O PORTUGUÊS (NÃO) VEIO DO LATIM:
UM PROBLEMA FILOLÓGICO
Adílio Junior de Souza (UFPE)
[email protected]
RESUMO
Este estudo discorre sobre as noções de línguas vivas e mortas a partir do que es-
tabeleceram D. Francisco de S. Luiz Saraiva (1837) e Francisco António de Campos
(1843) ainda no século XIX. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de caráter filoló-
gico, em que se admite a classificação de línguas em vivas, mortas e extintas (COUTI-
NHO, 1981). O estudo aborda dois problemas fundamentais: a defesa que muitos
fazem de que a origem do português está ligada ao galego e não ao latim vulgar. Entre
os autores, citemos Bagno (2010) e Lagares (2008). Para eles, o português se originou
do galego, já este é que veio de uma variedade românica do latim vulgar formada na
península ibérica. Diferentemente do que defendem: Diez (1863), Said Ali (1921),
Vasconcellos (1911), Coutinho (1981), Ilari (2018) e Bassetto (2005), que admitem que
a base da formação do português é o próprio sermo vulgaris. Há uma relação explícita
entre a perspectiva de Bagno e Lagarese a tese defendida por Saraiva (1837). Por
outro lado, a posição dos demais autores segue a tese de Campos (1843). Desse embate,
mantemos a defesa de que as línguas românicas derivaram do latim corrente que se
espalhou pelo vasto império romano.
Palavras-chave:
Filologia. Latim. História da Língua Portuguesa.
ABSTRACT
This study discusses the notions of living and dead languages based on what D.
Francisco de S. Luiz Saraiva (1837) and Francisco António de Campos (1843)
established in the 19th century. This is a philological bibliographical research, in
which the classification of languages into living, dead and extinct is admitted
(COUTINHO, 1981). The study addresses two fundamental problems: the defense
by many that the origin of Portuguese is linked to Galician and not to vulgar La tin.
Among the authors, we cite Bagno (2010) and Lagares (2008). For them, Portuguese
originated from Galician, while the latter came from a Romance variety of the Latin
vulgar formed in the Iberian Peninsula. Differently from what they defend: Diez
(1863), Said Ali (1921), Vasconcellos (1911), Coutinho (1981), Ilari (2018) and Bassetto
(2005), who admit that the basis of the formation of Portuguese is the sermo vulgaris
itself. There is an explicit relationship between perspective of Bagno and Lagares and
the thesis defended by Saraiva (1837). On the other hand, the position of the other
authors follows the thesis of Campos (1943). From this clash, we maintain the defense
that the Romance languages derived from current Latin that spread throughout the
vast Roman Empire.
Keywords:
Latin. Philology. History of the Portuguese Language.
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1. Introdução
Qual a real origem da língua portuguesa? Eis uma pergunta da
qual se disse muito, porém ainda causa certa estranheza no meio acadê-
mico. Há duas tradições: uma que prega que o português teve sua origem
no latim vulgar. Outra que diz que não. O português teria se originado de
línguas antigas faladas na península ibérica antes da invasão dos romanos
(tais como a língua galega), ou em palavras mais fortes, o português veio
da língua grega.
Seja de um modo ou de outro, será necessário mobilizar uma série
de leituras que possam corroborar com esta ou aquela tradição. Na esteira
da primeira perspectiva, mais amplamente aceita, situam-se romanistas
tais como: Diez (1794–1876), Schleicher (1821–1868), Meyer-Lübke
(1861–1936) e Franz Bopp (1791–1867), num retorno ao passado, e
Bassetto (1935) e Ilari (1943), mais recentemente. Estes e aqueles autores
partilham da aceitação de que as línguas românicas podem ser compara-
das através do método histórico-comparativo ao latim vulgar, de acordo
com os pressupostos da Linguística Histórico-Comparativa, aliado aos
estudos da Filologia Românica.
Entre os autores tidos como clássicos, citam-se as obras, por e-
xemplo, de Diez (1863), Vasconcellos (1911), Said Ali (1921), Sousa da
Silveira (1960), Coutinho (1981), Silva Neto (2004), Teyssier (2014),
Ilari (2018) e Bassetto (2005), que advogam que o português é uma das
línguas neolatinas, juntamente com o espanhol, o italiano, o francês, etc.
Nesse sentido, a língua portuguesa é formada a partir da evolução lin-
guística do latim vulgar, que se desenvolveu na península ibérica. Esta
posição é defendida na obra A lingua portugueza é filha da latina, ou
refutação da memoria em que o senhor patriarcha eleito D. Francisco de
S. Luiz nega esta filiação, escrita por Francisco António de Campos
(conhecido por Barão de Villa Nova de Foscôa), em 1843.
Campos (1843) entrou numa querela com D. Francisco de São Luiz
Saraiva (chamado de Cardeal Saraiva), pois este último havia escrito a
Memoria em que se pretende mostrar, que a Lingua Portugueza não he
filha da Latina, nem esta foi em tempo algum a lingua vulgar dos Lusita-
nos, em 1837, em que negou a filiação do português ao latim – sem se
referir a variedade vulgar. A perspectiva de Saraiva segue a mesma linha
de pensamento do gramático Duarte Nunes de Leão (1530–1608), que
pregoava uma distinta origem do idioma lusitano, argumentando ser uma
língua tão perfeita quanto a latina, porém não dela originada.
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Mais modernamente, citam-se Bagno (1961) e Lagares (1971),
que defendem que o idioma lusitano veio do galego e não do latim vul-
gar. Em argumentos recentes, Bagno (2010) e Lagares (2008) buscam
rastrear a origem do idioma dos portugueses, realizando uma incursão
historiográfica em escritos antigos, valendo-se de uma crítica ao termo
híbrido galego-português, tido como uma incoerência histórico-
linguística, isto é, um anacronismo. Certamente que tal posição encontra-
rá neste e noutros estudos um posicionamento contrário.
Neste estudo, busca-se, entre outras metas: compreender os con-
ceitos de língua morta e língua viva de acordo com o postulado teórico
de Coutinho (1981); revisitar o tema a partir das obras de Saraiva (1837)
e Campos (1843), assim como em estudos recentes; por fim, problemati-
zar acerca da origem da língua portuguesa, numa comparação entre duas
perspectivas teóricas. Trata-se, portanto, de um estudo bibliográfico e
descritivo, em que são revisitadas duas lições do séc. XIX a partir de
edições fac-símiles disponibilizadas na Biblioteca Nacional Digital de
Portugal. Além disso, faz-se uma breve revisão da literatura com outras
fontes.
2. Línguas vivas, mortas e extintas
Em Pontos de gramática histórica, Coutinho (1981) assim escla-
rece sobre a tipologia das línguas quanto ao uso:
VIVAS, as que estão servindo de instrumento diário de comunicação en-
tre os indivíduos de uma nação, como o português, o francês, etc.
MORTAS, as que já não são faladas, mas deixaram documentos escritos,
como o latim e o grego literários.
EXTINTAS, as que desapareceram, sem deixar memória documental,
como o indo-europeu. (COUTINHO, 1981, p. 27)
Por essa categorização, que é amplamente aceita no meio acadê-
mico, o latim é uma língua morta. Não obstante, isso não é um tema
apascentado, basta citar, entre outros trabalhos, a discussão feita por
Mendes, Medeiros e Oliveira (2017) e Souza (2017). Para os autores,
assim como para Cristófaro-Silva (2002), o latim é, sem dúvida, uma
língua morta, que foi utilizada por um determinado povo, mas que hoje
não serve mais como veículo de comunicação diária ou quaisquer outras
atividades comunicativas, a despeito de seu uso nos ritos religiosos ou
uso particularizado na ciência. Para Souza (2017), o latim utilizado no
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Vaticano, por exemplo, é um idioma profundamente artificializado, tendo
em vista a criação de neologismos que visam preencher lacunas no sis-
tema. O latim que aparece nas magias da franquia do Harry Potter não
pode ser considerado uma língua viva, mas apenas um conjunto de for-
mas ou criações lexicais, isto é, neologismos (SOUZA, 2017).
Sobre a difusão do latim pelo vasto império romano, cabe salien-
tar que, sendo o sermo urbanus (isto é, o latim clássico ou literário), nos
termos de Coutinho (1981), Williams (2001), Sílvio Elia (2004) e Bassetto
(2005), não foi a variedade da língua que deu origem aos idiomas româ-
nicos, haja vista ser um idioma inalterado, estilisticamente já estabeleci-
do, não mutável.
Por outro lado, o sermo vulgaris (quer dizer, o latim vulgar ou
corrente), por ser a modalidade empregada pelas camadas populares,
falada por aqueles que estavam despreocupados com uso gramatical, era
suscetíveis às mudanças linguísticas. Além disso, foi esta variedade do
latim que se dialetou na România (COUTINHO, 1981; ELIA, 2004;
BASSETTO, 2005).
Com o advento dos estudos da Filologia Românica (ou Linguísti-
ca Românica), temas tais como o processo de fragmentação da România,
o surgimento dos romances, a dialetação do latim, as línguas românicas e
sua consequente transformação em línguas neolatinas, foram melhor
compreendidos (ILARI, 2018). Graças a esta área, aceita-se que o latim
que deu origem aos idiomas românicos não poderia ser outro senão a
variedade vulgar, e não a clássica. De acordo com Ilari (2018), a compa-
ração entre línguas vivas, foi o que permitiu a verificação da origem de
um léxico comum: o latim vulgar. Vejam-se os seguintes exemplos:
Tabela 1. Amostras do Appendix Probi
Latim clássico Latim vulgar Português
1. angulus anglus ângulo
2. auris oricla orelha
3. oculus oclus olho
4. auctor autor autor
5. socrus socra sogra
6. rivus rius rio
7. viridis virdis verde
8. formica furmica formiga
9. articulus articlus artigo
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10. speculum speclum espelho
11. senatus sinatus senado
Fonte: Appendix Probi (Apud SILVA NETO, 2004, p. 221-5)
Como se pode notar nessas amostras, a maior parte das formas do
português tem origem no latim vulgar – ressaltando-se que passaram por
processos de alterações fonéticas, as quais se entende por metaplasmos –,
enquanto outras formas clássicas, tais como formica e sentatus, em me-
nor número, chegaram ao idioma luso, deixando vestígios de sua origem.
Exemplos como bucca (lat. vulg.). e os (lat. clás.) – boca (port.)
ou bella (lat. vulg.) e pulchra (lat. clás.) – bela (port.) – são casos em
que se nota o abismo que havia entre as formas populares e a língua
literária. Silva Neto (2004) e Coutinho (1981) são taxativos: as formas
vulgares tiveram maior aceitação pelas camadas populares que faziam
uso de um latim menos rígido, que admitia reduções morfológicas e
alterações fonéticas e sintáticas de toda ordem.
Sobre esse assunto, Nascentes (1954) esclarece que através da Fi-
lologia Românica é possível estudar tanto uma forma latina até se chegar
às formas nas línguas românicas, ou o inverso, quer dizer, das formas
românicas se chegar à forma latina original. Além disso, como assevera
Faraco (2006), por meio do método histórico-comparativo também se
pode verificar as variações e mudanças linguísticas que o latim vulgar
passou. Aliado a isso, há ainda a possibilidade do estudo das consequên-
cias das invasões bárbaras, da força do contato linguístico (substratos,
superstratos e adstratos) sobre o latim e como isso afetou o léxico dos
idiomas neolatinos.
3. A origem do português: uma revisão filológica
Nesta seção, resumidamente, duas perspectivas serão destacadas:
de uma lado a que se admite a filiação do português ao latim vulgar e
outra que pressupõe outra origem.
Em sua Memória, Saraiva (1837) faz várias ponderações, alegan-
do que outras nações foram invadidas pelo império romano (e outros
impérios), mas que isso não foi determinante para a imposição de uma
nova língua no território conquistado, entre os quais cita: “O Egypto, por
exemplo, foi successivamente sobjugado pelos Persas, Gregos, Romanos,
e Arabes” (SARAIVA, 1837, p. 5). Em seguida acrescenta que o mesmo
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se pode dizer: “ácerca dos Hebreos. Elles forão igualmente conquistados
pelos Gregos, e ficárão sujeitos ao seu imperio pelo mesmo espaço de
tempo” (SARAIVA, 1837, p. 07) e, mesmo assim, não adotaram a língua
grega, conservando seu próprio idioma através dos séculos.
Para o autor, essas são explicações que asseguram sua posição: a
de que a língua portuguesa não seria filha da latina porque não haveria,
segundo ele, explicações razoáveis para que isso fosse aceito. Para o
autor, os portugueses jamais adotaram o latim como língua vulgar, antes
permaneceram com sua língua de origem. Do mesmo modo como os
árabes que invadiram a península ibérica e, mesmo com o contato com
povos de línguas diferentes, não adotam nenhuma delas, nem mesmo a
latina. Por fim, afirma:
[...] hum povo, huma nação inteira, não póde mudar de huma para outra
linguagem, maiormente se ellas tiverem differente genio, indole, e carac-
ter, sem que primeiro se faça hum total e substancial transtorno e trans-
formação em suas idéas e sentimentos. (SARAIVA, 1837, p. 18)
Nas palavras do autor, o povo português não admitiu tal mudança,
rechaçando a cultura romana, permanecendo com a sua própria língua.
Sem sombra de dúvidas, que essas reflexões causam estranhamento,
ainda mais quando se observa a história da formação do reino português,
bem como a herança linguística que se tem provas nos inúmeros docu-
mentos em que a língua portuguesa revela uma relação de parentesco
linguístico com o latim (TEYSSIER, 2014). A história da língua portu-
guesa mostra o quão foi importante o latim para a constituição do léxico
português, bem como para a sintaxe, morfologia e semântica (BASSETTO,
2005). Remover o latim dessa história é desconstruí-la e apagá-la com-
pletamente.
Saraiva (1837) aponta que são poucas as palavras propriamente
latinas que se podem perceber no português, e que sua presença foi moti-
vada pela infiltração no léxico através da ação dos “escriptores”. De
acordo com seus argumentos:
Todos sabem quanto os nossos primeiros escriptores, maiormente os do
sec. XV. e XVI., trabalhárão em formar, enriquecer, e polir o idioma pa-
trio, á custa (digamos assim) da lingua Latina, tomando della tudo quanto
lhes foi possivel, e talvez mais do que permittia o differente processo e
caracter dos dous idiomas. Se fosse necessario dar provas de huma cousa
tão manifesta, bastaria lançar os olhos ás obras, que se escrevêrão em Por-
tuguez, ou se traduzirão do Latim, principalmente des de o reinado de el-
Rei D. João I. em diante. (SARAIVA, 1837, p. 31)
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Desse modo, para o autor, bastaria retirar as palavras dos escrito-
res para que se retirassem as marcas do latim no idioma luso. Em outras
palavras, a herança latina seria puramente lexical. E afirma também:
Vê-se pois por tudo o que temos substanciado nos precedentes paragrafos,
que não são tantos, como vulgarmente se presume, os vocabulos Portu-
guezes, que em rigor se possão ter como derivados do Latim. Mas nós
dissemos, alêm disso, e agora repetimos, que muitos desses mesmos, que
em realidade nos vierão d‟aquelle idioma, não servem para provar a sup-
posta filiação, e disto daremos brevemente o principal fundamento. (SA-
RAIVA, 1837, p. 31)
É inegável que houve uma relatinização do português por parte
dos prosadores na literatura no séc. XV, pela falta de certos vocábulos ou
pelo desejo de refinamento da sintaxe, porém isso não significa dizer que
as palavras já não pertencessem ao latim em sua origem. O que se bus-
cou, de acordo com Cardeira (2009), foi a reincorporação de formas
latinizadas, muitas vezes, mais próximas às formas clássicas do que as
vulgares já presentes na língua. Tudo isso ocorreu em virtude de o latim
ser o modelo de língua ideal. No processo de gramatização das línguas,
foi o sermo urbanus o protótipo (AUROUX, 2009).
Saraiva (1837) informa, ainda, que a maior parte das palavras por-
tuguesas vieram de línguas primitivas anteriores à conquista romana da
península ibérica, porém ele não chega a citar quais foram elas com mai-
or precisão, exceto quando destaca a origem grega de grande parte do
vocabulário luso. Segundo o autor, como se pode constatar, o fato de
haver certas palavras latinas não implicaria em uma filiação direta, pois
de mesmo modo, para ele, apesar da presença de palavras árabes, por
exemplo, não se pode dizer que o português veio desse outro idioma.
Noutra posição mais recente, como já foi apontado aqui antes,
Bagno (2010, p. 35) declara:
O que aprendemos e ensinamos no Brasil e em Portugal até hoje nas aulas
de história da língua portuguesa é uma falácia histórico-geográfica: „o
português vem do latim‟. Nada disso: o português vem do galego. O gale-
go é que é, sim, uma língua derivada da variedade de latim vulgar que se
criou no noroeste da Península Ibérica.
De acordo com o linguista, o termo galego-português deveria ser
abolido, porque não faz jus a história da língua dos lusitanos. O que se
compreende por esse termo, na verdade, seria uma falha cronológica,
pois a Galiza e o dialeto que lá se formou vem antes do reino português
e, nesse sentido, a separação posterior entre galego e português, com a
constituição do reino lusitano, teve motivações políticas: “A questão
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política vai ser determinante para designar as línguas” (BAGNO, 2010,
p. 35). O autor concluí assim:
O português, portanto, não „veio do latim‟. A língua que tem esse nome,
português, é na verdade a continuação histórica, com outro nome, da lín-
gua românica que se desenvolveu na região desde sempre chamada Galé-
cia-Galícia-Galiza, ou seja, do galego. (BAGNO, 2010, p. 37)
A mesma posição é partilhada por Lagares (2008), que apoiando-
-se nos argumentos do gramático Duarte Nunes de Leão (séc. XVII), já
admitia que o português havia se apropriado integramente do galego,
sendo dele constituído. E a razão para a Galiza não ter o mesmo “peso”
de Portugal é que nesta última nação havia reis e naquela não. Lagares
(2008) acrescenta que a história da formação do português mostra a filia-
ção dela com o galego, mas que isso foi apagado, talvez inconsciente-
mente, por aqueles que almejavam trazer para o idioma lusitano o status
que o latim detinha. Nos termos do autor:
A diferença fundamental com o galego-português – de extraordinárias
consequências políticas e linguísticas – residiria no fato de que no nosso
caso o „dialeto‟ a partir do qual se constitui a „língua‟ ficou fora das fron-
teiras nacionais, como variedade não oficial de um outro Estado. (LA-
GARES, 2008, p. 69)
A separação geográfica entre Portugal e a Galiza, bem como a se-
paração linguística que se estabeleceu entre os séculos seguintes a forma-
ção do reino português a partir do séc. XIII, fez com que se abrisse um
abismo linguístico entre as línguas, no início ligadas por uma mesma
origem. Como aponta Areán-Garcia (2011), a origem comum entre os
idiomas não é contestada na literatura. A diferença entre as variedades
surge de uma motivação político, cultural, geográfica e histórica. Informa
a autora: “A partir do século XIV, a separação política e cultural do rio
Minho se intensificou e ficou marcada por duas variedades distintas: o
português e o galego”, inicialmente, unos (AREÁN-GARCIA, 2011, p.
12). E assim conclui:
Enquanto o português veio a ser a expressão de um povo em expansão po-
lítica, territorial, econômica e cultural, o galego, em contrapartida, se
transformou em expressão coloquial de um povo reprimido diante do do-
mínio castelhano, sofrendo influências deste e de outras línguas trazidas
pela peregrinação a Santiago de Compostela, tais como o catalão, proven-
çal e francês, dentre outras no seu desenvolvimento (AREÁN, GARCIA,
2011, p. 13).
As posições de Lagares e Bagno são próximas à linha do que a-
pontou Saraiva e vão contra ao que se postula até então: para eles, o
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português não procede do latim. Seja como for, esses autores buscaram
mostrar, por meio de uma perspectiva historiográfica, uma hipótese que
nega o que se produziu até então. Vidos (1996, p. 236), por exemplo,
esclarece:
[...] o português, nascido do galego-português (na Lusitânia Setentrional),
com a independência política se converteu numa língua românica, en-
quanto o galego (falado na antiga Província de Galiza e no extremo noro-
este da Espanha), sem independência política, permaneceu como dialeto
espanhol, apesar de ter formado em sua fase mais antiga uma unidade
com o português e de quase não se distinguir a língua dos trovadores ga-
legos [...].
Em consonância ao que propôs Vidos, Botelho (2010, p. 2472) re-
afirma que, na península ibérica, logo após um momento de
“[...] caos linguístico, estabelece-se uma língua românica de natureza lusi-
tana – uma protolíngua galaico-portuguesa – por volta do Séc. IX, que,
em consequência da fundação de Portugal no início do Séc. XII, é tomada
como língua portuguesa (português arcaico – galego-português); depois,
toma a forma de português moderno por volta do Séc. XVI, que se esten-
de até os dias atuais. (BOTELHO, 2010, p. 2472)
Nesse sentido, o galego não originou o português, mas sim junto
dele se formou. A filiação com o latim vulgar é, portanto, mantida, com a
indicação de uma relação entre uma língua, de um lado, e um dialeto, do
outro. Os argumentos de Vidos e Botelho sintetizam muito bem o pro-
blema que é fazer a separação linguística entre os dois. É importante
frisar que entre o latim vulgar e o português há um espaço de séculos, o
que inclui um processo longo de alterações de toda sorte.
Em uma posição diferente, Campos (1843) retoma a mesma com-
preensão de vários romanistas antes mencionados, que se apoiam nos
estudos filológico-linguísticos, que admitem a filiação latina. Dada a
robustez dos documentos em latim clássico e aos corpora do latim vulgar
(mesmo em menor quantidade), é possível depreender as formas latinas
que originaram as formas vernáculas. Em uma ligeira comparação como
que se fez na seção anterior, se pode perceber as similaridades entre o
latim vulgar e o português. Além disso, não se pode negar o processo de
romanização da península ibérica, bem como a força que esse processo
exerceu sobre a cultura, religião e formação social (BASSETTO, 2005).
Campos (1843) problematiza, entre outros pontos da Memória, a
falta de argumentos sólidos para sustentarem a negação da filiação. Para
ele, o fato das sucessivas invasões de regiões tais como o Egito por ou-
tros povos de línguas diferentes, como o grego, por exemplo, não ter sido
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suficiente para impor um julgo linguístico sobre o egípcio, não seria
igualmente válido para o que ocorreu na península ibérica, onde o impé-
rio romano se sobrepôs sobre outros povos e, com isso, sua língua.
Em uma de suas primeiras críticas, informa o autor:
[...] quaesquer que sejam os esforços dos escriptores, para darem á lingua
toda a perfeição de que é susceptivel, seus trabalhos não poderáõ ser co-
roados de feliz sucesso se for desconhecida a sua origem, de que depen-
dem em grande parte seu genio e sua estrutura. (CAMPOS, 1843, p. 03)
O tom da linguagem do texto é cortês, mas o autor não esconde
sua posição contrário aos argumentos levantados por Saraiva. Daí em
diante, há uma lista extensa de comentários desfavoráveis ao que postu-
lou este último. Inicialmente, alega que na península ibérica duas línguas
passaram a conviver, a céltica e a latina. O latim suplantou a céltica e
dela restou somente influências lexicais.
Outro ponto de sua crítica diz respeito ao léxico do português, que
para ele, é de base latina, acima de quaisquer outros vestígios, “porque o
latim ficou prevalecendo sobre todos os dialectos peninsulares, como
teremos ocasião de ver.” (CAMPOS, 1843, p. 4). Há, por ventura, res-
quícios da língua celta, como força de estrato linguístico.
Além disso, Campos critica a posição de Saraiva, quando este ar-
gumenta que o latim nunca foi a língua vulgar da região da península
ibérica. Para o autor, não só o latim era a variedade vulgar como também
a própria cultura e religião eram romanas. Afirma, ainda, que as demais
línguas vizinhas, o catalão e valenciano são igualmente filhas do latim.
Nos termos de Ilari (2018) e Coutinho (1981), os povos das regiões con-
quistadas pelo império romanizaram-se e, assim, abraçaram o cristianis-
mo e a língua dos romanos.
Sobre o que se disse sobre outros casos de invasões que outras na-
ções sofreram ser o mesmo caso da conquista romana da península ibéri-
ca, assim argumenta o autor, negativamente:
O exemplo dos hebreos, que dominados por gregos e romanos, conserva-
ram sempre a sua lingua, não é mais concludente. Os hebreos eram um
povo não só opprimido, mas despresado; a sua unica consolação, no ve-
xame de seus oppressores, era a religião de seus pais; o odio que profes-
savam a seus tyrannos lhes vedava adoptarem a sua lingua, abandonando
a de seus livros sagrados. (CAMPOS, 1843, p. 10)
Ora, a não aceitação do julgo grego ou romano por parte dos he-
breus tem mais a ver com uma posição religioso-cultural do que com um
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processo puramente linguístico. Muitas nações adotaram o latim (e tudo
quanto fosse romano) por interesses de variadas natureza, inclusive o
religioso (tendo o império romano adotado o cristianismo, as regiões
conquistadas foram forçadas, pela força do momento que viviam, a se-
guir os mesmos princípios e ritos) e, especialmente, linguístico (uma vez
que a comunicação entre as pessoas com outras de várias partes do impé-
rio tinha de ser em sermo vulgaris (BASSETTO, 2005).
Sobre as línguas românicas, é preciso ressaltar que são aquelas
que preservam vestígios do latim, na morfologia, no léxico, na sintaxe ou
na semântica (COUTINHO; 1981; VIDOS, 1996). E, de acordo com
Silva Neto (2004), o latim vulgar deve ser entendido como o substrato
principal da constituição dessas línguas. Em suas palavras: “Do substrato
das línguas românicas deve dizer-se, simplesmente, que foi o latim, o
verdadeiro latim, isto é, lingua viva e corrente” (SILVA NETO, 2004, p.
34), enfim, as línguas românicas vieram do latim vulgar.
Seguindo pressuposto levantado, com segurança, se pode afirmar
que: “o latim vulgar esteve submetido incessantemente a alterações. Foi
desse latim vulgar, evoluído gradualmente, de onde começaram a formar-
se as línguas que hoje denominamos românicas ou neolatinas (MIRAN-
DA POZA, 2019, p. 29). Em outras palavras, desse latim “procedem os
diversos idiomas chamados românicos, romances ou neolatinos” (SAID
ALI, 1921, p. 1).
É preciso levar em consideração o que diz o célebre filólogo:
As línguas neolatinas não se derivam diretamente do latim, mas entre a-
quelas e este houve os vários romances – assim se chamavam as modifi-
cações regionais do latim –, dos quais saíram então as línguas românicas.
(COUTINHO, 1981, p. 43)
Não há, como se sabe, uma data exata entre o fim do latim vulgar
e começo da formação dos romances. Contudo, é certo que houve um
processo de continuidade de um falar comum nas regiões conquistadas
por Roma. Desde a queda do império romano no séc. V d. C. e as suces-
sivas invasões por povos bárbaros, os romances que daí resultaram atra-
vés dos inúmeros contatos linguísticos, favoreceram a formação de diale-
tos, que depois se constituíram em línguas nacionais (ILARI, 2018; BO-
TELHO, 2010).
Além dos já citados idiomas formados num período que vai do
séc. IV ou V até IX ou XI d. C. (português, italiano, espanhol e francês),
há outros: sardo, romeno, dalmático, reto-romano, provençal e catalão,
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segundo Coutinho (1981) e Botelho (2010) e, mais outros dois, ladino e
franco-provençal, de acordo com Vasconcellos (1911). Diez (1863), por
sua vez, inclui também o valáquio entre os idiomas formados do latim
vulgar. Note-se que somente Sousa da Silveira (1960) menciona o galego
como língua neolatina. Para os demais, porém, ele é tido como um diale-
to restrito à Galiza que pouco influiu na constituição do espanhol, apesar
do contato linguístico mantido com ele.
Tôdas estas línguas e dialetos originaram-se do latim; não do latim literá-
rio, que em muitos pontos era linguagem artificial, e sim do latim vulgar,
isto é, da linguagem viva, do latim falado. (SAID ALI, 1921, p. 17)
Encerra-se essa seção com um questionamento as palavras de
Campos (1843):
[...] penso que ninguem duvidará que a lingua portugueza é filha da latina;
e como poderia deixar de o ser, se, em grande parte, a nossa legislação,
nossos costumes, nossas ceremonias religiosas e até nossos prejuizos nos
vem dos latinos? (CAMPOS, 1843, p. 79)
Em suma, a filiação latina não pode ser negada ou distorcida e pa-
ra a comprovação disso, basta observar a história da língua a partir dos
autores clássicos e modernos, mas, mais especificamente, o que está
posto na literatura sobre o tema. Contra os fatos, não há contradito.
4. Considerações finais
Este artigo não teve a pretensão de esgotar o tema, muito menos
fazer uma crítica aos autores e seus postulados teóricos, mas sim a de
fazer uma reflexão sobre duas hipóteses, de certa maneira, conflitan-
tes.Entre as duas propostas discutidas, a de que o latim vulgar deu ori-
gem aos idiomas românicos é a que mais fielmente se apoia nas desco-
bertas da Filologia Românica, bem como é que mais argumentos sóli-
dos podem ser considerados, pela abundância dos estudos.
Há ciência de que o português não poderia ter se formado dire-
tamente do sermo urbanusde Cícero e Virgílio, porque nesse ca-
so,haveria um lapso temporal de muitos séculos. Além disso, a língua
de Virgílio é da literatura, a de Cícero, a da retórica e da literatura. É
uma língua morta, que vivia apenas na estilização e floreios dos discur-
sos.
Por outro lado, o sermo vulgaris, a língua em movimento, que
através de seus usos fluía como um rio, sujeito às pressões e forças
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desses usos, mudava e ia se alterando com o passar do tempo. Foi do
latim vulgar que vieram os romances e estes geraram as línguas româ-
nicas, suas marcas são fartas, em todos os níveis da estrutura linguísti-
ca. enfim, negar isso tudo é querer contar outra história da língua por-
tuguesa.
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