Muito Além das Palavras: O Verdadeiro
Cristão se Reconhece pelo Amor ao
Próximo
Nas décadas de 1970, 1980 e início dos anos 1990, era comum ouvirmos, quase de
forma automática, as pessoas se identificarem como católicas. Muitas vezes, isso ocorria
mesmo sem participação ativa na fé. Era o que se chamava de “católico de IBGE”.
Também era frequente ouvir a expressão: “sou católico e espírita ao mesmo tempo”. Ou
seja, uma junção de doutrinas que, na verdade, possuem fundamentos profundamente
divergentes entre si — o que revelava mais uma identidade cultural ou familiar do que
uma convicção espiritual genuína.
Hoje, essa estatística se inverteu. A partir dos anos 2000, especialmente nas gerações
mais jovens, tornou-se muito comum escutarmos esse novo rótulo: “sou evangélico”.
Porém, assim como antes, muitos se identificam com o nome, mas não com a essência
da fé cristã.
Porém, se antes muitos apenas diziam “católico” sem viver de fato os ensinamentos da
fé, agora vemos o mesmo fenômeno no campo evangélico. Gente que se diz cristã, que
frequenta igrejas e conhece jargões bíblicos, mas cuja vida não reflete o caráter de
Cristo. E diante disso, precisamos fazer uma pergunta sincera e urgente: será que
estamos parecendo com Jesus? Ou apenas usando o nome d’Ele?
O verdadeiro cristianismo não é uma estética. Não está nos adesivos do carro, na
camiseta com versículos, nem nas frases de efeito. Ele se manifesta em algo muito mais
profundo: na maneira como tratamos as pessoas — especialmente aquelas que não
podem nos retribuir. Jesus deixou claro que a essência do discipulado é o amor. Não o
amor de palavras, mas o amor em ação.
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”
(João 13:35).
Não é pela eloquência, pela aparência piedosa ou pela frequência nos cultos que
seremos reconhecidos como discípulos de Cristo. É pela maneira como amamos. Amor
esse que se expressa no cuidado com os esquecidos, na paciência com os difíceis, na
bondade com os que nos feriram, na justiça para com os oprimidos e na misericórdia
diante dos pecadores.
Jesus, ao ser interrogado sobre qual era o maior mandamento, respondeu de forma que
resume toda a Lei e os Profetas: “Amarás o Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a
ti mesmo” (Mateus 22:37-39). Não há como amar verdadeiramente a Deus e ao mesmo
tempo viver em inimizade, desprezo ou indiferença com o próximo. O amor ao próximo
é o reflexo visível do amor invisível a Deus.
Basta observar a vida de Jesus. Ele tocava os intocáveis, como os leprosos (Mateus 8:2-
3). Conversava com os excluídos, como a mulher samaritana (João 4:7-29). Salvava
pecadores públicos como Zaqueu (Lucas 19:1-10) e perdoava quem era condenado
pelos religiosos, como a mulher adúltera (João 8:1-11). Jesus nunca julgava pelas
aparências. Ele via o coração. Onde havia quebrantamento, havia graça. Onde havia
fome de justiça, havia consolo.
Na parábola do bom samaritano (Lucas 10:25-37), Jesus nos mostra que o verdadeiro
próximo não é quem está perto de nós por religião, nacionalidade ou afinidade, mas
quem age com compaixão diante da dor alheia. Aquele samaritano, rejeitado pela elite
religiosa, foi considerado por Jesus como exemplo de amor prático. Ele interrompeu sua
viagem, usou seus recursos, assumiu riscos e se comprometeu com a recuperação do
ferido.
Em contrapartida, vivemos hoje uma fé cada vez mais centrada no “eu”: minha bênção,
minha vitória, meu chamado, meu milagre. Mas o verdadeiro Evangelho nos tira do
centro. Ele nos chama a carregar a cruz, a lavar os pés uns dos outros, a considerar os
outros superiores a nós mesmos (Filipenses 2:3-5).
Paulo diz que mesmo que alguém fale a língua dos anjos, tenha o dom de profecia,
distribua seus bens aos pobres e entregue o corpo para ser queimado, se não tiver amor,
de nada adianta (1 Coríntios 13:1-3). O amor é o termômetro da maturidade cristã.
João é ainda mais incisivo:
“Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” (1 João 4:8)
E acrescenta: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia a seu irmão, é mentiroso.” (1
João 4:20)
Isso nos confronta profundamente. Afinal, o mundo tem assistido a muitos discursos
religiosos, mas pouca evidência de transformação verdadeira.
Não adianta ser conhecedor das Escrituras e ainda assim desprezar o próximo. Não
adianta jejuar e continuar orgulhoso, cantar louvores e ser impaciente, levantar as mãos
no culto e abaixá-las para apontar o dedo no dia a dia. O cristão autêntico manifesta o
fruto do Espírito, e o primeiro desse fruto é amor (Gálatas 5:22).
Essa fé prática se revela nas coisas simples:
No modo como tratamos os funcionários e prestadores de serviço;
Na gentileza com os idosos, na atenção às crianças;
No perdão que escolhemos oferecer a quem nos feriu;
Na disposição em ajudar sem esperar nada em troca.
Jesus não veio nos ensinar a vencer debates teológicos, mas a vencer o mal com
o bem (Romanos 12:21).
Ele não mandou transformar o mundo com argumentos, mas com o exemplo.
E Ele mesmo deixou isso claro em uma das parábolas mais impactantes do Evangelho
— a parábola das ovelhas e dos bodes. Nela, Jesus descreve o dia do juízo, quando
separará uns dos outros como o pastor separa ovelhas de bodes (Mateus 25:31-46). A
base da separação não será teologia, títulos, ou experiências sobrenaturais, mas a forma
como tratamos os pequeninos — os necessitados, os pobres, os esquecidos.
O Rei dirá aos justos:
“Tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me
hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.”
(Mateus 25:35-36)
Eles perguntarão: “Senhor, quando te vimos nessas condições?”
E Ele responderá:
“Em verdade vos digo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos,
a mim o fizestes.”
(Mateus 25:40)
Já aos que negligenciaram essas atitudes de amor, o Rei dirá:
“Apartai-vos de mim… porque tive fome, e não me destes de comer…”
(Mateus 25:41-43)
Jesus deixa claro que o critério do juízo está diretamente ligado ao amor prático. A
maneira como tratamos os mais frágeis é, aos olhos de Deus, a maneira como tratamos o
próprio Cristo.
O Evangelho não nos chama apenas para crer, mas para viver de forma coerente com
essa fé. A omissão diante da dor do próximo é um grito de indiferença ao próprio
Salvador.
Observação importante:
Essas obras mencionadas por Jesus não são a causa da salvação, mas a
consequência inevitável de quem foi verdadeiramente transformado por
Ele. Não se trata de fazer boas ações para conquistar o céu, mas de viver
em amor porque já fomos alcançados pela graça. Tiago afirma que a fé sem
obras é morta (Tiago 2:17), não porque as obras salvem, mas porque a fé
verdadeira sempre se manifesta em ações concretas de amor e justiça.
Essa parábola revela que não há espiritualidade verdadeira que ignore o sofrimento
humano. E ela nos convoca a amar não só com palavras, mas com atitudes concretas.
Afinal, Cristo se esconde nos rostos humildes dos necessitados, nos olhos cansados dos
doentes, nos passos lentos dos idosos, nas lágrimas silenciosas dos esquecidos.
Cristianismo sem amor é religiosidade morta. Fé sem compaixão é barulho sem efeito.
Que a nossa vida seja um espelho da graça que recebemos. Que ao olharem para nós, as
pessoas possam ver, ainda que em reflexos imperfeitos, o brilho de Jesus.
Porque no final das contas, como disse Jesus:
“Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.” (Mateus 5:16)