Um resgate das memórias do interior do município de Rio Grande: Localidade do
Arraial... Família Figueiredo”; “Olímpio Cabral Barenho: Fotografia – Memória de uma vida”; “Ilha dos Mari-
nheiros: memórias e histórias da jurupiga”; “Rheingantz: Memórias afetivas de trabalhadores na fábrica”; “Proje-
to Raízes Africanas: A Mãe África em Rio Grande”; “Na onda das memórias: 120 anos de Praia do Cassino”.
No curso noturno foram realizadas as seguintes pesquisas: “Memórias sobre trilhos”; “Memórias de Nortenses
e Rio-grandinos Unidos pelo Mar”; “As pessoas passam, as lembranças ficam: estudo sobre memórias do I. E. E.
‘Juvenal Miller’”; “Águia Branca: Centenário de memórias rio-grandinas”; “Trajetória do Mercado Municipal do
Rio Grande: um olhar focado em memórias”; “Hospital Santa Casa do Rio Grande”; “Memórias das Funcionarias
do Asilo de Pobres de Rio Grande”; “A história de um alfaiate que marcou a cidade de Rio Grande segundo a
memória afetiva de sua filha”; “Lâminas, tesouras e conversas: memórias de um barbeiro rio-grandino”; “Érico
Gobbi: a constituição de um escultor rio-grandino”.
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As figuras abaixo apontam incidências das temáticas:
Figura 1 – Gráfico sobre os grandes temas pesquisados no ano de 2009
Temas 2009
história de vida crianças
turismo/
lazer
patrimônio/
cultura
Figura 2 - Gráfico sobre os grandes temas investigados no ano de 2010
Temas 2010
trabalho
idosos
história de
vida
patrimônio/
cultura
turismo/lazer
Um dos aspectos importantes no âmbito da docência relacionou-se às parcerias
estabelecidas no decorrer do projeto. O diálogo mais permanente, que perdurou nos
dois anos letivos, ocorreu com o prof. Solismar Fraga Martins, do Instituto de Ci-
ências Humanas e da Informação (ICHI), um dos titulares da disciplina “Ensino do
Município de Rio Grande”, no curso de licenciatura em Geografia. Em 2009, conse-
guimos, inclusive, que as turmas tivessem momentos de intercâmbios e socialização
de suas respectivas produções acadêmicas. Além de saída de campo, houve encon-
tros, nos quais, discentes de Geografia apresentaram os conceitos fundamentais da
área, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as estudantes de Peda-
gogia compartilharam seus projetos investigativos.
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Ocorreram, também, participações de colegas da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), durante os “Seminários de Extensão Memórias, Lugares e a Cidade”:
profª Cláudia da Silva Cousin e profª Virgínia M. Machado, do Instituto de Educação
(IE), prof. Daniel Porciúncula Prado e profª Carmem Gessilda Burgert Schiavon, do
Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI), além dos colegas professores
Carmo Thum e Ivone Regina Martins que, juntamente comigo, compõem o “Núcleo
de Extensão e Pesquisa Educação e Memória” (Educamemória).
Os intercâmbios com colegas foram fundamentais para a concretização do pro-
jeto gerando movimentos nas docências, viabilizando ricas experiências coletivas e
proporcionando que a produção de cada professor fosse (re)conhecida pelos parcei-
ros.
Ao final dos dois anos letivos, o produto das investigações foi socializado atra-
vés dos seminários de extensão citados. Esses tiveram a adesão de 300 pessoas entre
estudantes de graduação e pós-graduação, professores da universidade e escolas rio-
grandinas. Os Seminários oportunizaram, além dos relatos de pesquisas, mostras de
cinema, conferências, minicursos e performances artístico-culturais.
As figuras abaixo apresentam os cartazes do evento, elaborados por estudantes
das turmas em questão.
Figura 3 – Cartaz 2009
Fonte: Criação de Bruno Wally – Geografia.
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Figura 4 – Cartaz 2010
Fonte: Criação de Max Daniel S. da Silveira – Pedagogia.
No segundo ano, paralelo ao Seminário de extensão, ocorreu a “I mostra O
lugar da memória na escola”, organizada pela colega, professora Simone Anadon, que
contou com apoio da Coordenadoria Regional de Educação e da Secretaria Munici-
pal de Educação e Cultura de Rio Grande, viabilizadores do acesso aos acervos das
escolas.
As Figuras abaixo contêm dois desses artefatos de escolas públicas rio-grandinas.
Figura 5 – Planetário – E. E. Lemos Júnior – I Mostra O lugar da memória na escola
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Figura 6 – Máquina de calcular – E. E. Mascarenhas de Moraes I Mostra O lugar da memória na escola
O envolvimento de colegas professores, estudantes de graduação e pós-gra-
duação, bolsistas, além das referidas turmas, ao longo do processo de investigação,
produção e realização do seminário, levou-me a perceber que uma rede de conhe-
cimentos11 havia sido construída, refletindo uma experiência atravessada por afetos,
imaginários, esforços, compromissos e muitas, muitas descobertas.
Tomando-os como parte importante de um projeto formativo, desejei investi-
gar alguns de seus prováveis desdobramentos e contribuir com a produção do conhe-
cimento sobre formação de professores na universidade.
Desse modo, a pesquisa teve como um de seus objetivos “refletir sobre catego-
rias formativas contidas no (desdobramento do) processo educativo de memórias,
lugares e a cidade”. E, nessa direção, desejo aqui registrar algumas das análises asso-
ciadas a dois dos problemas da pesquisa realizada:
Quando os estudantes perceberam que aprenderam?
Que aprendizagens foram destacadas pelos estudantes?
Para tanto, busquei na pesquisa qualitativa e na abordagem autobiográfica, ele-
mentos teórico-metodológicos que dessem suporte às apreciações. A expressão de
trajetórias de vida permitiu reflexões sobre percursos que envolvem aspectos sociais
e individuais, deslindando emaranhados que constituem nossas vidas tão diversas da
11 “Rede de conhecimento: trata-se de uma malha cognitiva, tecida a partir da interatividade entre os participantes
cujos elos motivacionais são alimentados pela identidade comum (nós). Sem perder a preciosidade das informa-
ções originais, no entanto, transcendendo-as em um processo auto-organizativo de novas idéias e perspectivas”.
(MOROSINI, 2006, p. 379)
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– aparente – assepsia que rege discursos construídos sob o escudo da racionalidade
técnico-científica.
Caderno da docente, registro de relatos dos seminários de extensão, relatórios
de pesquisa dos estudantes e autoavaliações constituíram-se nas principais fontes
deste estudo em particular.
Desejo destacar a riqueza testemunhal contida nos relatórios de pesquisa, pro-
duzidos pelos grupos que realizaram as investigações. Além do desafio inerente ao
ato de escrever um documento investido de aura acadêmica e científica, associado a
normas e formatos difíceis a turmas do segundo ano de graduação, também foi um
exercício de coletivo, de expressão de um pensamento-síntese, entretanto, que con-
templasse as ideias plurais que permearam o processo investigativo.
Acordos, flexibilizações, tensões e diálogos foram produzidos na medida em
que cada pesquisa foi desenvolvida por grupos de discentes, com seus diferentes mo-
dos de pensar, agir, expressar-se. As negociações envolveram desde a escolha do tema
a ser pesquisado, as fontes a serem buscadas, a divisão de tarefas, a escolha da meto-
dologia, as leituras e aportes teóricos, análises dos materiais e, por fim, a elaboração
do relatório e a sua socialização em seminário de extensão.
Portanto, a jovens estudantes, na grande maioria, tratou-se de um desafio exis-
tencial, no qual cada um/a testou limites e capacidades tramadas, entretanto, no co-
letivo da sala de aula e nos percursos da cidade.
Esses materiais, tão fartos e complexos, cruzaram com as minhas memórias
cujos suportes principais foram dados por fotografias, fôlderes, cartazes, atas de reu-
niões etc., além de ecos de muitos risos (e algumas lágrimas), colhidos nos encontros
das salas de aulas, corredores, paradas de ônibus, cafés e outros espaços que expres-
saram a concretude de nossas humanidades e compuseram a territorialidade12 do
projeto, para além da sala de aula em sua configuração cartesiana.
Em relação ao primeiro problema – Quando os estudantes perceberam que
aprenderam? – destaquei quatro categorias:
Os estudantes reconhecem que aprenderam quando: atribuem beleza ao pro-
cesso e ao produto, retiram lições da própria vida, refletem narrativas como expres-
sões de conhecimentos, envolvem-se na investigação.
a) Atribuem beleza ao processo e ao produto
Alguns estudantes se reportaram a um tipo de envolvimento como sendo o
centro da aprendizagem, em boa parte relacionada a uma estesia, a uma nova ma-
12 A territorialidade aqui considerada está associada ao empoderamento produzido em cada um(a), ao longo do
processo e os espaços onde se expressaram.
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neira de perceber e sentir. Apresentam uma maneira nova de relacionar-se com o
conhecimento.
Segundo Hermann (2010, p. 34)
A visibilidade de determinados problemas da condição humana
só se tornam possível pela abertura do jogo da aparência que
a experiência estética proporciona, naquilo que é percebido no
acontecimento do mundo, num momento único de seu aconte-
cer. Nessa perspectiva, a experiência estética se dá no relaciona-
mento entre o sujeito e o objeto estético, e isso implica compre-
ender que o sujeito se transforma nessa experiência.
Compreendem que aprenderam porque perceberam que se transformaram na
experiência. É o que deduzo deste depoimento:
Descobrimos que as memórias têm cor, têm som e têm sabor e podem ter “vida própria”.
Acabam fugindo do nosso controle, porque são impregnadas de emoção, e emoção é sempre
imprevisível, por isso charmosas e estimulantes. Estudamos muito, lemos muito, pensa-
mos muito, analisamos e dedicamos muito tempo para este trabalho [...]. Este é o nosso
trabalho, um trabalho de equipe. Acredito que, com a orientação da professora, somada a
humildade daqueles que desejam aprender, chegamos a um resultado que nos fez olhar o
que fizemos e achar bonito o que foi feito. Esta é uma sensação muito boa, é o que gostaria
de sentir sempre: achar bonito e amar o resultado. (MS; autoavaliação, diurno, 2010)
Achar belo o que produziu remete-me à experiência estética apresentada por
Hermann, produzida na relação entre “sujeito e objeto estético” que, neste caso, cons-
titui a própria cidade e seus citadinos. Houve uma transformação – percebida e aco-
lhida – que permitiu revelações, mesmo quando o objeto parecia próximo e familiar
ao estudante. Ao descobrir que as memórias têm “vida própria” e, por isso, podem
fugir ao controle, admite-se que aprender faz parte de uma aventura, na qual o ines-
perado é um elemento a ser festejado ao invés de temido. A estudante, ao olhar o
percurso percorrido, sente prazer por tê-lo feito e reconhece no “trabalho de equipe”
parte constitutiva da beleza do trabalho construído.
b) Retiram lições da própria vida
Tem se constituído um dos desafios da docência ajudar os estudantes a consi-
derarem o próprio percurso e história de vida como conhecimento válido. Conforme
já prognosticou Sousa Santos (2007), essa é parte de uma história construída a partir
da validação de conhecimentos produzidos externamente a si e ao local. Em nome
de aprendizagens e de currículos escolares, por exemplo, muito saber familiar e ge-
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racional tem sido descartado. Aprender sobre o diferente, mas também o inerente a
nossa cultura é fundamental, o mesmo vale sobre a valorização de conhecimentos
amparados em epistemologias plurais, como as “epistemologias sujas” (ESCOBAR,
2004) baseadas na experiência e no lugar.
Ao reconhecê-las como lições, os estudantes indicam movimentos epistemoló-
gicos e de produção de si:
[...] Por que não se deixar levar pela vida? Um passo de cada vez e experimentar sem medo
de errar? Em caso de erro fazer de novo ou tentar novamente? É o que justifica a serenida-
de do entrevistado. [...] Não obstante obtive uma lição de vida que não consta em livros ou
conceitos, mas na própria vida, na vivência que, por sua vez, não há como quantificá-la,
pois não expressa todos os valores produzidos. (MS; noturno, relatório de pesquisa, 2010)
[...] nos retrata um Rio Grande que nós só podemos imaginar e ver através de algumas fo-
tografias que registraram esta história que ele guarda não só na memória, mas registrada
em fotos e documentos com muitas décadas de existência, nos possibilitando saber através
de suas memórias como era nosso município, há mais de cinco décadas atrás, em alguns
aspectos sociais e culturais. [...] O trabalho aqui realizado nos instiga a querer saber um
pouco sobre a história de nossas vidas, sobre nossos bisavós, avós, pais, quais deles viveram
uma história semelhante a de seu O... que, aos oitenta e sete anos, com quatro filhos, avô
carinhoso, contribui para o enriquecimento de nossa sociedade. (CB; SN; SL; AD, diurno,
relatório de pesquisa, 2010)
O reconhecimento da validade das histórias de vida parentais e de suas me-
mórias como pistas importantes sobre a história do município são elementos de
aprendizagens e viradas epistemológicas, pois abrigam experiências outras do que as
disseminadas por mídias distintas como livros didáticos, filmes, televisão etc. cujos
relatos escamoteiam a vida cotidiana e seus sujeitos. Em geral, ao não serem vistos
como sujeitos históricos nesses documentos, acabam não se reconhecendo como tal.
c) Refletem narrativas como expressões de conhecimentos
Certeau (1998) destaca o que denomina de “retórica da caminhada”, reportan-
do-se às leituras e escritas produzidas a partir de deslocamentos na cidade. Com-
preende o autor que essas leituras e escritas evidenciam narrativas – explicações –
produzidas pelo caminhante/leitor/escritor que anda/lê/escreve a cidade a partir de
seus percursos. É como se os passos e logradouros sancionassem uma “língua espa-
cial” (idem) bem própria do caminhante e seus caminhos. Essas narrativas, portanto,
constituem aprendizagens vivas e dinâmicas feitas sob o céu da cidade.
Relatam os estudantes:
Perguntamos como ele conseguiu manter-se até os dias de hoje no Mercado que perdeu
seu brilho do passado. Ele nos revelou que teve que se adaptar para reduzir os custos das
310 | Vânia Alves Martins Chaigar
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mercadorias. Mostrou-nos uma caixa de sapato e disse: “Aqui nesta caixa de sapato tenho
o controle de toda minha loja”. E foi assim que ele conseguiu manter preços competitivos.
Ele, na realidade, caminhou contra a modernidade dos cartões de crédito, negociando dire-
to com o cliente. Sem os intermediários, ele consegue manter um bom preço. Sua freguesia
é assídua, pois em sua maioria é de antigos compradores ou de outros indicados por estes.
(AM; MF; noturno, relatório de pesquisa, 2010)
Ao interagirem com sujeitos do local e seus conhecimentos particulares, se des-
fez um dos mitos da modernidade, a de que todos comungam de um único tempo
amalgamado aos seus valores hegemônicos, como a ideia contemporânea da tecnolo-
gia como sinônimo de inovação e de consumismo como sinônimo de inclusão social.
O velho comerciante sobreviveu às crises econômicas globais, utilizando uma
caixa de sapatos, ignorando aparatos tecnológicos que, a ele, significariam apenas
mais custos.
Essa lição contábil e existencialista não ocorreu nos bancos da universidade:
ela estava à espreita, no velho casarão que abriga o Mercado Público da cidade de Rio
Grande, capturada pelos estudantes em seu mergulho pela cidade.
Cabe considerar no exemplo, também outra dimensão da narrativa, aquela ex-
plicitada pela linguagem oral (ou escrita) produzidas nas interlocuções entre/com
sujeitos. Essa revela a estatura de nossas humanidades, a expressão da criação e in-
venção daquilo que nos revela como tal, posto que, por seu intermédio, comparti-
lhamos a experiência acontecimento (LARROSA, 2002) capaz de nos reposicionar
perante o mundo. Esta narrativa mediadora da memória promove os alicerces que
transformam a experiência em conhecimento.
d) Envolvem-se na investigação
O envolvimento afetivo-cognitivo-emocional, ou seja, do sujeito inteiro e não
pela metade, como diz a canção,13 é, senão uma condição, um importante compo-
nente da aprendizagem. Segundo Charlot (2001), todo saber/aprender ocorre numa
relação: com o próprio sujeito, com o outro e com o mundo. O autor sublinha que,
na perspectiva de uma antropologia filosófica, “aprender é um movimento interior
que não pode existir sem o exterior reciprocamente, ensinar (ou formar) é uma ação
que tem origem fora do sujeito, mas só pode ter êxito se encontrar (ou produzir) um
movimento interior do sujeito” (2001, p. 26).
13 Comida. Canção de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto. In: Titãs. Jesus não tem dentes no país dos
banguelas, 1987 (CD).
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A dupla condição, apresentada sobre o ato de aprender, necessita de um ensi-
nar (ato externo), mas simultaneamente, de um desejo do sujeito (ato interno), que
ocorre no e com o mundo.
O depoimento da estudante corrobora para esse entendimento.
No começo, sentia-me perdida, sem saber exatamente como realizaríamos nosso trabalho;
com o passar do tempo e as entrevistas com as pessoas que se disponibilizaram a nos aju-
dar em nossa pesquisa, fui ficando cada dia mais envolvida, foi um prazer muito grande
participar desse projeto. E mais do que o prazer no desenvolvimento do nosso trabalho em
particular, foi muito gratificante quando nossos colegas apresentaram os seus respectivos
trabalhos, cada um voltado para um determinado assunto: Lojas Rheingantz que minha
mãe trabalhou desde os seus 13 anos de idade, do Cassino, da Escola Lemos Júnior e tantos
outros, cada um com suas próprias especificidades. Não tenho palavras para dizer o quan-
to foi significativo para mim esse trabalho. (ER; diurno, autoavaliação, 2010)
À medida que os estudantes foram se envolvendo com as pessoas e o lugar,
mobilizaram habilidades e sentimentos que, por sua vez, geraram movimentos em
direção a novas aprendizagens. Reparo que esse envolvimento abrangeu uma dimen-
são particular e outra coletiva, conforme o excerto anterior explicita. Subjetividade e
intersubjetividade interagindo, significando e dando a conotação de conhecimento
às informações e fatos antes dispersos face à cidade “que se repete em sua trivialida-
de”. (PAIS, 2009)
As memórias em diálogo, por sua vez, auxiliaram na qualificação das aprendi-
zagens, pois segundo o depoimento acima, os estudantes viram-se, reconheceram-se
nas memórias evidenciadas por colegas de outros grupos, delas extraindo a seiva para
novas rememorações.
Em relação ao segundo problema apresentado – Que aprendizagens foram
destacadas pelos estudantes? – também apartei quatro categorias, que embora as-
sociadas entre si, aqui se encontram separadas apenas com fins didáticos. São elas:
melhoria da autoimagem, sentimentos de pertencimento, valorização da escala local,
descobertas pela partilha (saberes, sentimentos, surpresas).
e) Melhoria da autoimagem
Conforme já pode ser visibilizado em alguns depoimentos anteriores, na me-
dida em que se reconhecem como sujeitos e observam o valor da história de vida
parental na produção da história coletiva, vão traçando novos desenhos sobre si. Tra-
ta-se de um caminhar para si e com o outro. (JOSSO, 2004) Durante uma das aulas,
uma estudante refletiu em voz alta: “Agora eu entendi o que é o tal sujeito histórico!”
(como lembro). Devo dizer que esses momentos de aprendizagens explícitas – quase
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epifanias – deixam marcas importantes e dão pistas sobre encaminhamentos didáti-
cos e metodológicos.
Esta estudante avaliou que:
Achei a ideia deste projeto ótima, até mesmo tentei resgatar histórias dentro de minha
família que me fizeram bem e me aproximou de pessoas que antes eu tinha pouco contato.
[...] Em relação ao tema escolhido para minha pesquisa foi prazeroso e tive muito apoio
dos colegas, quando estava coletando os dados. Permito-me dizer que aprendi bastante
sobre a instituição que trabalho, através de fotos antigas e detalhes que eu não tinha co-
nhecimento, me senti orgulhosa por fazer parte daquele lugar, de poder cooperar para o
crescimento do mesmo. (LH, diurno, autoavaliação, 2010)
Sentir-se parte de um projeto, aproximar-se das pessoas como familiares ou
colegas de trabalho, descobrir que a colaboração é possível – e prazerosa – confluem
para melhorar autoestimas e aprofundar sentimentos de pertencimento.
Não é possível desconsiderar o fato de que os estudantes muito pouco se veem
nas mídias escolares, como livros didáticos, literatura, filmes etc. No 3º ano do ensino
fundamental, cidade e município constam nos programas de boa parte das escolas,
posteriormente, mesmo no ensino médio, o local é praticamente inexistente, assim
como suas paisagens, sujeitos, culturas.
As mídias produzidas em outros espaços geográficos apresentam ideias gene-
ralizantes sobre a produção da cidade, ou seja, há poucas referências sobre a partici-
pação dos sujeitos nativos nas geografias e histórias locais. Essa ausência, associada a
alguns itens de programas como “vultos” históricos do município (nos anos iniciais),
figuras proeminentes, dificultam, senão impedem, que na instituição escola, ao me-
nos, os estudantes se percebam sujeitos cujos processos particulares estão articulados
aos coletivos – e são dotados de valor.
f) Sentimentos de pertencimento
Absolutamente entremeado às demais categorias, esse sentimento também está
associado ao reconhecimento pelo estudante da sua inserção no lugar. Esta impor-
tante categoria geográfica desempenha papel agregador, posto que signifique exis-
tências produzidas no mesmo tempo-espaço, enlaçadas por sentimentos e emoções
semelhantes. Para Santos (2008, p. 322), é no lugar que o mundo acontece:
No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pes-
soas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da
vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a
vida social se individualiza; e porque a contigüidade é criadora
de comunhão, a política se territorializa, com o confronto en-
Aprendizagens e itinerários juvenis | 313
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tre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma
referência pragmática ao mundo do qual lhe vêm solicitações e
ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o tea-
tro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da
ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espon-
taneidade e da criatividade.
Nesse cotidiano compartido, uma vez ressignificado, percebido em suas dimen-
sões relacionais e espaço-temporais, podem decorrer sentimentos de pertencimento.
Nesta autoavaliação, o estudante ponderou que:
A oportunidade de participar neste projeto propiciou-me perceber dentro de uma rede de
relações sociais, as quais amizades, descobertas e experiências únicas constituem a força
da amizade e de um mesmo sonho/ideal. Nestas experiências, tornei-me mais humano,
pois me instigou um contato que perpassa a mera pesquisa, desse modo, caracterizando-a
como uma vivência e troca de saberes, pois ambos, pesquisador e entrevistado, são pessoas,
pessoas estas, carregadas/ricas de histórias e memórias que constituem a personalidade e
que, por sua vez, personalizam o lugar. (MS; noturno; autoavaliação, 2010)
O discente percebeu-se dentro de uma rede de relações sociais, com lastros
comuns afetivos e experienciais, daí a sensação da pesquisa ter sido mais do que
uma atividade acadêmica, mas uma vivência que o tornou “mais humano”, conforme
depôs.
Essas aprendizagens, por certo, não são fáceis de serem capturadas, nem serem
dimensionadas por critérios e instrumentos de avaliação. Representam a face oculta
do processo mensurável, e sua percepção está relacionada a metodologias autobio-
gráficas e às formas de expressão delas emanadas, boa parte das vezes, através de rela-
tos orais e/ou escritos nos quais os estudantes dão seus testemunhos: autoavaliações,
e-mails, relatórios etc.
Nesse sentido, requerem muita escuta e cuidado da parte do professor pes-
quisador, daí a atenção (e registro) permanente a reações, expressões, confidências.
Pequenas pistas aos nossos olhos que, entretanto, podem estar a indicar modificações
nos modos de ser dos discentes.
g) Valorização da escala local
A aprendizagem expressa pela valorização da escala local representa a supera-
ção de um paradigma em que o local é uma escala desimportante frente ao global.
Conforme já foi explicitado anteriormente e amparado em Sousa Santos (2007), tra-
ta-se de uma construção histórica difícil de ser superada, pois há a necessidade de
suplantar um paradigma. Não é raro, sobretudo no início dos trabalhos, os discentes
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sentirem dificuldades em acolher as investigações que tomam a própria cidade como
objeto de estudo. Por vezes, associam o precioso patrimônio histórico (material e
imaterial) rio-grandino à “coisa velha”.
Recentemente, o geógrafo Porto Gonçalves (2012) atribuiu à base deste pensar
que nega o passado ou com facilidade o descarta, ao fato das sociedades ocidentais
terem se constituído frente ao Oriente e, daí, a necessidade em negar tudo o que já
passou, não reconhecer a importância de outras culturas na própria formação. Então,
diz o autor, “foge para frente porque não pode olhar para trás”.14
Numa contraposição a esta atitude histórica, dizem as estudantes em suas con-
siderações sobre a pesquisa:
Foi extremamente prazeroso fazer este trabalho pela riqueza de informações encontradas
e, também, porque pudemos conhecer a história de um lugar tão frequentado e de tanta
importância hoje. Conhecemos histórias e acontecimentos que nunca havíamos imaginado
e, também, nos encantamos com a beleza desse lugar e o amor que seus moradores têm por
ele. (TB; LD; TP; LQ; diurno, relatório de pesquisa, 2010)
O trabalho do projeto memórias, a meu ver, foi o mais interessante e gostoso de fazer
dos trabalhados solicitados ao longo do ano. Percebo que o trabalho proporciona a nós,
enquanto estudantes e rio-grandinos, conhecer um pouco mais sobre a nossa cidade e, ao
mesmo tempo, descobrir coisas novas sobre a mesma. E, também, através do seminário
proposto ao final do ano é possível apresentar os dados coletados para um grupo maior e
mais extenso que vai além da sala de aula e, até, além da universidade, e que a comunida-
de pode ter acesso a esses dados. (SS; noturno, autoavaliação, 2010)
As descobertas, com sabor de “coisas novas”, são elementos da valorização do
local e propulsoras, provavelmente, de novas aprendizagens porquanto perguntas an-
tes não feitas, podem estar a perfazer repertórios discentes.
h) Descobertas pela partilha (saberes, sentimentos, surpresas)
Como síntese das aprendizagens decorridas do projeto de ensino com pesquisa
“Memórias, lugares e a cidade”, concebo as descobertas pela partilha, seja de saberes,
sentimentos e/ou de surpresas, aquelas em que, de fato, os estudantes precisaram
fazer grandes esforços e movimentos internos para aprender. Numa sociedade abso-
lutamente individualista cujos valores estão centrados na competição e no consumis-
mo, observar jovens incorporarem em seus cotidianos discentes lastros de alteridade,
constituiu uma preciosa revelação desta pesquisa.
14 PORTO GONÇALVES, C. W. Crise contemporânea, novos paradigmas, o saber ambiental. Conferência. V Con-
gresso Internacional Cotidiano: Diálogos sobre o diálogo. UFF. Niterói, RJ, 09/8/2012. (Anotações pessoais).
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Apesar do estudo restrito ao âmbito da discência e a processos formativos ins-
titucionalizados, que levam em conta os conhecimentos relativos a um projeto de
ensino com pesquisa e circunscritas a uma disciplina – Metodologia de ensino de
ciências sociais –, considero possível conferir corporeidade aos discursos e objeti-
vos acadêmicos, evitando anúncios idealistas ou pseudoemancipadores. Apostamos
os envolvidos, na força da polifonia de percursos nos quais professores, estudantes,
citadinos são percebidos como “praticantes” (CERTEAU, 1998) e, portanto, capazes
de produzir suas existências – sem desconsiderar os condicionantes do nosso tem-
po-espaço.
No mundo concreto da sala de aula, com suas gentes e idiossincrasias, a partici-
pação em projetos autobiográficos tem desafiado docentes e discentes a ver e verem-
se sob outras nuances. Ao escutar os colegas de turma, o anônimo na rua, o avô na
casa, o vendedor do mercado, o barbeiro na barbearia, os moradores do balneário,
os colegas de trabalho, os habitantes da ilha, entre tantos outros não citados com os
quais dialogaram, os discentes exercitaram suas humanidades num diálogo profícuo
com memórias e histórias de vida do lugar.
Constataram que há muitas aprendizagens à espreita, algumas caminhando
bem junto de si, prontas para serem encontradas à medida que perguntas e estranha-
mentos são produzidos sobre a aparente familiaridade do semblante da cidade.
Como pesquisadora, busquei estar atenta aos sinais emitidos pelos estudantes,
durante o processo investigativo e seus registros, sobretudo não desprezar o peque-
no como fenômeno do cotidiano, capaz de mover e alterar conceitos e atitudes. E,
no avesso do céu de Rio Grande, entre banhados, mar e laguna, compreendo essa
experiência educativa, fartamente desafiada pela memória, como um exercício de
cidadania e produção de alteridades.
Como síntese representativa do projeto, enunciada nas descobertas pelas parti-
lhas, deixo como registro (in)conclusivo os depoimentos de estudantes, protagonis-
tas – deveras – de seus percursos:
Entramos nesta “viagem”, indo ao encontro de memórias e assim compartilhamos com
estes sujeitos, “provamos” histórias que, muitas vezes, ninguém tivera a oportunidade de
ouvir e, com isso, construímos novas experiências. (BT; PR; diurno, relatório de pesquisa,
2010)
O envolvimento com o trabalho possibilitou, como descoberta maior, o fato de poder com-
partilhar diversas pesquisas. E, sendo elas da nossa cidade e com pessoas ou instituições
que eventualmente pensamos já conhecer, houve surpresas bem interessantes, pois não só
esclarecimentos novos surgiram, como também pudemos enxergar a nós mesmos e aos
nossos antepassados. Isso aflorou, sem dúvida alguma, emoções de todas as partes – a
que relatava, a que buscava e a que recebia a fala concebida através do rememorar. (GM;
diurno, autoavaliação, 2010)
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Referências
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução Ephraim Ferreira Alves. 3. ed.
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CHARLOT, Bernard. A noção de relação com o saber: bases de apoio teórico e fundamentos
antropológicos. In: CHARLOT, Bernard (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais.
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sociais e a transição paradigmática nas ciências. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.).
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Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 19. Jan./fev./mar./abr.
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MOROSINI, Marília C. (Ed.). Enciclopédia de pedagogia universitária. Porto Alegre: INEP/
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PAIS, José Machado. Um dia serei turista na minha cidade. Sociedade, urbanismo e políticas
culturais. Cidades - comunidades e territórios, Lisboa, n. 18, p. 29-40, 2009.
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Educação Geográfica.indd 317 02/03/16 11:43
PRESTES, Felipe. Brasileiros estão mais tolerantes com suspensão de direitos, diz pesquisa.
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mais-tolerantes-com-suspensao-de-direitos-aponta-pesquisa/>. Acesso em: 15 jun. 2012.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 2008.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A sociologia das ausências e a sociologia das emergências:
para uma ecologia dos saberes. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de. Renovar a teoria crítica
e reinventar a emancipação social. Tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007,
p. 17-49.
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SOBRE OS AUTORES
Alexandra Maria de Oliveira
[email protected] Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), professora do De-
partamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), trabalha nas áreas de
Geografia e ensino e Geografia agrária. Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET)
Geografia/UFC.
Antonio Carlos Pinheiro
[email protected] Doutor em Geociências pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pós-doutor
pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou na Escola Básica em Campinas, São Paulo,
na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), na Universidade Federal
de Goiás (UFG) e na UNIFESP campus Guarulhos. Professor do Departamento de Geociên-
cias e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba e
membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Geográfica (GEPEG/UFPB).
Bárbara Maria Macedo Mendes
[email protected] Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), mestre e doutora em
Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisadora e professora adjunta do
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção (mestrado e doutorado), do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do
Piauí. Atualmente, desenvolve pesquisa na área de formação de professores (inicial e continu-
ada), atuando principalmente na investigação da aprendizagem docente, prática pedagógica
e estágio supervisionado.
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Cláudia da Silva Cousin
[email protected] Doutora em Educação ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Tra-
balhou na Escola Básica em Rio Grande (RS) e, atualmente, é professora do Programa de
Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA/FURG) e do curso de licenciatura em Ge-
ografia (FURG), onde desenvolve pesquisa sobre formação de professores e Educação am-
biental. Coordenadora do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid),
subprojeto Geografia licenciatura. Membro do Grupo de Pesquisa Comunidades aprendentes
em Educação ambiental, Ciências e Matemática.
Elizeu Clementino de Souza
[email protected] Pesquisador 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da
Bahia (FACED/UFBA). Pós-doutor pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (FEUSP). Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contem-
poraneidade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e líder do Grupo de
Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO). Presidente da Associação
Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph). Pesquisador associado do Laborató-
rio EXPERICE/Paris 8 e Paris 13. Secretário geral da Associação Nacional de Pós-Gradua-
ção e Pesquisa em Educação (ANPEd) (gestão 2010/2013) e diretor financeiro da ANPEd
(2013/2015).
Flaviana Gasparotti Nunes
[email protected] Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Presidente Pru-
dente (2004). Realizou estágio de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ge-
ografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2011). Professora dos cursos de gra-
duação e pós-graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Realiza pesquisas e orienta trabalhos na área de ensino de Geografia e formação de professores.
Líder do Grupo de Pesquisa (Geo)grafias, linguagens e percursos educativos e membro da rede
de grupos de pesquisa “Imagens, Geografias e Educação”. Desde 2009 coordena o subprojeto de
Geografia do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) na UFGD.
Francisco das Chagas Rodrigues da Silva
[email protected] Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), mestre em Educação
pela Universidade Federal do Piauí e doutorando em Educação pela Universidade de São
320
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Paulo. Tem experiência técnico-administrativa em Educação e docente na educação básica
e superior. Dedica-se a estudos nas áreas de ensino de Geografia e formação de professores,
com ênfase em currículo, aprendizagem da docência e pesquisa autobiográfica/narrativa.
Hanilton Ribeiro de Souza
[email protected] Mestre em cultura, memória e desenvolvimento regional, especialista em desenvolvimento
regional sustentável, licenciado em Geografia, professor assistente de prática de ensino e está-
gio supervisionado em Geografia do curso de licenciatura em Geografia da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), campus V, Santo Antônio de Jesus. Membro do Grupo de Pesquisa
As Cidades e o Urbano (UNEB, campus V). Professor de Geografia do ensino médio no Co-
légio Estadual Polivalente de Castro Alves, pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia
(SEC/BA).
Jussara Fraga Portugal
[email protected] Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus XI, Serrinha. Licen-
ciada em Geografia. Especialista em supervisão escolar e em avaliação. Mestre e doutora pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) da UNEB. Re-
alizou estágio de doutorado-sanduíche na Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (FEUSP). Líder do Grupo de Pesquisa Geo(BIO)grafar: Geografia, diversas linguagens
e narrativas de professores. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e
História Oral GRAFHO/PPGEduC/UNEB. Coordena o subprojeto de Geografia “Formação
docente e Geografia Escolar: das práticas e saberes espaciais à construção do conhecimento
geográfico”, do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) na UNEB,
campus XI. Sócia efetiva e secretária adjunta da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)bio-
gráfica (BIOgraph).
Lana de Souza Cavalcanti
[email protected] Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Doutora em Geografia humana
pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em Madrid, Espanha. Professora asso-
ciada do curso de Geografia, graduação e pós-graduação, da Universidade Federal de Goiás
(UFG). Coordenadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Geografia do Instituto de
Estudos Socioambientais da UFG.
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Mariana Martins de Meireles
[email protected] Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB/Campus Amargosa). Li-
cenciada em Geografia, mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
e Contemporaneidade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Foi coor-
denadora de programas da Secretaria Municipal de Educação de Tucano, Bahia (SEDUC).
Membro do Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, formação e história oral (GRAFHO/PPGE-
duC/UNEB) e do Grupo de Pesquisa Geo(BIO)grafar: Geografia, diversas linguagens e narra-
tivas. Sócia efetiva da Associação Brasileira de Pesquisa Autobiográfica (BIOgraph).
Marisa Terezinha Rosa Valladares
[email protected] Licenciada em Geografia. Mestre e doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE-UFES). Professora adjunta,
aposentada na UFES pelo Centro de Educação e, atualmente, professora na Universidade
Federal Fluminense (UFF), em Campos de Goytacazes (RJ). Professora pesquisadora da Co-
ordenação de Apoio ao pessoal de Nível Superior e do Conselho Nacional de Pesquisa (Capes/
CNPq) nos grupos Currículo, cultura e redes de conhecimento, formação de professores e
práticas pedagógicas, Grupo de Estudos em Geografia da Infância (Grupegi) e Grupo de Pes-
quisa Imagens, Geografias e Educação. Atua na formação de professores.
Rita de Cássia Barreto Sá
[email protected] Licenciada em Geografia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus V, Santo
Antônio de Jesus, professora de Geografia do ensino médio no Colégio Estadual Polivalente
de Castro Alves. Certificada pelo Programa de Capacitação para Gestores Escolares (Proges-
tão), da SEC (Secretaria da Educação do Estado da Bahia).
Simone Santos de Oliveira
[email protected] Licenciada em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Especialis-
ta em metodologia do ensino de Geografia. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em De-
senho, Cultura e Interatividade (PPGDCI/UEFS). Doutoranda no Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação e contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/
UNEB). Professora assistente da (UNEB), campus XI. Tem experiência em ensino e gestão na
área de educação básica. Desenvolve trabalhos no contexto da formação inicial e continuada
de professores, atuando principalmente nos seguintes temas: prática de ensino de Geografia,
estágio supervisionado, fundamentos teóricos metodológicos para o ensino de Geografia nos
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anos iniciais, histórias de vida, narrativas de formação e abordagem autobiográfica. Atua tam-
bém como professora formadora no curso de pós-graduação em docência do ensino superior,
ministrando os componentes curriculares: Metodologia do ensino superior e Metodologia da
pesquisa científica. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Geo(BIO)grafar: Geografia, diversas
linguagens e narrativas. É membro dos grupos de pesquisa (Auto)biografia, formação e his-
tória oral (GRAFHO/PPGEduC/UNEB) e do Grupo Estudos Interdisciplinares em Desenho
(PPGDCI/UEFS). Coordena o subprojeto de “Geografia Formação docente e Geografia Esco-
lar: das práticas e saberes espaciais à construção do conhecimento geográfico”, do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) na UNEB, campus XI.
Solange Lucas Ribeiro
[email protected] Graduada em Geografia (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Especialista em metodologia do ensino superior e mestre em Educação especial pelo
Centro de Referência Latino-Americano para a Educação Especial, em Cuba, e pela Universi-
dade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Doutora em Educação pela Universidad Del Mar,
no Chile. Professora assistente do Departamento de Educação da UEFS. Atua na graduação
nos cursos de Geografia e Pedagogia e na pós-graduação em Educação especial. É membro do
Núcleo de Formação de Professores (Nufop) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação
especial (Gepee), da UEFS. Investiga as áreas de formação de professores, ensino de Geogra-
fia, cartografia tátil e Educação especial.
Sonia Maria Vanzella Castellar
[email protected] Professora livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia humana e da Fa-
culdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência na área de
formação de professores, Educação geográfica, cartografia escolar, didática da Geografia,
educação em espaços formais e não formais de aprendizagem, atuando principalmente
nos seguintes temas: ensino de Geografia, nas séries iniciais, ensino fundamental, for-
mação de professores e Geografia em espaços não formais. É autora de vários artigos
sobre formação de professores e didática da Geografia, além de livros didáticos. Coor-
dena o Grupo de Pesquisa Educação e Didática da Geografia: práticas interdisciplinares,
e faz parte do Grupo de Pesquisa Cidades e práticas espaciais: diferentes dinâmicas em
metrópoles brasileiras nacionais e regionais, ambos vinculados ao Conselho Nacional
de Pesquisa (CNPq). É coordenadora do Grupo de Pesquisa Rede Latino-Americana de
Investigadores em Didática da Geografia (Redladgeo), reunindo pesquisadores do Brasil
e do exterior.
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Vânia Alves Martins Chaigar
[email protected] Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Li-
cenciada em Geografia, mestre em educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel),
doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Possui pós-
doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/
RS). Pesquisadora da área de formação de professores. Membro do Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da FURG, do Núcleo de Extensão e Pesquisa Educação e Memória (Educa-
memória/FURG/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Ensino, formação de professores e avaliação,
da UNISINOS/CNPq.
Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
[email protected] Possui graduação em Geografia e doutorado em Educação. Atualmente, é professor no De-
partamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte e pesquisador do Laboratório de
Estudos Audiovisuais OLHO, ambos da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Pesquisa na interface entre imagens e Educação em suas conexões com
as geografias que dela se desdobram: se descobrem, se criam. Tem artigos publicados em que
vídeos, filmes, fotografias e mapas se misturam a conceitos e autores em escritos que visam
aproximações da educação visual contemporânea e(m) suas políticas e poéticas que afetam o
pensamento espacial, tais como “Vídeos, resistências e geografias menores”, na Revista Terra
Livre, “Fotografias dizem do (nosso) mundo”, pela Editora Mediação, “A educação visual dos
mapas”, na Revista Geográfica de América Central. Foi o organizador dos dossiês “A educação
pelas imagens e suas geografias”, da Revista Pro-posições e “Paisagens inundadas: experimen-
tações escolares e(m) imagens”, da Revista Brasileira de Educação em Geografia. Atualmente,
coordena a rede-projeto Imagens, Geografias e Educação.
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Colofão
Formato 17 x 24 cm
Tipologia Minion Pro / ITC Officina Sans Std
Papel Alcalino 75g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 300 g/m2 (capa)
Impressão EDUFBA
Capa e Acabamento Cartograf
Tiragem 300 exemplares
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Jussara Fraga Portugal Educação geográfica: memórias, histórias de
vida e narrativas docentes repercute trajetórias
Professora Adjunta da Universidade do Estado da
de professores/as pesquisadores/as no ensino
Bahia (UNEB), Campus XI / Serrinha. Licenciada e na formação. Essas trajetórias estão sendo
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA
em Geografia. Especialista em Supervisão Escolar configuradas em diferentes regiões e recantos do
e em Avaliação. Mestre e doutora em Educação país, sejam no campo ou na cidade.
e Contemporaneidade (PPGEduC / UNEB). Os trabalhos apresentam matizes e peculiaridades
próprias de cada percurso, encharcados de
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA
Realizou estágio de doutorado sanduíche na
autenticidade, rigor, profissionalidade e também de
Faculdade de Educação da Universidade de
memórias, histórias de vida e narrativas docentes
muita “gentificação”, como diria Paulo Freire, sobre
São Paulo (FEUSP). Desenvolve trabalhos no a compreensão de nosso inacabamento. Cada qual
contexto da formação – inicial e continuada – de a sua maneira expressa em sua narrativa modos
professores de Geografia, atuando principalmente de (vi)ver e conceber o mundo e a geografia,
sobretudo no que tange a ensinar/aprender/
Vânia Alves Martins Chaigar
nos seguintes temas: prática de ensino de
formar/formar-se seja na escola, na universidade
Jussara Fraga Portugal
Geografia, estágio supervisionado, diversas
ou noutros espaços-tempos de sociabilidades e
linguagens e ensino de Geografia, Histórias de vida
convivências.
e narrativas autobiográficas de professores. Líder
Organizadoras
A educação geográfica, nesse sentido, é
do Grupo de Pesquisa Geo(BIO)grafar: Geografia,
Jussara Fraga Portugal construída na intersecção entre a experiência, o
memórias, histórias de vida e narrativas docentes
diversas linguagens e narrativas de professores conhecimento e a sensibilidade e, também, pelo
e pesquisadora do Grupo de Pesquisa (Auto) Vânia Alves Martins Chaigar desejo de afirmação da existência – digna, plural,
democrática – como chave para qualquer processo
biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/ Organizadoras formativo e pressuposto de sociedade.
PPGEduC/UNEB). Sócia efetiva e secretária
O que é bonito de se ver é que a seu modo cada
adjunta da Associação Brasileira de Pesquisa um/a acolhe incertezas e instabilidades, típicas de
(Auto)biográfica (BIOgraph). um tempo de transições paradigmáticas, como
Vânia Alves Martins Chaigar
EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA mote para produzir e sugerir geografias, ou melhor,
bio-geo-grafias, como nos lembra Passeggi, em
seu prefácio. Pois que essas bio-geo-grafias sejam
inspiradoras para que cada professor/a e estudante
Professora do Instituto de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
memórias, histórias de vida e narrativas docentes de geografia deixem suas digitais impressas na
construção de um ensino que comporte saber-
Licenciada em Geografia e mestre em educação viver muitas e muitas geografias.
pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel);
Boa leitura!
doutora em educação pela Universidade do Vale
As organizadoras
do Rio dos Sinos (Unisinos). Possui pós-doutorado
em educação pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Pesquisadora
da área de formação de professores. Membro
do Programa de Pós-Graduação em Educação
da FURG, do Núcleo de Extensão e Pesquisa
Educação e Memória – EDUCAMEMÓRIA
(FURG/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Ensino,
Formação de Professores e Avaliação (Unisinos/
CNPq).
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