REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
Novos sistemas de controle gerencial da força de trabalho combinados com novas
técnicas organizacionais que promovem cooperação dos trabalhadores se apresentaram como
alternativa ou complemento ao fordismo. Entre essas novas abordagens, aquela que
apresentou maior poder de difusão foi o toyotismo. Embora nem todas as suas premissas
tenham sido adotadas na totalidade, grande parte do mundo do trabalho incorporou algumas
de suas características. Entre as principais, destacam-se:
a) produção enxuta (lean production): eliminando desperdícios ao longo de toda a
cadeia de produção como excesso de estoque, movimentação desnecessária, tempo de espera
e defeitos.
b) produção por demanda: ao contrário do fordismo, onde os produtos são fabricados e
“empurrados” com base em previsões de demanda, o toyotismo adota uma produção “puxada”
com base na demanda real do cliente.
b) flexibilização da produção: busca tornar a produção mais variada, ao invés de
produzir em massa sempre o mesmo produto como no sistema fordista.
c) automação: as máquinas desempenham várias funções e funcionam com menor grau
de intervenção do trabalhador.
d) celularização da produção: as células de trabalho permitem reunir no mesmo
ambiente várias máquinas para serem manipulados por um mesmo trabalhador ou equipe e,
assim, produzir toda uma família de produtos ou componentes diferenciados.
e) sistema just-in-time (no tempo certo): a matéria-prima, as peças ou os acessórios
chegam ao local de produção apenas quando serão utilizados, evitando o acúmulo de produtos
no estoque; para isso costuma-se utilizar o sistema kanban, que permite o acompanhamento
da necessidade de reposição por meio de etiquetas.
f) CCQs (Círculos de Controle de Qualidade): grupos de trabalhadores são
responsabilizados pela supervisão da qualidade em cada etapa da produção, contribuindo para
reduzir os desperdícios e defeitos.
Esse modelo organizacional implicou na criação de um novo tipo de trabalhador com
as seguintes características:
a) Trabalho multifuncional e polivalente: No lugar do trabalhador
taylorista-fordista, que realizava uma tarefa repetitiva e simples, o trabalhador toyotista opera
várias máquinas e realiza diversas funções dentro de sua área, além de tarefas relacionadas à
gestão, controle de qualidade e organização do ambiente de trabalho.
b) Trabalho participativo e em equipe: Diferente do trabalho individualizado do
taylorismo e fordismo, os trabalhadores são organizados em equipes autônomas, sob liderança
interna, permitindo uma comunicação mais eficaz e a cooperação mútua. Todos os membros
são incentivados a sugerir melhorias para os processos e a busca por eficiência (Kaysen).
c) Trabalho qualificado: A exigência de qualificação dos trabalhadores é uma
característica central, tanto para o aprendizado das funções quanto para a internalização da
cultura organizacional. A polivalência exige formação contínua, incluindo novas habilidades e
competências.
Essas novas técnicas organizacionais introduzem um sistema gerencial de controle do
capital sobre o trabalho baseado em metas e performance, resultando em um modelo de
“gestão por estresse”. Os trabalhadores são coagidos a tomarem decisões e iniciativas que
têm como objetivo ampliar a sua própria exploração, ou seja, intensificar o seu próprio ritmo
de trabalho. Utilizando-se hábeis ferramentas de manipulação ideológica, o capital convence
o trabalhador a se doar de corpo e alma aos processos de acumulação de capital. Os
trabalhadores são constantemente pressionados a bater metas de produção mediante
premiações individuais e coletivas ou simplesmente para permanecer no emprego, de tal
modo que o trabalho acaba invadindo até mesmo seu espaço de lazer com atividades como a
busca por qualificação permanente ou reflexões individuais sobre como melhorar os processos
produtivos dentro da lógica do capital. O fordismo conseguiu minar a resistência dos
trabalhadores qualificados ao desqualificar as atividades manuais. O toyotismo chegou ao
mesmo lugar impondo a exigência de qualificação para todo o efetivo de funcionários da
empresa.
Esses sistemas toyotistas organizados em fábricas e centros de trabalho cada vez mais
enxutos são complementados com a crescente externalização de suas atividades e sua
coordenação em rede pelo capital financeiro. Essas atividades periféricas, em número cada
vez maior, empregam os mais variados mecanismos de controle: o taylorismo primitivo; o
fordismo flexibilizado pela introdução de princípios toyotista; o infotaylorismo no qual a
tecnologia da informação é utilizada como ferramenta de fragmentação, desqualificação e
controle do comportamento dos trabalhadores na produção imaterial; etc. O capital ainda se
utiliza das formas mais arcaicas de poder patriarcal (familiares) ou paternalista e avança seu
controle até mesmo sobre profissionais liberais que se veem, muitas vezes, obrigados a se
subordinar aos gestores de planos de saúde, seguradoras e grandes escritórios. Por último,
temos o desenvolvimento da uberização e plataformização do trabalho, no qual algoritmos
exercem o controle do capital sobre trabalhos supostamente autônomos. Sendo assim, a
imagem de descentralização provocada pelo crescimento das atividades externalizadas é uma
ilusão. Na realidade, o predomínio do capital financeiro produz um entrelaçamento de todas
as formas de capitais que passam a atuar com o propósito de sua autovalorização. Nem
mesmo empresas cooperativas autogestionárias e outras organizações da economia solidária
escapam da capacidade de coordenação do capital financeiro para impor ao mundo do
trabalho sua lógica particular de extração de mais-valor.
Portanto, apesar da expansão de seus princípios, o toyotismo se apresenta como um
termo inadequado para descrever o novo regime de acumulação em função dessa
heterogeneidade dos processos de controle de trabalho. De acordo com David Harvey, como
esse regime se organiza em confronto direto com a rigidez do fordismo, podemos
denominá-lo de “acumulação flexível”, o qual se apoia na flexibilidade dos processos
produtivos, dos mercados de trabalho e dos padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de novos setores de produção e por taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica, financeira e organizacional. Opera através de rápidas deslocações do
capital entre setores econômicos e regiões geográficas propiciadas pelo acúmulo de poder do
capital financeiro. Mais do que um produto, essa preponderância do capital financeiro
resultante dos processos de concentração e centralização de capitais inerentes à lógica de
concorrência é a causa da flexibilização dos processos de acumulação. Investidores
institucionais, como os fundos de pensão, por exemplo, administram em nome de investidores
privados enormes quantidades de ações, impondo modelos organizacionais financeirizados
aos empreendimentos onde investem seu capital. Dessa maneira, organizam um sistema de
controle externo destinado a estimular os dirigentes das empresas a atuarem para realizar os
objetivos dos acionistas que consistem em ganhos de dividendos e lucro no mercado de títulos
de propriedade e derivativos, sobretudo na Bolsa de Valores. O resultado é uma
financeirização generalizada do meio ambiente empresarial e uma explosão de atividades
especulativas em detrimento das produtivas gerando uma superabundância de capital fictício
que se torna crescentemente incapaz de se realizar (bolha financeira), tornando os efeitos das
crises periódicas de superprodução e superacumulação de capital cada vez mais
potencialmente catastróficos.
O MODO DE REGULAÇÃO NEOLIBERAL E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
O regime de acumulação flexível implicou em uma alteração no modo de regulação.
Como a gestão por estresse visa cooptar os empregados no próprio ambiente do trabalho, ela
germina por si só os mecanismos de cooptação extra-laborais dos quais o Estado tende a ser o
maior encarregado. Ou seja, o novo modo de vida que cria um ser humano adequado às
exigências do novo regime de acumulação nasce no interior do próprio mundo do trabalho. E
se propaga, ainda mais que o fordismo, por uma extensa malha que engloba, além do Estado e
seu sistema educacional, uma poderosa rede de organizações (ONG’s, think tanks, mídia
corporativa, agências de publicidade, influenciadores digitais, seitas religiosas, etc.) na
sociedade civil. O capitalismo se torna cada vez mais manipulatório. Através de tecnologias
da comunicação e informação cada vez mais desenvolvidas, se difunde uma reafirmação
constante dos princípios ideológicos que organizam a produção flexível, os quais se
apresentam como o pensamento único da nossa época. A ilusão de liberdade de escolha e de
empoderamento individual decorrente dessa flexibilização da esfera produtiva e de consumo
forma sujeitos cada vez mais egocêntricos e imediatistas, rompendo os laços de solidariedade
social e geracional que configuraram a época fordista. Se aprofunda a lógica da sociedade de
espetáculo, na qual a aparência se impõe à existência, a ilusão se impõe à realidade e a
ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. Expomos cada vez mais nossa
privacidade e um modo de vida falseado nas redes sociais em busca de likes, visualizações,
comentários motivadores de desconhecidos e demais simulacros de uma vivência dotada de
sentido. Na acumulação flexível, a propriedade da informação, cada vez mais monopolizada
pelas grandes corporações financeiras, conta até mais do que a propriedade dos meios de
produção. Com base nas informações que nós mesmos fornecemos “livremente” nas redes
sociais, as técnicas de controle social e de manipulação se tornam ainda mais sofisticadas e
efetivas. Algoritmos projetados para capturar nossa atenção nos expõe a um mundo de
publicidade comercial, financeira e política orientado para propósitos obscuros e distantes de
uma vida democrática. O mito do empreendedorismo banaliza a injustiça social. Em um
mundo cada vez mais competitivo e inseguro, somos todos lançados à própria sorte.
Sobreviva ou morra tentando, os que ficam pelo caminho, quando muito, são alvos da
caridade de alguma ONG em busca de autopromoção ou de políticas públicas paliativas que
não mais possuem em seu horizonte a universalização dos direitos.
Tal mudança cultural permite, não sem resistências, um relativo consenso social para a
implementação de políticas de corte nos gastos sociais. O Estado reduz o investimento em
saúde, educação, moradia, etc., ao mesmo tempo em que os gastos militares (sobretudo nos
países centrais) e com juros da dívida pública explodem. Mais do que a busca por equilíbrio
fiscal, ocorre aí uma redistribuição dos fundos públicos, o orçamento de direitos sociais é
transferido para o capital como forma adicional de recompor suas taxas de lucro. A ênfase
política e midiática no déficit fiscal é sobretudo um argumento ideológico para a legitimação
da destruição das políticas de bem-estar social. A forma neoliberal de Estado não nasce desse
déficit, mas da necessidade de regular a vida social conforme as necessidades e características
da acumulação flexível. E o faz através de políticas de privatizações que mercantilizam o
bem comum (terra, água, saúde, educação, etc.) propiciando novos setores para a valorização
do capital superacumulado e políticas de desregulamentação dos mercados de produtos, de
capitais e, sobretudo, da força de trabalho. O resultado é uma aceleração do processo de
mundialização do capital (globalização) que enfraquece as organizações trabalhistas ao
manter, em grande medida, os trabalhadores encapsulados dentro dos seus territórios locais ou
nacionais enquanto garante ao capital a maior liberdade de movimento possível em busca de
força de trabalho com menos tradição de lutas ou mais disponibilidade de se subordinar aos
seus termos.
Surgem novas ou recicladas modalidades de contratação de empregados, distantes do
emprego padrão estabelecido pelo fordismo, portanto que tornam o trabalho precário, que
permitem ao capital reduzir ao extremo a porosidade das jornadas de trabalho, realizando a
gestão just in time da força de trabalho. Trabalho intermitente, temporário, terceirizado,
em tempo parcial, uberizado, “estágios”, salários por produção, etc. são modalidades de
contrato que passam a ser admitidas pelo Estado. A precarização do trabalho resultante dessa
flexibilização dos contratos de trabalho pode ser comprovada pelo fato de que, na média, a
rotatividade, as jornadas de trabalho, o adoecimento e acidentes laborais são ampliados
enquanto os salários e os benefícios trabalhistas e sociais são reduzidos. Mesmo
trabalhadores em regimes de trabalho mais estáveis e melhor remunerados, em número cada
vez mais reduzido, passam a ter sua força de trabalho utilizada de forma flexível conforme as
necessidades do capital. Mecanismos como banco de horas passam a ser largamente utilizados
como forma de otimizar a utilização da força de trabalho conforme a maior ou menor
demanda de produtos. Tal processo enfraquece o poder de resistência dos trabalhadores, afinal
a pulverização do mundo do trabalho tem como um dos objetivos quebrar o poder dos
sindicatos que resultava, na época fordista, da enorme concentração de operários no mesmo
ambiente industrial. Além disso, os trabalhadores tendem a consentir porque há um
desemprego constante (estrutural) e a maioria dos desempregados normalmente só
encontram postos de trabalho precários. Quando não encontram, são obrigados a realizar
pequenos empreendimentos individuais, os quais estão sempre sujeitos à bancarrota e
condições brutais de autoexploração.
Chamamos esse novo modo de regulação da relação capital e trabalho de
neoliberalismo. Não se trata apenas de retomar a velha configuração do Estado capitalista
anterior ao desenvolvimento do fordismo-keynesianismo. O Estado não recuou em seu papel
de socialização das perdas, investimentos em infraestruturas não diretamente rentáveis para o
capital e regulação financeira dos ciclos econômicos (ainda que uma lógica diferente daquela
que produziu os surtos inflacionários do período fordista). Ao contrário do mito do Estado
mínimo, temos uma ampliação do Estado burguês através do seu crescente entrelaçamento
com os cada vez mais numerosos aparelhos privados de hegemonia burguesa no seio da
sociedade civil. O que está em curso é uma política de expropriação sistemática de direitos
sociais, trabalhistas e previdenciários que colocam os trabalhadores em condições de vida e
trabalho cada vez mais precárias. Esses processos são responsáveis pela desmobilização
política do proletariado ao destruir as bases econômicas, políticas e ideológicas em que essa
classe se formou enquanto sujeito histórico no período fordista. A insegurança e a captura
da subjetividade dos trabalhadores se tornam ferramentas tão efetivas de controle social
quanto eram as políticas de cooptação pelo consumo de massas no período fordista. O que não
significa que esse modo de regulação esteja isento de crises e contradições. A história do
capitalismo, incluindo aí o período fordista, indica que o potencial revolucionário da classe
oprimida pode ser momentaneamente diluído, jamais suprimido.