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Vários autores.
Outros organizadores: José Cirillo, Jovani
Dala, João V. Fernandes, Paula Guerra, Júlia
Mello, Jaqueline Torquatro.
Bibliografia.
ISBN 978-65-985995-0-8
25-247882 CDD-701.03
Índices para catálogo sistemático:
INTRODUÇÃO
5 Arte e sociedade: educação, identidade e inovações visuais no século XXI
José Cirillo
22 Do ‘Bairro é Nosso!’ às ‘Paredes das Maravilhas’: pesquisas baseadas nas artes, pedagogia
crítica e intervenção social
Sofia Souza; Tommaso Farina & Paula Guerra
DADOS BIOGRÁFICOS
140
Introdução
5
reconhecimento e a valorização do patrimônio cultural no Espírito Santo. Focado nas ações
do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) da UFES, o texto explora iniciativas
que conectam monumentos locais aos contextos históricos, geográficos e culturais da região,
buscando preservar a memória coletiva e fortalecer identidades regionais, democratizando o
acesso à arte pública, aproximando passado e presente.
Mulheres em monumentos: estratégias de visibilidade na esfera pública examina a
invisibilidade histórica das mulheres na arte pública, especialmente em monumentos, e como
a escassez de representações femininas reflete a desigualdade de gênero nas sociedades
contemporâneas. O artigo contribui para a discussão feminista sobre a representação pública,
abordando estratégias de visibilidade e questionando como os monumentos podem ser
reconfigurados para refletir uma sociedade mais inclusiva.
Ao explorar questões de memória, gênero e pertencimento, esta seção revela como a arte
pública desempenha um papel determinante na formação e ressignificação das identidades
culturais, desafiando desigualdades e reafirmando a relevância de narrativas mais inclusivas
no espaço social contemporâneo.
6
constante evolução. O capítulo destaca o papel da gravura contemporânea na extrapolação
das dimensões tradicionais, passando pela arquitetura e lugares públicos, interagindo e
transformando objetos cotidianos em trajetórias alinhadas à experimentação estética e à
inovação técnica.
Já HIPERMODERNIDADE: A aceleração simbólica e seus efeitos nas Artes, apresenta uma
análise da influência de recursos digitais, mídias sociais e inteligência artificial na produção
artística contemporânea, problematizando o papel desses elementos. O texto destaca
seu impacto na estética, na poética e na forma de comunicação das produções artísticas,
sugerindo que a busca por uma experiência imediata e superficial, atrelada à velocidade e
ao hedonismo, moldam tanto a arte quanto o pensamento coletivo de maneira desfavorável,
gerando urgência para repensarmos essas práticas.
Ao unir tradição e inovação, os textos desta seção reafirmam como a experimentação
artística amplia os limites da criação visual e se torna um campo fértil para o diálogo entre as
transformações tecnológicas e as narrativas sociais do mundo contemporâneo.
José Cirillo
7
PARTE I
Fabiana Pedroni
Resumo:
Este artigo analisa o processo de avaliação na disciplina de História da Arte Contemporânea
para cursos de graduação em Artes Plásticas e Visuais. A partir de uma proposta de atividade
avaliativa que entrecruza teoria e prática em três eixos processuais (texto, produção, crítica),
analisamos o uso de conceitos operatórios como deliberação e señalamiento, crítica de
processos e textos de artista como mecanismos potentes para abrir possibilidades de
atividades avaliativas baseadas em experiências de produção coletiva. Dentro de tal análise,
pensamos, também, as configurações dos papeis de docente e discente diante de paradigmas
próprios da arte contemporânea, os quais ressignificam as relações de agentes do sistema
das artes. Apresentamos, ainda, resultados da efetivação de atividade avaliativa em rede,
realizada com turmas de graduação do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito
Santo, no ano de 2018.
Palavras-chave:
Proposta educativa; Processo de criação; Processo de pesquisa; Arte Contemporânea.
Introdução
“O difícil não é ser artista, mas sim ser artista, professor, ter uma vida amorosa, pagar
as contas, cuidar da saúde, organizar a despensa, escrever projetos técnicos, participar das
reuniões de condomínio, visitar a família, construir uma família e amar tudo o que se faz”,
dizia um colega professor, uns dez anos atrás. Essa declaração possui vários sentidos e reflete
diversas experiências. Sem muito risco, podemos afirmar que tal declaração evidencia uma
contradição constante (e talvez necessária) nos processos de criação, pesquisa e ensino em
artes: a separação ou aproximação entre arte e cotidiano. Ao mesmo tempo em que o fazer e
pesquisar arte parecem apartados das obrigações e rotinas do dia a dia, é esse cotidiano que
abraça e alimenta o fazer e o pesquisar. O processo de criação como processo de pesquisa,
quando estendido sobre o cotidiano, nos permite trabalhar pela lógica do desdobramento (cf.
Pedroni; Hipólito, 2019, p. 313-314).
Neste texto, analisamos uma proposta desenvolvida com turmas de História da Arte
Contemporânea dos cursos de graduação em Artes Plásticas e Visuais, na Universidade Federal
do Espírito Santo, em 2018. Essa proposta foi voltada para as experiências de atravessamento
9
entre prática, teoria e cotidiano, e pensada a partir do conceito operatório de desdobramento.
Para isso, realizamos a descrição do planejamento e execução da proposta de trabalho, a
apresentação de registros da atividade e a análise dos resultados, voltada para a discussão
a respeito da importância da presença de metodologias de pesquisa em/para/sobre arte (cf.
Fortin; Gosselin, 2014)1 no planejamento em arte educação.
Para começarmos a pensar a relevância do uso de metodologias de pesquisa em/para/sobre
arte ao planejarmos, propormos e executarmos atividades educacionais em áreas criativas,
devemos considerar alguns elementos da formação de docentes em Artes Plásticas e Visuais.
Devemos, também, pensar como essa formação pode permitir ou dificultar a aproximação
entre o cotidiano do educador e dos educandos, no caso de turmas de graduação.
Embora a formação em cursos de Artes Plásticas e Visuais deva mesclar o contato com
processos poéticos e construções teóricas, não é incomum que estes estejam apartados na
estrutura curricular dos cursos. Também não é incomum que esses dois blocos de experiências
(poéticas e teóricas) estejam apartados de outro bloco, composto por disciplinas didático-
pedagógicas (cf. Butti, 2009, p. 117-118). Não pretendemos propor soluções ou analisar, aqui,
tal problema curricular e institucional, mas não devemos nos esquecer de sua existência ao
planejarmos atividades para as referidas graduações. Outra razão para relembramos essa
questão, é o fato de que as separações estruturais dos conteúdos e disciplinas afetam de
modo intenso as rotinas de estudantes e podem afastá-los ou aproximá-los das experiências
propostas em sala de aula.
1 Para Sylvie Fortin e Pierre Gosselin (2014, p. 01) “[...] a pesquisa nas artes, no sentido mais amplo, se aplica
à investigação que é realizada no campo das artes. É uma forma de abordar artistas, seus processos e os seus produtos”.
Podemos incluir, nesse bojo, a Pesquisa Sobre as Artes, ou seja, sobre determinado ponto artístico, linguagem, artista,
obra, etc.; a Pesquisa Para as Artes, como o estudo de linguagens que possam contribuir para o alargamento do fazer
e do pensar artísticos; e a Pesquisa em Artes, como a compreensão de um conhecimento incorporado pelo artista, isto
é, teoria e prática dialogam ao longo do processo criativo e na produção poética.
10
de todo o processo de ensino-aprendizagem, não apenas os conhecimentos adquiridos são
sublinhados, mas também as habilidades e atitudes dos educandos. De que forma é possível
trabalhar as diversas competências e permiti-las se desenvolverem ao lado do saber e de
forma coletiva? Quais são os envolvidos no processo educativo dentro da sala de aula e quais
os papeis desenvolvidos? Todos estes questionamentos apontavam para uma necessidade de
encontro mais profundo entre a atividade docente e discente, não apenas como uma educação
pautada na mediação, mas também de uma construção coletiva e criativa atravessada pelas
artes. Um dos pontos comuns entre estar no papel de discente e de docente é o momento
de avaliação. Na medida em que avaliamos alunos de diferentes formas possíveis, também
avaliamos a instituição e o trabalho docente. O que avaliar, em uma disciplina como História da
Arte, quando compreendemos que separar as experiências poéticas das construções teóricas
é um equívoco? Como não repetir a epistemologia eurocentrada, que separa o fazer, o sentir
e o pensar, no momento de avaliar o desenvolvimento das turmas? Como valorizar modos
distintos de aprendizado sem abandonar o compromisso com os objetivos básicos de uma
disciplina marcada como teórica? Essas são outras perguntas as quais também precisamos
nos dedicar.
Com tais perguntas em mente e sem ignorar o ideal de atravessamento entre poética,
técnica, teoria e didática, que marca a formação de estudantes de Artes Plásticas e Visuais,
uma atividade de produção coletiva foi pensada para o encerramento do segundo semestre
de 2018, na disciplina de História da Arte Contemporânea. Com o intuito de formar uma
avaliação processual, a princípio, foi necessário aplicar uma avaliação diagnóstica da turma,
para definir conhecimentos, habilidades e dificuldades. A partir dessa sondagem, verificou-se
que uma atividade tradicional, que pudesse “medir” a capacidade de repetição e interpretação
individuais dos conteúdos, não atenderia aos múltiplos interesses e possibilidade de trabalho,
abertos pela própria compreensão do conteúdo programático da disciplina. Também
foi verificado que as típicas atividades de apresentação de discursos orais, nos moldes de
transmissão-recepção (como seminários), tampouco atendia aos anseios da turma, além
de entrar em contradição com a atualidade da paradigmática da arte contemporânea (Cf.
Heinich, 2014).
A proposta de trabalho precisaria ser construída em diálogo com a turma, partir das suas
necessidades e estar em adequação com os objetivos e o conteúdo programático da disciplina.
Temos, nesse ponto, um primeiro ponto chave com relação à aproximação entre o fazer/
sentir/pensar do professor e o fazer/sentir/pensar do aluno. Ao abrir o método de trabalho
para a turma, discutir o conteúdo programático, a ementa da disciplina e compartilhar os
objetivos como parâmetros avaliativos, a proposta dali surgida, os resultados e todo o
enceramento do semestre, foram abertos para que discentes pudessem melhor compreender
sua própria base de formação. Embora jamais possamos atingir um ideal, quando tratamos
com práticas educacionais, é fundamental que apontemos para um ideal. Nesse caso, abrimos
a possibilidade de um processo de avaliação que permitisse o mínimo de corresponsabilidade,
ainda que decisões finais, inevitavelmente, continuem a recair sob a autoridade docente.
Após consultas, debates e a melhor compreensão do que é necessário e o quanto pode ser
11
maleável um sistema avaliativo, o resultado foi a seguinte proposta:
12
através de certos filtros (gostos, postura crítica, influências, heranças culturais, preocupações
sociopolíticas, etc.) e parte do que objetivamos alcançar com a formação de profissionais em
Artes Plásticas e Visuais.
O exercício de sublinhar elementos de interesse pode ser compreendido como uma
espécie de desafio. Esse desafiar, no entanto, diz menos respeito a ser bem-sucedido em
uma empreitada e mais ao incentivo para prestar maior atenção em sua rotina e interesses.
Sublinhar partes da realidade nos remete ao conceito de señalamiento, desenvolvido pelo
artista argentino Edgardo Vigo. Quando Vigo falava em señalar, ele ressaltava o convite para
que, antes de construirmos novos objetos, nós pensássemos e observássemos as possíveis
experiências estéticas que estão a nossa volta. O que uma situação ordinária ou um objeto
qualquer poderia nos apresentar além de suas funções evidentes? (Vigo, 2007, p. 13-34) Esse
exercício de deslocamento, de certa maneira, opera através de uma inversão ou expansão
da estratégia duchampiana de deslocar objetos do cotidiano para espaços de arte (Hipólito;
Pedroni, 2019). O que Vigo propunha era o deslocamento do olhar atento, posto em prática
dentro de galerias e museus, para os nossos espaços de vida, para as ruas, os ambientes de
trabalho, nossa casa e para as situações de convívio corriqueiras.
Trata-se de um exercício de liberdade e esse exercício pode ser algo exigente. O desgaste
decorrente desse esforço exigiu que abandonássemos as expectativas de neutralidade com
relação ao processo de pesquisa. Para delimitar o interesse por elementos do cotidiano
como parte de pesquisas poéticas e teóricas, não é possível ignorar o envolvimento pessoal.
Apresentados para a liberdade ampla de escolha temática, muitos alunos demonstraram
que não haviam ainda passado por essa etapa de desenvolvimento de pesquisas: a escolha
temática.
“Posso escrever uma poesia ou uma letra de música?”; “Posso escrever sobre o gato que
vi hoje na rua?”; “E se eu escrever sobre o signo de aquário, que nada tem a ver com arte
contemporânea, tudo bem?”. Tais questionamentos geraram respostas semelhantes à “se
você considera esse evento importante ao ponto de dedicar sua escrita, criatividade e tempo
para o narrar, não vejo por que não. As conexões com a História da Arte a gente constrói na
medida em que se pesquisa”.
Ultrapassada a primeira barreira, deveríamos desviar do risco de confiar em que seja
possível o total controle sobre os processos de pesquisa e criação. Eleger um tema com
liberdade e abordá-lo com palavras é uma prática de atenção e autorreflexão, mas também
de comunicação. Ressalta-se que a ênfase na permissão para brincar com a forma do texto foi
fundamental para que os textos produzidos se voltassem menos para “cumprir uma exigência”
e mais para apresentar conteúdos significativos.
Em continuidade, os textos produzidos seriam trocados entre os colegas, para que esses
pudessem trabalhar a partir das escolhas do outro. Para que essa etapa se confrontasse
com as expectativas de controle, era necessário que não fosse possível prever a temática e
a autoria do texto a ser recebido. Aleatoriedade e anonimato foram essenciais para manter
certa liberdade de trabalho, além de permitir que tanto a docente da disciplina quanto
13
convidados externos à Universidade, pudessem participar.2
Mas, como seria possível manter o anonimato ao docente? Por mais que a substituição de
nomes por números em um sorteio garanta aleatoriedade, não pode garantir que a docente
não se lembraria da correlação entre número e nome, nem que um participante não recebesse
seu próprio texto da primeira etapa. Para solucionar a questão, decidiu-se por utilizar uma
linguagem de programação chamada Phyton, em que as tuplas (pares de valores) deveriam
ser diferentes, ou seja, Aluno 1, não poderia pegar o Texto 1 (1-1)3.
Figura 2. Captura de tela de escrita em linguagem Phyton para a distribuição dos textos produzidos na primeira fase
da atividade. Fonte: arquivos da autoria.
14
vontade de explorar possibilidades e atravessar fronteiras. Seis anos depois, a busca por
inserção de outras linguagens nas práticas educacionais se torna mais complexa. As múltiplas
camadas de interesses que atravessam o ambiente educacional colocam a educação imersa no
esvaziamento crítico disfarçado de uso de novas tecnologias. Apresentar uma nova linguagem
para os educandos pode significar abrir portas educacionais e profissionais, mas, para que
essa apresentação não se esvazie de interesse crítico, é preciso alinhá-la com outros debates
e criações.
A etapa seguinte à distribuição dos textos, a produção poética, se desenvolveu com bastante
tranquilidade. Nesse caso, a liberdade para que os alunos desenvolvessem um trabalho poético
na linguagem que escolhessem, segundo seus próprios critérios, não apresentou as mesmas
dificuldades observadas no momento de deliberação temática. Certamente, isso não significa
que os desenvolvimentos individuais não necessitaram de orientação. Todo o processo foi
acompanhado com muito diálogo e questionamentos sobre as justificativas assumidas para
cada passo dado. Para alunos que já haviam passado por disciplinas voltadas para metodologias
científicas e construção de projeto em artes, a elaboração de uma proposta poética como
resposta a conteúdos eleitos por outra pessoa evidenciou-se como uma experiência diversa.
Ao colocar em palavras as justificativas para o uso de linguagens e formas, modos de
apresentação e acréscimos de informações, conceitos e referências, essa etapa de trabalho
permitiu, também que houvesse uma experiência de crítica. Nesse caso, a proposta poética
funcionaria como uma resposta crítica ao texto de base. Nesse momento, nos remetemos ao
posicionamento de crítico-criador, próprio de Frederico Morais (Chagas, 2012, pp. 88-143).
Em 1970, Morais inaugurou a mostra “Nova Crítica”. Esta foi uma exposição que funcionou
como resposta crítica para outra série de mostras, “Agnus Dei”, que continha trabalhos de
Cildo Meireles, Thereza Simões e Guilherme Magalhães Vaz. Com “Nova Crítica”, Morais
exemplificava como seria possível a crítica atuar fora dos limites de uma tradição que afastava
o observador interessado e analítico do papel de sujeito criativo.
Aquele era um momento de desconstrução e reposicionamento dos papeis de público,
artista, crítico, curador e tantos outros agentes do sistema das artes. Um exemplo emblemático,
presente em “Nova Crítica”, foi a crítica ao trabalho de Cildo Meirelles, “Inserções em
Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola”, que integrava a mostra “Agnus Dei”. Se, no trabalho
de Meirelles, foram exemplares de garrafas de Coca-Cola retornáveis com intervenções
subversivas, na crítica-criadora de Morais, essas mesmas garrafas com intervenções foram
inseridas num conjunto de 15 mil unidades de Coca-Cola. A crítica de Morais se fez através de
uma instalação, a qual contou com a colaboração da própria empresa usada no trabalho de
Meirelles como exemplo de mecanismo de um circuito ideológico (Morais, 1975, p. 50-52).
Morais evidenciou a possibilidade de que as fronteiras entre análise e poética fosse menos
rígida. Esse reposicionamento de papeis é um dos debates centrais para a disciplina de História
da Arte Contemporânea e, através da atividade proposta para a finalização daquele semestre,
a turma pode experienciar o significado desse desfocar de fronteiras entre arte e crítica.
Na fase seguinte da proposta de atividade, esse atravessamento entre papeis tradicionais do
sistema das artes continuaria a ser evidenciado. Na terceira etapa, indicada como “crítica” (Fig.
15
1), cada aluno deveria desenvolver um texto crítico. No entanto, essa crítica estaria voltada
para o próprio processo criativo. Assemelhado ao que convencionou-se chamar de “memorial
descritivo”, esse segundo texto nos levou a debater sobre as tradições de textos de artista
e os diversos modos de evidenciar etapas de trabalho, processos técnicos e conceituações.
Apesar de, como nos lembra Abreu Neto, a definição de texto de artista abarcar uma
extensa variedade de formas, há algumas características que merecem ser ressaltadas,
quando abrimos essa frente de trabalho para uma atividade avaliativa. O modo como Ricardo
Basbaum pensa o texto de artista é particularmente interessante para compreendermos
a experiência de escrita de um texto sobre o próprio processo criativo, na atividade aqui
analisada. Basbaum aborda o texto de artista como intimamente ligado ao trabalho artístico,
embora se diferencie do mesmo. Dentre as exigências intrínsecas do texto de artista, estaria
o enfrentamento inventivo do mesmo corpo de questões abordado na proposta poética. De
certo modo, o texto de artista evidenciaria os mesmos problemas tratados pela obra poética,
no entanto, a autonomia entre os processos seria fundamental para preservar a liberdade
criativa tanto da escrita de artistas quanto do fazer poético. Por essa razão, textos de artista
não apenas podem, como devem ser lidos em separado do trabalho plástico (Basbaum, 2007,
p. 20).
A terceira e penúltima etapa da atividade, cumpriu não apenas o objetivo de promover a
compreensão crítica do próprio processo criativo dos alunos, mas também uma abertura para
trocas que excedem a exposição de trabalhos finalizados. O texto de artista agrega, também,
a função de mediador entre público e trabalho de arte e dispositivo de abertura crítica capaz
de ensejar debates de modo mais acessível. A quarta e última etapa da atividade, para ser
realizada, necessitou que todos os envolvidos pudessem acessar os conteúdos produzidos.
Somente após esse conto, foi aberto o debate a respeito não apenas das produções finalizadas,
mas de todo o processo de construção da atividade e sobre como poderíamos analisar/avaliar
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as nossas experiências4.
4 Outro recurso digital fundamental para que a atividade pudesse ser realizada de modo confortável, foram
os ambientes digitais de aprendizagem. No caso da atividade aqui analisada, pela variedade midiática, a facilidade de
acesso das turmas e a presença de participantes externos à Universidade, utilizamos uma sala virtual do Google Class
como ambiente para interação.
5 Manteve-se a formatação original do arquivo entregue pela aluna, visto que a ausência de iniciais
maiúsculas fazia parte de seu processo de trabalho. O texto aqui apresentado teve a autorização expressa da aluna
para divulgação.
17
“Crítica do improviso, da tortura, da culpa: um relato.
Quando eu recebi esse texto aleatório, que foi sorteado por uma linguagem de programação,
assustei-me porque ele se parecia com um texto meu. Não meu, necessariamente, porque eu
o reconheço fora de minha escrita. Mas, um texto tão próximo da experiência de construção
de culpa, que não poderia afastá-lo sem perder algo de mim.
Faço uma coisa, pensando em outra; possuo obrigações, mas assumo outras prioridades;
uma ação atropela a outra, e sem pensar a respeito, o sentimento de culpa orquestra todo
o dia. Quando eu li o texto, encontrei-me na culpa, como criança que, sem total certeza
do porquê, chora. Ali, naquele texto, composto nos últimos minutos de um prazo, todas as
discussões sobre o sistema educacional e sobre a vida tornaram-se culpa. E não poderia ser
diferente, fosse a minha personalidade de esponja, fosse a vontade docente.
Naquela culpa despertada, estavam a rotina acadêmica, a rotina de eterna estudante, a
rotina de hospital, os e-mails pessoais sufocados pelos e-mails de trabalho, a leitura de mesa
de cabeceira não lida. Era preciso organizar, era preciso compreender que culpa era esta. Para
interpretações complexas, o processo pode partir de... uma faxina! Limpei a poeira, organizei
os livros, as pilhas de papeis, os materiais de desenho e pintura. Há meses, senão anos, queria
limpar e organizar o escritório. Depois de organizar as pilhas, uma se destacou: uma pilha de
quatro livros com destino desconhecido. O destino era tão obscuro quanto a origem – não
foram comprados, não foram presentes, eles apareceram e, como incógnita, permaneceram.
Os quatro volumes não se enquadravam em nenhuma categoria de livros, nem de materiais,
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a menos que se estivesse a criar uma categoria ‘livros obscuros de data desconhecida’. O
conjunto, nomeado por ‘Nosso Universo Maravilhoso’, foi impresso nos Estados Unidos do
Brasil, nome dado ao Brasil desde a Proclamação da República até 19686. A datação prevista
esclarece a vontade da coletânea em reunir e um só lugar todo o universo científico, artístico,
literário, e tantos outros que podemos encontrar em cada cantinho das páginas amareladas.
Para uma historiadora das imagens, ter em mãos livros que colocam, lado a lado, imagens de
dragões, esculturas de catedrais góticas e modelos de aviões, é uma experiência, no mínimo,
estética e criativa.
Enquanto pensava sobre esses quatro volumes do “Nosso Universo Maravilhoso”, na
mudança de status das imagens como fontes históricas, nas relações entre texto e imagem,
nos modos como a produção contemporânea fez uso das noções de tempo e espaço, dentre
tantas outras questões, em minha imersão, não observei que minha cachorra, Nori, havia
comido um pedacinho do volume 1. Nori comeu um pedacinho da história. Eu não usava o
livro para leitura, nunca o abria para ver suas imagens, nunca o manuseava. Mesmo esquecido
numa pilha no cantinho do escritório neste processo de faxina que durou algumas semanas,
senti culpa da mordida. Estava decidido, o encontro foi inevitável na experiência: a culpa
encontrou o livro como objeto e a minha cachorra Nori.
Como eu não o poderia comer, ataquei aos poucos sua lombada. A cola, já quase inexistente,
soltou o maço de folhas com um pequeno puxão. A linha da encadernação foi cortada, e
as folhas soltas da estrutura. Senti saudades dos estudos do mestrado, sobre Manuscritos
medievais, sobre o corpo do livro. Este corpo, que eu fragmentava, que estava morto, aos
poucos ganhava vida. As imagens tornaram-se mais aparentes, amontoadas sobre o chão.
Nori, encantada pelo processo, se aproximou, devagarinho, e, aos poucos, já estava dentro do
livro, a percorrer as páginas, a brincar com as folhas.
Figuras 4 e 5. Nori comeu a arte, 2018. Fonte: arquivo da autoria.
Meu livro comeu a Nori. Meu, porque a partir daquele momento de abertura, o livro
6 Para a composição deste artigo buscamos maiores informações sobre a coleção que não haviam entrado
em questão dentro do processo criativo: Sábato, Ernesto (dir.). Nosso Universo Maravilhoso. 5volumes. Rio de Janeiro:
Brasil-lê, s.d. No caso, os quatro livros que possuo são os volumes 1, 2, 3 e 5. Ernesto Sábato assina como “diretor” e
Eugênio Hirsch como “diretor artístico”.
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tornou-se parte de minha experiência e não poderia mais ser apagado. Os questionamentos
anteriores que havia feito, durante a faxina, sobre este livro incluíam a desconfiança sobre seu
conteúdo escrito hoje inapropriado, no sentido didático, o uso de imagens sem legendas e o
peso de uma tradição que nos perturba todos os dias quando um docente entra em sala de
aula. O que não foi visto, o que ficou apagado, o que ficou censurado na seleção tão restrita
de um Universo Maravilhoso? O que fazer com um livro que tem um peso de história, um peso
de tradição, um peso do tempo, e que ele não serve mais como um livro?
Estes questionamentos ainda se mantém, contudo, o livro já é outro. Ele encontrou seu
lugar dentro do processo criativo. O apagamento da história deu corpo às penumbras visuais
da fotografia no registro de dilaceramento. Dilacera-se o livro como quem se dilacera de culpa.
Corta, rasga, fotografa, monta, enquadra, sobrepõe, observa, anota, pisa, fotografa, constrói.
A produção poética traduz os encontros daquilo que está no cerne da questão, daquilo que
sempre se acredita estar externo. O ritmo do vídeo é tão acelerado quanto o coração daquele
que se culpa. Acelera e atropela o contexto, ignora que ao redor de uma ação, há toda uma
problemática profunda de vivências. Ignora-se, mas, ao mesmo tempo, afirma-se, pois a culpa
é seguida de dúvida. Sou culpada. Sou culpada?”
Considerações finais
“O que fazer com um livro que tem um peso de história, um peso de tradição, um peso do
tempo, e que ele não serve mais como um livro?” Esta frase, retirada da crítica do processo,
nos conecta às várias mudanças dentro da História da Arte e da Arte Educação, tema central
do diálogo no debate com os alunos sobre esta e as outras produções poéticas.
O que fazer com a nossa docência, quando ela agrega o peso de tradições, falhas, pesquisas
específicas, que ocupam a maior parte de nossas energias para o debate, e memórias não
deixa de se acumular? Como não nos esquecer de que já fomos estudantes? Para professores
artistas, quais as diferenças entre os parâmetros utilizados para a crítica que fazemos ao
nosso próprio processo criativo e aquela que direcionamos para nossas turmas? Do que nos
sentimos culpados em nossa formação?
Responder à essas perguntas é um modo de não permitirmos que os processos poéticos
se afastem dos métodos que permitem o seu estudo, compreensão e manutenção de sua
relevância para a Educação. A proposta avaliativa aqui apresentada pede um esforço de
envolvimento profundo por parte do docente para que os três eixos práticos se entrecruzem
e se realizem. Com o señalamiento do cotidiano e deliberação de elementos de interesse,
que podem ser apresentados em texto, a experiência de desenvolvimento de uma proposta
poética a partir de um conteúdo sobre o qual não se tem controle e a análise pessoal, através
da crítica de processo (texto de artista), problemáticas fundamentais das produções atuais de
arte são inseridas numa prática teórica. A efetividade de tal espécie de proposta dependerá,
sempre, da capacidade de docentes e alunos de se voltarem sobre si mesmos em diálogo com
o outro.
O sentimento de culpa permeia a construção da história, mas, voltamos sem culpa para um
20
novo contar de nossas histórias.
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21
DO “BAIRRO É NOSSO!” ÀS “PAREDES DAS MARAVILHAS”: PESQUISAS
BASEADAS NAS ARTES, PEDAGOGIA CRÍTICA E INTERVENÇÃO
SOCIAL EM PORTUGAL E NA ITÁLIA1
Sofia Sousa
Tommaso Farina
Paula Guerra
Resumo
Este artigo é o resultado de uma parceria e cruzamento disciplinar, orientado para a
intervenção social através das artes. Nesse sentido, utilizámos uma etnografia multi-situada
(BARBOSA ET AL., 2020), ou seja, focámo-nos no estudo de dois casos empíricos distintos, um
em Portugal e outro em Itália, com o objetivo de compreender e enfatizar como a sociologia e
a pedagogia crítica podem ser complementadas por práticas artísticas, mais especificamente
através do uso, aplicação e análise de investigação baseada em arte, promovendo assim
meios mais eficazes de intervenção e compreensão da realidade social vivida e experienciada
por diferentes atores sociais, mas também pelos investigadores. Para o caso português será
apresentada a iniciativa "O Bairro é Nosso!" e, para o contexto italiano, o projeto "Alice In
Wonder Wall", ambos direcionados para jovens de diferentes origens e com diferentes
experiências.
Palavras-chave:
Pesquisas baseadas nas artes, pedagogias críticas, juventude, intervenção social
1. Pesquisas baseadas nas artes e pedagogias críticas. Uma visão geral sobre os estudos de
caso portugueses e italiano2s
Como a pedagogia crítica e a sociologia se conectam? Esta foi a pergunta que norteou a
redação deste artigo. Para oferecer uma resposta, é importante destacar o escopo deste
artigo. Assim, propomos o cruzamento de duas perspetivas europeias do Norte Global:
a portuguesa e a italiana, sobre os benefícios, vantagens, consequências e dificuldades da
utilização das práticas artísticas, como meio de inclusão e intervenção social, mas também
1 Este artigo faz parte da bolsa individual de doutoramento intitulada "Todos os Mundos no Porto. Mulheres
migrantes, artes e artivismo no Portugal contemporâneo", financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)
com a referência 2021.06637.BD (DOI: 10.54499/2021.06637.BD)
2 Este capítulo é a tradução para português da seguinte publicação científica: SOUSA, Sofia; FARINA,
Tommaso; GUERRA, Paula. Turning life into art and art into a way of life: a cross-country perspective about art-based
research, critical pedagogy, and social intervention. Education Sciences & Society: 1, 2022, 2022, 68-90.
22
como ferramenta de investigação científica. Utilizando uma metodologia qualitativa,
apresentaremos, discutiremos e analisaremos dois estudos de caso: 1) o Workshop "O Bairro
é Nosso!"3, um conjunto de iniciativas artísticas realizadas entre maio e junho de 2021,
em Portugal, mais concretamente na cidade do Porto, junto de jovens que não trabalham,
não estudam ou não frequentam um curso de formação (NEEF/NEET), residentes num dos
bairros sociais mais desfavorecidos e estigmatizados da zona norte do país, nomeadamente
o bairro do Cerco do Porto; 2) um projeto de street-art/graffiti planeado como intervenção
socioeducativa e experiências sociais de co-design urbano, que ocorreu na área metropolitana
de Roma, em 2015. O projeto, chamado "Alice In Wonder Wall"4, envolveu um grupo de 20
alunos de diferentes turmas do Instituto Integral "Gandhi", no bairro marginalizado de San
Basilio, em Roma.
Tem sido dada crescente importância à incorporação das práticas artísticas como
metodologia, razão pela qual Fisher e Phelps (2006) consideram que as práticas artísticas
podem ser entendidas como um veículo essencial na dinâmica emergente da pesquisa-ação. Ao
mesmo tempo, a investigação baseada na arte é também promotora do envolvimento cívico;
um símbolo de cidadania ativa (REASON & BRADBURY, 2001). Pensando a pesquisa baseada na
arte e a educação baseada na arte, concordamos com Carvalho (2017), quando o autor afirma
que a participação cívica não pode ser apenas teoricamente prevista, ou seja, essas formas
de participação devem ser analisadas a partir de atividades, comportamentos e iniciativas
realizadas em contextos geográficos – e por vezes digitais –, tomando as comunidades como
ponto de partida. Além disso, no âmbito deste artigo, arriscamo-nos a afirmar que a pesquisa
baseada na arte é um meio de melhorar as práticas de cidadania, mas também um veículo de
fomento de vínculos comunitários que, por sua vez, potencializam discussões e reflexões em
torno de problemas sociais específicos.
Para Murdoch III et al. (2016) o termo pesquisa baseada na arte é substituído pelo
desenvolvimento orientado para a arte; uma substituição que vem da crença de que as artes
têm um papel determinante no desenvolvimento comunitário, no sentido em que facilitam
as interações sociais, a ação coletiva e o fortalecimento dos laços sociais. Assim, e tendo em
conta os nossos estudos de caso, considerámos pertinente mencionar que as políticas de
desenvolvimento orientadas para a arte são motivadas por uma variedade de abordagens
e fatores, o mais comum dos quais diz respeito ao desenvolvimento comunitário, incluindo
aprendizagens e formas informais de educação. A perspetiva do desenvolvimento comunitário
adota uma abordagem que assume que as artes são um fator de criação de benefícios sociais,
mas também como promotores de um desenvolvimento equitativo. O Workshop "O Bairro é
Nosso!", levado a cabo pelos investigadores portugueses, pretendeu ir mais longe, e envolver
os residentes nas suas comunidades, mas também promover o envolvimento daqueles
3 Este workshop, integrado no projeto CANVAS - Towards Safer and Attractive Cities: Crime and Violence
Prevention through Smart Planning and Artistic Resistance, foi apoiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento
Regional (FEDER), através do Programa COMPETE 2020 e recebeu financiamento do projeto POCI-01-0145-
FEDER-030748.
4 Esta experiência social de co-design urbano foi planeada e desenvolvida pela Associação Cultural
W.A.L.L.S., em colaboração com a Cooperativa Sociale Integrata A.r.l. Ampio e a Cooperativa Sociale Eureka Onlus.
23
que estavam fora da comunidade, uma vez que o princípio era o de que a capacidade de
ação coletiva se constrói em conjunto, nomeadamente a partir de processos de cocriação
(ANDROUTSOS & BRINIA, 2019).
Para Engelchin et al. (2019), o desenvolvimento de pesquisas que aprofundem as formas
pelas quais as artes podem ser usadas – dentro da educação formal e informal – ainda merece
ser mais explorado, e é essa lacuna que temos procurado resolver. Além disso, os autores
argumentam que a principal lacuna se concentra no estudo dos processos de coprodução
e cocriação, de natureza social. Os autores partem da ideia de que a arte, como sujeito de
análise, pode ser entendida como um método de institucionalização da mesma, afirmando-a
como veículo de comunicação pessoal e coletiva, uma vez que permite e institui o uso de
símbolos, imagens, metáforas, experiências e sentimentos como expressão indireta de uma
realidade social (FOSTER, 2007). Ao nos referirmos às potencialidades da pesquisa baseada
na arte, queremos demonstrar as maneiras pelas quais – em nossos estudos de caso – a arte
(imagem, música, performance, entre outros), foi descolada de visões estáticas e sem voz.
Quisemos mostrar as várias noções e perspetivas relacionadas com o ato de estar com arte
(THOMSON & DAVIES, 2019). Desta forma, cogitamos que a arte tem impactos diretos nos
corpos e nos atos dos agentes sociais, uma vez que sentimos antes de pensar e refletir sobre o
que estamos vendo, assim, a este nível, pode-se estabelecer uma comparação com a música,
que, como a pintura ou o graffiti (por exemplo), primeiro provoca sensações e depois permite
o pensamento ou reflexões, ou seja, promove o envolvimento comunitário e cívico, dentro de
um estado de afetividade.
A pensar no contexto português, o bairro do Cerco do Porto foi inaugurado na década
de 1960 e desde então tem sido um dos maiores distritos de habitação social da cidade do
Porto, mais precisamente na freguesia de Campanhã5. Na verdade, é atualmente um dos mais
populosos. Inicialmente, foi construído para atender às necessidades habitacionais da cidade,
no entanto, rapidamente se tornou um espaço geográfico e social marcado pela incerteza,
estigma, precariedade, criminalidade e exclusão social (SOUSA, 2018; GUERRA, 2002). Nesse
sentido, do ponto de vista sociológico, acreditamos que esta investigação – nomeadamente
o Workshop "O Bairro é Nosso!" – se baseia na utilização de processos expressivos, artísticos
e interativos como parte integrante da investigação. Além disso, na perspetiva da pedagogia
social, é necessária uma reflexão mais aprofundada sobre as metodologias baseadas na
arte e os espaços públicos. Principalmente nesta altura, em que a propagação do SARS-
CoV-2 tem inevitavelmente enfraquecido a dimensão social e relacional. O resultado desse
enfraquecimento, que diz respeito sobretudo às crianças e adolescentes, que viveram
a impossibilidade de lidar com o brincar recreativo (WULF, 2014; FARINA, 2020) durante o
isolamento social, inevitavelmente também reflete sobre a área, nomeadamente na paragem
forçada das atividades de produção, incluindo o entretenimento cultural e shows ao vivo,
havendo uma privação não apenas de espaços e estruturas a preencher, mas também de
5 O vale de Campanhã situa-se na parte mais oriental da cidade do Porto. Segundo Guerra (2002), esta é uma
das freguesias mais desfavorecidas do concelho do Porto, marcada por elevados níveis de pobreza e outros diversos
problemas sociais.
24
conteúdos com os quais animar as próprias estruturas sociais (DELUIGI, 2010).
Talvez seja importante agora recorrer a esses artistas, a esses trabalhadores e profissionais,
para uma comparação das suas práticas. Estes artistas não falavam com a crítica nem
com a elite. Falavam com famílias, trabalhadores, comerciantes, sem-abrigo; Falavam com
padres, idosos, políticos, imigrantes, serviços locais de turismo, associações, voluntários e
transeuntes. Estes são os seus públicos. Estes são os seus clientes. Porque estes artistas fazem
algo simples: falam com as pessoas. A partir daqui, foi feito um apelo aos decisores políticos
para que não subestimassem, no longo processo de recuperação, a importância das artes e
da cultura, incluindo os eventos com artes performativas, e que não caíssem na armadilha de
os relegar para o "tempo suspenso" (CORSI, 2020) onde a indignidade à nossa socialização
é condicionada, penalizada, reescrita, como refúgio para áreas afetivas e cognitivas e o seu
contexto original, é a meta-questão que representa a suspensão de todas as suspensões
possíveis (CORSI, SUSCA E FARINA, 2020). Pelo contrário, seguindo uma abordagem dialética
entre teoria e prática, que constitui o critério regulador fundamental para a epistemologia
pedagógica e o trabalho educativo "no campo" (BALDACCI & COLICCHI, 2016), considera-
se essencial identificar normas e procedimentos que garantam um desempenho seguro
das ocasiões relacionais acima mencionadas, uma vez que reduzir as comunidades a um
simples recipiente de lugares, sem cultivar uma dimensão relacional e emocional significa
descentralizar o papel das pessoas e reforçar sua real necessidade de interação (PARONI,
2004). Ao mesmo tempo, é importante mencionar que a pesquisa baseada na arte – como
a educação baseada na arte – se concentra principalmente no processo de pesquisa, e não
tanto no produto, portanto, há uma necessidade de reflexividade constante.
Para Seregina (2019), associadas à pesquisa baseada na arte estão as médias visuais como
fonte alternativa de pesquisa, como o uso de fotografias e ilustração. Embora os sociólogos
já tenham uma tradição de usar métodos visuais (photovoice, etnografia, entre outros),
é importante questionar por que só agora esses métodos estão atingindo um público
mais amplo (ROSE, 2014): uma das explicações refere-se ao uso de tecnologias de forma
intensificada. Ao mesmo tempo, o conceito de cultura visual também tem vindo a ganhar
interesse ao longo dos anos – e as práticas artivistas – fomentando a cidadania e a intervenção
na juventude, devido ao potencial das tecnologias digitais em relação aos métodos visuais,
ganham força. No entanto, numa época em que a difusão dos novos media envolve também
as classes sociais mais frágeis, mais pobres e menos letradas, é urgente refletir não só sobre o
potencial das tecnologias digitais, mas também sobre os perigos que estão por detrás de uma
utilização incorreta das mesmas. Nesse sentido, a lição de Paulo Freire (1968) é exemplar e
não deve ser esquecida, mas sim relida à luz das características da sociedade contemporânea.
De facto, lembra que a democracia e a igualdade não são inatas no homem, mas são fruto da
educação, e é preciso começar pelos oprimidos e pelos mais fracos, ajudando-os, antes de
tudo, na compreensão de seus direitos e na emergência de lutar para conquistá-los (FREIRE,
2017). O pedagogo brasileiro, no final da década de 1960, concedeu o processo educativo
como um ato de depósito contínuo de conteúdos, trazendo-o de volta ao que ele mesmo
definiu como uma conceção "bancária" de educação, cuja principal preocupação era evitar
25
a inquietação, conter a impaciência, mistificar a realidade, evitar o desvelamento do mundo
para adaptar o homem (FREIRE, 2017). Qualquer pessoa pode traçar um pensamento paralelo
sobre o que está acontecendo hoje com o uso de novas médias, acrescentando, no entanto,
um nível adicional de complexidade. De facto, a informação a que todos temos acesso todos
os dias é potencialmente infinita, assim como a informação que recebemos e que devemos
necessariamente filtrar, selecionar, metabolizar. Um enorme desafio, especialmente para
aqueles que não são precocemente educados na leitura crítica de conteúdos e mensagens
mediadas. Assim, mais uma vez, o risco é que, onde há pobreza educacional, os jovens,
atingidos por uma onda de "fragmentos do mundo", transformem esses mesmos fragmentos
em conteúdos de consciência.
2. Métodos
Em primeiro lugar, importa referir que este capítulo está em consonância com o exercício
de uma etnografia multissituada (BARBOSA ET AL., 2020) – entre Portugal e Itália – cujo
objetivo está relacionado com a compreensão da dinâmica de intervenção institucional e
espácio-temporal de duas populações, e das suas formas de apropriação e de significação dos
territórios, através das artes. Assim, os nossos objetivos são duplos, ou seja, em primeiro lugar,
queremos avaliar como a arte ou as práticas artísticas comunitárias podem servir as ciências
sociais, no sentido em que podem ser entendidas como uma metodologia, uma ferramenta,
um recurso e uma produção e, por outro lado, pretendemos investigar como as artes, em
dois contextos geográficos, históricos e sociais, assumir um papel importante na conceção
de estratégias de intervenção para os jovens e nos planos de promoção da inclusão social. Na
secção seguinte, apresentaremos e refletiremos sobre nossos estudos de caso (CRESWELL ET
AL., 2007).
Focando no Workshop "O Bairro é Nosso!", podemos imediatamente constatar que se
baseou na utilização de uma metodologia qualitativa, assente numa lógica de investigação-
ação e de prevenção-ação. O foco deste Workshop foi a utilização da investigação baseada
na arte para reduzir e instituir os sentimentos de insegurança relacionados com o bairro do
Cerco do Porto e quebrar o estigma associado aos jovens NEET. Avison et al. (2007), afirmam
que a pesquisa-ação institui a colaboração entre os pesquisadores e o objeto de estudo. De
facto, como pesquisadores, queríamos ser parte ativa na promoção de mudanças estruturais,
a partir do que Clark (1972) chama de stock de conhecimento das comunidades. A pesquisa
baseada na arte, nesse contexto, emergiu como o meio pelo qual se tornou possível promover
a intersecção entre os níveis interpessoal e social de inclusão (GUERRA & SOUSA, 2022).
Dentro do Workshop, foram realizadas iniciativas artísticas relacionadas à música, graffiti
e fotografia, e também foram alcançados dois marcos participativos. A primeira foi a visita
da equipa de investigação ao bairro, e a segunda foi a sessão final de apresentação dos
resultados das iniciativas destes jovens na Universidade. Talvez este segundo marco tenha sido
o mais relevante, pois para esses jovens foi o primeiro contato com uma universidade e com
o meio académico. As iniciativas tiveram início em maio de 2021, e ocorrem semanalmente,
26
sob o formato de residências artísticas. Relacionando nosso discurso com a pesquisa-ação,
é importante mencionar que as atividades, os conteúdos artísticos, a programação e outros
aspetos formais e informais foram estabelecidos, não numa lógica de baixo para cima, mas de
lado. Inicialmente, o nosso objetivo era trabalhar apenas com jovens NEET do bairro do Cerco
do Porto, no entanto, cedo percebemos que se o nosso objetivo era contrariar a estigmatização,
bem como contrariar os estereótipos que consideravam este espaço como sendo inseguro,
deveríamos abrir as iniciativas a todos os interessados em participar. Além de trabalharmos
com jovens do bairro do Cerco, contámos com a participação de jovens institucionalizados
num centro juvenil, porque um dos nossos mentores artísticos convidados6 para a oficina
de cypher, trabalhou nesse centro. Assim, durante as iniciativas – que terminaram em junho
de 2021 – trabalhámos com 15 jovens NEET com idades compreendidas entre os 14 e os 22
anos de Portugal, Brasil, Sudão, Marrocos, Angola e Colômbia, criando assim uma dinâmica
multicultural que teria sido difícil de concretizar se nos tivéssemos limitado aos jovens
residentes no bairro do Cerco do Porto. Na secção seguinte deste artigo, vamos apresentar
uma das iniciativas realizadas: a montra da OUPA! Grupo, realizado durante o Workshop, que
teve por base um mini-concerto comunitário organizado numa lógica de co-criação -, realizado
na OUPA! Associação, no bairro do Cerco do Porto, e dirigida aos jovens que participaram nas
iniciativas, mas também a outros jovens do bairro, com o intuito de revelar o poder da música
como forma de resistência (GUERRA, 2020a) e de intervenção social. Assim, propomos uma
análise de conteúdo (BARDIN, 1977) das letras das canções escritas pelos jovens mentores da
OUPA! Grupo, porque acreditamos que a música pode ser uma arma pedagógica (GUERRA,
2020b), bem como assumir-se como motores de resistência, contestação e afirmação coletiva.
O que pretendemos avaliar é que a arte – neste caso a música – pode (e deve) ser vista como
um elemento fundamental para a prossecução da investigação em sociologia e pedagogia
crítica.
Segundo Richard Schechner (2014), a prática da performance art e as teorias da
performatividade estão intimamente relacionadas. Muitos artistas performáticos trabalham
sozinhos, confundindo o artista e a obra de arte. A performance a solo é um "one and only",
o artista – por vezes nu literal e figurativamente – é um "original", criador e objeto criado.
Um dos temas recorrentes na performance art é a construção da identidade. A pergunta
que a arte performática muitas vezes faz, às vezes respondida, às vezes deixada pendurada,
é: "Quem é essa pessoa fazendo essas ações?" (pp. 158-162). A arte performativa evoluiu
até certo ponto a partir da pintura. Portanto, ao contrário do teatro, da dança e da música,
muita arte performática foi e é obra de artistas individuais usando seu próprio eu – corpos,
psiques, cadernos, experiências – como material. Referindo-se a ruas, ambientes urbano-
metropolitanos ou não estruturados, hoje os artistas de rua convergem em ideias e projetos
de planejamento participativo.
A elaboração de tais projetos é muitas vezes feita com o envolvimento igualitário dos
6 Estamos a falar de Daniel Figueiredo, também conhecido pelo seu nome artístico $tag One, um rapper do
bairro das Cabanas que já tinha uma relação próxima com os membros da OUPA! Associação Cerco. $tag é conhecido
por sua música voltada para a comunidade, o bairro e os jovens. Mais informações em: https://www.instagram.com/
stagone4435/
27
usuários ou atores, através de espaços e momentos de planejamento, com as pessoas
técnicas e/ou administrativas das administrações públicas. A definição remonta à palavra
inglesa partnership, emprestada das ciências políticas e sociais da escola anglo-saxónica.
O objetivo da colaboração entre os atores sociais é a prossecução de um objetivo social,
que tem repercussões positivas na comunidade local. Segundo Raymond Lorenzo (1998),
o planejamento participativo é um processo educativo. Fazer com que pessoas diferentes
trabalhem em conjunto permite, para o conhecimento mútuo, a compreensão dos diferentes
problemas. Tudo contribui para o crescimento do sentimento de pertença a uma comunidade
local.
Uma forma de planeamento participativo que pode ser considerada também uma forma de
arte contemporânea é a perspetiva dos experimentos sociais de co-design. Com o objetivo de
combinar investigação teórica e aplicações práticas, alguns (não muitos) grupos de trabalho
neste sector científico conseguiram assumir uma posição fortemente pedagógica, como
demonstra a experiência iniciada no grande bairro de San Basilio, em Roma. A metodologia
de pesquisa adotada consiste na participação de urbanistas, engenheiros, antropólogos e
sociólogos em um grupo de trabalho, e integra estudos que "emprestam" (e, portanto, talvez
não os utilizem de forma totalmente ortodoxa) abordagens da sociologia e da antropologia
(por exemplo, o uso de histórias de vida e entrevistas em profundidade, trabalho de campo,
observação participante, pesquisa-ação) e as integra com métodos tradicionais ou inovadores
que investigam espaços (CELLAMARE, 2011). Esta abordagem multidisciplinar é utilizada para
reforçar a riqueza representada pela rede existente de instituições e intervenientes locais. O
objetivo é criar uma visão comum e partilhar meios e métodos, respeitando as particularidades
de cada um. Será dada especial atenção à escuta das pessoas, não apenas como "recetoras"
de um serviço, mas como intervenientes em iniciativas planeadas e ativadas, tendo em vista
uma reapropriação positiva do território, bem como o bom uso e cuidado do mesmo.
7 O principal plano de intervenção urbanística que pode ser destacado é o URBAN, um plano de
melhoramento, destinado ao Vale do Campanhã. Este plano foi uma iniciativa levada a cabo pela Comissão Europeia e
assentou num conjunto de objetivos e eixos de ação, entre os quais se destacam a dinamização local, a promoção de
equipamentos polivalentes e inovadores, a requalificação e gestão urbana e ambiental, a comunicação e a visibilidade
local.
8 Disponível em: https://www.culturaemexpansao.pt/
28
numa altura em que, em Portugal, as políticas culturais eram extremamente valorizadas. Além
de promover a inclusão social, o programa visava proporcionar uma oferta cultural em toda
a cidade, dos centros urbanos às periferias, como foi o caso do bairro do Cerco do Porto. Em
2015, a OUPA! foi criado e incluído no Programa Cultura em Expansão, com o objetivo de
conciliar os jovens NEEF9 (FERREIRA ET AL., 2017) com as artes. Desde então, estes jovens
que têm feito parte da OUPA!10 Nunca mais abandonou a música, e a música nunca mais
os abandonou, aliás, tornou-se o seu principal veículo de atuação dentro da comunidade,
servindo para valorizar o bairro e os seus jovens, contrariando os estigmas e preconceitos que
lhes são impostos. De facto, no final do programa, estes jovens mantiveram a OUPA! tendo
aberto uma Associação que funciona como um estúdio comunitário para jovens e, além disso,
estes jovens foram nossos parceiros no planeamento, organização, divulgação e execução das
iniciativas artísticas do Workshop "O Bairro é Nosso!”.
Nielson (2011) afirma que o hip-hop, mais especificamente o rap, tornou-se - desde o
seu surgimento - o hino da resistência juvenil e das populações étnicas, desfavorecidas e
estigmatizadas. Embora esta afirmação seja feita em relação ao contexto norte-americano,
Portugal não escapa a esta caracterização. De facto, grupos como os Dealema11 ou os Mind Da
Gap12 marcaram as gerações mais jovens dos anos 1990, colocando o rap do Porto no mapa,
enquanto abordavam temas como o estigma associado aos bairros sociais, a delinquência
juvenil, as questões políticas, económicas e sociais ou a violência policial. Desde a década
de 1990, vários críticos apelidaram o rap de "cultura de resistência", como expressão e
prática artística que revelou o enorme potencial da música para se assumir como linguagem
de libertação (ROSE, 1994). Inevitavelmente, com o tempo, o rap passou a ser visto como
uma forma de denúncia da exclusão social e do estigma e veio sintetizar a narração dos
modos de vida dos jovens nos bairros sociais. No entanto, à medida que o rap se afirmava
como uma cultura de oposição (MARTINEZ, 1997), a sua capacidade crítica, contestatória e
pedagógica perdia-se numa névoa de estigmas e rótulos, potenciados pelos media. Assim,
questões como delinquência, violência, criminalidade e vandalismo, tornaram-se as pedras
de toque em relação à cultura hip-hop, em geral, e em relação ao rap, em específico. Apesar
da veracidade da criminalização social e mediática do rap - principalmente quando feito
9 O conceito NEEF é específico de Portugal e refere-se a jovens que não estão no mercado de trabalho nem
no sistema de ensino formal.
10 O OUPA! e é composto por vários jovens artistas NEET. Atualmente, o grupo é uma referência no âmbito
das intervenções artístico-comunitárias em Campanhã e no Porto. Para mais informações, consultar: https://www.
facebook.com/oupacerco.
11 Grupo que representa o hip-hop portuense desde 1996, o que faz deles um dos mais antigos grupos de
hip-hop portugueses. Começaram com a fusão de 2 projetos Fator X (Mundo e Dj Guze) e Fullashit (Fuse e Expeão),
no entanto conheceram o "5º elemento" Maze, e todos juntos formaram o Dealema que está ativo há 20 anos com o
mesmo line-up. Mais informações em: https://www.dealema.pt/biografia/
12 Eram um grupo de hip-hop da cidade do Porto, composto por nomes de referência como Ace e Presto e
Serial (produtor). Começaram em 1993, ainda como Da Wreckas. Em 1994, gravaram sua primeira demo como Mind
da Gap e imediatamente causaram um grande impacto na cena, alcançando o número um no programa Rapto de
José Mariño com a faixa "Piu-Piu-Piu". O seu disco de estreia foi em 1997, com Sem Cemitérios, e foi sem dúvida
um momento importante para o hip hop português, ainda numa fase inicial na altura. Mais informações em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Mind_da_Gap
29
em relação aos bairros sociais - o certo é que ele nunca parou de resistir e se reinventar e,
atualmente, continua sendo o epítome da resistência juvenil (REN & FEIXA, 2021). Na verdade,
até nos arriscamos a afirmar que, desde a década de 1990, as instituições sociais perceberam
o potencial do rap como forma de intervenção social.
Focando no nosso objeto de estudo - o OUPA! Projeto Cerco/grupo artístico- podemos
constatar que ao longo das várias conversas que tivemos com os seus membros, ficou claro
que estes jovens têm consciência de que não têm as mesmas oportunidades educativas,
laborais e de vida que os jovens que não vivem em bairros sociais. Para os membros da
OUPA! e especialmente para Ricardo13 – o representante do grupo – desde cedo que o rap
se assumiu como um meio capaz de construir um novo mundo de oportunidades, diferente
e independente daquelas que lhe são social e politicamente inacessíveis. Além disso, o
desânimo e descrença destes jovens em relação aos projetos de intervenção social também
se tornou evidente, pois até à data, poucos projetos tiveram em consideração as necessidades
dos jovens, os seus interesses e gostos, ou seja, existe uma história - no bairro do Cerco do
Porto - de atividades de projeto baseadas numa lógica top-down. E como se expressa essa
revolta? Através da música. Olhando para o caso específico das práticas artístico-musicais da
OUPA! torna-se impossível não enquadrar o rap como uma materialização de um espectro
mais amplo de artes comunitárias (LAWTON, 2019). A música “Rótulos e Preconceitos”, de
2016, foi uma das músicas selecionadas pelo grupo para ser alvo de apresentação durante
o mini show. A escolha desta canção baseou-se claramente na sua componente pedagógica,
uma vez que pretende contrariar e denunciar os rótulos e estigmas sofridos e vividos pelos
jovens que participaram no Workshop (ver figura 1). Na letra podemos ler os seguintes versos:
Desperta a tua consciência, podes ser o rotulado
Vive numa só essência
Respeita para ser respeitado
Não importa se és agarrado, bandido ou advogado
Doutor, homem penteado
Se vem a pé ou de carro (...)
O que eu posso dizer, isso a mim interessa pouco (...)
Aqui são todos iguais, sem diferenças parentais
Processos judiciais ou problemas conjugais (...)
Seja negro, gordo ou bi
Fake, dread ou wanna be (...)
13 Cumprimos as orientações incluídas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/
C364/01), especialmente no que diz respeito ao artigo 8.º "Proteção de dados pessoais", incluindo qualquer
informação, privada ou profissional, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (artigo 2.º, alínea a), da
Diretiva 95/46/CE da UE). Cumprimos ainda as orientações constantes do Regulamento Geral de Proteção de Dados
n.º 2016/679. A recolha, tratamento, gestão e exploração de dados basear-se-á também nas orientações previstas nos
Códigos Deontológicos da Universidade do Porto, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, da Associação
Portuguesa de Sociologia, da Associação Internacional de Sociologia e da Associação de História Oral e do Conselho
Internacional de Arquivos. Além disso, o Código de Ética da Associação Internacional de Sociologia e a Declaração
de Ética da Associação Americana de Antropologia também serão reconhecidos. Além disso, temos o consentimento
expresso da pessoa em questão para o uso do seu nome real.
30
Mostra aquilo que há em ti, sê livre e sem vergonha
Liberta-te dos preconceitos, porque qualquer um de nós sonha
(OUPA! Cerco, “Rótulos e Preconceitos”, 2016)
Figura 1: OUPA! (Ricardinho e Drunk Nigga) em performance, durante o mini-concerto no âmbito do Workshop "O
Bairro é Nosso!", na OUPA! Associação, no bairro de Cerco do Porto, em 2021.
Créditos das fotos: Sofia Sousa.
Além de podermos ver nestas letras a revolta contra os estigmas impostos, sobretudo
quando dizem que qualquer indivíduo pode ser vítima de rótulos e preconceitos e não apenas
os moradores de bairros sociais, podemos ver também um aspeto colaborativo e pedagógico,
no sentido em que a canção transmite a mensagem inclusiva e empoderadora da população,
ou seja, visa inspirar os jovens a abandonarem estes rótulos, incentivando-os a sonhar e a
ter objetivos pessoais, não se resignando aos processos de hétero-exclusão; processos que
se materializam em escassas oportunidades de emprego, trabalho precário, dificuldades
habitacionais, pobreza, ensino e educação, entre outros. Com efeito, esta música marca
uma diferença entre o sistema de aprendizagem formal e informal. O rap em específico, e
a música em geral, podem ser vistos como educação não formal, no sentido de que, neste
contexto espaço-social, emergem como resposta a diferentes demandas juvenis dentro e fora
do contexto escolar. Se antes a educação não formal era vista apenas como uma alternativa
programática à educação formal, hoje surge como resposta a problemas sociais e, do nosso
ponto de vista, as diversas expressões artísticas - relacionadas com a educação não formal
- devem atuar em complementaridade com a programação educativa formal, pois só assim
poderemos dar respostas adequadas às necessidades dos jovens.
Outro aspeto das artes comunitárias para a educação é que elas abordam diretamente
os ambientes de base, ou seja, a arte serve a um interesse público, como questões de
responsabilidade cívica ou cidadania ativa. Na música citada acima, o sexismo e o papel da
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mulher na sociedade também são abordados: "O lugar da mulher é na cozinha". Na verdade,
isso é mais premente porque neste bairro ainda estão muito presentes as tradicionais divisões
de papéis de género, em que as mulheres não trabalham e se resignam ao papel de cuidadoras
do espaço doméstico e dos filhos (SOUSA, 2018)14. Ao mesmo tempo, na música em análise,
temas como a violência doméstica também são abordados, quando cantam "por que você
bate na mulher na sua frente?". De facto, este foi um tema muito sensível para os jovens que
participaram no Workshop, uma vez que alguns deles tiveram familiares detidos por homicídio
e, na maioria dos casos, testemunharam situações de violência doméstica. É desta intersecção
e identificação de experiências pessoais com a música e uma prática artística que, no nosso
entendimento, emerge a importância de associar a sociologia à pedagogia e à arte.
Em Lawton (2019), podemos ler que a arte possui a capacidade de moldar os poderes
humanos, adaptando-os e colocando-os ao serviço da sociedade, o que nos faz ver as
produções musicais da OUPA! como forma de educação artística de base comunitária
(ULBRICHT, 2015); algo que reside no facto de estas produções potenciarem o envolvimento
da comunidade, as experiências de auto e hétero aprendizagem e a intervenção social. O rap
aparece aqui como o responsável pela criação de um espaço propício ao discurso e ao diálogo
e, no nosso caso, o mesmo não se resignou ao diálogo entre e com os jovens, mas também
com a equipe de pesquisa, fomentando processos de cocriação artística (HELGUERA, 2011;
HORVATH & CARPENTER, 2020). Com este Workshop e a aplicação da investigação baseada
na arte, percebemos que estas técnicas vão além do uso da arte como imagem ilustrativa
do que dizemos teoricamente, ou seja, é algo que envolve mais metodologia do que método
(KNOWLES & COLE, 2008).
Uma segunda mensagem surgiu durante o mini-concerto, que foi sobre a capacidade
interventiva da música. Durante uma breve pausa, os membros da OUPA! falaram sobre a
importância da música nas suas vidas, bem como discutiram, as formas como a música os
ajudou a atravessar momentos menos bons. A mensagem era clara: a música era a sua forma
de perdurar e existir (GUERRA, 2021). Vamos ler um trecho da música "A Música é" (2016),
Música para mim é tudo, e eu provo isso
Meu respirar e é tudo aquilo que eu preciso (...)
Decora o meu nome, pois eu só falo do que eu passo
E como cantor subi ao palco para mostrar esse lado
Pergunta ao meu cota, meu irmão e meu tropa Joca (...)
Então foca o que eu digo, pois a música é o que eu vivo
9 anos casado com ela e com ela me inspiro
Sente a melodia, que me dá força para mais dia
Música é a minha vida que um sorriso ao menos cria
(OUPA!, “A Música é”, 2016)
Através da análise desta letra, podemos vislumbrar o que Bank et al (2016) enunciam como PYD
14 De facto, em alguns trabalhos realizados no bairro (SOUSA, 2018) verificou-se que algumas mulheres que
tinham cumprido penas de prisão por tráfico de droga o fizeram para ilibar os seus maridos ou companheiros, o que
evidencia de imediato o papel que as mulheres ocupam nestes contextos territoriais, sociais e culturais.
32
(Positive Youth Development). Este conceito parte da ideia de que os jovens e as crianças, mesmo que
provenham de contextos sociais e geográficos desfavorecidos, têm apetite pelo sucesso escolar, pelo
sucesso pessoal, etc. A letra da canção demonstra como a música serve de plataforma, pois permite
a criação de oportunidades para que estes jovens desenvolvam relações sociais significativas, redes
de apoio e coesão social. Além disso, é evidente que a música - no caso do OUPA! - permitiu a estes
jovens alargar os seus horizontes geográficos, ou seja, envolverem-se em atividades pró-sociais: por
exemplo, foram responsáveis por representar Portugal num festival de música na Eslováquia15. Assim,
o desenvolvimento de oportunidades e capacidades por parte desses jovens através da música vai
ao encontro do PYD, uma vez que incentiva um desenvolvimento positivo, baseado na capacidade de
adaptação às mais diversas situações sociais, ao mesmo tempo em que promove e fortalece a resiliência
em relação às experiências negativas (LERNER, 2005): estigma, rótulos, discriminação, pobreza, exclusão,
entre outros. Na verdade, isso é evidente nas últimas estrofes da canção.
Focando nas contribuições de Lerner (2005), podemos referir seis características essenciais em
relação ao PYD, que se materializam na prática artística da OUPA! grupo, mas também naquilo que
foram os principais outputs obtidos com a realização do Workshop. A primeira característica refere-se
às competências. Tanto a participação dos jovens na OUPA! e a participação no Workshop "O Bairro é
Nosso!" promoveu uma visão positiva das suas capacidades em domínios específicos, neste caso artísticos,
técnicos e sociais, tais como como fazer uma batida, escrita criativa, criação de um cavaleiro técnico,
como responder a convites de trabalho, entre muitos outros aspetos. Assim, ao levar a cabo iniciativas
desta natureza, para além de potenciarmos as competências de cada um destes jovens, estamos também
a fomentar outras competências que acabarão por ser transmitidas a outros jovens, criando um ciclo
PYD latente, e isto através da música e das artes. Em seguida, as conexões também são estabelecidas;
relações com investigadores, jovens, instituições, políticos e outros agentes sociais, e estas refletem-se
em intercâmbios bidirecionais. A música também impacta na formação do personagem, pois fortalece o
senso de certo e errado; promove a confiança, numa lógica de autoestima, contrariando os frequentes
processos de autoexclusão. São também visíveis os impactos no cuidado e na compaixão, uma vez que a
música promove a empatia pelo outro, bem como a capacidade de ver fora de si e abraçar a diversidade
e, em paralelo, a música permite que os jovens se envolvam e contribuam para a (re)construção de
ambientes sociais, familiares e institucionais e, em última análise, desenvolvam competências de
cidadania ativa. Vamos ler um pequeno trecho da música "Cercados" (2016), que acompanha a ideia da
música como uma capacidade de ver fora de si mesmo,
Anos 60, bairro inaugurado
32 blocos até ser ampliado (...)
Zona oriental pegada à Circunvalação16
Temos ruas como Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião
Sempre pertencendo à Junta de Campanhã
Povo sempre, sempre lutando pelo dia de amanhã
15 Falamos do Festival Error, que dá visibilidade a várias formas de artes comunitárias. Mais informações em:
http://www.divadlobezdomova.sk/FESTIVAL_ERROR.html.
16 A circunvalação na música do Porto possui uma forte simbologia cultural e social, sendo frequentemente
associada à delimitação simbólica e real da cidade, tanto no sentido geográfico quanto no sentido das dinâmicas de
exclusão, periferia e identidade.
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Bloco 8, spot onde o people jogava à bola
Eram horas a fio pelo verão fora
“Trafucas”17 tentam manter o seu negócio de pé
Aos manos que estão lá dentro, resta-lhes é ter um pouco de fé
Felizmente temos escolas para os putos usufruírem
Para que sejam alguém na vida, e os seus talentos exibirem
Habitação social, um bairro visto pela má fama
Sê bem-vindo ao meu local, sete dias por semana
(OUPA!, “Cercados”, 2016)
Indo ao encontro dos pontos anteriormente referidos, e pensando na mensagem que
os jovens da OUPA! Não podemos deixar de mencionar que, do ponto de vista sociológico,
quando analisamos a música como agente de mudança (TAS, 2014), a maior parte da literatura
tende a ver a cultura como um campo simbólico e discursivo, que visa enquadrar os conteúdos
musicais em um amplo espectro de significados; significados que vão além das letras. Isso
fica evidente na música "Tou com os meus" (2019), onde mais do que o tema da "festa" e da
"diversão", estão presentes ideias subliminares de unidade, referências à estigmatização e à
resistência, destacadas por nós no excerto.
Porque eu estou com os meus a viver o momento
E se eu for ao limite, acredita eu não caio
Lixo-te o pensamento quando dizes que por ter talento, é um crime o boy ser do bairro
Levantas as mãos aos céus por o dia ser cinzento
Mas estou com a minha team e mesmo com a chuva saio
Por isso fica atento, modifico o Cerco excitante Cairo18
(OUPA!, “Tou com os meus”, 2019, destaques nossos)
Eyerman e Jamison (1998), tratam a música como uma práxis cognitiva, segundo a qual
indivíduos e comunidades usam a música para contestar desafios e discursos existentes,
sendo possível enquadrar o grupo OUPA! aqui. Por outro lado, Roy (2010) acrescenta que a
música também tem sido vista como um projeto cultural, usado para atravessar fronteiras
raciais. Vejamos que um dos membros do grupo - Drunk Nigga - sempre que possível, refere
que foi o primeiro negro a viver no bairro. Assim, Roy (2010) conclui que o impacto da música
depende, em menor grau, do significado da letra ou das suas qualidades sonoras, mas depende
sobretudo das relações sociais em que emerge ou se insere.
4. Alice e a Parede das Maravilhas: repensar um lugar a partir da vontade e aspirações dos
17 No contexto do Porto (e de outras regiões de Portugal), "trafuca" é uma gíria usada para descrever uma
pessoa que vive de pequenos esquemas, negócios duvidosos ou que tenta obter vantagens de maneira astuta ou
desonesta. Pode também ser associada a alguém que tem um comportamento trapaceiro ou que procura sempre "dar
a volta" às situações
18 Este último verso é uma referência à canção de 1982 "Cairo" do grupo Taxi. Esta canção referia-se à cidade
do Cairo, no Egito, considerada por Taxi como um lugar favorável à corrupção, mas também à diversão, descoberta
e mistérios. Usando esta referência, OUPA! queria mencionar que o bairro também tinha as mesmas características,
fazendo um apelo à sua descoberta.
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seus jovens habitantes.
A premissa principal que descreve este projeto é que, entre as diferentes abordagens do
planejamento urbano, que usam a arte, a cor e a luz como elementos centrais para destacar
a qualidade intrínseca dos lugares, incluindo os subúrbios, não se pode deixar de mencionar
a arte de rua. Esta forma de arte pode expressar a personalidade e a identidade construídas
e socialmente percebidas pelos membros de uma comunidade local. São inúmeras as
intervenções de artistas de rua, realizadas em contextos desfavorecidos, marginais ou
em risco de marginalização, que demonstram o potencial de estimulação regenerativa,
agregadora, percetiva e sensorial. A arte de rua nasceu nos Estados Unidos no início da
década de 1970, inspirada na experiência de artistas ecléticos como Keith Haring e Jean
Michel Basquiat. Na década de 1980 chegou também à Europa, onde o artista francês Jean-
François Perroy se tornou o seu principal expoente. A partir dos anos 2000, especialmente
graças à contribuição do artista inglês Banksy, o fenómeno da arte de rua tornou-se global. Os
sujeitos representados na arte de rua geralmente comunicam questões sociais: liberdade de
expressão, pacifismo, repressão policial, antiproibição, direitos civis, liberdade de consciência,
discriminação racial, etc.
O uso da cor e da luz, nas experiências de regeneração urbana, não tem apenas um
impacto estético-decorativo, mas, acima de tudo, psicológico, comunicativo, informativo
e, portanto, nos processos percetivos e de julgamento. Na verdade, a cor é um elemento
integrante do nosso mundo, não só na natureza, mas também no ambiente construído pelo
homem e sempre desempenhou um papel no processo evolutivo da humanidade. "Alice In
Wonder Wall" é um bom exemplo dos princípios acima descritos, visando o desenvolvimento
dos jovens através da participação no co-design, requalificação urbana e educação baseada
na arte. A colaboração entre escritores e estudantes resultou numa experiência de ideação,
escolha de tema e discussão em torno do tipo de intervenção artística. Os murais e a oficina
de arte de rua planeada envolveram um grupo de 20 alunos de diferentes turmas do Instituto
Integral "Gandhi" do Distrito de San Basilio. Os objetivos eram:
- criar uma obra que evidencie os aspetos negativos da periferia e mostre como
repensá-la, a partir da vontade e das aspirações de seus jovens habitantes;
- fazer da escola um lugar de análise das condições sociais dos lugares em que os
alunos vivem todos os dias, colocando-a em diálogo com o contexto em que está inserida.
Na fase conceptual, escritores e estudantes analisaram o território em conjunto através de
papel e materiais fotográficos, tentando intercetar lugares e situações que representavam
as diferentes faces do bairro. Isso levou à síntese da positividade e negatividade expressas
pelo território em palavras-chave indicativas. Na fase de implementação, analisando todas as
palavras produzidas em conjunto com os alunos, surgiu a dificuldade de transformar palavras
que expressam conceitos e não objetos em um equivalente visual. O processo de simbolização
de conceitos positivos e negativos (como paz, amor, ambiente, crime, tráfico de drogas,
dependência, etc.) permitiu que os alunos realizassem um interessante exercício imaginativo
e melhorassem suas habilidades gráficas com a ajuda de escritores. Finalmente, a análise das
palavras levou à criação de 20 imagens simbólicas. Os diferentes sujeitos contribuíram para
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compor e constituir o trabalho final: uma grande árvore, que representa o quadro comum. Os
ramos carregam mensagens positivas (regar e crescer) e mensagens negativas (podar, reavivar
uma comunidade arbórea forte e luxuriante) (W.A.L.L.S., 2015)19.
Por outras palavras, estamos a falar de alguns dos desafios mais comuns que as gerações
mais jovens enfrentam hoje. Estes desafios dizem respeito tanto ao conhecimento como
à transmissão do conhecimento, envolvendo, em primeiro lugar, a escola e as principais
agências educativas e a participação numa sociedade cada vez mais complexa e multicultural.
Segundo Jerome Bruner (2000), para um jovem em formação, participar de uma cultura
significa abordar, do ponto de vista psicológico, “questões relativas à criação e negociação de
significados, à construção da identidade e ao sentido da ação pessoal” (p. 8, tradução nossa).
Em projetos como "Alice In Wonder Wall", as mesmas questões caracterizam a atitude típica
do adolescente de se medir contra o outro dentro do grupo de pares, o que representa não
apenas a primeira e menor formação social voluntária, mas também um poderoso filtro entre
a vida do adolescente fora de sua própria família e a sociedade, constituindo um verdadeiro
laboratório social que ajuda a desenvolver a sua própria e original ideia de cidadania e
participação na vida das comunidades a que pertence.
Figura 2: Um aluno a mostrar a maquete com 20 imagens simbólicas escolhidas para a confeção do grafite final.
Créditos: Valério Muscella.
Agora, a questão é: num quadro tão multifacetado, que perspetiva pedagógica pode
contribuir para colocar os ideais de cidadania, comunidade, bem comum e participação social
no centro dos horizontes juvenis? No ambiente escolar italiano, um possível ponto de partida
para uma reflexão sobre a educação a favor da sociedade é a muito recente Lei n. 92/2019, que
introduz a obrigatoriedade de ensinar Educação Cívica em todos os níveis e séries escolares.
Uma excelente oportunidade para desenvolver práticas educativas que visem definir uma
nova ideia de cidadania, ativa e consciente. As orientações ministeriais apresentam três macro
19 Todas as informações sobre este projeto e o outro realizado pela Associação W.A.L.L.S podem ser
encontradas no seguinte link: https://onthewalls.it/.
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áreas em que se centrará o ensino da Educação Cívica:
1. a primeira diz respeito ao estudo da Constituição, para uma participação mais
consciente na vida cívica, cultural e social;
2. a segunda diz respeito ao desenvolvimento sustentável, ao conhecimento e proteção
do património cultural e ambiental, mas também da saúde e dos bens comuns;
3. a terceira refere-se à cidadania digital, para um uso consciente e responsável dos
novos meios de comunicação.
Segundo Michele Corsi (2011) é essencial que a escola tome consciência dos recursos de
mudança que tem à sua disposição, na medida em que a sociedade é chamada a escolher
um projeto de cidadania que reflita sua identidade cultural e política. Mas é somente
através do esforço sinérgico da escola, da família e da sociedade que uma ação educativa
verdadeiramente transformadora pode ser alcançada. É, pois, necessário deslocar-se da
escola para o território, ir ao encontro dos jovens onde eles se encontram, sem esquecer de
aproveitar as oportunidades e os níveis de comunicação oferecidos pela rede.
Portanto, passando das salas de aula para as ruas da cidade e identificando o trabalho juvenil
como uma das ferramentas mais eficazes para conscientizar os jovens sobre a participação
social, a vida democrática e o valor das diferenças, podemos considerar, aqui novamente, a
educação baseada na arte e a pesquisa perspetivas valiosas para desenvolver projetos com
jovens. Além disso, as orientações contidas na European Youth Strategy 2019-202720 Para
mais informações sobre os conteúdos e os 11 objetivos da estratégia ver também: https://
europa.eu/youth/strategy_en. trazem as intervenções educativas de volta ao território, com
o objetivo primordial de ajudar as novas gerações a explorar plenamente o seu potencial,
promovendo o desenvolvimento pessoal, a autonomia, o sentido de iniciativa e a participação
social. A sociedade e os territórios, portanto, voltam a ser um pano de fundo dentro é possível
ativar e integrar processos participativos e transformadores. Isto é fundamental para as
novas gerações de cidadãos, a quem as instituições e agências educativas pedem que pensem
grande (globalmente), mas que sejam capazes de agir pequeno (localmente), para o bem
comum e coletivo.
5. Conclusões
Vivemos numa época em que todas as sociedades estão sujeitas a mudanças súbitas
e interdependentes e é agora claro que qualquer problema, independentemente da sua
natureza, não pode ser enfrentado de um único ponto de vista. A vastidão das perguntas
que abrangem o quotidiano necessita de uma gama igualmente vasta de respostas a partir
de múltiplas abordagens disciplinares encarregadas do planeamento, conceção e transmissão
de conhecimento. Os projetos e pesquisas baseados na arte representam uma fonte de
conhecimento dentro de um horizonte mais amplo, com um alto grau de atenção sobre a
questão dos subúrbios, que são um problema significativo em todo o mundo: como as
20 Para mais informações sobre os conteúdos e os 11 objetivos da estratégia ver também: https://europa.eu/
youth/strategy_en.
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desvantagens habitacionais, a questão da cidade de aceitação, a cidade vista de seu passado,
um modelo de desenvolvimento habitacional mais atento à vida da cidade e à qualidade
da habitação do que aos aluguéis. Por estas razões, é importante trabalhar na (re)ativação,
promoção e dinamização da comunidade educativa, entendida como os grupos de sujeitos
formais e informais, com diferentes papéis, que prosseguem objetivos partilhados ligados
ao encaminhamento dos jovens para fins educativos e formativos e que partilham essas
responsabilidades com as famílias. Nesta perspetiva, há que prestar especial atenção, ao
longo de toda a ação, à escuta e ao envolvimento de indivíduos locais do sector público, do
sector social privado e do sector privado (escolas, famílias, associações, câmaras municipais,
paróquias, universidades, cooperativas sociais, preocupações virtuosas informais, os próprios
jovens) que possam contribuir para alcançar os objetivos comuns. Os efeitos positivos
do percurso artístico têm sempre impacto na coletividade: o envolvimento de diferentes
elementos sociais e – mais em geral, da população local no seu sentido mais lato, em termos
de origem social e idade – na consecução dos objetivos, será útil para reforçar a integração/
ação entre habitantes e território, promover a coesão social e criar um sentido de comunidade.
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WULF, Christoph. Le basi mimetiche, performative e rituali del gioco. EDUCAZIONE Giornale di
pedagogia critica, v. III, n. 2, p. 41-64, 2014.
Discografia
OUPA! (2016). Rótulos e Preconceitos. CD. Cidade Líquida.
OUPA! (2016). A Música é. CD. Cidade Líquida.
OUPA! (2016). Cercados. CD. Cidade Líquida.
OUPA! (2016). Do Cerco ao Centro. CD. Cidade Líquida.
OUPA (2019). Tou com os meus. Single.
40
PARTE II
41
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ARTE PÚBLICA: CONECTANDO
IDENTIDADES CULTURAIS NO ESPÍRITO SANTO1
José Cirilo
Jovani Dala
João Victor Fernandes
Jaqueline Torquatro
Introdução
A educação patrimonial é uma ferramenta essencial para promover o reconhecimento
e a valorização do patrimônio cultural, especialmente em estados como o Espírito Santo,
onde a diversidade histórica e artística desempenha um papel fundamental na formação
da identidade regional. Neste texto, exploraremos como a educação patrimonial pode ser
incorporada às práticas educacionais, com foco na experiência formativa promovida pelo
Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) da UFES. Essa iniciativa tem como
objetivo criar conexões significativas entre os monumentos locais e os contextos históricos,
geográficos e culturais da região Centro-oeste capixaba, capacitando professores a integrar
esses elementos em suas práticas pedagógicas.
Ao longo do texto, serão destacados recortes dessa formação, que incluiu palestras e
oficinas práticas, bem como reflexões sobre a importância dessa abordagem para a formação
de cidadãos conscientes de sua história e identidade.
Desde 1999, o LEENA tem se dedicado à pesquisa e valorização da arte pública no Espírito
Santo. Suas investigações abrangem as diversas manifestações de arte presentes nos 78
municípios capixabas, promovendo um diálogo significativo entre a arte e o espaço público.
Uma vertente central do trabalho é a formação de professores de educação básica, com
foco em práticas de educação patrimonial que resgatem memórias e fortaleçam identidades
culturais. Além disso, o laboratório incentiva a interação entre arte e comunidade, destacando
a importância de preservar e reconhecer o valor histórico e social dos monumentos locais.
Essas ações contribuem para ampliar a compreensão do papel transformador da arte
pública, conectando passado e presente. Por meio de visitas técnicas, pesquisas bibliográficas,
consultas a arquivos públicos e entrevistas com comunidades e artistas, o LEENA categorizou as
manifestações de arte pública no estado em diversas tipologias, como esculturas, memoriais,
heráldicas, murais e mobiliário urbano. Entre elas, as esculturas públicas se destacam como a
categoria predominante, exemplificando a riqueza do patrimônio artístico capixaba.
Arte pública, conforme Alves (2008, p. 72), se consolida como um marco na História da Arte,
42
especialmente com o advento da linguagem moderna e contemporânea no espaço urbano.
Esse gênero artístico busca democratizar o acesso às obras, aproximando a arte de públicos
que muitas vezes não frequentam museus e galerias tradicionais (LAART, 2020). Assim,
monumentos e obras públicas tornam-se lugares de memória, preservando testemunhos de
outros tempos e atuando como narrativas visuais que conectam gerações.
Os monumentos públicos transcendem suas funções originais, não apenas homenageando
figuras ou eventos históricos, mas também comunicando valores culturais, políticos e
sociais de uma sociedade. Apesar da evolução da arte urbana, a tradição de erguer estátuas
e estruturas permanece como uma forma de preservar a memória coletiva e fortalecer o
sentimento de pertencimento das comunidades.
Nesse contexto, a educação desempenha um papel crucial na preservação e transmissão
desse patrimônio às gerações futuras. Os professores, enquanto mediadores, conectam
os alunos ao patrimônio cultural por meio de abordagens criativas e significativas. Como
enfatiza Freire (1996, p. 32), “o ensino não pode ser desvinculado da experiência de vida e do
contexto cultural dos educandos”. Essa perspectiva reforça a necessidade de formar docentes
que integrem os saberes escolares às realidades culturais e sociais, promovendo um ensino
transformador.
A atuação do LEENA exemplifica como a educação patrimonial pode ser uma ponte entre a
história e a contemporaneidade, promovendo o reconhecimento do patrimônio cultural como
elemento central para a construção de identidades regionais e a valorização da arte pública
no Espírito Santo.
43
possibilidades educacionais. Monumentos públicos, como o busto do Cabo Aldomário em
Baixo Guandu, não apenas preservam memórias, mas também retratam narrativas históricas
que ajudam a compreender momentos cruciais da formação social e política da região. Esses
monumentos possibilitam que os professores abordem temas como conflitos territoriais, lutas
por soberania e processos de construção da identidade local. Por meio de análises críticas, os
educadores têm a oportunidade de estimular nos alunos um vínculo afetivo com o patrimônio,
fortalecendo seu senso de pertencimento e incentivando a valorização de suas heranças
culturais.
Com os avanços tecnológicos, as palestras online consolidaram-se como um recurso acessível
e eficiente na formação de professores. Essas palestras oferecem conteúdos atualizados e
democratizam o acesso à capacitação, independentemente das limitações geográficas ou de
tempo dos profissionais. Em ambientes virtuais, os educadores podem interagir em tempo
real com especialistas, compartilhar boas práticas e trocar experiências, enriquecendo suas
perspectivas pedagógicas. A flexibilidade das palestras assíncronas, por sua vez, permite que
os professores acessem os materiais de acordo com suas disponibilidades, sem comprometer
a qualidade do aprendizado.
Paralelamente, cursos de curta duração, workshops e oficinas presenciais desempenham
um papel complementar e essencial. Essas atividades oferecem experiências práticas e
imersivas com o patrimônio cultural, fortalecendo a conexão entre teoria e prática. Oficinas
podem incluir estudos sobre a história e a cultura regional, além de metodologias inovadoras
para explorar os monumentos locais de forma criativa e acessível.
É igualmente fundamental que a formação docente promova a sensibilização para a
preservação do patrimônio cultural. Quando os professores reconhecem o valor histórico, social
e simbólico dos monumentos, tornam-se multiplicadores dessa consciência, transmitindo aos
alunos a importância de proteger e valorizar esses bens como parte integrante da identidade
capixaba. Essa abordagem tem o potencial de gerar impactos duradouros, promovendo uma
relação mais próxima entre as comunidades e seu patrimônio e contribuindo para a construção
de uma sociedade mais consciente e engajada com sua memória e história.
44
33).
Johan Huizinga (1971) complementa essa perspectiva ao destacar o jogo como um dos
pilares fundamentais da cultura humana. Para ele, o lúdico transcende a rotina, criando um
espaço onde criatividade e imaginação florescem. Huizinga descreve o jogo não apenas como
uma distração, mas como um elemento essencial na construção de significados culturais,
capaz de conectar os participantes às manifestações históricas e sociais. Ao integrar os jogos
à educação patrimonial, os professores têm a oportunidade de abordar o patrimônio cultural
de forma envolvente, revelando sua relevância e complexidade (HUIZINGA, 1971, p. 5-10).
Na mesma linha, Lino de Macedo et al. (2007) reforçam o potencial do lúdico como ferramenta
de aprendizagem. Os jogos favorecem o desenvolvimento de habilidades cognitivas e sociais,
ao estimular a resolução de problemas, o trabalho em equipe e a exploração prática de
conceitos. Segundo os autores, os jogos ampliam as possibilidades pedagógicas ao conectar
diferentes áreas do conhecimento, como história, geografia, arte e literatura. No campo da
educação patrimonial, essa interdisciplinaridade permite que os professores associem os
monumentos culturais às narrativas históricas e à geografia local, enriquecendo o processo
de ensino-aprendizagem (MACEDO et al., 2007, p. 45-50).
Além disso, os jogos promovem uma conexão emocional significativa com o patrimônio
cultural. Atividades como a criação de jogos de tabuleiro temáticos ou desafios interativos
envolvendo monumentos históricos reforçam os vínculos afetivos dos alunos com sua cultura
e história. Essa relação emocional contribui para a valorização da identidade cultural e para
o fortalecimento do senso de pertencimento. Martins (2009) também destaca o papel do
brincar como essencial para o desenvolvimento humano. Segundo a autora, as experiências
lúdicas estimulam a curiosidade, a criatividade e a capacidade de reflexão, tornando-se
estratégias eficazes para abordar temas complexos como o patrimônio cultural. Martins
observa que, ao incorporar jogos no contexto educativo, os professores podem transformar o
aprendizado em uma vivência prática e estimulante, conectando o patrimônio às experiências
cotidianas dos alunos.
Nesse sentido, os jogos constituem uma abordagem metodológica poderosa para
interligar teoria e prática na educação patrimonial, oferecendo uma perspectiva dinâmica
e interdisciplinar ao processo de ensino-aprendizagem. Por meio de estratégias como jogos
digitais com realidade aumentada, gincanas temáticas em contextos patrimoniais e oficinas
voltadas à elaboração de narrativas lúdicas sobre monumentos históricos, os professores
podem não apenas tornar o patrimônio cultural mais acessível, mas também ressignificar seu
papel na formação dos sujeitos.
Conforme argumenta Tonucci (2020), o brincar transcende seu caráter recreativo e se
estabelece como um direito das crianças e uma dimensão essencial para a construção de
práticas escolares inovadoras e inclusivas. Nesse contexto, a ludicidade emerge como um
meio para explorar as potencialidades do espaço escolar enquanto locus de criatividade,
interação social e apropriação cultural. Ao incentivar o engajamento ativo dos alunos, essas
práticas promovem uma relação mais profunda e reflexiva com os elementos patrimoniais,
contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica voltada à preservação e à
45
valorização do patrimônio cultural.
Além disso, ao tratar o patrimônio cultural como um elemento vivo e em constante
transformação, os jogos possibilitam a articulação entre tradição e contemporaneidade,
reforçando sua relevância social e pedagógica. Essa abordagem amplia o impacto do ensino,
ao mesmo tempo que fomenta a autonomia e a participação ativa dos estudantes na
construção de significados e narrativas sobre o patrimônio, consolidando-o como um recurso
transformador na sociedade contemporânea.
46
ArteP%C3%BAblicaCapixaba. Cada palestra foi acompanhada por atividades programadas,
que os cursistas podiam postar na sala virtual do treinamento, conforme sua disponibilidade
e interesse.
Figura 1. Captura da tela inicial do canal YouTube Arte Pública Capixaba, local onde estão disponibilizadas as palestras.
Autor: Jovani Dala. Fonte: Acervo dos autores
47
a manipulação e testagem de um material paradidático. Desenvolvido com o objetivo de
apoiar as aulas de artes, esse material buscava fomentar a educação patrimonial e fortalecer
as relações afetivas dos alunos com suas cidades e com o mobiliário urbano. Além disso, as
oficinas propunham capacitar os professores a desenvolverem seus próprios modelos de
materiais paradidáticos, adaptando-os às especificidades de seus contextos socioculturais.
Todas as oficinas presenciais foram realizadas nas dependências da EEEFM Geraldo Vargas
Nogueira, localizada na Avenida Brasil, s/nº, Lace, Colatina - ES. A escolha desse local teve
como objetivo atender os professores da região centro-oeste do estado. Devido às limitações
de espaço para cada oficina, foi disponibilizado um número restrito de 15 vagas por turma. As
atividades foram conduzidas de forma colaborativa por pesquisadores do LEENA, a mestranda
em Artes Jovani Dala Bernardina, o mestrando em Artes João Victor Silva Fernandes e a
licenciada em Artes Iasmim Dala Bernardina Rodrigues, sob a supervisão do coordenador do
programa, Prof. Dr. José Cirillo. A seguir, apresentamos as oficinas realizadas.
Figura 2. Registro fotográfico da oficina Jogos de Tabuleiro realizada dia 10 de novembro de 2023 em Colatina- ES. Autor:
Iasmim Dala. Fonte: CEDOC LEENA
48
Nesta oficina, os monumentos públicos foram utilizados como tema central dos jogos,
destacando-se como ferramentas para a educação patrimonial e histórica da localidade em
que os alunos estão inseridos, além de fomentar a conscientização sobre a preservação desses
bens culturais.
Figura 3. Registro fotográfico da oficina Montando jogos na internet: arte e tecnologia nas aulas de artes, realizada dia
18 de novembro de 2023 em Colatina- ES. Autor: Jovani Dala. Fonte: CEDOC LEENA
49
e a segunda turma no dia 18 de novembro de 2023 e teve como objetivo proporcionar aos
participantes um primeiro contato com a tecnologia de impressão 3D, considerando que
muitas escolas já possuem esse equipamento em suas instalações, mas ainda enfrentam
desafios devido à baixa quantidade de profissionais capacitados para utilizá-lo. A proposta
central foi demonstrar, na prática, como desenvolver um projeto desde o início até a produção
de uma peça impressa. A impressão 3D apresenta aplicações versáteis em diversas áreas do
conhecimento, incluindo História (com destaque para os monumentos públicos), Geografia,
Biologia, Física e Química, entre outras disciplinas. Durante a oficina, figura 4, os participantes
foram introduzidos ao programa de modelagem 3D ZBrushCoreMini, e tiveram acesso a
diversas miniaturas de monumentos públicos de municípios do Espírito Santo como referência.
Figura 4. Registro fotográfico da oficina Modelagem 3D: experimentando possibilidades, realizada dia 18 de novembro
de 2023 em Colatina- ES. Autor: Jovani Dala. Fonte: CEDOC LEENA
Devido à complexidade dessas miniaturas, foi proposto um objeto inicial simples para
prática no programa: cada participante iniciou a modelagem a partir de uma esfera e criou
formas como abóboras decoradas e pequenos animais. As peças finalizadas foram impressas
utilizando filamento em uma impressora 3D disponibilizada pelo local onde a oficina foi
realizada, proporcionando aos participantes uma experiência prática e completa com a
tecnologia.
50
em salas de aula na educação básica, abrangendo desde os anos iniciais até o ensino médio.
A proposta buscou integrar elementos da história local ao ambiente escolar por meio da
reprodução em gesso de monumentos públicos, promovendo um diálogo entre patrimônio
cultural e práticas educativas.
Além de estimular a criatividade, ao conceder aos alunos liberdade para a personalização
artística na pintura dos monumentos, a atividade enfatizou o caráter transdisciplinar da
técnica de moldagem e reprodução em gesso, evidenciando sua aplicabilidade em diversas
áreas e formatos. Durante a oficina, figura 5, foram abordados os procedimentos técnicos para
a confecção de moldes de silicone, seguidos da reprodução em gesso e posterior pintura com
tinta guache, utilizando materiais de baixo custo e manuseio acessível, adequados ao contexto
educacional.
Figura 5. Registro fotográfico da oficina Moldes para reprodução em gesso e pintura de miniaturas de monumentos,
realizada dia 18 de novembro de 2023 em Colatina- ES. Autor: Jovani Dala. Fonte: CEDOC LEENA
A experiência prática proporcionou a cada participante a oportunidade de produzir um
molde de silicone e sua respectiva reprodução em gesso. O busto do Soldado Aldomário, um
monumento público do município de Baixo Guandu, foi selecionado como objeto de estudo e
reprodução, reforçando a relevância histórica e cultural da atividade no contexto local.
Conclusão
A educação patrimonial, como enfatizado, é uma prática educacional essencial para
fomentar o reconhecimento e a preservação do patrimônio cultural. Essa abordagem vai
além de um simples resgate histórico, ao funcionar como um catalisador para a construção
de uma consciência coletiva enraizada no senso de identidade e pertencimento. No contexto
capixaba, as ações promovidas pelo Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA)
ilustram o impacto positivo que metodologias integradoras podem ter no fortalecimento da
51
relação entre a comunidade escolar e o patrimônio local.
A formação de professores desponta como um eixo estratégico nesse processo, dado
seu papel central na mediação entre o patrimônio cultural e os estudantes. A utilização de
palestras, oficinas e recursos lúdicos potencializa a compreensão dos educadores sobre
a importância do patrimônio, ao mesmo tempo em que oferece ferramentas práticas para
integrá-lo ao currículo escolar. Essa capacitação contribui para o desenvolvimento de uma
abordagem interdisciplinar que conecta disciplinas tradicionais, como história e geografia, a
aspectos culturais, artísticos e sociais. Dessa forma, os professores assumem um papel de
facilitadores de experiências significativas que vão além do ensino formal, estimulando nos
alunos reflexões críticas sobre sua herança cultural. Nesse sentido, o patrimônio cultural
é compreendido como um recurso em constante diálogo com os valores e narrativas
contemporâneas.
Além disso, o reconhecimento do patrimônio como um legado em construção alinha-se às
demandas de uma sociedade em constante transformação. Em um cenário de globalização
e evolução tecnológica, a cultura local corre o risco de ser diluída diante de narrativas
dominantes. A educação patrimonial surge como um mecanismo de resistência, ao reafirmar
a relevância das identidades regionais e estimular a valorização da memória coletiva. Para
os estudantes, essa abordagem contribui não apenas para o aprendizado acadêmico, mas
também para a formação de cidadãos mais conscientes e comprometidos com os desafios
culturais e sociais de sua comunidade.
Por fim, as ações do LEENA exemplificam como a sinergia entre arte, educação e
comunidade pode constituir um modelo eficaz e replicável. Ao integrar essas dimensões, cria-
se uma metodologia que não apenas promove o ensino patrimonial, mas também incentiva a
participação ativa da comunidade no processo educativo. Essa integração fortalece os laços
sociais e legitima o patrimônio cultural como um elemento essencial para a construção de uma
sociedade mais crítica, inclusiva e engajada. Assim, a experiência capixaba destaca o potencial
da educação patrimonial em transcender fronteiras regionais, servindo como inspiração para
iniciativas semelhantes em todo o Brasil.
Referências
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e Editora da Cidade, p. 30-37, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971.
LAART. Arte pública: saiba o que é conheça 6 exemplos de arte pública. São Paulo, 2020. Disponível
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MACEDO, Lino de; PETTY, Ana L. S.; PASSOS, Norimar C. Os jogos e o lúdico na aprendizagem
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52
MARTINS, Marilena Flores. Brincar é preciso!: guia para mães, pais, educadores e para quem possa
interessar.... São Paulo: Evoluir Cultural, 2009.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo:
PUC-SP, 1993
TONUCCI, Francesco. O direito de brincar: uma necessidade para as crianças, uma potencialidade para
a escola e a cidade. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 16, n. 40, p. 234-257, 2020.
53
MULHERES EM MONUMENTOS: ESTRATÉGIAS DE VISIBILIDADE NA
ESFERA PÚBLICA
José Cirillo
Júlia Mello
1 Parte do inventário de monumentos públicos levantados pelo LEENA encontra-se disponível em: www.
54
Estas, quando representadas, muitas vezes tomam o sentido alegórico, fantasiado, fictício e,
portanto, distante de representações identitárias literais. Para a historiadora Marina Warner
(1996), o reconhecimento da diferença entre a ordem simbólica, habitada por figuras ideais
e alegóricas, e a ordem real, composta por juízes, estadistas, soldados, filósofos e inventores,
depende da improbabilidade de as mulheres praticarem os conceitos que representam.
Apesar da assimetria de gênero (e devemos acrescentar a desigualdade na representação
de negros e povos originários), propomos uma investigação que se dividirá em duas partes:
(1) estratégias de visibilidade: documentando e evidenciando mulheres, que visa discutir os
modos de representá-las na arte pública capixaba, partindo de uma classificação entre os
monumentos escultóricos, dividindo-os em figuras históricas e alegorias. O primeiro grupo,
englobando mulheres homenageadas e o segundo, como o título sugere, representando um
ideal, um coletivo, uma alegoria. Na sequência, articularemos os modos de representação
analisados com reflexões sobre (2) estratégias de visibilidade das mulheres na arte pública,
partindo de exemplos já praticados dentro e fora do eixo do Espírito Santo e de novas
sugestões com base nessas experiências.
Destacamos que entendemos monumento nas linhas da historiadora Françoise Choay
(2006), isto é, como sendo aquilo elaborado por determinado grupo ou comunidade em
prol da rememoração de um fato. Desta forma, nos referimos a objetos (estátuas, bustos,
instalações, mobiliários urbanos, fontes, murais) que simbolizam e expressam os valores
de uma sociedade; são testemunhos de uma cultura específica e funcionam como meios
de transmissão de significados e símbolos. Convém ressaltar que a memória pode ser
representada por um monumento que surge, pode ser esquecida, destruída, e, por vezes,
revivida (CRUVINEL, 2016).
55
total das esculturas públicas que possuem nome e sobrenome no estado.
56
Em termos de representações ou referências históricas de mulheres em monumentos
escultóricos de modo alegórico, isto é, não assumindo identidades específicas, destacamos
“Mãe Bá” (1999), busto localizado no calçadão da praia de Ubu, Anchieta, “Mãe natureza
– o globo” (1967-68), escultura localizada em Colatina, “Homenagem ao colono imigrante”
(1957) e “Homenagem ao grupo Bergfreunde” (2021) ambas situadas em Domingos Martins,
“Vendedora de água” (2012) localizada em Mucurici, “Homenagem aos 150 anos da chegada
dos imigrantes pomeranos no Espírito Santo” (2009), em Santa Maria de Jetibá, “Homenagem
ao imigrante” (1984), em Santa Teresa e dois localizados em Vitória, “Paneleira” (201-) e
“Monumento às paneleiras” (2022).
Figura 4. Respectivamente, Mãe-Bá (1999), Vendedora de água (2012), Monumento às paneleiras (2022) e Paneleira
Marina Warner (1996) investiga como as figuras femininas têm sido utilizadas ao longo da
história em monumentos e alegorias, e como essas representações refletem e moldam as
percepções sociais, políticas e culturais das mulheres. As representações alegóricas femininas
em monumentos escultóricos são repletas de simbolismos e narrativas, ainda que não
representem diretamente uma mulher. No contexto capixaba, monumentos como “Mãe Bá”,
“Vendedora de Água” e os monumentos às paneleiras, ainda que sejam alegóricos, comunicam
valores culturais e históricos relevantes para a memória local. “Mãe Bá” representa uma lenda
indígena da região de Anchieta e se configura como um dos escassos monumentos voltados
aos povos originários. “Paneleira” representa o esforço cotidiano e a resiliência das paneleiras
de Vitória e “Vendedora de água” conta a história de mulheres protagonistas do surgimento
de Mucurici, que vendiam água para sustentar suas famílias, ao mesmo tempo contribuindo
para o abastecimento da região.
O trabalho e a contribuição social são temas frequentemente lançados em monumentos
em contextos que invisibilizam a identidade pessoal da mulher em favor de um símbolo
mais amplo. Nesse sentido, embora essas esculturas se tornem ícones de uma coletividade,
reforçando narrativas sobre a importância do trabalho feminino na economia local, revelam a
tendência de abstrair a subjetividade da mulher para celebrar a função social.
Outro ponto que devemos considerar é que as figuras femininas frequentemente
representam conceitos abstratos como a natureza, a liberdade, a justiça, e a nação, o que
acaba criando estereótipos para a construção da visualidade da mulher na esfera pública. Isso
57
fica evidente em esculturas como “Mãe Natureza – O Globo”, onde a mulher é personificada
como a força primordial da natureza, refletindo um arquétipo de fertilidade e renovação que
transcende a cultura local e em “Mãe Bá” que, embora resgate aspectos históricos da cultura
local, pode ser vista como uma romantização da mulher indígena.
Falando brevemente sobre os monumentos aos imigrantes no Espírito Santo, devemos
considerar que, embora celebrem essas figuras como heroínas anônimas e mantenham
vivas as tradições que moldaram a cultura local, contribuem para perpetuar no imaginário
cultural a ideia de naturalização do papel de maternidade e passividade das mulheres e de
desbravamento e coragem dos homens (basta uma breve análise das posturas e composição
visual). Nesse mote, concordamos com a análise crítica de Warner (1996): a idealização e a
alegoria podem desumanizar e tornar invisíveis as identidades individuais. Isso é evidenciado
em esculturas que, ao elevar a mulher a um símbolo quase místico, muitas vezes ignoram as
complexidades e diversidades da experiência feminina real.
Para que a arte pública contribua de fato para a visibilidade das mulheres, é necessário
mover-se além das alegorias tradicionais, proporcionando um reconhecimento legítimo das
contribuições e histórias individuais de diferentes figuras históricas.
58
capixaba com a memória social, o imaginário cultural e a participação popular, pensando
em um projeto de arte pública capixaba, associado a coletivos locais, que possa contribuir
para a visibilidade de personalidades históricas considerando mulheres em diferentes
papeis e contextos, incluindo, mas não se limitando ao comunitário, educacional e político.
O projeto, ainda em fase de esboço, considera algumas capixabas que fizeram parte da
construção sociocultural do município e que ainda não figuram na arte pública, dentre elas:
Rosa Maria Nascimento Miranda (Figura 5) que lutou em prol da justiça social, tendo recebido
homenagens, incluindo a Comenda de Honra ao Mérito Arautos da Paz em novembro de
2018; Neida Lúcia de Moraes (Figura 5): historiadora, ex-professora da UFES, membro titular
da Academia Espírito-Santense de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito-Santo que tem dedicado seus estudos aos fatos que marcaram o conjunto da História
das Civilizações e as interligações com os acontecimentos do estado; Odette Braga Furtado
(Figura 5) que foi a primeira capixaba a se formar em Direito, em 1928, a primeira mulher
a integrar, por concurso público, o corpo de funcionários do Banco do Brasil e a primeira
a exercer as funções de Chefe do Gabinete Civil de um Presidente de Estado (Governo do
Cel. Nestor Gomes, no quatriênio, 1920-24); Adalgisa Amanda da Fonseca que foi a primeira
médica capixaba, formada em 1926, e Geny Grijó que foi a primeira capixaba a sentar-se
numa cadeira de vereador da Câmara Municipal de Vitória, tendo lançado o estudo pioneiro
intitulado “Atuação do Serviço Social junto a pacientes venéreos”, editado pelas oficinas da
Escola Técnica de Vitória em 1950 (JNEWS, 2023).
Figura 5. Respectivamente, Dona Rosa Maria Nascimento Miranda, s.d; Neida Lúcia de Moraes, s.d. e Odette Braga
Além desses nomes, é oportuno destacar outras mulheres com forte influência no
imaginário social capixaba: Maria Ortiz, Lycia de Biase Bidart, Antônia Paneleira, Clara Maria
Rosario dos Pretos, Constância D’Angola, Haydée Nicolussi, Maria Laurinda, Ana Ferreira da
Conceição, Bernadette Lyra, Zacimba Gaba e Adelina Tecla Correia Lyrio.
Em suas reflexões, Sierra Rooney (2023) enfatiza que a arte pública deve não apenas refletir
59
a diversidade da sociedade, mas também ser usada como uma ferramenta para estimular
o diálogo e confrontar controvérsias. Segundo Rooney, “os monumentos têm o poder de
provocar questionamentos críticos e promover a compreensão mútua quando representam
fielmente as contribuições de todos os segmentos da sociedade” (ROONEY, 2023, p. 52).
Nesse sentido, o projeto contribui para a promoção de diálogos entre a comunidade,
valorizando a história capixaba, enfatizando a busca pelo equilíbrio na representatividade das
mulheres.
4. Considerações finais
A análise dos monumentos revelou que menos de 10% representam mulheres, e dessas,
a maioria são figuras alegóricas ou religiosas. Essa sub-representação marginaliza as
contribuições das mulheres à história e à cultura, perpetuando estereótipos de gênero que
confinam as mulheres a papéis limitados e idealizados.
A pesquisa, ancorada na bibliografia e nos levantamentos de campo, revelou que a presença
feminina na arte pública capixaba é frequentemente alegórica, destacando figuras como
“Mãe Bá” e “Vendedora de Água” que, embora valorizem aspectos culturais, frequentemente
abstraem as identidades pessoais em favor de símbolos mais amplos. Essa abordagem
não reconhece adequadamente as realizações individuais e a diversidade das experiências
femininas.
Para reverter esse cenário, algumas implicações práticas podem ser consideradas a exemplo
de iniciativas como “Statues for Equality” que servem como inspiração, promovendo uma
representação equilibrada de gênero. Aplicar essas estratégias no contexto capixaba pode levar
a uma revisão das narrativas dominantes e à inclusão de histórias femininas diversas. Outra
questão é desenvolver programas educacionais que sensibilizem o público para a importância
da representação inclusiva nos espaços públicos, incluindo a integração de jogos educativos e
tecnologia digital para engajar a comunidade, como tem feito o LEENA e estabelecer parcerias
com governos, instituições culturais, e organizações não-governamentais para desenvolver
políticas e práticas que promovam a inclusão das mulheres na arte pública.
Por fim, do ponto de vista teórico, esta investigação reafirma a necessidade de revisar
as narrativas históricas para incluir uma visão mais equitativa de gênero, destacando a
importância de reconhecer as contribuições das mulheres, fortalecendo os estudos de gênero.
Referências
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61
PARTE III
62
A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DO INDÍGENA NA ARTE
Jaqueline Torquatro
A carta de Pero Vaz de Caminha, sobre a chegada dos portugueses às terras brasileiras, é,
provavelmente, o único relato que documenta a chegada dos europeus e o início do processo
de colonização em um país latino-americano. Seu diário de bordo, exemplar de literatura de
viagem, que surgiu com as grandes navegações, além de descrever o primeiro contato dos
europeus com povos originários, demonstra que o processo de transculturação1, na América
Latina, começou imediatamente à chegada dos colonizadores.
Fernando Báez, escritor venezuelano, descreveu em seu livro, A história da destruição
cultural da América Latina (2010), o processo de memoricídio, genocídio e etnocídio
instaurados pelos colonizadores europeus desde a chegada dos primeiros exploradores,
como forma de enfraquecer os nativos e diminuir o ímpeto a resistência contra a dominação
europeia. Báez descreve diversas situações ocasionadas por espanhóis e portugueses com a
finalidade de acabar com a cultura local. Os colonizadores destruíram a arquitetura existente,
artefatos religiosos, livros maias e astecas e promoveram um genocídio que reduziu em 95% a
população nativa que habitava a América Latina, num período de 130 anos.
A chegada dos europeus não foi ao acaso. Portugueses e espanhóis vieram à América Latina
com a intensão de expandir seus territórios, ocupando as terras do Novo Mundo. Quando
Colombo saiu em busca das Índias, tinha como desejo alcançar as terras localizadas na costa
do Japão, descritas por Marco Polo em seu livro As Viagens (12??). Segundo Galeano (2019,
p. 29) “[...] Colombo levava consigo um exemplar do livro de Marco Polo [...] “possuem ouro
em enorme abundância, e as minas onde o encontram jamais se esgotam”. O desejo não era
1 A palavra transculturação foi inserida por Fernando Ortiz, escritor cubano, em 1940, em seu livro, que
segundo Fernando Báez (2010, p.304) foi dedicado a indagar os efeitos causados em Cuba pela exploração do tabaco
e do açúcar. O Guia para la classificacion de los datos culturales, de 1950, trocou “aculturação” para “transculturação”
para classificar “número, caráter e intensidade dos contatos com outras culturas; fatores que afetam a receptividade
cultural; exemplos de empréstimos culturais; modificação dos elementos introduzidos para sua adaptação; meios,
organismos e agentes de troca cultural, etc.” (Báez, 2010, p. 305).
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apenas por especiarias, mas por recursos naturais, escassos no continente europeu. Cristóvão
Colombo não chegou à Cipango – as ilhas do Japão; chegou à Bahamas, e com ele trouxe
todo o processo de transculturação que ocorreria na América Latina, durante os cinco séculos
seguintes.
Ao estudar a história de ocupação da América Latina, nos deparamos com a repetição
sistemática do modo de dominação do território. Grupos étnicos de diversas partes, da Meso
América e da América do Sul foram subjugados, forçados a trabalhos escravos, catequizados
e dizimados. Incas, Maias, Astecas, Tupiniquim, Guarani, Botocudos e tantos outros, sofreram
com a invasão de seus espaços por estrangeiros, atrás de riquezas e recursos naturais.
Segundo Báez (2010, p. 39) “[...] houve certamente destruição premeditada e negligenciada,
saque direto, devastação permanente e uma miscigenação desigual que encobriu as origens”.
O projeto de destruição cultural da América Latina tinha como objetivo desarticular a
formação de grupos de resistência indígena, a partir da dissolução da memória coletiva e da
modificação da identidade cultural. Para tal, o processo de transculturação instaurado pelos
europeus foi acelerado. Segundo Báez, o etnocídio se deu através da transculturação, que foi
executada em 3 etapas:
[...] 1) estilhaçamento da memória subjugada, evidente nas perdas e nostalgias; 2)
incorporação forçada da cultura dominante; 3) elaboração, por parte da sobrevivência,
de estratégias de resistência e integração assinaladas pelo grau do contato (BÁEZ, 2010,
p.37).
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descobrimento da nova cultura, os portugueses já almejavam a conquista do ouro e da prata.
Em uma passagem de sua carta, Caminha relata uma interação entre um dos indígenas e um
capitão. Ele diz:
Um deles viu umas contas de rosário, brancas: mostrou que as queria, pegou-as, folgou
muito com elas e colocou-as no pescoço. Depois tirou-as e com elas envolveu os braços e
acenava para a terra e logo para as contas do capitão, como querendo dizer que dariam o
ouro por aquilo. Nós assim o traduzíamos por que era o nosso desejo... Mas se ele queria
dizer que levaria as contas e mais o colar, isso nós não desejávamos compreender, porque
tal coisa não aceitaríamos fazer (CASTRO, 1985, p. 79).
O desejo dos portugueses pelo ouro, prata e toda a riqueza que conseguissem em solos
latino-americanos, assemelhava-se ao desejo dos espanhóis e, ambos utilizaram de toda
artimanha que tiveram a disposição, para conquistar o que tanto almejavam, inclusive a
imposição de sua cultura, como forma de enfraquecer a memória coletiva e a identidade
cultural dos povos originários.
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religiosos nativos. Segundo Báez (2010, p.91), o “Santo Ofício tinha grande interesse, entre
os anos de 1530-1540, na destruição da arte e dos objetos indígenas”. A Igreja proibiu que
artistas pintassem ou esculpissem símbolos que não fossem reproduções de imagens bíblicas.
No Brasil, a evangelização ficou por conta da Companhia de Jesus, fundada em 1540 por
Inácio Loyola (1491-1556), que tinha como meta catequizar os indígenas e convertê-los ao
cristianismo. Os jesuítas desembarcaram no Brasil em 1549 e tentaram se espalhar por todas
as capitanias. Até 1594, já circulavam 154 jesuítas pelos 3 Colégios existentes. A presença da
Companhia de Jesus foi fundamental na formação social brasileira e influenciou a cultura, a
religião e a identidade cultural. O primeiro efeito de suas ações foi a perda de diversos idiomas
indígenas e predominância do português como idioma oficial. Os jesuítas foram, entre os
diversos religiosos que atuaram na América Latina, como Landa e Zumárraga, os que utilizaram
métodos de catequização mais brandos, e conseguiram criar diversas comunidades.
A catequização, além da evangelização e conversão ao cristianismo, visava moldar os
costumes dos povos originários, aos quais os europeus julgavam selvagens, bárbaros
e desprovidos de inteligência. O ensino era feito pelos religiosos, dentro de centros de
doutrinação e buscava inserir, de forma hegemônica, a cultura europeia, inibindo qualquer
forma de cultura divergente a ela. A arte ensinada era moldada nos tratados europeus. No
Espírito Santo, diversas escolas foram construídas pelos religiosos que chegaram com a
Companhia de Jesus. A Igreja de São Tiago, construída em 1551, que atualmente é sede do
governo do estado, conhecido como Palácio Anchieta; a Igreja Nossa Senhora da Assunção,
localizada na cidade de Anchieta e construída entre 1565 e 1569, bem como a Igreja dos
Reis Magos, localizada em Nova Almeida, na Serra, construída entre os anos de 1580 e 1615,
foram erguidas com o trabalho de indígenas. As duas últimas foram consideradas os polos de
catequização mais importantes da época, dentro do território do Espírito Santo.
Os religiosos, que se espalhavam por toda América Latina, utilizavam-se da arte como
instrumento de ensino. Pintura, escultura e cânticos eram utilizados como artífice para o
ensino religioso. Segundo Báez (2010, p.104), “se sabe que criaram mais de mil esculturas,
das quais hoje só restam cerca de duzentas. Da pintura, célebre por telas a óleo, afrescos,
tetos, abóbadas e retábulos, sobrou pouco”. No Brasil, o envolvimento da arte com o ensino
religioso se dava, também, através do teatro, chamado de Teatro Jesuítico, onde se destacava
o Padre José de Anchieta (1534-1597) e o Padre Manoel da Nóbrega (1517-1570), aos quais
os pesquisadores atribuem o pioneirismo e uma grande quantidade de peças escritas e
encenadas.
Para frei Bernardino de Sahagún (1499-1560), as investidas dos colonizadores e da
igreja, contra os povos originários, foram tão catastróficas, que os aspectos originais dos
indígenas foram totalmente apagados. Toda ação dos colonizadores europeus, juntamente
com a Igreja Católica, desde a chegada dos evangelizadores à inquisição e as encomiendas,
contribuiu para a aniquilação de diversas culturas; a queima de diversos livros; a fundição de
vários artefatos; a extinção de milhares de idiomas; e o desaparecimento de trajes étnicos,
pinturas, representações, instrumentos e canções. Comunidades originárias, inteiras, foram
removidas e realocadas, ou até mesmo dizimadas. Por último, a sujeição ao trabalho forçado e
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o assassinato de todo indivíduo que incitava a resistência, contribuíram para o que Báez (2010,
p. 84), chamou de “mutilação da memória coletiva”, que “desencadeou a tragédia cultural
vivida por milhões de seres humanos durante a conquista.”
Essa mutilação possibilitou a implementação da transculturação na América Latina, que
se deu de forma violenta e abrupta. O que sobrou de memória, a partir da chegada dos
europeus, foi modificada e manipulada, por parte dos invasores. Por anos, os povos originários
foram proibidos de praticarem seus rituais e repassarem sua cultura e história para seus
antepassados, qualquer vestígio de memória era anulado, para que não incitasse a resistência.
O apagamento da memória foi um projeto, uma estratégia de guerra, que vislumbrou a
instalação da hegemonia cultural europeia. Dessa forma, a memória foi, a partir dos eventos
da colonização, produzida através de uma narrativa contada pelo dominador.
Qualquer decisão sobre o que se deve recordar é uma forma dominada de saber o que
se deve esquecer. Cada sociedade constrói, a partir do trauma ou do entusiasmo, uma
imagem parcial de seu passado e bloqueia de modo voluntário ou involuntário suas
recordações (BÁEZ, 2010, p. 297).
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do território brasileiro, como frutas tropicais, indígenas, fauna e flora brasileira, em afrescos,
pinturas, entalhes, esculturas. O Barroco e a arte sacra foram desenvolvidos, principalmente
sob o comando de missionários da Igreja Católica, e eram os detentores da produção artística
no Brasil Colonial.
Diversas comunidades e vilas foram formadas ao longo da costa brasileira, nos anos iniciais
da colonização, que só começou, de fato, a partir de 1530. Foi em um desses povoados,
localizado no Nordeste do país, que segundo Araújo (2000, p.14) surgiram “as primeiras
manifestações de arte [...] casas, capelas ornamentadas com cruzes, feitas de madeiras
brasileiras, juntamente com abóbadas, as talhas e os trabalhos de barro de objetos utilitários
ou de toscas imagens”. Ao mesmo tempo em que a arte com características europeias passava
a figurar nesses novos vilarejos, intensificou-se o processo de evangelização dos indígenas, a
fim de convertê-los ao cristianismo, para integrá-los a sociedade e à fé cristã, como forma de
facilitar a aceitação e obediência às autoridades reais.
Os jesuítas, que foram responsáveis pelo ensino na colônia por dois séculos e meio (1530-
1759), construíram colégios em algumas das vilas, que segundo Araújo (2000, p.14) “eram
destinados à formação de padres-professores e de uma elite intelectual que iria difundir
na Colônia os modelos culturais europeus”. Nesses centros de ensino, passaram a utilizar o
teatro como um dos métodos de catequização. Diferente de outros religiosos que atuaram
na América Latina, os jesuítas apropriaram-se dos costumes e crenças, e de um dos idiomas
para utilizá-los como ferramentas de evangelização dos indígenas. O teatro, desenvolvido
nos colégios, passou a ser a primeira manifestação artística explicitamente voltada para a
transculturação no Brasil.
Os autores de teatros que mais se destacaram, na época, foram o Padre Manoel da
Nóbrega e o Padre José de Anchieta. Muitas vezes os autos eram encenados no idioma Tupi,
por atores indígenas, e englobavam danças e cantos indígenas, mas eram inseridos elementos
do cristianismo para convencê-los da existência de um Deus e um Diabo, do paraíso e do
inferno, o bem e o mal, anjos e demônios. A intensão da utilização da Arte Cênica como forma
de evangelização era “introduzir o cristianismo, utilizando as manifestações artísticas dos
indígenas”, pois os jesuítas acreditavam que a melhor forma de desenvolver o processo de
conversão seria “não obrigar os índios a entenderem o catecismo, mas sim levá-los a gostar da
religião” (Araújo, 2000, p.32). Através do teatro, foram inseridos na cultura indígena os santos
do catolicismo, o Deus, o Diabo, e outros símbolos religiosos trazidos da Europa. A Colônia, em
1557 (data do primeiro teatro registrado), apresentava diversos ícones da cultura europeia,
espalhados pelas vilas existentes; a arquitetura maneirista, as cruzes e capelas ornamentadas,
o ensino promovido pelos religiosos, misturados às manifestações artísticas indígenas.
Assim como o teatro, a pintura permitida e ensinada pelos jesuítas era relacionada a arte
sacra. A inserção da pintura na Colônia foi através do revestimento colorido em esculturas
sacras, de imagens de santos e de estampas, e costumava ser um elemento decorativo de
retábulos e oratórios, presentes em colégios jesuíticos e igrejas. A pintura não foi utilizada
como instrumento de catequese, como a escultura. Só na segunda metade do século XVI que
alguns pintores religiosos chegam ao Brasil, como Belchior Paulo (1554-1619), que atuou em
68
diversos colégios, em Pernambuco, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo onde,
segundo o Padre Serafim Leite (1890-1969), pintou a Adoração dos Reis Magos (1605?) (Figura
1), na Igreja dos Reis Magos, localizada na cidade de Serra, onde a comunidade indígena ainda
é muito presente, inclusive com a existência de aldeias demarcadas, nas proximidades, na
cidade de Aracruz. De acordo com Araújo (2000), são poucas as pinturas quinhentistas que
resistiram ao tempo, aos conflitos e as demolições. A obra citada é um dos exemplares que
não foi destruída e, atualmente, é considerada a pintura a óleo mais antiga do Brasil. De acordo
com Kléber Galveas (2015), Belchior Paulo costumava atribuir características indígenas aos
santos que pintava e, em razão disso, teve diversas obras destruídas a mando do Marquês de
Pombal (1699-1782), em meados do século XVIII, período em que os jesuítas foram expulsos
do Brasil.
Figura 1 - Adoração dos Reis Magos (1605?) - Belchior Paulo. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Belchior-
reismagos.jpg
A atividade da pintura, até meados do século XVII era limitada a arte sacra, desenvolvida
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dentro dos conventos, igrejas e colégios jesuíticos, com cuidado para que não houvesse
nenhuma característica que levasse a heresias. Poucas eram as pinturas profanas, que
remetiam a paisagens, a fauna e a flora, ou que retratasse o cotidiano na colônia. Apenas
em 1630, com a chegada de pintores holandeses, a convite do governo do Brasil-holandês,
que produções não vinculadas à arte sacra começam a figurar no cenário nacional. Pintores
como Frans Post (1612-1680) e Albert Eckhout (1610-1665) empenharam-se em documentar
as paisagens, a fauna e a flora tropical, as diversas etnias e o cotidiano da Colônia (exemplos:
figuras 2 e 3).
70
Segundo Araújo (2000, p. 92), os dois artistas foram importantes por serem os primeiros
a retratarem “de forma plástica a natureza e a paisagem do Brasil [...] os habitantes, a fauna
e a flora do Nordeste”. Albert Eckhout, passa a ser um nome de grande relevância para a
construção imagética do indígena, dentro e fora do território brasileiro. Até então, as imagens
produzidas sobre o indígena e seus costumes e cultura estavam vinculados principalmente a
relatos e cartas de religiosos e viajantes, ou de outros artistas que nunca estiveram na América
Latina, mas que eram convidados a ilustrar a produção literária que abordava o tema. Essa
produção transitava por países da Europa, mas não eram veiculadas dentro do Brasil onde,
como fora explicitado anteriormente, a arte era voltada apenas para a temática religiosa.
Além dos artistas citados, Zacharias Wagener (1614-1668) foi outro pintor holandês que se
interessou por representar personagens e cultura indígena em suas aquarelas, mas que não
obteve tanto reconhecimento quanto os dois primeiros.
Diversos artistas contribuíram para o desenvolvimento da arte no Brasil, sendo Minas
Gerais um dos polos de maior produção artística no período Colonial. Nesse cenário surgem
dois nomes fundamentais: Manuel da Costa Ataíde (1762-1830) e Antônio Francisco Lisboa,
o Aleijadinho (1738-1814). Os artistas que atuaram no território mineiro, impulsionados pelo
movimento gerado pela extração do ouro, alavancaram os estilos barroco e rococó, mantendo
a base europeia, mas inserindo elementos característicos brasileiros, que tornavam a arte
autêntica. Manuel e Aleijadinho foram importantes nomes no adorno de igrejas mineiras,
pintando painéis, forros e fazendo esculturas sacras.
Foi no século XVII, também, que os jesuítas passaram a dar espaço para as pinturas em
perspectiva arquitetônica, importada da Europa, onde eram bastante difundidas. Essas pinturas
passaram a ter um grande valor artístico, mas ainda assim estavam atreladas, principalmente
à espaços religiosos, como o forro da Sala de Coro do Convento de Santa Teresa. Quase todas
as obras produzidas até início do século XVIII, no Brasil Colônia, não possuíam assinatura dos
artistas, pois a igreja não permitia o reconhecimento dos produtores de arte. Segundo Araújo
(2000, p. 97), é “[...] no final dos anos setecentos que a criação artística brasileira começava
a ganhar personalidade, abandonando progressivamente o costume de copiar modelos
europeus e passando a adaptar esses modelos à realidade local.” É nesse momento que se
passaria a produzir uma arte profana ou religiosa que demonstrava como conviviam os povos
originários, os credos, os costumes e as diferentes culturas, enfatizando a miscigenação e o
hibridismo cultural, ilustrando todo o processo de transculturação instalado desde a chegada
dos europeus à América Latina, principalmente através do controle rigoroso da Igreja Católica.
A escultura não se distanciou da pintura. Foi pouco desenvolvida durante os primeiros dois
séculos e as poucas peças existentes eram de caráter cristão. Os três primeiros escultores
foram monges beneditinos, portugueses e brasileiros, mas que estudaram em Portugal, que
esculpiram imagens sacras dentro dos ideais renascentistas, uns mais livres, outros mais
enrijecidos, mas ainda muito influenciados pelos moldes europeus. As esculturas de imagens
sacras eram produzidas para adornarem o interior de capelas e igrejas existentes no território
brasileiro. Até o século XVIII existiam apenas duas modalidades de escultura no Brasil, a talha
em madeira e a escultura de santos em barro ou madeira, mas é ainda nesse período que
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surgem algumas esculturas monumentais em regiões como Bahia, Sergipe, Pernambuco e
Paraíba. Os dois nomes mais importantes da escultura do período colonial, que extrapolaram
o espaço privado e ocuparam lugares públicos foram Mestre Valentim e Aleijadinho, dos quais
falaremos de forma mais aprofundada no capítulo 2.
Diversos artistas, estrangeiros ou brasileiros, como Manuel da Cunha (1737-1809) e Jean
Baptiste Debret (1768-1848), foram responsáveis pelo desenvolvimento da arte profana
no Brasil, principalmente após a chegada da Missão Francesa e da abertura da primeira
Academia de Belas Artes no Brasil, inaugurada em 1816, muito antes da instalação da primeira
universidade, que só surgiu anos após a declaração da República, em 1920. Durante seus
primeiros anos de existência, o corpo docente da academia lecionava diversas disciplinas, mas
a partir de 1831, dedicou-se exclusivamente, ao ensino da arte. Em 1855, a Academia passou
a ter cinco especializações: arquitetura; escultura; pintura; ciências acessórias e música. O
governo monárquico português investiu em instituições educacionais e artísticas a fim de
promover e fortalecer a Monarquia e o Estado Imperial do Brasil, principalmente durante o
período que a colônia enfrentava diversas revoltas. Apesar do declínio no fim do primeiro
reinado, Dom Pedro II apadrinhou a Academia de Artes, e começou a investir em artistas,
patrocinando viagens e prêmios. Segundo Gabler (2015), esse apoio gerou uma moeda de
troca e “[...] grande parte das obras produzidas visaram a exaltação do monarca ou a criação
de uma identidade genuinamente brasileira, aos moldes do romantismo literário, tendo a
natureza e o indígena como elementos de destaque”.
A análise do desenvolvimento da arte no Brasil nos permite perceber que a cultura indígena
foi completamente abafada com a dominação europeia. Da chegada dos portugueses e da
Igreja Católica, até 1759, quando os jesuítas foram expulsos e, até mesmo depois, a Igreja
foi responsável por ditar o que deveria ou poderia ser produzido no meio artístico brasileiro.
Quase todos os artistas que desenvolveram projetos dentro e sobre o Brasil, tiveram que
passar pelo crivo da Igreja Católica. A hegemonia da cultura europeia no Brasil Colonial, seja
pela imposição da religião, seja pela cópia dos moldes europeus na arte, foi imensamente
impactante na formação sociocultural e perdura até a atualidade.
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de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do lábio,
e a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita uma roque-de-xadrez, ali encaixado de
maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que
verdadeiramente de leve, de boa grandeza e, todavia, raspada por cima das orelhas. E um
deles trazia por baixo da covinha, de fonte a fonte, na parte de detrás, uma espécie de
cabeleira feita de penas de ave, amarela, de um comprimento de um coto, muito basta e
cerrada, que lhe cobria a nuca e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena,
com uma confeição branda com cera – mas em verdade não o era – de maneira que a
cabeleira ficava mais redonda e muito basta, com um todo igual, e não era necessária mais
lavagem para a levantar da cabeça. [...] suas vergonhas, as quais não eram circuncisadas; e
as cabeleiras delas estavam raspadas e feitas (CASTRO, 1985, p. 78,79).
A carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), foi o primeiro registro feito por um europeu,
sobre os nativos, em 1500. Caminha descreveu diversos aspectos que o impactaram no
primeiro encontro com uma nova cultura. Desde a coloração da pele, aos ornamentos utilizados
pelos indígenas, aos aspectos físicos que se contrapunham aos costumes religiosos cristãos. A
descrição dos indígenas, feita por Pero Vaz de Caminha, em sua literatura de viagem, não se
ateve apenas as características físicas. Em seu texto, Pero Vaz deixa claro o suas impressões
acerca da aparente falta de civilidade e a ingenuidade que dominavam os nativos, frente a
malícia que acompanhava a comitiva portuguesa. A carta escrita por Caminha, em 1500, de
certo modo, foi o prelúdio de como seria a representação dos indígenas, não apenas fenotípica,
mas social; em obras de arte, na literatura, na história por todos os séculos seguintes.
A representação do indígena se fazia presente em relatos, cartas e crônicas de jesuítas;
de viajantes; de aventureiros que vinham explorar as novas terras. Os jesuítas, responsáveis
pela transculturação entre os povos indígenas, também foram responsáveis pela difusão de
imagens estereotipadas, principalmente sobre os costumes dos indígenas, a fim de justificar
a invasão, a dominação e a doutrinação na fé cristã. Para fundamentar a presença da Igreja
em solos americanos, Simão de Vasconcelos criou a teoria de que os indígenas seriam
descendentes do mesmo povo que originou os europeus, mas sofreram uma modificação
fenotípica e cultural pela quantidade de tempo isolados da civilização. Ameríndios, padres,
colonizadores e europeus teriam sido criados pelo mesmo Deus, por isso, teriam a mesma
capacidade de tornar-se cristãos.
Assim como Vasconcelos criou uma teoria, Yves d’Evreux (1577-1632) acreditava que todos
possuíam a capacidade de reconhecer a verdadeira religião, mas enquanto os indígenas não
o fizessem, permaneceriam debaixo do jugo do demônio. Os nativos da América só poderiam
atingir a civilidade, a luz e avançar na ciência, a partir do momento que se tornassem cristãos.
Padre Manoel da Nóbrega, em seu Diálogo sobre a conversão do gentio, defendeu que todos
os povos foram originalmente bestas, mas que poderiam evoluir e se transformar em cristãos.
Simão de Vasconcelos, Yves d’Evreux e Padre Manoel da Nóbrega defendiam que a catequese
seria a melhor ferramenta para transformar os indígenas degenerados em cristãos.
Outra vertente existente na época era defendida por Conde de Buffon (1707-1788) e
Cornelius De Pauw (1739-1799), que acreditavam que os indígenas passaram por tantas
73
catástrofes naturais, que sofreram uma degeneração tão profunda impossível de ser
revertida. Esse processo teria tornado os nativos americanos inferiores e incapazes de
alcançar a civilidade existente na Europa. Essa teoria, apoiada na tese de escravidão natural
de Aristóteles, justificaria o aprisionamento, o trabalho forçado e até mesmo o assassinato de
indígenas, pois eles seriam selvagens com alma de animais, incapazes de se converterem ou
de tomarem decisões. Segundo Roger Bartha, o europeu criou o mito do homem selvagem,
e a falta de lei, de rei, de fé, a inocência e a nudez do indígena contribuíram para que os
colonizadores inserissem os nativos nessa classificação. Os colonos e os jesuítas enxergavam
os nativos como seres que precisavam ser tutelados. Para os colonos, eram gentios que
serviriam ao trabalho forçado, para os jesuítas, cristãos que tornar-se-iam colonos-tutelados,
através da catequese.
A iconografia utilizada para representar os indígenas, justificar a intervenção europeia em
solos latino-americanos e reforçar as teorias citadas acima, foi baseada no conceito do índio
bárbaro, que vivia com o corpo nu, envolvido em guerra, canibalismo e vingança. A visão
europeizada sobre os povos originários, aproximaria os ameríndios aos turcos, aos citas e
aos normandos. O barbarismo, segundo Raminelli (1996) atenua a fronteira cultural entre
os povos não cristianizados. As imagens produzidas no século XVI reforçariam a estereotipia
bárbara do ameríndio, trazendo principalmente a representação de rituais canibalistas e
guerras entre diferentes etnias indígenas, que nem sempre estavam baseadas na realidade.
Várias ilustrações passaram a circular na Europa, produzidas por artistas que estiveram ou
não em terras americanas. Muitas imagens produzidas na época misturavam elementos
atemporais, como seres medievais e mitológicos: sátiros, faunos.
Uma das imagens produzidas (Figura 4) em meados do século XVI, foi a Melee d’hommes
nus, de Etienne Delaune (1518-1583), possivelmente, o artista que retratou os ameríndios da
forma mais idealizada e distante da realidade do Novo Mundo. Nessa gravura percebe-se essa
fusão de elementos atemporais, e a forma de representação do indígena dentro dos padrões
classicistas, assemelhando, fisicamente, indígenas aos europeus. É uma imagem caótica,
de guerra entre semelhantes, com vestígios de canibalismo, e com a presença de seres
mitológicos. Para Raminelli (1996, p.58), “Delaune une seres das mais diversas procedências,
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mesclando suas identidades e transformando-os em seres marginais à cristandade”. A
selvageria dos indígenas, representada a partir da estereotipia do bárbaro, fica evidente
através dos corpos nus, dos ataques com frutas e galhos, das mordidas de mãos, pés, pernas
e do desmembramento de corpos de inimigos, motivados pela vingança.
A selvageria indígena apareceu em imagens que ilustravam relatos de viajantes; imagens
avulsas; mapas que incluíam a América Latina, e clichês que circulavam por países europeus. A
produção dessas imagens, no entanto, poderia ou não traduzir com fidelidade os costumes e
a cultura do nativo, como era relatado nas cartas dos jesuítas à Coroa. De acordo com o artista
que fosse ilustrar os relatos, essa imagem poderia estar mais ou menos próxima a realidade.
A produção de imagens sobre os nativos americanos estava, principalmente, atrelada aos
interesses econômicos, religiosos e políticos da época.
Theodor de Bry (1528-1598), ilustrador e editor da coleção Grandes Viagens, dedicou-se
a representar diversas batalhas entre os nativos e rituais de canibalismo. Segundo Raminelli
(1996), em suas gravuras, raramente apareciam europeus; suas imagens buscavam enfatizar
as duas maiores características do bárbaro americano: a antropofagia e o gosto pela guerra.
E Theodor trazia mais veracidade às suas narrativas imagéticas, ao inserir em suas gravuras
elementos como arco, flechas, crânios humanos e gestos que mostravam euforia e prazer do
ameríndio frente aos eventos onde encontravam-se inseridos. Entretanto, Theodor de Bry
era contra a expansão e a dominação espanhola no Novo Mundo, por isso, além de retratar
os indígenas em cenas de barbarismo, utilizava a gravura para denunciar as atrocidades
cometidas pelos ibéricos na América Latina. Theodor produziu diversas imagens de espanhóis
queimando nativos vivos, lançando bebês aos cães e mutilando os primeiros habitantes dessa
região, figura 5.
Figura 5 - Espanhóis lançando bebês indígenas aos cães - Theodor de Bry. Fonte: https://www.meisterdrucke.pt/
impressoes-artisticas-sofisticadas/Theodore-de-Bry/939380/Descri%C3%A7%C3%A3o-dos-crimes-infligidos-aos-
%C3%ADndios-por-colonos-espanh%C3%B3is---Conquist
75
Além das cenas de guerra e de canibalismo, alguns relatos descreviam o trabalho árduo
do religioso que se prontificava a desbravar o ambiente hostil formado por florestas, animais
selvagens e indígenas agressivos, que tornava a missão do jesuíta extremamente difícil e
potencialmente heroica. A representação imagética de assassinatos de religiosos pelas mãos
dos nativos passou a produzir mártires religiosos, como o padre Francisco Pinto, que se tornou
símbolo da necessidade da expansão do cristianismo, como forma de libertar os indígenas das
garras de Satã.
[...] o árduo trabalho de conversão dignificava os religiosos e o colonialismo: por
intermédio dos brancos, os nativos se livrariam da opressão da barbárie e se comportariam
como homens racionais. A difusão de imagens de barbárie e histórias dos mártires do
cristianismo legitimavam a intervenção dos religiosos, conclamavam pela continuidade
da dura missão de converter os gentios [...] o estereótipo do bárbaro ressaltando a
importância da missão dos padres (RAMINELLI, 1996, p. 78-79).
Apesar das imagens denunciativas, e das teses de que o indígena era o homem natural,
livre do artificialismo no qual a Europa encontrava-se afundada, o estereótipo do indígena
bárbaro sobressaiu a qualquer movimento contrário, pois era o único modo de assegurar
a legitimidade da intervenção do homem branco, no Novo Mundo. Colonos, europeus,
religiosos, todos recorreram aos relatos e às imagens produzidas nesse primeiro momento,
como justificativa para a ocupação do território litorâneo brasileiro.
Já no século XVII, surgem as primeiras imagens do indígena civilizado. Albert Eckhout (1610-
1666), artista holandês que veio ao Brasil junto com a Missão Artística de Nassau, desenvolveu
diversos registros alegóricos de indígenas e escravizados. Eckhout utilizava elementos naturais
76
e artificias para evidenciar, ou não, a inserção do nativo na sociedade recém-formada. Duas
imagens significativas, produzidas pelo artista são A mulher tupi (1641), figura 6, e A mulher
Tapuia (1643), figura 7, sendo a primeira uma alegoria da domesticação do indígena e a
segunda, a alegoria do canibalismo e da selvageria. Eckhout utilizou a vestimenta branca, a
plantação ao fundo, a presença da construção colonial, a presença da bananeira que, segundo
Raminelli (1996), era fonte de alimentação para os europeus, para enfatizar a proximidade
dessa indígena com os colonizadores. Na segunda, A mulher Tapuia, o artista insere elementos
como a vegetação nativa, pedaços de corpos, a falta de vestimentas, para colocá-la afastada
dos costumes dos novos ocupantes da região.
Entre os séculos XVI e XIX, os indígenas foram representados dentro dessas estereotipias:
bárbaro, selvagem, canibal, domesticado. Em meados do século XIX, na década de 1860, surge
no Brasil o indianismo, dentro da literatura romancista. Autores como José de Alencar (1829-
1877), com seus títulos O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), e Maria Firmina
dos Reis (1822-1917) que escreveu, em 1861, o romance Gupeva, introduziram na literatura
brasileira, histórias que se caracterizavam pelo protagonismo de personagens indígenas;
por um nacionalismo exagerado; pela valorização da natureza brasileira. A representação do
indígena deixa de ser baseada na estereotipia bárbara e passa a ser construída no personagem
heroico e incorruptível, com uma ingenuidade e inocência que o europeu não possuía.
Os monumentos públicos surgiram paralelamente ao indianismo no Brasil. O primeiro
monumento público com temática nacionalista foi instalado em 1862, e homenageava a figura
de Dom Pedro I. A forma como a escultura foi desenvolvida dialoga diretamente com toda
a narrativa que desenvolvemos até aqui. Uma figura paternalista, de um homem branco,
imponente em seu cavalo, que gerencia a formação socioespacial de uma nova nação. Um
representante do povo que trouxe a civilidade para o território brasileiro, que precisa guiar os
nativos e os subalternos, rumo ao futuro. Para afirmar a importância dessa figura e a opulência
desse líder, são colocadas alegorias de indígenas na base do monumento, junto a elementos
da fauna e da flora brasileira. As obras indianistas, tanto na literatura, pintura ou escultura,
buscavam justificar a presença dos europeus, como fonte de salvação para os indígenas
selvagens e socialmente miseráveis.
As imagens produzidas pelos europeus, que retratavam os indígenas, nortearam o
imaginário da população daquela época e dos vários séculos seguintes. Ilustrações e relatos
de europeus, estamparam até mesmo livros didáticos. A construção da imagem do indígena
como selvagem, preguiçoso, primitivo, animalesco, que dependia da intervenção do homem
branco para conquistar a civilidade, ainda hoje, habita o inconsciente de diversas massas da
sociedade.
77
MEDO DO MEDO, CANTOU CAPICUA. O HIP-HOP NA INTERSEÇÃO
COM A EDUCAÇÃO E COM A PEDAGOGIA1
Paula Guerra
Resumo
Neste capítulo procuraremos estabelecer pontes profícuas entre a sociologia e a cultura hip-
hop, no sentido da sociologia pública postulada por Burawoy (2006). Assim, através da obra da
rapper portuense Capicua analisaremos como é possível encontrar no hip-hop preocupações
muito próximas à perspetiva sociológica e de alguns dos principais sociólogos contemporâneos,
bem como relações com a educação e com a pedagogia freirana. Assim, primeiro analisaremos
as principais características da cultura hip-hop. Em seguida, abordaremos de forma resumida a
génese do hip-hop em Portugal; por fim, entramos na análise sociológica da canção Medo do
Medo de Capicua, que nos permite concluir pelas ligações entre sociologia e hip-hop.
Palavras-chave:
Educação, identidades, hip-hop português feminino, Capicua.
1. Prelúdio
No campo sociológico existe uma crescente preocupação com um suposto afastamento das
ideias originais da disciplina. Isto é, uma sociologia de intervenção, que se sentisse na vida
quotidiana das pessoas. Que fizesse a diferença. É o cerne da emergência da sociologia pública,
postulada por Burawoy. E colocando de lado as críticas lançadas contra essa perspetiva, já que
não é esse o nosso propósito, consideramos que a sociologia (e as ciências sociais no geral)
tem muito a ganhar se se envolver com o mundo artístico, e mais propriamente com a cultura
hip-hop. No fundo, um renovado entendimento epistemológico relativamente ao campo das
artes, que já procurámos fazer em outros lugares (GUERRA, 2024; GUERRA, 2021a).
Neste pretendemos prosseguir nessa senda, desta vez acionando o exemplo da rapper
Capicua e de como uma das suas canções, Medo do Medo, possui em si material sociológico
de primeira linha. Desta forma, iniciaremos o estudo com uma pequena revisão da cultura hip-
hop e das suas três vertentes: visual, musical e gestual; em seguida estudaremos a génese do
hip-hop em Portugal. Depois entraremos na segunda parte do capítulo, em que analisaremos
a letra da canção Medo do Medo e procuraremos estabelecer pontos entre o hip-hop e a
sociologia, mais especificamente uma sociologia crítica e pública.
1 Capítulo baseado na seguinte publicação: GUERRA, Paula. Verdade e consequência no hip-hop português
contemporâneo: o caso de Capicua. In SITOE, Tirso & GUERRA, Paula (eds). Reinventar o discurso e o palco: o rap, entre
saberes locais e saberes globais (pp. 202-219). Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2019.
78
2. Cultura hip-hop: da génese ao mainstream
A cultura hip-hop teve origem no South Bronx, na cidade de Nova Iorque, durante os
anos 1970 do século XX e nas décadas seguintes acabou por se expandir um pouco por
todos os continentes. Entre as várias figuras pioneiras desta cultura, importa destacar Afrika
Bambaataa que criou, em 1973, a organização The Universal Zulu Nation com o objetivo de
canalizar a violência juvenil da luta de rua entre gangs para a música, a dança e o graffiti.
Assim sendo, o hip-hop surge associado a várias expressões da cultura de rua da juventude
urbana. Portanto, o hip-hop trata-se de práticas bastante diversas, apesar de possuírem uma
base comum (SIMÕES, 2010). O hip-hop agrega três elementos principais: o graffiti (vertente
visual), o rap (vertente musical) – inclui o mcing e djing – e o breakdance (vertente gestual).
No que concerne às vertentes do hip-hop, o graffiti originalmente foi utilizado como
referência a inscrições e pinturas encontradas em antigas sepulturas e ruínas. A sua raiz
etimológica advém do grego “γραφειν” que significa “escrever”. Existem dois tipos de graffiti
atualmente, por um lado, o gang graffiti que apresenta como principal objetivo marcar
território e não tem inerente intenções artísticas e, por outro lado, o graffiti art que representa
a autoexpressão e a criatividade do artista. Os writers, ou seja, quem faz o graffiti utilizam
muros, habitações, mobiliário urbano e transportes públicos para deixarem as suas marcas
visuais e gráficas nas cidades. É a vertente que mais se posiciona às margens da sociedade
dominante. Por ser uma manifestação pública e visual, o graffiti impõe-se a toda a população
urbana e não apenas aos seus potenciais interessados (CAMPOS, 2010; PAIS, 2002; DIÓGENES,
1998). De forma sintética, o graffiti “(…) não é uma mensagem nem clara nem objetiva. É
um fim em si mesmo (uma forma de expressão) e não um meio para atingir um fim (uma
forma de informação)” (SIMÕES, 2010, p. 43). Assim, o graffiti não deve ser interpretado como
vandalismo do espaço público, isto porque obedece a regras e códigos na sua execução e, para
além disso, possui ambições artísticas.
A forma mais comum de graffiti diz respeito à assinatura/tag, uma vez que pode ser
efetuada com poucos recursos materiais e de forma rápida. No fundo, representam siglas
ou pseudónimos identificáveis apenas por quem pertence ao meio, tendo em linha de conta
o anonimato dos autores. Quando a atividade do graffiti é realizada de forma individual
denomina-se de writer o ator que a realiza, tal como já mencionado anteriormente, quando
é realizada em grupo designa-se de crew, que surge como fonte de identidade, afiliação
e sistema de apoio. As obras têm inerente uma hierarquia, isto é, as obras de grandes
dimensões – normalmente realizadas em grupo – são chamadas de hall of fame, enquanto
as pinturas rápidas são chamadas de bombing ou throw up (vómito). O reconhecimento das
qualidades estéticas do graffiti só pode ser feito pelos próprios writers ou por alguém que
faça parte do meio. O reconhecimento das qualidades passa pelo conhecimento do estilo
– qualidade estética, técnica utilizada do autor – mas também pelo facto de alguns graffitis
serem remetidos a um destinatário em concreto.
Existe também a hierarquia dos writers, quer isto dizer que no topo estão os veteranos ou
grandes mestres (king) e na base os iniciados ou aprendizes (toy), no meio existem writers
menos hábeis que, apesar de experientes, por incapacidade técnica e/ou de afirmação/
79
reconhecimento, não se podem caraterizar de mestres. Podemos considerar que existe
divergências de interesses que se convertem em confrontos que podem ser materiais ou
simbólicos, isto devido à relação iniciados/veteranos. Simões (2010, p. 47) afirma que a
resolução destas divergências pode tomar dois sentidos: por um lado, agressões físicas ou
verbais e, por outro lado, agressões simbólicas como, por exemplo, pintar por cima de outro
graffiti, ou seja, crossar.
No que se refere ao rap, este nasce da conjugação das palavras rhythm and poetry, que
procura realçar a dependência existente entre o nível do ritmo e o da poesia (palavra).
Apresenta como objetivo primordial a denúncia de problemas sociais presentes nas minorias.
Estes dizem respeito à insatisfação e descontentamento perante um sistema injusto e elitista
(DAYRELL, 2005). Assim sendo, podemos admitir que o rap consiste numa oralidade rítmica,
cantada sobre um acompanhamento musical (ROSE, 1994). Esta vertente compreende duas
componentes expressivas, o djing que se carateriza por ser a atividade levada a cabo pelo disk
jockey ou por quem manipula os discos e produz a sonoridade típica do rap e o mcing que
se carateriza por ser a atividade a cargo do mestre-de-cerimónias, rapper ou cantor de RAP
(SIMÕES, 2010, P. 35).
Inicialmente, o rap estava associado às manifestações improvisadas em festas e encontros
de rua, sendo que os músicos eram essencialmente DJ’s que misturavam discos de várias
proveniências produzindo uma sonoridade particular. No entanto, a figura do mestre-de-
cerimónias (MC), com o tempo, acabou por se sobrepor. A atividade deste consistia em
sessões de improviso (free-styling), sendo que se contava uma história sob forma rimada
que poderia ser de variadas naturezas, como por exemplo, política e erótico, no entanto, o
caráter simultaneamente provocatório e jocoso estava sempre presente. Falando em termos
técnicos, o breakbeat foi inventado pelo DJ Kool Herc e consistia em misturar dois discos
através de um gira-discos duplo de modo a prolongar determinado trecho musical. Foi a base
para os movimentos do breakdance que é outra vertente do hip-hop e que será explanada
mais à frente. Para além desta técnica, importa realçar o scratching que consistia em arrastar
o disco no prato do gira-discos para trás e para a frente, criando um efeito simultaneamente
de inversão e repetição, por sua vez, criada por Grand Wizard Theodor. Outro DJ importante
no que respeita às técnicas é Grandmaster Flash: criou o backspin, que corresponde a um
desenvolvimento do breakbeat que consistia na repetição de passagens de um disco mediante
o retrocesso rápido de uma faixa.
Os locais onde decorriam as festas não eram neutros no que respeita às relações
estabelecidas entre os participantes, isto porque os DJ’s disputavam entre si, através de battles,
o domínio sobre um determinado território. No fundo, o rap refere-se explicitamente aos
contextos geográficos onde se insere e às condições socioeconómicas das suas populações,
ou seja, refere-se a lugares concretos e identificáveis. Simões (2010) afirma que o facto de o
rap possuir caraterísticas estéticas que o tornam específico e identificável enquanto género
musical não significa que seja um género musical homogéneo, apresentando-se como um
género híbrido constituído por inúmeras influências com procedências diversas.
Por último, abordamos a vertente do breakdance, que é composto por estilos de dança
80
variados. É coincidente com a era do disco, no entanto, estes dois estilos de dança estão
completamente afastados. No caso do breakdance acentuam as passagens das músicas da
mesma forma que utilizam diversos recursos técnicos que tendem a evidenciar quebras
no interior das músicas, prolongando determinadas secções rítmicas. É neste contexto de
descontinuidade (breaks) que os primeiros breakdancers efetuavam os seus movimentos. O
breakdance acabou por se tornar um pilar fundamental da animação das festas e encontros
de rua das primeiras manifestações do hip-hop. Inicialmente, incluía apenas movimentos dos
pés e pernas. A crew composta por Crazy Legs, Frosty Freeze e Rock Steady introduziu outros
movimentos acrobáticos que viriam a tornar o breakdance um tipo de dança caraterístico.
Assim sendo, considera-se que esta vertente é composta por movimentos dos pés, braços,
mãos e acrobacias apoiadas nas mãos e na cabeça. Como caraterísticas principais, de acordo
com Simões (2010), importam realçar: a sua natureza espetacular, perigosa e competitiva,
sendo que esta competição caraterística se traduzia através de disputas ou battles entre
crews.
3. Hip-hop em Portugal
Os anos 1980 em Portugal foram marcados pelo surgimento de subculturas juvenis.
Uma delas, marcada por diferentes características, foi o movimento hip-hop. Apesar de
a sua influência pública ser mais forte na década de 1990, consideramos que no hip-hop
a importância de uma multitude de fatores que surgiram na década de 1980 não deve ser
escamoteada e, por conseguinte, consideramos o hip-hop mais um exemplo da inovação e
rutura artística em Portugal na década de 1980.
Portugal na década de 1980, após a experiência traumática da descolonização e a chegada
ao país de quase 600 mil retornados, começa a sentir um fluxo migratório de características
económicas vindo das antigas colónias africanas (MACHADO, 1994, p. 112). Um fluxo que se
dirige, acima de tudo, para a Área Metropolitana de Lisboa, para bairros suburbanos degradados
e estigmatizados. Como Barbosa (2011) lembra, tratou-se de uma imigração laboral e precária,
em que estas pessoas passaram a exercer as profissões mais desqualificadas, quando não
mesmo clandestinas. Ora, isto não deixa de gerar novas identidades transnacionais fruto desta
imigração, levando mesmo Teresa Fradique (1999, p. 123) a afirmar que “Portugal torna-se
numa sociedade pós-colonial à moda da Europa”.
Uma das principais características deste novo espaço consiste no facto de não ser gerido
segundo um modelo clássico de apropriação e significação a partir de memórias sociais, mas
antes habitado por núcleos familiares cujos pais são originários de outros lugares (…). Nesse
sentido estamos a falar de um lugar virgem e, por isso, amplamente aberto à construção de
novas identidades juvenis baseadas na apropriação (simbólica, se quisermos) deste espaço
urbano de ninguém. É destes novos espaços e da cultura suburbana que deles emergiu que
surge a estrutura de interação social e organização do quotidiano que permitiu a formação
de comunidades juvenis que escolheram o hip-hop (entre outros produtos culturais) como
fórmula de crescimento (FRADIQUE, 1999, p. 123).
81
É precisamente esta vivência do espaço urbano, a life in the street, que é condição sine qua
non para se ingressar no movimento hip-hop nacional. Mas mais do que isso: permitiu uma
reorganização geográfica do urbano, de um mapa alternativo do urbano. Em vez do tradicional
periferia-centro-periferia, o hip-hop, por seu turno, “percorre bairro a bairro, numa espécie
de expedição que reserva o centro para ocasiões especiais” (FRADIQUE, 1999, p. 124). Por seu
lado, a segregação deste grupo social nestes bairros abriu caminho a narrativas, potenciadas
pelos média, de um “Outro” exótico e marginal, passando a estar associados a ideias como
criminalidade e pobreza (PAIS & BLASS, 2004; BARBOSA, 2011). Se a isto associarmos um
conjunto de políticas discriminatórias que excluíam estas populações do “nós-nação” e da
cidadania política, como a mudança, em 1981, do modelo jus solis para o de jus sanguinis,
podemos ter uma ideia da marginalidade a que estes grupos estavam votados.
A isto temos também de adicionar o contexto sociopolítico da época: o chamado cavaquismo
(1985-1995) que marcou as últimas décadas do século XX em Portugal. Portugal entra na
CEE; surge uma política de crescimento económico baseada em obras públicas, a chamada
política do cimento; abertura ao mercado global; e, não menos importante, passa a existir
um sentimento de que finalmente Portugal estava a apanhar os parceiros europeus a nível
económico, social e cultural. Mesmo a chegada destes novos imigrantes parecia abrir uma nova
fase no país: deixava de ser um país de emigrantes para ser um país de imigrantes. Finalmente
podia falar de um multiculturalismo e pluralismo. E esta retórica de multiculturalismo e pós-
colonialidade, o que Fradique (2003) apelidou de redescoberta da multiculturalidade pós-
colonial, ganhou adesão na comunicação social, na comunidade académica e inclusivamente
no campo político (SIMÕES, 2018C).
Mas não era bem assim. Este crescimento demográfico ficou associado a casos de racismo
e xenofobia (que tiveram o seu culminar nas mortes de José Carvalho e Alcindo Monteiro às
mãos de grupos skinheads e o subsequente nascimento de organizações antirracismo, o SOS
Racismo ou o Olho Vivo, por exemplo). E será esta experiência de xenofobia e de desigualdade
económica que primeiro encontrarmos nas letras do hip-hop nacional. Para José Machado
Pais (1994, p. 128), o rap foi utilizado pela segunda geração de imigrantes dos PALOP como
“forma de expressão/manifestação” contra a periferização social, cultural e económica que os
afetava e que já tinha afetado os seus pais. O rap era, portanto, entendido como uma forma
de mobilização política e social, assente quer em referentes simbólicos de origem, quer em
novos referentes de identificação geracional, como é o caso do rap (LUPATI, 2016; MACHADO,
1994, p. 128).
Rapidamente este género musical se tornou um elemento central na vida social destes
imigrantes, fosse nas escolas, fosse nas improvisações que faziam na rua ou em espaços como
o Incrível Almadense, Voz do Operário ou espaços de diversão noturna (LUPATI, 2016). Como
diz Cidra (2010, 2008), o hip-hop forneceu a estes imigrantes uma linguagem de resistência
contra a exclusão e discriminação racial que era alvo na sociedade portuguesa (RAPOSO,
2007). E não é despiciendo que, nesta primeira fase do hip-hop nacional, estes jovens
como Boss AC ou Chullage cantassem ou nos seus dialetos, nomeadamente em crioulo, ou
(raramente) em inglês. Não em português (SOUZA, 2011; BARBOSA & RAMOS, 2008). Como
82
refere Fredrica Lupati (2016) era uma forma de encontrarem “o seu espaço de pertença
e identificação – a sua própria nação, em certo nível – procurando por referências na sua
tradição cultural e utilizando-as em contraste com o establishment, neste caso identificado
com a língua portuguesa”.
Posto isto, quando surgiu o rap/hip-hop em Portugal? Para Soraia Simões (2018a, 2018b,
2018c, 2017) é possível vislumbrar as primeiras influências e grupos nos anos 1982-1989.
Um movimento influenciado pelo que se estava a passar nos Estados Unidos da América ao
nível do hip-hop, nomeadamente os trabalhos de grupos como Public Enemy ou N.W.A. Isto
é, a transposição do teor contestatário das ruas e uma crítica à sociedade branca americana
(SIMÕES, 2018B) para a realidade portuguesa, para a sua realidade quotidiana (Cacilhas,
Massamá, Cova da Moura, Vila Nova de Gaia, etc.), servindo o hip hop para cantar as suas
condições de vida nos bairros onde viviam. É precisamente por isso que Simões (2017, 2018b)
afirma que os anos de 1982-1989 foram decisivos para a imagem do hip-hop em Portugal: um
hip-hop de contestação, de confronto e de afirmação destas comunidades perante o poder
(económico, social e cultural) hegemónico.
Mas como chegou até aqui a influência do hip-hop? O hip-hop é uma boa forma de se
visualizar a crescente abertura do país ao que se fazia lá fora. E por vários meios de informação,
fosse a rádio, através de programas como o Mercado Negro (1986-1987), que passava no
Correio da Manhã Rádio e que era da autoria do radialista João Vaz; de programas de televisão
internacionais que eram vistos com o recurso da parabólica (o Yo!MTV RAPS) ou programas de
televisão nacional (o Via Rápida de 1988 com transmissão na RTP); cinema (os filmes Breakin'
e Beat Street, ambos de 1984); bem como através da crescente imprensa, especialmente os
jornais Independente e Blitz (SIMÕES, 2018B, 2017).
O caso d’O Independente é particularmente interessante. Fundado em 1988, com Miguel
Esteves Cardoso e Paulo Portas como diretores e um dos fundadores do Blitz, Manuel Falcão,
como subdiretor, era claramente situado à direita do espetro político. Foi paradoxalmente
um dos média que mais promoveu o hip-hop nacional (na linha do que faziam com várias
formas de cultura urbana, contudo). Como Simões (2018c) afirma, foi uma ironia histórica: o
facto de o cavaquismo não conseguir reunir apoios culturais nem à esquerda nem à direita, o
surgimento de uma cultura de direita (ARAÚJO, 2014) particularmente visível nos novos média,
e a sua relação com a comunidade artística, permitiu e favoreceu a divulgação (espetáculos,
gravações, entrevistas, etc.) e o impacto deste novo estilo musical e estético em Portugal,
especialmente entre os mais jovens.
A afirmação [do hip-hop] no campo musical e cultural português esteve no arranque desta
prática em Portugal, à semelhança do que sucedera nos EUA, fortemente marcada por uma
conjuntura histórica. Cá, esse facto resultava, por um lado da permanência de um regime
político (cavaquismo) que no campo das artes e da cultura no geral não conseguiu reunir
simpatizantes nem de uma fileira progressista nem de uma ala conservadora, por outro lado
pelo desenrolar de um movimento cultural que cresceu nas margens e paulatinamente se
afirmou no centro (hip-hop), ao mesmo tempo que um movimento do centro se afirmava
gradualmente nas margens: o de uma indústria de novas publicações de conteúdos,
83
especialmente audiovisuais (Correio da Manhã Rádio/CMR: 1983 - 1993, SIC: 1992, SIC
Radical: 2001, TVI:1993) e escritos — jornais, revistas e semanários (Jornal Blitz: 1984 - 2006,
semanário O Independente: 1988 - 2006, Revista K: 1990 - 1993) —, que curiosamente se
assumiu como um contraponto de natureza conservadora, mas simultaneamente «culta» e
«liberal», junto das esferas urbanas e elitistas, às publicações de esquerda que prevaleciam
desde o pós 25 de abril.
Se as temáticas nas letras, bem como a própria presença no espaço mediático, ressoavam,
antes e acima de tudo, aos jovens nas mesmas condições sociais de vida, o impacto do hip-
hop rapidamente se estendeu para jovens da mesma geração, mas sem quaisquer relações
com a vida social dos rappers. Falamos da apropriação das temáticas abordadas pelo hip-
hop por grupos e movimentos sociais sem ligação ao movimento hip-hop, como aquando
das lutas estudantis contra a Prova Geral de Acesso, que se estendeu entre 1989 e 1993,
ou contra as propinas (SIMÕES, 2018b, 2018c). Mas talvez mais importante que tudo isto foi
o impacto que a presença do corpo imigrante, livre e com uma atitude de confronto, teve
na sociedade portuguesa. O contacto com a diferença num país até então praticamente
homogéneo permitiu, também, um outro avanço na direção de uma sociedade cosmopolita
e plural. Não só no sentido de abertura perante os mercados globais, da descoberta de
novidades estilísticas e artísticas que então se faziam, mas também da introdução de novas
sensibilidades e apropriações que o hip-hop nacional fez: em vez de se cantar em inglês,
muitos apostaram em cantar nos seus dialetos, fosse em quimbundo ou em crioulo (SIMÕES,
2018b). Além da inovação ao nível da sensibilidade musical, também foi uma rutura do que
se convencionou chamar portugalidade: estes jovens rappers reinventaram-na como refere
Contador (2001, p. 116), já que a “essa portugalidade, ficcionada e vivenciada pelos jovens
negros portugueses, acrescentam-se as reapresentações da africanidade e, sobretudo (…) as
reapresentações da negritude que perturbam, promovendo a criação das suas linhas de fuga,
a definição do sentido do eu — sense of self — dos jovens negros portugueses”.
84
Brasil, que possuem um papel fulcral no que apelida de terceira fase da sociologia. Trata-se
de países que estão mais bem posicionados para levar a cabo uma contrarreação face ao
neoliberalismo e privatização de tudo; para apostar nos públicos como audiência preferencial
e procurar formar uma sociedade civil global e, com isso, influenciar as sociologias dos países
centrais (BURAWOY, 2007, p. 145).
Se olharmos para o hip-hop como um fenómeno cultural global, mainstream e massificado,
ele torna-se não apenas num veículo de expressão artística, mas também numa ferramenta
sociológica de investigação e de reflexão. A este nível, Guerra destaca que o hip-hop,
enquanto prática cultural, transcende o entretenimento, uma vez que o mesmo atua como
um "laboratório vivo" de resistência, crítica social e de empoderamento das comunidades
marginalizadas (GUERRA, 2021b). Essa visão está alinhada com os princípios da pedagogia
crítica, proposta por Paulo Freire (2018), que enfatiza o papel da educação como um
instrumento de conscientização e de transformação social.
Artistas como a Capicua, por exemplo, emergem como um caso paradigmático de como
o hip-hop pode dialogar com a sociologia crítica e com a pedagogia crítica, estando tal
afirmação patente nas suas letras, onde encontramos uma interseção entre temas feministas,
ambientais e sociais, que questionam as instauradas estruturas de poder e promovem uma
consciencialização coletiva. Como Freire (1970) sugere, o processo de "conscientização" ocorre
quando os indivíduos passam a compreender as suas condições sociais e a agir coletivamente
para transformá-las e, dessa forma, o trabalho artístico e criativo de Capicua funciona como
um ato educativo e sociológico, proporcionando narrativas que desafiam o status quo e que
criam espaços de resistência cultural.
Desta feita, ao propor o hip-hop como uma materialização de um ideal de sociologia pública,
reforçamos a ideia de que ele não é apenas um produto cultural, mas também um espaço de
diálogo sociológico. No Brasil, por exemplo, o trabalho artístico de Emicida e de Rael ressoam
como exemplos dos modos como o hip-hop pode ser mobilizado para educar e movimentar
comunidades marginalizadas, alinhando-se à pedagogia crítica freiriana. Em Portugal, por
outro lado, artistas como a Capicua, com projetos como "Mão Verde" (ler abaixo), como
vimos, demonstra como o hip-hop pode ser adaptado para audiências infantis, educando
sobre ecologia e cidadania de forma inclusiva e criativa.
4.1. Capicua
Capicua, nome artístico de Ana Matos Fernandes, nasceu na cidade do Porto em 1982.
Formou-se inicialmente em Sociologia no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa e, em
seguida, fez um Doutoramento em Geografia Humana na Universidade Barcelona. Define-se
como uma “mulher, branca, filha de pais escolarizados e neta de avós escolarizados” e com
uma infância feliz, sem nada digno de nota. Começou a fazer graffiti com quinze anos e aí
descobriu o hip-hop. Daí foi um passo para descobrir festas de rap, construir um grupo de
amigos dentro dessa cultura. Enfim, cresceu a ouvir a primeira geração de rappers do Porto,
que muito influenciaram a sua identidade de adolescente dentro da tribo. Anos mais tarde,
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escrevia as suas próprias rimas, acabando por formar uma banda com alguns amigos, com
a qual gravou EPs e mixtapes. Cumpriu todo o percurso típico que um rapper underground
precisa de fazer para espalhar o seu nome pela cena hip-hop nacional. Foi com o hip-hop
que Capicua se rotulou. Ironicamente contra todos os outros rótulos que externamente se
impunham. Aqui podemos analisar a força da música: foi com o hip-hop que Capicua criou,
primeiro, uma relação estreita com a sua cidade e com a língua portuguesa e, segundo, se
apercebeu o quanto é revolucionário elevar a nossa linguagem quotidiana, o nosso calão e as
nossas referências locais, a matéria-prima para a criação artística.
Como não podia deixar de ser, num músico underground, aprendeu com o hip-hop uma
ética da auto-superação e espírito de iniciativa, muito ligado ao ethos do-it-yourself (DIY).
Este ethos, cuja origem teve a sua génese no movimento punk, foi essencial para que
Capicua tomasse consciência da possibilidade de não se contar com apoios externos, bem
como a possibilidade libertadora de que qualquer um pode fazer música, mesmo sem tocar
instrumentos, mesmo sem saber ler pautas, mesmo sem ter voz para cantar, mesmo sem
grandes estúdios, mesmo sem editoras.
Em 2012, edita o seu primeiro LP em nome próprio, através da “Optimus Discos”, que teve
um significativo sucesso comercial e crítico. Foi o momento em que a sua música passou a
atingir um público mais abrangente, saindo do meio hip-hop e entrando nos circuitos habituais
de divulgação da música portuguesa. Foi também aí que foi descoberta pelos média. Passou a
ser solicitada para largas dezenas de entrevistas, nos mais variados meios de comunicação. Em
2014, lança o segundo disco, “Sereia Louca”, editado pela Valentim de Carvalho, e o interesse
mediático aumentou ainda mais.
Após o lançamento de "Sereia Louca" em 2014, Capicua continuou a expandir a sua presença
no panorama musical português, tendo levado a cabo diversos projetos que reforçaram a
sua versatilidade artística. Por exemplo, em 2015, lançou "Medusa", um álbum de remisturas
que incluiu novas versões de faixas anteriores e algum material inédito. No ano seguinte,
apresentou "Mão Verde", um disco-livro infantil em colaboração com Pedro Geraldes2, o seu
marido, onde abordou temas ecológicos, demonstrando o seu compromisso com a educação
ambiental.
Em 2017, participou no projeto luso-brasileiro "Língua Franca", em parceria com artistas
2 Pedro Geraldes é um músico português, reconhecido principalmente pelo seu papel como guitarrista na
banda Linda Martini, da qual foi membro fundador em 2003. Durante quase duas décadas, contribuiu significativamente
para o som e sucesso do grupo, participando em álbuns como "Olhos de Mongol" (2006), "Casa Ocupada" (2010) e
"Turbo Lento" (2013). Em fevereiro de 2022, anunciou a sua saída da banda, que prosseguiu como trio
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como o Emicida3, Rael4 e Valete5 , onde explorou as conexões culturais entre os países lusófonos
através do rap. Em 2020, lançou ainda "Madrepérola", o seu terceiro álbum de estúdio,
escrito e gravado durante a sua gravidez. Este trabalho aborda temas como machismo e a
gentrificação, e valeu-lhe o Prémio José Afonso em 2021. Ainda nesse ano, deu continuidade
ao projeto infantil com "Mão Verde II", novamente em colaboração com Pedro Geraldes, bem
como com Francisca Cortesão6 e António Serginho7.
Em 2022, lançou "Aquário", um livro que reúne crónicas, poemas e letras de canções,
refletindo a sua visão artística e pessoal. No ano seguinte, apresentou "Cor-de-Margarida", um
livro infantil que aborda a aceitação das diferenças e o amor-próprio, inspirado nas histórias
que contava ao seu filho e, paralelamente, continuou a escrever letras para vários intérpretes,
incluindo Gisela João8, Clã9, Aline Frazão10, Ana Bacalhau11 e Aldina Duarte12, para quem
escreveu todas as letras do álbum "Metade-Metade", lançado em 2023. Capicua também
esteve envolvida em projetos sociais e comunitários, como "OUPA" (2015-2018) e "Recanto"
3 Emicida é um rapper, cantor e compositor brasileiro. Destacou-se no cenário do hip-hop nacional pela
habilidade em batalhas de improviso, vencendo diversas competições em São Paulo. Em 2008, lançou o single "Triunfo",
que marcou o início de sua carreira discográfica. Seu álbum de estreia, "O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve
Aqui" (2013), consolidou sua posição na música brasileira.
4 Rael iniciou a sua trajetória musical aos 16 anos, formando o grupo Can KND. Posteriormente, integrou
o coletivo Pentágono, ganhando destaque no cenário do rap nacional. Em carreira solo, lançou álbuns como
"Diversoficando" (2014) e "Coisas do Meu Imaginário" (2016), nos quais mescla rap com influências de MPB, reggae e
samba.
5 Valete, pseudônimo de Keidje Torres Lima, nasceu em 14 de novembro de 1981 em Lisboa, Portugal. Filho
de emigrantes são-tomenses, começou sua participação no movimento hip-hop português em 1997. Lançou os álbuns
"Educação Visual" (2002) e "Serviço Público" (2006), conhecidos por letras com forte teor político e social, refletindo
uma postura anticapitalista e de esquerda. Valete é considerado uma figura influente no rap lusófono, reconhecido por
sua habilidade lírica e engajamento em temas contemporâneos.
6 Francisca Cortesão é uma cantora, compositora e multi-instrumentista portuguesa. Desde 2006, lidera o
projeto Minta & The Brook Trout, onde escreve e interpreta canções que têm sido reconhecidas pela sua simplicidade e
profundidade lírica. Além disso, cofundou a banda They’re Heading West, colaborando com diversos artistas nacionais.
7 António Serginho é um músico português, reconhecido pela sua habilidade em instrumentos de percussão
e teclas. Tem colaborado com diversos projetos musicais, incluindo os já mencionados "Mão Verde" e "Mão Verde II",
ao lado de Capicua, Pedro Geraldes e Francisca Cortesão, focados na educação ambiental através da música. Além
disso, integra o grupo Retimbrar, que se dedica à reinvenção da música tradicional portuguesa
8 Gisela João é uma fadista contemporânea que trouxe uma nova energia ao fado tradicional. O seu álbum
de estreia homónimo, lançado em 2013, foi amplamente aclamado pela crítica, destacando-se pela autenticidade e
emoção nas suas interpretações.
9 Formada em 1992, Clã são uma banda portuguesa de pop rock conhecida pela sua versatilidade musical
e letras introspectivas. Com a vocalista Manuela Azevedo à frente, o grupo lançou vários álbuns de sucesso, incluindo
"Kazoo" (1997) e "Lustro" (2000).
10 Aline Frazão nasceu em Luanda e é reconhecida por fundir música tradicional angolana com jazz e MPB.
Álbuns como "Insular" (2015) e "Dentro da Chuva" (2018) evidenciam a sua capacidade de criar músicas que refletem
questões sociais e pessoais, estabelecendo-a como uma das vozes mais influentes da música lusófona contemporânea.
11 Ana Bacalhau ganhou notoriedade como vocalista da banda Deolinda, conhecida por revitalizar a música
tradicional portuguesa com uma abordagem moderna. Em 2017, lançou o seu álbum a solo "Nome Próprio", onde
explora uma variedade de estilos musicais, desde o fado ao pop, demonstrando a sua versatilidade vocal e artística.
12 Fadista portuguesa nascida em Lisboa, Aldina Duarte é conhecida pela sua interpretação profunda
e emotiva do fado tradicional. Com uma carreira que inclui álbuns como "Roubados" (2006) e "Quando Se Ama
Loucamente" (2015), Aldina tem sido uma defensora da pureza do fado, colaborando com diversos poetas e músicos
para manter viva a essência deste género musical.
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(2022-2023), e manteve uma presença ativa como cronista na revista Visão (2015-2021) e no
Jornal de Notícias. A sua carreira multifacetada destaca-se pela escrita emotiva, feminista e
politicamente engajada, consolidando-a como uma das figuras mais influentes na música e
literatura portuguesas contemporâneas.
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Importa, pois, reconhecer que o mesmo processo se aplica em termos espaciais.
Efetivamente, os bairros urbanos de pendor social são exemplo paradigmático. São tidos
privilegiadamente como o topo do perigo, na medida em que se afiguram como locais de
transgressão estética (locais de degradação do espaço construído e da sua envolvente, de
qualidade de construção duvidosa, etc.), mas também de transgressão ética (habitados por
populações desviantes, caracterizados por famílias desagregadas, por índices de insucesso
escolar e profissional muito elevados, por práticas de economia subterrânea, pela delinquência
juvenil, etc.). Por outro lado, este reconhecimento social leva à constituição de um estigma
que conduz a perceção de que os bairros são todos iguais e são todos espaços perigosos. Esta
etiquetagem é constituída por dois processos paralelos: a redução cognitiva e o evitamento
espacial. Através da redução cognitiva, os atores sociais elaboram um mapa orientativo acerca
dos espaços de insegurança e das atividades desviantes, uma vez associados ao estereótipo
que tem na base o rumor enquanto alavanca fulcral de transmissão da informação mediática.
Por via do evitamento experiencial, os atores sociais não conhecem, nem passam pelos topos
do perigo, o que inclusivamente é facilitado pela própria topografia da cidade, na medida em
que não é necessário passar ou frequentar os bairros para a prossecução de um quotidiano.
Será também importante considerarmos que os relatos mediáticos acabam por cristalizar
um imaginário social acerca dos bairros, pautado por uma representação negativa, toldada
por sentimentos de medo e de insegurança. Este imaginário assume-se como elemento
determinante no estabelecimento das relações dos espaços estigmatizados com a cidade
no seu todo, provocando relativamente aos bairros “a sua rutura com a cidade normativa, a
homogeneização dos habitantes sob a etiqueta negativa, a perda de autoestima coletiva e o
consequente agravamento da situação” (FERNANDES, 1998, p. 75).
Dentro de uma leitura renovada do interacionismo e de um frutuoso cruzamento com Pierre
Bourdieu, podemos considerar que uma cidade se apresenta como um conjunto descontínuo
de espaços sobre o qual, sobretudo, e por via das representações mediáticas, os atores sociais
da normatividade tendem a representar os espaços da habitação social como “perigosos”,
vividos e percecionados como inseguros. Desta feita, nasce uma representatividade
da insegurança, vivida no imaginário coletivo como um permanente possível. Radica
neste sentimento o crescente prognóstico de atos violentos, a busca desenfreada de
comportamentos securizantes, o aumento do medo e a constituição de estereótipos que se
alimentam de rumores. É com base nestes processos – ou melhor na reflexividade sobre os
mesmos – que se imbrica, em parte, a matéria de que são feitas as canções críticas de Capicua.
Verdade e Consequência
Ouve o que eu te digo,
Vou-te contar um segredo,
É muito lucrativo que o mundo tenha medo,
Medo da gripe,
São mais uns medicamentos,
Vem outra estirpe reforçar os dividendos,
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Medo da crise e do crime como já vimos no filme,
Medo de ti e de mim,
Medo dos tempos,
Medo da multidão,
Medo do chão e do tecto,
Medo da solidão,
Medo de ficar gordo velho e sem um tostão,
Medo do olho da rua e do olhar do patrão
E medo de morrer mais cedo do que a prestação,
Medo de não ser homem e de não ser jovem,
Medo dos que morrem e medo do não!
Medo de Deus e medo da polícia,
Medo de não ir para o céu e medo da justiça,
Medo do escuro, do novo e do desconhecido,
Medo do caos e do povo e de ficar perdido,
Sozinho,
Sem guito e bem longe do ninho,
Medo do Vinho, Do Grito e Medo do vizinho (Capicua, Medo do Medo, 2012).
Retomando Burawoy (2006), o mesmo advoga que a sociologia pública deve dialogar com
os públicos para entender e transformar as estruturas que moldam a vida em sociedade. Em
Medo do Medo, Capicua estabelece essa conexão ao explorar como o medo é socialmente
construído e perpetuado em contextos vivenciais contemporâneos e neoliberais. Passagens
como "O medo é uma coleira" sugerem a internalização de estruturas de controlo que impedem
a emancipação pessoal e coletiva. A música, nesse sentido, funciona como uma forma de
sociologia pública ao questionar de que forma esses medos estruturais – tais como o medo
do fracasso ou da exclusão – moldam as relações sociais e políticas. Para Burawoy (2006), a
sociologia pública não apenas diagnostica problemas, mas também oferece narrativas que
possibilitam a resistência, algo que Capicua exemplifica ao transformar a experiência do medo
numa espécie de chamamento à ação coletiva.
Paulo Freire (1970) argumenta que a educação deve ser um processo de conscientização,
ajudando os indivíduos a identificar as forças que limitam a sua liberdade. Em Medo do Medo,
Capicua apoia-se na linguagem poética e metafórica para provocar reflexões sobre a condição
humana contemporânea, atuando como uma educadora cultural. Ao trazer à tona temas
como a alienação e a ansiedade, a música convida os ouvintes a reconhecerem as raízes sociais
desses problemas, promovendo um diálogo crítico. Mais, além de Burawoy (2006) e Freire
(1970), outros teóricos ajudam a contextualizar a música de Capicua em análise. Ahmed (2004),
por exemplo, discute como as emoções, incluindo o medo, são moldadas culturalmente e
utilizadas para organizar relações sociais. Em Medo do Medo, Capicua demonstra-nos que
o medo é retratado como uma emoção que não apenas controla os indivíduos, mas que
também estrutura a sociedade contemporânea. A este respeito, Ahmed (2004) argumenta
90
que as emoções podem ser mobilizadas para reforçar hierarquias ou para desafiar as normas
existentes – uma ideia que ressoa na forma como Capicua transforma o medo em resistência.
A questão leninista “O que fazer?” é algo ubíquo a todo o sociólogo que analisa e se envolve
em questões sociais. Após a teoria, analisar os dados e apresentar os resultados, o que
fazer? O que fazer para mudar a situação que estudamos? Devemos nos manter numa estrita
neutralidade axiológica e afastarmo-nos dos problemas sociais que analisamos (o que nem
de perto nem de longe corresponde ao que Max Weber procurou defender com a ideia de
neutralidade axiológica)? Ou envolvermo-nos na prossecução de soluções? É esta, em parte, a
resposta da sociologia pública, como analisámos atrás. As opções são várias. Mas a primeira,
e talvez a que mais seguidores tem encontrado, é a procura de focalizar as desigualdades e
denunciá-las. E uma das melhores maneiras é dando voz aos desfavorecidos.
Um dos primeiros exemplos leva-nos a um autor que associamos à sociologia da
comunicação: Paul F. Lazarsfeld. Este autor, em conjunto com dois colegas, analisou de forma
qualitativa, com uma grande preocupação em ouvir os atores sociais, o impacto social e
pessoal do desemprego de longa duração numa pequena cidade austríaca na década de 1930.
A questão que levanta no último capítulo é sintomática: “Durante quanto tempo pode isto
durar?” (JAHODA, LAZARSFELD & ZEISEL, 2002).
Mas a obra clássica desta sociologia pública não pode deixar de ser A Miséria do Mundo,
de Pierre Bourdieu (2011). O sociólogo francês decide colocar a sua sociologia a atuar
politicamente. Como qualquer boa sociologia pública, deu a voz a pessoas ubíquas na nossa
sociedade, mas sempre invisíveis. Deu-lhes a palavra, respeitou os seus discursos em longas
entrevistas pouco estruturadas, e apresentou diferentes análises do mundo social construídas
por cada entrevistado. Foi um sucesso comercial e mediático.
Foi um passo que o colocou numa longa tradição de intelectuais engagés francês:
Sartre, Foucault, entre outros. Uma perspetiva muito próxima à sociologia pública, a de um
cruzamento entre teoria e prática, em que os resultados devem ter consequências reais na
vida das pessoas. Assim, com o enfoque nas pequenas misérias diárias, Bourdieu colocou o
centro as desigualdades sociais novamente no cerne do debate político: a precariedade, os
excluídos do interior, os imigrantes, as mulheres vítimas de violência doméstica, etc. Assim
sendo, como pode Capicua ajudar? Ora, após uma leitura das suas letras, que denotam uma
clara sensibilidade sociológica, pensamos que, à semelhança de Pierre Bourdieu, elas têm uma
capacidade de desconstruir e refutar um conjunto de doxas que estão na base de muitos
estigmas e desigualdades sociais. Isto porque a arte é ela própria criadora de ação, produtora
de conhecimento ao suscitar a emergência de problemáticas que se fazem refletir na própria
realidade social.
Veja-se, por exemplo, a música Medo do Medo. Sem quaisquer problemas poderia
ser utilizada para resumir um artigo sobre teoria de etiquetagem e de pânicos morais.
Especialmente sobre uma verdadeira linha de montagem de pânicos morais: “de ti e de mim”,
“da multidão”, “de ficar gordo”, “de Deus”, “medo de judeus, negros, árabes, chineses”, “do
terrorismo”, “da cidade”. E da interiorização que isso implica: “Eu tenho tanto medo/ Nós
temos tanto medo” e das reações que isso implica ao nível urbano: “Compro uma arma/
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Agarro a mala, fecho o condomínio/Olho por cima do ombro/Defendo o meu domínio/Protejo
a propriedade”. Através desta letra musical, podemos ver como se processa o surgimento de
uma cidade dentro da cidade. O sentimento de medo, de walking on thin ice, como diriam
os americanos, leva a um fechamento social, a construir “um muro/E mantém a distância”.
Manter a distância não apenas a Outros, mas também “Uma vontade de pôr grade/À volta da
realidade”. Tudo isto está na base dos condomínios fechados, verdadeiros guetos voluntários,
onde as classes médias/altas criam um espaço habitacional fechado em si mesmo, com um
forte dispositivo de segurança, com o propósito de os proteger contra uma suposta ameaça
das restantes classes sociais, remetendo isto para a questão do medo da cidade que Bauman
fala, expressa através de uma necessidade de “defender a própria segurança procurando
apenas a companhia dos semelhantes e afastando os estrangeiros” (BAUMAN, 2009, p. 5).
Numa música de 4m7s, o substantivo “medo” é utilizado nada menos que 65 vezes. É ubíquo
na música e, podemos dizer, na sociedade. Quantas vezes nos últimos tempos ouvimos falar
de uma nova doença, de super-bactérias, de grupos terroristas que ameaçam o nosso estilo
de vida, etc.? Isso leva, apoiando-nos na música, a várias opções com o mesmo resultado: o
nosso medo da morte e envelhecimento faz com que entreguemos à “farmácia” e à “pastilha”
os nossos receios e responsabilidades; o medo do outro leva a que se “compr[e] uma arma”
e se “constrói um muro” e, mais importante, “Aceita a vigilância/ O medo paga à máfia/ Pela
segurança”.
Assim, como temos vindo a detalhar, Capicua na música Medo do Medo faz uma radiografia
de uma verdadeira sociedade do medo. Ulrich Beck (1992) falava-nos da sociedade do risco,
consequência de uma rede infindável de pânicos morais, na qual se tem medo de tudo. Capicua,
na última estrofe, fala de mais um medo que, por sua vez, explica o porquê de este avolumar de
medos: “Eles têm medo de que não tenhamos medo”.
De forma muito resumida, é este o propósito de uma boa sociologia pública. Se para
Wittgenstein o papel da filosofia era o de mostrar à mosca o caminho para sair do caça-moscas,
para Bourdieu o papel da sociologia é de revelar “a self-deception, o mentir a si próprio,
coletivamente mantido e encorajado, que em todas as sociedades está no fundamento dos
valores mais sagrados e, por isso mesmo, de toda a existência social” (BOURDIEU, 1996, p. 31).
Para isso é necessário a rutura com a doxa, particularmente com o que apelida de paradoxo
da doxa: o facto de a ordem do mundo, apesar de todas as desigualdades e injustiças, ser
respeitada e, mais, aceite muitas vezes como algo natural e legítimo.
E, neste pequeno exemplo de uma música, é exatamente isso que Capicua faz. Analisa
criticamente um processo de produção artificial de pânicos morais e medos, que serve para
encobrir desigualdades. Mas mais do que isso, procura um público amplo para ouvir as suas
posições críticas. Deste modo, Capicua, bem como a sociologia pública, responde à questão de
Howard S. Becker (1967), De que lados estamos, e às de Burawoy (2006), Conhecimento para
quem? e Conhecimento para quê?. A sua resposta é clara: do lado dos mais desfavorecidos e
deserdados.
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6. Pistas reflexivas
O exercício que se procura fazer poderia, tendo em conta o material analisado, consistir
unicamente na análise descritiva dos temas das canções objeto de estudo – tarefa necessária
e primordial e, por tal, condição primeira para que o que partilhamos possa ser possível.
Não obstante, a nossa análise pretende ir mais além, ao procurar demarcar uma perspetiva,
ainda em construção, no que respeita à inter-relação que existe, e que se procura potenciar
precisamente através da análise, entre a arte e as ciências sociais, nomeadamente a sociologia.
Pretende-se, então, recolocar, de certo modo epistemologicamente, os posicionamentos
daqueles dois domínios, numa perspetiva dialógica, onde a arte, mais do que um espelho
ou reflexo da realidade social é, ela própria, criadora de ação, produtora de conhecimento
ao suscitar a emergência de problemáticas que se fazem refletir na própria realidade social
(CHEPP, 2015).
O que se pretende é reforçar a necessidade de um renovado entendimento epistemológico
(GUERRA, 2020; GUERRA, 2021b) sobre o campo das artes, enquanto produtor de
conhecimento ao representar de forma própria e autónoma a realidade social, interferindo
nesta e ao condicionar e gerar análises e interpretações no seio do conhecimento instituído.
Assim, pretendemos demonstrar como os movimentos sociais encontram recursos na música,
confirmando a importância das representações coletivas em relação à ação coletiva: neste
quadro, a música é uma atividade social através da qual novas formas de identidades e práticas
sociais afloram (EYERMAN & MCCORMICK, 2006).
É claro que temos de falar da relação profícua da arte - interventiva, reflexiva, desconstrutora
- com a educação, pois pugnamos pela importância da arte na educação para a construção
de uma pedagogia crítica. A arte potencia o desenvolvimento de um imaginário de possíveis
determinantes para o desenvolvimento humano. A diversidade das linguagens artísticas aciona
conhecimento, interconhecimento, intraconhecimento. As artes proporcionam emoções
poliédricas, saberes diversos, inovação, criatividade, competências humanistas – são, assim,
significado e significante de reflexibilidade numa sociedade cheia de incertezas, riscos e
obliquidades (GUERRA & SOUSA, 2021).
Na nossa opinião, é possível aferir a importância da arte enquanto ação social e desta
enquanto meio na construção de uma pedagogia crítica através das letras de Capicua. Devido
a constrangimentos de espaço, apenas nos foi possível analisar uma das suas letras. Mas
pensamos que conseguimos demonstrar a proficuidade que essa pequena música, de menos
de cinco minutos, possui: uma visão crítica e irónica da sociedade, que faz pensar e duvidar
da narrativa hegemónica. E além desta posição crítica, a música leva à ação. E é exatamente
por isso que no último capítulo deste artigo decidimos avançar, de forma sintética, com uma
possível nova pedagogia que leve a um contínuo repensar do estado do mundo (SANTOS
& GUERRA, 2017): uma pedagogia crítica, muito ligado ao ethos DIY e confrontativo do
movimento punk, que permitisse que as pessoas voltassem a sentir que tinham o controlo das
suas vidas. Que são sujeitos com agência e não simples consumidores passivos numa sociedade
de consumo e alienante.
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96
PARTE III
97
NOVE REFLEXÕES SOBRE A GRAVURA EM RELEVO E A XILOGRAFIA
Reflexão 1
Desde seu surgimento em diversas culturas e épocas, a estampa esteve vinculada à
reprodutibilidade (anúncios de mercadorias , cartazes, etiquetas, papel moeda), a difusão e
ilustração das ideias (os livros, textos religiosos), fatos da atualidade (a folha volante – a xilo
de cordel –, a imprensa escrita, cartazes, gravuras comemorativas), Poderíamos inclusive dizer
que a invenção da maioria das diversas técnicas da gravura esteve vinculada ao mercado, pois
o que se visava era produzir tiragens cada vez maiores, mais econômicas e de maior qualidade
técnica. No campo das artes visuais, a imagem impressa sempre ocupou uma posição de
destaque, mesmo que de forma intermitente. Por outro lado, a gravura tem sido associada,
desde os primórdios das artes, ao desenho, já que tanto o suporte definitivo, tradicionalmente
o papel, como as especificidades do caráter gráfico – a gestualidade do traço, as hachuras –
aproximam as narrativas dessas duas manifestações artísticas.
Do ponto de vista etimológico, devemos discernir as nuanças entre o que hoje denominamos
como gravura de interpretação, gravura de reprodução, e gravura original. Na gravura
de interpretação, o criador da imagem não a executa. Isto fica por conta de um gravador
experiente que visa a reproduzir, com a maior acuidade, a intenção do artista, como acontecia
com a xilogravura japonesa, na renascença ou com as ilustrações de Doré. Na gravura de
reprodução, o realizador-gravador transcreve obras existentes no campo das artes, visando
a reproduzi-las o mais fielmente possível. Ferreira cita Vassari e Delacroix, que coincidiam
em sustentar, em épocas diferentes, que a finalidade da gravura de reprodução era divulgar
a cultura (FERREIRA, 1994, 31). Permitindo, acrescentamos nós, a multiplicação de aqueles
originais guardados em coleções privadas e museus, numa época em que as distâncias eram
enormes.
Contribuindo também para tornar o custo da obra de arte mais acessível, uma vez que uma
gravura custa menos que um original. Atualmente há edições limitadas de livros de artistas
ou de livros para bibliófilos, realizadas por editoras especializadas, como, por exemplo, a Skira
francesa ou a Cosac & Naify brasileira. Esse é o caso dos álbuns de gravuras publicados em
edições limitadas, numeradas e autografadas por seus autores. A gravura original – concebida,
realizada e impressa pelo próprio artista ou sob a sua supervisão – esteve direcionada à
criatividade e à difusão dos conteúdos espirituais e expressivos mais diversos do ser humano.
Contudo, nem sempre uma determinada forma de fazer gravura se mantém no mesmo
patamar de excelência por muito tempo. Os diversos procedimentos técnicos sofrem altos
e baixos, viram modas fugidias que caem no esquecimento. O apogeu de criatividade em
determinado ramo da gravura, independentemente da época, está quase sempre vinculado
98
à identificação do sujeito criador, tanto com os procedimentos técnicos, a empatia com os
materiais e as ferramentas inerentes à mesma, como à reinvenção pessoal da técnica como,
por exemplo, em Antonio Berni, Franz Krajcberg, Wenda Gu, Wayne Crothers, Willie Cole, e
Thomas Kilpper, dentre muitos outros.
Reflexão 2
Utilizamos o conceito de gravura em relevo, por sua abrangência, para nos referirmos à
gravura subtrativa realizada por entalhe, perfuração, abrasão, queima ou corte sobre uma
superfície plana na qual, o que é entalhado resulta na cor branca – no caso, a cor do papel,
às vezes denominado de negativo – e o que fica em relevo recebe a tinta, isto é, o positivo.
O mesmo aplica-se a gravura em relevo aditiva, na qual o positivo é a superfície com maior
altura.
Os antecedentes da gravura remontam-se à arte pré-histórica em geral, e pré-cabraliana
no Brasil em particular. Adam e Robertson balizam que um dos exemplos do que poderia ser
considerado como o Intaglio mais antigo tem 77 000 anos de antiguidade e foi encontrado em
South Cape, África do sul (ADAM & ROBERTSON, 2007, 8). Chamberlain baliza que na década
de 1970 os arqueólogos usavam a expressão “gravura a buril” para se referir às inscrições
paleolíticas devido ao elevado grau de precisão. E acrescenta, mais adiante, que à época
uns vinte tipos diferentes de buris de pedernal, para diferentes finalidades, tinham sido
encontrados (Chamberlain, 1978a).
Figura nº 1: À esquerda: Carimbo Quimbaya ou Muísca em argila para pintura corporal, medindo em média 07 X 10,5
cm. Imagem do Catálogo da mostra Sellos rodillos estampaderas. Quimbaya zona arqueológica. Alberto Betancourt B.,
gravura sobre papel artesanal, edição de 300 exemplares, Museu Candango, Brasília, DF, (s. f). Fonte: Acervo do autor.
À direita: Carlos Giovanni Mesquita, cilindro em argila cozida, 24 X 42 cm, edição de 05 exemplares, Ateliê de gravura
da UFES, Vitória, ES, Brasil, 2008. Fonte: Própria.
Nas Américas, houve fabricação de carimbos para pintura corporal em várias partes do
continente. Argila cozida e madeira, e mais raramente osso ou pedra, eram usados em Tlatilco,
México, desde há 3000 anos. Os carimbos variavam muito de forma e tamanho, indo desde um
cm2 até 23 cm de diâmetro. Westheim cita uma obra de Jorge Enciso, na qual se reproduzem
600 selos para pintura corporal de origem Olmeca, Náuatle, Totonaca e Teotihuacana
(WESTHEIM, 2005, 289-291). Na Colômbia, os carimbos Quimbayas pré-colombianos de argila
cozida alcançaram um sofisticado grau de elaboração. No Brasil, os carimbos para pintura
99
corporal eram feitos com roletes de bambu, aroeira e casca de cajá, dentre outras plantas,
assim como também em osso e, provavelmente, em pedra arenito ou calcária (PESSIS, 2004,
145-146). As crônicas de Frei Gaspar de Carvajal, no século XVI, e do padre Cristóbal de Acuña,
no século XVII, mencionam a pintura corporal por esses médios assim como as substâncias
empregadas no preparo das cores1. Dados corroborados por Costella (COSTELLA, 2003, 83-
86). Resumindo, nas Américas a gravura em relevo fora inventada de forma autóctone pelos
seus primeiros povoadores e o suporte definitivo da mesma costumou ser a epiderme humana.
Figura nº 2: À esquerda: Impressão por esfregado pelo verso do papel de uma pictografia. Fonte: Traditional techniques
in contemporary Chinese Printmaking. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2005, pp. 102. À direita: Moreno Pinheiro
Cunha, xilografia em compensado impressa pelo mesmo método, denominado de takuzuri pelos japoneses, 42 X 59,6
cm, Ateliê de gravura da UFES, Vitória, ES, Brasil, 2006. Fonte: Própria.
O esfregado ou repuxado de estelas de pedra com inscrições é uma tradição viva na China
que abarca um período que se estende desde 2000 anos AEC até os dias de hoje. Há inúmeras
evidências arqueológicas de repuxados sobre osso, carapaça de tartaruga, azulejos, cerâmica,
bronze, jade e madeira. Contudo, a matrizes mais empregadas foram as inscrições em pedra,
visando reproduzir fielmente os textos canônicos de Confúcio. A partir da década de cinquenta
do século XX, houve intentos bem sucedidos de retomar a matriz de pedra, no caso, pedra-
sabão, como substituto da madeira e do linóleo na gravura, entre os inuit, no ateliê Kinngait
de Cape Dorset, Nunavut, Canadá.
Em China aconteceu o desenvolvimento do estampado sobre tecidos entre os anos 100 e
400 EC, e do estampado em cores entre os anos 680 e 760 EC. Na Índia, a estampagem de
tecidos por médio do carimbo de blocos de madeira tem uma longa história, que a tradição
oral remonta até 3000 anos. Segundo Costella, a palavra sânscrita Chintz (que passou a ser o
Chit indiano e posteriormente a Chita portuguesa) significa tecido de algodão de pouco valor
(geralmente morim) impresso com matriz em madeira (COSTELLA, 2003, 45-49). Atualmente
há na Índia um renascimento das tradicionais técnicas de impressão de tecidos com matrizes
xilográficas impressas com um golpe da mão. Notadamente, nas regiões de Jaipur, Sanganer
e Bagru, no estado indiano de Rajasthan, aonde chegou a ser criado em 2005, um museu,
The Anokhi Museum of hand printing. Na bacia mediterrânea, Chamberlain descreve que
os mais antigos tecidos estampados com blocos de madeira, datados do ano 400 EC, foram
1 Autores vários, Catálogo da Mostra de Gravura Brasileira. SP: Fundação Bienal, 1974, p.131.
100
encontrados no Egito (CHAMBERLAIN, 1978b, 11). Vários cronistas descrevem o avançado
estágio da técnica de estampação entre os anos de 400 e 600 EC, embora existam registros
da presença da estampagem de tecidos no território desde o ano 2000 AEC. Na Europa, a
impressão de tecidos com cilindros de madeira data do século XIII, aproximadamente. Com
destaque para os remanescentes ateliês de stampa a rugine (estampagem com óxido de ferro)
com técnicas de impressão do século XVIII na região da Emília-Romana, no Marche, Itália2.
Reflexão 3
Desde a Renascença com o advento do livro impresso e ilustrado na era do paradigma pré-
fotográfico, a xilografia passou a encarnar o conceito de gravura em relevo embora existissem
outras formas de fazê-lo. Posteriormente, quando passou a vigorar o paradigma seguinte,
neste caso, o fotográfico, a solidificação técnica dos processos químicos e o aprimoramento
dos suportes empregados para fixar a imagem por intermédio de dispositivos ópticos,
eximiram à gravura da necessidade reprodutiva. Coincidentemente, esta foi a época das
grandes exposições universais nas metrópoles das potencias colonialistas, da descoberta da
xilografia japonesa por parte da arte ocidental europeia, e do surgimento dos antecedentes
do expressionismo e da gravura original, nas figuras cimeiras de Munch e Gauguin. Ambos os
artistas amplificaram a xilografia enquanto meio expressivo gráfico. Seriam os expressionistas
alemães seus herdeiros diretos, os que acabariam por fixar no imaginário coletivo uma
associação indissolúvel entre xilografia e gravura em relevo enquanto meio expressivo
“direto”, emparentado com o desenho pelo caráter visceral dos entalhes.
No entanto, durante um século, a xilografia europeia, herdeira da rica tradição iconográfica
das iluminuras medievais sobre pergaminhos, com seus desenhos lineais com tinta preta e
composições estilizadas seguiu as pautas da referida tradição. Privilegiando as linhas pretas
dos contornos, em relevo, e descartando outros elementos gráficos. Aos poucos, começaram
a surgir pequenas áreas de raiados e hachuras à maneira de sombras ou de texturas que
passaram a se multiplicar e diversificar, no intuito de representar as diferentes matérias. Como
é possível constatar ao compararmos algumas das diferentes ilustrações xilográficas da obra-
prima de Koberger em 1493. Por sua vez, a linha preta sobre fundo branco foi uma constante
na gravura oriental, em especial, em China e Japão. No Oriente, a pauta fora marcada pela
caligrafia e o desenho. No entanto, o emprego da cor na xilografia começou desde cedo em
virtude do tipo de pigmentos empregados e da forma de entintar a matriz – o que possibilitava
entintar mais de uma cor em uma mesma matriz.
O ano de 1513 é data oficial do nascimento da primeira xilogravura feita com linha branca
sobre fundo preto, obra do suíço Urs Graf. O artista-soldado invertera e, ao mesmo tempo,
simplificara a forma de entalhar o desenho. Com esse simples procedimento a xilografia
ganhou, por complementação, o seu segundo elemento constitutivo. Em conjunto, as técnicas
da linha preta sobre fundo branco e da linha branca sobre fundo preto, acrescidas do trabalho
2 Recuperado de https://it.wikipedia.org/w/index.php?title=Stampa_a_ruggine&oldid=111370994 em
20/04/2021
101
tonal das áreas, constituem a sintaxe da linguagem gráfica.
Figura nº 3: À esquerda: Anônimo holandês, nona ilustração da versão curta da Ars Moriendi, 1460-70. Fonte:
Reflexão 4
A xilografia é de fato uma forma específica da gravura em relevo. A voz xilo vem do grego
Ksulon e significa, segundo o dicionário Houaiss, “madeira, tronco, árvore”. O dicionário
acrescenta que o vocábulo xilografia começou a ser usado em 1844, xilográfico em 1858,
e xilógrafo em 18743. Por sua vez, a palavra xilogravura, no sentido de gravura em madeira,
começou a ser empregada a começos do século XX. Um breve arco temporal possibilita-nos
ver que os incunábulos chineses e coreanos datam dos séculos VII e VIII, respectivamente. E
que ambas as culturas imprimiam livros com tipos móveis e ilustrados com xilogravuras no
século XIII.
Por sua vez, o alemão Albert Pfister publicava o primeiro livro europeu ilustrado com cinco
xilogravuras em 1460. Que o também alemão Erhard Raldof editava as primeiras xilos coloridas
europeias em 1482. E que, pouco depois, em 1493, Anton Koberger editava, em Nuremberg,
Alemanha, a Nuremberg Weltchronik com textos sobre geografia, religião e árvores
genealógicas das casas reais europeias, escritos por Hartmann Schedel, e profusamente
ilustrado com 645 xilogravuras de diversos autores usadas repetidamente – para representar
diversas cidades e fatos – até alcançar o total de 1809 ilustrações (Grafton, 1999, iv).
O referido livro marcou um ponto de mutação no que diz respeito ao crescente papel da
xilografia na incipiente indústria editorial, uma vez que se trata de um livro de trezentas e
poucas páginas. Cranach, Baldung Grieg e Holbein destacam-se na ilustração norte-europeia
durante o século XVI. Na Itália, Aldus Manutius se sobressai pela leveza do tratamento lineal da
3 Houaiss, A.; Villar, M. S. M. (2001) Houaiss. Dicionário da língua portuguesa, RJ: Instituto Houaiss/Editora
Objetiva Ltda., p. 2896.
102
ilustração xilográfica. Por sua vez, foi em 1765 que o japonês Harunobu fez a primeira edição
colorida de uma xilografia, empregando matrizes separadas, uma para cada cor, descoberta
esta que daria início ao período áureo da gravura japonesa conhecida como Ukiyo-e ou
melhor, Mokuhanga. Convém balizar que tanto na xilografia japonesa quanto na europeia
estamos em presença de um trabalho de equipe interdisciplinar, que compreende as figuras
do editor, do artista, do artesão entalhador e do impressor. Já o primeiro livro sobre a técnica
xilográfica foi publicado por Jean-Michel Papillon em Paris, em 1766. Na mesma cidade, em
1783, Hoffmann desenvolveu a politipia. Por sua vez, na Inglaterra do movimento de Arts &
Crafts, Edward Burne-Jones e William Morris deram grande impulso tanto a xilografia quanto,
especialmente, à gravura de topo ou xilografia ao contrafio, técnica aprimorada e difundida
pelo também inglês Thomas Bewick, em fins do século anterior.
Paralelamente, nas décadas de 1840 e 1850, deu-se um último impulso à utilização da
xilografia na indústria gráfica, desta vez, na utilização de caracteres de madeira de grande
tamanho para a impressão de cartazes coloridos com pochoir por Rouchon, em 1845; e os
cartazes com xilografias a tamanho natural de Morse, em 1856. Concomitantemente, entre as
décadas de 30 e 60 do mesmo século, o inglês Baxter idealizou um método que combinava um
desenho resolvido com águas-fortes e águas-tintas e colorido com xilografia. Pouco depois, em
1860, Boltog inventava a fotoxilografia. A xilografia entraria em estagnação até a descoberta
pelos europeus da xilo japonesa na segunda metade do século XIX, e das inovadoras obras
xilográficas de Gauguin e Munch, que marcariam o renascimento da técnica enquanto gravura
original.
Reflexão 5
No Brasil, os antecedentes da gravura autóctone, na forma de carimbo, têm uma longa
existência documentada por diversas fontes, dentre as quais cronistas, exploradores – como
Langsdorff, Hercules Florence e Guido Boggiani –, e mais recentemente antropólogos e
etnólogos – como Darci Ribeiro, Lux Vidal e Regina Polo Müller. Contudo, sob o peso de uma
tradição de etnocentrismo europeu costuma-se dizer que a gravura começou pouco após
a descoberta do Brasil com a edição das primeiras obras com relatos e imagens sobre os
ameríndios.
Estamos falando das 54 xilogravuras das edições príncipes de Hans Staden: suas viagens
e cativeiro entre os selvagens do Brasil, Marburgo, 1557; das 41 xilografias do livro de André
Thevet, Les singuláritez de la France Antartique, Paris: 1557; e de Jean de Lery, Histoire d’um
Voyage faict en la terre du Brésil, La Rochelle, 1578. A seguir, houve uma espécie de vazio
histórico que foi preenchido, ao que parece, apenas pelas vinhetas e emblemas jesuítas das
missões durante o século XVIII, e com o trabalho isolado do padre jesuíta José Diógenes de
Menezes, em Minas Gerais, em 1806. As guerras napoleônicas provocaram o traslado da corte
portuguesa ao Brasil, e, por conseguinte, a migração dos gravadores do Arco do Cego em
Lisboa para dar início a Impressão Régia e ao Arquivo Militar em conjunto com o Colégio das
Fábricas no Rio de Janeiro, em 1809.
103
A posterior chegada da Missão francesa, em 1816, após a queda do governo napoleônico
permitiria fundar a Escola de Belas Artes. De fato, todos os xilógrafos – e também os
gravadores em metal e litógrafos – atuantes no Brasil na primeira metade do século XIX, eram
estrangeiros e dedicavam-se à gravura de reprodução.
Figura nº 4: Anônimo, Ilustração da edição príncipe do livro de Hans Staden, Xilografia, 1557. Fonte: Recuperado de
https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008047&bbm/6639#page/138/mode/2up.
A xilografia artística brasileira terá de esperar pela publicação de duas obras-primas de
Oswaldo Goeldi para ter data de nascimento oficial na década de 30 do século XX. Estamos a
falar de 10 gravuras em madeira de Oswaldo Goeldi, com prefácio de Manuel Bandeira, em
1930 4; e Cobra Norato. Texto de Raul Bopp, 11 xilogravuras de Goeldi5, em 1937 (SILVA, 1995,
185-186). Convém balizar que Goeldi manteve um longo e muito frutífero relacionamento
com a ilustração de livros, revistas e jornais entre as décadas de 20 e 60. Embora ele não tenha
participado diretamente da semana de 22 (SILVA, 1995, 3) a sua obra se constitui no marco
divisório das águas que introduzem as vanguardas no Brasil (SILVA, 1995, 225-227).
A xilografia moderna brasileira inexistia antes de Goeldi, porém se complementa com a obra
de Lívio Abramo, o outro pai da xilogravura nacional. Nele há também o apelo à ilustração de
jornais e livros como pode ser constatado ao acompanhamos a sua biografia. A suíte de 37
xilogravuras para o livro Pelo Sertão: Histórias e paisagens, de Affonso Arinos de Melo Franco6,
em 1946, é uma sinfonia em preto e branco, em perfeita comunhão com as ideias preconizadas
por Westheim sobre a xilogravura, no que diz respeito à obtenção de um efeito de policromia,
que sugere cor, por intermédio das inter-relações de justaposição e contraposição assim como
as nuanças entre a cor preta e cor branca (WESTHEIM, 2005, 225-227).
Reflexão 6
4 Impresso em Rio de Janeiro pelas Officinas Graphicas de Paulo Pongetti & Cia., em uma edição de 200
exemplares, numerados e assinados pelo autor.
5 Impresso em Rio de Janeiro pelos Ateliês Reunidos Rohde Gaelzer, em edição semiartesanal impressa pelo
mestre impressor Armindo Di Mônaco, com tiragem de 150 exemplares coordenadas pelo próprio Goeldi.
6 Em edição fechada com tiragem original editada pela Sociedade dos 100 Bibliófilos.
104
As madeiras tradicionalmente usadas na xilografia brasileira ao fio são: jacarandá, canela
preta, jequitibá-vermelho, cedro, mogno, pinho, pequiá-marfim, casca de cajá, guatambu,
peroba-rosa, peroba-do-campo, goiabeira, imburana, e a imbuía (phoebe porosa) (MARTINS,
1987, 34-41).
Com base nas pesquisas de Kohler e do gravador Osvaldo Silva no Horto Florestal, na década
de 1940, Itajahy Martins faz uma lista de madeiras brasileiras plausíveis de serem empregadas
na gravura de topo, em ordem decrescente, que se inicia com o guatambu, o pau osso, o
pequiá marfim, a peroba-rosa e o ipê (MARTINS, 1987, 73). A pesquisadora mineira Andrea
Franco Pereira atualizou o trabalho anterior, acrescentando a esta lista a marupá ou caxeta, a
imbuia, dentre outras espécies (PEREIRA, 2020). Porém na atualidade, produto do acentuado
desmatamento tem havido um aumento crescente de madeiras industrializadas como o
compensado ou contraplacado e em menor medida, subprodutos da indústria madeireira
como o MDF (do inglês medium density fiberboard, chapa de fibra de madeira de media
densidade) assim como a HDF (do inglês high density fiber, chapa de fibra de eucalipto de alta
densidade), comercialmente conhecida como Eucatex, também são muito empregadas nas
universidades.
Figura nº 5: À esquerda: Ernesto Pina, xilografia sobre compensado, 28,8 X 34,5 cm, 4/5, 2009. Fonte: Própria. À direita:
Ariana Margoto, xilografia, matriz perdida sobre MDF, 46,3 X 46,4 cm, 2008. Ambos os trabalhos foram realizados no
Ateliê de gravura da UFES, Vitória, ES, Brasil, Fonte: Própria.
Reflexão 7
Enquanto a xilografia emprega as tábuas que foram cortadas no sentido vertical da
árvore, há uma especialização da técnica que usa apenas os cortes no sentido horizontal
permitindo o aproveitamento da compacta superfície das terminações do veio da madeira,
com uma ressalva: os buris substituíram as goivas e os formões. A técnica ganhou diversos
nomes: gravura ou madeira a topo, gravura ou madeira de pé (FERREIRA, 1994, 44), gravura
à contrafibra, e, mais recentemente, gravura em madeira (do inglês Wood engraving) para
diferenciá-la da xilografia.
Ferreira cita Hind, segundo o qual, o entalhe em linha branca sobre fundo preto contém
105
já o princípio da gravura de topo, para acrescentar que as primeiras xilogravuras nordestinas
se originam no mesmo princípio (FERREIRA, 1994, 51). Embora a Oxford University Press
empregasse madeira de topo para a confecção de letras capitulares em fins do século XVII,
e que Jean Michel Papillon publicasse um tratado onde comenta essa técnica em 1776
(CHAMBERLAIN, 1978a, 17), assim como que algumas obras do Ukiyo-e japonês pareçam ter
sido feitas com essa técnica, a historiografia tradicional costuma creditar a invenção desse
desdobramento da xilografia ao ourives e gravador Thomas Bewick, também um exímio
ilustrador (WALKER, 2005, 16), cuja História geral dos quadrúpedes de 1790, fez eclodir o
interesse pela técnica.
A extensa durabilidade do bloco entalhado possibilitou que a gravura de topo tomasse o
lugar da gravura e metal na ilustração de livros e revistas. Impulsionando geometricamente
a tiragem de jornais e revistas ilustradas com a inauguração de academias reais para o
ensino da técnica em toda Europa em um lapso de 50 anos. Para Ross, a insaciável fome por
ilustrações da indústria editorial transformou negativamente a gravura de topo em gravura de
reprodução e ilustração, feita basicamente por artesãos muito habilidosos (ROSS ET AL., 1999,
42) que Itajahy Martins denomina de gravadores-interpretes.
Walker, por sua vez, baliza que apenas com o advento do movimento de Arts & Crafts
protagonizado por Willian Morris houve uma retomada das possibilidades expressivas da
gravura de topo per se, em contraposição à tendência editorial imperante à época, de utilizar
máquinas para entalhar, assim como de ocultar que as ilustrações eram entalhadas, pois a
grande maioria simulava serem desenhos a bico-de-pena. Menciona ainda o autor, sem citar
as fontes, que a história das artes gráficas costuma omitir a contribuição das gravadoras
inglesas à gravura de topo, pois foram elas que gravaram a maioria dos pequenos ornamentos
utilizados nas edições da segunda metade do século XIX (WALKER, 2005, 17-19). Após o
declínio da gravura de topo devido à substituição dos blocos de buxo pela fotogravura e o
meio tom, a mesma seria revivida no século XX por artistas como Lynd Ward, Frans Masereel,
e Fritz Eichenberg com suas novelas xilográficas ou wordless novels (ROSS ET AL., 1999, 42).
Na década de 50 do século XX, no Ateliê 17, em Paris, o gravador norte-americano Arthur
Deshaies passou a utilizar chapas de acrílico, conhecidas comercialmente pelo seu nome
fantasia (Lucite, Plexiglass ou Perplex) para realizar com buris, gravuras de grande formato
em edições limitadas. O que revolucionou a gravura de topo ao liberá-la do pequeno formato
imposto pelas limitações físicas dos blocos da madeira de buxo usados nessa técnica desde
as suas origens no final do século XVIII, e, inclusive, ajudou a dissociá-la da ilustração de livros
(CHAMBERLAIN, 1978a, 80-82). A superfície lisa da chapa de acrílico (polimetacrilato de metila
ou PMMA pelas suas siglas em inglês), a sua leveza, o tamanho, o custo relativamente menor,
e, em especial, a sua transparência, fizeram deste material um excelente substituto, mediado
pela tecnologia, do suporte original.
Reflexão 8
106
Embora surgido na Alemanha, a inícios do século XVI, o Chiaroscuro adquiriu características
específicas na Itália, pois há diferenças entre o tratamento gráfico dado à técnica em ambos os
países. Enquanto alemães e holandeses enfatizavam o emprego das linhas pretas para realizar
e delimitar a composição e empregavam hachuras nos meios tons, os italianos abriram mão
das mesmas, trabalhando as cores como manchas monocromáticas conforme exemplificado
por Ugo da Carpi. Ross e Romano apontam Jost de Negker como sendo o primeiro a realizar
xilos coloridas em 1508 (ROSS ET AL., 1990, 4).
Contudo, outros autores apontam a Cranach e Burgkmair como sendo os inventores
no mesmo ano e inclusive no anterior (GNANN ET AL., 2014, 28). Trata-se de uma técnica
que obtêm meios tons que semelham aguadas ou aquarelas, por intermédio de áreas
monocromáticas – em tons de ocres, sanguíneas e verdes – impressas com duas matrizes no
começo, mas que posteriormente chegaram a três ou a quatro sobreimpressas. Sempre dos
tons mais claros aos mais escuros, com uso de um registro apurado. Em geral, a cor preta, que
corresponde às linhas, era impressa em último lugar embora tenha sido a primeira matriz a
ser entalhada, e a partir da qual eram obtidas, por contraprovas, cópias exatas que serviram
para entalhar as várias cores do chiaroscuro. O resultado impresso da técnica apresenta
semelhanças com a matriz perdida, técnica esta relativamente recente. No século XVIII, houve
um renascimento do chiaroscuro na Inglaterra, na forma de técnica mista, ao ser combinado
com um desenho lineal realizado em água-forte. Na França de inícios do século XX também
houve um renascimento da referida técnica na forma de gravura a duas cores monocromáticas
– às vezes três – (BERONA (ed.), 2010, 58-96).
Reflexão 9
O linóleo foi um material inventado e patenteado na Inglaterra por Frederick Walton, em
1860 e 1863, cuja fórmula original continha óleo de linhaça oxidado e pó de cortiça aos que foi
adicionado um tecido de juta para lhe conferir firmeza. Era utilizado para fazer pisos baratos
para casas e navios. Seria um arte-educador austríaco, Franz Cisek, quem o empregou para
ensinar gravura aos seus alunos em Viena, em 1908. O meio artístico começaria a utilizá-
lo pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Entre as décadas de 1920 e 1930, o intensivo
trabalho de Claude Flight, seus colegas e discípulos na Grovesnor School of Modern Art fez
com que o uso desse material virasse moda na Inglaterra. Entre as décadas de 1920 e 1950,
os artistas mexicanos do Ateliê de Gráfica Popular, empregaram-no de forma tanto intensiva
quanto extensiva, em particular Leopoldo Méndez (ITTMANN, 2006, 71-76 e 178-183).
Por sua vez, Picasso, ao trabalhar com o impressor Hidalgo Arnéra, em Vallauris, França criou
o método redutivo, mais conhecido como matriz perdida e, inclusive, como método Picasso,
para o trabalho da gravura colorida em uma única matriz de linóleo, que é retrabalhada e
sobreimpressa tantas vezes quantas cores houver. A técnica hoje é realizada costumeiramente
em xilografia. Nos anos 50, as pesquisas de Michael Rothenstein amplificaram os horizontes
da gravura em relevo em geral e do linóleo em particular (HAYTER, 1962, 98). Pesquisas
posteriores conduzidas por Allen no Goldsmith’s College de Londres revolucionaram as
107
possibilidades tonais do linóleo ao descobrir que esse material pode ser corroído com soda
cáustica é que resulta possível trabalhá-lo como uma água-forte para obter meios tons,
por imersão (RUSS, 1975, 93-97). No Brasil, sua presença está indefectivelmente ligada aos
fundadores dos clubes de gravura de Bagé e Porto Alegre, em Rio Grande do Sul, na década
de 50. Todos receberam a influência de Leopoldo Méndez e do Taller de Gráfica Popular/TGP
de México. Contudo, houve no Brasil, um antecedente no emprego do linóleo. Estamos a falar
da obra de Lívio Abramo entre os anos de 1931 e 1939 (ARAÚJO, 2006, 170). Na historiografia
da arte brasileira, a quase estereotipada visão de Abramo como xilogravador, exclui a análise
dessas linoleografias feitas em paralelo as suas primeiras xilos e editadas em tiragens de entre
20 e 50 exemplares.
Considerações finais
Segundo Coldwell, a gravura é uma forma de arte multifacetada, na qual coexistem uma
série de tecnologias antigas e novas, sobrepondo-se umas às outras, ao mesmo tempo em
que descobertas de novos processos, em especial digitais, acontecem em ritmo crescente
(COLDWELL, 2010, 33). Paralelamente, a revisitação ou resgate de técnicas já ultrapassadas da
gravura a transformam a pesquisa plástica em uma espécie de arqueologia das artes gráficas.
As suas ideias poderiam ser resumidas nos seguintes conceitos: a revisitação de tradições;
o olhar dos pintores e, também, o olhar dos escultores ao fazer gravura; a gravura híbrida;
a gravura no campo ampliado; e, finalmente, as novas tecnologias. Gravura expandida ou
gravura no campo ampliado poderiam ser duas formas de nomear a amplidão de propostas
e de linhas de pesquisa plástica atualmente existentes, após o boom internacional da gravura
iniciado na década de 50; a proliferação de eventos internacionais como bienais e trienais,
galerias de arte, museus, e revistas especializadas e o estabelecimento de ateliês profissionais
experimentais que viabilizaram o aumento da escala da gravura em uma única folha de papel
a formatos impensados por Chamberlain; o uso do papel não apenas como suporte definitivo,
mas como cor da gravura; o interesse em produzir gravuras híbridas; e, também, livros de
artistas em tiragens limitadas.
No universo das artes plásticas contemporâneas: a gravura pretende transcender as duas
dimensões e a escala intimista tradicionalmente associada ao meio; ampliando seu formato
até alcançar à arquitetura, seja por intermédio de obras em lugares públicos, no caso, das
matrizes (entintadas ou não), seja pela impressão sobre tecidos, ou porque as próprias
matrizes tornaram-se objetos únicos assim como a pintura de cavalete (COLDWELL, 2010, 33-
43). Por sua vez, a revisitação de tradições abarca desde trabalhar em uma determinada
técnica tradicional da gravura, como na relação de Luise Weiss com a técnica da matriz
perdida, documentando com uma única cópia cada etapa do processo de entalhe. Nas
xilocolagens de Berni com intensivo emprego das ensamblagens – isto é, do método bricoleur
de fabricar objetos –, aprofundando em outro patamar, as trilhas do Dadaísmo. Outro tanto
acontece com a transmutação em objetos-matrizes de madeira de Abel Barroso dos artefatos
do universo cotidiano.
108
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110
HIPERMODERNIDADE: A ACELERAÇÃO SIMBÓLICA E SEUS EFEITOS
NAS ARTES
Luciano Tasso
I'm Abe Lucas and I've murdered. I've had many experiences
and now a unique one. I've taken a human life. Not in battle
or self defense, but I made a choice I believed in and saw it
through. I feel like an authentic human being
Irrational Man
1. Introdução
A humanidade está sob ataque. Termos desconhecidos e carregados de simbologia invadem
as mentes das pessoas disseminando confusão, medo, angústia e ódio. Um Leviatã que se
ergue das profundezas e instaura nas sociedades e comunidades acadêmicas as mais variadas
e discrepantes ideias salvacionistas ou negacionistas, numa disputa pela supremacia do
imaginário coletivo. Ideias que, se aceitas e postas em prática, prometem impedir o fim do
mundo tal qual o conhecemos; se refutadas, irão obnubilar importantes discussões sobre
fatores que estão contribuindo para o aniquilamento das espécies do planeta. Uma delas,
o próprio homem. Este nível de ansiedade gerado por uma profusão de informações em
acelerada continuidade se reflete nas produções contemporâneas e encontram, nas Artes,
seu principal termômetro.
Meios digitais e ferramentas de tratamento de imagens como a Realidade Virtual Aumentada
e a Inteligência Artificial Generativa tornam-se cada vez mais acessíveis, permitindo a expansão
da criatividade em obras interartísticas feitas por profissionais e amadores. A fantasia
encontra limites apenas na capacidade de orientar os modelos de machine learning, e como
pagamento pela produção desenfreada, enxurradas de informação retroalimentam o big data
promovendo um ciclo contínuo de aparente infinitude. Neste momento de inflexão, no qual
empresas de tecnologia concentram grande parte da informação no mundo globalizado, algo
parece estar fora do controle. Algo que abre espaço para que novas simbologias ocupem o
lugar razoavelmente estável de significados que até o final do século passado nos orientavam
e agora pressionam o homem moderno em direção às incertezas e ao hedonismo fugaz. Será
que estamos fazendo as melhores escolhas ante aquilo que queremos deixar para as próximas
gerações?
111
Cotidianamente o noticiário é invadido por novas catástrofes naturais: rios poluídos que
matam e adoecem comunidades, queimadas que dizimam ecossistemas, temperaturas
que aumentam, geleiras que se desfazem e tantas outras calamidades que acompanhamos
atônitos, sem conseguir formar uma imagem minimamente nítida do que está acontecendo.
Isto tudo numa velocidade que desorienta os espíritos e abre terreno para o reino das
metáforas de que se valem os discursos sobre o tempo e o espaço que ocupamos num mundo
globalizado (Santos, 1998). Uma época na qual os signos ganham dimensões titânicas, capazes
convencer massas de seguidores a se jogarem no abismo, como o faziam nativos norte-
americanos com os bisões.
Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 23 de junho de 2024, um artigo
sob o jocoso título “Auge de atividade solar eleva chances de Terra ver auroras” alertava,
em suas entrelinhas, sobre o aumento sazonal de tempestades geomagnéticas capazes de
interferir nos sistemas elétricos e interromper sinais de GPS e internet.
O temor dos cientistas é que um evento da mesma magnitude do de Carrington [astrônomo
inglês Richard Carrington que estudava manchas solares] – a maior tempestade
geomagnética já registrada, em 1859 se repita, o que poderia desencadear uma pane
nos sistemas elétricos e de comunicação , deixando o planeta às escuras. [...] No caso de
erupções solares, as partículas chegam à Terra em oito minutos, por viajar na velocidade
da luz. As ejeções de massa coronal mais poderosas demoram entre 18 e 24 horas. E os
ventos solares de alta velocidade provenientes das manchas, cerca de dois dias.
Esse é o tempo em cada um dos tipos de fenômeno que os cientistas teriam para desligar
os equipamentos suscetíveis a danos devido a tempestades geomagnéticas e evitar
viagens aéreas nas regiões dos polos (Queiroz, 2024, p. B6).
112
lixo enquanto respiramos toneladas de CO2 despejadas no ar pelas indústrias; ficamos
aterrorizados ante o poder da flatulência bovina que abre buracos no céu; acompanhamos
entusiasmados ou incrédulos à novela dos milionários preparando sua fuga interplanetária.
Aparentemente, o Leviatã se aninha na economia.
O projeto Florestas Tropicais Para Sempre, elaborado pela ministra do Meio Ambiente e
Mudança do Clima do governo Federal do Brasil, Marina Silva1, propõe que os países ricos do
Norte Global paguem para que as Nações que tenham reservas florestais de grande porte sob
seu território arrecadem subsídios para mantê-las preservadas. Espera, com isso, arrecadar
cerca de R$8 bilhões anuais para o país numa economia que se autodenomina finança climática
e movimenta mais de R$ 100 bilhões por ano desde 2019. Na esteira da salvação ambiental,
outro neologismo se apresenta: a geoengenharia. David Keith, professor de Harvard,
desenvolve desde 1991 teorias para desacelerar o aquecimento global que poriam qualquer
previsão de gênero “ficção científica” no chinelo. Uma intervenção radical que propõe liberar
intencionalmente dióxido de enxofre na estratosfera, as partículas refletiriam parte da energia
solar para longe da terra, e por consequência, resfriariam as temperaturas no planeta. Seu
projeto audacioso divide a comunidade científica, provoca a fúria de ambientalistas e povos
indígenas e o regozijo de grandes corporações que farejam lucro no horizonte: um cabo-de-
guerra que se acentua e acirra os ânimos neste panorama de mundo pautado por lideranças
submissas aos interesses econômicos.
No início do século XVII Thomas Hobbes concluía sua teoria mecanicista para justificar
a manutenção de Estados autoritários que objetivassem conter o caos e a violência em
sociedades dominadas pelo medo e insegurança. Uma obra seminal que trata de forma crua
e direta o tipo de retórica funcional que deve ser aplicada nos discursos dos líderes: método
eficaz para manipular o que podemos chamar de sociedade das urgências.
Se o discurso for apenas mental, consistirá em pensamentos de que uma coisa será ou não,
de que ela foi ou não foi, alternadamente. De modo que, onde quer que interrompamos a
cadeia do discurso de alguém, deixamo-lo na suposição de que algo será ou não será; de
que foi ou não foi. Tudo isto é opinião. E tudo quanto é apetite alternado, na deliberação
relativa ao bem e ao mal, é também opinião alternada, na investigação da verdade sobre
o passado e o futuro. E tal como o último apetite na deliberação se chama vontade, assim
também a última opinião na busca pela verdade sobre o passado e o futuro se chama
JUÍZO, ou sentença final e decisiva daquele que discursa. E tal como o conjunto da cadeia
de apetites alternados, quanto ao problema do bem e do mal, se chama deliberação,
assim também o conjunto da cadeia de opiniões alternadas, quanto ao problema da
verdade e da falsidade, se chama DÚVIDA. (Hobbes, 2003, p. 58 itálicos do autor).
Neste momento que o mundo exige urgência por soluções ante um visível e comprovado
aquecimento do planeta, o vácuo histórico aberto pelo direcionamento de investimentos em
campos científicos que poderiam estar comprometidos com a ética e a preservação das vidas
unindo, por exemplo, geologia, antropologia e ambientalismo, acabaram por se pulverizar em
especializações isoladas e com pouco diálogo interdisciplinar. Essa dissonância acadêmica
cobra caro pela desunião de esforços, pela briga por verbas entre as Faculdades, e abre
113
margem ao estado de dúvidas que vivemos: um prato cheio para quem domina o discurso.
Desde então, ela [a ciência] se associou progressivamente à técnica, tornando-se
tecnociência, e progressivamente se introduziu no coração das universidades, das
sociedades, das empresas, dos Estados, transformando-os e se deixando transformar,
por sua vez, pelo que ela transformava. A ciência não é científica. Sua realidade é
multidimensional. Os efeitos da ciência não são simples nem para o melhor, nem para
o pior. Eles são profundamente ambivalentes. Assim, a ciência é, intrínseca, histórica,
sociológica e eticamente, complexa É essa complexidade específica que é preciso
reconhecer. A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto a considerar
a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria
complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade. É dessa
complexidade que se afastam os cientistas não apenas burocratizados, mas formados
segundo os modelos clássicos do pensamento. Fechados em e por sua disciplina, eles
se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de que só o podem justificar pela idéia
geral a mais abstrata, aquela de que é preciso desconfiar das idéias gerais! Eles não
podem conceber que as disciplinas se possam coordenar em torno de uma concepção
organizadora comum, como foi o caso das ciências da Terra, ou se associar numa
disciplina globalizante de um tipo novo, como é o caso, há muito tempo, da ecologia, ou
ainda se entre fecundar numa questão ao mesmo tempo crucial e global, como a questão
cosmológica, em que as diversas ciências físicas, utilizadas pela astronomia, concorrem
para conceber a origem e a natureza de nosso universo. (Morin, 2005, p. 9).
Retomando a máxima que diz ser necessário compreender o passado para construir o
futuro, o historiador Dipesh Chakrabarty (2013) traça uma profunda reflexão acerca de nosso
estágio civilizacional moderno, a partir de uma ótica interdisciplinar. “A disciplina da história
existe tendo como pressuposto que nossos passado, presente e futuro estão ligados por uma
certa continuidade de experiência humana" (Chakrabarty, 2013, p. 4). Concebendo a espécie
humana como parte integrante e indissociável da história da Natureza – em contraposição às
formulações de Vico e do próprio Hobbes – e procurando conexões possíveis entre biologia
e cultura, Chakrabarty revê brevemente a história da biologia humana e o período (ainda em
discussão) denominado Antropoceno, como uma consequência natural de nossas escolhas.
...no fim das contas, o que está sendo posto em risco com o aquecimento global não é o
planeta geológico em si mesmo, mas as próprias condições biológicas e geológicas das
quais depende a continuidade da vida humana tal como ela se desenvolveu durante o
período do Holoceno (Chakrabarty, 2013, p. 14).
Indissociável, portanto, pensar nas relações econômicas ditadas pelo sistema capitalista
– que impõe suas regras – com a crise das mudanças climáticas. Crise que já está entre nós,
e “pode continuar fazendo parte desse planeta por muito mais tempo do que o próprio
capitalismo, ou muito depois que o capitalismo já tiver sofrido várias outras mutações
históricas” (Chakrabarty, 2013, p. 14). Em contrapartida, desenvolve-se um sistema que impele
países do Sul Global a encontrar uma moeda de troca que financie seus direitos ante processos
de libertação, aquisição de autonomia e emancipação do subjugo econômico. Neste sentido
a exploração econômica da natureza, como o uso de combustíveis fósseis, coabita com a
reivindicação de recursos para preservar as florestas (como vimos anteriormente) fechando o
ciclo de absurdos discursivos no qual estamos inseridos.
114
Mas haveria, então, alguma esperança para a vida ante essa inconsequente briga simbólica?
Chakrabarty cita o pensamento de Crutzen e Stoermer com uma possível solução:
Desenvolver uma estratégia globalmente aceita que leve à sustentabilidade dos
ecossistemas contra os estresses induzidos pelo homem será uma das grandes tarefas
futuras da humanidade, exigindo esforços de pesquisa intensivos e sábia aplicação
do conhecimento adquirido até agora [...]. Uma tarefa emocionante, embora difícil e
assustadora, jaz em frente da comunidade de engenharia e pesquisa global, de maneira
a conduzir a humanidade à gestão ambiental, sustentável e global. [“A”, p.18]. (Crutzen e
Stoermer apud Chakrabarty, 2013, p. 13).
Neste sentido, precisamos pressupor uma “sábia aplicação do conhecimento adquirido até
agora” dissociando os falsos discursos e criando, como preconiza Hobbes, o JUÍZO para não
nos jogarmos no precipício de regimes autoritários pressupostos pela DÚVIDA.
Tarefa difícil para o homem racional que, em sua irracionalidade parece locupletar-se na
qualidade humana de experimentar seu próprio genocídio.
3. Arte na guerra
Desde fevereiro de 2022 acompanhamos hipermidiaticamente os desastres provocados
pela guerra num longínquo país praticamente desconhecido para a maioria dos brasileiros.
Rússia e Ucrânia disputam territórios logísticos importantes para sua economia matando
pessoas e destruindo cidades. Por traz da vida e da morte de 11 mil civis e mais de 21 mil
feridos, segundo dados recentes2, duas das maiores potências (a outra seriam os Estados
Unidos e não a Ucrânia) travam uma queda de braços demonstrando ao mundo seu poderio
bélico e estabelecendo as fronteiras na geopolítica do mundo globalizado. Alguns graus abaixo
da guerra balcânica, antes de chegar ao Trópico de Câncer, o regime deposto de Bashar al-
Assad, na Síria, revela o sistema de tortura de prisioneiros usado até recentemente e, mais
além, Israel expande seus domínios territoriais massacrando comunidades da Palestina.
Pouco a pouco esses temas vão emergindo nas rodas de bar, nas academias de estudo,
nos jantares em família... Mesmo as pretensões mais alheias ao noticiário se impregnam pelo
desolamento global que vivenciamos, seja ele distante ou próximo, como o caso das recentes
queimadas que destruíram grande parte da fauna e flora do centro do Brasil, o alagamento
no Rio Grande do Sul, etc., etc., convidando a um estado emocional que poderia ser traduzido
como um desânimo geracional.
Em contrapartida e na mesma proporção que nos deprimimos ante a instabilidade criada
pela profusão de simbolismos alarmistas, encontramos formas de escapar deste desânimo
entregando-nos ao hiperhedonismo proporcionado pela sociedade de consumo.
O Leviatã sabe perfeitamente disso.
Para os teóricos da hipermodernidade Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009), essa situação
cria condições para o surgimento do que chamam de Homo aestheticus, que se caracteriza
115
pela ansiedade, esquizofrenia, e, particularmente, pela sanha em busca da beleza e da
estética como táboas de salvação para sua catástrofe pessoal e coletiva – algo que interfere
sobremaneira na forma como vemos, produzimos e consumimos Arte.
Cada vez mais as indústrias culturais ou criativas funcionam de modo hiperbólico, com
filmes de orçamentos colossais, publicidades criativas, séries de TV diversificadas,
programas de televisão que misturam o erudito com o music hall, arquiteturas-esculturas
de grande efeito, videoclipes delirantes, parques de diversão gigantescos, concertos
pop com uma mise-en-scène “extrema”. Mais nada escapa das malhas da imagem e do
divertimento, e tudo o que é espetáculo se cruza com o imperativo comercial: o capitalismo
artista criou um império transestético proliferante em que se misturam design e star-
system, criação e entertainment, cultura e show business, arte e comunicação, vanguarda
e moda. Uma hipercultura comunicacional e comercial que vê as clássicas oposições da
célebre “sociedade do espetáculo” se erodirem: o capitalismo criativo transestético não
funciona na base da separação, da divisão, mas sim do cruzamento, da sobreposição dos
domínios e dos gêneros. O antigo reino do espetáculo se apagou: ei-lo substituído pelo
do hiperespetáculo que consagra a cultura democrática e mercantil do divertimento
(Lipovetsky, Serroy 2009, p. 17 do pdf)
Como consequência dessa profusão estética, a Arte perde sua elevada missão
emancipadora, pedagógica e política de transmitir a experiência extática do Absoluto, para
resvalar na proposição de experiências consumatórias, lúdicas e emocionais em função,
apenas, da diversão e dos prazeres efêmeros (Lipovetsky e Serroy, 2003). Aparente fruto
desta arte hiperestética vazia, o artista húngaro Dávid Szauder, nascido em 1976, divide
com tantos outros profissionais das Artes essa corrida pela reprodução do hiperonírico e
fugacidade instantânea. Auto referenciado como “multidisciplinary media artist”, Szauder usa
como principal ferramenta para seu trabalho animações em realidade virtual aumentada às
quais adiciona efeitos produzidos por Inteligência Artificial. Alguns de seus canais de venda e
divulgação são o comércio por meio das NFTs3, a plataforma Instagram, além do próprio site.
Por mais que os elementos retratados nesta última obra da série Me, myself and AI,
faça referência à arte retratista, muito comum entre pintores que serviam à nobreza e à
burguesia renascentista, nada podemos esperar além de um rosto sofrido (de quem retém
gases involuntariamente), e uma roupa de astronauta feita por balões de festa infantil. A série
prossegue com o próprio artista se auto-retratando em diferentes manifestos da História da
Arte (ainda que algumas referências se percam totalmente). Sua precária ironia, no entanto,
não vai muito além do trocadilho que dá nome à série.
Em referência à Figura 2, Earth´s spheres, encontramos a seguinte pérola:
Tecnografica is thrilled to add Freeform & Szauder among the artists of its Art Collections.
Human creativity, artificial intelligence and professional skills thus come together in a
series of graphic subjects dedicated to those who want to move away from the ordinary to
design memorable and unconventional spaces (Dávid Szauder, 2023. Website do artista).
3 NFT quer dizer "token não fungível". Não-fungível significa algo é único e insubstituível. Ao contrário
do dinheiro físico e criptomoedas que são fungíveis, o que significa que podem ser negociados ou trocados. Cada
NFT contém uma assinatura digital que o torna cada uma único. NFTs são ativos digitais e podem ser fotos, vídeos,
arquivos de áudio ou outro formato digital. Exemplos de NFT incluem obras de arte, histórias em quadrinhos, artigos
colecionáveis esportivos, figurinhas comerciais, jogos e muito mais.
116
Da citação acima, tiramos a importante conclusão sobre o que pensa Szauder: sua obra
pretende sair do lugar comum e fazer o consumidor/expectador ou expectador/consumidor
experimentar o inconvencional.
Muito provavelmente nada além disso.
Figura 1 . Cyclical monotony, sem data, Dávid Szauder. Trecho de videoclipe utilizando a música Nannou do grupo Aphex
Twin; e Figura 2 . There is no place like home, sem data, Dávid Szauder. Trecho de videoclipe utilizando a música Dorothy
de Polo & Pan. Ambas produzidas com filmagens e animações em realidade aumentada com efeitos de Inteligência
Artificial. Fonte: Screenshots de celular com aplicativo Instagram aberto.
117
Figura 3 . Earth’s spheres, sem data, Dávid Szauder e estúdio Freeform. Papel de parede e decoração ambiente. Fonte:
<https://www.davidarielszauder.com/#/new-gallery-4/>. Último acesso, 16 de dezembro.
118
Figura 4 . Me, myself and AI, sem data, Dávid Szauder. Foto e efeitos com Inteligência Artificial. Fonte: <https://www.
davidarielszauder.com/#/me-myself-and-ai/>. Último acesso, 16 de dezembro.
4. Conclusões
Certamente recursos digitais, midiático-sociais e a inteligência artificial compõem o meio
(media) que se confunde com a produção artística determinando não somente a estética e a
poética da obra mas aquilo que ela comunica. A comunicação deve ser rápida, esteticamente
agradável, além de proporcionar novas experiências inconvencionais, desde que não tenham
a profundidade necessária para fazer-nos perder tempo com elucubrações filosóficas sobre
119
nossa própria condição de vida. Não obstante esta ser uma tendência patrocinada pela
estrutura da sociedade contemporânea, e aqui incluímos a artística, é preciso compreender
que o tipo de pensamento nos atravessa e, em grande proporção irriga as produções
humanas desta época, pois serão elas as responsáveis pela cristalizarão de uma enorme gama
simbólica que perdurará pelas próximas gerações – até que uma nova concepção de arte,
talvez mais emancipatória, pedagógica e política volte a reger o pensamento e a criatividade
dos artistas. Algo que, provavelmente só ocorrerá quando a fuga hedonista deste mundo
caótico e a velocidade ansiolítica das informações que invadem nosso cotidiano puderem
ser revertidas em momentos de introspecção e de consciência do lugar do homem no seu
entorno, no mundo e no planeta globalizados.
Oxalá possamos ver nascer esta geração.
5. Referências
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, n. 91, p. 4-22, 2013. Disponível em:
https://culturaebarbarie.org/sopro/n91.html. Acesso em: 19 jul. 2024;
GELLES, David. Cientista defende bloquear a luz do Sol para resfriar a Terra. In Folha de São Paulo, São
Paulo, 6 de agosto de 2024. Caderno Ambiente;
HOBBES, Thomas. Leviatã. Org. Richard tuck, Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Martins Fontes, 2003;
IRRATIONAL MAN. Direção: Woody Allen. Produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum, Edward
Ealson. EUA, 2015;
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo, viver na era do capitalismo artista.
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil Ltda, 2005;
QUEIROZ, Claudinei. Auge de atividade solar eleva chances de Terra ver auroras. In Folha de São Paulo,
São Paulo, 23 de junho de 2024. Caderno Ciências;
RANNARD, Georgina. O que é o 'máximo solar', período que explica a atual hiperatividade do Sol e a
ocorrência da aurora boreal. In BBC News Brasil, 22 de maio de 2024. Disponível em https://www.bbc.
com/portuguese/articles/cp001l2nyyro (Últ. acesso, 22 de agosto de 2024);
SANTOS, Milton. Técnica espaço tempo, Globalização e meio técnico-científico informacional. São
Paulo: Editora Hucitec, 1998;
120
PARTE V
121
FUNDAMENTOS VISUAIS: A CONCEPT ART COMO ESTRUTURA
PRELIMINAR PARA PROJETOS AUDIOVISUAIS
Hugo Bernardino
Iasmim Dala Bernardina Rodrigues
Rosely Kumm
1.Concert Art
As ideias por trás do processo criativo dos produtos da indústria audiovisual, tais como
videogames, animações e cinema em geral, são normalmente desenvolvidas através de
informações gráficas (esboços de ideias). Neste meio esses esboços são conhecidos pelo
nome de Concept Art. Segundo matéria do website da Instituição de Ensino de Arte Digital
Revolution, Concept Art pode ser definido da seguinte maneira: “[...] quando falamos em
concepts, estamos nos referindo à desenhos que funcionam como representações iniciais
de cenários, personagens, figurinos, veículos ou qualquer outro elemento que possa estar
presente dentro de games, animações, filmes live-action e HQs”1. Lilly (2015) diz que “Uma
definição comum de um artista conceitual é um indivíduo cujo objetivo principal é criar
imagens que concretizem ideias e projetos de determinado assunto que ainda não existe”
(grifo do autor, tradução nossa)2. O autor justifica sua colocação:
Através de várias rodadas de iteração e eliminação, ele ou ela começa a estreitar o foco do
assunto em uma visão singular e coerente. Isso geralmente é feito para garantir eficiência
no processo de produção de filmes, videogames, animações e, às vezes, até histórias em
quadrinhos, porque é mais rápido e mais barato projetar essa ideia na fase de desenho do
que durante a produção completa. Fora dessa definição simplificada, no entanto, existem
várias realidades das quais também devemos estar cientes. (LILLY, 2015, p. 12 , tradução
nossa)3
O Concept Artist Luiz Celestino4, que já trabalhou para a Netflix na série “3%” (2016), em seu
1 A Instituição de Ensino de Arte Digital Revolution é uma escola de artes digitais localizada em Curitiba. EIKO,
J. “O que é Concept Art?”. Revolution Now. 2018. Disponível em: <https://revolutionnow.com.br/o-que-e-concept-
art/>. Acesso em: 29/07/2019.
2 “A common definition of a concept artist is an individual whose primary goal is to create images that flesh
out ideas and designs of particular subject matter that does not exist yet”. LILLY, E. The big bad world of Concept Art for
video games. 1ª edição. Los Angeles: Design Studio Press, 2015, p 12.
3 “Through several rounds of iteration and elimination, he or she begins to narrow the focus of the subject
matter into a singular, coherent vision. This is usually done to ensure efficiency in the production process of films, video
games, animations, and sometimes even comic books, because it is faster and cheaper to design that idea at the sketch
phase than during full production. Outside of that simplified definition, however, are several realities that one should
also be aware of.” Ibid., p. 12.
4 Pesquisador e Concept artist, Luiz Celestino fundou o site e grupo de pesquisa sobre Concept Art
“Brushworkatelier” – onde compartilha reflexões sobre depoimentos de artistas e estudos sobre o universo e produção
de Concept Art. Celestino é um dos pioneiros no Brasil na pesquisa deste campo.
122
blog “Brushworkatelier”, em referência a Feng Zhu5, escreve:
[...] segundo Feng, Concept Art/concept design não é o que VOCÊ quer fazer, e sim o
que seu CLIENTE quer que você faça! Você não é pago para sentar no computador e
desenhar o que você quer, você é pago para resolver um problema e entregar para tal
uma representação visual. (CELESTINO, 20166 )
Ou seja, com base nestas colocações, Concept Arts são esboços gráficos desenvolvidos por
artistas capacitados com o propósito de transmitir ideais através de desenhos e pinturas para
atender seus respectivos clientes em relação ao projeto áudio visual em questão, seja um
jogo, uma animação ou um filme. Dentro desta proposta, o termo abarca algumas áreas que
constituem sua grandeza e corroboram para o seu propósito, são elas: design de personagens,
design de criaturas, design de cenários, design de veículos e design de objetos7.
Embora o termo tenha sido consolidado através de exigências específicas por meio
do desenvolvimento de projetos audiovisuais, a Concept Art é comumente confundida e
associada diretamente com a ilustração, um grande equívoco considerando as disparidades
entre estas áreas: “Se a arte conceitual inventa e desenha os conceitos, a ilustração os elabora
e os coloca em forma apresentável. É, portanto, a ilustração que representa o produto final,
concebido de forma a ser apresentado diretamente ao público” (NUTS COMPUTER GRAPHICS,
2018, tradução nossa8). Em outras palavras, enquanto a ilustração tem como objetivo imprimir
uma arte final do produto para o público, a Concept Art tem como objetivo alcançar a ideia do
projeto para testar e construir elementos visuais que atendam ao cliente. Em concomitância,
Enquanto a ilustração é produzida pensando em ser apresentada por si só, os concepts
são desenvolvidos pensando em um produto final. Isso significa que o produto final de
uma ilustração será ela, já produzido e finalizado. Já o de um concept, de um personagem
em uma animação 3D, por exemplo, será o resultado de todo o desenvolvimento dele
renderizado. (EIKO, op. cit.)
5 Feng Zhu é Concept artist e já trabalhou na empresa Blizzard e filmes da franquia Star Wars. Hoje é
fundador da FZD, a maior escola de artes digitais da Ásia voltada ao entretenimento.
6 CELESTINO, L. “O que é Concept Art? E o que não é?”. Brushworkatelier. 2016. Disponível em: <https://
brushworkatelier.com/blog/2016/2/3/o-que-concept-art>. Acesso em: 23/03/2020.
7 Não existe uma regra exata em relação aos nomes das áreas que constituem o universo da Concept Art,
isso varia entre as instituições de ensino e métodos praticados nos estúdios, porém existem três vertentes distintas, são
elas: Character design, Environment design e Prop design. CONCEPT ART EMPIRE. “Characters, Props or Environments:
Picking a Concept Art Specialty”. 2016 [?]. Disponível em: <https://conceptartempire.com/picking-a-concept-art-
specialty/>. Acesso em: 30/07/2019.
8 “If the concept art invents and draws the concepts, the illustration elaborates them and puts them in good
copy. It is therefore the illustration that represents the final product, conceived in such a way as to be presented directly
to the public.” NUTS COMPUTER GRAPHICS. “Illustration and Concept Art: what are the differences?” 2018. Disponível
em: <https://www.nutscomputergraphics.com/en/illustration-and-concept-art-what-are-the-differences/>. Acesso
em: 23/03/2020
123
começou, quase 20 anos atrás, na Origin Systems (hoje parte da EA9), o título de Concept Artist
era bem raro. Dos 400 funcionários que a empresa possuía na época, ele foi o primeiro com
esta titulação”10. Portanto, compreendemos que o papel de criar Concept Arts era destinado
aos desenhistas que mais se destacavam no meio da produção criativa dentro dos estúdios,
além de ter sido algo restrito às empresas de conteúdo audiovisual de grande porte que
estavam iniciando o processo de exploração dos conceitos do que hoje conhecemos como
Concept Art.
A maioria dos estúdios utilizava quem desenhava melhor para fazê-lo. Nesta época
quase não existiam jogos 3D, então como o processo era bidimensional você tinha vários
funcionários na equipe que sabiam desenhar, então buscava aqueles com um bom design
e viravam seus concept designers. (CELESTINO, op. cit.)
Embora existam evidências de que o exercício da Concept Art dentro do meio audiovisual
tenha sido praticado pioneiramente pela Disney em 193012, estas não necessariamente
configuram que o ofício era algo preestabelecido a nível de conhecimento mundial, de
9 Eletronic Arts Inc (EA Games), California. Empresa desenvolvedora de games, responsável por franquias
como The Sims, Need For Speed e Fifa.
10 CELESTINO, op. cit., faz menção a trajetória de Feng Zhu para evidenciar historicamente o processo de
difusão do termo Concept Art.
11 “We can trace the development of the concept art to the sketches that, since more than a century ago,
were made to prepare the production of the films.
Many artists and illustrators gradually specialized in the creation of this type of sketch, which animation studios such as
Walter Lantz Productions and Fleischer Studios began to use steadily since the 1920s.
A decade later the storyboards were born, invented by the Walt Disney Company
(in particular, it seems, by the animator Webb Smith) as real visual scripts that would have guided the subsequent
production of the cartoon.
Over time these graphic visualizations have evolved into so-called story reel, or animatic, with an equally crude and
primitive look (which is often a feature of concept art), but which also apply editing, music and sometimes even
movements of room.” NUTS COMPUTER GRAPHICS, op. cit.
12 “A ‘Concept Art’ foi criada pela Disney na década de 1930 durante a produção de Branca de Neve” GHEZ,
D. They drew as they pleased. San Francisco: Chronicle Books, 2015, tradução nossa.
124
modo que era comum a prática da Concept Art ser designada para artistas em geral, como
desenhistas, artistas plásticos e ilustradores. Em um artigo desenvolvido pela pesquisadora
e ilustradora Julia Rassa através da South-Eastern Finland University of Applyed Sciences,
argumenta-se: “A menos que um indivíduo esteja conectado ao setor de entretenimento, é
mais provável que reconheça a profissão como sendo semelhante a um ‘ilustrador’, ‘designer
gráfico’ e ‘artista plástico’”. (RASSA, 2018, p. 713, tradução nossa)
De certa forma, a perpetuação e profusão do termo Concept Art da maneira que o
conhecemos hoje, como rascunhos de games e filmes, ocorre em meio a proliferação das
redes sociais, afirma Luiz Celestino (2016):
Voltando aos anos 90 e começo de 2000, antes de sites como Youtube e Facebook
mudarem completamente nossas vidas, os filmes e jogos eram muito menos expostos,
principalmente em termos das etapas de pré produção. Os jogos eram ainda mais
obscuros. Trabalhar nesta indústria definitivamente não era algo muito glamouroso.
(CELESTINO, op. cit.)
Entender e acompanhar o processo criativo dos jogos audiovisuais, que antes era restrito e
obscuro, agora se torna possível e de fácil acesso para a maioria da população, como Celestino
explica:
Após 2010, os jogos começaram a ganhar muita exposição, principalmente com grandes
lançamentos como Skyrim que estavam em todos os lugares, internet, Youtube, tv, etc.
Milhões de pessoas começaram a falar de videogames, algo que simplesmente não
existia. Hoje em dia trabalhar em jogos é "bacana". (CELESTINO, op. cit.)
13 “Unless an individual is connected to the entertainment sector, it is more likely that they would recognize
the profession as being akin to an ‘illustrator’, ‘graphic designer’ and ‘fine artist’”. RASSA, J. Concept Art creation
methodologies: Visual Development of “Rock Boy”. 2018. 82 f. Bachelor’s thesis (Bachelor of Culture and Arts) - South-
Eastern Finland University of Applied Sciences, Finland, 2018.
14 “Concept art galleries, concept art leaks and press releases include polished promotional illustrations, 3D
renders, reworked former concept art and fake concept art. The bulk of concept work done to actually come up with
125
para empresas como Sony e Disney –, que também afirma que a maioria das Concept Arts
que chega ao público não são necessariamente as Concept Arts que contribuíram para o
conceito da produção em questão. Segundo Anhut, o processo de produção da Concept Art
é relativamente complexo, existindo assim algumas etapas de pré-produção onde muitos
materiais são descartados e ou refeitos.
Deste modo, as Concept Arts de grandes produções que “vazam” ou aparecem bem antes
do lançamento do produto servem para gerar hype15 sobre a produção, aumentando assim
as expectativas sobre o produto audiovisual, através de uma arte que chame atenção, sendo
então desenvolvida com este objetivo e não necessariamente para explorar os conceitos do
projeto.
As empresas só lançam arte conceitual quando são polidas e finais o suficiente para
representar o produto real. O que é lançado como arte conceitual é na verdade arte
promocional. Atualmente, toda a arte promocional - inclusive a arte óbvia criada após
a conclusão da produção de um jogo - é rotulada como Concept Art pelos profissionais
de marketing que a lançam, pelos editores que escrevem sobre ela, pelos fãs que a
compartilham e pelos sites que colecioná-lo e até as pessoas que o fizeram. (ANHUT, op.
cit., tradução nossa)
O site “Nuts Computer Graphics” reforça essa afirmação de Anhut e escreve a respeito
da relevância dos artistas de conceito em meio a produção do projeto de forma geral, ainda
levando em conta a produção de ilustrações para viabilizar a comercialização.
Essa passagem agora se tornou parte integrante do processo de produção, tanto que hoje
os Concept Artists são usados para dirigir o trabalho dos roteiristas e diretores, e depois se
tornam ilustrações para ajudar na comercialização do projeto, desenvolver uma audiência
e até atrair credores. (NUTS COMPUTER GRAPHICS, op. cit., tradução nossa16)
designs often gets omitted or only published after the game launched, in order to avoid promoting unrepresentative key
visuals and to sell audiences an attractive narrative about super-artists working on the next big thing.” ANHUNT, A. “Let’s
Get Real About Concept Art”. How not to suck at game design. 2014. Disponível em: <http://howtonotsuckatgamedesign.
com/2014/02/lets-get-real-concept-art/>. Acesso em: 03/03/2020. Anjin Anhunt, é diretor de games na Studio
Fizbin, já trabalhou para empresas como Sony e Disney dentre outras. Anhunt constantemente escreve em eu site
howtonotsuckatgamedesign.com sobre a industria do entretenimento.
15 “Publishers and studios want to hype their release. Magazines and blogs want to generate views from
the hype around the game. In order to fulfil these goals the art needs to represent the final key visuals of the game
accurately, which means the art is either selected or created after the designs of the game have already been completely
established and approved.” ANHUNT, op. cit.
16 “We can trace the development of the concept art to the sketches that, since more than a century ago,
were made to prepare the production of the films.Many artists and illustrators gradually specialized in the creation
of this type of sketch, which animation studios such as Walter Lantz Productions and Fleischer Studios began to use
steadily since the 1920s. A decade later the storyboards were born, invented by the Walt Disney Company (in particular,
it seems, by the animator Webb Smith) as real visual scripts that would have guided the subsequent production of the
cartoon. Over time these graphic visualizations have evolved into so-called story reel, or animatic, with an equally crude
and primitive look (which is often a feature of concept art), but which also apply editing, music and sometimes even
movements of room.This passage has now become an integral part of the production process, so much so that today
the concept artists are used to direct the work of the writers and directors, and then later become illustrations to assist
the marketing of the project, develop an audience and even attract lenders.” NUTS COMPUTER GRAPHICS, op. cit.
126
a produção para sócios/parceiros financeiros e a produção para o público em geral. O autor
escreve dentro da perspectiva da produção de videogames, mas vale lembrar que a Concept
Art existe antes da mídia e que os modelos de produção descritos por Anhunt podem ser
aplicáveis no processo de produção de animações, pois ambas as animações e Concept Art
carecem de um universo a ser desenvolvido por artistas e aprovado pelos supervisores dos
projetos.
Dentro deste contexto, o Concept Artist precisa atender alguns pontos, sobre os quais Anjin
Anhut (2014) escreve:
Os diretores de criação querem ter sua visão representada. Os artistas principais
querem ver seus guias de estilo estabelecidos implementados. Os escritores querem ver
suas caracterizações realizadas. Os designers de jogos querem que suas pistas de jogo
sejam visualizadas. Os artistas e animadores de 3D querem poder criar a coisa dentro
das limitações das plataformas de lançamento e restrições orçamentárias. Os artistas e
animadores 2D desejam ter referências completas, para que não desenhem molduras e
imagens fora do modelo. (ANHUT, op. cit.)
Estes pontos apresentados por Anhunt configuram de forma sintética o que ocorre dentro
dos estúdios de produção de conteúdo audiovisual. Neste caso, ele exemplifica como ocorre,
de forma recorrente, um modelo de produção dentro de um estúdio de games, justamente por
esta ser uma mídia mais complexa e que, consequentemente, engloba também a produção
de animações, uma vez que dentro da produção de games encontram-se modelos variados de
animações, programações, música etc.
127
1.1.2. Produção para sócios/envolvidos financeiramente
As ideias desenvolvidas no estágio anterior passam por um processo de seleção interna,
onde somente as mais relevantes vão a frente para um processo de melhoramento ou pós-
produção que sejam apresentadas aos sócios. Neste estágio o processo de execução é mais
considerado, tornando-se relevante que aspectos estéticos convençam o cliente quanto ao
produto final para que se receba a aprovação (greenlight17) dos sócios financeiros. Ou seja,
a maioria das Concept Arts disponíveis na internet ou livros de Concept Art como “The Art
of”18, fazem parte deste e do próximo estágio de desenvolvimento de Concept Art, pois são
elas que são mostradas para a avaliação dos sócios – e/ou para o público em geral no caso da
aprovação –, sendo o restante que não passou no processo de desenvolvimento arquivado
pela empresa19. Entretanto, segundo Celestino (2016), essas artes também servem para
auxiliar os demais artistas que lidam com as outras áreas de criação dentro do projeto, que
seria o caso do ilustrador, do modelador 3D, do designer de personagens e do designer de
cenários20.
Segundo ANHUT (2016), neste estágio é preciso atender a alguns pontos para que se chegue
ao “estágio três”. São eles:
Se for necessário fabricar coisas nas fábricas (como figuras do Disney Infinity, por exemplo),
as empresas de produção querem ter certeza de que as coisas podem ser feitas de acordo
com as limitações de orçamento, padrões de produção e regulamentos de segurança. Se
o lançamento é uma parcela de uma série de jogos, os proprietários e escritores de IP
desejam que o design seja canônico. Os profissionais de marketing desejam ver a marca /
IP bem representada, enquanto ao mesmo tempo veem que o novo jogo terá sua própria
identidade. Pesquisas de grupos focais também trarão requisitos do marketing. Se o jogo
for baseado em uma licença (como filmes ou histórias em quadrinhos), as pessoas que
possuem o IP desejam garantir que o jogo represente os valores, padrões e mensagens
da licença original. Editores e entidades financiadoras querem ter certeza de que o design
produzirá os resultados financeiros desejados. (ANHUT, op. cit.)
17 Termo utilizado neste contexto de produção, remete ao aval dos sócios. Quer dizer que os sócios/
envolvidos financeiramente deram sinal verde para o projeto (aprovaram o projeto).
18 Tratam-se de livros com intuito de mostrar a arte de games e filmes, como por exemplo “The Art of
Warcraft” ou “The art of Finding Nemo”. Esses livros tem como objetivo mostrar as artes para quem consome essas
mídias, e não necessariamente para quem estuda a arte dessas mídias. “Os próprios livros ‘The art of’, segundo Feng,
tem que ser levados com cautela, pois a intenção neste caso é vender o livro como produto e não lecionar sobre
concept art e o processo criativo, sendo assim, as imagens internas tendem a ser as mais atrativas possível”. CELESTINO,
op. cit.
19 “Estas artes normalmente não chegam a público, exceto em alguns casos. Se você procurar ‘Mass Effect
2 concept art’, verá que aparecem várias imagens de cenas épicas de batalhas. Estas muitas vezes não são usadas
internamente.” CELESTINO, op. cit.
20 CELESTINO, op. cit.
128
atrativas, pois o objetivo aqui é incitar o público de modo a chamar atenção para o jogo ou
filme em produção. No geral, são essas as Concept Arts que aparecem nos sites das empresas,
nas revistas e livros de arte, que Anhut (2014) chama de Concept Art falsa. “A arte do estágio
3 é o que o público em geral vê (incluindo ilustrações que realmente não têm nada a ver com
arte conceitual). Os Estágios 1 e 2 só chegam aos portfólios e livros de arte dos artistas muito
tempo após o lançamento do jogo, se eles forem publicados.” (ANHUT, op. cit.).
21 Dentro das sub-áreas da Concept Art existem vertentes que possuem muitos nomes. Notei isso durante o
processo de investigação para produzir esta pesquisa: alguns sites dividem em três, como já explicado, outros estendem
as definições como: vehicles design, creature design, gun design e outros, como é o caso da escola Revolution e outras
instituições. Contudo, escolho escrever sobre as áreas principais (character, environment e prop), pois elas englobam
outras áreas.
22 “As três áreas principais são design de personagens, design de adereços e design de ambiente. Esses
diferentes tópicos podem ser divididos em sub-especialidades, como armas, veículos, roupas ou interiores.” CONCEPT
ART EMPIRE, op. cit., tradução nossa.
23 TORRES, M. “O que é character design?”. Design Culture. 2017. Disponível em: <https://designculture.com.
br/o-que-character-design/>. Acesso em: 24/03/2020.
129
processo de execução.
Somente depois de definir seu objetivo, você estará pronto para iniciar o processo de
desenvolvimento do personagem. Mas antes de começarmos o primeiro estágio do
desenvolvimento, que é a pesquisa, precisamos entender o que o processo de transformar
palavras do nosso alto conceito em imagens realmente envolve. E isso é feito através de
metáforas visuais. (SOLARSKI, 2012, p 15924, tradução nossa)
Figura 1: Montagem de comparação de imagens da personagem Poison Ivy (DC Comics). Fonte: ANHUNT, A. How not
to suck at game design. 2014. Disponível em: <howtonotsuckatgamesdesign.com/2014/08/tackle-character-design-
2d-games>. Acesso em: 03/03/2020.
24 “Only once you’ve defined your goal are you ready to begin the character development process. But before
we begin the first stage of development, which is research, we need to understand what the process of transforming
words from our high concept into imagesactually involves. And this is done through visual metaphors”. SOLARSKI,
C. Drawing Basics and Videogames Arts: Classic to cut edge art technics for winning video games design. New York:
Watson-Guptill Publications, 2012, p. 159.
25 Trata-se de uma técnica de animação em que o processo de construção é feito quadro a quadro. Na
animação quadro a quadro, cada frame contém um movimento a ser realizado, exigindo assim que um mesmo objeto
seja modificado várias vezes manualmente. PORTAL EDUCAÇÃO. Animação quadro a quadro. Disponível em: <https://
www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/informatica/animacao-quadro-a-quadro/59509>. Acesso em:
13/03/2020.
26 “Hand drawn animation is one of the most expensive techniques, since you have to produce a lot of
content for each new frame. To minimize that cost it’s important to make clever simplifications” ANHUT, op. cit.
130
A Figura 1 exemplifica o que seria a simplificação de personagem construído dentro do
universo 2D. Ambas as figuras tratam da mesma personagem, Poison Ivy. A figura da esquerda
é a capa de uma revista HQ em que a personagem é ilustrada em sua forma plena, com traços
e vestimenta detalhados, iluminação variada e renderização, na imagem da direita, Poison Ivy
é construída de forma simplificada, sem detalhes, com apenas o essencial para identificá-la,
porque trata-se de um modelo que será animado quadro a quadro, sendo necessário desenhá-
lo várias vezes sem consumir muito tempo, que é crucial nesta indústria.
Neste universo, alguns métodos de produção são objetivos e viabilizam o processo de
execução de desenvolvimento de personagens. Basicamente, os métodos consistem nas
etapas: Thumbnails, Silhuetas e Model sheet. Thumbnails são pequenos esboços que
abrangem o personagem de forma geral, como revela a Figura 2, com vários modelos de
thumbnail enfileirados. O objetivo é captar a essência do personagem com o mínimo de
informação possível. Os detalhes, neste método, não existem e somente a forma generalizada
interessa. São objetivos do thumbnail captar a essência do personagem em poucos traços,
traçar a forma geral do personagem e fazer vários modelos com o objetivo de pré-seleção
para futuros rascunhos. Darren Yeow, character designer, escreve a respeito da produção de
thumbnails:
É importante entender que a aparência agora é de pouca importância neste estágio inicial;
são ideias representativas de forma abreviada para si mesmo que levarão a ideias mais
desenvolvidas ao longo do caminho. Ajuda a imaginar-se como um agente documental,
tentando capturar a imagem que está piscando diante dos seus olhos. (YEOW, 2017, p. 627)
Figura 2:Thumbnails para construção de personagem. Fonte: YEOW, D. “Dynamic Characters: Enhancing Your Character
Concepts”. 3D Total. E-book series. 2007, p 6.
Silhueta é um método paralelo ao thumbnail que também consiste em desenvolver
múltiplos rascunhos em pequenos formatos para testar a estrutura e pose do personagem.
27 “It is important to understand that how it looks right now is of little importance at this early stage, they
are representational shorthand ideas for yourself that will lead to more developed ideas down the track. It helps to
imagine yourself as a documentary agent, trying to capture the image that are flashing before your mind's eye” YEOW,
D. “Dynamic Characters: Enhancing Your Character Concepts”. 3D Total. E-book series. 2007, p. 6.
131
A Figura 3 mostra este modelo com várias silhuetas de personagens enfileiradas. Com
o preenchimento total da forma, os espaços de peso e espaços negativos tornam-se mais
nítidos. Mike Yamada (2016), Concept Artist e autor do livro “The Skillful Huntsman”, escreve a
respeito da relevância de se trabalhar com silhuetas em um dos processos iniciais de produção
de personagens: “Isso me permitiu pensar na forma mais externa. Quando os detalhes do
interior são omitidos, você precisa se concentrar mais em tornar a forma externa interessante
e única. Liberta sua mente e caneta para criar coisas que você não faria ao construir de
dentro para fora.” (LE et. al., 2006, p. 1728, tradução nossa). Darren Yeow (2017) complementa
o pensamento de Yamada e descreve uma série de contribuições para o processo criativo
ao desenvolver silhuetas como forma inicial na criação de personagens. Segundo Yeow, tais
benefícios incluem evitar adicionar múltiplos detalhes em um esboço experimental, propõem
um aumento na capacidade de desenvolver um personagem que seja facilmente reconhecível
e permitem que o artista se concentre em um aspecto de produção por vez.
Figura 3: Silhuetas para construção de personagem. Fonte: YEOW, D. “Dynamic Characters: Enhancing Your Character
Concepts”. 3D Total. E-book series. 2007, p.8
O Model sheet ou Folha Modelo do personagem consiste em uma etapa para desenvolver
o personagem para visualização. Com o rascunho do personagem selecionado previamente
desenvolvido através das etapas anteriores, agora cabe ao character designer desenhar o
personagem em três ângulos ou mais, indicando e escrevendo sobre as vestimentas, detalhes
e acessórios específicos para que o personagem possa ser visualmente compreendido pelo
restante da equipe do projeto em questão. Sobre Model sheet, Torres (2017) escreve:
Model Sheet” ou Folha Modelo do personagem, nela é rotineiro aplicar o personagem em
pelo menos três vistas (frontal/lateral/em três quartos), assim como a aplicação dele em
algumas poses de ação para compreender como o seu corpo se comporta em movimento,
momento em que é preciso demonstrar o peso e volume para tornar o personagem mais
crível. (TORRES, op. cit.)
28 “It allowed me to think of the outermost shape. When interior detail is omitted, you need to focus more on
making the outer shape interesting and unique. It frees your mind and pen to create things that you would not do when
building from the inside out” LE, K.; YAMADA, M.; YOON, F.; ROBERTSON, S. The Skillful Huntsman: Visual development
of a Grimm tale at Art Center College of Design. Culver City: Design Studio Press, 2006, p. 17.
132
Figura 4: Model Sheet de busto da personagem Elsa, por Jim Kim. Fonte: REBLOGGY. 2014. Disponível em: <http://rebloggy.
com/post/disney-frozen-model-sheets-character-design-jin-kim-disney-concept-art-elsa-froz/73990693279>. Acesso
em: 03/03/2020.
Na Concept Art (Figura 4) da princesa Elsa do filme Frozen, Disney (2013), o artista Jim Kim
constrói um Model sheet de busto, enfatizando as expressões da personagem. Na imagem
é possível compreender as características físicas do rosto e o penteado de Elsa. É o objetivo
do Model sheet compreender a estrutura do personagem para que os trabalhos posteriores,
como modelagem 3D e ilustração, consigam entender ao máximo possível o conceito
desenvolvido previamente para recriá-lo em outra natureza.
133
ideias de fantasia, como planetas alienígenas. O trabalho do Concept Artist é geralmente
visualizar mundos que não existem e torná-los realidade. Isso requer muito mais do
que apenas fundamentos da arte. Você precisa de um olho para um ótimo design. Você
precisa entender objetos básicos como plantas, animais, natureza, geologia ... e não a um
nível científico ao ponto onde você pode replicar ideias da sua cabeça. (CONCEPT ART
EMPIRE, op. cit., tradução nossa29)
Os thumbnails também são importantes para esta etapa, porém aqui a perspectiva e
justaposição de elementos devem ser levados em conta. A ideia é produzir muitos thumbnails
do mesmo local com perspectivas e relações de massas diferentes para explorar possibilidades.
Assim, selecionando os thumbnails que mais se destacarem no processo, pode-se prosseguir
na construção da imagem explorando melhor a perspectiva e as formas para posteriormente
adicionar valores30 e cores.
Figura 5: Processo de produção de cenário em The Skillful Huntsman, 2006. Fonte: LE, K.; YAMADA, M.; YOON, F.;
ROBERTSON, S. The Skillful Huntsman: Visual development of a Grimm tale at Art Center College of Design. Culver City:
Design Studio Press, 2006, p. 63.
29 “But aspiring environment artists may change their practice regimen once they have a grasp of
fundamentals. If you want to do environments professionally, you’ll want to focus a lot of time on perspective. That’ll
play the biggest factor in each piece. If any part of your perspective looks off then it can ruin the entire painting.
Environment artists also need to be quick with their artwork. It’s crucial that you can work with any type of environment,
even fantasy ideas like alien planets. The concept artist’s job is often to envision worlds that don’t exist and make
them a reality. This requires much more than just art fundamentals. You need an eye for great design. You need to
understand basic objects like plants, animals, nature, geology… not to a scientific level to the point where you can
replicate ideas from your head.” CONCEPT ART EMPIRE, op. cit.
30 “Values in a painting create a two-dimensional pictorial design regardless of subject matter. A strong
painting is often an arrangement of a few simple shapes of different values. This arrangement of values, if done right,
can attract viewers to a painting from across a gallery. If the values in a painting are correct, the color will most likely
work, but color cannot save a painting with incorrect values.” MACPHERSON, K. Landscape Painting, Inside & Out:
Capture the vitality of outdoor painting in your studio with oils. Georgetown: North Light Books, 2006.
134
As imagens coloridas já estão renderizadas, trata-se de thumbnails de cenários em que as
massas e as relações das formas estão mais bem resolvidas, estágio em que a cor se apresenta
para decidir questões de iluminação do cenário.
Após os rascunhos passarem pelas etapas iniciais de produção de Concept Art e com a
aprovação dos mesmos pelos supervisores do projeto, permite-se continuar a renderização
por meio da adição de texturas, iluminações adequadas e, consequentemente, cores. Nathan
Fowkes que é Concept Artist e já trabalhou em estúdios como DreamWorks e Disney nos
filmes: “O Príncipe do Egito” (1998), “O Caminho Para El Dourado” (2000), “Rio 2” (2014),
dentre outros, trabalha dentro desta prática, priorizando as formas e massas de elementos
em um primeiro momento e em um segundo momento a relação das cores e renderização.
Figura 6: Concept Art do filme "A Lenda do Gato de Botas" Dreamworks, por Nathan Fowkes. Fonte: NATHAN FOWKES
STUDIO. Movie Art. Disponível em: <https://www.nathanfowkes.com/movie-art.html>. Acesso em: 04/03/2020.
Por meio da relação adequada de formas e iluminações, Fowkes conta história por meio
das suas Concept Arts (Figura 6, Concept Art do filme “A Lenda do Gato de Botas” (2011) pela
DreamWorks Animation). O artista opta por construir a imagem por meio de uma relação de
contrastes entre cores frias e quentes em um ambiente noturno, tendo a figura principal o
gato de botas em primeiro plano fazendo um contraste de silhueta em meio a paisagem.
135
encontrados na Guerra Civil Americana. (CONCEPT ART EMPIRE, op cit, tradução nossa31 )
Assim como nas outras áreas que constituem a Concept Art, o conhecimento sólido acerca
dos fundamentos de arte são essenciais para se desenvolver elementos de qualquer ângulo e
perspectiva32. Não obstante, o prop designer precisa sempre atualizar a sua biblioteca pessoal
de referências visuais, consumindo conteúdos visuais como filmes, revistas, fazendo viagens
e investigações, pois pode enfrentar desafios como construir utensílios para uma cozinha
vitoriana que fará parte de uma cena em uma casa abandonada de um jogo de terror, ou
desenvolver equipamentos para uma sala de máquinas em uma nave em um universo Sci-Fi.
Outro fator que deve estar presente no processo criativo do prop designer é o objetivo de
construir muitas e variadas opções de acessórios para os projetos. Paul Tobin, que trabalhou
em muitos filmes e jogos, sendo alguns deles a trilogia dos filmes O Hobbit e no filme o Avatar
(2009) de James Cameron, reforça este argumento em uma entrevista para o site Muddycolors:
A frase mais comum de um cliente em design conceitual é: "Me dê algo que nunca vi
antes". Você não chega a esse lugar sem trabalhar com muitas opções. As opções precisam
ter abordagens diferentes para o briefing, em vez de apenas elaborar variações em torno
de uma ideia.(TOBIN, 2014, tradução nossa33)
Figura 7: Processo de produção de objetos em The Skillful Huntsman, 2006. Fonte: LE, K.; YAMADA, M.; YOON, F.;
ROBERTSON, S. The Skillful Huntsman: Visual development of a Grimm tale at Art Center College of Design. Culver City:
Design Studio Press, 2006, p. 71.
Uma série de possibilidades de armas são mostradas na Figura 7, desenvolvidas por Khang
Lee, Mike Yamada e Felix Yoon, com o objetivo de alcançar designs jamais vistos anteriormente.
31 “But aspiring environment artists may change their practice regimen once they have a grasp of
fundamentals. If you want to do environments professionally you’ll want to focus a lot of time on perspective. That’ll
play the biggest factor in each piece. If any part of your perspective looks off then it can ruin the entire painting.
Environment artists also need to be quick with their artwork. It’s crucial that you can work with any type of environment,
even fantasy ideas like alien planets. The concept artist’s job is often to envision worlds that don’t exist and make
them a reality. This requires much more than just art fundamentals. You need an eye for great design. You need to
understand basic objects like plants, animals, nature, geology… not to a scientific level to the point where you can
replicate ideas from your head.” CONCEPT ART EMPIRE, op. cit.
32 “To practice design props you'll want to study anything that interests you. Not just objects, but styles and
aesthetics of different periods. Props for a story set in Victorian was Britain will be different than props found in the
American Civil War.” CONCEPT ART EMPIRE, op. cit
33 TOBIN, J. “Concept art and concept design”. Muddy Colors. 2014. Disponível em: <http://www.
muddycolors.com/2014/03/concept-art-and-concept-design/>. Acesso em: 26/03/2020.
136
Figura 8: Prop Design de armas para o filme The Hobbit An Unexpected Journey por Paul Tobin. Fonte: TOBIN, J.
“Concept art and concept design”. Muddy Colors. 2014. Disponível em: <http://www.muddycolors.com/2014/03/
concept-art-and-concept-design/>. Acesso em: 26/03/2020.
A Figura 8 também exemplifica Concept Arts em prop design, construídos por Paul Tobin
para o filme O Hobbit An Unexpected Journey (2012). “O bom design está nos traços gerais,
o ótimo design está nos detalhes”, Tobin compara o que seria fazer o óbvio e fazer o que
realmente seria bom através da reflexão de como o artista se dedica ao projeto, reforçando
a ideia de que quanto mais conhecimento e referências visuais, melhor será o trabalho do
Concept Artist.
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Estadual de Londrina, Dept. de Design, Brasil, SBC - Proceedings of SBGames 2011
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137
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138
DADOS BIOGRÁFICOS
139
criativo com financiamentos do CNPQ, CAPES e FAPES.
http://lattes.cnpq.br/6252535690546666
https://orcid.org/0000-0001-6864-3553
[email protected]
Tommaso Farina
Doutor em Educação, Patrimônio Cultural e Territórios pela Universidade de Macerata
(UNIMC). Desde outubro de 2023 é pesquisador temporário, habilitado para atuar como
professor universitário de segundo nível no GSD 11/PA E D-01, no Departamento de Educação,
Patrimônio Cultural e Ciências do Turismo da Universidade de Macerata . De dezembro de 2022
a outubro de 2023, no mesmo Departamento, foi bolsista de pesquisa sobre o tema: Escola,
criança, adolescente e família: educar para o pacto de corresponsabilidade dos adultos para
uma avaliação integrada . Suas principais áreas de pesquisa são educação social e educação
artística, com especial referência às faixas etárias pré-adolescentes e adolescentes.
https://docenti.unimc.it/t.farina#content=funding
https://orcid.org/0000-0001-5107-3902
[email protected]
140
tradicional, onde desenvolve histórias em quadrinhos.
http://lattes.cnpq.br/0383349009072114
https://orcid.org/0009-0004-3388-9448
[email protected]
Rosely Kumm
Artista plástica, arte educadora e pesquisadora capixaba. Licenciada em Artes Visuaus. Sua
carreira é marcada por uma abordagem interdisciplinar, conectando a arte à diversas áreas
do conhecimento humano. Atualmente, Rosely é pesquisadora no Laboratório de Extensão e
Pesquisa em Artes - Leena/Ufes, onde se dedica a investigar a percepção espacial por meio da
cultura local e da arte pública. Seu trabalho de pesquisa, criado no âmbito da arte e da arte
educação, busca compreender como as práticas culturais e artísticas podem influenciar na
compreençao e apreciaçao da paisagem. Além de sua contribuição acadêmica, Rosely Kumm
exerce um papel significativo na comunidade como arte educadora voluntária na APAE do
Município de Domingos Martins. Nesse contexto, ela se empenha em desenvolver práticas
artísticas que promovem a inclusão e o desenvolvimento, utilizando a arte pública como uma
ferramenta poderosa para o crescimento pessoal e coletivo.
https://lattes.cnpq.br/4579476998031846
https://orcid.org/0009-0008-9799-0405
[email protected]
141
sanduíche na Kendall College of Art and Design of Ferris State University (2020). Mestrado em
Artes (UFES/2015), MBA em Design e Produção de Moda (UVV/2008), Licenciatura em Artes
Visuais (Claretiano/2019), Licenciatura Plena em Música (UFES/2008) e Bacharelado em Design,
habilitação em Moda e Vestuário (FAESA/2005). Docente no Programa de Pós-graduação em
Artes-UFES (2023-2024), nos cursos Design de Moda e Design Gráfico (Centro Universitário
FAESA, 2021-2022), Coordenadora do Projeto de Extensão Moda Múltipla em parceria com a
Associação Vitória Down (2022), Coordenadora e Professora do Curso Técnico de Modelagem
do Vestuário (LMV/2021), Professora do curso técnico de Multimídia (LMV/2021), Professora
de Comunicação Social (DEPCOM/UFES 2018-2019), Artes Visuais (NEAD/UFES 2015), Artes
Plásticas, Artes Visuais e Desenho Industrial (DAV/UFES/2014) e professora dinamizadora das
artes na educação infantil (PMV/2008-2009).
http://lattes.cnpq.br/2648924540669238
https://orcid.org/0000-0001-8454-2453
[email protected]
Fabiana Pedroni
Doutora em Artes (IA-UNESP), mestra em História Social (FFLCH-USP) e licenciada em Artes
Visuais (UFES). Para além das titulações, suas vivências e pesquisas permeiam diferentes
ambientes educacionais e culturais. Atua como professora de Arte na Rede Estadual de Ensino
do Estado do Espírito Santo, desenvolve pesquisa na área de Arte Educação sobre livros
ilustrados e na área de História das Imagens, é escritora com livros publicados na área da
literatura e artista pelo Coletivo Monográfico.
http://lattes.cnpq.br/4608508847849874
https://orcid.org/0000-0003-2272-431X
Email: [email protected]
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Sofia Sousa
Mestre em Sociologia e, atualmente, é doutoranda em Sociologia (com bolsa FCT)
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Exerceu funções enquanto
investigadora contratada pela Fundação da Ciência e da Tecnologia (FCT). Faz parte da
Comissão Organizadora da KISMIF International Conference, é membro do Comitê Executivo
para a Web/Publicações da International Association for the Study of Popular Music (IASPM);
Secretária-Geral da IASPM-Portugal (International Association for the Study of Popular Music
– Portuguese Branch) e Editora Executiva da Revista Todas as Artes – Revista Luso-Brasileira
de Artes e Cultura. Na atualidade, dedica-se à investigação em áreas como as migrações,
género, artes, cultura, inclusão social e pesquisas baseadas nas artes.
https://orcid.org/0000-0002-8856-9618
[email protected]
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