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Sentados Ao Redor de Um Circulo Escrito

O livro 'Sentados ao Redor de um Círculo' de Carlos Rodrigues Brandão explora a interseção entre cultura e educação, inspirado na obra de Paulo Freire e na prática de círculos de cultura. A obra reflete sobre a importância do diálogo e da aprendizagem mútua em um contexto de educação popular, destacando memórias e experiências do autor. Publicado em 2021, o livro é uma homenagem ao centenário de Freire e busca resgatar a essência da educação como um processo coletivo e transformador.

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Sentados Ao Redor de Um Circulo Escrito

O livro 'Sentados ao Redor de um Círculo' de Carlos Rodrigues Brandão explora a interseção entre cultura e educação, inspirado na obra de Paulo Freire e na prática de círculos de cultura. A obra reflete sobre a importância do diálogo e da aprendizagem mútua em um contexto de educação popular, destacando memórias e experiências do autor. Publicado em 2021, o livro é uma homenagem ao centenário de Freire e busca resgatar a essência da educação como um processo coletivo e transformador.

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SENTADOS AO REDOR

DE UM CÍRCULO
ESCRITOS SOBRE A CULTURA E A EDUCAÇÃO
Universidade Estadual da Paraíba
Profª. Célia Regina Diniz | Reitora
Profª. Ivonildes da Silva Fonseca | Vice-Reitora

Editora da Universidade Estadual da Paraíba


Cidoval Morais de Sousa (UEPB) | Diretor
Conselho Editorial Expediente EDUEPB
Alessandra Ximenes da Silva (UEPB)
Design Gráfico e Editoração
Alberto Soares de Melo (UEPB)
Erick Ferreira Cabral
Antonio Roberto Faustino da Costa (UEPB)
Jefferson Ricardo Lima Araujo Nunes
José Etham de Lucena Barbosa (UEPB)
Leonardo Ramos Araujo
José Luciano Albino Barbosa (UEPB)
José Tavares de Sousa (UEPB) Revisão Linguística
Melânia Nóbrega Pereira de Farias (UEPB) Antonio de Brito Freire
Patrícia Cristina de Aragão (UEPB) Elizete Amaral de Medeiros
Conselho Científico Divulgação
Afrânio Silva Jardim (UERJ) Danielle Correia Gomes
Anne Augusta Alencar Leite (UFPB) Gilberto S. Gomes
Carlos Henrique Salvino Gadêlha Meneses (UEPB)
Carlos Wagner Dias Ferreira (UFRN) Comunicação
Celso Fernandes Campilongo (USP/ PUC-SP) Efigênio Moura
Diego Duquelsky (UBA) Assessoria Técnica
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Eduardo Ramalho Rabenhorst (UFPB)
Germano Ramalho (UEPB)
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Gustavo Barbosa Mesquita Batista (UFPB)
Jonas Eduardo Gonzalez Lemos (IFRN)
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Flávio Romero Guimarães (UEPB)
Juliana Magalhães Neuewander (UFRJ) Editora indexada no SciELO desde 2012
Maria Creusa de Araújo Borges (UFPB)
Pierre Souto Maior Coutinho Amorim (ASCES)
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Rodrigo Costa Ferreira (UEPB)
Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar (UFAL)
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Vincenzo Milittelo (UNIPA/IT)

EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA


Rua Baraúnas, 351 - Bairro Universitário - Campina Grande-PB - CEP 58429-500
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Campina Grande-PB
2021
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Claudio Benedito Silva Furtado| Secretário da Educação e da Ciência e Tecnologia
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EPC - Empresa Paraibana de Comunicação


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William Costa | Diretor de Mídia Impressa
Rui Leitão | Diretora de Rádio e TV
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA HELIANE MARIA IDALINO SILVA - CRB-15ª/368

B817s Brandão, Carlos Rodrigues.


Sentados ao redor de um círculo: escrito sobre a cultura e a educa-
ção. [Livro eletrônico]. ∕ Carlos Rodrigues Brandão.–Campina Gran-
de: EDUEPB, 2021.
4000 Kb - 315 p.
Referências Bibliográficas
ISBN 978-85-7879-636-5 (E-book)
978-85-7879-635-8 (Impresso)
1. Educação popular. 2.Cultura. 3.Paulo Freire – Método de
alfabetização. I.Título.
21. ed.CDD 374.013
Copyright © EDUEPB
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação
da Lei nº 9.610/98.
A cultura oscila mais essencialmente entre
duas formas, das quais uma sempre faz com
que se esqueça da outra. De um lado, ela é
aquilo que “permanece”; do outro, aquilo
que se inventa. Há, por um lado, as lentidões,
as latências, os atrasos que se acumulam
na espessura das mentalidades, certezas e
ritualizações sociais, via opaca, inflexível,
dissimulada nos gestos cotidianos, ao mesmo
tempo os mais atuais e milenares. Por outro,
as irrupções, os desvios, todas essas margens
de uma inventividade de onde as gerações
futuras extrairão sucessivamente sua “cul-
tura erudita”. A cultura é uma noite escura
em que dormem as revoluções de há pouco,
invisíveis, encerradas nas práticas – mas
pirilampos, e por vezes grandes pássaros
noturnos, atravessam-na; aparecimentos e
criações que delineiam a chance de um outro
dia”.
Michel de Certeau
O homem se faz homem. Ao dizer a sua
palavra, pois, o homem assume, consciente-
mente sua essencial condição humana. (...)
A educação reproduz, assim, em seu plano
próprio, a estrutura dinâmica e o movimento
dialético do processo histórico de produção
do homem. Para o homem, produzir-se é con-
quistar-se, conquistar sua forma humana. A
pedagogia é antropologia.
Paulo Freire
Dedicatória de

SENTADOS AO REDOR DE UM CÍRCULO

E
ste livro foi pensado, produzido e publicado em 2021,
o ano em que celebramos aqui no Brasil e em todo o
mundo, os “Cem Anos de Paulo Freire”. Eu o criei em
meio a uma série de “encontros virtuais” ao redor da Educação
e de Paulo Freire.
A imagem da capa do livro é a última figura da série de
“fichas de cultura” da versão original do Método de Alfabe-
tização de Paulo Freire. Como naqueles tempos tudo se fazia
unindo a pedagogia à poesia, e a educação à arte, os desenhos
das “fichas de cultura” foram criados por um artista plástico,
Francisco Brennand, também pernambucano.
E uma das melhores e mais queridas imagens do mundo,
da cultura e da educação com que sonhávamos então, era a
de pessoas sentadas ao redor de um círculo, mutuamente se
ensinando e aprendendo, como Paulo Freire dizia e escrevia
seguidas vezes.
Foi ao redor de círculos de cultura que em um janeiro de
1963, em Garanhuns, em Pernambuco e no Nordeste, que eu
vivi junto a educadoras e educadores do Movimento de Educa-
ção de Base o meu primeiro programa de formação, para vir a
ser o que anos depois começamos a chamar de um “educador
popular”.
Entre Paulo Freire e um número de mulheres e de homens
do Nordeste, cuja conta há muitos anos eu perdi, penso que
aprendi durante décadas o melhor e o mais fecundo de meus
saberes sobre os temas e os dilemas deste livro.
Este livro para ser lido e vivido “ao redor de um círculo”,
deve ser então dedicado à querida “Gente do Nordeste”, desde
Paulo Freire até as jovens e os jovens educadores com quem
tenho partilhado tantos antigos e novos momentos de diálogo e
de um aprendizado sem fim.
SUMÁRIO

Sentados ao redor de um círculo em volta de uma


fogueira acesa - Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

O lugar da cultura na educação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

A Natureza a Cultura e a Educação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

A Educação como Cultura - Algumas memórias de


ontem algumas lembranças de agora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Adendo ao Capítulo -
O Conceito de Cultura – um documento traduzido
e editado pelo Movimento de Educação de Base no
começo dos anos 60 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

Entre Platão e Paulo Freire - a respeito de alguns


estranhos e arcaicos começos da educação popular . . . . 115

Educação pública, educação alternativa, educação


popular e educação do campo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

O pessoal, o público e o popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

En que plan vienes?” - Memórias, idéias e perguntas. . 221

A vocação do humano na pedagogia da educação


popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257

Vendo e Lendo as Fichas de Cultura do Método de


Alfabetização de Paulo Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

Livros e outros escritos lidos, consultados e indicados. . 287


SENTADOS AO REDOR DE UM CÍRCULO EM
VOLTA DE UMA FOGUEIRA ACESA

INTRODUÇÃO

Q
uando em algum lugar remoto do que bem mais tarde
veio a ser a África, os nossos primeiros ancestrais
descobriram o domínio do fogos e os seus usos, eles
descobriram também que no meio da noite escura o círculo
seria a melhor maneira de eles se sentarem juntos, e se reunirem
ao redor de uma fogueira acesa.
Muitos milênios mais tarde, em algum lugar do que veio a
ser o “Nordeste do Brasil”, diante do mar que tem a África do seu
outro lado, um professor chamado Paulo Freire descobriu que era
também o círculo a melhor maneira de as pessoas se assentarem,
para juntas se olharem umas às outras, e reconhecerem face-a-
face. E assim, “olhos-nos-olhos”, reaprenderem a conversar entre
elas. E se olhando, conversando, dialogando, mutuamente ensina-
rem-a-aprender enquanto aprendiam-a-ensinar.
E em “círculos de cultura”, homens e mulheres acostuma-
das à enxada e ao fogão de lenha se reuniriam durante dias, ora
diante de uma imagem, ora em uma “roda”, um círculo, para
aprenderem juntas o como acender dentro delas alguns clarões
a respeito delas mesmas, a respeito das palavras com que se
diz o mundo, e a respeito do mundo em que elas viviam. Um
mundo que deviam a saber pensar criticamente. Um mundo que
deveria transformar.
Aprenderiam que letras formam fonemas, fonemas for-
mam palavras, palavras formam frases e frases formam poemas.
Como a poesia de cordel que alguns deles sabiam criar, mas

13
não sabiam anda ler. E aprenderiam também a “ler o mundo”.
Ler um mundo social de vida e de trabalho. O mesmo que não
sendo o mundo humano em que deveriam estar vivendo, preci-
sava ser transformado.
Mais ou menos uma década antes do que aconteceu em
Angicos, no Rio Grande do Norte, em alguns lugares entre tri-
lhas e florestas no Rio de Janeiro, um menino carioca chamado
Carlos, reunia-se em algumas noites com amigos de igual idade,
e mais um ou dois “chefes de escoteiros”, ao redor de um cír-
culo que no seu centro tinha – como na África de milênios e
milênios antes – uma fogueira acesa.
E no meio de uma outra noite, ali, juntos, cantavam e poe-
tavam, trocavam palavras, idéias, imaginários, notícias. E sob
as mesmas estrelas da África e de Angicos (apenas em posições
celestes algo diversas) ao redor de um círculo a que davam o
nome de “Fogo do Conselho”, uma vez mais um pequeno cole-
tivo de seres humanos celebrava a mais preciosa experiência de
sua espécie: estar juntos... e em paz.
Três décadas depois do que viveu o menino Carlos nas flo-
restas do Rio, e duas décadas depois do que viveu o professor
Paulo e a sua equipe em Angicos, eles vieram a se encontrar.
Conheceram-se e estabeleceram uma amizade que atravessou
alguns anos e muitos momentos ao redor de alguns círculos.
Uns entre aulas na Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas; outros em momentos de encontros,
simpósios e congressos no Brasil e em outros recantos da Amé-
rica Latina. E outros, ainda, ao redor de uma acolhedora “mesa
de bar”, em algum boteco ou pequeno restaurante de Barão
Geraldo, o distrito de Campinas onde fica sediada a UNICAMP.
Ora. Entre os nossos primitivos ancestrais, os camponeses
de Angicos, as estudantes de Campinas, e mais as educadoras
populares daqui e de longe, espalhadas pelo mundo, e tam-
bém entre você que lê agora o que agora eu escrevo, e eu que
escrevi isto que agora você lê, acredito que por toda a parte
nós estamos sempre procurando transformar o “quadrado” em

14
“redondo”. Na mesma medida e com a mesma vocação com
que nós estamos sempre buscando transformar o linear monó-
logo, na curvatura generosa do diálogo entre as nossas mentes
e as nossas vidas.
A figura que escolhi para capa deste livro sobre os vínculos
e os intervalos entre a cultura e a educação é uma pintura de
um artista nordestino, Francisco Brennand. A ele foram pedi-
dos alguns desenhos pela equipe de Paulo Freire. Que ele criasse
com arte o que seriam a pioneiras “fichas de cultura” das pri-
meiras experiências com o “Método de Alfabetização” de Paulo
Freire, e de sua “equipe nordestina”, reunida no Serviço de
Extensão Cultural da então Universidade Federal do Recife. Na
capa ela está representada com o seu tom “terra”, original. Eu
a recopio aqui em preto-e-branco. Vejam, eles são campone-
ses, e alguns estão com os seus chapéus de palha. Seriam todos
homens? Por certo não. Pois entre as primeiras pessoas das “40
horas de Angicos” havia várias mulheres.

15
Um “professor” - com mais frequência chamado de “moni-
tor” ou de “alfabetizador” - mostra uma imagem com o dedo.
E podemos imaginar que ele esteja dizendo algo a respeito dela.
Logo adiante os participantes da reunião irão se recolocar em
um círculo. E olhando agora uns os rostos dos outros, demo-
radamente conversarão com liberdade sobre o que viram na
imagem e o que ela sugere a eles.
Estarão dialogando e aprendendo o que já sabem. Mas
não sabem dizer com as palavras que adiante aprenderão a ler
-e-a-escrever. E elas e eles aprenderão que através de trabalhos
entre o “rocado” e o “fogão de lenha”, eles e elas, mulheres e
homens “da roça” são por igual seres “criadores de cultura”.
Daí o duplo sentido dado ao estranho modo como o “método
de alfabetização do professor Paulo Freire” começa1.
A imagem transcrita aqui é a derradeira “ficha de cultura”
ao redor da qual tinham início os trabalhos de “leitura de pala-
vras” do “Método Paulo Freire”. Que antes de se aprender a
ler palavras, como tradicionalmente acontece quando se alfa-
betiza, as pessoas aprendam entre elas a “lerem o seu mundo”,
criativa e criticamente.
No último capítulo deste livro retomo as “fichas de cul-
tura”, e com a ajuda do artigo de Osmar Fávero e de Elisa
Mota, mencionado aqui, busco escavar mais a fundo as ideias
sumariamente trazidas a esta introdução.
Este é um livro que procura ser fiel ao que considero a
súmula de boa parte do pensamento de Paulo Freire, sobretudo
a partir de Pedagogia do Oprimido e na esteira deste livro fun-
dador.

1 Algo da proposta de alfabetização de Paulo Freire eu descrevi em um


pequeno livro: O que é o Método Paulo Freire. A respeito das “fichas de
cultura”, existe um excelente artigo de Osmar Fávero e Elisa Mota, da
Universidade Federal Fluminense. Ele tem este título: As fichas de cultura
do Sistema de alfabetização Paulo Freire - um ovo de Colombo. E foi origi-
nalmente publicado na Revista Linhas Críticas, v. 18 n. 37, set./dez. 2012.

16
Eis o que imagino o seu roteiro: pensar o trabalho humano
como criador da cultura; pensar a educação como uma dimen-
são da cultura; pensar a cultura como uma vocação da política;
pensar a política como uma ação humana destinada à transfor-
mação do mundo; pensar a transformação humanizadora do
mundo como história; pensar a história como não apenas o que
se lê, aprende e conhece, mas como aquilo que se vive e pratica,
em nome da realização plena e da felicidade dos e entre os Seres
Humanos. De todos eles e de toda a Vida.
Este livro reúne um conjunto de escritos meus a respeito
e ao redor de relações entre a cultura e a educação. O escrevo
aqui deve ser lido como palavras em “territórios de fronteira”,
ou em “entre-lugares, como costumam escrever alguns antro-
pólogos. Pois em boa medida, sobretudo entre os primeiros
artigos, tudo o que escrevo aqui está a meio caminho entre a
antropologia que pensa a cultura, e a pedagogia, que pensa a
educação.
Espero os meus escritos logrem interagir com quem me leia
de uma maneira ao mesmo tempo simples, didática e fecunda.
Devo lembrar que desde alguns anos atrás, aos poucos eu fui
deixando de escrever para leitores do “mundo acadêmico”,
embora eu me dirija também a eles, com foco sempre mais em
estudantes iniciantes do que em docentes veteranos. Tanto nas
muitas lives que vivo nestes dois últimos anos, quanto no que
escrevo, tenho diante de meus olhos as professoras “do chão da
escola”, os educadores de movimentos populares, assim como
as pessoas da universidade preocupadas, como eu, com que
suas ideias e duas ações que não se limitem às revistas indexa-
das e ao restrito “mundo acadêmico”.
Sempre fui um perene viajante em minha vida desde o
“Menino do Rio” até o professor de algumas universidades
longe do Rio de Janeiro. Até meses antes do começo da “pan-
demia do Corona Vitae”, mesmo na beira dos meus 80 anos
de idade eu prosseguia uma vida de viagens muito constantes,
entre o Brasil e alguns países da América Latina.

17
A pandemia fez comigo o que imagino que terá feito com
quase todas as pessoas a quem me dirijo. Prendeu-me em casa
desde março de 2020 até afora, já no quase meio da Primavera
de 2021. No entanto, seja no que prossegui escrevendo, seja na
interação com outras pessoas através de “lives” - que prefiro
chamar de “diálogos virtuais” - tenho de algum modo viajado
até mais do que nos outros anos. Raros tem sido os dias em que
não me vejo diante da tela do computador, ouvindo, falando
e dialogando com tantas e tantas outras pessoas. Mulheres e
homens tão inumeráveis em número, quanto absolutamente
pessoais na figura e na presença de cada uma delas.
Este apanhado de escritos foi pensado e criado origi-
nalmente para ser “jogado nas nuvens”. Nestes dois anos de
pandemia tenho buscado seguir a sabedoria de um momento
poético de Mário Quintana: “as únicas coisas eternas são as
nuvens”.
Assim, tenho procurado partilhar solidariamente alguns
escritos relativos a Paulo Freire e à educação popular, colo-
cando-os em disponibilidade aberta e gratuita. Quase sempre
procuro enviar antes de algum “diálogo virtual”, alguns escri-
tos no anexo de mensagens. E uma boa parte de tudo o que
escrevi entre a educação, a antropologia e a literatura pode ser
acessado livremente em: www.apartilhadavida.com.br.
Para o caso dos escritos aqui reunidos, busquei responder
a um generoso convite da EDUEPB, da Universidade Estadual
da Paraíba, através do professor Cidoval Morais de Sousa. E
assim os destinei a uma versão editorial e impressa.
Penso que qualquer que seja o meio ou instrumento
utilizado para os nossos diálogos, o importante é que o que
pensamos, escrevemos, dizemos, dialogamos, enfim, esteja não
em nós nem para nós, como uma posse. Que o que logramos
criar exista e se difunda como um dom, uma reciprocidade,
uma partilha.
Que seja este o destino deste livro de escritos imaginaria-
mente colocados ao redor de um círculo, entre mãos, palavras e

18
gestos que sejam atos de presença e de compromisso com tudo
aqui a que não apenas Paulo Freire, mas tantas outras mulheres
e tantos outros homens do passado e do presente dedicaram
algo mais que as suas ideias. Dedicaram as suas lutas. As suas
esperanças. As suas vidas.
A esperança que salta do “esperar” que algo aconteça ao
“esperançar” de quem “sabe a hora e não espera acontecer”.
Algo que Paulo Freire gostava de dizer e de escrever, antes de
depois de haver tornado tão conhecidas estas duas palavras
esperançosas: “inédito viável”. Que com um trecho de uma das
muitas cartas de Paulo Freire, esta introdução seja encerrada.
A esperança da libertação não significa já
a libertação. É preciso lutar por ela entre
condições historicamente favoráveis. Se
estas não existem, temos que lutar de
forma esperançada para cria-las. A liber-
dade é uma possibilidade. Não é a sorte,
nem o destino, nem a fatalidade. Neste
contexto percebemos a importância da
educação, para a decisão, para a ruptura,
para a escolha, para a ética, para a política,
finalmente.
Enquanto eu luto eu sou movido pela espe-
rança2!

Campinas, primavera de 2021


Carlos Rodrigues Brandão

2 Devo confessar que não tenho o lugar original em que esta mensagem
freireana está escrita. Ela me foi enviada por uma pessoa amiga junto
com a lembrança de que ela é parte de uma carta de Paulo Freire prova-
velmente inserida no livro: Pedagogia da Correspondência: Paulo Freire e
a educação por cartas e livros. O livro foi organizado por Edgar Pereira
Coelho e publicado em 2011, em sua primeira edição, pela Editora Auto-
res Associados. A frase final pode vir de outra fonte freireana.

19
O LUGAR DA CULTURA NA EDUCAÇÃO

S
omos seres da natureza vivida como alguma experiência
de cultura. Mas o que é, em síntese, “aquilo” que tornou
possível saltarmos do mundo da natureza-de-que-somos -
e da qual afortunadamente nunca saímos inteiramente – para
os mundos da cultura- que-criamos?
A resposta deve ser procurada dentro da mente humana.
Deve ser buscada na passagem da consciência reflexa = saber
algo, para a consciência reflexiva = saber algo sabendo que se
sabe, saber algo sabendo que se sabe e sentido algo que se sabe
por saber que se sabe algo, e que se sabe que se sabe ... infi-
nitamente). A resposta deve ser procurada, no diálogo entre
nós. Ali, no momento e no lugar onde saltamos do sinal, como
na fumaça do fogo) para o signo, como na dança das abelhas.
E, finalmente, onde saltamos para além do que nos identifica
como seres-da-vida entre os animais, ao passarmos do signo
ao símbolo, como nas máscaras que nos colocamos no rosto
para dançarmos, ou como a palavra “dança”, seguida da pala-
vra “abelha”, ou como “a dança das abelhas”, ou ainda, como
&, como # ou como @, com o que nos dizemos algo aquém e
além das palavras.
O símbolo transforma arrulhos e gemidos, sinais de desejo
e de amor, em atos-como-gestos, como as palavras trocadas
entre dois amantes, enquanto se amam. Mas também como
toda a gramática de possibilidade e de interdições que até os
amantes devem realizar por viverem o seu amor tanto entre os
seus corpos naturais (como as abelhas, como os sabiás, como os
micos leão-dourado), quanto em cenários humanos: culturas.
Por isto, enquanto entre os macacos existem machos e fêmeas,

21
entre nós criamos noivas e maridos, namoradas e amantes,
filhos e sogras, “cumpadres” e padrinhos.
As “crianças-fera” (o nome do termo é horrível, mas foi o
que acabou sendo aceito) encontradas na Índia após haverem
sido criadas por casais de lobos, não possuíam qualquer tipo de
reação reconhecidamente humana em sua conduta. Não é que
não soubessem ler ou escrever. Não sabiam nem mesmo rir e
nem chorar. Não sabiam andar e sentar como um ser humano.
Não sabiam dar ao rosto qualquer ar de uma criança ou de um
adolescente minimamente socializado dentro do meio humano
de mulheres e de homens. Não haviam aprendido a serem
pessoas humanas, embora fossem, como qualquer um de nós,
seres humanos. Nasceram por ventura com toda a bio-psicolo-
gia apta a se tornarem como qualquer criança de uma aldeia
indiana. Mas não aprenderam a se construírem como huma-
nos. Sobreviveram como organismos, mas não tiveram como
realizar neles uma pessoa. Viviam imersas no mundo dos sinais
e dos signos naturais trocados entre seus pais e parentes lobos,
adotivos. Ficaram aquém do símbolo. Sorrir é um “ato natu-
ral”, mas só quando aprendido a ser vivido como um “gesto
cultural”.
É com símbolos que pensamos, mais do que com puros
significados racionais, despidos das imagens que os denunciam
antes de que sejam falados. É só porque uma árvore evoca uma
árvore, que evoca uma cena sob a árvore, que evoca um poema,
que evoca um rosto, que nós podemos pensar. Pensar para criar
uma idéia e pensar para criar uma imagem. Pensar para criar
uma teoria botânica da árvore ou pensar para criar uma canção
de ninar que fale de uma criança debaixo de uma árvore. Pensar
com a linguagem que transforma os símbolos no modo humano
de interagir. “A palavra é a minha quarta dimensão”, escreveu
um dia Clarisse Lispector.
E é através de sentimentos provocados pelo poder da evo-
cação, da imaginação, que todos e cada um de nós participamos
da própria criação. Nada existe na cultura de propriamente

22
humano e que tenha sido feito por nós, que não contenha em si
uma centelha da criação.
Por havermos surgido no Mundo como uma espécie de
seres muito despreparados para viver, aprendemos a saber
de uma maneira extraordinariamente complexa e passível de
variedades. E como o saber em nós não é inato, não vem pronto
do código genético e é somente complementarmente “acabado”
até chegar ao seu limite de realização, sendo, ao contrário, uma
construção sem limites, aprendemos-a-saber, mais do que ape-
nas aprendemos-para-saber. Assim, fomos forçados a aprender
a criar e a prever o novo e torná-lo em algum plano do real,
algo partilhável. O saber é o nosso “instinto” e o criar é um
saber que começa de novo a cada instante.
Dizem os antropólogos que uma cultura “funciona bem”
quando aquilo que é importante nela acaba sendo “esquecido”
da preocupação das pessoas que, não obstante seguem os seus
preceitos e acreditam em seus princípios. Esquecido entre pes-
soas que vivem as suas regras sociais e acreditam nos seus mitos
como o bom motorista que dirige com rara habilidade quando
o faz sem precisar pensar sobre o que está fazendo. Como falar
tão bem uma língua que já não é mais preciso consultar manu-
ais de gramática.
Grande parte dos múltiplos conhecimentos dos vários
campos da vida e do pensar a vida, dos valores de orientação da
conduta social, das crenças de interpretação do sentido da vida,
do mundo e do destino, das gramáticas culturais (como ser,
como conviver, como falar, como escrever, como comer, como
fazer-o-amor, como...) são vividos como fios ou como redes dos
significados de uma cultura. São vividos como “a nossa cul-
tura”, sem serem questionados a todo o momento sobre os seus
“como” e, melhor ainda: sobre os seus “porquês”. E às vezes
exageramos nisto e em boa medida a educação existe para nos
acordar deste sono sem sonhos.
Não devemos esquecer que, seres humanos, somos filhos,
senhores e servos da palavra. Criamos um mundo regido pela

23
palavra, pelo que nos falamos uns aos outros e pelo que lemos
e escrevemos. Somos os seres da natureza que nascem e se
criam do que falam. Criamos quem somos – cada pessoa, cada
pequeno grupo, cada povo, cada sociedade, cada nação, cada
cultura – ao nos dizermos uns aos outros quem somos e quem
são “eles”: nós, os outros. É porque existe a palavra, é porque
existe a linguagem e é porque sempre pode existir algo como a
poesia, que nós, metáforas de nós mesmos, existimos.
Holderlin, um poeta, diz isto: o que existe os poetas fun-
dam. Heidegger, filósofo, vai além: “a palavra é a morada do
Ser, e os poetas são os seus guardiões”. Que estas idéias valha
tanto para uma metafísica do absoluto quanto para a nossa
antropologia pedagógica em busca do sentido da vida humana
através do conhecimento e da aprendizagem.
O que seria de nós se nos sentíssemos obrigados a conhecer
profundamente a etiologia de uma doença e toda a farmacolo-
gia de um medicamento, a cada momento em que compramos,
com a receita médica na farmácia o remédio que iremos tomar
três vezes ao dia durante dois meses? Como seria intolerável
viver a experiência pessoal e partilhada de uma religião se fôs-
semos todos teólogos!
Vivemos dentro de pluri-campos semânticos criados por
pessoas como nós, antes de nós. Campos de símbolos, de pala-
vras, de frases, de estórias e de uma história, recriados nisto e
naquilo por nós mesmos. Campos da vida cultural transfor-
mados pelas pessoas que nos irão suceder. E de uma maneira
inevitável nós nos enredamos literalmente em um belo, sinu-
oso e multi-complexo tecido cultural. Uma tessitura de gestos
e de textos que, através da socialização primária e da sociali-
zação secundária (sem fim), nos transformou, nos transforma
e seguirá nos transformando no mesmo e no sempre mutável,
porque sempre aperfeiçoável, autor cultural e ator social de
nossas próprias vidas.
Em algo que afinal somos “nós”, “eu”, mas cuja inteira
história, cujo futuro, cuja lógica, cuja estrutura e cuja dinâmica

24
nos transcendem. Nunca abarcamos tudo o que está contido
neste campo cultural a começar pelo ser-de-cultura pessoal que
somos cada um de nós. Nunca compreenderemos as razões de
tudo o que ele contém e, no entanto, somos quem somos por-
que vivemos dentro dele. E porque o criamos para sermos o que
somos. Terra metafórica onde nascemos, casa de partilhas onde
vivemos, nave que nos leva para um rumo que humildemente
podemos antever, sem nunca ter certezas de quando vamos che-
gar e de onde iremos aportar ... se é que isto ir acontecer algum
dia.
Mesmo aquilo que consideramos como nossas idéias e
nossos pensamentos, nossas crenças e nossas convicções “pró-
prias”, constitui, na realidade, algumas leituras de algumas
variações de sintaxes e de semânticas sociais já pré-configura-
das e predefinidas. Nascemos dentro de uma longa peça e no
meio de um ato que os que nos antecederam encenam antes de
nós. Mas, uma vez dentro “dele”, tudo o que se faz “ali” deve
ter um pouco de nós também.
É como escrever algo “meu” em um disquete formatado,
onde há um texto inapagável, com o qual no máximo eu posso
entrar em diálogo. Mas isso é tudo, porque existe o diálogo.
Mesmo para as pessoas mais criativas, os mundos culturais
onde vivemos e do qual somos parte e partilha, parecem mais
com caraoquês do que com fitas virgens em um gravador de
boa qualidade. Mas, ainda assim, cada um de nós é como se faz,
e “canta como pode”. Ou melhor: “como aprendeu a cantar”.
Melhor ainda, “como aprende e reaprende, a cada momento, a
cantar”.
O nosso corpo aprende íntima, orgânica e espiritualmente
associado à nossa mente. E ela será outra coisa que não uma
dimensão dele? E ele, dela? O corpo aprende a adaptar-se ao
seu meio-ambiente natural. Aprende a saber pouco a pouco
sobre como deitar e sentar, como andar e parar, como manter-
se em equilíbrio, como reagir ao frio, ao calor, ao perigo e à
fome. Ora, assim também outras esferas de nosso psiquismo

25
aprendem a lidar com a cultura de que são/somos parte. Apren-
dem com sabedoria a adaptar-se, aprendendo a conviver e, mais
do que tudo, aprendem criativamente a equilibrar- se no/com
os seus ambientes culturais. Que não são nunca, não esquecer,
uma “coisa” pronta, acabada e consagrada. Que são, antes os
tecidos nunca acabados de eixos e feixes, de teias e tramas dinâ-
micas e bastante imprevisíveis dos símbolos e dos significados
com que entretecemos a cada instante, ao mesmo tempo, os
mundos de que somos pessoas e as pessoas que somos nestes
mundos.
A cada momento descobrimos algo mais a respeito de
como cada um destes meio-ambientes se enlaça com e se entre-
laça dentro de um todo regedor da vida e da vida humana.
Um campo de relações que apenas quando tomado no seu todo
– inclusive e principalmente enquanto um tecido contínuo e
dinâmico de aprendizagens – constitui neste todo integrador
de todos os sistemas ambientais e em cada um destes meio
-ambientes, aquilo que poderíamos dar, afinal, o nome de um
“ambiente inteiro”.
A educadores importa transformar este aparente “sinal
menos” na relação pessoa-cultura, ou mente individual-campo
de significados, em um “sinal mais”. Porque o que passa é que
na dinâmica inevitável das interações entre as pessoas, entre
as pessoas e os seus símbolos, entre símbolos e símbolos (ou
entre significados e significados), o que está acontecendo todo o
tempo é uma fascinante relação dialógica entre a criação inter-
pessoal da cultura e a criação cultural da pessoa.
Pois tudo o que criamos em tudo o que inventamos, é obra
de uma partilha de idéias e de imaginações realizadas como
ações pessoais e interpessoais. Nós criamos a todo o instante o
mundo em que vivemos. Mas é dentro deste mundo e é dentro
das suas culturas que cada um de nós vive e experimenta a
possibilidade de interagir com sentido. Isto é, de agir intera-
tivamente com outros, entre outros, atribuindo sentido a nós
mesmo e aos outros, e recebendo de outros a atribuição de sen-

26
tido sobre nós mesmos e sobre eles próprios. O mundo em que
vivemos nos cria e recria continuamente.
Tentemos de novo.
Somos nós, seres inteligentes, receptivos ao novo, eterna-
mente abertos a inovar, a tentar outra vez e até mesmo a “zerar”
o feito e fazer o novo e a aprender sem parar, aqueles entes da
vida que criam o mundo dos tecidos sociais e simbólicos que
nos cria, nunca de uma vez para sempre, mas sempre um pouco
mais, e mais adiante.
Aprender é, também, saber como lidar de maneira inte-
ligente e progressivamente autônoma (o oposto de autômata)
com esses vários fios entrelaçados e com esses vários padrões
de cores, de tons e de efeitos de toques metafóricos do tecido
cultural de quem somos. Mas aprender é também saber como
participar dos eventos através dos quais este tecido se re-tece,
essas cores se re-tingem e esse tons se recriam.
Pois o que nos torna humanos é o fato de que entre nós
é impossível aprender e reequilibrar interiormente a vida e a
inteligência através de cada saber adquirido, sem participarmos
de algum modo ativo do fluxo de sentidos e de ações que ree-
quilibram nossos contextos de vida e de pensamento.
Se, de um lado, a cultura “apaga” ou torna opaca à cons-
ciência uma boa gama do que aprendemos e seguirmos, ao
vivê-la, de outro lado podemos imaginar que na história social
da cultura nada se apaga de tudo o que foi pensado. De tudo o
que, pensado, viveu o seu momento de diálogo entre duas vidas,
entre pessoas de uma comunidade de consciência, como uma
sala-de-aulas.
O que alguém pensou um dia e colocou em diálogo pode
até mesmo ser esquecido, mas nunca mais se apaga. De todo o
bom pensamento – aquele que cria algo ao ser criado como um
gesto de aprender – sempre algo subsiste, mesmo quando nada
dele tenha sido escrito ou registrado de alguma outra maneira.
Porque todo o bom pensamento salta do seu breve momento
para uma duração universal. Não seria uma metáfora fantás-

27
tica imaginar que um pensamento carregado de sentido salta de
seu aqui-e-agora, de seu lugar de origem, de seu momento de
gesto-nascido, para a imensidão dos espaços culturais de par-
tilha de sentido onde haverão de estar os pensamentos que o
acolhem.
E aqui, ao falar outra vez a palavra “criação”, temo que
seja para contradizer, pelo menos em parte, o que escrevi até
esta página. Eu me explico. De algum modo o que eu penso a
cada instante, o que eu acabo de pensar, o que estive pensando
hoje, quase nada possui de criação absolutamente original. Não
é algo da minha exclusiva autoria e, portanto, sequer pode ser
minha posse. Eu bem sei que penso os meus pensamentos, mas
com que cuidados devo dizer: “este pensamento é meu”. Pois
cada um dos pensamentos “meus”, é uma parte do fluxo cul-
tural das teias e das tessituras de sentidos e de sentimentos de
eu que faço parte. Em algum lugar Lacan disse um dia: “sou
onde não me penso”. Terá sido por isto? Creio que não, mas
faz algum sentido.
Não quero exagerar no dizer que isto que estou pensando
para escrever, aqui, neste agora irrepetível, é um breve instante
em que idéias e pensamentos “ideadas” e “pensados” por outras
pessoas passam por mim. E chegam a mim, atingem um lugar
de/em minha consciência e, querendo-o ou não, me convocam a
entrar em um diálogo sem começo e sem final conhecidos, iden-
tificáveis, quando, por um momento entre tantos, me é dada a
palavra.
Dentro de mundos de cultura, o que se cria e o que cria
algo à sua volta faz parte e dinamicamente constitui uma comu-
nidade de imaginários de que cada um de nós, em que cada um
de nós é mais um companheiro de destino do que um hospe-
deiro. Mais um convidado do que um proprietário e mais uma
reticência do que um ponto final.

28
A NATUREZA A CULTURA E A EDUCAÇÃO1

Tanto para Marx quanto para Ortega, por-


tanto, o que nós somos ou o que podemos
ser não vem pronto. Temos, perpetua e
infinitamente, que estar nos fazendo a nós
mesmos. Isso é, o que a vida é, o que a his-
tória é, e o que significa produzir.
Tin Ingold
Estar Vivo – ensaios sobre movimento,
conhecimento e descrição

Na Bósnia ou em Belfast, cultura não é ape-


nas o que se coloca no toca-fitas; é aquilo
por que se mata.
Terry Eagleton
A ideia de cultura

Prólogo – um francês lembra o que um argentino fala sobre


chineses

C
omecemos este escrito inevitavelmente longo, com um
francês e um argentino. Mas eles falam de chineses. Em
uma passagem logo ao começo de As palavras e as coisas,
Michel Foucault confessa a seus leitores a estranha origem da
ideia de escrever o seu livro. E, vindo ela, de quem veio, alguns
misteriosos chineses do passado e um não menos misterioso

1 Este escrito é uma releitura de textos meus sobre a cultura, tal como
estudada sobretudo por antropólogos, através de uma aproximação com
o saber e a educação. Ele foi elaborado em abril de 2019 para o Curso de
Maestria en Educación Popular, da Universidad Nacional de Lujan, na
Argentina.

29
argentino do presente, reconheçamos que um dos mais impor-
tantes livros sobre o pensamento humano deveria ter mesmo a
sua origem entre o surrealismo e o inimaginável. Vejamos.
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do
riso que, com sua leitura, perturba todas as
familiaridades do pensamento – do nosso:
daquele que nossa idade e nossa geografia
-, abalando todas as superfícies ordenadas
e todos os planos que tornam sensata para
nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e
inquietando, por muito tempo, nossa prá-
tica milenar do Mesmo e do Outro. Esse
texto cita “uma certa enciclopédia chinesa”
onde será escrito que “os animais se divi-
dem em: a) os pertencentes ao imperador,
b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em
liberdade, h) incluídos na presente classi-
ficação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um pincel
muito fino de pelo de camelo, l) et cetera,
m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscas”2

Lembrei Michel Foucault lembrando Jorge Luís Borges,


que lembrava uma aparentemente alucinada enciclopédia
da China Antiga, porque vou falar sobre cultura. E acredito
que houve no passado próximo e segue havendo no presente
momentos em que quase a nossa compreensão sobre a cultura
poderia ser escrita de maneira não muito diferente da encan-

2 Michel Foucault, As Palavras e as Coisas. Tenho comigo a nova edição


pela Martins Fontes, de 1999. Está na página IX, no primeiro parágrafo.
Um exagerado acento argentino neste estudo tem a sua razão no fato
de que ele foi originalmente escrito para um minicurso na Universidad
Nacional de Lujan.

30
tadora e curiosa compreensão enciclopédica chinesa sobre os
animais.

Os humanos, seres da natureza, da cultura

Este é um escrito de antropologia dedicado a pessoas da


educação. Assim sendo, ele deverá começar completando algo
extremamente raro ou inexistente em artigos e livros de antro-
pólogas. Pois ao procurar desvendar aqui como e porque nos
tonamos “animais culturais”, logo a seguir estarei associando o
nosso poder de transformar a natureza de que somos parte em
cultura, assim procedemos porque ao lado de sermos “seres da
cultura”, somos “seres aprendentes”. Sim. Emergindo de seres
da natureza que nos antecederam ao longo de alguns milhões
de anos, nós nos tornamos seres humanos porque aprendemos
a aprender. Somos em geral definidos como “seres sociais”,
“seres racionais”, “seres políticos” (no primeiro sentido grego
da palavra). Somos “tudo isto” e algo mais. Mas somos sobre-
tudo seres do aprendizado.
Alguns amigos meus, etnólogos (especialistas no estudo
de sociedades culturas indígenas) costumam dizer e repetir:
“felizes os índios que não precisam ir à escola”. Na verdade,
agora, em vários países da América Latina e de outros cantos
do mundo, eles vão a escolas de educação indígena (mas levada
a eles por brancos). E algumas etnias e comunidades tribais
estão tratando de dar um passo além, criando os seus próprios
sistemas, inclusive escolares, de educação3. Não duvido que

3 Na mesma época em que a minha universidade, a UNICAMP incorporou


a diferentes cursos de graduação 76 jovens indígenas vindos sobretudo
da Amazônia, povos indígenas do Cauca, na Colômbia, criam uma “edu-
cación própria”. Uma modalidade de educação de (e não para) indígenas
que submete às suas culturas a educação proposta e trazida pelos bran-
cos. Ver La Educación Propia – vivencias y reflexiones – sistematización
del proceso de educación propia en el territorio indígena del Departa-
mento de Caldas. Dados completos na bibliografia ao final.

31
biólogos digam, com mais razões: “felizes algumas espécies
de animais que sequer precisam aprender”. Alguns seres vivos
no Planeta Terra não necessitam qualquer aprendizado após o
seu surgimento na natureza. Nascem com tudo o que preciso
saber inscrito em seus DNAs, como as amebas e as bactérias.
Outros seres completam o “saber inato” com o que aprendem
em relação direta com o seu meio natural, como as tartarugas
e os peixes. Outros necessitam da presença “dos que já sabem”
para completar o seu aprendizado para a vida. Os pássaros, os
cães e os gatos seriam bons exemplos. Outros, bem mais com-
plexos, além do “par de pais” (no caso de cães e gatos, somente
a mãe) completam o seu aprendizado “social” junto ao cole-
tivo de seu grupo animal, como os lobos e os elefantes e, mais
ainda, os macacos, sobretudo os “antropomorfos” que além de
serem os mais parecidos conosco, são os mais complexamente
sociais: orangotangos, gorilas, gibões e, principalmente chim-
panzés.
Animais – inclusive os da Enciclopédia Chinesa - apren-
dem com a natureza ou com outros de sua espécie. Nós, os
humanos também. Nós que biologicamente somos uma espécie
entre tantas de animal vertebrado, mamífero e primata. Ora,
enquanto os animais aprendem com outros seres durante um
breve tempo, nós, os humanos, vivemos aprendendo. E nem
precisamos estar “fazendo pós-graduação” para que assim seja.
E quando a UNESCO lança uma campanha universal em nome
de uma “educação ao longo de toda a vida”, ela está apenas
tornando mais motivado e oficial o que entre-nós, nós, mulhe-
res e homens da vida do dia-a-dia, mutuamente já praticamos.
Há também uma outra diferença notável. Os chimpanzés
bonobos (os mais próximos a nós) aprendem dentro de um con-
texto de sinais, como “ver” um outro quebrando um coco com
uma pedra e “imitar” o que ele fez, como um comportamento
aprendido. Ou, no limite compartem a vida em um contexto
de signos, como aprender a reconhecer e emitir cerca de vinte
sinais sonoros com que algumas espécies de símios comunicam

32
uma série de mensagens entre eles4. Nós também nos comu-
nicamos, e mutuamente nos ensinamos e aprendemos através
de sinais (como colocar um dedo indicador diante da própria
boca para sugerir “silêncio” a uma criança), e de signos (como
quando a mesma criança vê um desenho de uma baleia em
um livro e “sabe” que “aquilo” representa uma baleia de ver-
dade). No entanto, essencialmente, nós nos comunicamos e nos
ensinamos-e-aprendemos através de símbolos, como a palavra
“símbolo” que você acabou de ler, e que entre as mais de cinco
mil línguas faladas e escritas em todo o Planeta Terra, deve ser
grafada e pronunciada através de milhares de representações
semelhantes ou muito diferentes.
Somos seres alçados do sinal e do signo ao símbolo. Somos
seres de uma mente que sabe-e-pensa, como a de um gorila. Mas
uma mente que sabe que sabe, e que pensa o que pensa porque
se-sabe-pensando-e-sabendo. Somos os seres que passamos da
consciência reflexa (saber) para consciência reflexiva (saber-se
sabendo). Por isso necessitamos anos e anos de treinamento
zen budista para aprendermos a fixar a mente em um abso-
luto presente. Algo que cachorros e macacos fazem sem precisar
de guias espirituais. Porque somos os seres que contemos em
nós sentimentos e pensamentos que viajam entre o passado, o
presente e o futuro. Por isso somos seres cuja memória não é
também “reflexa”, como em um gato, mas “reflexiva”. Por isso
um gato pode sentir “falta de”; enquanto em nós a falta pode
ser transformar em “saudade”, e também em lágrimas, em poe-
sia ou em letra de tango. Por isso também, sabemos que um dia
iremos morrer.
Enfim, somos seres da natureza, como bactérias e oran-
gotangos. Mas somos humanamente naturais, como um dia

4 Algumas pessoas amigas, criadoras de cães e singularmente fascinadas


pelo seu animal de estimação, garantem que “o meu cachorro vai muito
além disto”. Mas convenhamos que esta observação emotiva e amorosa-
mente apaixonada é pura fantasia.

33
lembrou Carlos Marx. Quando nossos ancestrais viviam a
esmo, desde quando desceram das árvores e se tornaram “pri-
matas bípedes”, abelhas e passarinhos já construíam ninhos
que eram e são prodígios de arquitetura. Milhões de anos
depois elas e eles seguem construindo as mesmas colmeias e os
mesmos ninhos. E nós habitamos cavernas, e depois nos espa-
lhamos pelo mundo e aprendemos a construir casas de gelo,
de peles, de pedras, de barro e de madeira. Agora construímos
estações espaciais e já há quem planeje habitações para quando
começarmos a “colonizar Marte”. Porque enquanto um castor
constrói diques movido por impulsos de sua biologia, nos dese-
nhamos antes na mente e em uma folha de papel a casa que
mais à frente levantaremos do chão.
Somos seres da natureza de que somos parte. Mas somos
seres da cultura que criamos para podermos viver na natureza.
Na aurora da humanidade, uma pedra achada no fundo de um
riacho era uma “coisa da natureza”. A mesma pedra laborio-
samente trabalhada para converter-se em um objeto de corte,
tornava-se um “objeto da cultura”.
Nos dias de agora, uma planta nativa de erva mate na flo-
resta é um ser vivo da natureza. A mesma planta cultivada em
um hectare de terra na Argentina é um ser da natureza cul-
turalmente trabalhada. Colhida, tratada, queimada e moída,
ela deixa de ser uma planta em seu primitivo estado natural, e
passa compor mínimas frações dela, culturalmente transforma-
das. Embalada, vendida e comprada em uma loja de Lujan, ela
se transforma em um objeto de transações econômicas, vividas
dentro de um contexto de cultura. Dentro de uma cuia (tam-
bém em geral algo da natureza artesanalmente trabalhada);
misturada à água fervente, sugada através de uma bomba de
prata (ou outro metal mais barato), e incorporada ao corpo
de uma mulher argentina, aquilo que foram folhas verdes de
uma planta, entre a natureza e a cultura torna-se um alimento;
um líquido aquecedor de um corpo humano, e também um
“objeto de puro prazer”. Passada de mão-em-mão em uma

34
roda de pessoas que “mateam mientras charlan”, ou “charlan
mientras mateam”, dependendo do contexto, a distante árvore
de erva mate torna-se culturalmente um ingrediente oportuno,
necessário ou mesmo indispensável em uma roda “platines”
de diálogos. Tanto é assim que uma quantidade apreciável de
argentinas, de uruguaios e de brasileiros do Sul, fervoras “mate-
adoras”, dificilmente conseguirão “dialogar sin matear”.
E um diálogo se faz com gestos humanos. Passar de mão em
mão a cuia com água quente e erva mate é um ato físico, orgâ-
nico. Entre duas pessoas que conversam enquanto “matean”, o
ato transforma-se em um gesto.
Tanto que ao buscar explicar a quem o leia a diferença
entre uma coisa e a outra, Clifford Geertz, um antropólogo nor-
te-americano escreve isto.
Vamos considerar... dois garotos piscando
rapidamente o olho direito. Num deles,
esse é um tique involuntário: no outro, é
uma piscadela conspiratória a um amigo.
Como movimentos, os dois são idênticos:
observando os dois sozinhos, ninguém
poderia dizer qual delas seria um tique ner-
voso ou uma piscadela ou, na verdade, se
ambas eram piscadelas ou tiques nervosos.
No entanto, embora não seja retratável, a
diferença entre um tique nervoso e uma
piscadela é grande, como bem sabe aquele
que teve a infelicidade de ver o primeiro
tomado pela segunda. O piscador está se
comunicando e, de fato, comunicando de
uma forma precisa e especial: 1. delibe-
radamente, 2. a alguém em particular, 3.
transmitindo uma mensagem particular,
4. De acordo com um código socialmente
estabelecido e, 5. Sem o conhecimento dos
demais companheiros. Conforme salienta
Ryle, o piscador executou duas ações –
contrair a pálpebra e piscar – enquanto o

35
que tem um tique nervoso apenas execu-
tou uma – contraiu a pálpebra. Contrair as
pálpebras de propósito, quando existe um
código público no qual agir assim significa
um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que
há a respeito: uma partícula de comporta-
mento, um sinal de cultura e – voilà – um
gesto5.

Somos os seres leitores e criadores de sinais, como o ver


fumaça e imaginar que há fogo, ou como o espirrar. Mas somos
também seres que saltaram do ato ao gesto, ao saltarmos do
sinal ao signo e dele ao símbolo. E “símbolo” será a palavra-
chave (ou mágica) em todo este escrito sobre a cultura. E entre
eles, o símbolo mais original, usual e relevante é a palavra. E a
palavra habita a linguagem. E nós, os humanos somos “seres da
linguagem” e, através dela, somos seres da natureza criadores
da cultura.

Cultura… o que ela parece ser?

Quero trazer aqui, com pequenas atualizações e revisões,


uma compreensão do que, em um sentido muito simples e pri-
mário, antropólogos acreditam ser “a cultura”. Logo se verá
que estarei repetindo em uma outra ordem, palavras e ideias já
escritas acima.
Cultura é tudo o que nós, seres humanos, acrescentamos ao
nosso mundo a partir dos diferentes círculos de relacionamentos
entre nós, indivíduos naturalmente biológicos, transformados
em pessoas, isto é, em sujeitos e atores das comunidades que
culturalmente criamos. Somos seres humanos porque somos
habitantes de mundos de cultura.

5 Está na página 16, do livro A interpretação das Culturas, da edição de


1978, da Zahar, no Rio de Janeiro. Existe uma edição melhor e mais
atual, da Editora L&MP, Porto Alegre.

36
Somos seres criadores e transformadores de mundos cons-
truídos através de um tipo peculiar de atividades individuais,
e sobretudo coletivas. Interagimos através de ações por meio
das quais nós nos apropriamos de um “mundo dado”, como a
natureza de que somos parte, e criamos um ‘mundo construído
como cultura.
E, ao agirmos assim, nós nos transformamos também. E
esta transformação de nós mesmos não se passa apenas em
nossa natural biologia, através de mudanças significativas no
corpo dos seres que evolutivamente nos antecederam, como
o andar bípede (razão de mais da metade dos seres humanos
terem “problemas de coluna”); as modificações das mãos,
sobretudo com a progressiva oposição do dedo polegar aos
outros dedos da mão; o desenvolvimento de uma fantástica
visão; as modificações do palato, condição para uma fala arti-
culada; o crescimento e a extraordinária complexificação do
cérebro, etc.
Em uma outra original direção, ao contrário do que acon-
tece com os animais, em um grupo humano os seres original e
naturalmente biológicos são culturalmente transformados, ao
serem transplantados do reino da natureza para um domínio
de cultura. Entre nós, o que seriam as “fêmeas” em um bando
de gorilas, são “mulheres”. E mulheres são esposas e mães; são
irmãs, primas tias, sobrinhas, avós e madrinhas. São também
professoras. As relações que as mulheres e os homens de um
grupo estabelecem e partilham são regidas não apenas pelo que
existe em nós de biológico ou de genético, mas pelo que gera-
mos culturalmente em nós e entre-nós.
Vivemos no interior de relações naturais, tornadas cultu-
ralmente sociais, ao serem criadas e regidas pela maneira como
nós transformamos “coisas” e “leis naturais” inscritas em nos-
sos corpos, em “valores” e em “regras culturais”. Em sistemas
simbólicos através dos quais a mulher é transformada em mãe e
a “mãe” é sentida, pensada e vivida através de tudo aquilo que
significa “ser mãe em minha cultura”.

37
Assim, ao passarmos do primado das leis biológicas da
natureza para as gramáticas sociais que estabelecem e regem
posições e relações entre categorias de pessoas, nós criamos
padrões de cultura, para podermos viver e reproduzir a espécie
de que somos, convertendo-nos em celibatários, em casais, em
famílias nucleares, em redes de parentesco, em comunidades,
em sociedades, em um povo, uma nação e, no seu limite mais
belo extremo, em uma humanidade.
E ao criarmos o mundo de cultura que habitamos, gera-
mos interativamente práticas do fazer (como preparar um
“chimarrão”); éticas do agir (como coletivamente tomar o mate
em um momento de encontro entre pessoas); lógicas do pensar
(quando buscamos os fundamentos filosóficos, sociológicos,
éticos, etc. que fundamentam a maneira como culturalmente
se “matea” em uma roda de amigos. E geramos ainda comple-
xos universos simbólicos como sistemas de sentido que em uma
instância mais alta e abrangente” estabeleceria, como em um
mito guarani, a origem do mate é desvelada como uma dádiva
divina. Algo que dentro de outros “universos simbólicos” entre
o mito e a religião, alguns povoadores não-indígenas do Sul da
América Latina devem acreditar também.
Assim, praticamente tudo o que nós criamos é, de um
modo ou de outro, cultura. Tudo aquilo que nós incorporamos
ao mundo através de nosso complexo e diferenciado trabalho
motivado, reflexivo e dotado de significados, constitui o con-
junto ordenado de nossos mundos de cultura.
Mas se uma cultura é povoada de atos e de gestos que
vão do plantar erva mate a tomá-lo, ritual e celebrativamente,
após as suas folhas haverem em diferentes momentos serem
processadas, resulta evidente que isto a que damos o nome
de “cultura” (uma palavra que nos vem da agricultura, não
esquecer) possui diferentes modos de realização e de signifi-
cação.
Assim, entre as práticas do fazer e as lógicas do pensar,
escritas linhas acima, imaginemos em um primeiro momento

38
que uma cultura é um múltiplo universo de “coisas”, de “obje-
tos”, de “técnicas de relacionamentos com a natureza” (a
pesca, a agricultura e o amor), de processos sociais de conhe-
cimento (da culinária à filosofia), de sistemas de valores e as
suas gramáticas e regras de posições e de relações sociais que
diferenciadamente estabelecem: quem é quem? Quem é quem
para quem? Quem pode fazer o que com quem?
Estejamos atentas a que uma compreensão do que seja
acultura não deve ser empobrecida em duas direções. Pri-
meira: a cultura não se esgota somente na esfera dos produtos
materiais do trabalho humano, como os da arte erudita ou do
artesanato popular. Ela não é um mero “produto” residual de
uma modalidade qualquer de trabalho realizado por alguém.
Ou melhor, ela é “isto” e algo mais. Ela está na dinâmica de sua
própria cotidiana realização. Ela é mais um “processo de”, do
que um “produto para”.
Assim, a cultura habita os múltiplos e diferenciados proce-
dimentos de relacionamentos entre nós e a natureza entre nós e
nós-mesmos (eu comigo e eu com os meus outros); e entre nós
e os nossos símbolos. Como o trabalho que estou realizando
agora para escrever isto, que em algum momento espero que
vocês estejam se dando ao trabalho de ler.
Assim, podemos pensar a complexidade da cultura como
complexos de sistemas de atos e de gestos por meio do qual as
mulheres e os homens criam e recriam continuamente o seu
próprio mundo de vida e de destino. E realizam “isto” através
do que conectivamente elas e eles fazem, criam, comunicam,
dialogam, conflitam, ensinam, refazem, consolidam, modifi-
cam, transformam, etc.
Segundo, a cultura não é apenas a “face imaterial da vida
social”. Não se restringindo a ser a soma dos produtos mate-
riais da ação humana, ela também não se esgota no repertório
de filosofias e mitos, contos e cantos, de poesia e prece de uma
tribo da Amazônia ou de uma comunidade religiosa de Bue-
nos Aires. Ela não se reduz ao conjunto de seus mitos e, como

39
síntese, de sua cosmovisão vivida como uma forma peculiar e
ancestral de religião.
Ela é tudo isto, sendo, antes, a realidade concreta da pró-
pria lógica tão aparentemente natural e tão complexa de uma
vida social. Em uma suprema dimensão, entre o pensamento
filosófico e a crença religiosa, uma cultura busca tornar com-
preensível e partilhável respostas a perguntas como: “Quem
somos nós?”; “De onde viemos?” Quem o que nos fez?”; “Qual
o nosso destino pessoal e coletivo”? Etc., Mas em uma dimensão
mais socialmente “geográfica”, cada cultura pode ser pensada
também como um mapa; como um “guia de vida”, como um
conjunto ordenado de sinais e símbolos de orientação concreta
para a vida os habitantes de uma comunidade.
Quando Edward Taylor propôs a sua definição de cultura,
em 1871, as ideias sugeridas aqui estavam já em embrião. De
então até hoje os antropólogos se deram ao trabalho de inven-
tar centenas de outras definições. Até chegarmos ao ponto em
que alguns praticantes da antropologia perguntam: “a cultura
existe ou é uma invenção superável e desnecessária?” Fiquemos
por agora com Taylor:
(Cultura) tomada em seu amplo sentido
etnográfico é este todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade
ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade.6

Alguns anos mais tarde, Alfred Kroeber, um dos primei-


ros antropólogos modernos, procurou estabelecer um consenso
sobre o que a cultura é, e como ela “age”. Faço aqui uma breve
súmula de suas ideias.

6 Edward Tylor, apud, Roque de Barros Laraia, Cultura, um conceito


antropológico, Zahar, Rio de Janeiro, 1986, p. 25.

40
1ª. A cultura faz o homem transcender da
ordem da natureza para uma lógica não
determinada pela herança genética. É ela
que molda e determina o comportamento
humano e justifica para seus seres as suas
ações e realizações.7
2ª. A cultura é ordenada. Ela é uma cons-
trução sistêmica de padrões fundados em
conhecimentos e valores. O homem age e
significa a sua ação e a sua vida no mundo
de acordo com padrões culturais. Nele os
instintos e o jogo dos poderes da natureza
foram anulados ou relativizados com o
passar do tempo, pois o dado simbólico da
cultura se inscreve tanto na objetividade
da vida social quanto no próprio cérebro
humano.8
3ª. a cultura é um meio exclusivamente
humano de adaptação aos mais diferentes
ambientes ecológicos. Ao invés de modi-
ficar o seu aparato biológico “dado” por
herança genética, como fazem todos os ani-
mais, o homem modifica culturalmente o
seu meio ambiente.
4ª. Em decorrência de sua capacidade de
intencionar o seu meio e transformá-lo, de

7 Ampliei um pouco as idéias essenciais de Kroeber a respeito da cultura.


Deixei de lado alguns itens que não interessam aqui. Em Laraia, op. cit.,
páginas 49 e 50.
8 Interessante observar como em Clifford Geertz, seguindo outros paleon-
tólogos e antropólogos, o dado da emergência humana à cultura modifica
a própria trajetória de evolução biológica do cérebro humano. Quando o
homem ascende ao símbolo, é nos seus termos que as próprias transfor-
mações da lógica física do cérebro se modificam. Esta é uma primeira vez
em que algo extracorpóreo, mas também não-natural (como as variações
ecológicas no caso dos animais), atua decididamente na evolução doa
própria matéria da vida. Ver o capítulo 3: O crescimento da cultura e a
evolução da mente”, em A interpretação das culturas.

41
acordo com suas necessidades de sobre-
vivência, mas também de acordo com a
maneira múltipla e diferenciada como cada
grupo social humano se relaciona simbo-
licamente com a natureza, o homem foi o
único ser vivo e relacional capaz de romper
com as barreiras das diferenças ambientais,
tornando toda a Terra o seu habitat.
5ª. Criando o mundo de cultura como o seu
modo de viver a sua relação com o mundo
de natureza, o homem depende cada vez
mais do seu conhecimento, da acumulação
de saber e do aprendizado. Depende do que
ele aprende, testa e sabe, mais do que de
padrões e atitudes geneticamente determi-
nadas, para agir sobre o mundo e sobre ele
próprio. Eis um ponto essencial para quem
como nós, participa da cultura através da
educação!
6ª. Ao contrário do que acontece com os
padrões genéticos, os da cultura são acu-
mulativos. A abelha repete infinitamente
o mesmo padrão de construção da col-
meia, de acordo com sua espécie, mas os
homens criam inúmeras formas diferentes
de habitações, de acordo com as suas cul-
turas e mesmo no interior de uma delas.
Mais ainda, ao longo da história de cada
cultura, de cada povo, os seres humanos
podem fazer variar o padrão de suas casas
e de sua própria vida. Ele é resultante de
toda a experiência histórica de gerações
anteriores.9

9 Esta ideia é quase o reverso da medalha da anterior. Enquanto em cada


animal o saber da espécie se reinicia em um ponto zero, já que como
todos os antecedentes o seu comportamento repete em tudo uma conduta
anterior e se esgota na biologia da espécie, no homem cada ser nasce em
um momento de cultura que comparte e em que se inicia, não a partir

42
Devo advertir a quem não deseje mais do que uma orde-
nada e quase “escolar” compreensão do que seja a cultura, que
fique por aqui. Digo isto porque desta linha em diante deverei
estar desmontando e remontando o que lemos até esta linha,
para possivelmente chegarmos ao mesmo lugar, apenas via-
jando por caminhos bastante mais sinuosos.

A cultura é “isto” e talvez “nada disto” ao mesmo tempo

Até aqui procurei escrever consensos. Aquilo que encon-


tramos em manuais das ciências sociais para as quais ela é um
conceito relevante, ou mesmo central. No entanto precisare-
mos agora sair do terreno das “regularidades a respeito de”,
em direção às “diversidades sobre o que parecia uniforme”.
Lembro que o que vemos acontecer em nossos dias a respeito
da “cultura”, entre antropólogos, acontece também a respeito
da “vida” entre biólogos; a respeito da “educação” entre peda-
gogas; a respeito da “pessoa” entre psicólogos; a respeito do
“universo” entre cosmólogos; a respeito de deus entre teólogos;
e a respeito de tudo, entre poetas e filósofos.
Pois, por toda a parte, ali onde parece haver consenso
sobre termos e temas essenciais, na realidade não existe con-
senso algum. E todas as ciências se alimentam bem mais de
divergências entre teorias efêmeras, do que de convergências ao
redor de ideias tidas como consensuais e perenes. Seria a mate-
mática uma exceção?
Assim, a um olhar mais apressado pode parecer que “a
cultura é isto”, e ela “funciona socialmente assim”. Mas nem
ela é exata e unificadamente “isto” e nem, entre as diferentes
compreensões de como ela “age”, a cultura “funciona assim”.
Na verdade, estamos, mais hoje do que ontem, em um territó-

da matriz de dados genéticos impressos no corpo e no psiquismo, mas


a partir da aquisição simbólica de um saber transposto para a cultura e
transformado através dela.

43
rio mais amplo, diverso e polêmico do que ele parece ser. Entre
os que negam a realidade social e simbólica da “ideia de cul-
tura”, e os que se apegam com ferrenha fidelidade a ela como
um conceito ainda essencial não apenas entre antropólogas,
compartimos várias compreensões sobre o que seja a cultura,
que diferenciadamente criamos e em cujo interior diversamente
vivemos.
Algumas compreensões são de algum modo convergen-
tes; outras, diferentes e, outras ainda, divergentes. Vejamos
um primeiro par de diferenças sobre as razões fundadoras da
experiência da cultura entre nós. Ou seja, entre os seres que
cientificamente se auto-intitularam “Humanos Modernos”, ou
“Homo Sapiens Sapiens” (homem duplamente sábio). Os mes-
mos que Desmond Morris, em seu conhecido e controvertido
livro, preferiu chamar de: “O Macaco Nu”.
Em seu livro: Antropologia ecológica, Walter Neves
lembra que desde pelo menos a década dos anos sessenta a
antropologia configurou-se entre dois eixos fundamentais de
compreensão do que seja a cultura. Um deles dedicou-se ao
estudo dos elementos materiais necessários à solução de pro-
blemas de sobrevivência dos grupos humanos, ao lado de suas
repercussões diretas sobre a organização destes próprios grupos
como sociedades humanas. O outro concentrou-se em pesqui-
sas dirigidas à decifração das “dimensões espirituais” da mente
humana, a partir de sua específica capacidade de agir através de
processos de simbolização e de significação de todas as coisas10.
Walter Neves toma emprestada uma das classificações
lembradas em um estudo célebre de Roger Keesing11. De um

10 Walter Neves, Antropologia Ecológica, da coleção “questões da nossa


época”, da Editora Cortez de São Paulo. Está na página 13 da 1ª edição,
de 1996.
11 O trabalho original de Keesing tomou o nome de theories of culture, e
foi publicado no vol. 3 do Annual Rewiew of Anthropology, Palo Alto,
California, de 1974. Uma síntese muito simples, mas completa e bem rea-

44
lado de um grande divisor de águas, estão as teorias adaptati-
vas da cultura, as mesmas que Walter Neves irá em conjunto
chamar de “teorias da barriga”: “primeiro comer, depois, filo-
sofar”. Essas teorias, em geral associadas a compreensões de
tipo materialista e/ou ecologista da pessoa humana e da socie-
dade, tendem a associar o aparato cultural a sistemas e padrões
de comportamento destinados a adaptar comunidades huma-
nas às condições de seus ambientes naturais, garantindo assim
a sobrevivência de seus indivíduos e, no correr do tempo, a do
próprio grupo social.
Os seguidores desta vertente compreendem a cultura como
conjuntos ou sistemas criados para responderem a questões
impostas ao homem como necessidades “naturalmente huma-
nas” de reprodução da vida física, ou de ordenação da vida
social. Cultura compreenderia então, desde o ato aparente-
mente simples através do qual um ancestral nosso trabalhava
lascas de pedra para transformá-las em uma arma, até tudo o
que vai do símbolo, à linguagem, á sensibilidade, à organização
social do parentesco, à ciência, às artes, à educação, ao ritual.
E também abrange as ideologias, os diferentes sistemas de cos-
movisão e outros imaginários existentes tanto entre os “índios
isolados” da Amazônia quanto moradores de um bairro de
“classe média” na cidade de Buenos Aires12

lizada do artigo de Keesing está no capítulo 6 do livro de Roque Laraia,


Cultura, um conceito antropológico.
12 Segundo estudos e investigações recentes, devem existir em todo o
mundo pouco mais de 100 “povos isolados”, isto é, sem contato sig-
nificativo alguém com outras comunidades humanas. Um deles existirá
ainda no Caco Paraguaio e pouco mais de 90 na Amazônia, sobretudo
brasileira. Povos que possuiriam desde as suas tecnologias de manejo
do ambiente, até seus sistemas de compreensão da realidade humana ou
mesmo cósmica. Povos que poderão haver criado complexas linguagens,
e dos quais nada conhecemos. Isto em pleno século XXI. A “política indi-
genista do Brasil” respeita o desejo de isolamento deles, demarca os seus
supostos territórios e os deixa em seu isolamento assumido. Mas algumas

45
Como uma resposta primária a questões materiais de
sobrevivência no mundo, e como uma resposta a necessidades
secundárias, como a construção de coletivos de vida humana, a
cultura importará essencialmente pelo que ela “faz”. Ou, pelo que
realizam os homens através dos e como uma cultura. Ela responde
a imperativos biopsicológicos inerentes à natureza humana, como
estratégias de produção de bens e de circulação deles e do poder
entre os homens na sociedade, e entre sociedades.
Assim sendo, para as correntes da razão prática, a cul-
tura pode ser definida como um diferenciado complexo de
instrumentos do fazer e do poder. Isto é, como estratégias
instrumentais, social e políticas de controle material do meio
ambiente, e de ordenação e de legitimação de uma ordem social
vigente.
Assim, a razão de ser da cultura e de tudo o que através
dela circula entre os homens não está nela mesma e, menos
ainda, em algum tipo de princípio fundante propriamente sim-
bólico. Ela está, antes, nos processos, nas lógicas simbólicas e
nas relações interpessoais cujo propósito de alguma maneira
sempre tem a ver com alguma forma de exercício do fazer e do
poder. Inclusive o poder que existe na apropriação do símbolo
e do significado como um meio de inculcação de valores, de
princípios, de sentimentos de identidade, de crenças e de orien-
tações de conduta. Dentro de algumas variantes desta ótica,
tanto a religião quanto a educação podem ser reconhecidas
como sistemas de orientação e ordenação de pessoas em nome
de uma forma de organização de um impositivo e pragmático
“modo de vida” realizado como uma sociedade humana.
Em uma outra direção procuremos compreender os fun-
damentos das teorias da razão simbólica. Aquelas que alguns

tribos já contatadas com os brancos têm apresentado queixas a respeito


de possíveis atos de pilhagens dos “isolados”, que se acercam os outros
provavelmente devido a invasões de garimpeiros, madeireiros e outros
predadores da natureza, em seus territórios originais de vida.

46
antropólogos chamariam de teorias idealistas da cultura, e que
Walter Neves chamará de “teorias do pensamento”. O seu lema
poderia ser: “comemos símbolos através de alimentos, e os
comemos porque os pensamos”. Entre as suas diferentes con-
cepções uma e outra convergem no suposto de que a cultura
articula sistemas de símbolos e significados através dos quais
pessoas e grupos humanos interagem, comunicam-se e, assim,
atribuem sentidos e significados ao que sentem, pensam e
fazem. Assim, entre aos seus criadores e seguidores, a cultura
vale mais pelo que diz entre seres humanos, do que pelo que
faz através deles e sobre eles. Assim, ela é menos um produto
de relações desiguais regidas pelo conflito, e mais uma coletiva
criação solidária regida por necessidades sociais de consenso.
Menos do que uma questão instrumental de ações dirigidas ao
fazer e ao poder, a sua lógica deve ser buscada em seu valor
como um sistema de saberes e de sentidos. Como uma estra-
tégia simbólica de comunicação, por meio da qual os homens
que a produzem e a compartem estabelecem entre eles acordos
sobre os significados dos seus signos e símbolos e sobre o sen-
tido da vida e do mundo. 13
Tal como veremos mais adiante com Clifford Geertz, a
cultura vale mais pelo que “diz”, através de gestos vividos e
pensados como símbolos e significados, do que através do que
ela “faz”, por meio de atos práticos destinados à manipulação
produtiva da natureza e à ordenação pragmática da vida social.
O mesmo que dizer que a cultura pode ser compreendida bem
mais pelo que ela fala aos e entre os seus integrantes, do que
pelo que eles fazem através dela.14
De modo geral, e sem muito rigor, podemos sugerir que às
teorias da razão prática e de uma sociologia do conflito interessa

13 Isto está em: A força do sentido, a introdução de Sérgio Micelli a um


dedicado livro Pierre Bourdieu, na página VIII.
14 No livro de Roque Laraia esta passagem pode ser encontrada da página
60 em diante.

47
mais a análise dos fatores sociais e especialmente políticos de
produção e reprodução de uma cultura, entendida como ordem
cultural e suas variantes. De outra parte, às teorias da razão
simbólica e de uma antropologia do consenso o que importa é
mais a apreensão da lógica interna de uma cultura.
Dado que a cultura é uma complexa estrutura de símbolos
e de significados, muitos deles não-conscientes para os seus pró-
prios realizadores, ou já que ela é mais um contexto simbólico
onde as relações sociais podem ser consensualmente exercidas,
do que um território de relações de poder que de fato as fazem
serem exercidas, o que vale é a sua decifração, através da leitura
de seus significados subjacentes, como narrativas de compreen-
são de sua lógica interna, de acordo ou a partir de como ela é
pensada e vivida pelos seus próprios agentes. 15
Se as quisermos subdividir, veremos que as teorias da
razão simbólica podem ser divididas em três grandes linhas de
abordagem.
1ª. A que considera a cultura como um sistema cognitivo;
princípio que funda a etnociência dos norte-america-
nos. O foco da pesquisa de seus praticantes é a análise
dos modelos lógicos de classificação, construídos e
coletivizados pelos integrantes de uma comunidade
cultural a respeito de seu próprio universo natural.
2ª. A que toma a cultura como conjuntos de sistemas
estruturais, e se preocupa com a análise de seus pro-
cessos internos de transformação. Em sua orientação

15 Não é que em uma teoria interpretativa da cultura, como em Geertz, a


questão do poder não seja levada em conta. Mas ele não conta decisi-
vamente para fazer com que um sistema cultural seja o que é, porque
ele mesmo e sua trama de interesses e decisões estão incorporados a um
contexto mais amplo, a própria cultura. É neste sentido que em Geertz
a cultura não é definida como um poder, ou uma resultante direta e
mecânica de relações de poder, mas como um contexto de símbolos e
significados reais e concretos onde relações, inclusive as de poder, podem
ser realizadas.

48
desenvolvida através do estruturalismo de Claude
Lévi-Strauss, o lugar de origem da cultura é a própria
mente do homem. Daí o seu “panbiologismo”, segundo
alguns críticos. Em sua pesquisa o que importa é a aná-
lise das múltiplas variantes culturais desta “mente”, tal
como elas se traduzem sob a forma e de diferentes sis-
temas de mitos, de artes, de parentesco, etc. Sua análise
mais abrangente e profunda serviria à decifração da
dimensão inconsciente de sua “mente humana gera-
dora”.
3ª. A que considera a cultura como sistemas simbólicos.
Como sistemas de símbolos entendidos não como
estruturas lógicas mentais, ou como nas teorias do sis-
tema cognitivo, ou ainda como complexas estruturas
inconscientes de que a cultura “visível” e praticada
seria apenas um fenômeno exterior, como nas teorias
estruturalistas. Ao contrário, segundo esta terceira
vertente, os símbolos, matrizes da lógica e da ação
humana, configuram a matéria-prima mais concreta e
mais consistentemente real da própria vida social. Seu
mais conhecido praticante é Clifford Geertz, com quem
nos encontraremos linhas adiante. Mais do que
apenas socialmente coletivos, eles são culturalmente
“públicos”. Eles existem e coexistem na cotidianidade
da vida social, e são organizados como verdadeiros
mapas culturais de orientação concreta e partilhável
de uma “vida social”. Eles Constituem a realidade
visível da experiência humana sob a forma de matri-
zes; de “tramas e de teias de sentidos e de significados
com que o homem concreta, cotidiana e coletiva-
mente “pensam, através de uma dimensão cognitiva de
“visão de mundo”. E a cultura configura e se realiza
também como uma tessitura de símbolos e de signifi-
cados através dos quais uma comunidade humana gera
e estabelece os sistemas de pautas e regras, de valo-

49
res e princípios codificados de controle concreto das
possibilidades e alternativas de comportamentos e de
relações entre sujeitos da sociedade, enquanto autores
e atores de uma cultura.

Cultura? Uma pergunta com múltiplas respostas e nenhuma


certeza

Este tópico conclama dois antropólogos norte-americanos.


Um deles Leslie White, vindo de um passado não tão remoto,
mas já bastante distanciado do momento em que o outro,
Clifford Geertz surge, pesquisa e escreve. Antecipo que tal é
a rapidez com que hoje em todos os campos e domínios da
vida e do pensamento “tudo o que é sólido desmancha no ar”,
que as ideias matrizes de Clifford Geertz (de quem me consi-
dero até hoje um moderado seguidor) em muito pouco tempo
começaram a serem questionadas por seus próprios ex-alu-
nos “pós-modernos”. Neste sentido remeto quem me leia e
queira mergulhar em tais labirintos, um livro organizado pelo
antropólogo argentino Carlos Reynoso: El surgimiento de la
antropologia pós-moderna. Nele um primeiro artigo, após a
longa e excelente introdução de Reynoso, é de Clifford Geertz.
E todos os outros são escritos de ex-alunos ou de outros antro-
pólogos mais jovens, prontos a repensar as teorias antecedentes
e a reescrever a teoria e a prática da antropologia.
Para bem avaliarmos um dos motivos mais centrais na
diferenciação tão aparentemente extrema de correntes e ver-
tentes de compreensão da cultura, devo lembrar que, tal como
entre antropólogas, também outros cientistas da pessoa, da
vida, e da matéria-energia, vivem agora uma afortunada passa-
gem. Ela vai de ciências focadas sobre a estrutura de “coisas”,
em direção a redes de relações entre os integrantes criadores da
“coisa”, e atribuidores de sentido e significado a “ela” e ao que
eles fazem, quando interagem, quanto criam e quando pensam
“uma coisa e a outra”.

50
Aos poucos passamos do olhar direcionado à regularidade
mecânica das estruturas e de uma suposta “canonicidade” dos
seus processos, para os feixes articulados de e entre as suas
possibilidades, alternativas e variações. Assim sendo, saltamos
da estrutura determinada e determinante das “estruturas estru-
turadas (Bourdieu), para o foco colocado sobre a variedade e
mesmo a imprevisibilidade dos acontecimentos de uma “estru-
tura estruturante”.
Abrimos portas de pesquisa e diálogo em direção ao jogo
nem sempre cientificamente previsível das interações pensa-
das e vividas por e entre diferentes categorias de\entre sujeitos
sociais. Rumo, também, às diferenciadas alternativas de intera-
ções e integrações entre diferentes categorias de fatos e de feitos,
nem sempre previstos e preceituados nas rígidas estruturas de
ordenação de instâncias sociais que vão da família nuclear aos
sistemas de poder, seja de uma pequena comunidade aborígene
australiana, seja de uma corporação complexa como uma uni-
versidade moderna.
Aprendemos com a própria física quântica que, tanto ou
mais do que na intimidade de um átomo da natureza, talvez
sejam muitas as indeterminações criadoras e transformado-
ras do acontecer da vida humana e humanamente cultural.
Entre outras e outros, Clifford Geertz fará a lembrança de que
vivemos hoje o trânsito da procura científica de leis únicas e
perenes de “fatos sociais considerados como coisas” (inclusive
as da cultura), em direção à busca de significados atribuídos
culturalmente a todos e a tudo na sociedade e na cultura. Tal-
vez, ele lembrará também, aquilo que escrevem os antropólogos
após as suas pesquisas de campo não venha a ser mais do que
“narrativas, de narrativas. E qual delas é a mais “verdadeira?”.
Qual a mais cientificamente acreditável?
Relembro aqui algo já escrito páginas acima.
Para reagir à materialidade antecedente da “ideia de cul-
tura”, tal como proposta na antiga e famosa definição de Tylor,
alguns antropólogos do século passado começaram a deslocar

51
a cultura do foco sobre os seus produtos sociais, como uma
mesa, uma língua, uma canção, uma ciência, um sistema jurí-
dico ou uma religião, para o ato supostamente criador de tudo
isto, ou seja, para o comportamento. Para a sua concretude
visível em diferentes modalidades de situações interativas. Ou
para o domínio de sua idealização como formas-padrão do
comportamento, tomada como a abstração de condutas ou de
comportamentos, inclusive comportamentos cognitivos através
dos quais a realidade da vida social torna-se possível e se realiza
como um tipo, um padrão de sociedade.
Tomemos aqui como exemplo de tal “reação”, através de
um conhecido artigo de Leslie White, algo anterior a escritos
de Clifford Geertz. O logo texto que trago aqui está repleto
de indicações bibliográficas muito sugestivas. Algumas delas
abarcam alguns dos trabalhos teóricos mais importantes de boa
parte da antropologia do século XX, aquele em que, já na sua
segunda metade, eu mesmo me tornei um antropólogo16.
Houve um tempo, porém, em que existia
um alto grau de uniformidade quanto à

16 Criado em 1960 por iniciativa de alguns bispos católicos de tendências


renovadoras e populares, o Movimento de Educação de Base tornou-se
um dos mais avançados e fecundo movimentos dedicados sobretudo à
alfabetização e educação continuada de jovens e adultos de áreas rurais
do Centro-0este, do Nordeste e de uma pequena área da Amazônia. Ele
era então um movimento de educação tão avançada em seu tempo, que
ademais de profissionais da educação, pedagogos e pedagogas, possuía
em seu quadro de educadores: dois sociólogos, um antropólogo, um
filósofo e duas psicólogas. Eu, então um militante da Juventude Univer-
sitária Católica e um estudante de psicologia, ingressei para trabalhar no
Departamento de Animação Popular (trazendo para o Brasil uma experi-
ência de ação comunitária vinda do Senegal, na África). Antes mesmo que
existissem no Brasil programas pós-graduados de antropologia, o MEB
incorporava algumas de suas ideias essenciais ao seu trabalho através de
“escolas radiofônicas”. Em 1961 ele faz traduzir do Inglês O conceito de
Cultura, de Leslie White. Estou utilizando aqui uma das cópias mimeo-
grafadas deste antigo e ainda tão valioso documento.

52
compreensão e ao uso do termo cultura.
Durante as últimas décadas do século
XIX e nos primeiros anos do século XX,
a grande maioria dos antropólogos man-
tinha-se fiel ao conceito expresso por E.B.
Taylor, em 1871, nas primeiras linhas de
Cultura Primitiva: “Cultura... é todo com-
plexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costumes e todas as outras capa-
cidades e hábitos adquiridos pelo homem
como membro da sociedade”. Tylor não
torna explicito, em sua frase acima, se
a cultura é uma possessão particular do
homem; porém, isso está aí subentendido
e, em outras partes, clara e explicitamente
apresentado (Tylor, 1881: 54, 123, onde
trata da “grande distância mental entre nós
e os animais”). Para Tylor, cultura era o
nome de todas as coisas e acontecimentos
peculiares à espécie humana. Ele enumera,
especificamente, crenças, costumes, obje-
tos - “machadinha, martelo, formão”, etc.
– e técnicas – cortar lenha, pescar... Caçar
animais com arma de fogo e lanças, fazer
fogo! Etc. (Tylor, 1913: 3-6).
O conceito de Tylor dominou, de modo
geral, o campo da antropologia, durante
décadas. Em 1920, Robert H. Lowie
começou seu trabalho Sociedade Primitiva
citando a “famosa definição de Tylor. Nos
últimos anos, entretanto, as concepções e
definições de cultura multiplicaram-se e
são as mais variadas possíveis.
...
Grande parte da discussão em torno
do conceito de cultura, nestes últimos
anos, tem-se preocupado com a distinção
entre cultura e comportamento humano.
Durante muito tempo inúmeros antropó-

53
logos se contentavam em definir cultura
como um comportamento peculiar à espé-
cie humana, adquirido pela aprendizagem
e transmitido de um indivíduo, grupo ou
geração ao outro, através de mecanismos
de herança social. Eventualmente, porém,
alguns começaram a fazer objeções a esse
conceito, e surgiu o princípio de que a cul-
tura não é, em si mesma, comportamento,
e sim uma abstração do comportamento. A
cultura, dizem Kroeber e Kluckhohn (1952:
155),” é uma abstração do comportamento
humano concreto, mas, em si própria, não
é comportamento”. Beals e Hoijer (1953:
210, 219) apoiam esse ponto-de-vista.
Os que definem cultura como uma abs-
tração, não nos dizem o que entendem
por esse termo. Eles parecem supor que
eles próprios compreendem o que é “abs-
tração”, e que os outros compreenderão
também. … Não obstante o que uma
abstração, de um modo geral, possa sig-
nificar para esses antropólogos, quando
a cultura se transforma em “abstração”
torna-se imperceptível, imponderável, e
não completamente real. Segundo Linton,
“a cultura propriamente dita é intangível
e não pode ser apreendida diretamente,
mesmo pelos indivíduos que dela partici-
pam (1936: 288-89). Herskovits também
chama a cultura de “intangível” (1945:
150). Os antropólogos, no simpósio ima-
ginado por Kluckhohn e Kelly (1945: 79,
81), argumentam que “podemos ver coisas
tais como os indivíduos e suas ações e inte-
rações,” mas “alguém já viu a cultura?”17.

17 Ver o texto de Leslie White, O conceito de cultura, na versão de sua tra-


dução pelo Movimento de Educação de Base, em 1961, nas páginas 1 e 2.

54
Eis aqui em dilema que acompanhará a compreensão
antropológica da ideia de cultura por longo tempo. Temos abor-
dagens, pontos de vista e definições demais. E elas provém de
fundamentos teóricos vindos não apenas da própria antropo-
logia, que, como vimos até aqui, não são apenas diferentes no
interior de uma mesma matriz. São em alguns casos divergentes
e excludentes. E a pergunta que diante de uma tal evidência nos
colocamos poderia ser esta: não será esta uma das vocações das
próprias ciências e, de modo especial, daquelas que constituem
o ser humano e as suas realizações como o seu ponto de par-
tida… e o de chegada?
Ora, após a sua longa revisão de abordagens antropo-
lógicas que o antecederam, Leslie White parte em direção à
substância original e fundadora da antropologia. Ela não é
ainda a cultura. Mas será aquilo que torna a cultura possível
de existir.
Em seu estudo ele busca, tal como os físicos e os biólo-
gos, uma unidade fundadora da cultura. Busca mais ainda. Ele
deseja encontrar o núcleo fundador; o miolo das diferentes
relações humanas vividas dentro e fora de seu próprio domínio
de existência e de transformações. E ele o encontra no símbolo.
Dito de outra maneira; naquilo que existe através da “ativi-
dade simbólica dos seres humanos, como uma classe de coisas e
de acontecimentos dependentes de simbolização, considerados
dentro de um contexto extra-somático”. Ou seja, considerados
aquém ou além do comportamento individual, interindividual e
social. Seria esta a dimensão do simbólico situada em um domí-
nio extra-orgânico, ou supra-orgânico. Trago dele uma outra
exagerada longa citação. Vale a pena acompanhá-la.
O primeiro passo no procedimento científico é observar,
ou, mais generalizadamente, experimentar o mundo exterior de
uma maneira sensorial O passo seguinte – após os objetos da
percepção terem sido traduzidos em conceitos – é a classifica-
ção de coisas e acontecimentos do mundo exterior percebidos
ou experimentados. As coisas e acontecimentos do mundo exte-

55
rior são, assim, divididos em várias espécies de classes: ácidos,
metais, pedras, líquidos, mamíferos, estrelas, átomos, corpús-
culos, etc.
Acontece, porém, que existe uma classe de
fenômenos, de grande importância para o
estudo do homem, para o qual a ciência
ainda não encontrou um nome: trata-se da
classe das coisas e acontecimentos que con-
sistem ou dependem da simbolização. Uma
das coisas mais notáveis na história recente
da ciência é o fato dessa importante classe
não ter nome; a verdade, porém, é que não
existe nome para ela. A razão disso é terem
essas coisas e acontecimentos sido sempre
considerados e designados não simples-
mente como as coisas e acontecimentos
que são em si próprias, mas sempre como
coisas e acontecimentos num contexto
especial.
Uma coisa é o que ela é; uma rosa é uma
rosa. Os atos não são em primeiro lugar
atos éticos ou atos econômicos ou atos eró-
ticos. Um ato é um ato. Um ato torna-se um
dado ético ou um dado econômico ou um
ato erótico quando – e somente quando – é
considerado dentro de um contexto ético,
econômico ou erótico. Um vaso chinês de
porcelana será um espécimen científico, um
objeto de arte, um artigo de comércio ou um
documento num processo legal? A resposta
é óbvia. Na verdade, chamá-la de “um vaso
de porcelana chinês”, já é colocá-lo dentro
de um determinado contexto; seria melhor
dizer primeiro: “uma forma envernizada
de argila queimada é uma forma enverni-
zada de argila queimada”. Como vaso de
porcelana chinês ele torna-se um objeto de
arte, um espécimen científico ou um artigo

56
de mercadoria quando, e apenas quando é
considerado num contexto estético, cientí-
fico ou comercial.
Voltemos, agora, para a classe de coisas ou
de acontecimentos que consistem em, ou
dependem da simbolização: uma palavra
falada, um machado de pedra, um fetiche,
evitar a sogra, detestar leite, rezar uma ora-
ção, aspergir água benta, um vaso de barro,
votar, guardar a santidade do domingo- “e
quaisquer outras capacidades e hábitos
(e coisas) adquiridos pelo homem como
membro da sociedade (humana) (Tylor,
1913: 1). Elas são o que são: coisas e atos
que dependem de simbolização.
Podemos colocar essas coisas-e-aconteci-
mentos-dependentes-de-simbolização em
vários contextos: astronômico, físico-quí-
mico, anatômico, fisiológico, psicológico
e culturológico e, consequentemente, eles
tornar-se-ão fenômenos astronômicos,
físicos, químicos, anatômicos, fisiológi-
cos, psicológicos e culturológicos. Todas
as coisas e acontecimentos dependentes de
simbolização são, também, dependentes
da energia solar que sustenta a vida neste
planeta; este é o contexto astronômico.
Essas coisas e acontecimentos podem ser
considerados e interpretados face a proces-
sos anatômicos, neurológicos e fisiológicos
dos seres humanos em que são encontra-
dos. Eles podem, também, ser considerados
e interpretados face à sua relação com
organismos humanos, i.é. num contexto
somático. Podem, também, ser considera-
dos num contexto extra-somático, i.é. face
à sua relação com outras coisas e acon-
tecimentos semelhantes, ao invés de sua
relação com organismos humanos.

57
Quando as coisas e acontecimentos depen-
dentes de simbolização são considerados
e interpretados face à sua relação com
organismos humanos, i.é., num contexto
somático, eles podem ser adequadamente
chamados de comportamento humano e,
a ciência, psicologia. Quando as coisas e
acontecimentos dependentes de simboliza-
ção são considerados e interpretados num
contexto extra-somático, i.é. face à relação
que têm entre-si, ao invés de com os orga-
nismos humanos, podemos chamá-los de
cultura e, a ciência, culturologia18.

Reconheçamos que apesar do fecundo que foram as con-


tribuições teóricas de Leslie White em seu tempo, a palavra
sugerida por ele para uma nova ciência, a “culturologia”, não
vingou. E mesmo reconhecendo - como o fará Clifford Geertz
linhas adiante - que já havia, na década dos anos cinquenta,
uma quantidade exagerada de definições acadêmicas para “o
conceito de cultura”, após a longa revisão transcrita aqui, Les-
lie White estabelece mais uma definição.
A cultura é, pois, uma classe de coisas e de
acontecimentos dependentes de simboliza-
ção, considerados dentro de um contexto
extra-somático. Esta definição livra a antro-
pologia cultural as abstrações intangíveis,
imperceptíveis e ontologicamente irreais e
proporciona-lhe uma disciplina verdadeira,
sólida e observável. Faz, também, uma
distinção severa entre comportamento –
organismos do comportamento- e cultura;
entre as ciências da psicologia e a ciência
da cultura.19.

18 Leslie White, O conceito de cultura Páginas 4 e 5.


19 Leslie White, O conceito de cultura, Página 9.

58
Tomemos a contribuição de Leslie White para pensá-la
através de termos e de diferenças bastante próximos. Segundo
alguns estudiosos da pessoa e da sociedade, uma diferença
importante entre a psicologia e a sociologia está em que a
primeira estuda “o homem e os seus momentos”, enquanto
segunda estuda “os momentos do homem”. Como toda fór-
mula contida em um jogo de palavras, esta pequena dualidade
será incompleta e imperfeita. Mas ela nos ajudará a pensar ter-
ritórios e domínios do saber. Pois o dilema descrito de maneira
sumária na longa citação acima está em que chega um tempo
em que a antropologia desconfia da substância múltipla de sua
esfera de investigação do fenômeno humano, compreendido
como o complexo de coisas e crenças, de ferramentas e técnicas
de trabalho, de ordenações sociais e suas gramáticas, de ritos e
códigos, de mitos, crenças, sistemas de saberes, de sentidos e de
significados.
Uma nova antropologia aspirou partir do reconheci-
mento de que se tudo o que é social começa, de um modo ou
de outro, na unidade visível ou imaginável de comportamentos
pessoais e de interações interpessoais. E ela terá o seu ponto
de origem em pessoas e relacionamentos entre pessoas, como
atores sociais mutuamente se reconhecendo e interativamente
se comportando uns diante dos outros, para e com os outros.
Mas, desde um olhar sobre “o homem e seus momentos” isto
é exatamente o que a psicologia compreende como seu campo
de pesquisa e pensamento. E, em termos objetivamente visíveis,
compreensíveis e até mensuráveis, “tudo isso” se realiza como
comportamento.
E então as fronteiras entre ela e a antropologia serão muito
tênues. E certamente elas se irão cruzar em vários cenários.
A leitura de livros de Serge Moscovici, um notável psicólogo
social, será uma excelente evidência disto. No entanto, em qual-
quer sociedade humana também existe algo contido naquilo
que torna comportamentos individuais e relacionais uma outra
e derivada realidade.

59
O que é que existe em nós como corpo, mente, sentidos,
sentimentos, espírito, consciente, inconsciente; assim como o
que é que existe entre nós, como interações, relações, encon-
tros, desencontros, afetos, gestos e atos, comportamentos e
condutas; e, ainda, o que é que existe fora, ou para além de
nós? Existem as palavras, os símbolos, as ideias, os significados
objetivamente presentes em um contexto cultural em que com-
portamentos pessoais e as condutas interativas acontecem. Algo
existente “em mim”, “dentro” de mim”, em algum lugar de
minha memória, de minha inteligência, de minha personalidade
de “meu eu”, como uma pessoa socializada em meu próprio
mundo cultural. Mas algo também visível e consistentemente
existente na objetividade social e na coletiva realidade simbó-
lica do mundo de interações que convivemos a cada momento e
ao longo de uma vida, com outras pessoas. Será isto a cultura?
Não tenhamos dúvidas de que o mundo em que nos
movemos é um entrelaçamento de comportamentos interati-
vos através de seus conteúdos simbólicos e semânticos. Basta
alguém ler as palavras deste exato parágrafo, escritas com as
letras e outros símbolos de uma entre as milhares de línguas
que a humanidade já possuiu, para você ter diante de seus olhos
(e de sua imaginação) a realidade visível, compreensível e quase
palpável do que Leslie White está chamando de “acontecimen-
tos, hábitos e coisas dependentes de simbolização”.

A cultura solta na praça, na rua

Este pode bem ser o momento de seguirmos adiante


no caminho percorrido até aqui. Recordo que importa um
pequeno salto entre duas ou três décadas. E ele nos levaria a
uma passagem bastante mais recente e bem mais conhecida
entre praticantes da antropologia do que todas as anteriores.
Ela pode ser encontrada no capítulo: Uma descrição densa: por
uma teoria interpretativa da cultura, do livro A interpretação
das culturas. Alguns anos após Leslie White seu autor, Clifford

60
Geertz uma vez mais estará lamentando que depois de tanto
tempo, depois tantas investigações de campo, depois tanta teo-
ria e de tantos diálogos entre antropólogos e outras pessoas de
algum modo afeitas a pensar o humano através da cultura, nós
estejamos ainda mergulhados em um indesejável e inevitável
“pantanal conceitual”. Em “un chaco de tendências teóricas”
em que teria se transformado a pesquisa universal ao redor do
misterioso conceito de cultura.
O pantanal conceitual para o qual pode
conduzir a espécie de teorização pot-au-feu
tyloriana sobre cultura é evidente naquela
que ainda é uma das melhores introduções
gerais à antropologia, o Mirror for Man,
de Clyde Kluckhohn. Em cerca de vinte e
sete páginas do seu capítulo sobre o con-
ceito, Kcluckhohn conseguiu definir a
cultura como: (1) “o modo de vida de um
povo”; (2) “o legado social que o indivíduo
adquire de seu grupo”; (3) “uma forma de
pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma abstra-
ção do comportamento”; (5) “uma teoria,
elaborada pelo antropólogo, sobre a forma
pela qual um grupo de pessoas se comporta
realmente”; (6) “um celeiro de aprendiza-
gem em comum”; (7) “um conjunto de
orientações padronizadas para os pro-
blemas recorrentes”; (8) comportamento
aprendido”; (9) “um mecanismo para a
regulamentação normativa do compor-
tamento”; (10) “um conjunto de técnicas
para se ajustar tanto ao ambiente externo
como em relação aos outros homens”; (11)
“um precipitado da história”...20

20 Página 14, no capítulo 1° de A interpretação das Culturas, da edição


de 1978, da Zahar, no Rio de Janeiro. Existe uma edição melhor e mais
atual, da Editora L&MP, Porto Alegre.

61
A citação acima não parece muito diferente da Enciclopé-
dia Chinesa, lembrada por Jorge Luís Borges.
Eis um ponto em que em termos de direitos pessoais e cole-
tivos à diversidade de olhares, tendências e teorias, estamos por
certas melhores do que antes. Eis um ponto em que em termos
de convergências, ou mesmo aproximações a respeito do que
afinal vem a ser a palavra-chave (e poderosamente mágica, pelo
visto) de que se alimenta a cabeça e a atividade científica dos
antropólogos, estaremos provavelmente piores do que nunca.
Afinal, habitamos teoricamente um “pantanal” em que
parecemos estar… atolados. Num esforço destinado a superar
uma certa “materialidade indevida”, possivelmente presente na
ideia de cultura, quando ela estaria reduzida aos produtos do
trabalho humano diante de seu meio ambiente e em seu mundo
social, mais ou menos como em Edward Tylor e em sua famosa
definição, eis que chega o tempo em que a antropologia pareceu
pretender reduzir a própria cultura ao processo fundador de sua
unidade operante: o comportamento humano. E é contra isto
que, como vimos já mais de uma vez aqui neste escrito, a partir
de um certo momento alguns antropólogos começaram a reagir.
Vimos já que ancorar a cultura no comportamento equi-
vale a entregar à psicologia boa parte do campo de estudos da
antropologia. E é em reação a esta perigosa tendência “psicologi-
zante” que, seguindo os passos de Leslie White, anos mais tarde
Clifford Geertz (e não apenas ele) irá elaborar uma proposta
algo mais atual e consistente. Uma sólida proposta fundada
sobre a aparente inconsistência” e imaterialidade do símbolo.
Relembro uma vez mais que para as antropólogas é
evidente que a realidade social da cultura não se esgota na rea-
lidade psicológica do comportamento. E existe um argumento
em que tal diferença parece não deixar dúvidas. Pois em inú-
meros e diferentes momentos da história dos seres humanos
e seus coletivos, como comunidades, sociedades, povos ou
mesmo nações, os sujeitos reais de seus comportamentos desa-
pareceram. Pessoas concretas, situadas e datadas como atores

62
e autores de seus gestos e condutas sociais morreram. Saíram,
orgânica e psicologicamente, de um “território dos vivos” e,
portanto, deixaram de fazer o que faziam como repertórios de
seus comportamentos. Desaparecem biologicamente, no sen-
tido em que, pelo menos em uma definida dimensão da vida
humana e da história da humanidade, não daria mais para se
falarmos agora do comportamento dos “gregos e dos troianos
dos tempos de Homero”. Morreram eles. Desapareceu inclu-
sive a própria Troia, que passou da realidade histórica de um
momento do Ocidente, para a história da antiguidade grega e,
dela, para a arqueologia.
No entanto, a cultura que aquelas vidas pessoais e interati-
vas criaram, e o que elas partilharam, isto sim, permanece vivo
entre nós, em nós e através de nós. Podemos ver os seus traba-
lhos de arte nos museus. Podemos decifrar e aprender a falar e
a escrever de novo as suas línguas. Podemos recuperar os seus
textos escritos e aprender, milhares de anos depois, a recriar as
suas epopeias, a orar aos seus deuses, a fazer comidas com as
suas receitas, e até mesmo a procurar pensar e sentir como eles
pensaram e sentiram. Podemos de algum modo “ver” Aquiles,
Ulisses, Heitor, Páris, Briseida e Helena “atuando” diante de
nós, entre a leitura do grande poema da Ilíada, ou os filmes ao
redor da “Guerra de Troia”. E isto através de algo vivido como
uma história revivida através de uma, ou algumas culturas.
Em alguns momentos de minhas aulas, sobretudo quando
diante de pessoas vocacionadas à educação, costumo relem-
brar a dualidade vinda de Marx, entre “trabalho vivo” versus
“trabalho morto”, para pensá-la do ponto de vista da cultura.
Pitágoras pensou e provavelmente escreveu o seu “teorema”
há alguns milênios. Como ser vivo e como filósofo e profes-
sor ele deixou de existir. O mesmo aconteceu, em tempos bem
mais recentes, com Paulo Freire ou com Jorge Luís Borges. Ora,
enquanto pensados, meditados, escritos e até mesmo de algum
modo processados e impressos, o Teorema de Pitágoras, o
Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (escrito originalmente

63
a mão) e os poemas de Jorge Luís Borges constituem parte do
que quero chamar aqui de “cultura viva”. Estão acontecendo,
fazem parte de momentos de trabalho humano sobre palavras,
sobre ideias, sobre imaginários. Sobre símbolos, enfim.
Uma vez prontos e guardados em livros colocados em uma
estante, distantes de seus momentos originais de criação e de
reprodução, longe de olhos e mentes que os busquem para deci-
frar ou deleitar, o teorema, as ideias pedagógicas e os poemas
passam a esperar a “volta à vida”, como momentos de uma
“cultura morta” (a expressão é grave, e eu bem preferiria “cul-
tura na espera”). Retirados da estante, abertos, lidos na solidão
de uma voz que murmura o poema, ou no desenho no papel
com que a lápis alguém tenta aprender o teorema, ou ditos em
fragmentos, em voz alta por uma professora diante de seus alu-
nos, passagens do Pedagogia do Oprimido experimentam um
dos maiores milagres da espécie humana. Eles, por um instante
ou por longos momentos, retornam da inércia do acontecido
à viva vida do acontecer. Retomam na solidão de uma leitura,
ou na partilha coletiva de um “círculo de cultura”, à sua voca-
ção de “cultura viva”. Pitágoras volta à vida. Retoma a sua
poderosa voz de sábio e matemático, milênios mais tarde. E
através da voz de uma maestra e das perguntas de suas alunas
ele retorna à vida através de um teorema. A quem me pergunte
por um milagre relembrarei este.
Retomo agora a momentos do pensamento de Clifford
Geertz. Ao assumir uma postura fortemente “simbolizante” da
ideia de cultura ele trabalha por se livrar, ao mesmo tempo,
de uma redução de sua compreensão ao “comportamento
humano” e, também de uma pan-idealização da cultura, como
em Claude Lévi-Strauss.
Na tentativa de lançar tal integração do
lado antropológico e alcançar, assim, uma
imagem mais exata do homem, quero pro-
por duas ideias. A primeira delas é que a
cultura é melhor vista não como complexos

64
de padrões concretos de comportamento -
costumes, usos, tradições, feixes de hábitos
-, como tem sido o caso até agora, mas
como um conjunto de mecanismos de
controle - planos, receitas, regras, instru-
ções (o que os engenheiros de computação
chamam “programas”) - para governar o
comportamento.
A segunda ideia é que o homem é preci-
samente o animal mais desesperadamente
dependente de tais mecanismos de con-
trole extra-energéticos, fora da pele, de
tais programas culturais, para ordenar seu
comportamento. 21

A cultura não “está” nem na psicologia do comporta-


mento, nem na biologia interior da mente. Ela é pública e a
praça do mercado seria o seu lugar mais visível. Criada por
símbolos e articuladora deles, ela deve ser pensada como mapas
de orientação, como códigos de prescrições, como “programas
culturais” ordenadores de comportamentos, do que “abstrações
de”.
Assim sendo, desde o ponto de vista que procura pensar a
aventura humana através da cultura, comportar-se não é ape-
nas agir em seu mundo, como o animal com quem partilhamos
até agora o mistério da vida. É, antes, o estabelecer relaciona-
mentos socialmente significativos. Relacionamentos passíveis
de serem também comportamentos porque estão dotados de
significados para nós e a respeito deles próprios. Elefantes,
lobos e macacos são orgânica e naturalmente coletivos. Seres
humanos são orgânica e culturalmente sociais.
Comportar-se não é somente inter-atuar com outros seres
da mesma espécie, mas realizar “isto” por meio da cumplici-
dade, da correspondência e da convergência de gestos coletivos

21 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, na página 56. Ver também


a página 64.

65
tornados sociais. Isto é, através de repertórios de gestos dota-
dos de teor simbólico, criados e inseridos no interior de uma
cultura, como o ardente e amoroso beijo na boca entre dois
amantes, ou como um inflamado discurso em praça pública
diante de uma multidão. Gestos gerados através de negociações
de sentidos e de significados. Palavras e movimentos do corpo
dotados de valor, de evocação, de saberes, e também de poder,
através de seus sentidos e significados. Inclusive om um forte
teor identitário.
Argentinos viajantes, quando fora da Argentina “matean”
porque este é para eles um hábito indispensável à felicidade de
seguidos momentos do dia-a-dia. Mas quando, juntas, “matean”
também como uma preciosa assinatura ritual-identitária. E,
assim, tomam organicamente o seu “mate amargo” como um
desejo do corpo. E bebem social e culturalmente o mesmo mate,
como um pequeno ritual de solidária partilha de um momento
da vida, quando estão “entre eles” (e elas). E, finalmente, tomam
cerimonialmente o mate como quem sem palavras deseja dizer
“a los otros”: “miren quien somos!” Quando estão diante de
quem os observa curioso, enquanto bebe um vulgar e universal
“Coca-Cola em lata. E aqui o que seguram nas mãos quase vale
como uma bandeira. Pois o mesmo “mate” e o mesmo “matear”
transita do natural e orgânico para o social e cultural de acordo
com o contexto somático ou extra-somático de que nos falou
Leslie White. Diante de outros uma argentina jamais tomará
uma Coca-Cola com a mesma ritualidade identitária com que
ritualmente prepara “su mate” e... matea.
Mesmo a sós e, mais ainda, quando diante de um outro,
ou de outras, vivemos e compartimos a vida no interior e para
além de palavras e de outros símbolos entre sonoros, visuais
ou de outra qualquer natureza. E além dos seus efeitos práti-
cos (como preparar o mate) ou sensoriais (como tomá-lo com
supremo prazer) todos eles servem para traduzir para nós, para
os nossos e para os outros: quem sou eu? Como eu sou? Quem
é ele? Quem somos nós que nos encontramos aqui? O que é

66
estar” aqui”? Como se deve proceder interativamente quando
se está “aqui, “a sós”, entre nós” ou com “estes outros”? Eles
servem, em planos mais entre a ética, a ideologia, as crenças e
outros imaginários, a estabelecer e tornar acreditáveis os funda-
mentos dos diversos planos do “em nome do que, ou de quem,
estamos interagindo assim desta maneira”? Ou, sobre o que se
fundamentam os preceitos de um “saber comportar-se aqui e
agora”. Ou “lá, e sempre”.
Pois, de uma maneira algo diferente dos outros seres vivos
da Terra, para o nosso bem e para o nosso mal, ao nos com-
portarmos nós não apenas nos inter-influenciamos enquanto
estamos juntas. Nós compartimos o processo nunca inter-
rompido de criarmos as diferentes esferas e modalidades de
realizações dos próprios mundos sociais em cujos territórios,
ou entre cujos cenários ou entre-lugares mutuamente nós saí-
mos-de-nós e interativamente nós nos comportamos.
Ao agirmos assim, nós criamos os universos de interações e
de entendimentos de uma desejada mútua compreensão, e tam-
bém da possibilidade de inúmeros, rotineiros, raros ou mesmo
imprevisíveis relacionamentos vividos e pensados entre e atra-
vés de tipos orgânicos de indivíduos (macho e fêmea, criança,
jovem, adulto e idoso), tipos culturais de pessoas sociais (você
e eu, com nossos nomes, nossas identidades, nossos modos pes-
soais-e-sociais de sentir, pensar ser e viver).
E também comportamentos pessoais tornados condutas
sociais, de e entre autores e atores culturais, como entre um pro-
fessor e uma aluna), ou como entre , que agora , em uma manhã
fria de chuva, em uma casa entre montanhas do Sul de Minas
Gerais, no Brasil, escrevo isto, que em um outro momento você
lerá, em uma talvez tarde mais fria ainda em Lujan, atribuindo
por sua conta e risco, os seus próprios sentidos e significados
de quem está lendo e refletindo, aos saberes, sentidos e signifi-
cados de quem, antes, escreveu.
E culturalmente tudo ser passa em planos não restritos
apenas a interações significativas entre categorias culturais de

67
“pessoas de carne e osso”. Pois as culturas que habitamos (e
que podem ser algumas, ou várias) estabelecem também rela-
ções entre pessoas e os seus símbolos e significados. Como as
que se passam entre uma estudante e uma ideia; entre um leitor
e um poema escrito por um poeta do século XVII; entre um
recém-convertido a uma antiga religião, e o seu decálogo supos-
tamente escrito em duas pedras há milhares de anos atrás.
E, ainda mais além, também através de relações simbóli-
cas entre os significados, eles próprios, como acontece entre as
palavras; entre as línguas, entre os poemas de uma língua, como
nos estudos algum dia escritos a respeito dos poemas de Jorge
Luís Borges. E, em nosso caso específico, em e através de buscas
de fundamentos pedagógicos especialmente relativos ao saber,
à criação, circulação e partilha de saberes, à cenários, situações
e acontecimentos interativos pautados pelo trabalho de ensi-
nar-e-aprender, ou de aprender-a-ensinar. Ou seja: a educação.
Há um outro dilema a resolver. De que forma superar a
visão tradicional em que a cultura parece estar situada em um
“andar de cima” de um ilusório edifício da sociedade? Desde os
nossos livros escolares estamos acostumadas a “ler” uma cons-
trução forçada da sociedade. Uma arquitetura do imaginário
em que o andar térreo pertence à infraestrutura da “economia”;
o primeiro andar ao da estrutura social dos sociólogos, cabendo
ao sótão, ao telhado e à chaminé o lugar da cultura, território
de antropólogas.
Como superar isto a que Clifford Geertz deu o nome
de uma “visão estratigráfica” da sociedade e da cultura? Um
olhar que percebe e interpreta a vida social como um prédio
com andares superpostos, guardando entre eles uma precária
e rígida relação de dependência e de determinação, que trans-
forma a estrutura social em um subproduto da economia, e
obriga a cultura a ser uma espécie de “sobra” das outras duas
esferas. Como transformar esta compreensão mecânica, está-
tica e francamente irreal, em uma outra. Uma compreensão
capaz de substituir a imagem da construção de três andares por

68
uma mais semelhante a uma árvore. Um ser vivo e transformá-
vel, onde tudo está interligado a tudo, e onde a existência do
todo depende de cada parte e, mais ainda, da integração entre
tudo, da raiz às flores?
Um psicólogo piagetiano pode dedicar anos de sua vida ao
estudo sobre como crianças adquirem a “capacidade” de com-
preender e de utilizar os símbolos e significados de uma língua
materna. Uma fonoaudióloga pode devotar-se a pesquisas sobre
como fazer com que crianças e jovens com “problemas de voz
e de fala” reaprendam a emitir de maneira correta o repertório
de sons e de silêncios que constituem a sua “língua falada”.
De igual maneira, uma psicopedagoga pode trabalhar a vida
inteira com crianças com problemas na aquisição e na utiliza-
ção da sua “língua escrita”. Todas estarão estudando questões
ou estarão lidando com práticas destinadas a diferentes planos
de aprendizagem e correção de problemas de relacionamentos
entre pessoas e pessoas; ou entre as pessoas e os seus símbolos.
Existirá algum tipo de comportamento interativo que dispense
o símbolo, o sentimento, o saber e o significado?
Em seu domínio próprio de pesquisas, um arqueólogo
poderá dedicar-se por anos e anos a descobrir, inventariar
e compreender o que significam, o que quiseram e querem
“dizer” os restos materiais em que foram deixados entre ruí-
nas, sob a terra, fragmentos de sistemas de símbolos: muros de
pedras, restos de casas, vasos de porcelana, altares de templos,
utensílios do trabalho artesanal, tábuas da lei, pergaminhos ou
placas de barro com algo desenhado ou escrito há milhares de
anos. Sinais simbólicos da existência de alguma sociedade de
há muito desaparecida e cuja cultura emerge mil e trezentos,
anos depois.
Uma linguista, já muito distante da possibilidade de obser-
var em vida a atualidade das relações interativas de pessoas de
algum povo do passado remoto, quando elas se falavam ou se
escreviam, poderá devotar-se a comparar a decodificar e tradu-
zir para sua própria língua atual (a de sua cultura) um arcaico

69
e “desaparecido” sistema linguístico. Com mais sorte poderá
ousar comparar diferentes modalidades de sistemas de fala e
de escrita de povos que viveram há onze séculos atrás, em uma
mesma região do planeta. Como falavam os povos que habita-
vam o que hoje é Cidade de Ushuaya?
O arqueólogo e o linguista estarão procedendo de maneiras
em algo semelhantes, mas em algo diferentes dos seus compa-
nheiros da psicologia. Estarão tentando descrever e interpretar
relações sociais através de símbolos e de significados. Aos
psicólogos interessa a atualidade dos relacionamentos intera-
tivos, logo, dos comportamentos atuais entre tipos de sujeitos
sociais, vividos através de - claro - sistemas de símbolos (como
as letras do alfabeto ou as palavras de uma língua) e de signi-
ficados (como o que se escreve e o que se compreende através
de articulações entre letras e palavras de uma língua). Já aos
arqueólogos e aos linguistas, como também aos antropólogos,
interessa mais a relação que os símbolos e significados de uma
cultura mantêm entre eles, através das pessoas que através deles
se comunicam.
Mesmo reconhecendo que ao tempo do livro de Klidde
Kluckhohn e na década dos anos cinquenta já passavam de
uma centena e meia as definições e os conceitos correntes na
antropologia de seu tempo, Clifford Geertz, como antes Les-
lie White e tantas e tantos outros, arriscou-se a nos oferecer
uma outra. Nela ele aspira alcançar uma teoria antropológica
em que a cultura recupere, como vimos linhas e páginas acima,
uma concreta realidade. Uma pública concretude justamente
por acontecer como algo fundado, como em Leslie White, mas
com um passo além dele, na vocação humana a criar símbolos
para gerar a vida social de que depende em linha direta o pro-
duzir a nossa própria sobrevivência material.
Na teoria interpretativa de Clifford Geertz a cultura surge
outra vez como uma realidade humana ao mesmo tempo efê-
mera e estável. No entanto, à diferença das teorias que ele
critica, como algo de qualquer modo visível, concretamente

70
pensável e confiável, por ser concretamente pública, e ao ser
publicamente construída e negociada por e entre pessoas reais
no acontecer de situações cotidianas. Algo que está nas pessoas,
na mesma medida em que circula em casa, na escola, na praça.
Algo como uma senha que muitos conhecem, como nas histó-
rias, nas estórias, nos mitos e nas lendas que as pessoas de uma
família ou de uma aldeia contam e recontam narrativas sobre
elas próprias, entre elas próprias e para elas próprias.
Algo que para além das “visões estratigráficas”, não está
situada em um “andar de cima” da sociedade e de sua vida do
dia-a-dia, mas recorta como e através da dimensão simbólica
nela sempre presente e ativa, a dimensão da economia, da orde-
nação social do parentesco, das estruturas de poder. A economia
lida basicamente com o dinheiro. Mas o dinheiro, somente é um
valor econômico porque é, antes ou ao mesmo tempo, um valor
simbólico da cultura.
A cultura, que sem ser exatamente e sem se dissolver na rea-
lidade social, vale como um seu mapa, como um estatuto, como
uma carta de rumos, como redes, teias e telas sem as quais a
própria vida social em todas as suas dimensões fica não apenas
simbólica, mas social e concretamente incompreensível, indeci-
frável e, portanto, inativa. Ei-la, a cultura, um complexo texto
aberto a múltiplas leituras, onde se podem ler tanto poemas de
amor quanto, um código dos prazeres, quanto o repertório dos
deveres do amor e do sexo.
Eis como finalmente Clifford Geertz em poucas palavras
define o que entende por cultura.
De qualquer forma, o conceito de cultura
ao qual eu me atenho não possui referentes
múltiplos nem qualquer ambiguidade fora
do comum, segundo me parece: ele denota
um padrão de significados transmitido his-
toricamente, incorporado em símbolos, um
sistema de concepções herdadas expressas
em formas simbólicas por meios das quais

71
os homens comunicam, perpetuam e desen-
volvem seu conhecimento e suas atividades
em relação à vida. 22

A estranha ausência

Ao longo de anos andei lendo livros e artigos, ou simples-


mente consultando “índices remissivos” de uma larga variedade
de livros antigos e recentes de paleontologia e de antropologia.
Raros, muitos raros aqueles que sequer incorporam sequer de
passagem palavras como: “aprendizagem”, “ensino”, “educa-
ção” e “escola”. A antropologia precisou esperar uma pioneira
mulher antropóloga, Margareth Mead, para encontrar alguém
cujas pesquisas de campo descobrissem ao mesmo tempo: a
mulher, a criança e a aprendizagem.
Deixei para o último tópico deste escrito já demasiadamente
longo, uma outra passagem de A interpretação das culturas, de
Clifford Geertz. E a trouxe para cá justamente porque entre
os momentos em que antropólogos falam sobre a cultura, com
raras e louváveis exceções palavras como: “saber”, “aprendiza-
gem”, “aprendizado” e, sobretudo, “educação” e “escola” estão
ausentes. Mas não neste momento de Geertz23·
… nós somos animais incompletos e ina-
cabados que nos completamos e acabamos
através da cultura – não através da cultura
em geral, mas através de formas altamente
particulares de cultura: dobuana e java-
nesa, hopi ou italiana, de classe alta e classe
baixa, acadêmica e comercial. A grande
capacidade de aprendizagem do homem,
sua plasticidade, tem sido observada mui-

22 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, página 103.


23 E, no entanto, eis que ninguém menos do que Tin Ingold acaba de publi-
car um livro com este nome: Anthropology and/as education

72
tas vezes, mas o que é ainda mais crítico é
sua extrema dependência de uma espécie de
aprendizado: atingir conceitos, a apreensão
e aplicação de sistemas específicos de sig-
nificado simbólico. Os castores constroem
diques, os pássaros constroem ninhos, as
abelhas localizam o seu alimento, os babuí-
nos organizam grupos sociais e os ratos
acasalam-se à base de formas de aprendi-
zado que repousam predominantemente
em instruções codificadas em seus genes e
evocadas por padrões apropriados de estí-
mulos externos – chaves físicas inseridas
nas fechaduras orgânicas. Mas os homens
constroem diques ou refúgios, localizam o
alimento, organizam seus grupos sociais ou
descobrem seus companheiros sexuais sob
a direção de instruções codificadas em dia-
gramas e plantas, na tradição da caça, nos
sistemas morais, e nos julgamentos estéti-
cos: estruturas conceptuais que moldam
talentos amorfos.24

Poderia agregar a esta preciosa lembrança de Clifford


Geertz uma outra citação de Terry Eagleton, no livro que nos
tem acompanhado aqui. Também ele lembra o que tem sido
um “mote” que espero não estar falando e escrevendo sozinho:
“somos humanos porque somos seres aprendentes”. Algo cuja
continuidade poderia ser: “criamos a cultura que aprendemos a
criar e a partilhar”. Vejamos o que Eagleton escreve.
Desde um ponto de vista, a cultura é tudo o
que não é natureza para os seres humanos:
crenças, costumes, tradições, etc. tayloria-
namente. Afinal é ela, para os humanos:
“tudo o que lhes foi ensinado”.

24 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, páginas 62 e 63. Os grifos


de algumas palavras são meus.

73
De outro ponto de vista, a cultura é o
conhecimento implícito no mundo pelo
qual as pessoas negociam maneiras apro-
priadas de agir em contextos específicos
(...) ela é mais um saber-como do que um
saber-porque, mais um conjunto de enten-
dimentos tácitos ou diretrizes práticas do
que um mapeamento teórico da realidade25.

Sim! Antes de ser atos sobre a natureza e gestos entre os


humanos; antes de ser trocas, reciprocidades disto ou daquilo,
a cultura é um saber. Culturas são saberes. Saberes constituem
algo que os humanos aprendem por conta própria, e às vezes a
duras penas. São saberes que uma criança aprende observando
o seu velho avô fazendo e refazendo uma esteira ou uma lança.
São saberes que um outro avô, intencional e afetuosamente
ensina, com palavras e gestos, a um outro neto. E serão saberes
que uma confraria de sacerdotes indígenas ensina a um grupo
seleto de neófitos. entre práticas e palavras. São saberes que
adiante reúnem meninos em escolas corânicas em algum país
do Norte da África. São, finalmente, saberes que aqui nesta sala
da Univesidad Nacional de Lujan nos reúnem para pensarmos
juntas: afinal, o que estamos fazendo aqui? Ou, de uma forma
mais academicamente respeitável: “será que um dia saberemos
o que é a educação?
Também Alfred Kroeber, cuja síntese a respeito do que em
seu tempo seria a “ideia de cultura” poderia ser recordado aqui.
Se relembramos a quinta de suas proposições, tal como reescri-
tas em minha súmula muitas páginas acima, veremos que ele
lembra que somos os seres que, despreparados organicamente
para a vida na Terra, nos lançamos à tarefa de intencionar o
nosso ambiente com vistas a transformá-lo para nós, dado que
organicamente não saberíamos como nós nos transformar para

25 Terry Eagleton, A ideia de cultura, página 55. Aqui também os grifos são
meus.

74
ele. E isto fizemos como uma resposta a nossa necessidade de
sobrevivência. E também de acordo com as alternativas que a
espécie humana diferenciadamente encontrou para socialmente
aprender a viver em coletividades não mais regidas por prin-
cípios genéticos (também eles), mas por preceitos e saberes da
cultura.
Ora, no processo de criar um mundo de cultura como o
seu modo de viver a sua relação com o mundo de natureza, o
homem precisou depender cada vez mais do seu conhecimento.
Precisou saber guardar e inovar o que aprendia a saber. Preci-
sou tornar-se não apenas um ser-do-aprender, como os macacos,
mas um ser do saber-se aprendendo. Um ser que soube atribuir
sentido não apenas aos produtos do saber que aprendia-a-saber,
através de diferentes reciprocidades permeadas por símbolos,
atos, gestos, palavras, mas também ao próprio complexo pro-
cesso de que derivou a própria educação.
Dependemos não apenas residualmente da cultura de que
somos parte, mas de nossa capacidade de aprender de diferen-
tes modos e em diferentes dimensões, o que necessitamos para
podermos viver em uma comunidade humana. Dependemos
do que aprendemos a saber, mais do que da forma bruta de
padrões e atitudes geneticamente determinadas, para agirmos
sobre o mundo e sobre nós.
Afinal, um argentino “médio” saberá preparar um “mate”.
Mas precisará de um lavrador para aprender a cultivar uma
planta de erva mate. Um argentino mais “cultivado” terá
aprendido alguns saberes teóricos, alguns mitos e alguns fatos
históricos a respeito da erva mate. Por exemplo, há mesmo his-
toriadores que defendem que uma das origens da “Guerra do
Paraguai” foi o controle de preciosos e amplos “ervais”. Um
argentino ainda mais “cultivado” terá aprendido a filosofar
profundamente sobre o sentido da vida... “mientras matea”.
E então por um momento precisaremos nos calar, e de
novo ouvir o que Terry Eagleton escreveu para nós também.
E, pelo menos no meu caso, o que ele escreve aqui eu já vivi e

75
meditei desde há pelo menos sessenta anos. Ele veio nos dizer
que enquanto estamos aqui reunidas para pensar “o que se
cultiva”, ou seja, a cultura, um ou dois jardineiros da UNLU
estarão praticando uma modalidade de ação de onde deriva
em linha direta a própria palavra que aqui nos reúne, a cultura.
Talvez por detrás do prazer que se espera
que tenhamos diante de pessoas “cultas”
se esconda uma memória coletiva de seca e
fome. Mas essa mudança semântica é tam-
bém paradoxal: são os habitantes urbanos
que são “cultos” e aqueles que vivem
lavrando o solo não o são. Aqueles que cul-
tivam a terra são menos capazes de cultivar
a si mesmos. A agricultura não deixa lazer
algum para a cultura26.

Que esta cruel e nunca superada contradição seja tema do


cultivo crítico de nossas palavras e nossos diálogos.

26 Terry Eagleton, A ideia de cultura, página 10. Será que como bom inglês
ele, pelo menos nas manhãs de domingo, cultivará um jardim? De outra
parte, devo dizer de público que ao longo de minha vida plantei nos mais
diferentes recantos, incameras árvores.

76
A EDUCAÇÃO COMO CULTURA
ALGUMAS MEMÓRIAS DE ONTEM ALGUMAS
LEMBRANÇAS DE AGORA1

A ação política junto aos oprimidos tem de


ser, no fundo, “ação cultural” para a liber-
dade, por isto mesmo, ação com eles. A sua
dependência emocional, fruto da situação
concreta de dominação em que se acham
e que gera também a sua visão inautêntica
do mundo, não pode ser aproveitada a não
ser pelo opressor. Este é que se serve desta
dependência para criar mais dependência.
Paulo Freire – Pedagogia do Oprimido

(1983) A cultura como o acrescentamento


que o homem faz ao mundo que não fez.
A cultura como o resultado de seu traba-
lho. Do seu esforço criador e recriador. O
sentido transcendental de suas relações. A
dimensão humanista da cultura. A cultura
como aquisição sistemática da experiência
humana. Como uma incorporação, por
isso crítica e criadora, e não como uma
justaposição de informes ou prescrições
“doadas”. A democratização da cultura –
dimensão da democratização fundamental.
O aprendizado da escrita e da leitura como
uma chave com que o analfabeto iniciaria a
sua introdução no mundo da comunicação

1 Este estudo foi originalmente publicado em Horizontes Antropológicos,


da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dele preservo aqui a
parte reservada ao estudo dos movimentos de cultura popular dos “anos
sessenta” no Brasil.

77
escrita. O homem, afinal, no mundo e com
o mundo. O seu papel de sujeito e não de
mero e permanente objeto.
Paulo Freire - Educação como prática de
liberdade.

E
stávamos na virada entre os anos cinquenta e os ses-
senta. Nos mesmos momentos em que crescente e
impositivamente teorias e propostas de trabalho do tipo
“povo-e-governo” começavam, num tardio “pós-guerra”, a
serem postas em prática por meio de programas pensados e
vividos como “desenvolvimento” (“de comunidade”, “regio-
nal”, “nacional”, “socioeconômico”, “integrado”), ou como
diferentes projetos dirigidos à “organização social”, ou mesmo
a experiências de “promoção cultural”, surgiram no Brasil e,
depois, ao longo de outras nações do continente, outras moda-
lidades de imaginários, de idéias e de propostas de ações sociais
através de organizações e movimentos de atuação direta junto
às camadas populares. De uma atuação direta e, claro, na con-
tramão dos projetos “oficiais”, de origem nacional ou mesmo
internacional (UNESCO, OEA, ONU) pensadas como práticas
não apenas dirigidas “à promoção do povo”, mas politicamente
devotadas “às frentes de lutas das classes populares”.
As iniciativas que desabrocham logo nos primeiros anos
“dos sessenta” foram originadas, em boa medida, no interior
ou em áreas de fronteira do mundo acadêmico, frente ao qual
alguns ativistas populares e alguns artistas militantes guardavam
uma prudente e compreensível distância. Dentre as sub-ver-
tentes ideológicas de origem, podemos concentrar em duas as
fontes de seus imaginários de origem: uma vertente marxista,
desdobrada internamente em algumas aguerridas tendências
(ortodoxa, maoísta, trotskista e outras)2; uma vertente “cristã

2 Já professor em Goiás e a caminho de me tornar antropólogo na UNB,


eu, um “militante da vertente cristã”, fiz de minha casa um “aparelho
de Ação Popular” entre 1969 e 1971. Traduzi do espanhol pelo menos

78
de esquerda”, em boa medida originária da Ação Católica, e que
veio a gerar meses antes do golpe militar de 1964, a Ação Popu-
lar, o braço político (e depois armado) da mesma Ação Católica
e, sobretudo, da Juventude Universitária Católica..
Pessoas e agremiações reuniam-se como um dos vários
Movimentos de Cultura Popular. Alguns deles realizados na
prática através dos Centros Populares de Cultura, e quase todos,
repito, próximos ao mundo universitário e ao movimento estu-
dantil3. Com a linguagem bem própria da época, transcrevo
alguns momentos em que a relação trabalho-e-cultura funda
a própria realidade da experiência humana realizada como e
através de uma história. Sem sermos então antropólogos, criá-
vamos teorias de insurgência a partir de leituras fragmentadas
vindas também da antropologia.
O homem estando no mundo estabelece
relação com a natureza, a compreende e
desenvolve um trabalho de transformação
desse mundo. Nesse sentido é que ele cria
outro mundo, o mundo da cultura, do qual,
por sua posição de criador, ele é sujeito, e

dois pequenos livros de Mao Tse Tung, e “clandestinamente” levava


os “estêncis” datilografados à Secretaria da Faculdade de Filosofia da
Universidade Federal de Goiás, da qual era recente professor contra-
tado, para gerar cópias que seriam levadas ao “Norte de Goiás” (hoje
Tocantins) para um trabalho de organização popular e revolucionária de
camponeses. Foram tempos em que a originariamente cristã Ação Popu-
lar viveu momentos intensamente marcado pelo maoísmo. Eu mesmo li
Mao Tse Tung e Antônio Gramsci bem antes de começar a ler Boas ou
Malinowski.
3 Indico a leitura do todo ou de partes do livro de Osmar Fávero: Cul-
tura popular e educação popular – memória dos anos sessenta, publicado
pela Editora Graal, do Rio de Janeiro, 1983. Vários documentos originais
sobre a Cultura Popular foram ali reunidos, ao lado dos documentos pio-
neiros de Paulo Freire e de sua equipe do Nordeste. Praticamente todas
as citações trazidas a este artigo foram tiradas deste livro.

79
é como sujeito que ele deve participar do
mundo da cultura e da natureza4.

Cultura é tudo o que o homem agrega à


natureza; tudo o que não está inscrito no
determinismo da natureza e que nela é
incluído pela ação humana. Distinguem-
se na cultura seus produtos: instrumentos,
linguagem, ciência, a vida em sociedade e
os modos de agir e pensar comuns a uma
determinada sociedade, que tornam possí-
vel a essa sociedade a criação da cultura5.

O trabalho de transformar e significar o mundo equivale à


vocação cultural que transforma e significa o próprio homem.
E, mais do que uma prática coletiva, como em certas espécies
de animais, ele é culturalmente social. Em tempos em uma forte
e diferenciada tradição marxista fazia tanto as histórias quanto
a cultura emergirem do trabalho, compreendia-se que é atra-
vés e por meio desta ação orgânica e socialmente necessária
e motivada que uma sociedade historicamente seria edificada.
E é através dela que o animal homem se converte em um ser
humano, à diferença de todos os outros seres com quem com-
parte um mesmo planeta, um criador da cultura.
De igual maneira, também a consciência do homem -
aquilo que permite a ele não apenas conhecer, como os animais,
mas conhecer-se conhecendo – é o que lhe faculta transcender
simbolicamente a um mundo naturalmente “dado” por uma
antecedente natureza de que ele é parte e sobre o qual age, em
direção a um mundo simbolicamente “construído”, como o
resultados coletivos de uma ação – a palavra práxis seria então
muito usada - que acompanha na e através da história o traba-

4 Centro Popular de Cultura de Belo Horizonte, O que é cultura popular,


Cultura Popular e Educação Popular, 1962, p. 83. (...).
5 MEB. Cultura popular: notas para um estudo, op. cit., p. 78.

80
lho de homens e de mulheres. Um trabalho por meio do qual
os seres humanos saltam do sinal ao signo e dele ao símbolo,
agindo de maneira transformadora sobre o mundo que eles
criam, na mesma medida em que interativamente agem sobre
eles próprios, e se transformam. Assim, a consciência humana,
produto do trabalho, é também construída no processo da his-
tória e, como um pensar coletivo sobre o mundo através do
trabalho, torna-se um pensar social na e sobre a história, pro-
duto e palco do trabalho e da cultura. As interações entre a
pessoa humana e a natureza, assim como as que se realizam
entre as pessoas umas com as outras - mediatizadas pela natu-
reza através da cultura - não são somente sociais. Elas são
socialmente históricas, e devido a uma dupla razão. Primeira:
porque elas se constroem no interior do processo da história.
Segunda: porque elas constroem a própria história, que não é
outra coisa mais do que o trabalho humano destinado a criar e
significar as diferentes dimensões de uma cultura, dentro e atra-
vés da qual comunidades humanas habitam o “seu mundo”.
Ao transcender um mundo dado pela natureza e ao cons-
truir, material e simbolicamente um mundo de cultura, o homem
se afirma, por sua vez, como criador de suas próprias condições
de existência e como sujeito da história.
Criando e recriando, integrando-se às con-
dições do seu contexto, respondendo a seus
desafios, transcendendo, lança-se o homem
num domínio que lhe é exclusivo o da His-
tória e o da Cultura6.

Ser o sujeito da história e ser o agente criador da cul-


tura não são adjetivos qualificadores ser humano. São o seu
substantivo. Mas não constituem ainda a sua essência. Pois
são dinamicamente, dialeticamente - tal como a maioria dos

6 Paulo Freire, em Cultura popular e educação popular – memória dos


anos sessenta, página. 116.

81
autores dos anos sessenta preferia escrever - um momento do
seu próprio processo ascendente, socializante e convergente de
humanização.
Com uma ênfase bastante marcada pela idéia de história,
como palco de toda a trajetória de humanização através do
trabalho de criar cultura, toda e qualquer a ação humana existe
no tempo. Existe ao longo de sucessões de tempos concretos e
é, portanto, conjuntural. Ela vale, em todas as suas dimensões e
vocações, como algo determinado, entre condições dadas pela
natureza e situações impostas por estruturas de vida, sentido e
poder de uma formação social.
Pois a cultura que deveria “acontecer”, em princípio, como
a realização da liberdade do homem sobre o mundo, na prática
histórica de sua produção pode realizar-se como uma contin-
gência da perda da liberdade de homens concretos, no interior
de mundos sociais colocados sobre o domínio hegemônico
de outros homens. Assim sendo, podem existir – e por toda
a parte existem - condições estruturais de legitimidade e, ao
mesmo tempo, de “ilegitimidade” de uma dada cultura. Ou de
sua “autenticidade”, como os documentos da época preferem
escrever.
A cultura é histórica. A iniciativa humana
que cria a história é precisamente a cultura.
A história não é mais que o desenvolvi-
mento do processo pelo qual se opera a
mudança dialética da Natureza em Cul-
tura, vale dizer, de mundo natural a mundo
humano. Logo, uma cultura a-histórica
é um contrassenso. Em verdade, sendo
o sujeito da história por ser o criador da
cultura, as formas históricas das criações
culturais devem situar-se na linha das exi-
gências de realização do homem. Existem
valores essenciais que a cultura deve encar-
nar em situações históricas infinitamente
variáveis, justamente por serem valores

82
constitutivos do ser-homem (sem estes a
cultura é desumanizante e alienante).
Uma determinada cultura histórica é
autêntica quando permite que tais valores
se tornem carne e, por eles, a construção
de-um-mundo-para-o-homem. Nesse caso,
a cultura se torna expressão autêntica da
real consciência histórica do homem (do
grupo, da nação, da época)7.

A oposição estrutural entre modos sociais de participa-


ção na cultura é o que explica a cultura popular (com iniciais
minúsculas agora). No contexto das sociedades latino-america-
nas, essa seria então uma das faces visíveis da relação negada de
uma humanizada e liberada “universalização da cultura”. Em
sociedades regidas pela desigualdade a exclusão e a hegemônica
imposição de símbolos, saberes e significados de uma classe
dominante sobre as classes dominadas (subalternas, populares,
etc.), o povo vive a experiência de uma cultura imposta, ao lado
daquela que, em suas margens liminares de liberdade, ele logra
criar como “sua cultura própria”.
Frente a uma cultura dominante, a cultura popular é uma
cultura subalterna. E em tal sociedade desigual, tanto a cultura
hegemônica dos dominadores quando a cultura subalterna dos
dominados configuram-se como culturas desigualmente “alie-
nadas”. São culturas que tanto para o “senhor” quanto para o
“servo” não espelham a realidade de um mundo em que ambos
antagonicamente vivem, no sentido de que, de um lado e do
outro, ambos não são capazes de “afirmar e expressar” relações
universais e solidárias de reconhecimento entre os homens e entre
as suas consciências. A cultura se constitui, ela mesma, então,
como um instrumento de dominação entre sujeitos e entre gru-
pos humanos. Eis então a cultura agora carregada de adjetivos,

7 Ação Popular/Cultura Popular - Documento de orientação de ações polí-


ticas aos militantes, página 17. Grifos dos autores.

83
bem na contramão de como agora as antropologias preferem
pensar uma cultura (quando a pensa ainda) ... “sem aspas”.
Sempre que um elemento da cultura passa
a ser exclusivamente de um grupo humano
ou de uma classe social, e que o internacio-
nalismo universal da cultura é negado pelas
condições concretas de sua apropriação
pelo homem, a cultura é instrumento de
poder e dominação de uns sobre outros. É
uma cultura alienante, porque não é huma-
nizante, já que nega o universal do homem.
(Elementos de cultura são: as idéias expli-
citadoras e interpretadoras da realidade;
os valores que se oferecem para a opção
em liberdade; as técnicas de transformação
efetiva da realidade, os bens materiais que
dela resultam e que alimentam a vida do
homem em níveis crescentes de bem-estar e
segurança, etc.). Seu destino universal deve
encarnar-se nas condições históricas con-
cretas que permitem sua comunicação real
aos homens pelos quais e para os quais se
elabora: só assim a cultura é autêntica8.

Dito de outra forma, no interior de uma sociedade desi-


gual e regida por uma diferenciada desigualdade que abarca
todos os setores de uma vida social, das relações de produção
de bens materiais às relações simbólicas de criação e comunica-
ção de significados e valores, as culturas criadas e vividas por
pessoas, grupos e classes subalternas são, elas próprias, regidas
por uma autonomia social e simbólica restrita.
De acordo com os documentos dos movimentos de cul-
tura popular dos anos sessenta, sob o poder simbólico de uma
“cultura dominante”, a cultura-que-o-povo-cria, traduz a sua

8 Ação Popular/Cultura Popular - Documento de orientação de ações polí-


ticas aos militantes, página 28.

84
própria condição de objeto, na conjunção do que lhe é cultural-
mente imposto, com aquilo que ele ainda consegue representar
como propriamente “seu”. Como uma “cultura dominada e
alienada”, ela não expressa para os subalternos a realidade
social através dos valores de uma ideologia – e um repertório de
imaginários - autônomos de classe. Ela é uma cultura-do-povo,
sem chegar a vir a ser uma cultura- para-o-povo. Ou, em outros
termos, ela reflete uma “classe em si”, sem traduzir-se como
uma “classe para si”.
De muitos modos e através de inúmeros artifícios de comu-
nicação e de inculcação de idéias, tende então a ser realizado
um trabalho contínuo de bloqueio e colonização de todas as
“manifestações populares” que possam vir a expressar a sua
própria condição de classe e, também, um horizonte histórico
propriamente popular.
O domínio da cultura erudita sobre a popular é ativo. Ele
mobiliza recursos, canais, meios, pessoas especializadas, gru-
pos de controle repressivo e de propaganda, assim como de
educação em suas múltiplas alternativas. Ele atualiza e recria
técnicas, ele inova, amplia e testa suas estratégias. Ele absorve,
esvazia; retraduz, resinifica e invade continuamente domínios e
formas de expressão cultural do povo.
Ora, inserir a cultura na história e depois fazer a crítica
histórica da cultura não representa uma descoberta dos movi-
mentos de cultura popular dos anos sessenta. Mas tomar tal
crítica um ponto de partida ao propor um trabalho vivido como
e na história, através da cultura, foi uma ideia de algum modo
nova, e um tipo de dispersa prática até então não realizada de
maneira tão aberta e sistemática no Brasil.
Os movimentos de cultura popular partiam da denúncia da
intenção de controle hegemônico e político que se oculta sob as
vestes das propostas “oficiais” de trabalho social com o povo,
assim como preconizavam uma presença alternativa de efeito
político através de uma ação pedagógica de teor cultural. Tais
experiências subordinavam a ideia de “desenvolvimento” à de

85
“história”, e pensavam a história como o lugar cujo horizonte
pessoal, social e alargadamente humano é a “libertação”. Entre
as suas variantes eles diferenciadamente alteravam vocabulá-
rios. Substituíam “comunidade” por “classe”, “organização”
por “mobilização”, “participação” subalterna no “desenvol-
vimento” por “direção popular” do “processo da história”,
“mudança de atitudes” por “conscientização”, “educação fun-
damental” por “educação libertadora”, “desenvolvimento de
comunidade” e “promoção cultural” por “ação cultural” (revo-
lucionária, em alguns documentos) realizada como e através de
projetos e processos de instauração de uma múltipla “Cultura
Popular”.
Se por toda a parte existe uma variada presença de uma
“invasão cultural” do tipo erudito/dominante, sobre uma
diferenciada cultura popular, uma sociedade regida pela desi-
gualdade e pela oposição entre classes sociais deveria gerar
insurgentemente uma ampla “ação” também cultural, como
um múltiplo projeto de ruptura politicamente social frente à
desigualdade, a injustiça e a marginalização de pessoas, comu-
nidades e classes populares.
Este é o momento em que as propostas de Cultura Popular
da década dos sessenta propõem uma arrojada – e ilusória, ao
ver de alguns - inversão no que então se pensava como sendo
“o processo da cultura”. E era essa ação política de vocação
cultural aquilo que os movimentos de cultura popular imagina-
ram ser a sua contribuição, no bojo dos movimentos e frentes
de luta de que participavam “a serviço do povo” educadores e
artistas “comprometidos”. Comprometidos com o que? Com-
prometidos com um diferenciado – e não raro internamente
conflituado – “projeto popular de libertação”. Algo que, no
limite da prática, entre a teoria, a proposta e a ação direta, cada
movimento buscava estabelecer de acordo com a sua ideologia
e os seus projetos de “construção da história”.
Contra os usos intelectuais vigentes que tradicionalmente
representam a cultura popular como “as tradições do povo”;

86
como um folclore que não resulta das e nem espelha as relações
de poder entre as diferentes categorias de seus autores/atores, os
documentos dos anos sessenta investem, através de ações cultu-
rais que vão de uma “alfabetização conscientizadora”, à música
de protesto, ao teatro, ao cinema, à literatura. E até com a ciên-
cia com algo que, enfim, almejava ativamente envolver artistas,
pesquisadores, educadores, alfabetizadores, configurando no
seu conjunto a proposta de uma Cultura Popular destinada a
retomar a cultura do povo, com o objetivo de recriá-la com o
povo, para conscientizá-lo através dela.
Uma sequência de passagens dos documentos que procu-
raram então propor uma alternativa política de uma educação
popular - como dimensão de algo mais amplo, a Cultura Popu-
lar - poderá ser útil aqui. Ela servirá para permitir que falem os
autores individuais e coletivos da época. Poderá ser útil tam-
bém para acentuar - com a linguagem dos “tempos heroicos”
dos Movimentos de cultura popular, as variantes através das
quais os principais conceitos que nos têm acompanhado aqui,
eram pensados e postos por escrito.
Não se trata de teorizar sobre a cultura em
geral, mas de agir sobre a cultura presente,
procurando transformá-la, estendê-la,
aprofundá-la9.
O fenômeno da cultura popular, no Bra-
sil, não surge somente como uma atitude,
nem somente como consequência de uma
análise. Surge como um movimento, isto
é, como uma ação efetiva com objetivos
determinados, que se cristaliza natural-
mente em organizações - que pretendem
uma cultura popular, que fazem cultura

9 Ação Popular, cultura popular - Documento de orientação de ações polí-


ticas aos militantes, MA60, página 23.

87
popular -, as chamadas organizações de
Cultura Popular.
Tais organizações são assim chamadas, não
porque sejam os sujeitos de uma cultura
autêntica do povo, nem porque “levem
o folclore ao povo”, mas porque preten-
dem agir no sentido da superação, pela
sociedade, dos desníveis entre os diversos
grupos sociais que a compõem.
Para que não se transforme em cultura-pa-
ra-os-trabalhadores, a Cultura Popular
necessita ser uma totalidade que reúna
dialeticamente dois polos distintos e as
vezes antagônicos: integrar os interesses
imediatos do trabalhador individual com
o interesse profundo e objetivo da classe
trabalhadora e, nessa mesma dialética, unir
os interesses particulares da classe traba-
lhadora com os interesses gerais de todo o
povo.
A cultura popular somente é totalidade
quando se transforma em um processo que
permita a livre expansão desta complexa
rede em que se articulam, em interseções
ricas e variadas, motivos subjetivos e pos-
sibilidades objetivas, propósitos de grupos
e paixões individuais, meios disponíveis e
finalidades ambicionadas... Em uma pala-
vra, a cultura popular deve ser a expressão
cultural da luta política das massas, enten-
dendo-se por essa luta algo que é feito por
homens concretos, ao longo de suas vidas
concretas10.
Nossa luta interna de libertação vincula-
se profundamente à Cultura Popular, que

10 Carlos Estevam, A questão da Educação Popular, in: Cultura Popular e


Educação Popular, páginas 40-41.

88
assume em um primeiro momento o sen-
tido de desalienação da nossa cultura,
sobrepondo a valores culturais estranhos
aos nossos, outros criados e elaborados
aqui. Esta é a tarefa fundamental da cul-
tura popular, sobrepor nossa cultura às
culturas estrangeiras, sem perder de vista,
evidentemente, o sentido universal, permi-
tindo um processo de culturalização em
que predomine a cultura brasileira. Em
um segundo momento a cultura popular
assume o caráter de luta, que junto à for-
mação de uma autêntica cultura nacional,
promove a integração do homem brasileiro
no processo-econômico-social e político-
cultural de nosso povo.
Uma cultura popular que leve o homem
a assumir o papel de sujeito da própria
criação cultural, fazendo-o não só recep-
tor, senão criador de expressões culturais
A tarefa “da cultura não é somente a de
um meio político, como um trabalho de
preparação das massas para a conquista do
poder. Estaríamos reduzindo o sentido da
libertação humana ao plano político e eco-
nômico. A tomada do poder revolucionário
não esgota a cultura popular, ao contrário,
abre o caminho para uma criação cultural
autêntica e livre, ou melhor ainda, popular
e nacional” 11.
O movimento de cultura popular surge
no Brasil como reivindicação para opor-
se ao tipo de cultura que serve somente à
classe dominante. É, por sua vez, um movi-
mento que elabora com o povo (e não para
o povo) uma cultura autêntica e livre. O

11 Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, Cultura Popular:


tentativa de conceituação, Cultura Popular e Educação Popular, página 74.

89
movimento de cultura popular se apre-
senta como um processo de elaboração e
formação de uma autêntica e livre cultura
nacional e, por isto mesmo, como uma luta
constante de integração do homem brasi-
leiro a nosso processo histórico, em busca
da libertação econômica, social, política e
cultural do povo. É, portanto, um movi-
mento, por sua vez, de elaboração e de
libertação.12.
Qualquer movimento de cultura deve ter
como diretriz suprema e orientadora do
conjunto de suas atividades, a delibera-
ção de incorporar-se ao esforço comum
desenvolvido pelo movimento popular em
luta pelo alcance de seus objetivos. Esse
propósito primordial se expressa essen-
cialmente no projeto de transformação das
condições culturais que tem desenvolvido
o movimento popular, o que se verifica na
medida em que essas condições deixam de
ser adversas e passam a ser francamente
favoráveis ao avanço do movimento popu-
lar. A presente linha diretriz realidade local,
que servirão de motivação para iniciar um
trabalho efetivo 13.

Em direção oposta à dos usos intelectuais vigentes, que


tradicionalmente submetem a cultura popular “às tradições do
povo”, ou a um folclore que não resulta das e nem espelha as
relações de poder entre os seus diferentes tipos de produtores de
cultura, os documentos dos anos sessenta investem com teorias
e propostas de uma Cultura Popular em processo. Enfim, com

12 Centro Popular de Cultura de Belo Horizonte, O que é Cultura Popular,


Cultura Popular e Educação popular, página 85.
13 Resoluciones del Primer Encuentro Nacional de Alfabetización y Cultura
Popular, página 213.

90
“movimento” que sem perder as suas raízes populares, tenda a
se transformar em uma militante “cultura de classe”.
A construção da história através de uma difícil reconquista
da conciliação entre os homens, e da liberdade do homem como
sujeito individual, e como toda a humanidade, exige, desde o
ponto de vista dos movimentos de cultura popular, um trabalho
político no interior do domínio da cultura, tal como pensada em
seus documentos. Ao lado de iniciativas de organização e par-
ticipação de atores populares em um plano mais diretamente
e assertivamente político, haveria pela frente todo um amplo
“trabalho popular” a ser realizado sobre a cultura e através da
cultura. Assim como um momento da história pode ser o da
tomada do poder por grupos opressores quando submetem os
processos sociais de construção da cultura aos seus interesses,
é necessário o gerar o tempo de um outro momento: o da con-
quista de um poder que recupere não só para o povo, mas para
todos os homens, as dimensões perdidas das relações humanas
do trabalho e da cultura.
A realização de tal momento de história exige que aquilo
que somente aos olhos do ingênuo aparece como um domínio
“natural” e “universal” entre as artes, as ciências, os símbolos e
os valores “puros” deixe de ser o lugar do “puro” pensamento,
coimo uma contemplação da cultura, e venha a ser recuperado
como um lugar político de uma luta em nome de uma radical
transformação social. Eis a razão da Cultura Popular.
Trocado em miúdos, nos termos dos anos sessenta isto
pretendia significar o seguinte: há um espaço concreto de luta
política que se realiza no domínio da cultura. Ele configura uma
luta popular que agindo através da cultura, participa da criação
de sua própria liberdade. A cultura alienada é o solo onde flo-
resce no oprimido uma consciência alienada. Esta consciência
é um nevoeiro que o impede de ver e pensar a dominação tal
como ela se reproduz e oprime. Ela é o que impede o povo de
compreender sob que condições existe e, portanto, ela impede
uma ação política a ser exercida contra ela própria.

91
Na linguagem bem peculiar dos documentos dos primei-
ros anos da década dos sessenta, esta evidência desaguaria no
incentivar e instrumentalizar de modo conscientizador o povo,
para que este se reorganizasse em torno aos “elementos de sua
própria cultura”. Este seria o processo de uma “conscientização
popular” (palavras-chave então) através do qual o sujeito-povo
haveria de se tornar um ator e autor crítico, pelo caminho de
uma reflexão que se traduza e se expresse coletivamente como
uma autêntica “cultura de classe”.
É vocação dos movimentos de cultura popular assessorar
o povo na tarefa de ele vir a tornar-se capaz de se tornar o cons-
trutor de uma “nova cultura popular” a partir de novas práticas
políticas coletivas. Uma cultura agora despojada dos valores
impostos, ilusórios, hegemônicos e dominantes, que refletem
“para o povo” a lógica do polo de poder da sociedade.
Podemos considerar que se estava então trabalhando
com uma expressão única para a qual podem ser atribuídos
três sentidos. Cultura popular envolveria: a) a cultura subal-
terna das classes populares, por oposição à cultura dominante
das classes dirigentes; b) as diferentes modalidades de um tra-
balho realizado conjuntamente entre educadores populares e
grupos populares, dirigido à produção de “outra consciência”,
de uma outra cultura e de uma outra ordem social; c) o resul-
tado, nunca concluído, de tal trabalho, como uma retotalização
de toda uma “cultura nacional”, sobre as bases de uma “cul-
tura popular liberada”. Uma cultura, vimos já, que afirme a
primazia do reconhecimento e da liberdade entre os homens,
realizada em um primeiro momento como uma “cultura de
classe”: a das classes populares. E, a seguir, como a cultura que
permitindo vislumbrar o fim das relações antagônicas entre as
classes sociais deveria, em uma sociedade igualitária e humani-
zada, realizar-se como uma “cultura universal”.
Portanto, a Cultura Popular tenderia a definir-se como a
prática de uma relação de compromissos entre movimentos de
cultura popular e movimentos propriamente populares, atra-

92
vés da cultura. Deveria assinar-se como o projeto de realização
coletiva de tal prática dialética e dialógica. Deveria tender a
realizar-se, finalmente, como o processo e o produto de tal
acontecer social.

Hoje, aqui onde estou agora, entre a vocação do antropólogo


e a prática da educação popular

Narrei o que vi e vivi acontecer em tempos em que a edu-


cação pensou-se a si mesma e desejou realizar-se como e através
da cultura. Começando este texto com o retorno de seres que
alguns livros meus tornaram atores e atores e, depois, com con-
fidências minhas, retorno a mim mesmo para encerrar o que
escrevo.
Hoje é um dia do final de novembro de 2016. Estou em
Arraial da Ajuda, no Sul da Bahia. Venho de um dia inteiro em
dois assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais
sem Terra. Em um deles há uma Escola de Agroecologia e Agro-
floresta. Nela encontrei reunidos cerca de setenta trabalhadores
rurais e professoras de escolas do campo, que vieram de cinco
estados do Nordeste para uma nova etapa de um “curso de for-
mação de militante”. Algumas palavras ditas ou escritas entre
a sala e as varandas onde grupos de participantes se reuniam
durante alguns momentos para lerem e comentarem um mesmo
texto, evoquei, cinquenta e dois anos depois, rostos, gestos e
palavras que não seriam muito diferentes dos que me acolhe-
ram “nessa trilha” quando eu era ainda um estudante.
Quando me vi diante deles, convidado a dizer algumas
palavras ao início de uma “tarde de trabalhos”, uma vez mais,
o educador popular de 1964 e o antropólogo de 1974. E tantos
anos depois revisitei no que falei, entre outras tantas, algumas
palavras que povoaram este escrito do começo ao fim e que ao
longo dos anos ouvi e aprendi a dizer, ora em uma sala de aulas
de universidades, ora em cenários como o de ontem, no Assen-
tamento Bela Manhã, no município de Prado.

93
Quase injustamente esquecido hoje, entre nós, quero
encerrar este escrito entre ditos-quase-mitos, confidências e
relatos de memórias, com uma lembrança de um antropólogo.
Um criador de idéias e de universidades que foi importante, tal-
vez mais como um homem militante e um pregador de palavras
insurgentes. Tal como ele, muitas e muitos de nós carregamos,
não sei o peso, não sei se o destino de havermos sonhado, pen-
sado e agido muito, e talvez realizado na prática muito pouco.
O desabafo é de Darcy Ribeiro, e são palavras não muito
diversas das que ouvi junto a Paulo Freire, a Florestan Fernan-
des e a tantas outras pessoas que, como eu, viveram os “anos
sessenta” entre imaginários, trilhas e trabalhos sempre “na fron-
teira” entre a ciência e a prática política. Uma prática ontem e
hoje realizada como educação e através do que imaginamos que
era e que poderia vir a ser... a cultura.
Sou um homem de Causas. Vivi sempre
pregando, lutando como um cruzado por
causas que me comovem. São muitas,
demasiadas: a salvação dos índios, a esco-
larização das crianças, a reforma agrária,
o socialismo em liberdade, a universidade
necessária... Na verdade, somei mais fra-
cassos do que vitórias nas minhas lutas.
Mas isso não importa. Seria horrível ter
estado ao lado do que se venderam nessas
batalhas.

94
ADENDO AO CAPÍTULO

O CONCEITO DE CULTURA – UM DOCUMENTO


TRADUZIDO E EDITADO PELO MOVIMENTO DE
EDUCAÇÃO DE BASE NO COMEÇO DOS ANOS 60

Q
uando não existiam ainda no Brasil programas regu-
lares de formação de antropólogos, o Movimento de
Educação de Base traduziu e distribuiu entre educa-
doras e educadores de todos os sistemas regionais e locais um
amplo estudo do antropólogo norte-americano Leslie White.
Em seguida elaborou e distribuiu também um outro documento
referente à cultura.
O MEB foi um movimento extremamente ativo, aberto e
criativo. Não me lembro de outra qualquer instituição dedicada
à educação de populações rurais no Brasil que tivesse em seu
quadro, como profissionais contratados: duas pedagogas, um
matemático, uma psicóloga, uma assistente social, um soció-
logo, um cientista político, um antropólogo, uma farmacêutica
(e eu, um estagiário e ainda “estudante de psicologia”. E eu
fui contratado com a missão específica de aprofundar estudos
locais sobre “culturas populares”.
Terá sido em seu tempo a agremiação de foro nacional que
mais a sério e mais a fundo levou os estudos sobre a cultura e a
relação entre cultura e educação.
Antes de trazer o documento original do Movimento de
Educação de Base a respeito da ideia de cultura, quero transcre-
ver aqui momentos do trabalho de Osmar Fávero e Elisa Cota
sobre as fichas de cultura tal como elas foram originalmente
propostas para o Sistema de Alfabetização de Paulo Freire. Falo
do momento em que os autores do artigo cuja leitura eu enfati-
camente recomendo, o Movimento de Educação de Base, desde

95
sua origem atento às ideias e propostas político-pedagógicas de
Paulo Freire, estabeleceu os seus fundamentos pedagógicos sobre
as idéia de um dos mais presentes e influentes pensadores dos
começos dos anos sessenta no Brasil, o padre jesuíta Lima Vaz.
Ele teria exercido uma influência fundadora não apenas junto a
militantes cristãos da Juventude Universitária católica e junto a
educadoras e educadores do Movimento de Educação de Base,
mas também sobre militantes políticos da então recém-criada
Ação Popular, através da iniciativa de estudantes da Juventude
Universitária Católica. Daqui em dia eis a longa transcrição de
As fichas de cultura do sistema de alfabetização de Paulo Freire
– um ovo de Colombo, em suas páginas de 3 a 51.
Com base nesses elementos, Pe. Vaz propõe
uma definição de cultura que passa a ser
reproduzida e utilizada largamente pela
Ação Popular, da qual se desdobram suas
propriedades:
Cultura é o processo histórico (e, portanto,
de natureza dialética) pelo qual o homem,
em relação ativa (conhecimento e ação)
com o mundo e com os outros homens,
transforma a natureza e se transforma a
si mesmo, constituindo um mundo quali-
tativamente novo de significações, valores
e obras humanas, e realizando-se como
homem neste mundo humano. (in: Fávero,
1983, p. 16-18).
Em decorrência dessa definição, são fixa-
das as propriedades da cultura:

1 Ver: Osmar Fávero e Elisa Cota, da Universidade Federal Fluminense:


As fichas de cultura do Método de alfabetização Paulo Freire – um ovo
de Colombo. Ele foi originalmente publicado na Revista Linhas Críticas,
v. 18 n. 37, set./dez. 2012. Voltarei a este artigo no último escrito deste
livro.

96
A cultura é histórica, pois a iniciativa
humana que cria a história é precisamente
a cultura. A história não é mais que o
desenvolvimento do processo pelo qual
se opera a passagem dialética da natureza
em cultura, ou seja, do mundo natural em
mundo humano.
A cultura é social, pois só tem sentido e
validez enquanto processo de comunicação
das consciências. O mundo cultural, como
mundo humanizado, sendo mundo-para-
mim é mundo-para-o-outro.
A cultura é pessoal, pois é por excelência
iniciativa de liberdade, enquanto supera o
determinismo da natureza. Logo, a comu-
nicação das consciências [...] só pode ser
entendida na forma de livre apelo à reali-
zação da pessoa, ou seja, à aceitação ativa
e livremente consentida das significações
e ideias do mundo natural em que o indi-
víduo se inscreve. Só enquanto pessoal a
cultura é mediadora de libertação, isto é,
de aprofundamento da consciência-de-si,
de passagem do homem “coisa e objeto”
(natureza) para o homem “sujeito e pes-
soa” (história).
A cultura é universal. Pelo conteúdo
humano de suas significações (aspecto sub-
jetivo) e pela destinação humana de suas
obras (aspecto objetivo), o processo cul-
tural tende a constituir-se em elemento de
mediação entre todos os homens.
Essa universalidade é concreta, pois
historicamente encarnada. E é como inten-
cionalmente universal que a cultura deve ser
dita popular e também nacional: enquanto
integra as consciências dentro da nação no
plano de sua realização humana e as situa
na linha do movimento histórico essencial

97
de universalização efetiva e de criação de
uma cultura para todos os homens.
A tarefa de criação cultural teria, então,
ainda segundo Pe. Vaz, duas direções:
transformação da natureza e comunicação
com os outros homens. A primeira direção
sintetiza o aspecto da cultura como luta;
é tarefa concreta em relação à natureza e
ao trabalho propriamente dito. A segunda
identifica-se com esta afirmação: toda obra
de cultura é uma palavra dirigida ao outro.

Movimento de educação de base

Fundamentação do programa para 1965

1ª parte
Estudos Sociais

Cultura

Neste item abordaremos cultura sob os pontos de vista


filosófico e antropológico. Estudaremos, também, os processos
culturais e o que entendemos por cultura popular.

1.1.1. Conceito de Cultura na Filosofia

A cultura se distingue da natureza e a ela se opõe: esta é


sua caracterização inicial. A natureza exprime o que é dado ao
homem; a cultura, o que é feito por ele. Por outro lado, o mundo
cultural não se opõe, estaticamente, ao mundo natural, mas é
sua transformação dialética em mundo humano. Enquanto o
homem nega, pela “práxis”, o mundo natural como mero dado
ou em-si, ele o afirma como mundo cultural, ou seja, transfor-
mando para-o-homem.

98
1º- Há, pois, dois aspectos no conceito filosófico de cul-
tura:
a. aspecto subjetivo (que é o espírito subjetivo da cultura)
que exprime a cultura como processo de desenvolvi-
mento do sujeito que edifica o mundo cultural: seja o
indivíduo, em grupos sociais mais vastos (nações, etc.),
seja a humanidade, que tende a constituir um sujeito
cultural universal.
b. aspecto objetivo (que é o espírito objetivo da cultura)
que exprime a cultura como processo de desenvolvi-
mento do mundo a ser transformado pela “práxis”
humana, ou a sua humanização: são as “obras culturais”
que constituem o mundo-do-homem-e-para-o-homem,
em permanente evolução.

Em seu aspecto subjetivo, a cultura se desdobra, por sua


vez, em duas dimensões que partem de uma única origem, a
saber, do ato de transformação dialética do mundo:

• dimensão de consciência, que é a especificação humana


da cultura em termos de idéias, valores, projetos (reli-
gião, filosofia, ciências, arte, política...);
• dimensão do agir, que é a especificação humana da
cultura em termos de instrumentos e técnicas de trans-
formação do mundo (normas de convivência, leis
positivas, ciências aplicadas, instrumentos de traba-
lho...).

Podemos, a partir destes elementos, formular uma defini-


ção: “A cultura é o processo histórico (e, portanto, de natureza
dialética) pelo qual o homem, em relação ativa (conhecimento
e ação) com o mundo e com os outros homens, transforma a
natureza e se transforma a si mesmo, construindo um mundo
qualitativamente novo de significações, valores e obras huma-
nas, realizando-se como homem neste mundo humano”.

99
2º- Propriedades da Cultura

a. A Cultura é histórica. A iniciativa humana que cria


a história é, precisamente, a cultura. A história não é
mais do que o desenvolvimento do processo pelo qual
se opera a passagem dialética da natureza em cultura,
ou seja, do mundo natural em mundo humano. Logo,
uma cultura a-histórica, é um contrassenso. Entretanto,
sendo o homem sujeito da História, por ser criador
da cultura, as formas históricas das criações culturais
devem situar-se na linha das exigências de realização
do homem. Há valores essenciais que a cultura deve
encarnar nas situações históricas infinitamente variá-
veis. Por exemplo, os direitos da consciência trazem,
em si, uma exigência de encarnação histórica, justa-
mente por serem valores constitutivos do ser-humano
(sem eles a cultura é desumanizante e alienante). Uma
determinada cultura histórica é autêntica quando
permite a encarnação de tais valores e, portanto, a
construção de um mundo-para-o-homem. Nesse caso,
a cultura torna-se a expressão autêntica da consciên-
cia histórica real do homem (do grupo, da nação, da
época).

b. A cultura é social. Com efeito, a própria sociedade


situa-se na linha do processo cultural, como elemento
essencial de mediação entre as consciências (aspecto
subjetivo da cultura) e como elemento essencial de uni-
ficação das obras culturais, por meio de um conjunto
de significações que podem ser apreendidas pelos indi-
víduos que constituem o corpo social (aspecto objetivo
da cultura). Assim, a cultura só tem sentido e validez
enquanto processo de comunicação das consciências.
O mundo cultura, como mundo humanizado, sendo
mundo-para-mim, é mundo-para-o-outro. Na medida

100
em que esta comunicação se institucionaliza num con-
junto de significações, valores, projetos, instrumentos
ideais (ex: leis, etc.) ou materiais (ex: técnica) temos,
precisamente, a sociedade. O indivíduo isolado, evo-
luindo por “bondade natural” para realizar-se como
homem (Rousseau) é um mito. A cultura é autêntica,
quando sua dimensão social se desdobra plenamente,
isto é, quando suas significações e seus valores podem
ser comunicados em sua plenitude a todas as consciên-
cias (do grupo, da nação, da época).

c. A cultura é pessoal. A dimensão da consciência impõe


à cultura um caráter inalienável de criação humana.
Ela é, por excelência, iniciativa de liberdade, enquanto
supera o determinismo da natureza. Logo, a comuni-
cação das consciências, que se deve estabelecer pela
mediação da sociedade como suporte fundamental das
iniciativas e das obras culturais, só pode ser entendida
na forma de livre apelo à realização da pessoa, ou seja,
à aceitação ativa e livremente consentida das signifi-
cações, dos valores e ideais do mundo cultural em que
o indivíduo se insere. Só enquanto pessoal, a cultura
é mediadora da libertação, isto é, de aprofundamento
da consciência-de-si, de passagem do homem “coisa e
objeto” (natureza) para o homem “sujeito e pessoa”
(história). Como pessoal, a cultura é pluralista. Toda
tentativa de nivelamento ideológico, de humanização
violenta, faz da cultura instrumento de dominação e
alienação e não de libertação e realização.

d. A cultura é universal. Pelo conteúdo humano de suas


significações (aspecto subjetivo) e pela destinação
humana de suas obras (aspecto objetivo), o processo
de criação da cultura é essencialmente universal, isto
é, ele tende, em princípio, a constituir-se em elemento

101
de mediação entre todos os homens. Sendo a consciên-
cia de si ao mesmo tempo consciência universal (pois
para refletir a si deve distinguir-se de tudo o mais...),
a cultura, como aprofundamento da consciência de
si, deve propiciar a abertura das consciências a um
plano de universalidade crescente. Assim, todo o valor
cultural autêntico é intencionalmente universal, isto
é, destinado à realização do homem como consciên-
cia em si, como “ser universal”. Esta universalidade
da cultura não é, entretanto, abstrata, mas concreta,
pois que é, historicamente, encarnada. Assim, a uni-
versalidade concreta, que torna autêntica uma cultura,
reside na possibilidade efetiva da comunicação de suas
significações, de seus valores, ideais e obras, a todas
as consciências que vêm a encontrar-se no âmbito
da presença do mundo cultural em questão. (Assim,
a vertiginosa universalidade abstrata dos sistemas
metafísicos da Índia tendia a justificar, de fato, uma
profunda divisão de consciências numa sociedade de
castas). É como intencionalmente universal que a cul-
tura deve ser dita popular.

1.1.2. Conceito de Cultura na Antropologia

A atividade criadora é aquela, através da qual o homem


expressa sua forma própria de ser existente no mundo. Esta ati-
vidade criadora, em primeiro nível de relações, se realiza através
do conjunto de ações em que transforma coisas da natureza em
objetos de cultura. A casa, a roda, o papel, a máquina, são alguns
destes objetos, que, em maior ou menor grau de elaboração,
representam a resultante do esforço humano, continuamente
envolvido na tarefa de integrar coisas do meio ambiente no
mundo do homem. É através desta interação constante, com
o seu meio natural, que o homem se apresenta como criador
e transformador, neste primeiro nível, de elementos culturais

102
elaborados a partir do material fornecido pela própria natu-
reza, ou a partir de outros elementos culturais mais simples e
anteriormente criados. A solução de algumas de suas necessida-
des fundamentais, provoca, geralmente, a emergência de outras
necessidades e problemas mais complexos. É este o processo
básico, através do qual a cultura está sempre se renovando.
Mas, se podemos apontar os objetivos materiais como ele-
mentos de cultura, podemos também afirmar que não só eles
constituem toda a cultura do homem. É em sua condição de
ser social que o homem realiza a cultura. Integrado em gru-
pos sociais, definidos segundo características determinadas,
o homem se faz agente da cultura, criando e transmitindo a
outros homens os elementos criados. A própria estrutura social
é expressa e modifica, através do tempo, como forma de cul-
tura. A família, as relações mantidas pelos membros da família
segundo da posição que ocupam; as formas de comunicação
social; as estruturas políticas; os sistemas econômicos; o traba-
lho, as formas que assume, o significado que lhe atribuem, as
estruturas que os grupos se impõem por realiza-lo; os elementos
enfim, através dos quais se caracteriza a condição social de um
grupo, de um povo, são expressões de um outro nível cultural,
necessariamente presentes em qualquer sociedade.
A essa mesma condição social em suas múltiplas expressões
culturais, à circunstância, própria do homem, de ser transcen-
dente ao mundo em que realiza a sua cultura, corresponde um
conjunto de símbolos de que ele se arma para comunicar-se em
todos os níveis. Corresponde, também, através da explicação
do significado destes símbolos, o estabelecimento e a evolução
das significações que ele dá a si mesmo, aos outros homens, ao
seu meio cultural e à sua cultura.
É próprio do homem criar e integrar em sua cultura; além
de objetos materiais, além das técnicas, através das quais as
criações se renovam; além das manifestações culturais de sua
atividade associativa; as significações dadas a estes objetos e
acontecimentos, através dos quais justifica e expressa sua exis-

103
tência, seus atos, seus temores e suas esperanças. Neste terceiro
nível cultural, encontram-se, por exemplo: as normas de con-
duta, os sistemas através dos quais se procura fazer a justiça
– as crenças e os mitos –, as criações puramente artísticas e os
sistemas de pensamento.
A cultura se compreende pois, como o conjunto integrado
de criações em que o espírito humano se expressa e objetiva,
em busca da resolução de seus problemas e tendências pes-
soais e sociais. Nos três níveis básicos em que nos é possível
dividi-la – nível adaptativo, nível associativo e nível ideológico
(aqui no sentido de nível mental) – cabem, dentro da cultura, as
máquinas, as técnicas de transformação da natureza, as várias
formas de esportes, as criações artísticas, as estruturas e normas
sociais, a organização política, os sistemas jurídicos, o idioma,
as crenças, os sistemas filosóficos, todos os símbolos e sinais,
as cerimônias, os ritos de passagem, as tradições, as ideologias
e as formas pelas quais se expressam as religiões. A cultura é,
assim, toda a expressão da atividade criadora humana, sem-
pre intencional e participada por todos os homens, enquanto
membros de sociedades. E, como tal, é construída por coisas e
acontecimentos reais, objetivos, passíveis de observação direta
e indireta. Localiza-se, portanto, nestas coisas, nestes aconteci-
mentos, no tempo e no espaço. Dentro das pessoas, na forma
de crenças, de emoções e reflexões culturalmente determinadas;
dentro de todos os processos básicos de comunicação e, final-
mente, dentro dos objetos materiais;
Como características fundamentais, através das quais a
cultura se destaca como realidade específica, sabemos que ela é:
a) transmissível de uma a outra geração, pelo convívio social e
através da aprendizagem, não por herança biológica, como por
exemplo, a cor da pele ou a altura das pessoas; b) uma atividade
exclusivamente humana; c) um conjunto integrado de criações;
não um acúmulo desordenado de elementos materiais; d) uma
classe de coisas e acontecimentos dependentes de simbolização
e considerados dentro de um contexto extra somático.

104
Se estas tendências e exigências humanas estão presentes
em todas as pessoas, por serem inerentes à sua própria essência,
podemos então afirmar que não há indivíduos que não partici-
pem da cultura. Se estão presentes em todas as pessoas, estarão,
necessariamente, em todos os grupos sociais de que elas fazem
parte. Neste sentido, podemos afirmar que não há grupo social
sem cultura.
Na consideração do fenômeno cultural, é importante
destacar seus elementos e seus processos, através dos quais a
cultura se estrutura, se transmite e se modifica.

Os elementos culturais

• Traços culturais: é a menor unidade a que a cultura se


pode reduzir.
• Complexos culturais: é todo o conjunto de traços
estruturados em torno de uma atividade básica.
• Padrões culturais: são as orientações básicas, domi-
nantes e significativas em uma determinada cultura.
• Áreas culturais: são regiões que se aproximam pela
similitude evidente de traços e complexos culturais.

Tomemos o acontecimento MUTIRÃO, enquanto forma


de trabalho coletivo, e tentemos uma ligeira análise de seus
elementos, a partir do que vimos como características da cul-
tura.
Um conjunto de homens, trabalhando a terra, representa
uma atividade criadora. Sobre uma determinada extensão de
elementos naturais, estes homens exercem uma atividade inten-
cional. Tem um objetivo e trabalham, segundo determinadas
técnicas, que aprenderam e que devem promover o aparecimento
do objetivo que os levou ao trabalho. O campo se modifica, a
natureza se transforma; abate-se a mata, limpa-se a terra, ara-se
o chão, os sulcos são feitos, o solo adubado e depois semeado.
Como instrumentos de trabalho, os homens que participam do

105
mutirão possuem foices, enxadas e arados, feitos de determina-
das maneiras definidas, segundo o objetivo que a eles se dá. Eis
alguns objetos constituintes do que temos chamado elementos
materiais da cultura. As coisas – foice, enxada ou arado – cons-
tituem estes objetos materiais. As técnicas, através das quais
se usa a enxada e se trabalha com o arado, a forma objetiva
padronizada como se ara e aduba, semeia e colhe, são aconteci-
mentos de onde tais elementos materiais se originam.
Os participantes do mutirão associaram-se como um grupo
social. Não só agem em função de objetivos comuns, como
também regulam essa ação mediante um conjunto de normas,
de tradições, de costumes. Ocupam postos distintos, comuni-
cam-se de formas determinadas, esperam que aconteçam certas
coisas, que tradicionalmente ocorrem em tais circunstâncias. O
comportamento destes homens pode ser previsto por quem os
conheça, de vez que são culturalmente determinados.
Quando se falam, usam palavras de um idioma comum.
Através delas se entendem, e com elas se referem às coisas e aos
acontecimentos. Cada palavra deste idioma pode ser tomada
como um traço cultural. O idioma, como um todo, constitui um
complexo cultural.
Durante o mutirão, os homens cantam, por exemplo, uma
determinada canção em que narram uma estória, um mito, ou
em que descrevem o que estão fazendo. A canção, sua forma,
seu conteúdo, mesmo a maneira como é cantada, constituem
também elementos de cultura.
O mutirão, como um todo, pode ser considerado como
um complexo cultural. Cada um dos elementos que o consti-
tui é, em referência a ele, um de seus traços. A roupa que os
homens usam, a maneira como cavam, os instrumentos com
que trabalham, as canções que cantam, a estória destas can-
ções, são traços de um mesmo complexo cultural. Há padrões
culturais que se podem destacar da unidade de comportamento
adotado por todos os participantes do mutirão e se fazer notar
através de todos os seus gestos, atitudes e atividades pessoal-

106
mente realizados; sendo, cada um deles, socialmente aceito e
culturalmente determinado. Os elementos culturais presentes
no complexo cultural, mutirão, estão todos integrados. Não se
trata de coisas e acontecimentos sem relação qualquer uns com
os outros. Trata-se de processos e resultados destes processos
ligados entre si, o suficiente para serem compreendidos como
partes de um mesmo todo cultural.
Os homens, que participam do mutirão, fazem-no livre-
mente, porque acreditam em certos fatos. Acham, por exemplo,
que os homens se devem ajudar, uns aos outros. Acreditam que
o trabalho é necessário a todo o homem. Julgam que unidos
podem realizar, em menos tempo, mais trabalho. O conjunto
destas crenças pode-se compreender, também, quando expli-
citados, em palavras ou nas atividades em que o mutirão se
expressa, como elementos culturais.
Em termos globais, compreendemos como áreas cultu-
rais aquelas que, mesmo independentemente de proximidade
geográfica, apresentam um número razoável de complexos cul-
turais identificados, claramente, como semelhantes.

1.1.3. Os processos culturais

A cultura se apresenta, sempre, como realidade objetiva


posta em movimento, em mudança constante, em todas as for-
mas porque se expressa:
a. os objetos, que são elementos materiais da cultura,
como um vaso de barro, a aparelhagem necessária à
irrigação de um campo de arroz, etc.;
b. os símbolos e combinações significativas destes símbo-
los, como as palavras de um sistema linguístico, alguns
cantos e contos de um povo – em que as palavras deste
sistema se organizam -, um conjunto de leis e normas,
os mitos, algumas crenças, a globalidade de elementos
com que determinado grupo social reflete o mundo e
justifica sua conduta;

107
c. os acontecimentos de que estas coisas se originam, e
em que se modificam, como o trabalho de um arte-
são, a atividade padronizada através da qual se fazem
bonecos de barro, ou objetos de couro;
d. as formas sociais pelas quais os homens organizam e
estruturam os elementos de sua dimensão social, como
a família, a comunidade e o grupo posto em trabalho
comum no mutirão.

1. A forma de um vaso de barro, por exemplo, pode ser


modificada ao passar de um a outro grupo social, ou
mesmo dentro de um só grupo, na passagem de uma
a outra geração. Em alguns casos, pode modificar até
mesmo a sua função, modificando, também, o seu sig-
nificado específico. O mesmo vaso que, numa cultura
ou em uma época, é utilizado como recipiente de água,
pode, em outra cultura, ou na mesma cultura, em outra
época, tornar-se objeto de decoração. Num terceiro
grupo social, o mesmo vaso pode ser posto a serviço
de atividades religiosas, e, como tal, entendido como
objeto sagrado.
2. A aparelhagem necessária à irrigação de um campo de
arroz transforma-se com o surgimento de um novo ins-
trumento. Este novo instrumento tanto pode ser criado
por algum membro do próprio grupo, onde o aparelho
é usado tradicionalmente, como pode ser trazido por
algum membro de outro grupo.
3. As palavras de um sistema linguístico estão em cons-
tante mudança: em sua forma, em sua função, em seu
significado. Elas emigram de um a outro povo. Jun-
tam-se a outras e com elas formam novas palavras.
Renovam-se. Desaparecem durante longo tempo e
surgem, mais tarde, com uma nova função lógica. Per-
dem-se. A observação de dois textos – um em português
atual e outro em português medieval – é suficiente para

108
deixar clara a evolução da língua nacional, como um
sistema em mudança contínua.
4. Alguns contos e cantos de um povo desaparecem com o
correr do tempo. Outros são modificados aos poucos,
por exemplo, se o grupo social passa a ter uma nova
economia de subsistência; se passa a viver do cultivo
do milho e não mais da caça e da pesca; se é deslocado
de uma zona próxima ao mar para uma outra distante
dele, situada em vales dispostos ao longo de monta-
nhas.
5. Um conjunto de leis e normas, vigente em determinado
grupo social, modifica-se também, geralmente, adap-
tando-se a novas situações sociais, ou explicitando
suas partes. Quando um grupo é posto em contato
com outro, suas normas de comportamento podem ser
influenciadas ou influenciar normas do outro grupo.
6. Os mitos, algumas crenças, o conjunto de elementos
com que determinado grupo social reflete o mundo
e justifica a sua conduta, sofrem todos a mesma
mudança; ao passarem de uma a outra geração,
de um a outro povo, ou numa mesma geração de
um mesmo povo, modificam-se de qualquer forma
através do próprio uso, através da difusão de seus
elementos pelos diferentes membros do grupo. Cada
pessoa contribui mesmo com sua parte de novas des-
cobertas favorecendo aos poucos o desaparecimento
de alguns elementos de credibilidade, e a emergência
de outros.

Necessariamente, os acontecimentos em que estas coisas


se originam e que as modificam são também eles processos
contínuos: as técnicas de irrigação, as maneiras de narrar os
velhos contos, as formas de comportamento dentro da família
ou dentro do grupo, a reação provocada pelo estabelecimento
de novos padrões de conduta.

109
É próprio da cultura estar em mudança contínua através
de todos os seus elementos: do sinal que se faz no chão ou nas
árvores, como indicação de um caminho a seguir, aos valores
espirituais, também eles sinais dados às consciências, e nisso
indicadores de rumos.
A História mostra, claramente, a existência de direções
determinadas na evolução cultural dos povos e de toda a huma-
nidade. Cada objeto que sofre, individualmente, uma mudança
qualquer, pode ser compreendido como um traço em movi-
mento, inserido num plano maior, um complexo cultural que
também se modifica. Este complexo cultural faz parte de toda
uma cultura que, através da modificação de seus elementos,
pode ser também entendida como uma realidade que se trans-
forma continuamente, evoluindo. É a esse processo de mudança
cultural, constante e orientado, que se dá, comumente, o nome
de progresso.
Enumeramos, abaixo, alguns destes processos, os que são
realmente mais importantes, e dos quais se originam os outros,
todos responsáveis pelo complexo das mudanças culturais, das
quais, finalmente o homem, também, aparece como agente.

• Transmissão: a passagem, mediante aprendizagem sis-


temática ou assistemática, de elementos culturais de
uma para outra geração, dentro de um mesmo grupo
social.
• Aculturação: a troca de elementos culturais, através
da passagem de traços, complexos e padrões de uma
para outra cultura, quando postas de alguma forma,
em contato.
• Difusão: a aceitação de determinados elementos cul-
turais recém-criados dentro do próprio grupo, ou
importados de um outro, de uma outra cultura.
• Continuidade: a permanência de traços, através dos
seus elementos de fixação, pelos quais as gerações se
comunicam ou se ligam.

110
• Desculturação: o desaparecimento progressivo de tra-
ços antigos em função do aparecimento de outros,
mais recentes.
• Integração: a harmonização, através de mecanismos
organizadores, dos diversos traços de uma cultura.
• Retardamento: uma disritmia na acumulação e
integração de elementos culturais, favorecendo o
desenvolvimento, acelerado, de alguns traços ou com-
plexo, frequentemente, em detrimento de outros.
• Invenção: a resultante de uma nova combinação de
elementos já existentes em determinada cultura.
• Descoberta: uma aquisição nova no campo do conheci-
mento. O aparecimento de um novo elemento cultural
em seu sentido mais pleno.

É através destes processos, numa ação conjunta, sempre


integrada e tendo o homem como sujeito, que as várias culturas
se modificam. Neste sentido, como estrutura organizada e em
processo, a cultura, como atividade humana específica, evolui,
progride e organiza-se em formas mais acabas e complexas ao
longo da História.

1.1.4. Cultura Popular

É um fenômeno histórico que surge em sociedade onde há


um desnível cultural entre os diversos grupos que a compõem;
onde grande parte da população não tem uma participação
ativa, seja no plano cultural, social, econômico ou político.
Com isto, não queremos dizer que todos devem tomar parte
ativa nas mesmas atividades em um mesmo nível, ou que se
deva padronizar ou uniformizar a participação de todos e de
cada membro da sociedade. Não é isso, é claro. Para nós, um
trabalho de Cultura Popular surge também da consciência
dessa marginalização e da necessidade de libertação de um con-
tingente humano que vive à margem do processo cultural.

111
A Cultura Popular surge como consequência do processo
de mudança social. Assim sendo, pretende a participação de
todos na elaboração da cultura da sociedade em que vivem,
bem como, e principalmente, na apreensão e na criação do sen-
tido da cultura, isto é, do que a cultura significa para os homens
dessa sociedade. A Cultura Popular, portanto, está vinculada
a uma ação que não pode estar desligada do povo, isto é, dos
grupos sociais que, por condicionamentos econômicos, políti-
cos e sociais – e especialmente por condicionamentos culturais
– estão marginalizados da cultura (Fundamentação de “Viver é
Lutar”).
“Como vemos, a Cultura Popular, quando é comunicável
ao povo, isto é, quando suas significações, seus valores, ideais
e obras, são destinados, efetivamente, ao povo e respondem às
exigências de realização humana deste povo, em determinada
época, responde, em suma, à sua consciência histórica real. E
é também como universal que a cultura é nacional: enquanto
integra as consciências dentro da nação, no plano de sua realiza-
ção humana, e as situa, assim, na linha do movimento histórico
essencial de universalização efetiva e de criação de uma cultura
para todos os homens. ” (Padre Henrique Vaz).
Como a integração de todos os homens na mesma cul-
tura, vincula-se a uma transformação dos padrões econômicos,
políticos e sociais, a Cultura Popular está também vinculada à
realização de um projeto histórico que pretenda aquelas trans-
formações. Um projeto histórico condizente com uma cultura
elaborada e participada por todos. Um projeto que possibilite a
todo o povo assumir o seu papel de criador e sujeito de cultura
da sociedade em que vive.
Sendo assim, pode-se dizer que Cultura Popular não é um
fenômeno neutro, indiferente. Ao contrário, nasce de um con-
flito e nele desemboca, pois ela existe e se apresenta sempre em
termos de libertação, de promoção humana, no sentido mais
amplo. Donde se conclui que não é possível um trabalho de
Cultura Popular desligado do processo de conscientização. E,

112
por estar ligada a este processo é que ela deve levar sempre a
uma opção. Deve dar possibilidades de opção ao povo, embora
não possa impor essa opção, porque ela deve ser encontrada
pelo próprio povo. Esta opção decorre da plena consciência que
o homem adquire das diferenças e desníveis entre os grupos que
formam a sociedade e da necessidade de uma transformação
dos padrões culturais, políticos, sociais e econômicos que os
determinam.

Bibliografia para aprofundamento deste item

WHITE, Leslie A. Conceito de Cultura. Série B, apostila 1 –


MEB.

CARVALHO, Irene M. de. Introdução aos Estudos Sociais.


Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1964.

PADIM, D. Cândido. OSB. Educar para um mundo novo. Col.


Educar para a Vida. Cad. 6. Petrópolis: Vozes, 1965.

KESSING, Felix M. Introdução Cultural. Rio de Janeiro:


Fundo de Cultura, 1961.

113
ENTRE PLATÃO E PAULO FREIRE

A RESPEITO DE ALGUNS ESTRANHOS E ARCAICOS


COMEÇOS DA EDUCAÇÃO POPULAR

A educação e os ideais da cultura grega

A
leitura mais atenta e constante do que escrevo aqui
será a de um volumoso livro escrito há vários anos por
um alemão especialista na cultura grega clássica. Wer-
ner Jaeger dedicou pouco mais de 1500 páginas de Paidéia – a
formação do homem grego a investigar as origens, as transfor-
mações e os fundamentos das diferentes pedagogias dos gregos
entre Homero e Sólon1.
Da leitura deste livro essencial e de outros quero trazer
para a atualidade da educação e, de maneira especial, da edu-
cação popular, algumas ideias que me parecem ancestralmente
fundadoras. Em um outro estudo, bastante mais longo e demo-
rado do que este, permaneço entre os gregos clássicos para
investigar a presença original da poesia e do teatro como as
primeiras pedagogias da Grécia, ainda no campo das relações
entre cultura e educação. Parto então do suposto de que a pri-
meira paidéia foi a poésis. Mas esta será uma outra conversa.
Para este estudo importa a pesquisa do seguinte:
a. A tradição pedagógica que herdamos em linha direta
dos gregos clássicos foi o humanismo.
b. O humanismo de origem grega não se concentra no
indivíduo tomado em si-mesmo e em sua independente
individualidade.

1 Outros breves escritos meus a redor dos ideais da paidéia grega podem
ser encontrados entre as páginas de A flauta de prata – escritos sobre o
saber e a educação, publicado pela Editora CRV, de Curitiba, em 2019.

115
c. se o ideal da paidéia grega é realizar em cada pessoa
educanda a plenitude de si-mesmo, como uma autên-
tica, perfeita e equilibrada obra de arte realizada em
uma pessoa, o lugar social e simbólica de aferição de
tal perfeição é a polis, a comunidade social e política
em que uma vida se realiza e onde encontra o seu sen-
tido.
d. em alguns momentos da história da educação grega
surgem intenções de filósofos e/legisladores no sentido
de extensão da educação a pessoas e coletivos de pes-
soas que não os nobres, os guerreiros, os senhores e
seus herdeiros. Será quando Werner Jaeger falará em
uma “educação popular”.

Vivemos em qualquer sociedade uma dupla dimensão ao


longo de nossas vidas e sobretudo, após os tempos de nossa
maturidade. Vivemos de algum modo até mesmo uma dupla
existência. Em uma delas somos seres voltados a nós-mesmo,
à nossa individualidade, à construção de uma pessoa, de
uma personalidade, e uma vocação indivisível e irrepetível de
experiência humana. E somos também a coletividade em que
existimos, e à qual devemos a nossa própria existência indivi-
dual em todas as suas dimensões.
Não somos apenas “idiotas”, lembrará Werner Jaeger,
somos também “políticos”. E no difícil equilíbrio entre a nossa
“idiotice” e a nossa “politicidade” que a pedagogia grega irá
buscar os seus difíceis caminhos.
Na medida em que o engloba no seu cos-
mos político, o Estado dá ao homem, ao
lado da vida privada, uma espécie de
segunda existência (...). Todos pertencem
a duas ordens de existência, e na vida do
cidadão há uma distinção rigorosa entre o
que lhe é próprio (...) e o que lhe e comum
(...). O homem não é só “idiota”; é político

116
também. Precisa ter ao lado da habilidade
profissional, uma virtude cívica geral, a
(expressões gregas) pela qual se põe em
relação de cooperação e inteligência com
os outros, no espaço vital da polis. (Paidéia
– 145)2.

Sem deixar de reconhecer o valor e a qualidade das criações


culturais de povos anteriores aos gregos e seus contemporâneos,
situados em um Oriente entre próximo e distante, são raros
os investigadores das origens pedagogia como uma ciência-e
-prática, e da educação como uma essencial vocação social da
cultura, que deixaram de reconhecer a Grécia Clássica como o
cenário cultural em que o trabalho de formar pessoas de forma
regular e motivada começou a ser pensado e vivido como algo
mais do que uma prática, uma tekné destinada a pré-estabele-
cido e repetitivo ensino-aprendizagem. Como um trabalho mais
dirigido a memória do que ao conhecimento e mais à disciplina
do que à liberdade, que regular e conservadoramente se trans-
mite ao longo de gerações de pessoas e das eras.
Entre os gregos clássicos a educação tornou-se um pro-
jeto demorado de formação da pessoa para a polis, como uma
questão aberta e, logo, como um dilema a ser posto em debate e
dialogado. Uma paidéia pensada como um que-fazer complexo
e diretor de destinos, que precisava ser filosoficamente refle-
tido, filosoficamente constituído e politicamente estabelecido,
no sentido grego original destas palavras.
Entre Homero e Sólon, o sujeito-livre deveria ser edu-
cado para chegar a atingir a aretê, através da sequência de

2 Tenho comigo duas edições deste livro em Português. Uma, mais antiga, é
da Editora Herder, de São Paulo e da Editorial Aster, de Lisboa, e não traz
a data em lugar algum. A outra é uma edição mais atual e foi publicada
pela Editora Martins Fontes, de São Paulo. Tenho comigo a 3ª edição, de
1995. Entre parêntesis e com reticências estão palavras escritas em grego
que não me parece essencial transcrever).

117
aprendizados e práticas da paidéia. Esta trajetória de apren-
dizados destinava-se a que a pessoa educanda fosse formada e
aperfeiçoada para, realizar ao longo de uma vida de-quem-es-
tuda-e-aprende um ser-humano na plenitude de si-mesmo3. E,
recordo, o lugar de aferição desta excelência de realização do
belo, do bem e do verdadeiro em uma pessoa educada, não era
ela própria. Era a sua polis. Era a comunidade política à qual
ela estava destinada a servir, justamente por haver estudado
para tornar-se uma “pessoa cidadã”. Um alguém cuja medida
do que aprendeu resolvia-se na qualidade de sua presença e de
sua participação entre os negócios da polis, isto é, os deveres
devidos a uma cidade-estado.
Quando falo aqui de “homem grego”, lembro que esta
expressão, sobretudo nos tempos homéricos, deveria ser tomada
num duplo sentido da palavra. Genericamente refere-se a todos
os seres humanos, como uma espécie única. Mas, em sua outra
dimensão, lembremos que mesmo em tempos de Aristóteles ele
acolhe homens e não mulheres – à exceção de Esparta – envolve
gregos e não os “bárbaros” - isto é, “todos dos outros de todos
os povos” - e abarca apenas os “cidadãos” já formados ou em
formação e presentes na vida pública da polis grega, em que
predominavam de forma absoluta os filhos das famílias que
compunham a cidadania da polis, de que estavam excluídos os
camponeses, os artesãos e, claro, os escravos
Em algumas versões antigas, uma pessoa educada deveria
realizar-se através do aprendizado e da aquisição das três vir-
tudes essenciais do homem grego: a sophia (sabedoria), andrea
(coragem) e sophrosine (temperança). E mesmo em Sócrates, a
busca da verdade como dedicação e ideal do homem livre deve-

3 No original grego as palavras aretê (de que deriva “aristocracia”) e pai-


déia não possuem os nossos acentos. Eu os acrescentei para sugerir a
forma correta de suas pronúncias. Devo advertir que tanto em Werner
Jaeger quanto em outros estudiosos da Grécia Clássica é costume colocar
palavras relevantes em seu original grego. Não as transcreverei aqui.

118
ria ser apenas o caminho para a aquisição plena da virtude. A
realização da pessoa educada mais pelo que ela é e como vive,
do que pelo que ela sabe.
Entenda-se bem que o que não é o sujeito
físico, mas o mais alto ideal de Homem que
o nosso espírito consegue forjar e que todo
o nobre aspira a realizar em si próprio. Só o
mais alto amor deste eu, em que está implí-
cita a mais elevada Aretê. (Paidéia – 32).

Trago para este estudo algo que com mais vagar e profun-
dida trabalho em Poésis e Paidéia. E será através do depoimento
de Michel Foucault. Em um momento de uma de suas aulas no
Collège de France, há uma quase desconhecida passagem atri-
buída aos últimos momentos de vida de Sócrates4. Na página
98 de A Coragem da Verdade, com a transcrição das aulas de
seu curso, ele escreve o seguinte.
A Apologia, em que registra, aceita sua con-
denação à morte, [em seu] último discurso,
já fadado à morte, Sócrates diz o seguinte,
em 41e: “Quando meus filhos crescerem
(...) Atenienses, puni-os atormentando-os
como eu próprio vos atormentaria, e eles
parecerem se preocupar (epimelesthai)
com o dinheiro ou qualquer outra coisa
que não a virtude”. Epimelesthai aretês;
eles têm que cuidar da sua virtude. São as
últimas palavras de Sócrates na Apologia,
o discurso que ele endereça aos seus juí-
zes. São as últimas palavras que Sócrates
pronuncia para seus amigos, quando estes
lhe perguntam: o que quer que façamos?

4 O curso dado por Michel Foucault no Collège de Frances foi o de 1983-


1984. Ele foi depois transcrito nos dois volumes de A Coragem da
Verdade - o Governo de Si e dos Outros. O que trago aqui é do volume II.

119
Última vontade formulada diante dos cida-
dãos, última vontade formulada no círculo
dos amigos. (A Coragem da verdade e o
governo de Si e dos Outros – II – 98).

A brusca resposta de Sócrates parece bastante pouco reco-


mendável, se vista com os olhos e compreendida com a mente
e o coração de pessoas dedicadas à educação nos dias de hoje.
No entanto, ela contém em sua quase brutal ordenação a essên-
cia do sentido da paidéia grega em seu tempo. Para que uma
pessoa se educa? Para formar-se. E para que ela se forma-a-si-
mesma, sob a condução de pedagogos (condutores da educação
de crianças)? Para alcançar a virtude. Para aprender a saber ser
virtuosa.
De igual maneira Sócrates também dedicará a sua vida a
ensinar que o caminho do aprendizado é a procura incessante
da verdade. Mas a busca da verdade não se dirige ao conheci-
mento teórico das coisas. Dirige-se à sabedoria; isto é, à pratica
vivenciada da verdade como a experiência da virtude. A vida
virtuosa.
Esta vocação socrática dada à educação da pessoa, como
um meio poderoso de destinação do ser à sua perfeição, e o
alcance de tal ideal somente através da junção entre verda-
de-e-virtude, estende-se ao imaginário grego posterior e, por
consequência, também aos seus sentidos de estética, ética e
política.
A busca incansável da virtude e a sua prática ao longo de
uma vida progressivamente cultivada pelo exercício da paidéia,
de acordo com Werner Jaeger, chega a Aristóteles e prosseguirá
para além dele, até perder-se quando a própria Grécia perde
aos poucos os valores originais cultivados em Atenas, na Gré-
cia Macedônica e, depois, sob o domínio de Roma. Não são
menos socráticas as palavras e ideias da passagem transcrita
aqui, embora através de Werner Jaeger, elas venham de Aris-
tóteles.

120
Quem estima a si próprio deve ser infatigá-
vel na defesa dos amigos, sacrificar-se pela
pátria, abandonar prontamente o dinheiro,
bem e honrarias para “fazer sua a beleza”5

Este seria o momento de recordarmos que entre os gregos


clássicos, o que hoje reunimos em uma palavra apenas “econo-
mia”, eles separavam em duas. “Economia” era o nome dado às
relações partilhadas na gestão coletiva dos bens comuns, entre a
pequena coletividade e a polis. A prática comercial, empresarial
destinada à gestão de bens para o enriquecimento individual ou
de uma família, recebia o nome pouco recomendável de crema-
trística.
Sigamos com Michel Foucault em seus cursos sobre os gre-
gos clássicos. Em uma outra sequência de aulas no Collège de
France, entre 1981 e 1982 ele insiste em recordar que mesmo
antes de Sócrates, o caminho do pensamento em busca da
verdade de todas as coisas, passa pela sentença do Oráculo
de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”. Passa pelo que os gregos
denominavam de gnôthi seautón, tanto quanto pela auto e alter
construção do sujeito que pensa o mundo e vive a polis através
do “cuidado de si mesmo”, que eles escreviam como: epimeléia
heautoû.
Gostaria então de tomar como ponto de
partida uma noção sobre a qual creio já
lhes ter dito algumas palavras no ano pas-
sado. Trata-se da noção de “cuidado de si
mesmo”. Com este termo tento traduzir,
bem ou mal, uma noção grega bastante
complexa e rica, muito frequente tam-
bém, e que perdurou longamente em toda
a cultura grega: epiméleia heautoû, que os

5 Paidéia, página 35. Na passagem apenas as quatro palavras finais estão


entre aspas. Assim, penso que apenas elas são e Aristóteles. As outras
serão através dele.

121
latinos traduziram, com toda aquela insi-
pidez, é claro... por algo assim como cura
sui (A hermenêutica do Sujeito, página 4)6.

Podemos acreditar que todos os saberes e a sabedoria que


nos chegam desde uma remota antiguidade não tem teriam
tanto a ver com uma busca do puro “conhecimento das coisas”.
Foucault, assim como Jaeger e outros estudiosos dos gregos
antigos, regata a lembrança de que conhecimento-do-mundo e
o conhecimento de si-mesmo não se separam em esferas diver-
sas da busca do saber. Ao contrário, o “saber-do-mundo” serve
ao “saber-de-si-mesmo”, e ambos se realizam, vimos já, em
uma busca da verdade (e não da doxa, da opinião-que-con-
vence, como entre alguns sofistas) direcionada ao aprendizado
e à aquisição da virtude. E esta herança grega persistirá entre
muitos pensadores da filosofia, das ciências e das artes.
O conhecimento-do-mundo sob a forma de filosofia asso-
cia-se de maneira inevitável a um saber-de-si-mesmo e a um
buscar em si mesmo a perfeição do ser, como condição essencial
para que a busca da verdade seja possível. Em síntese, é através
da virtude que a verdade se desvela. O bem não é uma conse-
quência da verdade, mas a sua condição. Ou, se quisermos ser
mais interativos, o bem e a verdade são dois momentos de uma
mesma indivisível vocação humana.
Tomemos alguma distância. Chamemos
de “filosofia”, se quisermos, esta forma
de pensamento que interroga, não certa-
mente sobre o que é verdadeiro e sobre o
que é falso, mas sobre o que faz com que
haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre
o que nos torna possível o não separar o

6 A Hermenêutica do Sujeito contem, como A coragem da verdade, aulas


dadas no Collège de France. Nesse caso, entre 1981 e 1982. A edição em
Português do livro é da Editora Martins Fontes, de São Paulo, em 2004.
Os grifos são do autor.

122
verdadeiro do falso. Chamemos “filosofia”
a forma de pensamento que se interroga
sobre o que permite ao sujeito ter acesso
à verdade, forma de pensamento que tenta
determinar as condições e os limites do
acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se
a isto chamarmos “filosofia”, creio que
poderíamos chamar de “espiritualidade” o
conjunto de buscas, práticas, e experiências
como as purificações, as asceses, as renún-
cias, as conversões do olhar, as modificações
de existência, etc. que constituem não para
o conhecimento, mas para o sujeito, para o
ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para
ter acesso à verdade. Digamos que a espi-
ritualidade, pelo menos como aparece no
Ocidente, tem três caracteres. (A hermenêu-
tica do Sujeito, página 19).

E estes três caracteres são:

1. A verdade a respeito o saber-do-mundo não é dada


em-si-mesma de pleno direito ao sujeito - ela resulta de
um cultivo-de-si; de uma ascese; de uma vida que inte-
riormente se transforma para poder abrigar o desafio
da busca da verdade;
2. É indispensável que aquele que busca de forma desin-
teressada a verdade, realize sobre si-mesmo não apenas
uma conversão do seu pensamento, mas de todo o seu
ser, viver e conviver. Pois somente o virtuoso pode aspi-
rar a ser também sábio;
3. Converter-se à virtude e buscar a verdade são disposi-
ções convergentes e também inter-infuentes. Quando
há uma conversão do ser-da-pessoa e ela alcança a
fronteira da verdade, realiza-se também um efeito de
retorno. Por conhecer a verdade o sujeito torna-se mais
perfeito, mais espiritual. Espiritual no sentido que Fou-

123
cault resgata dos gregos, e através dos estoicos, chega
aos cristãos.

Assim, completemos sentença acima: só os virtuosos


podem ser sábios, e ao ascender à sabedoria inevitavelmente o
homem que pensa torna-se duplamente virtuoso no que é, e no
como procede. Platão pouco mais tarde acrescentará a beleza
a esta dupla, completando a tríade a que todo o ser humano
deveria se dedicar: a verdade, a bondade, a beleza.
Retornemos ao Paidéia. Que uma passagem que associa a
arte – ou o artesanato - à educação nos ajude a encerrar este
tópico.
Colocar esses conhecimentos como força
formativa a serviço da educação e formar
por meio deles verdadeiros homens, como o
moleiro modela a argila e o escultor as suas
pedras, é uma ideia ousada e criadora que
só podia amadurecer no espírito daquele
povo artista e pensador. A mais alta obra
de arte que o seu anelo se propôs foi a cria-
ção do Homem vivo. (Paidéia – 13).

A paidéia grega – uma educação humanista

Separados por anos, vocações e línguas, em dois livros


sobre a educação a palavra humanismo e as suas derivadas
são quase exageradamente presentes. Um é este que nos tem
acompanhado: Paidéia – a formação do homem grego. Outro o
Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.
Duas palavras são centrais nas primeiras páginas nos escri-
tos de Werner Jaeger: paidéia e aretê. Mais a primeira do que a
segunda será o fio condutor de todo o livro. Tendemos a tradu-
zir paidéia como pedagogia, como educação motivada e como
formação plena do ser humano. Não está incorreto, mas limita
o sentido que os gregos davam a esta palavra.

124
Se saltarmos de Platão a Paulo Freire, veremos que em
ambos a educação aspira saltar para além de si-mesma. Ou seja,
da limitada idéia presa à instrução, através da qual ela é com
frequência reduzida. Uma leitura atenta ao Pedagogia do Opri-
mido revelará que antes de a palavra educação surgir ente as
páginas do livro ela é antecedida de outras. Uma dela, lembrei
já, é “homem”, e suas derivadas diretas: “humano”, “huma-
nista”, “humanismo”. E elas nos esperam logo adiante. A outra
palavra é “cultura”. E este será o momento para recordar uma
vez mais que em tempos em que nem Paulo e nem nós empregá-
vamos ainda as palavras “educação popular”, aquilo ao redor
do que interagíamos entre os anos 60 e começos dos 70 era a
“cultura”. Mais especificamente, a “cultura popular”.
Na esteira de outros educadores-militantes de seu tempo,
Paulo recria sentidos e politiza vocações ao pensar a educação
como cultura. E a cultura como política.
Werner Jaeger lamenta que língua alguma da atualidade
recobre a extensão e a densidade da ideia de “cultura”, pensada
como paidéia entre os gregos clássicos. A seu ver, em seu pleno
sentido – menos para alguns antropólogos – são os gregos os
criadores do sentido pleno da palavra “cultura”.
O Helenismo ocupa uma posição singular.
A Grécia representa, em face dos grandes
povos do Oriente, um “progresso” fun-
damental, um novo “estádio” em tudo o
que se refere à vida dos homens na comu-
nidade. Eta fundamenta-se em princípios
completamente novos. Por mais elevadas
que julguemos as realizações artísticas, reli-
giosas e políticas dos povos anteriores, a
história daquilo a que podemos com plena
consciência chamar de cultura só começa
com os gregos. (Paidéia – 5).

Poucas páginas adiante Werner Jaeger lembra que a exal-


tação que ele faz à criação grega de um sentido inovador de

125
“cultura” poderá parecer algo piegas e exagerado, em um tempo
em que pelo menos no Ocidente de seu tempo (o seu livro foi
publicado originalmente em 1936, em plena ascensão do nazismo
na Alemanha) o próprio sentido de cultura e de civilização pare-
ciam ora tão desgastados, ora tão desumanamente desvirtuado.
E a mais exata palavra para traduzir em termos de hoje o
sentido grego à palavra “cultura”, como o processo, mais do que
o produto da criação do humano na vida social, é paidéia. Ela
não traduz algo exterior à vida, mecânico em sua prática, pro-
gramável e reprodutível. Ao contrário, ela é a própria essência
da ação criadora dos seres humanos sobre o seu mundo. E no
sentido grego original, como vimos até aqui, saber e criar não se
esgotam no que eles chamavam de tekné, na capacidade original
de tomar as coisas do mundo natural e “técnica”, mas também
de algum modo artisticamente, criar algo material no mundo
da vida. Estaria mais para a poésis, que originalmente também
não significa apenas a poesia, mas o “poético’ e o “poiético” que
reside em tudo o que o ser humano criar em busca da verdade,
da virtude e da beleza. Pois fazer deve tender a criar. E criar é
realizar estas três vocações do humano. E é, na mesma direção,
realizar-se através da aquisição, da vivência e da partilha delas.
E sobretudo na primeira paidéia, a dos guerreiros que inte-
ragem entre eles e com os deuses entre a Ilíada e a Odisseia, a
vocação da paidéia é a aquisição da aretê.
Werner Jaeger lembra que não existe em nossas línguas
uma palavra que bem traduza o sentido grego de aretê. “Vir-
tude”, tal como a pensamos hoje, seria a mais próxima, mas
é ainda imperfeita. Atingir a aretê era o ideal da aristocracia
homérica, depois, em outros termos, do cidadão grego dos tem-
pos de Sócrates. E elevar o homem a uma sempre aperfeiçoável
aretê era o supremo ideal da educação grega.
Entenda-se bem que o que não é o sujeito
físico, mas o mais alto ideal de Homem que
o nosso espírito consegue forjar e que todo
o nobre aspira a realizar em si próprio. Só o

126
mais alto amor deste eu, em que está implí-
cita a mais elevada Aretê. (Paidéia - 32).

Quando o guerreiro Aquiles despede-se de sua mãe, a semi-


deusa Tétis, ela que o havia mergulhado em aguas mágicas para
que seu corpo jamais fosse ferido por armas de guerra (à exce-
ção do calcanhar, por onde ela o segura) a mãe avisa ao filho
que se ele partir para a Guerra de Troia, fará grandes feitos. As
não voltará. Morrerá lá. Aquiles, sabedor de seu destino, mesmo
assim parte para a guerra, realiza grandes feitos e morre, quando
já quase os gregos haviam tomado (e saqueado) Troia.
Um dos argumentos que tanto Aquiles quanto qualquer
outro nobre-guerreiro entre gregos e troianos teria a apresentar
para não se furtar a lutar, mesmo conhecendo de antemão o
seu destino fatal, é que bem mais vale uma vida gloriosa, entre
grandes feitos que evidencie uma plena aretê, do que uma tran-
quila vida, e prazerosa, mas que de um homem dos tempos de
Homero não deixasse traço algum de sua grandeza. E sequer os
gregos clássicos. À diferença dos muçulmanos acreditavam que
quando morto em batalha o guerreiro da fé migraria para um
eterno paraíso junto a onze mil virgens. Haja virgens!
No entanto, os feitos de glória guerreira de nada valiam se
vividos apenas como uma realização extrema de um “ego idiota”.
Valiam quando avaliados no interior de um contexto de coletivi-
dade. A vida e a morte heroicas de alguém formado – entre artes
e espadas – para atingir a “sua aretê – em plenitude, valia como
uma entrega. Como algo vivido em nome de seus companhei-
ros de armas; em nome de sua família (quase todas as tragédias
gregas posteriores a Homero serão dramas originalmente fami-
liares); em nome de seu clã (sua rede estendida de parentes e
afins); de seus reinos. Mais tarde, de sua polis. E, finalmente, de
todo um povo que desde diferentes herança e tradições apenas
mais tarde se reconhecerá como um povo só: helenos, gregos.
A liderança de Agamenon, a fúria guerreira de Aquiles, a
sagacidade de Ulisses valia apenas quando colocadas a serviço

127
de uma coletividade. O cavaleiro andante e solitário errante
pelo mundo em busca de feitos e aventuras, de que Dom Qui-
xote de la Mancha será a genial e comovente paródia, iria ainda
demorar muitos séculos para surgir. Se é que surgiu como se nar-
rava. E assim também a educação. Servindo em uma primeira
dimensão à realização individual do estudante-aprendente (seu
ser idiota) a educação da polis grega forma o indivíduo para e
em nome da coletividade (seu ser político).
Antes de tudo, a educação não é uma
propriedade individual, mas pertence por
essência à comunidade (Paidéia – 4 e 5).
Como vimos, a essência da educação con-
siste na modelagem dos indivíduos pela
norma da comunidade. (Paidéia – 15).

Entre Homero e Hesíodo, dois poetas-aedos formadores da


primeira paidéia grega, quando a Hélade passa dos reinos que
enviaram guerreiros a Troia, às cidades-estado, como Esparta,
Tebas, Corinto e, sobretudo, Atenas, o lugar onde a aretê do
governante-guerreiro dá lugar à virtude da pessoa-cidadã, o
sentido de uma formação da pessoa através da educação acen-
tua o seu caráter humanista. A começar pelo fato de que em
Atenas a pessoa livre não é súdita de um rei ou de um império,
mas é um alguém entre outros. Ciro e Dário na Pérsia conde-
navam destinos segundo a sua vontade única e inquestionável.
Sócrates é condenado à morte por uma assembleia de mais de
quatrocentos cidadãos. E com pleno direito a defender-se e até
a acusar os seus acusadores. Leia-se com atenção a Apologia de
Sócrates. E quando alguns de seus discípulos (Platão entre eles?)
propõem a Sócrates o suborno dos guardas, a fuga de Atenas
e o exílio em algum lugar onde ele continuaria a filosofia e
morreria em paz, Sócrates recusa. E se argumento é que ele foi,
mesmo que injustamente condenado por uma coletividade de
que fazia parte como cidadão. E iria morrer em obediência a
leis que ele mesmo ajudou a promulgar.

128
Hoje, tanto em documentos da UNESCO quanto em edu-
cadores como Paulo Freire, opomos algo a que de forma muito
diversificada denominamos de vocações do humanismo a inten-
sões e ações que não colocam o primado da pessoa humana em
seus princípios, preceitos e ações.
Assim, como uma lembrança de fatos não tão antigo assim
– sobretudo quando comparados com os da Grécia Clássica
– recordemos que no final do século e do milênio, enquanto
um documento de carácter universal sobre a educação focava o
seu sentido no “desenvolvimento” humano, um documento do
Banco Mundial o focava sobre o “desenvolvimento econômico.
E segundo padrões e interesses do capital, claro. Vários anos
antes Paulo Freire irá denominar “bancária” a educação con-
tra a qual propõe uma outra: “libertadora”, “emancipadora”.
Libertadora e emancipadora de quem? Da pessoa humana, em
sua individualidade (como “idiota”) e, sobretudo, em sua cole-
tividade (como “política”)7. E, relembro, tanto o destinatário
da proposta pedagógica freireana, o ser humano em sua plena
“pessoalidade”, quanto à filosofia que embasa a sua pedagogia,
o “humanismo”, serão o destinatário e o destino do que está
escrito em Pedagogia do Oprimido.
De acordo com Werner Jaeger, um sentido original e mar-
cadamente político do humanismo grego original está na sua
vocação coletivizante. Tanto assim que ele irá opor o humanismo
da paidéia grega ao “individualismo”. Entre nossa dimensão de
ser “idiota” e a de sujeito “político”, a vocação individual não é
individualista. Ela é individualizante coletiva. E ela se coletiviza

7 O documento da UNESCO, originalmente chamado “Relatório Dellors”,


pelo sobrenome de seu coordenador, foi depois publicado coo um livro
em diferentes países. No Brasil tomou o nome: Educação – um tesouro
a descobrir. Foi publicado pela Editora Cortez com o patrocínio do
UNESCO e do MEC. Conheço o Informe do Banco Mundial sobre a
Educação em sua forma mimeografada. Miguel Soler Roca, diretor do
CREFAL quando em 1966, quando lá estudei, escreveu um artigo de
forte teor crítico contra o documento do Banco Mundial.

129
não desde uma razão prático-política, mas desde fundamentos
da própria essência da experiência humana, tal como os gregos
clássicos a compreendiam. Algo a partir do que, empregando a
própria expressão grega original, educadores entre Paulo Freire,
Moacir Gadotti e Marcos Arruda, para ficarmos entre brasilei-
ros, pensaram como uma “educação da práxis”.
O humanismo como fundamento da paidéia grega tem um
dos seus focos na universal vocação humana. É a humanidade do
homem o que o torna um ser cujo destino é a busca da superação
de si-mesmo em direções já delineadas neste estudo. É próprio
do homem, imperfeito e sempre aperfeiçoável, educar-se para
atingir em si-mesmo, mas não para ele-mesmo, a sua máxima
perfeição. E, vimos em Sócrates e veremos em Platão, mais do
que a aquisição da pura sabedoria (sophia), é a sua realização na
comunidade, como virtude dada a si-mesmo e aos outros (andrea
e sophrosine) e publicamente vivida. Não esquecer que em dois
momentos nas aulas de Foucault, a aquisição da virtude, como
um supremo bem em si-mesmo, opõe-se, entre outros desvios, ao
amor ao dinheiro; ao enriquecimento não-virtuoso.
Quando desde os gregos clássicos Werner Jaeger faz a crí-
tica a um desfigurado humanismo posterior, sobretudo entre
clássicos e românticos próximos a nós, que descolaram o
humanismo dos primeiros gregos de suas raízes e de seu sen-
tido fundamental, ele o faz a partir da ideia de que entre nós o
humanismo original talvez tenha preservado uma de suas assi-
naturas, mas perdeu a outra. De um lado ele preserva valores
originais e essenciais da essência e da existência do humano
como princípio e destino de tudo. Algo que em algumas ver-
tentes de antropocentrismo chegou a exageros condenáveis e
ameaçadores à vida na Terra.
Mas, de outro lado, sobretudo em suas vertentes mais indi-
vidualizantes, ele perdeu um sentido de realização do indivíduo
no coletivo, para inverter as relações, e sugerir o primado da
realização do coletivo, do comunal, do “nós, no individual;
no ser-centrado-e-si-mesmo como sujeito absoluto de direitos.

130
Os gregos pensaram pratica uma formação o mais integral,
completa e perfeita possível em cada ser-educando. Uma ação
pedagógica destinada a formar cada pessoa como “a obra de
arte de si-mesmo”, em um ser-de-perfeição destinado ao exer-
cício de uma vida singularmente co-responsável, cujo lugar de
realização e de aferição é o comum, a coletividade, enfim, a
polis, o político.
Podemos agora determinar com maior
precisão a particularidade do povo grego
frente aos povos orientais. A sua desco-
berta do Homem não é a do eu subjetivo,
mas a consciência gradual das leis gerais
que determinam a essência humana. O
princípio espiritual dos gregos não é o
individualismo, mas o “humanismo”, para
usar a palavra no seu sentido clássico e ori-
ginário. (Paidéia – 14)8.

Humanismo que desagua na realização de cada pessoa não


de acordo com as suas aspirações individuais e acentuadamente
“idiotas”, até mesmo no sentido de tornar-se diferente, ou pecu-
liarmente original diante dos seus outros e, assim, diverso de
uma norma cultural de ideal cultural de pessoa. A paidéia grega
funda um aprendizado que deverá desaguar, em cada pessoa, na
realização socialmente individual, mas não nunca originalmente
individualizada, de uma “verdadeira forma humana, com o seu
autêntico ser”9. Preexiste como pensamento que se traduz através
da filosofia, da arte, da pedagogia (mas bem menos da religião)
um ideário e uma imagem genérica de ideal de perfeição humana.
Esta perfeição é um modelo cultural, comunitário, genérico, e
deverá ser o horizonte de quem educa e de quem se educa.

8 Grifos e aspas o autor.


9 N página 14 de Paidéia.

131
Podemos pensar dois momentos desta subordinação de
um eu-idiota a um eu-político tomando o exemplo de um dos
personagens mais centrais e mais ego-centrados da Ilíada, Aqui-
les. Quando em dois momentos ele enfrenta comandantes da
expedição grega a Troia e se recusa a lutar, primeiro quando
disputa com Agamenon a posse de Biseis (ou Briseida, ou Cri-
seida) que ele considerava como um seu “despojo de guerra”,
no saque da cidade de Tebas; segundo quando ele, ferido de
dor com a morte do companheiro Pátroco, em luta com Heitor,
recusa-se a devolver ao pai, Príamo, o corpo de Heitor, que em
seguida ele mata em um combate singular, nos dois momentos
ele acaba por se subordinar a sentimentos, princípios e precei-
tos de honra guerreira e de submissão de sentimentos e desejos
pessoas a normas de direito coletivo.
Nos dois momentos, separados por muitas páginas na
Ilíada, Aquiles não apenas retorna à razão, mas acaba por
subordinar-se ao consenso da maioria do seus. Ele se submete
não ao poder único e indiscutível de um soberano oriental,
senhor dos direitos de vida-e-morte de seus súditos, mas a nor-
mas consensuais de uma coletividade de iguais.
E este bem poderia ser o momento de recordar tanto falas
quanto escritos de Marilena Chauí quando ela sugere que talvez
os guerreiros gregos clássicos dos tempos de Homero tenham
inventado ao mesmo tempo o diálogo entre iguais e o círculo de
debates. Superando a autocracia dos reinos orientais, em que o
poder da fala que ao mesmo tempo enuncia a verdade e julga
a conduta dos outros compete a um senhor único, ou a um
círculo restrito nobre e de sacerdotes, de e sob a ameaça da ano-
mia, quando a palavra que estabelece a ordem e o consenso se
perde na anarquia que desconstrói e deprava a democracia, os
gregos ao redor de um círculo estabelecem entre desiguais igua-
lados a palavra que, dita e ouvida entre todos, define em nome
do coletivo a observância individual de direitos e de deveres10.

10 É oportuno lembrar que Pierre Clastres, com bastante mais ênfase do


que outros antropólogos, irá atribuir iguais virtudes aos povos indígenas

132
Como longos passos além das pedagogias de povos pró-
ximos, a educação grega se assume como um processo não de
instrução de práticas e de reiteração em uma pessoa de sabe-
res consagrados e indiscutíveis, mas ela aspira a uma tão livre
e questionadora viável construção da pessoa. Uma formação
passo-a-passo realizada entre uma peculiar individualidade – a
obra-de-arte de si-mesmo – e a realização de uma excelência
individual na experiência da coletividade.
Através de uma paidéia cujo berço de origem é a poésis, o
educando não somente adquire conhecimentos entre as práti-
cas do fazer – guerreiras ou não - as éticas do agir e as lógicas
do pensar. Ele adquire tais saberes como um elo de fundamen-
tos para construir-se a si-mesmo. Para tornar-se um outro mais
perfeito, sendo plenamente ele-mesmo. Para transformar-se em
direção a um padrão cultural de excelência que, mesmo quando
consagrado e coletivizado, somente se realiza em e através de
cada pessoa educanda. Por isso mesmo, com rara felicidade
Werner Jaeger lembra mais de uma vez como na Grécia a filo-
sofia e arte estiveram sempre não apenas nas vizinhanças, mas
no coração mesmo da paidéia grega. E, vimos já, uma arte para
não ser apenas apreciada e uma filosofia para ser somente pen-
sada, mas com criações e caminhos de acesso à virtude.
Para além de apenas instruir o indivíduo destinado ao
exercício das práticas da vida cotidiana – o que era praticado
por escravos, trabalhadores e artesãos que não podiam aspirar
saltarem da oficina para a escola - a pedagogia dos gregos em
diferentes ocasiões era associada à modelagem, coo vimos em
uma passagem acima de Werner Jaeger. A paidéia modela, ela
dá forma, e almeja criar a perfeição de cada educando em dire-
ção à realização de sua plena aretê.

das América, em suas “sociedades sem estado”. O chefe escolhido apenas


é ouvido e seguido quando enuncia em pública a palavra púbica. Ou
seja, quando fala o que o consenso da tribo estabelece como verdade e
como preceito. Quando ameaça falar em nome próprio é não-ouvido ou
mesmo destituído de seu frágil poder. Ver Sociedade contra o Estado.

133
Colocar estes conhecimentos como força
formativa a serviço da educação e formar
por meio deles verdadeiros homens, como
o oleiro modela a sua argila e o escultor
as suas pedras, é uma ideia ousada e cria-
dora que só podia amadurecer no espírito
daquele povo artista e pensador. A mais
alta obra de arte que o seu anelo se propôs
foi a criação do Homem vivo. Os Gregos
viram pela primeira vez que a educação
tem de ser também um processo de cons-
trução consciente. (Paidéia – 13).

Da virtude do guerreiro de Homero à virtude do camponês


de Hesíodo

Em meu outro estudo dos gregos clássicos a partir de


Werner Jaeger e de outros pesquisadores, estarei trabalhando
a idéia de que a primeira paidéia grega foi a poésis e, depois, o
teatro. Mas aqui basta saltarmos de um poeta a outro. E já será
um grande e ousado salto.
Não me lembro se algum outro livro sobre a pedagogia,
a educação começa com um poeta como educado. Em Paidéia
quase começa. Porque o já o capítulo “Cultura educação da
nobreza homérica”, com que depois de introduções teóricas
com que Paidéia –a formação do homem grego de fato entra
no centro da questão proposta pelo autor, é todo ele dedicado a
pensar a Grécia dos “tempos homéricos” a o lugar da educação
de então. Não recordo também se algum livro sobre a educa-
ção constitui como um primeiro educador de um povo, um
poeta. Desconfio que se Cecília Meireles algo escreveu sobre
a educação – ela que foi também uma normalista e uma pro-
fessora – algum assim possa haver acontecido. Em Paidéia, o
terceiro capítulo do “Livro Primeiro - A Primeira Grécia, traz
este título: Homero como educador. E logo no primeiro pará-
grafo lemos isto:

134
Conta Platão que era opinião geral no seu
tempo ter sido Homero o educador de
toda a Grécia. Desde então a sua influên-
cia estendeu-se muito além das fronteiras
da Hélade. Nem a apaixonada crítica filo-
sófica conseguiu abalar o seu domínio,
quando buscou limitar o influxo e o valor
pedagógico de toda a poesia. A concepção
do poeta como educador do seu povo – no
sentido mais amplo e mais profundo da
palavra – foi familiar aos Gregos desde a
sua origem e manteve sempre a sua impor-
tância. (Paidéia – 61).

Sabemos que embora filósofos tenham escrito entre o mito


e a poesia, como no começo do conhecido “Poema de Parmêni-
des”, a filosofia se apresenta mais como substituta do que como
herdeira do mito. E como o mito em boa medida é enunciado
como poesia, entende-se as razões de Platão ao propor o exílio
dos poetas em sua República.
No entanto, não apenas outro, mas outros pensadores e
legisladores da Grécia Clássica reconhecem que mais a Ilíada
do que a Odisseia não apenas narra feitos de deuses e faça-
nhas de heróis, mas na verdade constitui uma identidade de
“um povo” que faltava aos gregos, espalhados entre reinos na
raros rivais, e línguas e culturas próximas, mas diversas. E a
dimensão propriamente pedagógica da poesia desde Homero
está justamente em enunciar, através da narrativa do passado,
o sentido do presente de um povo. É com a poesia de Homero
que as próprias crenças gregas – e depois romanas – ganham
o estatuto de uma religião. E o mesmo acontece com outras
dimensões de saberes, sentidos e valores que constituem o arca-
bouço de uma vida social.
Na Grécia clássica três personagens-símbolos foram os
portadores da palavra essencial: o poeta-aedo que enunciava o

135
passado; o senhor-da-lei que enunciava o presente, e o oráculo,
que enunciava o futuro11.
A poesia épica, que antecederá a lírica, em que a dimensão
mais introspectivamente sensível e individualizada (a propria-
mente “idiota”) irá concorrer e, depois, substituir a dimensão
mais exteriormente coletiva e constitutiva de um ethos e de uma
ética sociais (a propriamente “política”) não apenas instaura
a “assinatura” de um povo, mas também, pedagogicamente,
constitui fundamentos propriamente culturais de seus modos
de vida.
A grande epopeia não representa apenas
um progresso imenso na arte de compor
um todo complexo e de amplo traçado;
significa também uma consideração mais
profunda dos conteúdos íntimos da vida e
dos seus problemas, o que eleva a poesia
heroica muito acima da sua esfera original
e outorga aos poetas uma posição espiritual
completamente nova, uma função educa-
dora no mais alto sentido da palavra. Ele
já não é o simples divulgador impessoal da
glória do passado e de suas façanhas. É um
poeta no sentido pleno da palavra: intér-
prete e criador da tradição. (Paidéia – 73).

Para ficarmos apenas entre os grandes poetas-fundadores,


lembremos que depois de Homero vem Hesíodo. Homero canta
a virtude guerreira dos tempos em que uma primeira (ou já
segunda) Grécia era, a dos pequenos reinos, como a Ítaca de
Ulisses e de Penélope.
Canta-me a Cólera – ó deusa! – funesta de
Aquiles Pélida,

11 Devo esta lembrança a Marilena Chauí em alguns de seus escritos e de


palestras e mesas redondas de que participei.

136
Causa que foi de os Aquivos sofrerem tra-
balhos sem conta
E de baixarem para o Hades as almas de
heróis numerosos
E esclarecidos, ficando eles próprios aos
cães atirados
Como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus
o desígnio
Desde o princípio em que os dois, em dis-
córdia, ficaram cindidos,
O de Atreu filho, senhor de guerreiro, e
Aquiles divino.
Qual, dentre os deuses eternos, foi causa de
que eles brigassem?
(Ilíada – 57)12.

Em Hesíodo quase desaparecem os heróis guerreiros e


surgem os homens “comuns” do trabalho, em meio a penas
e sofrimentos, mas também entre as ilusórias e passageiras
pequenas alegrias da vida cotidiana, sobretudo a vida pastoril
e campestre. Em seu “mito das cinco raças” (ou idades) ” a gera-
ção presente é o resultado da sequente degradação de todas as
outras, anteriores, e é de todas a mais degenerada, a pior: a “raça
do ferro”. Foram-se de “raça” em “raça”, de “era” em “era”, os
tempos primeiros em que os homens conviviam com os deuses e
uma vez ou outra geravam filhos deles. Os homens dos tempos de
Hesíodo vivem deserdados do bem, longe das espadas e subme-
tidos a enxadas e arados. E então, agora camponeses e pastores
são sujeitos mais dignos da poesia do que os guerreiros de Troia.
Nem por serem não mais nobres guerreiros, mas artesãos e tra-
balhadores, os seres humanos tornaram-se mais humanizados.

12 Esta é a muito conhecida primeira estrofe da Ilíada. Na edição que tenho,


a da Ediouro Publicações, do Rio de Janeiro, publicada em 2001, com
tradução, notas e introdução de Carlos Alberto Nunes.

137
Durante o dia “nunca deixarão de tabular e penar”. “E nem a
noite (deixarão) de se destruir”. Eis a passagem completa em um
momento da Écloga V, em Os trabalhos e os dias.
Antes não estivesse eu
entre os homens da quinta raça,
mais cedo morrido ou nascido depois.
Pois agora é a raça de ferro
e nunca durante o dia cessarão
de tabular e penar
e nem à noite de se destruir,
e árduas angústias os deuses lhes darão
(Os trabalhos e os dias – 191)13

Hesíodo, tão distante de Homero quanto é possível estar,


“canta” os rigores e também a beleza campestre da vida rural,
entre pastores e suas flautas e amores, e camponeses e seus
saberes dos segredos da natureza (quase invisível em Homero)
e seus trabalhos. Mais valioso do que o afã dos guerreiros em
Troia é o trabalho sobre a terra que alimenta o mundo em tem-
pos de paz, mas do que o que destrói e conquista em tempos
de guerra. E ele merece uma outra poesia., que irá instaurar
um outro sentido de pessoa e de vida humana na comunidade
social. E também a necessidade de uma outra educação.
Homero acentua, com a maior nitidez,
que toda a educação tem o seu ponto de
partida na formação de um tipo humano
nobre, o qual nasce do cultivo das quali-
dades próprias dos senhores e dos heróis.
Em Hesíodo revela-se a segunda fonte da
cultura: o valor do trabalho. O título de Os
trabalhos e os dias, dado pela posteridade

13 Hesíodo, Écloga Vª de Os trabalhos e os dias, tomado da edição da Edi-


tora Iluminuras, de São Paulo, em 1991.

138
ao poema rústico didático de Hesíodo,
exprime isto perfeitamente. O heroísmo
não se manifesta só nas lutas em campo
aberto, entre cavaleiros nobres e seus
adversários. Também na luta silenciosa e
tenaz dos trabalhadores com a terra dura
e com os elementos tem o seu heroísmo e
exige disciplina, qualidades de valor eterno
para a formação do homem. (Paidéia – 85).

Muito mais do que Homero e mesmo bem mais do que os


grandes criadores do teatro grego, entre a tragédia e a comé-
dia – e que Werner Jaeger considerará também educadores do
povo grego – Hesíodo quase pode ser lembrado também como
um ancestral da cultura de suas gentes. Em seus trabalhos e,
sobretudo, na série dos Erga ele descreve com um agudo sen-
tido de realidade, os detalhes da vida e do trabalho da gente
do povo. É quando toda uma cultura popular vivida, mas não
“traduzida” para camponeses, pastores, artífices e artesãos, se
tornasse agora a própria essência da cultura de toda uma gente
grega.
Em alguma medida, muito do que imaginamos serem ques-
tões e dilemas da educação em nossos tempos, já o eram há pelo
menos dois milhares de anos entre os gregos clássicos. Afinal,
educar quem e para o que? Educar os filhos dos senhores e dos
nobres com apenas os seus próprios princípios e valores? Educá
-los também com valores e princípios de outras classes sociais,
e com um foco sobre o trabalho cotidiano? Educar também os
“filhos do povo”, mas apenas com os valores e preceitos da
“alta cultura” dos nobres e guerreiros? Ou educar também os
“filhos do povo” com foco sobre os valores e princípios de sua
própria cultura, a começar pelo valor-trabalho?
Em Hesíodo...
O trabalho é celebrado como o único cami-
nho, ainda que o mais difícil, para alcançar

139
a aretê. O conceito abarca simultaneamente
a habilidade pessoal e o que dela deriva
– bem-estar, êxito, consideração. Não se
trata da aretê da classe proprietária, base-
ada na riqueza, mas sim a aretê do homem
trabalhador, que tem a sua expressão numa
posse de bens moderada (...) O seu obje-
tivo é a aretê tal como a entende a gente do
povo. (Paidéia – 100).

E aqui eu interrompo pelo meio o parágrafo de Paidéia para


chamar a atenção para o fato de que em sua segunda metade
pela primeira vez irá aparecer no livro a expressão: “educação
popular”. E ela voltará em páginas seguintes, como veremos.
O homem deve ganhar o pão com o suor
do rosto. Mas isto não é uma maldição, é
uma benção. É este o preço da aretê. Assim
ressalta com perfeita nitidez que Hesíodo
quer com plena consciência colocar ao
lado do adestramento dos nobres, tal como
se espelha na epopeia homérica, uma edu-
cação popular, uma doutrina da aretê do
homem simples. A justiça e o trabalho são
os pilares em que ela se assenta. (Paidéia –
100 – o grifo em negrito é meu)

É quando então na cultura dos gregos clássicos surge uma


nova compreensão de justiça, através de um alargamento em
direção a uma plena afirmação de cidadania, da idéia de “dever”.
E haverá de ser com este sentido ao mesmo tempo estendido e
impositivo a todos, que o sentimento do exercício do dever é
um dos fundamentos da virtude, que Sócrates cobrará de seus
discípulos como a finalidade da educação de seus filhos.
Ainda não cheguei a Platão, de quem nos interessará ape-
nas uma passagem do Paidéia, e deverei trazer a esta página um
momento de Aristóteles, a quem também voltarei adiante.

140
Em um momento da Ética a Nicômaco Aristóteles escreve o
seguinte a respeito da formação da pessoa através da educação.
É por certo o melhor dos homens aquele
que tudo pondera e examina o que, final-
mente, é justo. Bom também o que sabe
seguir os retos ensinamentos do outro.
Só é inútil aquele que não descobre por
si mesmo e nem aceita no seu coração a
doutrina do outro. (Aristóteles – Ética a
Nicômaco, apud Paidéia – 101).

Separadas uma da outra por mais de dois mil anos, eis uma
expressão depois tornada essencial no pensamento de Paulo
Freire. Em uma direção, são os saberes “comuns da comuni-
dade”, e não os restritos à sua esfera de “nobreza guerreira”, os
que fundam e embasem uma nova ética da pessoa cidadã. E o
trabalho exercido pelas pessoas “comuns do povo” e não pelos
nobre e guerreiros, é o princípio fundador de uma nova idéia
de justiça e de direito.
Este será o duplo sentido inovador de uma educação popu-
lar na Grécia Clássica. De um lado, uma educação que como
exercício durador de formação da pessoa em direção ao saber que
da verdade conduz à virtude, aos seres do trabalho, às pessoas
não-nobres da comunidade civil. De outro lado, uma educação
que tendo no trabalho e na virtude de seu ofício os seus funda-
mentos, parta de valores e saberes propriamente populares.
E “popular” aqui, possivelmente pela primeira vez, em seu
duplo sentido. Primeiro, o da abrangência de toda a sociedade
civil, a todos os cidadãos habitantes da polis (cidade), ou do
campo (rus), mas igualmente irmanados como sujeitos políticos (e
também idiotas) de uma mesma comunidade de direitos-e-deveres.
Torna-se evidente, assim, que a nova polí-
tica do Homem, não pode estar vinculada,
como a educação popular de Hesíodo, à
ideia de trabalho humano. A concepção de

141
aretê hesiódica estava impregnada do con-
teúdo da vida real e do ethos profissional da
classe rural, a que se dirigia. Se contemplar-
mos o processo evolutivo da educação grega
a partir do ponto de vista hodierno, incli-
nar-nos-emos a crer que o novo movimento
teria de aceitar o programa de Hesíodo:
substituir a formação geral da personali-
dade, própria dos nobres, por um conceito
de educação popular, em que se avaliaria
cada homem pela eficácia de seu trabalho
específico, e o bem da comunidade resultaria
de cada um realizar com a máxima perfei-
ção possível o seu trabalho profissional, tal
como o aristocrata Platão exigia do Estado
autoritário de sua República, dirigido por
uma minoria espiritualmente superior. Esta-
ria de acordo com o tipo de vida popular e
a diversidade dos seus mestres; o trabalho
não seria uma vergonha, mas o funda-
mento único da consideração citadina. No
entanto, e sem prejuízo do reconhecimento
deste importante fato social, a evolução real
seguiu um curso completamente distinto.
(Paidéia – 144 e 145 – grifos meus em edu-
cação popular).

Com esta passagem longa de Werner Jaeger nominamos


Platão. Saltemos inúmeras páginas e cheguemos finalmente a
ele. Teria um filósofo proveniente da aristocracia ateniense –
mas discípulo fiel do empobrecido Sócrates – pensado também
uma “educação popular”?

A educação popular em um filósofo aristocrata

Em um capítulo quase final de Paidéia – a formação


do homem grego, que tomou este sugestivo nome: O estado
jurídico e o seu ideal de cidadão, após páginas e capítulos dedi-

142
cados a uma primeira educação da Grécia Arcaica, dividida
entre os pequenos reinos cujos nomes, e mais os de seus senho-
res, estão distribuídos entre as muitas páginas da Ilíada, depois
de chamar Homero de “o educador da Grécia, de comentar
longamente os ideais de uma educação do nobre guerreiro em
busca de atingir a aretê, o ideal de uma curta vida nobre e
de memória imorredoura, de que Aquiles terá sido o melhor
representante, e após passar por Esparta e sua rigorosa “educa-
ção estatal”, Werner Jaeger dedicará páginas à passagem, que
ainda no domínio da poésis irá opor a paidéia de Homero,
dirigida a homens nobres e guerreiros, à de Hesíodo, dedicada
aos homens e às mulheres do trabalho cotidiano que sustenta
a vida da polis... e também a de nobre e guerreiro. E ele o
fará após dedicar longas páginas à relevância formadora do
teatro grego na educação dos então habitantes da cidade-es-
tado – de que Atenas será bem melhor representante do que
Esparta. E, finalmente, chegará a momentos em que na cidade
que funda a democracia, o estado de direitos, as leis e a justiça,
uma educação formadora de uma ampliada cidadania tornou-
se indispensável.
A longa trajetória de mais de um milhar de páginas através
das quais nosso autor faz evoluir e transformar-se a educação
da cidade grega, não é o que nos importa aqui, em um estudo
que apenas procura rastrear os pequenos sinais de uma “educa-
ção popular” desde a remota Grécia Clássica.
A menos que em minha leitura eu tenha passado por alto
alguma passagem onde “educação popular” aparece de novo
em Paidéia, fui encontrá-la a pouco mais de mil páginas adiante,
no livro. Depois das páginas 144-145, eis que na página 1347
uma outra vez, e agora em nome de Platão, a mesma junção
das duas palavras aparece. E notemos que são raros em todo o
livro momentos em que as palavras paidéia, pedagogia, apare-
cem acompanhadas de um qualificador. Em outros momentos
o complemento de uma educação é, digamos, funcional, como
logo abaixo se verá em: “educação elementar”. Ou então irá

143
surgir como um quase oposto de uma educação... “popular”,
como em “alta educação”.
Antes de transcrever a longa citação do livro devo ante-
cipar que nesta página todo o parágrafo que a encerra está
cercado por colchetes, e será seguido por uma misteriosa nota
de rodapé. Dou a palavra a Werner Jaeger:
Na realidade a criação dum sistema com-
pleto de educação elementar, encarado
como Paidéia do povo e base da alta
educação de que nas obras anteriores se
ocupara, constituiu uma das mais auda-
ciosas inovações de Platão, digna do seu
grande gênio educativo. É o último passo
para a realização plena do programa do
movimento socrático, um passo chamado
a ter uma importância incalculável, apesar
de nenhum legislador do seu tempo se ter
sentido tentado a tornar realidade o ideal
platônico duma educação geral da massa
do povo. Como se pôs em evidência, foi
quando a educação pretendeu ser mais do
que uma aprendizagem meramente téc-
nica e profissional, com o primitivo ideal
aristocrático de formação da personali-
dade humana no seu conjunto, que, como
sempre sucede no mundo, a história da
paidéia grega começou. Este ideal de aretê
foi transplantado para a educação dos
cidadãos que, sob novas condições sociais
da Cidade-Estado grega do período clás-
sico, desejavam participar na kalokagathia
das classes mais cultas; mas, mesmo na
democracia ateniense esta missão estava
inteiramente confiada à iniciativa privada
individual. O passo revolucionário que Pla-
tão dá nas Leis e que constitui a sua última
palavra sobre o Estado e a educação con-
siste em instituir uma verdadeira educação

144
popular a cargo do Estado. Platão atribui
nas Leis a este problema a mesma importân-
cia que na República concedia à educação
dos governantes. E é lógico que assim seja;
com efeito, onde é que este problema havia
de encontrar a atenção merecida, senão no
Estado educativo das Leis, baseado na har-
monia ideal entre o governo e a liberdade?
(Paidéia - 1347)14.

Werner Jaeger vai ainda além, ao afirmar que entre os gre-


gos, e talvez pela primeira vez de forma explícita e como um
programa de Estado, é o aristocrata Platão quem reclama uma
paidéia para o conjunto de todas as pessoas de uma polis.
Procuremos entender mais a fundo alguns sentidos mais
evidentes na passagem acima. Depois de no seu bem mais
conhecido e controvertido livro, República, Platão – que dela
pretendia expulsar os poetas, enunciadores do mito contra o
logos – sugere uma educação destinada a formar essencialmente
os governantes, a aristocracia não monárquica e tirana, mas, de

14 Além de vir cercada de [ ] a longa e muito reveladora citação de Werner


Jaeger traz em sua nota de rodapé a seguinte observação na edição em
Espanhol, preservada na edição em Português onde a li e transcrevi.
O texto entre [ ] não consta na edição alemã; foi acrescentado pelo autor
na edição espanhola revista pelo autor – NT.
Esta observação do tradutor espanhol de Paidéia é extremamente insti-
gante. Afinal, quais os motivos pelos quais uma passagem tão relevante
compareça na edição espanhola entre colchetes, e não exista na edição
original em alemão? Observemos que a tradução espanhola foi revista
pelo autor, o que descarta a ideia de que de forma ousada, e não muito
honesta, o tradutor a tivesse incluído por conta própria. Terá Werner
Jaeger aprendido com os espanhóis o que os alemães não lhe ensinaram?
Ou terá ele ousado deixar na edição em Espanhol o que não se atreveu
a escrever na alemã? Teria ele deixado em uma edição e negado na outra
uma afirmação de resto bastante controvertida em Platão?
Na citação acima de Paideia todas as palavras grifadas em tipo normal
são do autor. As grifadas em negrito correm por minha conta.

145
qualquer modo, autocrática e restrita a um círculo de cidadãos
esclarecidos e escolhidos.
Já em um trabalho posterior, Leis, Platão com evidência
estendeu o direito e o dever do educar-se. Para além do acesso
ao conhecimento das práticas do fazer, e alargada aos saberes
das éticas do agir e das lógicas do pensar, ele propõe uma pai-
déia devotada por igual a todas as categorias de pessoas da
cidade. Ou quase todas, pois não fica claro se nela estariam
os escravos incluídos. Neste sentido Plantão irã mais além do
próprio Sócrates, e muito mais além dos sofistas com quem
polemiza ao longo da vida, ao reclamar para “o povo” não
apenas a instrução funcional que gera o homem-prático-desti-
nado-ao-trabalho-manual, como o trabalhador do campo e da
cidade em Hesíodo - mas jamais em Homero. Ele teria proposto
uma formação integral que salta do ensino da tekné para o
da poésis, e de uma maneira que hoje chamaríamos de “inte-
gral”, uma paidéia que forma e aperfeiçoa o sujeito-educado e
destinado ao exercício do trabalho político. E, relembro, “polí-
tico” deve ser lido aqui no sentido ancestralmente grego desta
palavra: o sujeito corresponsável pela gestão de sua polis. Um
sentido ao longo dos séculos retomado por vários educadores,
de que Paulo Freire será um entre outros pensadores e homens
de ação próximos.
Se pudermos por um momento refletir sobre diferentes sen-
tidos do “popular” qualificando uma modalidade de pedagogia
entre os gregos clássicos, seria possível identificar duas linhas
não divergentes, mas diversas de pensamento e de propósito.
E isto me parece relevante, porquanto esta mesma diferença
deverá estender, entre variações no tempo e no espaço, até nós e
nossos dilemas. E acredito que uma terceira variante do “popu-
lar” na educação transformará em um triângulo de alternativas
o que antes foi simbolicamente uma linha e, depois, um ângulo.
Em uma primeira direção, aquela que um humanismo-ilu-
minista reacendeu na Europa de dois oi três séculos atrás, um
sentido de educação popular, ou de popular na educação estaria

146
entre teorias, propostas e projetos de levar ao povo algo da
“alta cultura” até então restrita a homens e mulheres que não
precisam usar as mãos para proverem a sua subsistência e a de
outros. Esta, em linha direta, será a vertente de Platão em Leis.
Dado que a instrução restrita aos domínios diversos da
tekné prepara para o exercício de algum ofício o trabalhador,
mas não o cidadão, competiria a uma formação escolar conti-
nuada o ensino dos saberes que tornam um homem do trabalho
produtivo, também um cidadão da polis e um garantidor de
seus preceitos e leis.
O outro sentido proviria em linha direta de Hesíodo. Agora
a direção da paidéia não é “o que vai ao povo”, mas “o que vem
do povo”. Pois, em linha direta com o poeta de Os trabalhos e
os Dias, em boa medida o que constitui os fundamentos de uma
outa educação não são os preceitos, valores e saberes de uma
classe nobre e guerreira, a erem estendidos a todos os cidadãos
da polis, mas, em direção oposta, são os saberes, valores e pre-
ceitos derivados do trabalho produtivo os que deveriam fundar
a formação do homem livre, entre o camponês, o artesão, o
cidadão, o legislador e o guerreiro.
Não seria preciso um grande esforço, penso eu, para se
reconhecer nesta diferença não-divergente dois fundamentos do
que veio a ser, bem mais tarde, a educação popular originária de
pensadores e educadores latino-americanos, na esteira de Paulo
Freire.
Um sentido não propriamente “popular”, mas claramente
“publico”, de acordo com o valor dado a esta palavra, derivada
tanto de polis (a cidade do povo), em grego como de populus (o
povo da cidade) no latim dos romanos, Aristóteles – que inclu-
sive foi preceptor de Alexandre Magno na Macedônia – reclama
uma educação oferecida a todos e partilhada em comum. Neste
sentido, e para além até mesmo de Sócrates e de Platão, Aris-
tóteles irá condenar tanto uma educação “caseira” dos filhos,
quanto a educação “particular” de escolas pagas destinadas de
modo geral aos filhos dos nobres e abastados.

147
Aquilo que é peculiar a uma pessoa (a sua legítima
dimensão “idiota”) que possa ser aprendido junto aos pais, a
preceptores e em escolas e academias privadas. Mas os sabe-
res, sentidos, significados e habilidades comuns a todos, ou ao
mesmo o que ele entenderá por “cidadão”, que seja a todos
estendido em centros de formação da cidade, ou seja, do Poder
de Estado. Que a todos seja estendido o aprendizado de fundo
de que derivam as “ações virtuosas”.
E isto se justifica porque justamente em uma democra-
cia a pessoa livre não é libertada de seus deveres para com a
cidade. Pois antes de pertencer-se a si-mesmos “todos os cida-
dãos pertencem à cidade”. Uma vez mais, e agora dentro de um
sistema plenamente “realista” de pensamento filosófico e polí-
tico, e longe do “idealismo” de Platão, em Aristóteles também
os legítimos direitos “idiotas” devem subordinar-se aos deveres
“políticos.
Demais, em toda espécie de talento ou
de arte, há coisas que é preciso conhecer
antecipadamente, e hábitos que é preciso
contrair, para estar em condições de exe-
cutar os trabalhos que exigem; assim, é
evidente que o mesmo deve acontecer
com as ações virtuosas. Mas, como existe
um objetivo único para a cidade, segue-
se que a educação também deve ser única
para todo, administrada em comum e não
entregue a particulares, como se faz hoje
dirigindo cada qual a educação dos seus
filhos e dando-lhes o gênero de instrução
que melhor lhes parece. No entanto, aquilo
que é comum a todos deve ser aprendido
em comum. Ao mesmo tempo, é preciso
não imaginar que cada cidadão se pertença
a si próprio, e sim que todos os cidadãos
pertencem à cidade; porque todo indiví-
duo é membro da cidade, e o cuidado que

148
se põe em cada parte deve, naturalmente,
harmonizar-se com o cuidado que cabe ao
todo. (A Política – livro oitavo – 171)15.

Mas antes mesmo de Aristóteles, já em Platão – e agora em


passagens sem dúbias notas de rodapé – a educação de todos
os jovens (estariam incluídas as jovens?) é, mais do que um
direito, um dever dos magistrados da polis. Fora o que venha a
ser peculiar na formação de uma pessoa, o que é comum para o
dever da partilha cidadã na gestão da cidade, deve ser por igual
ensinado a todas as crianças e todos os jovens. E não apenas
por ser a única instância da sociedade que pode oferecer uma
tal formação, mas por ser também a mais direta destinatária
das ações virtuosas da pessoa educada, ela, a dimensão polícia
da sociedade civil deve responder pela educação pública, em
seus dois sentidos desta palavra.
Assim, em um momento de Platão, através de Marilena
Chauí.
Se a justiça –dike – e a virtude –a aretê –
existem somente quando a razão governa
a concupiscência e a coleta, então a Cidade
deve ser governada apenas por magis-
trados. Mas, para isso, várias condições
devem ser preenchidas, e a primeira delas
é que a Cidade se encarregue da educa-
ção de todas as crianças, mesmo quando
algumas permanecerem com as suas famí-
lias. Essa educação deve ter como objetivo
determinar as capacidades e os limites de
atuação de cada uma das classes sociais.
(Introdução à História da Filosofia – dos
pré-socráticos a Aristóteles – 307)16.

15 Estou utilizando aqui a versão da coleção Livros que mudaram o Mundo,


da Folha de São Paulo, em tradução de Nestor Silveira, São Paulo, 2010.
16 Estou empregando aqui uma edição nova e revista do volume 1 da Intro-
dução à História da Filosofia, publicada pela Companhia das Letras, em
São Paulo, em 2002.

149
Se formos fiéis aos momentos finais da citação acima,
deveremos reconhecer que se houve em Platão (nas Leis, mas
não na República) uma vocação da uma “educação popular”,
ela terá sido não apenas diferenciada, das discricionariamente
popular. Pois se a todas as pessoas livres uma mesma educa-
ção de estado deveria ser impositivamente ofertada – como um
dever da pessoa e não como um direito seu – cada segmento de
classe da polis deveria receber uma diferente educação: a que
forma a elite governante, a que forma o filósofo e/ou o cien-
tista, a que forma o artista, e a que forma seja o artesão, seja o
homem do trabalho urbano ou rurícola.
Assim, a classe econômica dos agricultores-comerciantes
-artesãos deve ser educada para ter como função exclusiva a
sobrevivência da Cidade e viver de acordo como os limites esta-
belecidos pelo magistrado. Impedindo que a busca das riquezas,
luxos e prazeres perverta a cidade. Para tanto deve ser educada
para a frugalidade e a temperança, que se tornam, portanto,
virtudes cívicas. (Introdução à História da Filosofia – dos pré-
socráticos a Aristóteles – 307).
Platão terá aprendido com Sócrates e terá ensinado isto
à Grécia de seu tempo, pois não era diversa a educação que
momentos ante de sua morte Sócrates reclamou a seus discípu-
los, como os valores centrais da educação de seus filhos.
Um passo seguinte em direção a uma educação popular
cuja radicalidade a opõe a todas as vocações a ela estendidas
desde a Grécia Clássica, deverá esperar ainda pelo menos dois
milênios. Afinal, tudo o que foi narrado, transcrito e escrito
aqui aconteceu séculos antes do surgimento do que veio a ser
convencionalmente chamado de “DC – Depois de Cristo”.

150
EDUCAÇÃO PÚBLICA, EDUCAÇÃO
ALTERNATIVA, EDUCAÇÃO POPULAR E
EDUCAÇÃO DO CAMPO

Preâmbulo

C
inquenta e quatro anos depois, o que há ainda para falar
a respeito da educação popular? O que há para prati-
cá-la? Quando? Junto a quem? Em nome de quem? Do
que? Como?
Um recente Fórum Internacional Paulo Freire reuniu em
2014 em Turim um número grande de pessoas para quem Paulo
Freire e seu legado constituem ainda, mais uma presença para pen-
sar e agir hoje e agora, do que uma mera memória que de tempos
em tempos alguém relembra e festeja com pedagógica saudade.
Uma das experiências mais felizes que tenho vivido nos
últimos “encontros “freireanos” (o próprio nome não é dos
melhores) é a presença de jovens e adultos-jovens, mais nume-
rosa do que a das “velhas testemunhas da história”, como eu
mesmo. Entre alguns anos e outros, quando nos encontramos,
nós, “os dos anos sessenta”... quando tudo começou”, lembra-
mos os que partiram e recordamos os que já se sentem velhos e
cansados o bastante para não se aventurarem mais a jornadas
como a de Turim. Somos cada vez menos os que vivemos a ven-
tura de partilhar com Paulo Freire não somente os seus escritos
e suas ideias, mas um trecho de sua vida.
Nos anos que foram de 2011 a 2014 estivemos comemo-
rando e recordando cinquentenários marcantes, sobretudo para
os que viveram de forma direta ou indireta aquilo que juntos
relembramos. Em 2011 festejamos os cinquenta anos da ins-
tauração da educação popular no Brasil e, depois, em toda a
América Latina, a partir dos trabalhos da primeira equipe de
Paulo Freire no Nordeste, e a partir da criação de movimentos

151
de cultura popular e de centros populares de cultura no Brasil.
Em 2012 lembramos a realização no Recife do Primeiro Encon-
tro Nacional de Movimentos de Cultura Popular. Pela primeira
vez nós nos reunimos para pensarmos juntos quem éramos e o
que imaginávamos poder fazer. Por uma primeira vez de uma
forma tão afoitamente interativa, a educação abria-se á política,
a pedagogia á poesia, a ciência ao teatro (lembrar o “Teatro do
Oprimido”, de Augusto Boal) e a militância à revolução.
Em 2013 vários de nós retornamos ao Nordeste para
celebrar em Angicos, no Rio Grande do Norte, as primeiras
experiências de alfabetização popular (e não apenas “para o
povo”) com o novo “Método de Alfabetização Paulo Freire”.
Mas em 2014 “desfestejamos” os cinquenta anos do golpe mili-
tar no Brasil. Poucos meses antes do golpe militar Paulo Freire
e a sua equipe haviam sido chamados a Brasília para impulsio-
narem uma ampla e radical Campanha de Alfabetização. Ela
nunca foi sequer iniciada. Paulo Freire e tantos e tantas outras
estiveram presos e foram exilados.
Quando nós, as pessoas que se reconhecem praticantes,
militantes e participantes de algo a que ao longo desses anos
todos nos tem reunido ao redor da educação popular, nos colo-
camos frente ao mundo em que praticamos esta modalidade
humanista, crítica, criativa e transformadora da/através da
educação, o que temos agora diante de nós é uma estranha e
desafiadora realidade. Ela nos aparece como algo que ao mesmo
tempo em que dá continuidade aos trabalhos culturais-pedagó-
gicos dos anos em que “tudo começou”, hoje nos escancara
uma face múltipla, ou mesmo faces plurais. Rostos e nomes de
“educações” em boa parte diversas e, em alguns casos, quase
divergentes daquilo que por muito tempo nos acostumamos a
chamar de “educação popular”.
Não esqueçamos que nos “tempos originais”, tanto para
a cultura popular quanto para uma de suas vocações, realizada
como uma ação social através da cultura: a educação popular
– o que nos movia então eram palavras que continham ideias

152
e acentuavam propostas regidas por: participação, transfor-
mação, revolução. Transformação de estruturas da mente, da
consciência, da cultura, da sociedade, do mundo. Transforma-
ções radicais (desde as raízes), estruturais (não de partes ou
sistemas da sociedade, mas dela toda) e socialmente populares
(centradas em lutas e políticas “de classe”). Ou seja, transforma-
ções de toda uma sociedade e não adaptações modernizadoras
e ilusoriamente realizáveis de acordo com o estilo desenvolvi-
mentista do sistema capitalista hegemônico.
Paulo Freire e outros muitos “educadores libertadores” – a
expressão “educação popular” será tardia nos livros de Paulo -
não foram exilados apenas porque pretendiam semear pelo País
uma educação de cunho libertário e socialista - revolucionário,
portanto. Foram presos e exilados por se voltarem contra uma
“educação do Estado colocada a serviço dos interesses hegemô-
nicos da ordem do capital e, não raro estreita e ardilosamente
patriótica1.
Lembro que este escrito está dividido em tópicos que
valem mais como crônicas críticas do passado e do presente, do
que como unidades orgânicas de um todo coerente, tal como se
deveria esperar de um artigo sobre a educação. Quero acreditar
que minhas palavras haverão de ser antecedidas e completadas
por outras, de outros autores convidados a este colóquio-por
-escrito. Pessoas que desde anos mais próximos ao presente do
que eu, saberão dar aos dilemas e caminhos de uma educação
popular de hoje sentidos e rumos bastante mais convincentes e
confiáveis do que os meus.

1 Este poderia ser o momento oportuno para lembrar que o Instituto Paulo
Freire editou, junto com outras instituições do Brasil, o Pedagogia do
Oprimido em edição fac-símile. Na edição do manuscrito de Freire é pos-
sível descobrir passagens importantes e pequenos esquemas desenhados
que não constam das edições “oficiais”. É possível notar também a pre-
sença de um tópico com este nome: teoria da revolução, que não aparece
nas edições oficiais.

153
Educação pública... educação popular?

Fora locais e momentos de exceção – não raros efêmeros


- em sua forma moderna a educação pública surge na Europa
junto com o nascimento de estados-nação na Europa. Ela emerge
e depressa se difunde em países submetidos a conflitos internos
ou externos, em um tempo entre fins do século XVIII e o século
XIX, quando conflitos internos e guerras entre velhas e novas
nações europeias eram mais a regra do que a exceção. Surge,
portanto, no interior e a serviço de sistemas políticos nacionais
fortemente militarizados, entre os armamentos, os exércitos e
a educação ofertada a crianças e a jovens. Um de seus locais
pioneiros de origem e acelerada expansão é a Prússia, o mais
militar e belicoso dos países da Europa de seu tempo.
Seu modelo mais imediato é o exército e não a sociedade.
Mais tarde e sob o impacto da revolução industrial ela será
a empresa e, não, a comunidade. E fora breves momentos de
exceção, à direita e à esquerda uma educação pública de matriz
europeia dirige-se através de suas escolas “abertas a todos” a
instruir e formar crianças e jovens entregues à tutela de um
poder de estado empenhado em gerar cidadãos letrados, escla-
recidos e disciplinados, ou seja, pessoas prontas a “viver e
morrer pela Pátria”... ou pela empresa. Sabemos que o abe-
cedário pedagógico de muitas de nossas escolas ainda começa
com a letra “d”, e da palavra “disciplina” derivam quase todas
as outras. Uniformes, formaturas de estilo militar, cultos aos
“símbolos da Pátria” serão a sua rotina diária. Raros demais
os currículos em que uma História da América justa e iguali-
tária seja até hoje ensinada a crianças e a jovens. Um discreto
acento humanista-iluminista apenas em parte escondia o teor
uniformemente disciplinador da escola pública em suas ori-
gens. Entre outros estudiosos muito conhecidos é delas que
fala Michel Foucault.
Em boa medida esta é a primeira matriz de uma pedagogia
normativa e oficial da escola pública dos séculos XVIII e XIX,

154
que as políticas públicas diferenciadamente importam para a
América Latina.
A Inglaterra da revolução industrial traz para a educação
pública a sua outra face. Em um país que desde cedo aprendeu a
separar - ao estilo grego arcaico - a elite aristocrática e, depois,
a burguesia florescente que deveria governar e administrar, da
massa das “pessoas comuns” (professoras/es incluídas) desti-
nadas a obedecer e a trabalhar, reduziu no essencial o acento
militarmente patriótico de suas escolas, e incorporou a elas o
que outros países da Europa tardaram a acrescentar às deles,
e que depressa os Estados Unidos da América do Norte inova-
ram e tornaram o centro do espírito do ensino de suas escolas
públicas: o foco sobre a formação de cidadãos competentes-
competitivos direcionados à empresa e à indústria em tempos
de paz, e às forças armadas em tempos de guerra. Algo cedo
descoberto como um outro “bom negócio”. E esta tem sido
de forma acelerada nos últimos trinta anos, a outra face que
também as nossas políticas públicas – com raras exceções em
efêmeros momentos de outras políticas públicas - incorporam
aos currículos de suas escolas.
À direita e à esquerda, entre as ideologias e os regimes
políticos de vocação totalitária, praticamente todos os educa-
dores, de Sócrates a Paulo Freire, foram colocados à margem.
Foram por algum tempo tolerados e, depois, como os poetas,
oficialmente proscritos ou “esquecidos’. Em outros contextos
foram tidos como curiosos criadores de estranhas pedagogias
e escolas “alternativas”. E em outros, mais extremos, foram
perseguidos, presos, exilados ou mortos. As ideias e as propos-
tas pedagógicas cultural e/ou politicamente inovadoras, fora
as raras exceções das diferentes escolas alternativas, de que as
“antroposóficas” são talvez o mais conhecido e universalmente
difundido exemplo, são aceitas como experiências singulares,
quase sempre dirigidas “aos que podem pagar”. E quando, em
outra direção, elas são criadas pelo operariado e diretamente
dirigidas ao povo, do século XIX às ditaduras latino-america-

155
nas do século passado, elas foram severamente perseguidas e,
aqui e ali, fechadas, não raro entre tiros e prisões. Foi isto o
que ocorreu com as “escolas anarquistas” de vocação libertária
durante algum tempo implantadas no Brasil por operários emi-
grantes europeus e dirigidas a filhos de trabalhadores2.
Uma “educação pública popular” é quase sempre efê-
mera, ou deprava-se como uma educação pública submetida a
um poder de Estado através da subserviência do povo, mesmo
ou principalmente quando se anuncia como uma educação
a “serviço da sociedade civil”. No Brasil, durante a vigência
do Partido dos Trabalhadores, no governo da Federação, no
de alguns estados e no de inúmeros municípios, a “educação
popular” foi decretada oficialmente como a própria “política
da escola pública”. Foi então o breve e fecundo tempo da cria-
ção de “escolas cidadãs”, de “escolas candangas”, e de outras
“escolas populares” com outros nomes e uma declarada voca-
ção comunitária e participativa. Foi o tempo das assembleias
populares sobre a educação, dos coletivos pedagógicos, das
gestões partilhadas, dos orçamentos participativos, das pesqui-
sas prévias junto às comunidades de acolhida das escolas para
a elaboração de propostas curriculares questionadoras. Hoje,
fora alguns contextos muito raros, de tudo o que se fez resta a
memória saudosa de algumas professoras e algumas disserta-
ções e teses de pós-graduação.
Na vigência do atual governo da Federação, Paulo Freire
foi decretado “Patrono da Educação Brasileira”, e o ministério
da educação elaborou um documento que funda na educação
popular a política pública de educação no País. Nada há no
horizonte que torne uma confiável prática esta vaga proposta.
Ao contrário, pessoas que militam no Conselho Nacional de

2 Norma Elizabeth Pereira Coelho defendeu na Faculdade de Educação da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul uma tese de doutorado sobre
este assunto: os libertários e a educação no Rio Grande do Sul (1895-
1926), Porto Alegre, 1987.

156
Educação resistem como podem a um avanço evidente e cres-
cente do ideário neoliberal, defensor da “escola para a empresa”
e da “educação como negócio”.
A citação abaixo poderia ser tomada como o “mote” de
apenas uma face das críticas que educadores contrários a este
horizonte pedagógico oficial no Brasil fazem à escola pública.
Numa breve perspectiva histórica, na
América Latina, especialmente no Brasil,
a escola pública não tem sido uma insti-
tuição pensada para o acolhimento das
classes populares.
...
Na América Latina, nos países cujos mode-
los políticos e econômicos se pautam pela
ideologia desenvolvimentista, a escola,
especialmente a escola pública, teve como
um de seus principais objetivos, junto
às classes populares, prepará-las para o
mundo do trabalho, garantindo uma força
de trabalho minimamente educada, além
de inculcar e difundir a ideologia liberal de
aceso e democratização do conhecimento
socialmente produzido para todos.3

Conhecemos de sobra algumas razões visíveis a respeito


da distância, ou mesmo de uma dissonância entre a educação
pública-estatal e a educação popular. Uma delas é difundida o
bastante para não ser mais do que apenas sumariamente relem-
brada aqui. A educação popular não se apresenta como um
serviço cultural através da educação estendida ao povo, mas

3 Esta passagem está no artigo de Maria Teresa Esteban e Maria Tereza


Goulart Tavares: Educação popular e a escola pública – algumas ques-
tões e novo horizontes, na página 293 de Educação popular – lugar de
construção social coletiva, livro organizado por Danilo Streck e Maria
Teresa Esteban.

157
como uma ação pedagógica colocada a serviço do povo. Colo-
cada, na contramão, a serviço direto de sua formação e de seu
crescente e irreversível empoderamento como um agente ativo
de transformações sociais quase sempre hostis a poderes de
Estado liberais, neoliberais ou liberalmente populistas. Hostis
a tais políticas e, mais ainda, aos interesses dos polos político
-econômicos aos quais serve o um poder público colonizado.
Mas há também um outro um motivo do descolamento
entre a educação popular e as nossas políticas governamen-
tais de educação. E ele tem sido sutilmente o mais esquecido.
Ao deslocar de um poder-de-estado para instituições e frentes
de lutas populares o seu lugar de inserção, a educação popu-
lar desqualifica a essência de um teor nacionalista-patriótico
de qualquer educação pública. Veremos mais adiante como
a educação popular, a partir de Paulo Freire, em muito breve
tempo passa de “nordestina” a “brasileira”, de “brasileira” a
“latino-americana” e de “latino-americana” a “altermundista”.
Altermundista aqui num duplo sentido da palavra. Primeiro:
universalista a partir das classes e dos movimentos populares –
de que hoje em dia a Via Campesina é um exemplo eloquente.
Segundo: integrada ao princípio de que cabe ao povo – nós
incluídos, segundo a minha visão – a criação de “um outro
mundo possível”.
Assim, como um educador popular, diante do enfrenta-
mento entre movimentos camponeses paraguaios e a política
expansionista de meu País, o Brasil, eu me coloco ao lado dos
camponeses paraguaios e contra a política agrária de meu País.
E com eles aproveito para aprender a reler uma outra versão
da “Guerra da Tríplice Aliança”. Um conflito no Brasil até hoje
ensinado em nossas escolas como uma triunfante “Guerra do
Paraguai”.
Uma primeira lição difícil de ser aprendida entre nós, é a
de que a partir do momento em que “para além do nacional”
você se coloca “ao lado do povo”, toda essa criação das elites
governantes chamada: “nacionalismo”, torna-se algo a superar

158
em nome de um pan-universalismo popular, popular e desfron-
teiradamente fraterno.

Educação popular e o desafio do diálogo

Há pelo menos duas variantes na compreensão do que seja


a educação popular.
Primeira: ela é uma modalidade de pensamento, de prá-
tica pedagógica e de ação política dela derivada, dirigida às/
pelas classes populares e devotada a participar de processos em
que elas se tornam protagonistas de transformações sociais. Ela
surge por volta dos anos 60 na América Latina e radicaliza teó-
rica, pedagógica e politicamente o que também na Europa foi
em alguns momentos e lugares chamado de educação popular.
Isto porque ela não se dirige como um serviço suplementar de
educação às camadas populares, mas porque ela pretende se
colocar pedagogicamente a serviço das classes populares para
que elas próprias estabeleçam o seu destino como classe e o teor
de suas ações políticas transformadoras.
Segunda: aquilo a que damos agora o nome de educação
popular é algo que ao longo da trajetória humana aconteceu
e segue acontecendo em diferentes momentos e em diversos
lugares sociais. Com diversas assinaturas e ideologias políticas
e propostas pedagógicas de sua realização, emerge o aconte-
cer de uma educação popular sempre que uma crítica radical a
um poder política, a uma hegemonia econômica, a uma colo-
nização cultural através inclusive de uma educação, associa-se
a um projeto originado das classes populares ou assumido por
elas como seu. Um projeto que justamente repensa a educação
como cultura, a cultura como política e a política como trans-
formação social de vocação popular.
No caso brasileiro e para ficarmos aqui na escolha da pri-
meira alternativa, lembremos que embora os movimentos de
cultura popular da aurora dos anos sessenta surjam tanto “no
campo” quando “na cidade”, em sua vocação freireana e mais

159
difundida, uma educação popular é dirigida diretamente ao
campesinato situado nas regiões mais pobres e menos desen-
volvidas do Brasil: o Nordeste, o Centro-Oeste e a Amazônia.
As primeiras experiências nordestinas de fato marcantes são
rurais, a começar pelas “Quarenta horas de Angicos”. E o
Movimento de Educação de Base, a mais expandida e expres-
siva instituição derivada dos MCPs é absolutamente rural.
Entre a educação popular dos anos sessenta – apenas tardia-
mente assumida com este e nome “educação popular” – e a
educação do campo, que trago a este artigo, há um intervalo
de mais de cinquenta anos.
Ora, uma peculiaridade nuclear da educação popular
desde suas origens remotas até os dias de hoje, separa-a ide-
ológica, política e pedagogicamente de outras vertentes de
educações de vocação classista, transformadora e revolucioná-
ria. No imaginário da educação popular não deve existir um
polo central, uma agremiação de teoria-e-prática, um partido
ou o que seja, com poderes de gestão e direção dos processos de
saber-fazer, no encontro entre um “nós” educadores populares
não “do-povo”, e “eles’, educadores populares no duplo sen-
tido da palavra “popular”.
A educação popular consagra no diálogo não apenas uma
metodologia de valor e de atuação pedagógica, de que o “cír-
culo de cultura” seria a mais conhecida imagem. O diálogo é,
nela, o começo e o final de todo o acontecer do ensinar-a-apren-
der. Em suas formas mais radicais – aquela que eu pessoalmente
assumo – a sua “palavra de ordem” é uma assumida e inicial
“desordem pedagógica”. É a ideia de que com um mínimo de
propostas de base, tudo o que se realiza como e através da edu-
cação popular parte de um encontro tão igualitário quanto
possível e imaginado de saberes e significados. De uma “turma
de alfabetizandos” a uma instituição ampla de criação de uma
“proposta de educação popular”, são coletivos tão igualados
e igualitários de poder de pensar, dizer e decidir aqueles que
geram e gerenciam um trabalho de educação popular.

160
A simples leitura da “bibliografia” ao final de uma “linha
do tempo” que vai dos primeiros livros e artigos de educação
popular até os mais atuais, deixará claro que mesmo quando
uma crítica da sociedade possui em autores como Marx e
Gramsci os seus fundamentos, a partir do próprio Paulo Freire,
uma vocação dialogicamente humanista – entre as infinitas
variações desta ampla e, não raro, vaga palavra – será sempre
o seu horizonte. E isto nos acompanha até hoje, se quisermos
ser francos e transparentes. Desde o começo dos anos sessenta
Cuba nos foi um horizonte – inclusive para militantes cristãos
– e a educação cubana nos era um modelo escolar. Mas pensa-
dores e educadores cubanos foram e seguem sendo entre nós,
educadores populares latino-americanos, absolutamente raros.
Até onde posso me lembrar, eles não comparecem nos livros de
coletâneas de textos mais recentes. Deixo em aberto esta intri-
gante questão.
Em um livro a meu ver absolutamente atual, Alfonso Tor-
res Carrilo acentua este suposto.
A militância cristã de Freire e o carác-
ter humanista de sua proposta fez com
que sua proposta tivesse acolhida den-
tro da Igreja; primeiro o MEB do Brasil
(o Movimento de Educação de Base, ao
qual pertenci – CRB) assume a sua meto-
dologia e posteriormente a Conferência
Episcopal de Medellín (1968); deste modo
os fundamentos e a metodologia de Freire
influem naquilo que posteriormente seria a
Teologia da Libertação. Muitos religiosos
e cristãos comprometidos com os pobres
veriam na Educação Conscientizadora a
metodologia mais coerente com as ações
pastorais e educativas4.

4 Está na página 28 de La educación popular – trayectória y actualidad,


justamente no tópico: los inícios – la educacion liberadora de Paulo Freire,

161
Ainda que as palavras acima possam ser relativizadas,
sobretudo quando estendidas ao contexto de toda a América
Latina, não deve haver quem duvide de que este foi sempre um
dos pontos mais polêmicos e críticos nos diálogos entre mili-
tantes de uma educação popular de vocação freireana e outros,
que em nome de uma ação política mais diretamente classista
defendem que devem ser mais diretivamente centrada em polos
partidários, ou não, as propostas de transformações da socie-
dade e de uma formação política das classes populares.
A radicalidade de uma pedagogia centrada num diálogo
entre pessoas, culturas e classes sociais na construção de cada
momento, e do todo do acontecer da educação, foi e segue
sendo desde os anos pioneiros até o momento presente, ao
mesmo tempo a força humanamente pedagógica e a debilidade
política da educação popular. Não apenas as idéias, mas as
experiências pessoais de Paulo Freire e de incontáveis segui-
dores seus ao longo do tempo são a própria evidência de uma
coisa e da outra. Ele foi ao longo de toda a sua vida um defen-
sor radical da dialogicidade na/da educação. Sou testemunha
ocular da maneira como Paulo Freire não aceitava, sob pre-
texto algum, a imposição não apenas de idéias – inclusive as
suas - mas também de propostas e projetos pre-construidos por
unidades de educadores e, depois, “levadas prontas” ao povo.
Um dos entraves de sua atuação como educador junto ao Par-
tido dos Trabalhadores esteve sempre em sua não-aceitação de
que em programas de educação um partido qualquer pudesse
“levar pronta” uma proposta, mesmo quando saída de debates
entre os seus dirigentes ou militantes mais diretamente ligados
à educação.

quando Carillo comenta justamente a conjuntura brasileira do começo


dos anos sessenta. Chamo a atenção para a expressão “liberadora”, indi-
cativa de que a própria palavra “popular” no começo dos anos sessenta
no Brasil não qualificava a proposta pedagógica de Paulo Freire, e servia
apenas a unificar a ideia de uma “cultura popular”, de que uma “educa-
ção liberadora” seria uma dimensão e uma frente de ações entre outras.

162
A partir do próprio Paulo Freire em seus últimos escritos,
a educação popular abre-se a um diálogo com outras modalida-
des de ação social - no que recupera em boa medida a tradição
original vinda da Cultura Popular dos anos sessenta no Bra-
sil – com a contribuição de outras e pluri-diversas teorias e
propostas vindas das ciências sociais e de ramas humanistas
da filosofia, com diversas vocações outras da própria educa-
ção, inexistentes ou incipientes nas duas décadas antecedentes,
como a educação dos (e não apenas “para os”) movimentos
sociais, a educação ambiental, a educação para a paz, a edu-
cação e direitos humanos, e outras mais. Na verdade, é preciso
lembrar que a redemocratização relativa de países da América
Latina e o empoderamento de alguns movimentos populares
forçou a própria educação popular, pelo menos em algumas de
suas vertentes mais próximas a tais movimentos e frentes de
luta, a se colocarem como instancias de apoio político-peda-
gógico a ações educativas presentes e ativas nos/dos próprios
movimentos populares. Mais adiante nos encontraremos com a
educação do campo como uma de suas modalidades.
De outra parte, algumas vocações mais recentes e uni-dire-
cionadas de educações posteriores não raro aproximavam-se da
educação popular e identificavam suas práticas setoriais como
também “populares”. Este é o sentido em que aqui e ali se fala
em educação ambiental popular.
Esta abertura inevitável em múltiplas direções e em diá-
logo com diversos atores sociais levou a educação popular em
boa medida a migrar de uma exclusiva ou prioritária “leitura
classista ortodoxa da sociedade à incorporação de outras pers-
pectivas e categorias analíticas como hegemonia, movimentos
sociais, sociedade civil e sujeitos sociais” (Torres, 2012; 78). A
própria categoria “povo” passou a receber diversos e, não raro,
divergentes sentidos entre educadores populares. Este é tam-
bém o tempo histórico em que sobretudo em países pluriétnicos
e culturais, como o Brasil, outros atores étnicos, culturais e
sociais se fazem presentes e obrigam a própria educação (inclu-

163
sive as das políticas públicas) tanto a uma completa revisão de
seus conteúdos pedagógicos, quanto á incorporação de novas
escolas e educações São exemplos no Brasil a educação indí-
gena e a educação em comunidades quilombolas.
Também serão os educadores populares destes países os
mais sensíveis a incorporar ao círculo dos saberes, sentidos,
significados, sensibilidades e sociabilidades de “outros povos
e de outras culturas”, o núcleo não apenas do campo teórico
-ideológico dos saberes, mas também ao de suas outras éticas,
estéticas, eróticas e políticas.
Uma pedagogia “conscientizadora e politizadora”, desti-
nada em seu horizonte a transformações radicais da sociedade
através de uma conquista popular do poder, tende a ser relati-
vizada e repensada no campo das diferenças entre os diversos
contextos sociais. Ainda que para a maior parte dos educadores
populares o povo – no sentido original de classe-para-si – seja
o, ou um sujeito protagônico dos processos de luta e mudança
social, há um alargamento do sentido político das próprias
transformações a serem processadas e seus horizontes.
A persistente crise da busca de um modelo histórico de
sociedade para além da capitalista parece estar exercendo
junto a muitos pensadores do presente e do futuro próximo
uma descrença não apenas na viabilidade de uma transforma-
ção social em direção a um outro modelo, como também até
mesmo o horizonte da possibilidade de um projeto de futuro
em nome de um mundo que desloque do mercado e do capital
para o ser humano e o mundo da vida social, o eixo de poder
de transformação do presente e de gestação e gestão de um
“outro futuro”.
Sensível a um diálogo com vertentes de pensamento teó-
rico, de construção do conhecimento e de suas derivações
para a educação fundadas em autores que não raro provém
mais da física quântica e da biologia do que da economia e da
política, desde alternativas bastante diferenciadas educadores
populares acolhem novas compreensões de fundo “holístico”,

164
“multicultural”, “integrativo-interativo” e dialogicamente
“transdisciplinar”. Esta derivação inevitável, ao ver de alguns
desloca uma primazia da questão social de um plano socioeco-
nômico, em direção a compreensões mais totalizadoras tanto
do acontecer humano quanto da complexidade da sociedade.
Tal como ocorre no interior e em áreas de fronteira das
próprias vertentes marxistas da educação, entre educadores
populares de agora, questões relacionadas à individualidade,
á identidade, á afetividade, à conectividade centrada em
dimensões que chegam a submeter a racionalidade à afetivi-
dade, tendem a constituir cada vez mais o próprio centro das
reflexões teóricas sobre conhecimento-consciência e, por con-
sequência, as linhas de direção de uma educação que somente
pode ser “popular” se for popularmente sensível e totalizante-
mente humanizadora.
Enfim, mesmo entre os herdeiros mais fiéis das tradições
originais freireanas, na trilha dos próprios últimos escritos de
Paulo Freire educadores populares latino-americanos migram
da unicidade de metodologias de pedagogia e pesquisa, centra-
das de forma direta ou indireta em abordagens dialéticas, em
direção ao diálogo com outras correntes de pensamento e ação.
Neste sentido e apenas como um exemplo entre outros, creio
ser oportuno chamar a atenção para um deslocamento recente
e essencial, pelo menos no caso brasileiro. Após muitos anos de
absoluto distanciamento de pensadores e educadores portugue-
ses, hoje em dia o Brasil abre-se a um diálogo expressivamente
crescente com pedagogos de universidades de Portugal. E um
fecundo e pluri-dirigido diálogo pessoas como Antônio Nóvoa
e Boaventura de Souza Santos é bem a mostra dessa fecunda
e tardia evidência. Lembro também apenas de passagem que
Paulo Freire foi e se reconhecia publicamente como um educa-
dor fortemente influenciado por Franz Fanon. Em mais de uma
ocasião ele nos confidenciou que não raro aprendia mais com
os seus “mestres africanos”, como Samora Machel e Amilcar
Cabral, do que com reconhecidos pensadores da Europa.

165
Creio que entre teóricos essenciais da educação brasileira,
talvez o momento da “refundamentação da educação popu-
lar” apenas tenha retomado uma clivagem entre compreensões
“dialógicas” e “dialéticas” que, na verdade, já estavam criti-
camente presentes na complexa polêmica sobre o sentido de
“cultura popular” dos primórdios dos anos sessenta. Momen-
tos essenciais desta polêmica estão em alguns artigos reunidos
por Osmar Fávero em Cultura Popular e Educação Popular –
memória dos anos sessenta, já citado aqui. Esta é uma clivagem
que acompanhará a trajetória da educação popular e de outras
pedagogias de vocação emancipatória durante as suas trajetó-
rias e até o momento presente, e mais à frente veremos um sinal
de sua atualidade no Brasil de agora.
Demerval Saviani e outros intelectuais de reconhecida
importância irão se afastar de uma definida vertente freireana
da educação popular. Saviani irá elaborar a teoria de uma peda-
gogia histórico-crítica5. Sua proposta pedagógica esteve restrita
ao âmbito estritamente acadêmico durante vários anos, ao con-
trário do que ocorreu desde as suas origens com a educação
popular, que ingressou inicialmente na universidade pela porta
dos fundos, e até hoje em algumas delas dificilmente consegue
chegar até a sala de visitas.
Acredito que uma definida vertente dialética esteve sempre
presente no ideário e nas propostas de uma pedagogia mili-
tante em diferentes movimentos populares na América Latina.
Penso que no Brasil ela é a, ou uma das principais fontes de
idéias, propostas pedagógicas e projetos concretos de educação
e escola de movimentos populares hoje envolvidos em frentes
de luta pela conquista de diversos territórios: de territórios da
terra onde se planta a territórios do saber que se semeia.

5 Dentre os vários livros e artigos de Demerval Saviani a respeito de sua


proposta pedagógica talvez um dos mais importantes para a sua com-
preensão seja o Pedagogia Histórico-Crítica, publicado em 2000, pela
Editora Autores Associados, de Campinas.

166
O surgimento da educação do campo

A recente educação do campo talvez seja a sua melhor


evidência. E não ao acaso Demerval Saviani é um dos autores
mais lembrados entre os verbetes do Dicionário da Educação
do Campo, cuja primeira edição é, relembro, já do século XXI,
assim como os documentos que estabelecem a sua proposta6.
De igual maneira neste dicionário Paulo Freire é lembrado de
passagem, quando não omitido, e quase sempre apenas atra-
vés do Pedagogia do oprimido. O mesmo acontece com outros
educadores populares da vertente freireano-dialógica, à exce-
ção justamente do verbete: educação popular.
O Dicionário da educação do campo traz os seguintes
longos verbetes relacionados à educação: educação básica do
campo, educação corporativa, educação de jovens e adultos,
educação do campo, educação omnilateral, educação politéc-
nica, educação popular, educação profissional, educação rural.
Entre todos os verbetes, escritos por educadores de linha dialé-
tica ou não, a educação corporativa é apresentada como uma
iniciativa colonizadora do capital e uma tradicional educação
rural é criticada como uma “educação pública” desqualifica-
dora da “gente do campo”.
Assim, no verbete educação rural, Marlene Ribeiro escreve
o seguinte:

6 O surgimento da expressão “Educação do Campo” possui datas bem


definidas. Em um primeiro momento ela e a sua proposta surgem com
este nome: educação básica do campo, durante os momentos de prepa-
ração da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo,
realizada em Luziânia, Goiás, de 27 a 30 de julho de 1998. Poucos anos
mais tarde ela passou a ser oficialmente denominada educação do campo
a partir de um Seminário Nacional, realizado em Brasília, de 26 a 29 de
novembro de 2002 A decisão do novo nome foi depois reafirmada nos
debates da II Conferência Nacional, realizada em julho de 2004.

167
Deduz-se daí que a política educacional
destinada às populações camponesas teve
maior apoio e volume de recursos quando
contemplava interesses relacionados à
expropriação da terra e à consequente pro-
letarização dos agricultores. Associado a
esses interesses, identificava-se o projeto
de implantação, por parte das agências de
fomento norte-americanas, de um modelo
produtivo agrícola gerador da dependência
científica e tecnológica dos trabalhadores
do campo. Deste modo, a educação rural
funcionou como um instrumento forma-
dor tanto de uma mão de obra disciplinada
para o trabalho rural quanto de consumi-
dores dos produtos agropecuários gerados
pelo modelo da agricultura importado.
Dicionário da Educação do Campo - DEC:
página 297.

Uma diferença radical justifica a criação de um modelo


de educação dirigido ao campesinato e pelo campesinato. Uma
nova educação vinda do campesinato e das suas instituições
próprias de identidade, pensamento e luta, em oposição à
educação rural, e também em uma linha de teoria e ação cres-
centemente distanciada da tradição da educação popular.
Os movimentos sociais não possuem controle algum sobre
uma educação rural sob controle do poder de Estado, e a sua
prática pedagógica na verdade difunde em “meio rural”, como
vimos na citação acima, a mesma pragmática ideologia hege-
mônica do ensino público das escolas da cidade. Eis o sentido
em que uma proposta de educação do campo pretende ser a sua
contra-face. A partir das experiências pedagógicas dos movi-
mentos camponeses ela projeta a criação e a consolidação de
uma educação escolar e para-escolar financiada pelo poder

168
público, mas agora sob controle direto e pleno dos movimentos
sociais do campo7.
No verbete: educação básica do campo, Lia Maria Teixeira
de Oliveira retoma a ideia central de uma educação ativamente
contra-hegemônica centrada no protagonismo direto das clas-
ses e dos movimentos populares.
A rebeldia como sentimento/luta pela
emancipação é um traço pedagógico de
diversas populações campesinas, indíge-
nas, caiçaras quilombolas, atingidas por
barragens, de agricultores urbanos, que
estão buscando a educação a partir de uma
perspectiva contra-hegemônica, conforme
Gramsci nos ensina8. Foi exatamente isso

7 Como política de movimento social popular, o MST estabelece acordos


a nível nacional, estadual e municipal com o poder público. Lembro que
no Brasil o “ensino fundamental” é competência de governos municipais,
embora haja uma legislação nacional de educação, cujas leis e funda-
mentos são alterados periodicamente. Há um entendimento de que o
Governo federal da União financia as escolas do MST (mais de 1800 no
país), através sobretudo do PRONERA (um programa de apoio à educa-
ção do Instituto Nacional da Reforma Agrária). No entanto entende-se
que quem estabelece diretrizes de educação escolar e de jovens e adultos
nos acampamentos e assentamentos da reforma agrária são coletivos do
MST. Em seu verbete Roseli Caldart defende com todas as letras que
não cabe ao poder de estado e nem a qualquer política governamental a
gestão ideológica e pedagógica da educação do campo. Ela o expressa da
seguinte maneira: A Educação do Campo, principalmente como práticas
dos movimentos sociais camponeses, busca conjugar a luta pelo acesso
à educação pública com a luta contra a tutela política e pedagógica do
Estado (reafirma em nosso tempo que não deve ser o Estado o educador
do povo). (DEC:262). Grifos e parênteses da autora.
8 Lembro que no caso brasileiro – e ele poderá ser comum em outros países
da América Latina – os movimentos sociais mais mobilizados dividem-
se de acordo com os seus sujeitos étnicos, culturais e sociais. E embora
formem uma ativa “frente única” inclusive contra políticas e omissões
governamentais recentes, guardam as suas especificidades. Assim, existem
várias frentes de luta: de povos indígenas, de comunidades quilombolas

169
que produziu a diferenciação da Educação
do Campo da histórica educação rural: o
protagonismo dos movimentos sociais do
campo na negociação de políticas educa-
cionais, postulando nova concepção de
educação que incluísse suas cosmologias,
lutas, territorialidades, concepções de
natureza e família, arte, práticas de pro-
dução, bem como a organização social, o
trabalho, dentro outros aspectos locais e
regionais que compreendem as especifici-
dades de um mundo rural. DEC, página
238. Grifos da autora.

Roseli Caldart nos acompanhará aqui em duas citações


suas. Ela defende que a educação do campo não é uma mera
modalidade pedagógica (educação) e geopolítica (do campo)
que se contrapõe à educação das escolas rurais ofertadas pelo
poder público. Ela é “um fenômeno da realidade brasileira
atual”. Sem precisar lembrar o que aconteceu também, vindo
do campo para a cidade, com a educação popular dos anos
sessenta, ela sugere que no Brasil de agora, uma educação não
apenas para camponeses, mas a partir de lutar originadas em
seus movimentos, uma nova educação emerge com a proposta
de recuperar uma radicalidade emancipatória talvez diluída ao
longo dos anos. Vejamos como ela afirma isto em uma primeira
citação.
A Educação do Campo nomeia um
fenômeno da realidade brasileira atual, pro-
tagonizado pelos trabalhadores do campo

e de movimentos de negros, de pescadores ribeirinhos ou marinhos (cai-


çaras), de populações rurais desalojadas por barragens e hidroelétricas,
de diferentes “povos da floresta” na Amazônia (seringueiros, castanhei-
ros), ao lado de agremiação sindicais e de classe no campo e na cidade.
Alguns deles encontram em instituições da Igreja Católica os seus mais
ativos e persistentes apoiadores, como o Conselho Missionário Indige-
nista (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

170
e suas organizações, que visa incidir sobre
a política da educação desde os interes-
ses sociais das comunidades camponesas.
Objetivo e sujeitos remetem às questões
do trabalho, da cultura, do conhecimento
e das lutas sociais dos camponeses e ao
embate (de classe) entre projetos do campo
e entre lógicas da agricultura que têm
implicações no projeto de país e de socie-
dade e nas concepções de política pública,
de educação e de formação humana. DEC:
página 257. Grifos da autora.

Não muito diferente é o que escreve Gaudêncio Frigotto


em seus verbetes: educação omnilateral e educação politécnica9.
Ao lado de uma crítica direta e radical á oferta de educação
através de políticas públicas (de governos do Partido dos Tra-
balhadores, logo, considerados como “de esquerda”) um novo
acontecer na educação brasileira, a partir da proposta da educa-
ção do campo, pretende também recolocar em termos de classe
e de luta de classes algo que ao longo dos anos tenderia a haver
sido diferenciado e diluído em boa parte das teorias da “recon-
ceptualização” da educação popular a partir dos anos oitenta.
Em Frigotto, um educador especialista em educação e mundo
do trabalho, tal como em outros educadores dialéticos, a cate-
goria “cultura” dá lugar à categoria “trabalho”, e uma ideia de
“povo” como a coletividade ampliada de pessoas e coletivos da
sociedade civil empenhados em frentes de lutas emancipatória,
retorna à ideia de povo como classe e de processos de transfor-
mação social como algo cujo chão é a luta de classes10.

9 Seus dois verbetes vão da página 265 à página 279 do Dicionário da


educação do campo.
10 Chamo a atenção para o fato de que em seu verbete no mesmo dicionário:
educação popular e educação do campo – nexos e relações, Conceição
Paludo, uma educadora popular de linha freireana, dialoga com Marx,
com Ricardo Antunes (sociólogo marxista especializado em mundo do
trabalho) com João Pedro Stédile, ideólogo do MST, com Demerval

171
A denominação EDUCAÇÃO DO CAMPO,
constituída a partir do processo de luta do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra (MST), engendra um sentido que
busca confrontar, a um tempo, perspectiva
restrita, colonizadora, extensionista, loca-
lista e particularista da educação (crítica
direta da escola pública oficial – CRB) e
as concepções de natureza fragmentária e
positivista de conhecimento. Por centrar-se
na leitura histórica e não linear da realidade,
o processo educativo escolar (da educação
do campo – CRB) vincula-se à luta por uma
nova sociedade, e, por isso, vincula-se tam-
bém aos processos formativos mais amplos
que articulam ciência, cultura, experiência e
trabalho. DEC página 277.

Retorno a Roseli Caldart, A partir dos documentos funda-


dores da Educação do Campo (alguns de seus autores escrevem
com maiúsculas) ela lança mão de uma diferença entre preposi-
ções, para opor o “do” ao “para” e até mesmo ao “com”, a fim
de fundar a radicalidade popular da educação do campo. Afi-
nal, a quem no fim das contas uma educação pertence? Quem é
não apenas o seu usuário, o seu destinatário ou mesmo um seu
co-agente, mas o seu criador, educador e gestor da educação?
Na sua origem o “do” da Educação do
Campo tem a ver com esse protagonismo:
não é “para” e nem mesmo “com”: é dos
trabalhadores, educação do campo, dos
camponeses, pedagogia do oprimido... Um
do que não é dado, mas que precisa ser

Saviani e com Gaudêncio Frigotto. Já em seu verbete “educação popular


e sistematização de experiências”, Oscar Jara deixa de fora educadores
e outros pensadores de linha dialética entre os lembrados por Conceição
Paludo e outros.

172
construído pelo processo de formação dos
sujeitos coletivos, sujeitos que lutam para
tomar parte da dinâmica social, para se
constituir como sujeitos políticos, capazes
de influir na agenda política da sociedade.
Mas que representa, nos limites impostos
pelo quadro em que se insere, a emergência
efetiva de novos educadores, interrogado-
res da educação, da sociedade, construtores
(pela luta/pressão) de políticas, pensadores
da pedagogia, sujeitos de práticas11.

Em nome da proposta de uma nova educação do campo,


através de diferentes convênios entre movimentos sociais popu-
lares e universidades brasileiras, são criados cursos e programas
de estudos que vão da alfabetização de adultos a escolas para
crianças e jovens de acampamentos e assentamentos da reforma
agrária, e delas a cursos superiores de formação de educado-
res especialmente preparados para atividades pedagógicas “do
campo”, e não apenas “rurais”. Cursos de Pedagogia da Terra

11 Está na página 5 de um documento originalmente mimeografado em


Porto Alegre, com este nome: Educação do campo – notas para uma
análise do percurso. A mesma citação pode ser encontrada no artigo de
Ademar Bogo, um conhecido militante do MST: A questão da educação
do campo e as contradições da luta pelo direito, na página 96. O artigo
de Ademar Bogo é um dos escritos de um livro bastante recomendável a
quem se interesse pelo próprio surgimento e o processo de consolidação
muito recentes de uma Educação do Campo. O livro é: Educação do
Campo e contemporaneidade – paradigmas, estratégias, possibilidades e
interfaces. O livro foi publicado em 2013 pela Editora da Universidade
Federal da Bahia onde se concentra um dos mais ativos coletivos vin-
culados à educação do campo, sob coordenação do professor Antônio
Dias Nascimento. O livro contem também o importante documento do
Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC – notas para análise
do momento atual da Educação do Campo, celebrado em Brasília entre
15 e 17 de agosto de 2012.

173
em nível de graduação, de especialização e mesmo de mestrado
forma anualmente uma nova modalidade de educador no Brasil.
Deixo a outras pessoas a tarefa de descer bastante mais a
fundo nesta questão cujo esboço apenas desenho aqui. Assim,
quero encerrar este tópico perguntando se no momento pre-
sente não estaremos diante de pelo menos três vertentes no
interior de, ou em áreas de fronteira daquilo que em sua gra-
mática mais ampla e generosa poderá ainda ser chamado de
educação popular.
No canto à direita podemos situar as mais diversas ini-
ciativas, entre a teoria e a prática, que associam uma cada vez
mais polissêmica e, não raro, vaga ideia de educação popular a
diversas vertentes e vocações de ações sociais e, de forma mais
específica, daquelas que se apresentam como uma das várias
modalidades de pedagogias fundadas em “princípios freire-
anos”, redesenhados por releituras que os atualizam e/ou os
ajustam a esta ou aquela direção especializada de uma edu-
cação vocacionada. A educação ambiental popular é um bom
exemplo, assim como são outros as diferentes propostas de:
educação para a paz, educação e direitos humanos, educações
em nome de minorias sociais, étnicas ou sexuais.
No centro de nosso desenho situo a educação popular
em sua tradição freireano-dialógica mais direta. Aqui estão
situados educadores que se reconhecem como herdeiros em
linha direta das propostas originárias da educação popu-
lar-dialógica. Aqueles que realizaram juntos, e como um
acontecimento territorialmente latino-americano, o pro-
cesso de reconceptualização. Aqueles que continentalmente
reúnem-se em torno ao CEAAL, e que preservaram até hoje
tanto uma diferenciada matriz essencialmente dialógica de
ações pedagógico-políticas emancipatórias. No limite, situo
aqui educadores que mesmo quando leitores e usuários de
teorias críticas provenientes do marxismo, não se consideram
praticantes de uma educação dialética com base centrada na
luta de classes, embora o povo e os movimentos populares

174
sejam ainda reconhecidos como o eixo do protagonismo em
processo de transformação social.
Finalmente, à esquerda de nosso desenho devo colocar
as diferentes vertentes de algum modo afiliadas a uma leitura
dialética da sociedade e da educação. Vertentes todas elas fun-
dadas em leituras provenientes de alguma origem marxista e
centrada no acontecer histórico da luta de classes. Acredito
serem hoje cada vez mais raros os ativistas e educadores com-
prometidos diretamente com movimentos e processos de lutas
populares que se consideram “organicamente freireanos”, ou
que ainda se assinam como educadores populares. Educadores
que mesmo quando preservam ainda algo das ideias originais
de Paulo Freire, não o leem mais como o roteiro de seu mapa
nas lutas de conquista de territórios e, menos ainda, como o
porto de chegada.
Acredito ainda que a recente instauração da educação
do campo no Brasil e no “campo” das lutas e propostas do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e de outros
movimentos afiliados, constitui hoje o lugar social de teor polí-
tico em que uma nova vertente de educação emancipatória
surge e se afirma.

Da cultura ao território

Havia uma palavra-geradora nos começos do que veio a


ser a educação popular? Sim. E ela não era “educação”, mas
“cultura”. Relembro que cultura popular era o movimento
que nos unia. Lembro também que na primeira experiência
de alfabetização no Nordeste do Brasil, “fichas de cultura”
destinavam-se a ser criticamente decodificadas pelos alfabeti-
zandos em seus dialógicos “círculos de cultura”. E a “ideia de
cultura”, entre uma filosofia e uma antropologia embrionária
que desaguavam em uma pedagogia crítica, dialógica e “liber-
tadora”, atravessava todas as “fichas”, da primeira à última.
Relembro aqui que a sequência de nossas ações de então eram

175
de algum modo estas: tornar uma pedagogia fundada na ideia
de cultura uma ação pedagogicamente cultural; criar com o
povo uma “nova cultura”, a partir de mudanças de quali-
dade na consciência do educando, com um progressivo teor
assumidamente político; dotar este “ teor político” de um sen-
tido contra-hegemônico orientado a ações transformadoras e
emancipatórias.
Mesmo quando a atuação dos primeiros movimentos de
cultura popular foi dirigida a camponeses e a comunidades
rurais – e eles eram, em grande maioria – a relação entre a edu-
cação popular e uma luta popular pela terra era ainda vaga e
francamente idealizada e difusa. Exceção foram as “Ligas Cam-
ponesas” da Paraíba e de Pernambuco.
Muitos anos mais tarde, a partir das frentes de lutas pela
terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e
de outros movimentos camponeses equivalentes, associados a
frentes de luta de povos indígenas e, logo a seguir, das inúmeras
comunidades quilombolas, uma outra categoria, antes quase
esquecida, sobrepõe-se à ideia-geradora de “cultura” e passa a
consolidar o próprio “chão” de uma emergente modalidade de
educação, vinda diretamente dos movimentos camponeses. Sua
palavra-chave é: “território”.
Entre camponeses, indígenas e quilombolas, um horizonte
para além daquilo que dá sentido a uma ação por conquista
local e geográfica de terras ou de territórios, desafia a desmon-
tagem oficial e capitalista de uma ancestral geopolítica e de
uma político-cartografia do País. Trata-se agora de não ape-
nas conquistar terra expropriada e transformada em latifúndio
improdutivo ou entregue á voragem do agronegócio, assim
como territórios ancestrais de índios e de negros cercados por
grandes fazendas, quando não por empresas nacionais ou trans-
nacionais de mineração e de exploração da madeira. Trata-se
agora de, a partir da conquista ampliada de terras camponesas,
quilombolas e indígenas, reescrever, de dentro para fora e de
baixo para cima toda uma nova cartografia popular.

176
Ora, desde então o educador vinculado a algum dos movi-
mentos populares de luta geopolítica e social por territórios
de vida e de sentido de vida, vê-se agora comprometido com
uma luta em nome de ações político-pedagógico-cartográficas
cuja “escrita” não se traduz apenas em e entre novos textos,
mas também no e através de um re-desenho inovador de novos
mapas sociais. Não basta re-pronunciar, re-dizer ideologica-
mente o Brasil – ou a América Latina – como nos anos pioneiros
e depois deles. É preciso re-mapear geopoliticamente o País e o
Continente.
Da floresta para o campo e do campo para a cidade (pois
também nela inúmeros movimentos sociais dos “sem-teto” estão
ativos) diferentes atores sociais apagados, desconhecidos, mal-
conhecidos, demonizados ou folclorizados, agora entram em
cena e sem máscaras “mostram a sua cara”. Camponeses, cai-
çaras, seringueiros, castanheiros e outros “povos da floresta”,
povoadores de quilombos, de terras-de-santo, de faxinais, de
fundos de pasto, ao lado dos inúmeros povos e das tribos indí-
genas das etnias do Brasil saem a campo. Saem organizados em
frentes de luta, e a partir de suas difíceis, lentas, mas sucessivas
conquistas nos ajudam a reinventar o “mapa do Brasil”, e a
recriar uma nova e real cartografia social.
“Território”, “territorialização”, “processos de territo-
rialização”, estas palavras apenas técnicas entre geógrafos do
passado recente assumem com as frentes de lutas dos movi-
mentos camponeses, quilombolas, indígenas e outros uma
conotação francamente pedagógica, e, portanto, emancipadora-
mente política. Este novo dizer-e-mapear passa a significar não
apenas algo que ao longo da história de um povo demarca uma
“natural” expansão de fronteiras e uma ocupação de território.
Ele ousa re-significar todo um processo ativo de reconquista de
territórios usurpados historicamente, ao lado de uma reescrita
de cartografias. Novas leituras da vida e dos lugares-da-vida
que passam de uma geografia física onde as ações humanas são
quase complementares, a uma crítica geo-pedagógica em que as

177
ações humanas recriam e significam agora o próprio “físico” de
um território.
Sem esquecer todo o labor de movimentos sociais popula-
res de vocação urbana e todo o trabalho de educação popular
realizado entre fábricas e favelas, uma vez mais, como na aurora
dos anos sessenta no Nordeste do Brasil, é do campo e do
campesinato que uma polissêmica e desafiadora reescrita de
alternativas de educação dos movimentos populares e a serviço
dos movimentos populares emerge. É no bojo dos movimentos
que em boa medida acabam de publicar o Relatório da Comis-
são Camponesa da Verdade, que uma educação popular para o
século XXI desloca de uma então ainda vaga “ideia de cultura”,
para a concretude geopolítica do “território”, não apenas o
lugar social, mas toda uma simbologia de frentes de luta e de
conquistas12
Sem que teorias, propostas e práticas de teor freireanos
tenham perdido ou estejam perdendo ao longo da América
Latina a sua atualidade, acredito que no percurso de sua tra-
jetória elas fazem interagir diferentes focos e eixos de ação
emancipatória, na mesma medida em que, sem esquecer os

12 Este documento que levou anos para ser elaborado, e cujo conhecimento
está ainda restrito a círculos muito pequenos acaba de ser publicado.
Transcrevo aqui o começo da introdução do relatório.
“Em 2012 foi criada a Comissão Camponesa da Verdade (CCV), um dos
frutos do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos
do Campo, das Águas e das Florestas. Este evento reuniu, em Brasília,
em 2012, milhares de camponeses de mais de quarenta organizações e
movimentos ligados à luta pela terra e por territórios, em memória ao
1o Congresso Camponês, realizado em 1961, em Belo Horizonte. Além
de celebrar os mais de cinquenta anos do congresso de Belo Horizonte, o
Encontro Unitário articulou a diversidade das organizações do campo na
construção de alternativas políticas, econômicas e sociais ao agronegócio
para o campo brasileiro. Alternativas e bandeiras baseadas na defesa da
reforma agrária, no respeito ao meio ambiente, na produção de alimentos
saudáveis e na soberania alimentar, na defesa dos direitos territoriais, na
geração de renda e na melhoria da qualidade de vida no meio rural, entre
outras bandeiras e lutas”.

178
seus primeiros passos, elas saltam de uma antropo-pedagogia
da cultura junto ao povo, para uma sociopedagogia dos movi-
mentos populares. E desde ela e através dela, convergem a uma
geo-pedagogia cartográfica das lutas populares por conquista
de territórios13.
Há uma passagem de Miguel Arroyo, em um dos verbetes
do Dicionário da Educação do Campo, que traduz com felici-
dade o que descrevo aqui. No fluxo de ações do Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra e de outros movimentos da Via
Campesina, desde uma luta de trinta anos em favor não ape-
nas de uma reforma agrária, mas de toda uma transformação
da sociedade brasileira através de conquistas populares sobre
a terra, perpassa uma ideia que polissemiza e amplia o sentido
e o teor simbolicamente político e pedagógico de “território”.
Convivemos com vários e entrelaçados territórios geográ-
ficos, sociais e culturais expropriados, desde os quais lutamos
em nome de reconquista não somente de terras, mas de saberes,
sentidos e significados que foram expropriados junto com a
ter, e envolve justamente a educação e o seu lugar social mais
eloquente: a escola. Através de projetos de criação popular de
um outro-saber um lugar social a ocupar militantemente é o
território-escola. Eis o que Miguel Arroyo anota no verbete:
Pedagogia do Oprimido.

13 E não apenas no Brasil. Sobretudo nos países marcadamente pluriétnicos,


como a Bolívia, o Equador, o Peru, a Colômbia, os da América Central
e Caribe, o México e o Brasil, etnia-e-território somam-se agora como
duas frentes sociais e simbólicas de uma mesma luta popular. Neste sen-
tido recomendo alguns pequenos (grandes) livros de uma nova coleção
de estudos populares colombianos. A Ediciones Desde Abajo está publi-
cando uma Colección Primeros Pasos, dirigida a ativistas populares e a
movimentos e instituições de mediação. Entre os seus primeiros livros
recomendo especialmente: Producción social del espácio; el capital y
las luchas sociales en la disputa territorial, de Carolina Jiménez e Edgar
Nóvoa; Hacer história desde Abajo u desde el Sur, de Alfonso Torres
Carrillo.

179
A Pedagogia do Oprimido encontra sua
afirmação nos processos educativos extra-
escolares, sobretudo, mas também inspira
outra escola, outras práticas educacionais
escolares. O traço mais radical: ocupar o
território-escola. Os movimentos sociais,
ao lutarem por terra, espaço e território,
articulam as lutas pela educação, pela
escola – as lutas por direitos a territórios.
Mostram a articulação entre todos os pro-
cessos históricos de opressão, segregação e
desumanização, e reagem lutando em todas
as fronteiras articuladas de libertação.
Escola é mais do que escola na pedagogia
dos movimentos. Ocupemos o latifúndio
do conhecimento como mais uma das ter-
ras, como mais um dos territórios negados.
A escola, a universidade e os cursos de for-
mação de professores do campo, indígenas
e quilombolas são mais outros territórios de
luta e de ocupação por direitos. A negação,
a precarização da escola, é equacionada
como uma expressão da segregação-opres-
são histórica da relação entre classes. Já a
escola repolitizada é mais um território de
luta e ocupação, de libertação da opressão.
A Pedagogia do Oprimido é radicalizada
na pedagogia escolar pelas lutas dos movi-
mentos por educação do campo, por escola
do campo no campo14.

14 Esta longa passagem faz parte do verbete Pedagogia do Oprimido, que


vai da página 553 à página 560 do Dicionário da Educação do Campo.
A citação de Miguel Arroyo está nas páginas 559 e 560. A ideia de terri-
tórios simbólicos, logo culturais e pedagógicos e de uma luta popular por
territorializações outras, está presente em recentes trabalhos do educador
colombiano Marco Raul Mejía. Mejía é hoje um dos mais fecundos e
ativos educadores populares em diálogo com o momento presente, sobre-
tudo da América Latina e um dos mais lúcidos críticos dos processos

180
Aquilo que nos anos sessenta/setenta atribuíamos à cultura
e compreendíamos como a tarefa pedagógica de uma educa-
ção popular entendida como uma região da cultura, ao mesmo
tempo em que tratávamos de atribuir – com a companhia fre-
quente de Antônio Gramsci - à ideia de cultura o seu esquecido
teor político, é agora retomado, sobretudo pela educação do
campo, como uma cartografia de valor político-popular que
recoloca no “chão da história” os termos das alternativas de
uma educação emancipatória de movimentos indígenas, qui-
lombolas, populares, enfim.
Tanto “naqueles tempos” como agora a história se repete
e, como em Marx, redesenha, entre velhos e novos termos -
como “capitalismo neoliberal” ou “globalização” – ora a sua
farsa, ora a sua tragédia. Ontem como hoje há expropriações
que são simbólicas, há apropriações que são culturais, há lati-
fúndios que são de saberes e, mais do que “naqueles tempos”,
há não apenas pessoas – entre quase-escravos e operários mal
pagos – produtores de mercadorias, mas um sistema de mercado
que transforma agora as pessoas em mercadoria. Há, portanto,
lutas de conquistas territoriais que devem operar também nes-
tes e sobre estes domínios.
Mesmo devendo confessar por escrito que não me apro-
fundei devidamente neste tema, devo dizer que acredito que
com uma força talvez ainda inadvertida entre nós, a educação
popular – tomada aqui em seu sentido mais generosamente
abrangente - mescla-se com a ideia de território em pelo menos
duas direções. Uma delas é mais antiga, e a outra mais atual,
pelo menos quando associada a novas formas de ação pedagó-
gica desde movimentos populares do campo.
A primeira está no fato de que com o advento da educa-
ção popular – como um acontecer cultural situado e datado
– ao lado de um diálogo crescente entre movimentos sociais

atuais de colonização simbólica, entre a mídia e a escola. Ver indicações


dos livros na bibliografia.

181
do continente, uma nova geografia política da América Latina
surge e se impõe. Em direção diversa do currículo oficial de
nossas escolas públicas, uma leitura de América Latina e Caribe
(e, por extensão, todo o Mundo) nos obriga a des-fronteirizar
toda uma “história nacional nacionalista” que até hoje ocupa
quase todos os livros de nossas “histórias pátrias”. Enquanto
as empresas multinacionais de agronegócio (“Monsanto”, por
exemplo) “globalizam” terras e territórios, frentes indígenas e
camponesas de lutas emancipatórias “desterritorializam” falsas
fronteiras em nome de não apenas territórios, mas de povos
emancipados. Povos que, justamente por estarem lutando por
sua emancipação, podem incorporar à mesma luta um outro
mapa popular de um mundo afinal sem fronteiras, ou com
fronteiras afinal aberta á acolhida dos outros-que-não-nós.
A segunda reside a meu ver na evidência de que, sobretudo
entre camponeses militantes da Via Campesina e, mais ainda,
através dos movimentos dos povos-testemunho (indígenas e
outros), entre os Andes e a Amazônia uma nova endoeduca-
ção associa-se a uma luta emancipatória vivida em nome de
não apenas a afirmação de direitos a territórios ancestrais e
á salvaguarda de modos patrimoniais de ser e de viver. Vivida
e praticada também em nome da expansão de saberes, senti-
dos e significados ancestrais e assumidamente primitivos, que
desde a selva á cidade nos propõem com uma inocente e aguer-
rida ousadia, outras formas de pensar, de sentir, de viver e de
ser. Novas alternativas do imaginário e da vida que poderiam
acrescentar aos novos saberes e valores ainda acentuadamente
ocidentais e europeus, toda uma outra ciência. Ou, mais ainda,
um outro saber menos subalterno à ciência e mais atento e
aberto à sabedoria

182
O PESSOAL, O PÚBLICO E O POPULAR1

Outros olhares sobre o já visto?

E
ste é um breve escrito sobre relações entre a educação
pública e a educação popular. Este não é um tema ao
qual estou acostumado, e em alguns trabalhos anteriores
defendi que para ser “popular” a educação em nome da qual me
dedico há pouco mais de cinquenta anos, não deve ou não pode
ser “publica”. Não pode ser pública sempre que esta palavra
e suas consequências corresponderem à ideia, sempre perversa
e distorcida, de “público” como originado, programado e
controlado por ou desde qualquer modalidade de “poder gover-
namental” e mandatário de qualquer modalidade de gestão de
uma comunidade humana. Acredito que uma educação é públi-
ca-e-popular quando originada, controlada e realizada em nome
de movimentos e coletivos sociais populares. Repito neste escrito
o que escrevi em outros, para outros momentos.
Pensei sempre assim, e mesmo após os governos do Partido
dos Trabalhadores aqui no Brasil, sigo pensando desta maneira,
com menos ênfases, no entanto. Em muitas ocasiões e durante
mais de dez anos participei de eventos patrocinados por gover-
nos municipais e estaduais. Sobretudo no estado do Rio Grande
do Sul. Assessorei em diferentes tempos e cenários, secretarias
e municipalidades “petistas”. Deixei sempre clara a minha
opção, reconhecendo-a como uma entre outras possíveis. Vivo
momentos de difíceis diálogos. Fecundos, no entanto.
Este escrito retoma esta questão e espero que seja o último
que eu escrevo a respeito. Busco entre iluministas e românticos

1 Este breve documento foi preparado para o Fórum de Educação Popular


e Educação Pública, realizado em Ushuaya, na Argentina, no dia 16 de
março de 2018.

183
de uma Europa bastante posterior a Platão, as origens remo-
tas, mas vivas e presentes, tanto em alternativas de educação
pública quanto nas origens da educação popular. Entre uma e
outra as leituras das duas são substantivamente diversas.
Em um terceiro momento procedo a uma reflexão crítica
sobre as origens remotas da educação e da escola pública na
Europa. Somos na América Latina herdeiros diretos dessas ori-
gens e me parece que vale a pena revistar, com outros olhares,
alguns cenários que para algumas e alguns de nós nos parecem
de vez em quando quase “sagrados”. Estou aberto a críticas e
revisões, como sempre.
Em um quarto momento busco respostas a duas questões:
o que caracteriza desde suas origens não apenas a educação
popular, mas também outras modalidades de ideias e de práticas
inovadoras e insurgentes que são instauradas na América Latina
entre os anos sessenta e oitenta. Ao buscar responder em nome do
que, passados quase sessenta anos a educação popular permanece
tão marginalizada entre os “setores oficiais” quanto viva, ativa e
presente em outros cenários, volto a repensar as relações entre o
“público” e o “popular” no campo da cultura e da educação.
Termino este artigo para ser apresentado em um Fórum
justamente sobre as relações entre o público e o popular, rela-
cionados à educação e à escola, com algumas ideias a meu ver
fundadoras da própria educação popular. Depois da relação da
breve bibliografia de algum modo utilizada neste escrito, apre-
sento uma pequena listagem de livros e de artigos meus também
relativas ao que se lerá desta linha em diante.

Longe no tempo e no espaço, o que iluministas e românticos


europeus têm a ver com a educação pública e a educação
popular?

Com um salto da Grécia de Platão à Europa de Kant e de


Goethe poderemos nos aproximar bastante mais de alguns pri-
mórdios do que será mais adiante a educação popular que nos

184
reúne aqui nesta região tão ao Sul do Mundo, onde o mundo
acaba, segundo os do Norte... ou começa, segundo os do Sul.
Penso que uma de suas origens, ou aproximações mais
relevantes, está entre o final do século XVIII e o começo e
meio do século XIX, com reflexos e efeitos até hoje. Desde
bem antes, o que se entendia por cultura era (e segue sendo)
enunciado através de dicotomias. A mais essencial era a opo-
sição entre cultura (a “deles”, os “primitivos”, “selvagens”, “o
povo”) e civilização (a “nossa”, os “civilizados”, os “eruditos”,
os “letrados”, a “elite”, mesmo quando analfabeta). Quando
se descobriu que “tudo é cultura” e que de um modo ou de
outro todas as categorias de povos, classes e pessoas a criavam,
possuíam e “cultivavam”, tratou-se de pensar o que antes foi
a oposição cultura X civilização, através de temos compostos.
Alguns exemplos conhecidos demais: “alta cultura” (a antiga
“civilização” X “baixa cultura” (a antiga “cultura”); “cultura
civilizada” X “cultura primitiva” – ou “selvagem”); “cultura
letrada” X “cultura iletrada”; “cultura erudita” ou “acadê-
mica” X “cultura popular” (no Brasil: “camponesa”, “caipira”,
“quilombola”, “sertaneja”, “folclórica”, etc.)
O de que nem sempre lembramos é que dois movimen-
tos de séculos atrás podem bem ser considerados como origens
remotas de duas vocações da educação popular de nossos
tempos. Eles nos chegam vindos de direções aparente opostas.
Um deles desde o iluminismo de vocação kantiana e, outro, o
romantismo, sobretudo alemão.
Em uma direção, um projeto iluminista antecipa uma
educação estendida a mulheres e, sobretudo, a homens das
“camadas populares” e da “baixa cultura”, como uma proposta
de “ilustração das classes populares” através da educação esco-
lar. Antes mesmo da Revolução Francesa a Europa iluminista
experimentou iniciativas destinadas a estender ao “povo” algo
da “erudição” e dos saberes das “gentes cultas”. Escolas, museus,
bibliotecas públicas foram abertas desde o século XVIII e, mais
ainda, no XIX, e estenderam-se por quase toda a “Europa culta”.

185
Em outra direção, aos poucos e com surpresa descobre os
“humanos” uma velha tradição europeia, vocacionada a um
transitar - entre cientistas e poetas - através da própria nação, ou
mesmo pelo “mundo a desbravar”, em busca de conhecimentos
entre a geografia, a geologia, a zoologia e a botânica. “Sábios”,
agora interessados em culturas exóticas (“dos outros”) e popu-
lares (“do nosso povo”), seguem trilhas nunca tão ousadas
como as de Charles Darwin a bordo do Beagle e Alexandre Von
Humboldt, em lombo de mula. Novos viajantes “ilustrados”
partem em direção a “povos exóticos”, e eles serão a origem
antecipada dos antropólogos. Uma outra fração de pesquisado-
res dedica-se a investigar, colecionar e, mais adiante, interpretar
as mais diversas tradições patrimoniais de seus próprios povos.
A Europa ilustrada descobria com os pioneiros românti-
cos os “costumes”, as “crenças”, as “religiões”, a “literatura”,
as “artes”, o “artesanato”, a “culinária” de camponeses “não
cultos e não letrados”. Suas “culturas, compendiadas principal-
mente através de “literaturas” e outras “tradições orais”, irão se
tornar objeto de estudos e de inventários. E, mais adiante, elas
irão se somar a outros símbolos, saberes e significados como
um essencial fundamento de nacionalidades europeias.
Se quem me leia remontar ao capítulo em que busco des-
cobrir sinais do “popular” já entre os gregos clássicos, poderá
recordar que já ali, de acordo com o testemunho de Werner Jae-
ger, nós podemos reconhecer duas vertentes de uma educação
que se associa ao qualificador “popular”. E notemos que sem-
pre fértil em trazer palavras gregas originais para o seu livro,
Jaeger em momento algum apresenta um vocábulo grego que
traduziria o “popular”. Sabemos, por derivação, que tem a ver
com a polis, a comunidade social e política a que devia servir
como cidadão a pessoa educada.
Um primeiro sentido é o que foi herdado pelas vertentes
humanistas- iluministas lembradas linhas acima. Uma primeira
“educação popular” deveria estender ao povo, como um direito
seu de cidadania, ou como um cuidado do Poder de Estado

186
inclusive em nome do fortalecimento de suas defesas culturais
e, por extensão, também políticas, algo da “alta cultura” das
“classes letradas”.
Um segundo sentido vindo também de Paidéia e de Werner
Jaeger através não do aristocrata Platão, mas do poeta Hesí-
odo, parte do suposto de que assim como é o trabalho de quem
lavra a terra ou de quem edifica templos, o que gera e preserva
as condições materiais de existência de uma comunidade social,
assim também os saberes e valores culturais de quem escreve
com a enxada e soletra com o martelo, deveriam ser incorpo-
rados como elementos essenciais de uma “cultura da polis”. E
deveriam constituir fundamentos de uma pedagogia de forma-
ção da cidadania.
Podemos antecipar que um terceiro sentido para “edu-
cação popular”, radicaliza os dois anteriores. Entre Simón
Rodrigues – segundo Marco Raul Mejía ao menos – e Paulo
Freire, ainda que possa conter componentes de proveito das
duas vertentes anteriores e, sobretudo da vinda de Hesíodo, a
educação popular não se estendo ao povo; parte dele. E não
se serve dele em nome dos proveitos do poder de Estado ou
do mercado do capital, mas serve a ele dialogicamente. E serve
ao povo considerando-o o agente essencial de processos sociais
de teor político dirigidos à ampliação dos direitos humanos e,
na sua fronteira decolonizadora e emancipadora, devotados à
transformação das estruturas de poder e sentido que fundam,
preservam e reproduzem a sociedade desigual.

As primeiras escolas públicas: uma educação a serviço do


povo ou uma escola que educa para o poder de estado servir-
se do povo?

Devemos reconhecer que crescendo de interesse pelo


“passado nacional” e pelas “nossas antigas tradições popula-
res” associa-se a, expande e, em situações limites, exacerba um
crescente e diferenciado “fervor pela nação”. Em um tempo

187
de contínuos conflitos internos – que logo adiante serão afinal
reconhecidos como “lutas de classes” – e de guerras entre paí-
ses e confederações de nações da Europa, as primeiras escolas
públicas surgem e, em seguida, abrem-se “ao povo iletrado”
e se difundem não propriamente como um direito de todos à
educação, tal como defendemos hoje. Elas emergem em paí-
ses militarizados e em constantes conflitos internos e externos.
Surgem para auxiliar o poder de estado e as forças armadas a
gerarem cidadãos educados, adestrados, disciplinados e “pron-
tos “a dar a sua vida pela Pátria” ou, em vários casos, “pelo rei”.
A excelência da educação pública na Prússia, então a mais mili-
tar das nações europeias, é bem uma evidência desta memória
esquecida. Anos mais tarde, a atenção e o zelo do nacional-
socialismo (leia-se: nazismo) pela “qualidade da educação do
“povo alemão” será um outro trágico e radical exemplo do que
recordo aqui.
Devemos não esquecer que a instituição-modelo das
escolas públicas europeias originais, foi o exército e, não, a
sociedade civil. Mais tarde, e sob o impacto da revolução indus-
trial, o modelo e a destinação da pessoa educada será a empresa
e, não, a comunidade. Os arcaicos ideais de Esparta não esta-
vam então tão longe. Na Inglaterra da revolução industrial e da
reinvenção modernizante do capitalismo, uma acentuada voca-
ção nacionalista e patriótica praticada pela e como educação
escolar, tendeu a ser matizada por um crescente interesse em
educar pessoas não apenas para servirem ao rei e à pátria, mas
também ao patrão e à empresa. Esta vocação híbrida foi levada
aos Estados Unidos da América do Norte, desde onde uma edu-
cação pública ainda fortemente patriótica, e já modernamente
pragmática, aspira até hoje ser um modelo de pedagogia para
todo o mundo.
Assim, fora breves momentos de exceção, à direita e à
esquerda, uma educação pública de matriz europeia dirige-se,
através de suas escolas “abertas a todos”, a instruir e formar
crianças e jovens entregues à tutela de um poder de estado

188
empenhado em gerar cidadãos letrados, esclarecidos e disci-
plinados. Sabemos que o abecedário pedagógico de muitas de
nossas escolas ainda começa com a letra “d”. E da palavra “dis-
ciplina” derivam quase todas as outras. Uniformes, formaturas
de estilo militar, cultos aos “símbolos da Pátria” haverão de
ser a primeira rotina diária de muitas escolas públicas aqui na
América Latina e em outros continentes.
Um discreto e suavemente utópico acento humanista-ilu-
minista apenas em parte escondia ontem - e segue ocultando até
hoje - o teor uniformemente disciplinador da escola pública em
suas origens e, de forma mais matizada e moderada, até os dias
de hoje. Aqui mesmo na América Latina hasteamos nas manhãs
antes das aulas, ante nossas crianças e jovens, bem mais as nos-
sas “bandeiras nacionais” do que uma universal e esperançosa
bandeira branca, acompanhada de uma mesma canção de Paz,
que entre as mais diversas línguas lembre o que poderiam ser as
relações entre pessoas, povos e países.
Destinar um limitado “saber erudito” às “gentes do povo”,
eis a pedagogia do projeto iluminista2. Voltar-se ao “nosso
povo” em busca das “tradições” ontem escondidas e despreza-
das pelos “eruditos”, e hoje tornadas “as verdadeiras raízes de
nossa identidade nacional”; eis a pedagogia do projeto român-
tico.

2 Iluminista-patriótico e muito distante do imaginário do pensador alemão


iluminista mais ilustre. Immanuel Kant dedicou um importante (e pouco
lido) livro sobre os fundamentos de uma “paz universal”. Seu texto foi
publicado com este nome: A Paz Perpétua. Diverso de outros escritos de
Kant, ele envolve não um tratado filosófico, mas um projeto concreto de
fundação de um estado de paz universal entre nações e povo. Seu livro
é de 1795, posterior, portanto, à Revolução Francesa de 1789. Lembro
que Kant nasceu e viveu toda a sua vida na Prússia, de que falei linhas
acima. Em tempos de Kant e do Imperador Frederico II eram quase 250
os “homens de armas” em um país então com menos de seis milhões de
habitantes. A Prússia chegou a destinar algo a 80% de sua economia a
gastos militares.

189
Vindas de um pluri-ideário europeu ou norte-americano, as
nossas escolas públicas em praticamente toda a América Latina
saberão fundamentar-se tanto em um colonizador imaginário
iluminista, quanto em uma releitura terceiro-mundista de um já
distorcido e desqualificado projeto romântico na Europa. Elas
aprenderam a copiar o que lhes interessa de alguns fundamen-
tos e fragmentos culturais de “nossas origens ancestrais”, como
o suporte ilusório de uma pedagogia falsamente nativista, em
meio a símbolos e significados que oscilam entre “as “nossas
raízes autóctones e ancestrais” e os “nossos próceres e heróis”,
se possível montados a cavalo.
Em todo o continente, desde o alvorecer das colônias até a
sedimentação das repúblicas, primeiro os nossos colonizadores
e, depois, os nossos governantes dedicaram-se ao etnocídio de
pessoas e de povos originais, ou à sua redução a servos. Mais
tarde releituras entre a história e a pedagogia aprenderam a
glorificar o indígena, como o atestado de nossas glórias pré e
pós-coloniais. Claro, assim procederam ao mesmo tempo em
que reservaram e seguem reservando aos filhos das elites o
direito ancestral a estudarem nas “escolas particulares” e, em
vários casos, a completarem os seus estudos na Europa e, agora,
nos Estados Unidos da América do Norte3. Na mesma medida
em que seguem reservando “às gentes do povo” o direito a
pelo menos uma alfabetização precária e, com sorte, o a sua
extensão precária a mais “quatro ou seis anos na escola”. De
algumas décadas para cá há melhoras de qualidade e proces-
sos democratizadores de acesso à escola muito significativos.
Mas eles são tardios, ainda precários e cada vez mais coliga-
dos com os interesses do mundo empresarial. Em tempos com

3 De acordo com a legislação nacional da educação do Brasil, todo o pro-


grama escolar público ou privado, desde alguns anos atrás é obrigado a
contemplar momentos curriculares dedicados ao estudo dos povos indí-
genas, assim como à História da África e à presença de afrodescendente
na sociedade e na cultura brasileiras.

190
bem menos ameaças de conflitos externos entre nós, depressa
os novos heróis-modelo desmontam de seus cavalos, guardam
as suas espadas, vestem ternos e reaparecem como empresários
e empreendedores, das classes médias para cima. E como “ope-
rários padrão” delas para baixo.
Ora, com um sentido e com projetos diferentes e, no limite,
opostos, anos mais tarde aqui na América Latina o que cha-
mamos de educação popular irá retomar os dois projetos da
“Velha Europa” como duas distantes inspirações. E precisou
para tanto realizar cultural e pedagogicamente, o mesmo que
Marx terá feito com a filosofia de Hegel: inverter a posição das
ideias, das propostas e dos projetos, e os colocar com os seus pés
no chão e com a sua cabeça no horizonte. Em outras palavras,
o trabalho destinado a inverter projetos culturais e pedagógicos
que buscam “conhecer o povo” através de suas tradições, para
a seguir ilustrar o povo” de modo a melhor servir-se dele. Indo
na mesma direção, mas com propósitos divergentes, em uma
direção a educação popular propunha-se “conhecer o povo”
para compreendê-lo em suas raízes profundas, com vistas a, de
igual para igual, entre diferenças não mais reconhecidas como
desigualdades, dialogar cultural e politicamente com ele, e edu-
cá-lo educando-se dialogicamente, como um serviço até então
negado, e agora estendido a ele.
Existe um fato cultural aqui e ali esquecido. Tanto na
Europa dos séculos XVIII e XIX, quanto na América Latina
hoje, não são as escolas público-oficiais, mas sim as escolas par-
ticulares-confessionais as que preservarão, como um cultural
valor-educação, um certo sentido de “universal” e supra-nacio-
nal ao pensar o ser humano e a vida social. Um universalismo que
em boa medida profana o “cristianismo” como “cristandade”,
e que a seu modo minimiza, ou mesmo desqualifica um certo
teor nacional-patriótico como ideologia curricular, em nome
de uma trans-humanidade. No entanto, talvez mais nas esco-
las confessionais do que nas estatais, uma diferenciada oferta
do saber-escolar oferece às diferentes classes sociais desiguais

191
cenários e vocações por meio de uma pluri-educação estendida
a crianças e jovens. Meninas das “classes altas” seriam educa-
das para serem “boas esposas, mães e donas de casa”; meninas
das “classes baixas” serão instruídas para serem boas serviçais.
Mais realistas e capitalistas, os ingleses e, em seguida, os nor-
te-americanos, haverão de capacitá-las para serem também as
primeiras operárias.
É justo lembrar aqui outras modalidades de projetos peda-
gógicos. Sabemos que também da Europa do século XIX irão
chegar à América Latina outras vocações de uma educação de
caráter não restritamente nacional-patriótico, e também não
hegemônico e colonizador. Através de operários-emigrantes,
sobretudo espanhóis e italianos, chegam até nós as primeiras
idéias e também as primeiras escolas anarquistas criadas em
geral para operários de fábricas e seus filhos. Em alguns países
as escolas operário-anarquistas – nem escolas públicas e nem
particulares, mas escolas-de-classe - foram fechadas, não raro
por meio de ações policiais.
Eis-nos enfim diante de propostas pedagógicas que des-
locam o valor-educação da nação (como poder de estado) e
da empresa (como destinação moderna e universal das pessoas
educadas), para a classe social. E classe pensada como povo,
como classes operário-camponesas, populares, subalternas,
oprimidas. Qualificadores sociais de teor político que serão
adiante a substância social da educação popular dos anos ses-
senta.
Lembro também que tanto na Europa de origem quanto
na América Latina, nunca foi unânime um uso instrumental
de uma educação em que a ideia de “público” servia mais a
interesses do poder de estado – e seus usuários empresariais
- do que aos direitos de cidadãos. Em diferentes épocas e socie-
dades do continente alguns pensadores e educadores fizeram
diferentes estilos de crítica aos projetos pedagógicos oficiais. E
em alguns contextos buscaram colocar em prática outras ideias
a respeito do que em teoria e na pedagogia deveria ser uma

192
educação pública. Quando pensamos uma educação universal,
democrática e igualitária, laica, livre e centrada mais nos direi-
tos cidadãos dos integrantes de uma sociedade, do que servil
aos interesses de um poder de estado hegemônico, de um modo
ou de outro estamos tornando atuais para o nosso tempo o
que bem antes de nós homens como José Marte pensaram e
buscaram colocar em prática. Mais adiante veremos como a
educação popular retoma e inova esta secular questão.

Educação popular, movimentos sociais emancipatórios,


releituras marxistas, teologia da libertação, pesquisa
participante – a descoberta de “nós-mesmos”

Ora, entre os primeiros “anos sessenta” e os “oitenta”,


aqui na América Latina algumas instaurações francamente
insurgentes e decolonizadoras foram sucessiva, conjunta e
interativamente pensadas como teorias e territórios de idéias
e projetos de ação social. Tento estabelecer aqui uma relação
de memoria, incompleta e imperfeita: a) os novos movimentos
sociais populares, depois desdobrados em diferentes movimen-
tos, coletivos e frentes de luta e resistência, como os indígenas,
os de negros (quilombolas no Brasil), e os de outras maiorias
e minorias étnicas, sociais, culturais; b) a releitura latino-ame-
ricana da teoria marxista, e as diferentes alternativas de sua
aplicação junto aos movimentos populares; c) os movimentos
de cultura popular no Brasil4; d) a educação popular, origi-
nalmente derivada dos movimentos de cultura popular; e) a
investigação-ação participativa e suas variantes; f) a teologia da

4 Paulo Freire e sua primeira equipe nordestina, promovem no Recife, em


Pernambuco, em 1962, o “Primeiro Encontro Nacional de Movimentos
de Cultura Popular”. Em nome de uma reinvenção do “cultural” como
espaço de ação política, os MCPs congregam acadêmicos, estudantes,
artistas populares e eruditos, cientistas e outras categorias profissionais
e/ou vocacionais. Entre elas, Augusto Boal, conterrâneo e contemporâneo
de Paulo Freire e criador do Teatro do Oprimido.

193
libertação, depois desdobrada em uma filosofia da libertação
(Enrique Dussel), em uma política da libertação, e até mesmo
em uma psicologia da libertação, criada e expandida na Amé-
rica Central.
Se as distribuirmos entre tempos próximos e as pensar-
mos como alternativas insurgentes que, cada uma a seu tempo,
trazem para o campo das causas populares a filosofia, a teolo-
gia, a religião, as artes, a pedagogia, a ciência e outros campos
afins de pensamento e ação social de vocação decolonizadora e
emancipadora, poderemos relembrar que aquelas foram déca-
das e aqueles foram anos em que por uma primeira vez desde
a América Latina foram coletivamente criadas e se expandiram
novas e transgressivamente inovadoras vocações coletivas de
insurgência emancipadora.
Por uma primeira vez nós criamos coletivamente teorias e
idéias, inventamos práticas, e dialogamos entre nós (e com os
africanos, no caso exemplar de Paulo Freire) a fecundação de
nossas idéias e a crítica de nossas práticas. Por uma primeira
vez, também, e através de uma crescente circulação coletiva,
militantes, pesquisadores e pensadores em direção oposta che-
gavam da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte
para aprender conosco algo diverso do que estavam secular-
mente acostumados a nos ensinar.
Quando consideradas não isoladamente, mas nas teias de
pensamento e ação que configuraram em seu conjunto, todas e
cada uma das instaurações inovadoras e emancipadoras de plena
ou parcial origem latino-americanas foram criadas, expandidas
e aperfeiçoadas fora ou à margem de instituições consagradas.
Exemplos. Sempre foram raros e extemos os centros cristãos
hierárquicos e consagrados por suas igrejas que se abriram para
acolher a novidade extrema da teologia da libertação5. Raras

5 Lembro-me de quando no inverno de 1989 passei dois meses na Univer-


sidade de Cambridge, como “pesquisador-visitante”, O teólogo peruano
Francisco Gutierrez, um dos criadores originais da teologia da libertação,

194
foram as ocasiões em que a educação popular chegou a ser con-
sistentemente incorporada como uma modalidade digna pelo
menos de uma leitura atenta entre os estudos de nossas facul-
dades de educação6. Foram e seguem sendo raras e notáveis as
ocasiões em que a Investigação-Ação-Participativa foi incorpo-
rada a algum currículo de “métodos e técnicas de pesquisa”.
Isto muito embora uma parte significativa de artigos, disser-
tações e teses nas áreas da educação, das ciências sociais e de
campos afins declarem que a IAP foi a modalidade de investi-
gação escolhida. Finalmente, desconheço casos em que estudos
acadêmicos sobre a teoria marxista dediquem longos e devidos
tempos e espaços para o estudo da contribuição latino-ame-
ricana a uma leitura crítica e inovadora do marxismo. Enfim,
se reunirmos entre três décadas o acontecer do surgimento de
teorias, propostas e projetos historicamente emergentes, cultu-
ralmente decolonizadores e politicamente insurgentes, veremos
que elas serão quase sempre colocadas à margem do institu-
cional, do oficial, do indexado e do “cientificamente legítimo”.

fora na mesma ocasião convidado como professor-visitante, para minis-


trar um curso de quatro meses sobre... teologia da libertação. A mesma
teologia silenciada ou até proibida em boa parte dos institutos oficiais de
formação de padres ou pastores.
6 Reuidos todos, os cursos de pós-graduação em Educação/Pedagogia
somam perto de uma centena. Em suas diferenças eles envolvem as mais
diversas áreas do conhecimento pedagógico. Existe no Brasil apenas um
único curso de Mestrado dedicado a estudos e práticas da educação
popular. Ele é oferecido pela Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Paraíba. Por outro lado, por ocasião dos “Quinhentos anos
da descoberta do Brasil”, no ano 2000 uma importante editora nacional
publicou uma extensa obra sobre a educação no Brasil. De seus quatro
volumes o último foi dedicado à educação contemporânea. Creio que
seriam pouco mais de 20 os seus capítulos. Nenhum deles dedicado à
educação popular, embora houvesse, com justiça, um deles dedicado à
educação de cegos e outro à educação de surdos. No capítulo sobre “a
alfabetização no Brasil” a contribuição de Paulo Freire é reduzida a um
parágrafo de quatro linhas.

195
Claro. Em seus vários campos e conjunturas de ação, as
inovações emancipadoras latino-americanas desde o seu sur-
gimento caracterizaram-se por serem alternativas de práticas
políticas através da cultura. Práticas situadas em áreas de
fronteira, em entre-lugares, ou mesmo em não-lugares, se com-
paradas com aquelas que a academia instaura e consagra, e que
em nossas universidades ocupam cientistas, departamentos,
estantes de biblioteca e índices nacionais ou internacionais de
“qualidade e credibilidade”.
Lembrei em algum momento que a educação popular
emerge no Brasil através de movimentos de cultura popular
que buscaram fazer interagir a arte e a ciência, a pedagogia e a
antropologia, a filosofia e a política, o teatro e a religião, a sala
de aulas e a praça pública. E, com uma não menor importância,
ousaram pensar as suas ações como teias e redes de interação
entre campos diversos da criação cultural em nome e a favor da
fração socialmente majoritária, produtiva e excluída do sistema
social vigente: o povo, tomado não como “uma gente”, mas
como classe social. Como diferentes categorias de sujeitos da
cultura e criadores da história. E, mais ainda, como agentes “da
linha de frente” de projetos e processos emancipadores.
Se tomarmos por um momento o exemplo de Paulo Freire,
não será difícil compreender, através da convivência com
ele e com os seus escritos (inclusive os vários resultantes de
entrevistas) que ele foi sempre um educador de fronteiras. Seu
cotidiano, suas aulas e seus escritos foram ao longo da vida
inteira, um diálogo com pessoas do povo, com poetas e profes-
sores, com filósofos e pedagogos, com marxistas e humanistas
cristãos, com europeus e africanos. Quem leia com atenção
Pedagogia do Oprimido, assim como os seus livros em diálogo
com a África, verá que suas leituras vão de autores do “pri-
meiro mundo”, a “terceiro-mundistas” como Amilcar Cabral,
Samora Machel, Franz Fanon e Alfredo Memni. Em reiterados
depoimentos “ao vivo” Paulo nos incentivava a “sulear” nos-
sas leituras e mentes. E a buscar em autores entre a África e a

196
Nicarágua insurgentes se não todas, pela menos boa parte das
fontes e essências de nossos diálogos. E desde um ponto de vista
teórico e ideológico Paulo ia de Lenin e Che Guevara a Martin
Buber um piedoso pensador judeu, que em meus trabalhos tam-
bém cito com respeitos frequência.
Acredito que em boa medida, foi por meio desse pluri-diá-
logo que Paulo, no bojo da trajetória inaugural dos movimentos
de cultura popular, aprendeu a pensar a educação como cultura.
A cultura como política. E a política a poética de transformação
de pessoal, culturas, sociedades e mundos. De vez em quando
Paulo Freire gostava de dizer que nós, aqui da “banda do Sul do
mundo”, quando nos sentirmos meio perdidos não devíamos
dizer que “eu perdi o meu Norte”, mas o “meu Sul”. E a estra-
nha palavra: “sulear”, era comum em suas falas.
Compreendidas em suas unidades e, melhor ainda, em seu
conjunto dinâmico, as inovações insurgentes dos anos sessenta
-oitenta em muito pouco foram e seguem sendo configuradas
e vividas como instituições sociais. Elas surgem no bojo de
projetos de diálogo e compromisso político com as classes
populares e, nunca, com instituições estabelecidas. Ao con-
trário, sob ditaduras latino-americanas elas oscilaram sempre
entre o “desconfiável” e o “proibido”. Lembremos que poucas
vezes na história do continente, mulheres e homens foram per-
seguidos, presos, torturados, exilados e mortos por causa de
sua atuação como educadores. Temo escrita aqui, tantos anos
depois, estas palavras possam parecer uma memória entre o
piegas e o dramático. Mas como um sobrevivente “daqueles
tempos”, não devo deixar de recordar que, diferente de outras
educações-e-pedagogias pensadas e praticadas ao longo dos
mesmos anos, a educação popular foi em diferentes cenários
oficialmente declarada como uma “arma de subversão”, e foi
fortemente reprimida. Mesmo em momentos de democracia
apenas em raros cenários até hoje a educação popular é aco-
lhida em alguma instituição como a universidade. E quando
estão na universidade, habitam mais cursos raros e ocasionais,

197
assim como os grêmios estudantis, do que os currículos oficiais
e os departamentos de uma faculdade de educação7.
Desde um ponto de vista identitário e dialógico esta evi-
dência é importante, pois nem que seja em boa medida “pela
porta dos fundos” com a educação popular – a dimensão de
teorias, propostas e práticas – por uma primeira vez de fato –
repito - dialogamos com educadores de todo o mundo não mais
como quem ouve, copia, aprende e adapta, mas como alguém
que também tem o que dizer e propor.
E esta é apenas a ponta da meada de algo que vivemos
intensamente aqui na América Latina desde o alvorecer dos
anos sessenta. Mas algo de que com frequência nos esquece-
mos, talvez de tanto nos acostumarmos a haver vivido o que
vivemos. Falo aqui do fato de que tanto no campo exclusivo da
educação, quanto no de ações sociais contestatórias a ela asso-
ciadas de algum modo, pela primeira vez um modo de pensar,
de propor e de praticar “uma educação” como uma “pedagogia
do oprimido”, nos “latino-americaniza”.
Em que outro momento de nossa história nacional e,
sobretudo, latino-americana, alguma modalidade de prática
emancipatória através (também) da educação, nos faz saltar
fronteiras e nos coloca face a face, em diálogo, após as suces-
sivas independências (sempre relativas) de nossas sociedades
nacionais? Provavelmente em algumas situações ora efêmeras,
ora mais duradouras, de movimentos emancipatórios de cunho
socialista e/ou anarquista.
No entanto, até onde meus estudos (poucos) e a minha
memória (frágil) alcançam, reconheço que apenas com o advento

7 São inúmeros os diretórios estudantis no Brasil com o nome de “Paulo


Freire”. Raros os cursos acadêmicos que dão a Paulo o mesmo espaço de
diálogos dedicado a Freinet, Claparede, Piaget ou Vygotsky. Calcula-se
que existam no Brasil mais de cinquenta escolas públicas com o seu nome.
Durante o governo de Dilma Roussef o congresso aprovou a outorga do
título de “Patrono da Educação Brasileira”. Há no momento um projeto
do presente governo ilegítimo destinado a revogar esta decisão.

198
da educação popular - e também da teologia da libertação, da
pesquisa participante e de outras práticas emancipatório-popu-
lares estilo MST brasileiro – é que dois acontecimentos a meu
ver de extrema importância ocorrem, entre o começo dos anos
sessenta e a maturidade dos setenta. O primeiro: a educação
popular cala, em termos, a leitura vinda do Norte, e depressa
gera seus autores-atores e um crescente e vigoroso repertório de
teorias, de propostas e programas de ação e de práticas eman-
cipatórias. O que mais deve ser ressaltado neste acontecer é o
fato de que ele não se limita, por exemplo, a “Países do Cono
Sul”, mas estende-se dos desertos do Norte do México aos da
Patagônia Argentina.
Trago aqui o meu próprio exemplo. Durante anos que vão
de 1963 a 1966/8 conheço e leio educadores populares brasi-
leiros que associo a pensadores da Europa. A partir de 1966/68
inverto radicalmente o eixo de minhas leituras, de autores que
“fazem a minha cabeça” e de educadores com quem dialogo,
e reduzo em algo a leitura dos “apenas brasileiros” e reduzo
bastante a de “educadores do primeiro mundo”8. Em poucos
anos dialogo, entre encontros, cursos e outras vivências, com
educadores populares latino-americanos, como faço deles os

8 Mas devo confessar que esta “conversão a nós mesmos” é parcial. Sendo
ao mesmo tempo um ativista social através da cultura e da educação
popular, a partir de 1972 inicio a minha formação como um antro-
pólogo. Minhas leituras acadêmicas, sobretudo em meu “Mestrado
em Antropologia” na Universidade de Brasília, são francamente ingle-
sas, norte-americanas e, mais tarde, francesas através de Lévi-Strauss.
Durante anos fui obrigado a ler ingleses e norte-americanos e em inglês.
Apenas mais tarde e mais autônomo, pude participar de todo o um afã de
diálogo com cientistas sociais e sobretudo antropólogos da Espanha e da
América Latina. Os da Europa e dos EUA me aportaram conhecimento e
ciência. Os da América Latina consciência e sabedoria. E, em termos de
“sabedoria”, mais os camponeses e os negros com quem convivi e pesqui-
sei (e sem pesquisar mais convivo até hoje) do que os antropólogos que
me ensinaram a pesquisa-los.

199
até hoje meus interlocutores e “mestres” mais frequentes e mais
essenciais9.
A segunda: e ela é derivada direta da primeira. Por uma
primeira vez somos obrigados a saltar fronteiras. A abrir a
porta estreita de “nossos autores nacionais” e estabelecer um
aberto diálogo transnacional com pessoas de outros países, de
outras formações, de outras escolas de pensamento. A bibliogra-
fia de nossos estudos, a menos que seja referida a algum tema
restritamente “nacional” (como “a luta pela escola pública na
Argentina durante a ditadura militar”) não pode deixar de bus-
car referentes entre educadores de vários de nossos países e de
vários momentos do acontecer da educação popular, de ações
sociais emancipatórias e de movimentos sociais populares.
Imagino que de forma tão ampla e dialógica, apenas a lite-
ratura – e mesmo assim em termos e em longo prazo – terá
produzido entre nós uma tão desbragada abertura dialógica
latino-americana. E, entre latino-americanos, tão extrafrontei-
ras. Depois de Paulo Freire – ele mesmo um homem que sem se
des-nacionalizar (e “des-nordestinizar”, em seu caso específico)

9 Um estranho e hoje conhecido acontecimento pessoal pode bem ilus-


trar tudo isto. Entre 1969 e 1971 participo de uma pequena equipe que
através do Centro Ecumênico de documentação e Informação viaja pela
“América Espanhola”, durante anos de plena ditadura no Brasil, difun-
dindo idéias de educação popular e do “método Paulo Freire”. Como
resultado desta experiência escrevo pequenos textos que são mimeogra-
fados d difundidos, mais nos Andes do Equador do que no Nordeste
do Brasil. Resolvemos em uma reunião em Montevideo reunir os meus
escritos em um livro e publicá-lo. Uma editora da Argentina, a Siglo XXI
o acolhe e o edita. Dado o temor de que o livro saia em meu nome, ele é
publicado em nome de Júlio Barreiro, um amigo teólogo uruguaio. Com
o golpe militar na Argentina o livro: Educación popular y processo de
conscientización passa a ser editado no México e depois na Espanha. Ele
alcança mais de 15 edições e apenas dez anos depois da primeira edição
em espanhol ele é publicado no Brasil, pela Editora VOZES, aparecendo
eu mesmo como tradutor de meu livro. Uma breve leitura tornará evi-
dente como já então um diálogo com latino-americanos surge no livro.
No Brasil o mesmo livro conheceu apenas duas edições.

200
depressa se reconhece um educador de vocação popularmente
universalista – a educação popular dialoga entre nós a partir de
um não-lugar. Voltarei a isto adiante.
A partir de uma descentralidade tão perene e tão visível
que resulta improcedente buscar na América Latina um qual-
quer lugar onde ela possa ser hoje “mais central”. Para recordar
apenas algumas pessoas de nossos “tempos pioneiros”, lem-
bro que ao longo de vários anos as pessoas mais presentes em
minhas leituras e diálogos eram Pablo Lattapi, Felix Cadena,
Oscar Jara, Beatriz Bebiano Costa, Moacir Gadotti, Osmar
Fávero, Carlos Alberto Torres, Sergio Martinic, Jorge Osório,
João Bosco Pinto, Paulo Rosas, Orlando Fals Borda, Maria
Tereza Sirvent, Pedro Benjamim Garcia, Pancho Vio Grossi,
Sylvia Schmelkes, Adriana Puigrós, Ricardo Cetrullo, Isabel
Hernandez, Rosa Maria Torres, Baldoino Andreola, Marcela
Gajardo, Marco Raúl Mejía, Alfonso Torres Carrilo, Augusto
Boal (e seu teatro do Oprimido) e, claro... Paulo Freire.
Era através de nós mesmos que íamos aos outros pensa-
dores e militantes, os de mais longe e do outro lado do Oceano
Atlântico e do Equador. E até mesmo Antônio Gramsci nos era
essencial porque mais nos parecia um militante cubano do que
um italiano. Descolonizados geopoliticamente, cedo aprende-
mos a nos descolonizar continentalmente. Mesmo em tempos
de Paulo Freire retornado de seu longo exílio e ativamente
presente entre nós, inclusive agora como professor de univer-
sidades paulistas, de modo algum o Brasil se constitui como
uma “pequena Meca” da educação popular. Lembro-me das
várias vezes em que viajamos juntos, entre lugares do Brasil e a
Nicarágua Sandinista, quando mesmo quando lhe tocava uma
solene palestra de abertura de algo, na maior parte do tempo
ele se colocava mais como um ouvidor dialogante atento do que
como um alguém quase-único a ser ouvido.
Entre nós nenhum país torna-se central. Nenhuma univer-
sidade latino-americana ou outro qualquer “centro de estudos”
é em momento algum hegemônico. Nenhuma, nenhum de nós,

201
de Osmar Fávero (dos antigos) a Norma Michi (das jovens) foi
ou é “referência única”. A metáfora dos “círculos de cultura”
dos anos sessenta torna-se a realidade metonímica de todos os
anos e eras seguintes.
Insisto em que em termos de história e de pedagogia mili-
tante, este fato não é nem marginal e nem folclórico. Ele me
parece essencial, e custa crer que em suas acadêmicas miopias
uma “história oficial da educação na América Latina”, possa
atravessar os anos, dos sessenta aos dias de hoje, sem se dar
conta da importância cultural e transcultural deste aconteci-
mento.

O consagrado e o emergente - Instituição e movimento

Este poderia ser o momento para estabelecermos aqui uma


oposição entre o que estarei chamando de instituição, como a
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, de que sou
professor, e movimento, como o Movimento de Educação de
Base - MEB, de que fui participante nos anos sessenta, assim
como o MOCASE, da Argentina, a Insurreição Zapatista, no
México, a ASSOINCA, da Colômbia ou o Movimento dos Tra-
balhadores Sem Terra, do Brasil. Não apenas por sua declarava
adesão ao povo, como sujeito e coletivo de classe social, e nem
também apenas por sua posição crítica frente à sociedade em
que se insere, e também à instituição social de que faz parte,
tanto a teologia da libertação quando a educação popular e a
pesquisa participante surgem e se inserem na vida social como
movimentos10. Como movimentos-a-serviço-de-movimentos e,
não, como intuições-inseridas-em-outras-instituições.

10 Vinda de setores da igreja católica, de algumas igrejas protestantes e,


mais tarde, de movimentos ecumênicos (participei durante mais de vinte
anos de um deles) assumidamente envolvidos com o povo e com fren-
tes de lutas populares, a teologia da libertação começa a ser pensada,
divulgada e praticada, sobretudo através das comunidades eclesiais de
base, como um movimento de pensamento e ação insurgente e emancipa-

202
Penso que pessoal e coletivamente bem sabe a diferença
entre uma realidade social e a outra, quem, como eu mesmo,
estuda, ensina e escreve teses, livros e artigos para publicações
de “alto nível” e, ao mesmo tempo (e por mais tempo) redige
um documento como este, cujo destino efêmero é bem mais as
nossas pequenas comunidades insurgentes.
Assim, acredito que seja em parte parcial e indevida uma
“visão das coisas” que atribui ao “fechamento” de instituições
públicas e privadas a quase sempre ausência de movimentos
culturais de vocação insurgente em seu interior. Ao contrário,
penso que uma das consequências de sua vocação popular e
emancipadora, obriga a educação popular a não se institucio-
nalizar. A não ser incorporada “oficialmente” a uma instituição
consagrada e, no limite, a realizar-se como uma instituição
governamental. Por ser “pública”, como um serviço ao povo,
e como uma pratica participante e assessora dos movimen-

dor. Ela foi severamente criticada por setores consagrados da hierarquia,


tanto nacional quando universal da igreja (leia-se: Vaticano). Em diferen-
tes países da América Latinar teólogos e ativistas católicos foram punidos
pelas autoridades eclesiásticas. Hoje pouco resta do ímpeto e da vocação
libertária – dentro e para além da religião – do que foi aqui na América
Latina a teologia da libertação. Em direção oposta, vinda diretamente
dos Estados Unidos da América do Norte e de uma sutil alquimia entre a
mensagem cristã e o ideário capitalista neoliberal, igrejas neopentecostais
espalham-se por toda a América Latina. Não constroem mais templos,
como suas antecessoras, também evangélico-pentecostais. Compram ou
alugam grandes teatros ou outros espaços para espetáculos de massa. E
realizam ao longo das horas do dia, cultos destinados não tanto à “pre-
gação das palavras de Cristo”, mas devotados a uma transfiguração do
imaginário do empreendedor capitalista sob a retórica de uma leitura da
Bíblia, segundo os termos de uma “teologia da prosperidade”. Esta teolo-
gia triunfante em meio popular, sobretudo urbano e periférico, é o exato
oposto do que pretendeu ser a teologia da libertação. Há comprovações
de que agências norte-americanas financiaram e seguem financiando o
“avanço” de agencias religiosas da teologia da prosperidade, na América
Latina, na África e na Ásia. Aqui na América Latina o Brasil tornou-se o
principal centro de difusão de suas igrejas para outros países vizinhos.

203
tos populares, a educação popular não pode tonar-se e vir a
ser uma instituição “pública”, no sentido de “inserida em um
poder de estado”.
Creio que isto vale para o Brasil. Deixo aos companheiros
de Cuba o nos dizerem se vale também para lá.

A educação pública e a educação popular

Imaginemos uma formação social complexa através da


figura de um triângulo... Nem sempre equilátero. Coloquemos
na sua base a sociedade civil (nós, o “povo soberano” de Rou-
sseau). Coloquemos em um dos seus lados o poder de estado
(governos, sistemas e estruturas governamentais, etc.). Colo-
quemos no lado oposto o que chamamos de mundo empresarial
(sistemas de poder e gestão de mercados e capitais), mundo dos
negócios, mundo do mercado.
Se pudermos imaginar alternativas bem concretas a res-
peito de “a quem se dirige e serve uma política de educação
e um projeto pedagógico que a realize”, não será difícil com-
preender que elas podem tomar três direções. Na verdade elas
seriam mais, se pudéssemos desdobrar algumas delas, tornan-
do-as mais complexas. Fiquemos aqui, no entanto, com as suas
formas mais simples.
Em uma primeira direção, o lado do poder de estado é
absolutamente dominante. Pois não apenas dele emana a edu-
cação estendida à sociedade civil, como também é o próprio
poder de estado o seu criador exclusivo, o seu gestor e o seu
beneficiário. Em uma sociedade totalitária, em que as próprias
pessoas são “cidadãs” enquanto mulheres e homens subordina-
dos a um poder deslocado da sociedade civil, são educadas para
serem destinadas a servi-lo – na guerra ou depois dela – toda
a educação subordina destinos individuais e coletivos da socie-
dade civil a um aprendizado escolar vocacionado a estabelecer
a pátria como valor absoluto. Uma pátria que se apresenta e
configura como uma criação de um poder situado fora e acima

204
da sociedade civil, e que se apresenta como o seu detentor mais
originário e legítimo. Logo, como aquele a quem deve servir a
pessoa que estuda e aprende.
Em uma segunda direção não mais um poder de estado,
em seu nome e a seu favor, é o detentor das origens e o desti-
natário das finalidades dos projetos e proveitos da educação
pública. Um governo nacional pode abdicar de ser o beneficiá-
rio maior ou exclusivo da educação escolar. Ele será ainda o seu
gestor, mas agora subordinado a poderes, padrões de interesse
e intensões do mundo do mercado.
Em um mundo que o capitalismo força a apresentar-se
como globalizado, a partir de quando grandes empresas mul-
tinacionais – inclusive as dedicadas à educação – quebram
fronteiras e subordinam tanto nações totalitárias (mais difícil),
quanto aquelas que até um passado próximo se apresentavam
como realizando os ideais humanitários de um “estado provi-
dência”, vemos que muito depressa tudo se move em uma outra
direção. Agora não apenas o aparato físico da educação, mas as
suas políticas pedagógicas e as suas práticas escolares subordi-
nam-se a uma lógica que desloca da pátria para a empresa, e do
cidadão-patriota para produtor-consumidor de bens, em nome
do capital, a substância mais essencial do valor-educação.
Este seria o momento de lembrar que ao final dos anos
noventa – fim de um século e de um milênio – dois documentos
de dimensões internacionais foram produzidos e divulgados.
Um deles em nome da UNESCO. O outro sob o patrocínio
do Banco Mundial11. Deixemos de lado as suas nuances. Em
essência, enquanto o documento da UNESCO reclamava uma
educação estendida a todas as pessoas e nações, como um direito
humano essencial, o documento do Banco Mundial sutilmente

11 O documento da UNESCO, originalmente chamado de “Relatório


Dellors”, foi publicado em várias línguas. Em Português tomou o título:
Educação – um tesouro a descobrir. O documento do Banco Mundial
teria este título: Informe do Banco Mundial sobre a Educação.

205
subordinava a educação ao “desenvolvimento” (capitalista,
claro), e propunha uma educação destinada, afinal, a capacitar
“capital humano”.
Não muito mais tarde, ainda no final do século XX, uma
assembleia mundial da Organização Mundial do Comércio (a
ONU do mundo empresarial) solenemente decretava em sua
sessão final que: saúde, segurança social e educação, são...
mercadorias. Boa parte do que nos últimos anos seguidamente
denunciamos como uma conjuntura universalizada de subor-
dinação de políticas educacionais aos interesses invasivos do
mundo do mercado, é uma apenas decorrência daquilo que
entre os empresários tendeu a tornar-se a educação no mundo
que eles imaginam dominar por completo. Na esteira de uma
privatização utilitária e servil da educação, não apenas ao poder,
mas ao imaginário e à simbologia do mundo do mercado, já há
escolas em que o diretor é um “gestor”, o professor um “funcio-
nário docente”, e o estudante, um “cliente”.
Subsiste uma terceira alternativa. E imagino que em seu
nome estamos reunidos aqui. E eis-nos uma vez mais às voltas
com “trilogias”.
Tal como aconteceu no passado de algumas nações, e tal
como segue acontecendo hoje em dia em bem poucas, a educa-
ção pode secundarizar o poder e os proveitos do estado e, mais
ainda, o do mundo empresarial. E pode (e deve) colocar-se em
nome, a favor e a serviço da sociedade civil.
E é através dessa alternativa de destinação do valor-edu-
cação que a ideia de educação e de escola publica encontram
agora o seu pleno sentido. Uma escola não é “pública” por ser
criada, definida, gestionada, avalizada e avaliada por agentes
de um governo; de um poder de estado. Isto a torna apenas
uma “escola estatal” (e no Brasil ela pode ser: federal, estadual
ou municipal).
Ademais de “estatal” ela é “pública” apenas quando, exer-
cida por gestores do poder de estado, a educação se origina, é
definida, é mantida, é gestionada, é avalizada e é avaliada em

206
nome da sociedade civil e a seu serviço. Assim, ela é “pública”
porque é “do povo” (populus) que delega ao estado geri-la,
subordinada à sociedade civil. Estamos longe de uma tal alter-
nativa democrática e humanitária na América Latina. E uma
pequena e conhecida diferença nos ajudaria a compreender esta
distância.
Em sociedades que, mesmo capitalistas, são formações
sociais sob controle (sempre relativo) da sociedade civil, um
Conselho de Educação formado por cidadãos representantes da
sociedade e, não do estado, traça os rumos e define as políticas
da educação. Um ministro da educação é apenas um agente
executivo em nome do governo de decisões tomadas desde e em
nome da sociedade civil.
Em contrapartida, consideremos o caso do Brasil. Há
um Conselho Federal de Educação, e eminentes educadores
são escolhidos por seus pares para ocuparem algumas de suas
cadeiras. No entanto, em uma sociedade em que “público” é
quase sempre lido como “do estado” e, não, “da sociedade
através do estado”, o CFE é meramente consultivo. E ao
ministro designado pelo presidente da república cabe tomar
de fato as decisões de uma política nacional de educação. E
devo lembrar que nos últimos anos o poder empresarial sobre
a educação logra ocupar cada vez mais cadeiras no Conselho
Federal de Educação. A defesa de uma educação pública (do
povo), democrática, laica, aberta a todos com padrões de igual
qualidade torna-se a cada dia mais difícil, diante do avanço
crescente de agentes políticos e/ou pedagógicos defensores
declarados de restrições à educação pública e à sua privatiza-
ção mercantil.
Acredito que, na esteira de vocações pedagógicas antece-
dentes, a educação popular trás a essa terceira e esperançosa
alternativa, um outro desafio. Creio que uma vez mais é para
pensá-lo e tomar uma posição frente a ele que nos reunimos
aqui. Ora, bem sabemos que em um sentido mais amplo e mais
ancorado nos ideais de primazia da sociedade civil e do cidadão

207
sobre o poder de estado – de que a Declaração dos Direitos
Humanos é um excelente atestado - o “público” da sociedade
civil democrática somos “todas e todos nós”. Pois nela estamos
contidos todos e tudo o que não é e nem representa seja o puro
poder de estado, seja o mundo do mercado capitalista.
Nossas sociedades democráticas e signatárias da Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos são também sociedades de
classe e de conflitos estruturais de/entre classes sociais. Defendo
esta evidente realidade, sabendo que até mesmo cientistas sociais
credenciados defendam que as “diferenças de classe” são fenô-
menos universais, sociais e culturais, cujos entraves e conflitos
podem ser resolvidos, jurídica, social e economicamente, através
de uma consistente regulação do sistema capitalista. Acredito
que sobretudo em sociedades nacionais periféricas, como a
Argentina, o Brasil e a Colômbia, as relações entre classes
sociais não são apenas “sociais” e, portanto, socialmente resol-
víveis através de acordos e consensos. Elas comportam classes
desiguais e econômica e politicamente desigualadas. Compor-
tam sistemas de gestão de poder político e econômico que, sob
a aparência de atribuírem “a todos os mesmos direitos e deve-
res”, na verdade geram, reproduzem, aperfeiçoam e consagram
estruturas e conjunturas regidas pela primazia do capital sobre
o trabalho, e do poder de gestão da sociedade em nome dos
interesses do capital sobre os direitos de todos, em nome do
valor-trabalho e da pessoa. Compartimos sociedades nacionais
subordinadas a um sistema globalizado regido pela desigual-
dade, pela exclusão, pelo arbítrio, pela neocolonização. Enfim,
por todo um aparato que vai do mais simbólico ao mais mili-
tar, colocado a serviço do sistema-mundo regido pelos valores,
poderes e interesses da reprodução (desordenada e inesgotável)
do capital. Se em esfera internacional os “direitos humanos”, tal
como foram decretados são de tal forma desigualmente aplica-
dos, que podemos acreditar que enquanto pessoas e coletivos de
classes médias “para cima” são reconhecidos como sujeitos de
direitos humanos, coletivos e sujeitos das classes médias para as

208
populares são, na melhor hipótese, objetos de jurisdições e de
políticas pretensamente fundadas em tais “direitos”.
Desloco estas reflexões para uma diferença que, imagino,
nos é bastante conhecida. Espero que ela nos ajude a pensar
em que a educação popular desafia a educação pública a ser
“pública” e, também, “popular”. Muitas e muitos de nós aqui
reunidos somos herdeiros, ou somos ainda praticantes do que
veio a ser chamado de “educação de jovens e de adultos”. A
própria educação popular aparece no Brasil através de progra-
mas de “alfabetização popular” que almejam estender-se a uma
formação continuada e crítica de jovens e adultos não frequen-
tadores da escola no tempo devido.
Assim é que mais ou menos nos mesmos anos sessenta,
em que começa a ser pensada, escrita e praticada o que veio
a ser a educação popular, a UNESCO lançou uma campanha
internacional em nome de uma educação permanente. Ela
adiante irá transformá-la em uma proposta de uma “educação
ao longo de toda a vida”. Contemporâneas, e sob alguns aspec-
tos muito próximos, havia entre elas, no entanto, um conjunto
de diferenças essenciais. A educação permanente buscava esten-
der a mulheres e a homens das classes populares, no campo e
na cidade, o direito à educação que lhes fora negado. Ela era,
então, uma ação cultural através da educação como um serviço
estendido ao povo. Seu horizonte era a realização de um direito
humano através de uma abertura de programas iniciados quase
sempre com a alfabetização12.
Uma vocação iluminista-cidadã seria o seu horizonte. E,
além da extensão justa de um direito ao saber, esperava-se que

12 Lembro que orginalmente, nos anos sessenta e antes de seu exílio, Paulo
Freire dialogava com Pierre Furter, um educador suíço radicado durante
anos no Brasil, e um dos porta-vozes da educação permanente, como
emissário da UNESCO. Entre posições diferentes, mas não divergentes,
diálogos entre educadores de uma proposta e da outra foram constantes e
frequentes. Mas após o golpe militar de abril de 1964 apenas praticantes
da educação popular foram exilados.

209
o acesso de pessoas antes “analfabetas e ilustradas” a conhe-
cimentos básicos e funcionais contribuiria para uma melhoria
da qualidade de vida das pessoas, tanto quanto para o desen-
volvimento social e econômico, sobretudo em países periféricos
ao capitalismo. Um horizonte de melhorias sociais no interior
de um sistema-mundo que necessitava ser aperfeiçoado, seria o
limite do projeto político da educação permanente. Devo trazer
aqui duas palavras frequentes nos escritos de Boaventura de
Souza Santos, para sugerir que tal projeto pedagógico – assim
como o da maior parte dos programas públicos de educação
de jovens e adultos na atualidade – aspira uma “regulação”
do sistema capitalista, humanizando e tornando-o mais justo,
inclusivo e igualitário.
Na outra ponta da linha que as aproximava e separava,
através da educação popular o que nos movia então eram pala-
vras que continham ideias e acentuavam propostas regidas por
alguns termos comuns com a educação permanente. E também
por outros, distantes, ou mesmo antagônicos. Entre os primei-
ros: formação, participação, mobilização. Entre os segundos:
conscientização, emancipação (como de novo em Boaventura
de Souza Santos, por oposição a regulação), transformação,
revolução.
Transformações de estruturas da mente, da consciência, da
cultura, de coletividades e movimentos sociais, da sociedade,
da humanidade. Transformações radicais (desde as raízes);
transformações estruturais (não de partes ou sistemas da socie-
dade, mas de toda ela), e transformações socialmente populares
(centradas em frente de lutas e políticas “de classe”). Enfim,
transformações de toda uma sociedade, e não adaptações
modernizadoras e ilusoriamente realizáveis de acordo com o
projeto desenvolvimentista do sistema capitalista hegemônico.
Eis como Tomas Tadeu da Silva, um educador já da década
dos anos noventa, define em termos de vocabulário a educação
popular.

210
Educação Popular – Refere-se a uma gama
ampla de atividades educacionais cujo
objetivo é estimular a participação política
de grupos subalternos na transformação
das condições opressivas de sua existência
social. Em muitos casos, as atividades de
“educação popular” visam o desenvolvi-
mento de habilidades básicas como a leitura
e a escrita, consideradas como essenciais
para uma participação política e social
mais ativa. em geral, segundo a teorização
de Paulo Freire, busca-se utilizar métodos
pedagógicos – como o método dialógico,
por exemplo – que não reproduzam, eles
próprios, relações sociais de dominação13.

Assim sendo, penso que nós nos confrontávamos – e creio


que nos confrontamos até hoje – com dois projetos ao mesmo
tempo próximos e distanciados. Em um deles o horizonte era –
e segue sendo - o da extensão de um serviço cultural através da
educação a pessoas do povo. Um serviço-ao-povo, destinado ao
seu aprimoramento por meio do saber, e para o decorrente apri-
moramento social e econômico de suas vidas e sociedades. No
outro, o horizonte era – e segue sendo - o de um serviço polí-
tico realizado através da cultura e da educação do povo. Um
povo tomado como classe social destinada à realização de ações
insurgentes de emancipação. De uma emancipação tanto dos
“oprimidos”, “subalternos”, “excluídos”, “marginalizados”,
“colonizados”, quanto de toda uma sociedade que gera, aper-
feiçoa e reproduz a opressão, a situação subalterna, a exclusão,
a marginalidade, a colonização. Inclusive através da educação
No Brasil, durante a vigência do Partido dos Trabalhadores,
no governo da Federação, no de alguns estados e no de inúme-
ros municípios, a “educação popular” chegou a ser decretada

13 Está na página 48 do livro Teoria Cultural e Educação – um vocabulário


crítico.

211
oficialmente como a própria “política da escola pública”. Foi
então o breve e fecundo tempo da criação de “escolas cidadãs”,
de “escolas candangas”, e de outras “escolas populares” com
outros semelhantes qualificadores, com uma declarada voca-
ção comunitária e participativa. Foi o tempo das assembleias
populares em torno à educação, dos coletivos pedagógicos, das
gestões partilhadas, dos orçamentos participativos, das pesqui-
sas prévias e participativas junto às comunidades de acolhida
das escolas para a elaboração de propostas curriculares ques-
tionadoras. Hoje, fora alguns contextos muito raros, de tudo o
que se fez resta a memória saudosa de algumas professoras e
algumas dissertações e teses de pós-graduação.
Conhecemos de sobra algumas razões visíveis a respeito
da distância, ou mesmo de uma dissonância entre a educação
pública-estatal e a educação pública-popular. Uma delas é difun-
dida o bastante para não ser mais do que apenas sumariamente
relembrada aqui. A educação popular não se apresenta como
um serviço cultural através de uma ação pedagógica esten-
dida ao povo, mas como uma vocação pedagógica colocada
a serviço do povo. Colocada, na contramão. Isto é, colocada
a serviço direto de sua formação e de seu crescente e irreversí-
vel empoderamento como um agente ativo de transformações
sociais quase sempre hostis a poderes de estado liberais, neoli-
berais ou liberalmente populistas. Hostis a tais políticas e, mais
ainda, aos interesses dos polos político-econômicos aos quais
serve o um poder público colonizado.
Mas há também um outro motivo do descolamento entre a
educação popular e as nossas políticas governamentais de edu-
cação. E ele tem sido sutilmente o mais esquecido. Ao deslocar
de um poder-de-estado para instituições e frentes de lutas popu-
lares o seu lugar de inserção, a educação popular desqualifica
a essência de um teor nacionalista-patriótico de qualquer edu-
cação pública. Veremos mais adiante como a educação popular,
a partir de Paulo Freire, em muito breve tempo passa de “nor-
destina” a “brasileira”, de “brasileira” a “latino-americana” e

212
de “latino-americana” a “altermundista”. Altermundista aqui
num duplo sentido da palavra. Primeiro: universalista a partir
das classes e dos movimentos populares – de que hoje em dia a
Via Campesina é um exemplo eloquente. Segundo: integrada ao
princípio de que cabe ao povo – nós incluídos, segundo a minha
visão – a criação de “um outro mundo possível”.
Assim, como um educador popular, diante de um enfren-
tamento entre movimentos camponeses paraguaios e a política
expansionista de meu País, o Brasil, eu me colocaria ao lado
dos camponeses paraguaios e contra a política agrária de meu
País, em caso de um conflito de fronteiras. Pois a meu ver, uma
primeira, difícil e essencial lição a ser aprendida entre nós, é o
desafio em que, a partir do momento em que “para além do
nacional” você se coloca “ao lado do povo”, toda a criação
das elites governantes em nome algum apelo vocação naciona-
lista, torna-se algo a superar. Algo a solidaria e generosamente
ultrapassar – menos no caso do futebol - em nome de um
pan-universalismo popular, e des-fronteiradamente fraterno e
universal.

Alguns princípios como fundamentos da educação popular

Desejo encerrar este documento de partilhas de experiên-


cias, de imaginários e ideários sobre as relações entre o público
e o popular na educação, com a listagem de alguns princípios
e valores que, vindos das origens do movimento da educação
popular, subsistem em plena vigência até hoje. Nada do que
escrevo seguir – tal como o que escrevi até aqui – é original-
mente “meu”. Resumo apenas o que ouvi, aprendi e acreditei.
Na verdade, algo em que acredito até hoje.

1º. O primado do valor original e absoluto da pessoa humana

Qualquer que seja o tipo de um governo e a vocação de


uma sociedade, a pessoa humana é sempre o seu sujeito e a sua

213
razão de ser de tudo o que há, e de tudo o que se faz, realiza e
transforma.
Individual ou coletiva, a pessoa humana constitui um valor
irredutível em si mesmo. E todos os projetos e todas as políticas
sociais devem ter cada pessoa e os coletivos de todas as pessoas
de um povo, de uma nação, da humanidade como a origem de
suas ideias e ações, e com as suas destinatárias essenciais.
Na relação “triangular” entre a sociedade civil, o poder
de estado e o mundo do mercado, a única instância de valor
substantivo e original é a sociedade civil. É a comunidade de
mulheres e homens que individual e coletivamente constituem
a substância única de realidade, valor e sentido em-si-mesma.
Um projeto ao mesmo tempo humanista, solidariamente
socialista e emancipador, realizado através de qualquer moda-
lidade de prática da educação, não pode subordinar-se e nem
constituir como horizonte de suas realizações um poder de
estado. Menos ainda o ideário e o poder do mundo do mercado.
O seu lugar de origem é a sociedade civil. O seu cenário
de realização é também ela. E seu horizonte de destino são as
pessoas que a habitam e constroem.

2º. A equalidade dos saberes e a vocação humana ao diálogo

Cada ser humano é uma fonte de vida, de experiências pes-


soais e de saberes próprios que a torna única, como uma fonte
original de valor e de conhecimento. Assim também acontece
com cada cultura e com cada coletivo cultural. Culturas são
diferentes umas das outras. São originalmente diferentes e não
hierarquicamente desiguais.
Assim sendo, todo o saber, todo o aprendizado e toda a
ação social entre pessoas devem realizar-se sempre como vivên-
cias interpessoais e culturais de e entre diálogos. Quem quer que
sejam as pessoas participantes de um “momento de partilha de
criação de saberes” (leia-se: educação), a sua verdadeira voca-
ção está na sua abertura ao encontro com o outro no diálogo

214
entre seres iguais, livres e responsáveis por si mesmos, pelos
outros e por seus mundos de vida e de trabalho.
Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo
Porque é um ato de coragem, nunca de
medo, o amor é compromisso com os
homens. Onde quer que estejam estes,
oprimidos, o ato de amor está em com-
prometer-se com sua causa. A causa de sua
libertação. Mas, este compromisso, porque
é amoroso, é dialógico14.

3º. O diálogo como comunicação transformadora de


consciências e culturas

Não somos apenas mentes que adquirem e acumulam


informações e conhecimentos para permanecermos como sem-
pre fomos. Somos e seres que transformam o que aprendem e
conhecem através de formas pessoais e dialógicas de consciên-
cia. A formação de consciências autônomas, críticas, criativas e
amorosamente dialógicas é a razão de ser do aprendizado.
E esta forma de aprendizado deve ser a razão de ser da edu-
cação. Pessoas não aprendem apenas para serem capacitadas
através da informação. Aprendem para conhecerem. E conhe-
cem para compreenderem. E compreendem para agir. Assim
pessoas não aprendem para acumularem conhecimentos, mas
para continuamente processarem saberes ativamente adquiri-
dos como reconhecimento pessoal e interativo de si mesmas,
dos outros e do mundo. Conheço quando faço parte do que é
conhecido. Conheço conscientemente quando penso por conta

14 . Está na página 94 do livro Pedagogia do Oprimido. Ele foi publicado


pela Editora Paz e Terra, de São Paulo, em 1970. Existem várias edições
posteriores e inúmeros artigos e livros que de um modo ou de outro
comentam as ideias contidas no livro.

215
própria e responsavelmente qual o sentido humano e social do
que estou conhecendo.
Todo o saber do acontecer de uma educação popular é
uma experiência de reciprocidade. Todo o saber que circula e
com o qual se ensina e aprende não é propriedade de quem
sabe, não é uma posse. É, ao contrário, um bem de troca, logo,
é um dom reciprocidades.
Numa experiência plena de educação popular não existem
professores versus alunos, e nem professores e alunos. Todos os
participantes são ensinantes que aprendem e são aprendentes
que ensinam. Ou todos são educadores que aprendem e edu-
candos que ensinam.
Devo repetir ainda uma vez. Uma educação de vocação
popular encontra na partilha de diálogos o seu chão e o seu
céu. O seu ponto de partida, o seu percurso e o seu ponto de
chegada. O diálogo não é apenas uma metodologia de ensino
e nem é uma meta abstrata entre outros. O diálogo entre-nós
é o fundamento dela, e a substância de todo o seu processo e é
o seu objetivo essencial. Mais do que ensinar a aprender infor-
mações, conhecimentos e saberes, esta modalidade de educação
pretende criar condições para que o meu-saber se transforme
num saber compartido entre-nós.
Todo o processo da educação popular é, portanto, regido
por uma horizontalidade de participantes igualados em suas
diferenças. Ela parte de um princípio dito e repetido aqui: qual-
quer pessoa é uma fonte única e irreversível de seu próprio
saber-de-vida. Todas as modalidades de saber são equivalentes
enquanto valor e são válidas através de suas diferenças.
As mais diversas circunstâncias da vida e do destino de
uma pessoa, de um pequeno grupo ou de uma comunidade são,
em si-mesmas, fontes e repertórios de saberes essenciais. O que
se vive em uma situação educacional formal complemente estes
saberes, dialoga com eles e não os desqualifica e nem trabalha
no sentido de os substituir por outros saberes. Em cada pessoa
ou grupo cultural o que se aprende na educação popular comu-

216
nitária, como uma troca, uma reciprocidade e um diálogo, deve
resultar em uma progressiva integração entre os saberes-de-
vida e os saberes-de-escola.
Não se lucrar, ganhar com o saber que se aprende. Ele tam-
bém não é meramente “acumulativo” no interior da pessoa que
aprendera saber. Ele pode ser útil sem precisar ser limitadamente
funcional. Pode ser funcionalmente aplicável, sem ser compe-
titiva e individualisticamente utilitário. Todo o saber que se
acrescenta ao que se sabe, deve resultar em motivações e ações
de partilha e de serviço e, não, de ganho, lucro e poder. Ao con-
trário do competente-competitivo, o consciente-cooperativo.

4º. O destino do conhecimento conscientizador é um ponto


de origem de ações sociais transformadoras, emancipadoras e
decolonizadoras

Uma das decorrências de uma mente consciente através


do aprendizado no âmbito de uma educação libertadora, é a
consciência de que o mundo em que vivemos foi e segue sendo
construído através de ações de/entre pessoas e de/entre coleti-
vos humanos. Ele é uma criação social, e se em um momento
de sua história um “mundo social” não corresponde a como
deveria ser uma sociedade livre, justa e fraterna, cabe às pessoas
que nele vivem, a partir dos agentes das camadas populares,
realizarem a sua transformação.
Existe um critério absoluto para determinar a qualidade
de uma mudança ou transformação social? Sim: ela deve ser
sempre humanizadora. Deve representar sempre e de maneira
irreversível um acréscimo de valor humano. Um aumento de
condições através das quais as pessoas e todas as pessoas de
uma formação social possam viver cada vez mais uma vida
plena e feliz. Isto é: uma vida de qualidade, criativa, livre, cor-
responsável e solidariamente partilhada, em uma sociedade
justa, democrática (de fato), igualitária, multicultural, não
excludente, e aberta à constante mudança.

217
5º. O chamado à participação de todos, a partir das pessoas do
povo tomadas como classe social

Em uma sociedade onde a imensa maioria das mulheres


e dos homens pertence às camadas sociais populares, não ape-
nas por isso são as pessoas do povo aquelas a quem devem
ser destinados recursos e projetos que reverterão a sua própria
condição de pobreza, exclusão e marginalidade.
Mais do que isso, pessoas das camadas populares devem
se tornar os próprios agentes ativos e críticos de sua formação
e da transformação de suas culturas (modos se ser, de viver, de
sentir, de criar e de pensar) a partir delas próprias. E a partir de
seus valores e tradições, em direção à transformação da própria
vida social que elas constroem com seus saberes e trabalhos.

6º. A partilha solidária da vida e do saber

Aprender, a saber, começa por partilhar de maneira ativa


e proveitosa da construção coletiva do saber que pessoalmente
se aprende. Uma “turma de alunos”, que eu prefiro chamar de
“uma comunidade aprendente” cria e recria os seus saberes a
partir dos quais cada integrante realiza a interiorização pes-
soal de seu quinhão de saber. Participando de uma comunidade
aprendente colocamos o que trazemos como nossa experiência
pessoal de saber. E “retiramos” de um todo partilhado a nossa
parte individual daquilo que cada um de nós, no interior de um
entre-nós, adquire e aprende.
Construir saberes, aprender e saber é, portanto, sempre
uma experiência sempre entre-nós. A aquisição da informação
pode ser solitária. O aprendizado de um conhecimento é um
diálogo entre eu e um outro (como o diálogo com o autor cujo
livro eu leio). O aprendizado do saber é sempre uma atividade
vivida como diálogo entre-nós. Não sendo posse de qualquer
pessoa, o saber (da sabedoria) deve livremente fluir entre todos.
Aprender a saber é saber transformar-se.

218
Ser mais si-mesmo igual e diverso, por efeito da vivên-
cia do processo de criar saberes e sentidos, através do que o
aprendido transforma o-que-eu-sei, e assim, transforma quem
-eu-sou. Sendo uma pessoa que ao aprender se transforma, eu
me transformo em um agente de transformações.
Assim sendo, podemos encerrar esta breve síntese lem-
brando uma vez mais que a razão de ser da educação popular
é formar pessoas reciprocamente transformadas, e destinadas
a se constituírem como agentes solidários de transformação de
suas vidas, de seus destinos e de seus mundos de vida.

7º. A pedagogia da esperança

Pedagogia da Esperança é um livro de Paulo Freire que


sucede e repensa o Pedagogia do Oprimido. Paulo viveu uma
vida inteira como um persistente educador. Tal como tantas
outras e outros aqui na América Latina, ele conviveu sem-
pre com coletivos de ação e esperança. Não foram poucos os
momentos de sofrimento e de um quase desânimo. No Brasil,
no Chile, na África ele conviveu bem mais com experiências
emancipatórias abortadas por um “golpe de estado” ou a pas-
sagem de um governo popular a um autoritário e subordinado
ao mundo empresarial. Assim eu também e várias pessoas que,
como Paulo e eu, viemos de cinco ou seis décadas “envolvidos
com a educação popular”. Um dia publiquei um livro coletivo,
após em uma viagem com Paulo Freire à “Nicarágua Sandi-
nista”, com este nome: Lições da Nicarágua – a experiência da
esperança. Anos mais tarde assistimos ao que aconteceu com a
Nicarágua e como uma vez mais os poderes anti-povo tomaram
o governo e reverteram o que começou sendo uma das mais
esperançosas reconstruções sociais na América Latina.
Nem por isto e nem por mais do que isto aprendemos a
desistir. Afinal, o “inédito viável” nos parece realisticamente
estar sempre diante de nós, por distante que seja o horizonte
em que o vemos... ou pressentimos.

219
Ser educador. Saber ensinar para ser superado por aqueles
com quem dialoga e a quem ensina. Quero repetir aqui uma
pequena e fundadora passagem da vida de Paulo Freire. Ela
me foi contada não por ele, mas por Moacir Gadotti, que foi o
interlocutor do que houve.
Um grupo de educadores em São Paulo resolveu criar um
instituto de educação popular com o nome de Paulo Freire. Em
uma pequena comissão foram até ele propor a iniciativa. Paulo
ouviu a proposta e a seguir respondeu: “vejam, se for para me
repetir, não vale a pena. Mas se for para me superar, aí sim.
Podem criar”.

220
EN QUE PLAN VIENES?”

MEMÓRIAS, IDÉIAS E PERGUNTAS

El futuro ya no es más el mismo!


escrito em um muro em Buenos Aires, em
1985

O homem é um ser futuro.


Um dia seremos visíveis.
Murilo Mendes
O discípulo de Emaús

“En que plan vienes?”

Comecemos pensando entre-nós, sobre nós mesmos.


E que me seja facultado iniciar este escrito, que prova-
velmente ficará longo demais para os dias de agora, com a
lembrança de uma vivência minha na Galícia. E se a rememoro
é porque penso que ela poderia ser uma boa metáfora para
pensarmos outras vocações e outras situações. As nossas, agora,
imagino.
Quando alguém chega à porta do Mosteiro de Sobrado do
Monxes, no Caminho de Santiago, quase certamente ouvirá do
“monge porteiro” uma pergunta que talvez se repita há séculos,
ou pelo menos ao longo de muitos anos: “en que plan vienes?”
E quem pergunta espera que quem chegue escolha uma das
seguintes três alternativas: “vengo como turista”; “vengo como
peregrino”, “vengo como huesped”.

221
Se “como turista”, o chegante pagará uma pequena impor-
tância e receberá um mapa-guia da grande e antiga abadia. Se
o viajante-turista for plural, pode ser que um monge seja des-
tacado para guiar o grupo. Se “como peregrino” ele e a sua
mochila serão levados a uma hospedaria coletiva, e aí o cami-
nhante deverá alojar-se por uma noite. Se “como hóspede”, ele
e sua mala serão conduzidos a uma das acomodações reserva-
das para ele, por um par de dias, uma semana ou mesmo mais
tempo. Hóspedes podem escolher entre ficarem livres em seus
aposentos e alguns lugares públicos, ou se alistarem para parti-
cipar das cerimônias das horas canônicas beneditinas. Estive ali
uma vez como “peregrino” por uma breve e repousante noite.
E depois como “hóspede-meditante”, por uma semana. Na
segunda vez participei das cerimônias canônicas beneditinas, à
exceção da manhã cedo. Era inverno.
Se escrevo essas reminiscências de algo vivido em 1992, é
porque quando eu me revejo em um encontro como este que
nos reúne em Mendoza, sempre penso que deveríamos iniciar
os nossos trabalhos e diálogos com uma semelhante pergunta-
desafio que, cada uma a seu modo, todas as pessoas deveriam
responder: “En que plan vienes?” E, de preferência, com a sim-
plicidade que encontro quando ela, ou alguma outra semelhante,
abrem um encontro entre integrantes de uma comunidade tra-
dicional, a resposta a uma tal pergunta deveria ser a primeira
fala de cada um de nós. Ora, se tal pergunta me fosse feita em
1978 eu teriam mais certezas em minha resposta. Se em 1992,
teria um pouco menos certezas. Hoje tenho menos ainda.
Acredito que boa parte de uns “nós” que se reúne entre
encontros, simpósios, congressos, cursos e semelhantes, será
constituída por mulheres e homens e “híbridos” como creio que
eu mesmo agora me reconheço.
Penso que boa parte de nós-mesmos aqui presente uni-
fica-se em uma assumida vocação, vivida ou não através de sua
profissão. Tal como o lavrador que com humildade confessa
que além de cultivar a terra... “eu não sei fazer outra coisa”.

222
Este seria, por exemplo, o “plan” das pessoas que, como inte-
lectuais, cientistas, e/ou acadêmicos, restringem-se a pensar,
profissional e criticamente, “a realidade social em que eu vivo”.
E aí esgotam o que reconhecem como a sua parte de “participa-
ção em”, assim como a sua contribuição para”.
Mesmo sem sair da esfera de um mundo que reúne a ciência
e a academia - a mais consagrada morada legítima da ciência, ao
ver de alguns – há quem associe as suas pesquisas, aulas e escritos
fundados em uma “teoria crítica”, ao afã de fazer interagirem
a teoria-que-pensa-o-mundo e algumas propostas derivadas, e
destinadas a serem um fundamento de práticas sociais.
Adiante nos encontraremos com Boaventura de Souza
Santos, que a partir de suas vivências e diálogos no “Sul do
Mundo” e, de maneira especial, aqui na América Latina, opõe
a uma teoria social crítica, mas ainda “indolente”, a uma outra
teoria social crítica ativa, insurgente, participante. Epistemolo-
gias do Sul é um dos nomes que, sonhadora ou profeticamente,
ele sugere para esta segunda vertente. Há outros nomes. Che-
garemos a eles. A atividade, frequente entre nós, de “formar
quadros” como educadores dentro ou fora da universidade,
entre futuras docentes e outros profissionais, militantes, é um
bom exemplo.
Em uma direção próxima vejo pessoas que ao lado de
uma prática teórica crítica e vivida na academia e entre seus
habitantes (nem todos, na verdade), saltam de suas fronteiras e
vão a “outros mundos, em buscas de outros “Outro”. “Outro”,
aqui, é quase sempre o sujeito coletivo que identificamos como:
“movimento social”, “movimento popular” ou “comuni-
dade tradicional”. Outras pessoas, mais raras em nosso meio,
migram de uma formação acadêmica para uma “inserção direta
em meio popular”. E assim transformam o “estar aqui” em uma
vocação militante a que a “profissão de origem” – exercida ou
não – deve se submeter.
Se olharmos para a outra margem do rio, deveremos reco-
nhecer que das últimas décadas para cá as mulheres e os homens

223
a quem, no singular ou no plural, nós nos dirigimos, reconhe-
cendo-os direta ou indiretamente como os sujeitos protagônicos
do repertório de ações insurgentes, contra-hegemônicas, que
a eles e a nós aproximam e tornam parceiros, companheiras,
cúmplices. Os mesmos autores-atores de gestos e atos que nos
surgem agora através de modalidades de pensamento e ação
senão novos, pelo menos desafiadoramente renovadores.
É sobre esta nova “chegada do outro”, e sobre o que ela
provoca em e entre “nós” que pretendo refletir aqui. Afinal,
com bastante maior diversidades, apelos e reclamos de uma
ativa e efetiva presença, “eles” estão chegando.
Penso que estamos vivendo um segundo momento histó-
rico de “criações do Sul”. Um tempo-espaço de inovações de
ações insurgentes não propriamente criadas do equador “para
baixo”, mas por certo reinventadas pelos mais diversos pro-
tagonistas populares da América Latina. Algo que re-acontece
entre nós, e que imagino que conte com a nossa ativa e criativa
participação1.
Um primeiro momento de criações emancipatórios ori-
ginada, ou reinventadas “no Sul do Mundo” reúne a Cultura
Popular (lembrar o “Teatro do Oprimido”), a Educação Popu-
lar, A Investigação-Ação-Participante, a Teologia da Libertação

1 Mesmo que possa ser indevido desde um ponto de vista oficialmente


antropológico, estarei reunindo aqui sobre este qualificador: “popu-
lar”, as várias categorias de “sujeitos”, e de variedades de atores-autores
sociais junto a quem atuamos, e em nome de quem estou escrevendo isto.
São populares, assim, operários e outras categorias de trabalhadoras/es
urbanos; camponeses (e suas muitas variantes, como no caso brasileiro);
sujeitos coletivos étnico-culturais, entre quilombolas, indígenas e outros;
pessoas e coletivos militantes através de movimentos populares e/ou de
comunidades tradicionais. Por extensão agrego a esta categoria, em seus
pontos extremos de fronteira, minorias e maiorias participantes de um
mesmo comum e solidário horizonte emancipador, a partir e através das
diferenças de suas origens, de seus modos de vida, de suas culturas pró-
prias, de suas assumidas identidades, de suas vocações de resistência e
suas ações de teor emancipatório

224
(junto com a Política da Libertação e a Psicologia da Liberta-
ção), a reescrita em um Neo-Marxismo Latino-Americano, as
Comunidades Eclesiais de Base, os Movimentos Populares2.
Penso que um segundo momento acontece agora. Mesmo
se apenas coadjuvantes, somos coautoras e atores do que vemos
acontecer diante de nós. Sua força mais importante vem de um
novo protagonismo que, em termos de presença, de variância
e de qualidade, traz para os cenários, territórios e fronteiras
das idéias, práticas e frentes de lutas de resistência, insurgência
e emancipação não apenas novos atores, mas uma assumida
nova forma de presença e protagonismo deles.
E o que acontece chega aos dias de agora com uma dife-
rença bastante essencial, diante daquilo que os de minha geração
viveram, entre os anos 60 a 80. Através de menores ou maiores
interações entre “nós-e-eles”, da educação popular à teologia
da libertação, tudo o se pensou e se propôs entre os anos 60/70
de um modo ou de outro proveio de “nós” para “eles”. “Nós”
sou eu: um professor universitário que se agrega a ser também
um educador popular. “Eles” são camponeses que se revestem
de serem também militantes sindicais ou do Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra, o do MOCASE.

2 Em um artigo escrito em 2015, e publicado em Polifonias – revista de


educación, da Universidade de Lujan, na Argentina, abordo um sentido
mais profundo deste conjunto de inovações a que mais tarde poderia ser
aplicada a ideia de Cartografias do Sul, cunhada por Boaventura de Souza
Santos. Em certo momento lembro que por uma vez, através de criações
como a educação popular e suas derivadas, latinoamericamente nós nos
descobrimos, nos citamos e aprendemos uns com as outras. E, mais,
entre educadores, cientistas sociais e teólogos, por uma primeira vez de
forma significativamente maciça e consistente, pessoas vindas do “Norte
do Mundo” desceram ao Sul para vivenciar o que foi criado e para, em
alguns casos relevantes, reescreverem as suas próprias ideias a partir do
que aprenderam entre povos da América Latina. Ver: Educación Pública,
educación popular, educación alternativa e educación del campo. Polifo-
nias – revista de educación, Ano IV n. 7. Sep./oct. 2015, Departamento de
Educación, Universidad Nacional de Luján, páginas. 21-68.

225
Agora chega o tempo em que boa parte do percurso toma
uma direção diversa, e, para alguns efeitos, quase oposta. Chega
agora o tempo em que nós nos calamos para finalmente ouvi
-los. E quando nós nos falamos e falamos a eles, o que temos
a dizer toma o que eles dizem não mais como um momento
de um curioso e peculiar testemunho do “como eles tradicio-
nalmente são”, tal como em nossas pesquisas. Toma-os como
fontes, teias e redes saberes de vozes que de agora em diante
não podem mais deixar de serem ouvidas. E escutadas como a
voz de algo sem o que as nossas próprias falas não dizem nada,
tanto a “nós” quanto a “eles”.
E ora em Castelhano ou em Português, mas também ora
em idioma Mapuche, Aymara ou Ianomâmi, é “deles” a “nós
que nos chegam tanto as palavras a colocar ao redor do círculo,
quando as práticas de vida que aos poucos deixamos de pes-
quisar para nossas teses, e começamos a aprender para pensar,
partilhar e praticar em nossas vidas. Ou seja, para ousar torná
-las também as nossas práticas3.

3 Até mesmo em cenários tradicionalmente acadêmicos cada vez mais me


vejo pessoalmente “diante do outro”, e não apenas para falar sobre ele...
a ele e a nós. Mas para ao redor de uma mesa compartir com ele, a partir
do que ele tem a “nos” dizer, palavras e idéias que, sendo afinal nossas,
tem algumas de suas origens mais essenciais em seus saberes bem mais
do que nos nossos. Não faz muito tempo participei da mesa redonda de
abertura de um curso universitário dirigido a indígenas, quilombolas, e
outros/as sujeitos de comunidades patrimoniais. Nela eu reparti o direito
a falar “diante de” com Davi Kopenawa, um indígena Ianomâmi. A mesa
foi coordenada por Ailton Krenak, um líder Krenak. Davi aproveitou
para me mostrar então um longo escrito de sua “antropologia indígena”
recentemente publicado em Paris e em Francês. O mesmo Ailton Krenak
abriu um grande Congresso Internacional de Povos e Comunidades Tra-
dicionais, em Montes Claros, nos sertões de Minas Gerais. A presença de
uma ativa e crescente coletividade de líderes de movimentos populares
e de comunidades patrimoniais tem sido a marca de um número já bas-
tante significativo de eventos patrocinados por universidades públicas no
Brasil. E a presença de lideranças femininas é também crescente e a cada
dia mais ativa.

226
A chegada do Outro

Em um livro de um sociólogo e militante cristão, Luiz


Alberto Gómez de Souza, escrito como um diálogo entre cató-
licos há a seguinte passagem:
Os novos sujeitos históricos deverão ser
levados em conta. Entre eles os mais con-
testadores e desafiantes são as mulheres.
Costumo dizer que os movimentos femi-
ninos e feministas são subversivos por
excelência, já que põem o dedo na mais
antiga das dominações: a patriarcal.
...
O imperialismo ocidental impusera o
mundo branco. Outras etnias se rebela-
ram. No Brasil, os movimentos negros se
impuseram com vigor, denunciando os
racismos larvares ou explícitos num país
escravocrata até bem pouco antes. E recupe-
raram sua cultura, sua espiritualidade e suas
tradições religiosas. Na América, as comu-
nidades originais redescobriram sua força,
seus hábitos e sua maneira de ser e de viver,
dos valentes araucanos do sul do continente
aos quíchuas, aymaras, os povos centro
americanos, do México, dos Estados Uni-
dos, do Canadá. O zapatismo, no México,
foi a grande manifestação de um povo que
reivindica sua identidade, superando, alta-
neiro, seus complexos ancestrais e surgindo
como sujeito político e social. A categoria
da diferença, lançada pelas mulheres impôs
o pluralismo de um universal das diversida-
des, numa perspectiva intercultural4.

4 Está na página 267 de Do Vaticano II a um novo concílio? – O olhar


de um cristão leigo sobre igreja. Publicado em conjunto pelo CERIS, a
Editora Rede da Paz e a Edições Loyola, em São Paulo, em 2004.

227
A partir da aurora dos anos 80 afirmações como estas, vin-
das das mais diferentes coletividades de vocações insurgentes
serão, entre Cristo e Marx, e entre o professor Alfonso Tor-
res Carrillo e o subcomandante Marcos, ditas e escritas até a
exaustão. O que criamos e nos acompanhou desde o passado
precisa ser agora e sempre reinventado. Precisa ser não somente
atualizado ou modernizado para novos tempos e para as mes-
mas e outras frentes sociais de resistência e luta.
Em uma de suas conferências na Universidade de Buenos
Aires, em 2005, Boaventura de Souza Santos lembrou o que
já sabíamos, mas que ele reiterou com ênfase. Ao lado de uma
tradição popular de luta “pelo respeito às igualdades”, deve-
mos agregar e fazer interagirem frentes de “lutas pelo direito
às diferenças”. Uma fonte de imaginários em uma múltipla
frente de lutas apagada ou esmaecida nos tempos em que eu
me envolvi com a educação popular. Tempos em que vincular-
se a uma “causa ambientalista” era associar-se à “burguesia
internacional”, e trair a “classe operária”, assim como a “luta
camponesa pela terra”. Tempos em que anunciar-se “feminista”
era, além de “burguês”, uma antecipação desnecessária, porque
extintos o capitalismo e sua criação mais persistente, a socie-
dade de classes, estariam igualmente extintos o patriarcado e a
dominância injustificada de homens sobre mulheres.
Boaventura recorda que em tempos de agora, de práticas
de “baixo para cima”, da margem para o centro” e “do Sul para
o norte” são chegados também os tempos de descobrimos como
associar a uma ativa insurgência frente ao “sistema da desigual-
dade”, uma outra – ou a mesma com duas faces e dois tempos,
frente ao “sistema da exclusão. Frente ao duplo-uno processo
que, primeiro, gera ou desqualifica o desigual como um sujeito
de direitos. E, depois, o re-desqualifica por ser “o diferente”.
Por ser-de-origem, ou haver-se tornado aquele que não sendo
“eu”, e não sendo “como eu”, não pode ser-viver-pensar-e-agir
“como eu”. E, por consequência, não pode reclamar “direitos
humanos”. Direitos que solenemente proclamados como esten-

228
didos a todos os seres humanos, são efetivos apenas para o
caso dos sujeitos que o sistema considera como utilitariamente
“humanizados”5.
Reunidas em conjunto fecundo de dicotomias entre o que
impõe o sistema hegemônico e o que nos desafia a ações insur-
gentes, podemos resumir as idéias presentes de Boaventura de
Souza Santos mais ou menos assim:
Ações sociais dirigidas à regulação do sistema vigentes X
ações de emancipação; anuncio do “fim da história X a nega-
ção da história única e da não-história em nome da criação
de pluri-histórias; disposição teórico-crítico-conformista X
vocação crítico-ativa, insurgente; hierarquia, desigualdade
e homogeneização X isonomia associada a diferenças e pluri
-referências; o estático, ordenador e regulador X o dinâmico,
desordenador e emancipador; o monológico e sempre fixo X
o dialógico e sempre mutável; um saber único hegemônico e
colonizador X pluri-saberes diferenciadamente unificáveis, con-
tra-hegemônicos e liberadores; uma Educação praticada como
instrumentalização funcional, como capacitação destinada a
uma subserviente adaptação ao “mundo real” X uma educação
praticada como formação integral, desequilíbrio e transforma-
ção; determinismo e certezas estabelecidas X indeterminação
e incertezas transformáveis; reducionismo e uniformidade cul-
tural X multiculturalismo em direção à pluri-culturalidade;
democracia de baixa-intensidade e apenas representativa X
democracia de alta-intensidade e ativamente participativa; rei-
teração do par desigualdade+uniformidade X insurgência em
nome do par igualdade+diferenças; Monoculturas do saber e
do rigor + monoculturas do tempo linear + monoculturas da
naturalização das diferenças + monoculturas da escala domi-
nante + monoculturas do produtivismo dominantes X ecologias

5 As passagens em que esta questão é mais evidenciada estão ao redor da


página 63 de Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social,
publicado em Português em 2009, pela Editora Boitempo, de São Paulo.

229
dos saberes + ecologias das temporalidades + ecologias dos
reconhecimentos + ecologias das produtividades solidárias e
partilháveis opostas às produções individualistas e utilitárias;
sociologia das presenças + monoculturas X sociologia das
ausências + ecologia dos saberes.
Como voltarei adiante mais de uma vez a Boaventura de
Souza Santos, é com Cláudia Korol que desejo dialogar agora.
E se trago aqui uma pequena passagem de La subversión del
sentido común y los saberes de la resistência, será por causa
de um pequeno detalhe sugerido ao final de um de seus pará-
grafos. Ao defender a criação sócio-geográfica, mas também
simbólico-reflexiva de “territórios subjetivos de liberdade”,
Cláudia escreve isto:
Recrear un imaginário rebelde nos invo-
lucra colectivamente en la necesidad de
desconstruir de manera compleja, siste-
mática, profunda, aquellas nociones que
resultam pilares del sistema capitalista y
patriarcal, tales como mercado, proprie-
dad privada, família, progresso, desarrollo,
fontera, Estado. Significa no solo proponer
nuevas nociones, sino fundamentalmente
nuevas prácticas solidárias que las vayan
constituyendo6.

É a parte final da passagem acima o que mais me motiva


aqui. Cláudia lembra que de uma maneira algo diversa a como
pensávamos nos “tempos pioneiros”, não são apenas ou priori-
tariamente teorias-ideologias insurgentes, associadas a práticas
políticas de ação libertadora direta, aquelas que contam como
um valor de ação. As que contam com as que ética e politi-

6 Está na pagina 178 de De los saberes de la emancipación y de la domina-


ción, um livro coletivo coordenado por Ana Esther Ceceña. Editado por
Libros CLACSO em Buenos Aires, em 2008.

230
camente presentes deveriam estar no interior de projetos de
ruptura com o presente-perverso e de construção do futuro
-esperança. Elas são também as “novas práticas solidárias” de
vocação ética, estética e erótica – imagino e acrescento – des-
tinadas a virem a ser também políticas. Práticas de vida do/no
presente a serem criadas, reinventadas e colocadas não como
resultantes a posteriori de ações político-insurgentes de futuro,
mas como fontes a priori de realização presente da própria
insurgência emancipadora.
De suas palavras derivo por minha conta e risco que várias
dentre as “novas práticas sociais” não necessitam serem cria-
das. Elas melhor seriam aprendidas de outros-que-não-nós e,
quando viável, retraduzidas para os nossos tempos e territórios
de vida, vivência, partilha e pensamento. Práticas sociais deri-
vadas de modos tradicionais de vida entre as experiências, os
saberes e os sentidos de pessoas, comunidades e culturas que,
ancestralmente, resistente e persistentemente já as vivenciam,
reproduzem e transferem de uma para outra gerações.
Outra ideia derivada é que a incorporação de novas-ar-
caicas práticas de vida, vindas justamente daqueles em nome
de quem nos vemos pensando e agindo, não deve ser pensada
e vivida como uma espécie de provisória salvaguarda nossa e
dos outros: os “povos do povo”. Ou como um apanhado de
práticas constituintes de modos de vida insurgentes, a ser subs-
tituído por sistemas complexos do ser-pensar-partilhar-e-viver
destinados num futuro próximo ou remoto a serem instaura-
dos como uma novidade-nossa no interior de um “novo mundo
possível”.
Ao contrário, elas são, aqui e agora a evidência “prática”
da presentificação realista de um futuro a construir no e como
presente. Imagino que Claudia Korol não estará em desacordo
com essas ideias.
A isto poderemos relembrar uma outra fecunda ideia de
Boaventura de Souza Santos escrita no mesmo livro já citado
aqui. Ele lembra que um imaginário cultural-hegemônico,

231
associado à ciência que pensa por ele e através dele - mesmo
quando criticamente parece se voltar contra ele - age afinal por
meio de um efeito de redução constritora do presente e, em
contrapartida, através um efeito de extensão ilusória ou enga-
nadora do futuro. E como fundamento de uma ação cultural de
teor político, Boaventura propõe uma operação oposta: a ação
teórico-prática destinada a expandir o presente e a contrair o
futuro.
A razão indolente tem então esta dupla
característica: como razão metonímica,
contrai, diminui o presente; como razão
propelética, expande infinitamente o
futuro. E o que eu vou lhes propor é uma
estratégia oposta: expandir o presente e
contrair o futuro. Ampliar o presente para
incluir nele muito mais experiências e con-
trair o futuro para prepará-lo7.

Vindo de uma tradição científica diversa da de Boaventura


de Souza Santos, também Terry Eagleton escreve algo que criti-
camente corresponde ao que pensa Boaventura. E eu com eles
dois.
Ao absorver a cultura nesses outros senti-
dos, a cultura como crítica tenta evitar o
modo puramente subjuntivo de “má” uto-
pia, o qual consiste simplesmente em uma
espécie de anseio melancólico, um “como
seria bom se” sem base alguma no real. O
equivalente político disso é uma doença
infantil conhecida como radicalismo de
esquerda, que nega o presente em nome de
algum futuro alternativo inconcebível. A

7 Está na página 26 do mesmo livro: Renovar a teoria crítica e reinventar


a emancipação social.

232
“boa” utopia, ao contrário, descobre uma
ponte entre o presente e o futuro naquelas
forças no presente que são potencialmente
capazes de transformá-lo. Um futuro
desejável deve ser também um futuro exe-
quível8.

Leio isto como a proposta de pensar o próprio futuro como


algo que somente tem sentido quando realizável, passo-a-passo,
no curso cotidiano do presente. Alguns budistas lembram que a
eternidade é o exato momento de um “agora”. Algo semelhante
poderia ser pensado em outros termos. A construção utópica do
futuro somente se realiza através da criação, a cada dia, de um
presente crescentemente humanizado.
Em nome deste suposto, defendo que qualquer ação eman-
cipadora em direção a “um outro mundo futuro” somente tem
um sentido político e realisticamente utópico, na medida em
que se realiza no-e-como “o presente”... ainda que imperfei-
tamente. Pois de maneira afortunada, tudo o que é humano é
sempre será imprevisível, inacabável, imperfeito e instável.
Este será também o sentido em que poderemos imaginar
nos dias de agora – bem mais e com bastante maior liberdade
do que em décadas passadas - a nossa própria compreensão
de: “primitivo”, de “tradicional”, de “ancestral”, de “patrimo-
nial” e, por extensão, de “popular”, como algo que salta de
um desqualificado “valor menos”. Como algo “fora do curso
da história”, “parado no tempo”, “residual”, para o seu exato
oposto.
Pois entre o primitivo e o popular existe, do passado ao
presente, algo que resiste a se deixar colonizar, no todo o par-
cialmente. Seria hoje uma ousadia irreal e desmedida pensar
que “tradicional” como valor-menos é o capitalismo, como
um modo de produção de tudo e de gestão do todo em algum

8 Terry Eagleton, A ideia de cultura, Editora da UNESP, São Paulo, 2005,


página 37.

233
tempo até inovador, mas agora gasto e ultrapassado? Isto na
mesma medida em que modos de vida de povos, culturas e
comunidades tradicionais devem ser apreendidos, aprendidos
e compreendidos, em sua preservada e ativa ancestralidade,
como os celeiros de um mundo-de-futuro em nome do que nós
próprios nos perseveramos como espécie, e ao nosso Mundo
da Vida? Ao final deste escrito trago, como um “terceiro depoi-
mento”, uma proclamação que escrevi na noite do dia 31 de
agosto, quando o preste golpe político foi sorrateiramente con-
sumado no Brasil. Ele fala sobre essa inversão do sentido de
“tradicional”.
Como uma categoria cara ao sistema-mundo hegemônico,
a ideia de “avançado”, de “para além do presente em direção a
um sempre futuro”, deixa historicamente de lado, nas margens
do tempo e do território social “que conta”, as muitas micro-
faces do presente. E nelas e através delas, torna opacas ou
mesmo invisíveis as sutis entrelinhas da experiência patrimonial
e cotidiana do fluxo de nada menos do que a própria vida. E,
assim, desconsidera ou desqualifica justamente o “de baixo”, o
“local”, o “popular”, o “primitivo”, o “tradicional”. Em outras
palavras e imagens, aquilo em que Atahualpa Yupanqui e Jorge
Cafrune encontraram ritmos, palavras e sentido em tudo o que
cantaram ao longo da vida.
E por um tal estratagema, a hegemonia colonizadora
desconsidera o que torna “não-visível para os “grandes inves-
timentos, ou as “grandes teorias”, tornando opacas, invisíveis
e desqualificadas como “resquício” ou, no melhor dos casos,
exoticamente pitorescas, as culturas populares e a sua desafia-
dora pluralidade em pleno século XXI, em nome do que Terry
Eagleton – e não apenas ele - chamará de “alta cultura”, ou de
“Cultura” (com “C”), ao lado de uma colonizadora “cultura de
massas”.
Modos hegemônicos de representar o presente através da
ilusão de um sempre-futuro, no mesmo processo que desqualifi-
cam tudo aquilo que não se submeta à lógica de um imaginário

234
que pretende abolir ao mesmo tempo a pessoa, as culturas, a
história e o tempo-presente. Logo, a própria vida.
Lembro aqui que em uma direção oposta, Tin Ingold, um
antropólogo que desloca da cultura para a vida o chão da antro-
pologia e o pensar sobre a nossa própria condição, acentua que
é o construir cada momento de vida, em um sempre presente
momento da vida, aquilo o que nos faz sermos quem somos.
E ele irá afirmar isto aproximando dois pensadores raramente
vistos juntos.
Tanto para Marx quanto para Ortega, por-
tanto, o que nós somos ou o que podemos
ser não vem pronto. Temos, perpetua e
infinitamente, que estar nos fazendo a nós
mesmos. Isso é, o que a vida é, o que a his-
tória é, e o que significa produzir9.

Já na virada entre os anos 60 e 70/80 houve uma passagem


relevante que me parece hoje algo esquecida. Na sempre difícil
gramática com que conjugamos relações entre “nós” (as pes-
soas que ouvem Atahualpa Yupanqui, mas não vivem em suas
vidas as amarguras que ele canta) e “eles” (as pessoas que não
ouvem Atahualpa Yupanqui, mas vivem ou viveram as amargu-
ras que ele canta... e também as belezas), começamos a realizar
uma mudança de rumos e protagonismos nem sempre clara nos
“tempos pioneiros” da educação popular.
Começamos a esboçar a aprofundar a ideia - e também o
fundamento de nossas ações “junto ao povo e aos movimen-
tos populares” - segundo a qual eram “eles” e os coletivos de
suas ações emancipadores, os seus próprios educadores. Era
originalmente deles, entre eles e através deles que uma essencial
educação popular era gerada, vivida e partilhada. Era através
de uma pluri-prática popular e da reflexão crítica dela, sobre ela

9 Na página 31 de Estar Vivo – ensaios sobre movimento, conhecimento e


descrição, publicado em 2015 pela Editora VOZES, de Petrópolis.

235
e através dela que “o povo aprendia com ele mesmo”. Algumas
de nós cunharam a expressão: “a educação que o povo cria”10.
E “nós”? Bem... “nós” passamos a ser “os outros”.
Difícil escolha, sobretudo para educadores do Partido
Comunista Brasileiro – PCB. Pois para educadores comu-
nistas aderentes à educação popular a questão crítica estava
em que eles se reconheciam como teóricos e praticantes de
uma ciência já criada: o materialismo histórico/materialismo
dialético Um patamar do pensar crítico que mesmo quando
vivido através de algum diálogo - principalmente entre quem
lia Antônio Gramsci e Paulo Freire, também leitor costu-
meiro de Gramsci - era considerado como a leitura científica
da realidade social, e de uma história cujos fundamentos, já
elaborados, poderiam ser em algo revistos, mas jamais em
essência alterados.
Algo difícil também em sua dimensão pedagógico-polí-
tica, já que sobretudo entre educadores populares comunistas,
costumava ser aceito que, histórica e socialmente, havia de
antemão um educador-de-educadores, assim como um educa-
dor-do-povo: “o partido”.
Algo mais fácil entre nós militantes e educadores socia-
listas-humanistas-cristãos, originalmente sem ideologia escrita,
sem ciência única, sem pedagogia pronta e sem um partido de
adesão. Entre nós a categoria “povo” passou sem grandes difi-
culdades teóricas e algumas dificuldades na prática, de “aqueles
a quem dialogicamente educamos” para “aqueles que se edu-
cam e a nós”. Claro com a nossa “assessoria como educadores
populares.
Esse inacabamento teórico-pedagógico-prático constituiu-
se em seus primórdios sobre premissas de que Paulo Freire e nós

10 Alguns escritos de Beatriz Bebiano Costa foram essenciais “naqueles tem-


pos”. Eu mesmo escrevi alguns artigos a este respeito. Não são melhores
do que os de Beatriz e apenas os recomendo para arqueólogas/os da edu-
cação popular.

236
partilhávamos como fundamentos fundadores da educação:
a ideia de que em seus saberes e sistemas de sentido, pessoas,
grupos humanos, comunidades sociais são em si-mesmos e
diante de outras e outros, diversos, diferentes, mas de forma
alguma desiguais. Entre o construtor pouco-escolarizado dos
notáveis barcos que navegam os rios da Amazônia, e o jovem
que o observa e pesquisa para escrever a tese: “práticas, saberes
e imaginários de construtores rústicos de barcos dos rios da
Amazônia”, com que se tornará um “doutor”, existem diferen-
ças de saber (e de salário), mas não desigualdades... pelo menos
entre saberes e sentidos.
Assim, já entre os anos 70 e 80 criamos – agora como
uma experiência não mais restrita ao Brasil, mas fecundamente
estendida praticamente a toda a América Latina – o que veio
a se consolidar como uma reinventada educação popular. E,
ao lado dela e como um de seus instrumentos de pedagogia e
criação de saberes, a investigação-ação participante. Relembro
os tempos do ressurgimento dos movimentos populares “no
campo e na cidade”, das comunidades eclesiais de base, da teo-
logia da libertação, e de outras práticas do pensar e práticas do
agir. Algumas delas repensadas de forma apropriada e fecunda
por pessoas com quem dialogo neste escrito.
Uma diferença importante “entre tempos” deve ser lem-
brada aqui. O encontro de diálogos eles-e-nós foi ao longo dos
“primeiros tempos” algo vivido e pensado em e entre contextos
de militância de um lado e outro. E foi algo passado entre-
nós dentro de marcos de relações-de-movimento. De um lado e
outro era “um povo”, ainda identificado como representantes
de segmentos populares mobilizados, e nós, educadores-edu-
candos no correr de suas ações coletivas, o que nos movia... e
a eles.
Foi ainda um tempo algo anterior a boa parte justamente
daquilo que começou a acontecer de então para agora. E a res-
peito do que trago fragmentos de depoimentos daqui em diante.

237
Entre o que houve e o que há, afinal o que mudou?

Quando, tanto entre as justificadas nostalgias de pessoas


como eu e aquelas e aqueles que leem algo das memórias e dos
escritos arcaicos de que falo aqui como uma quase “arqueologia
da educação popular na América Latina”, nós nos debruçamos
sobre o que permanece e o que mudou, uma primeira evidência
terá – ou “teria”, segundo alguns – sido a passagem de imaginá-
rios, propostas e projetos de mega-transformações sociais, para
metas situadas em planos mais delimitados.
Teremos ao longo do tempo transitado de mega-metas
unificadoras, radicais e pensadas para serem efetivamente rea-
lizadas em tempos de presente-viável. Transitamos de esferas
que iam do nacional ou continental e deles ao universal, em
direção a médias-metas e mesmo a micro-metas flexíveis, bem
mais locais, e entretecidas entre redes e regidas por “diferenças
convergentes. Teremos passado de algo como: “proletários do
mundo inteiro, uni-vos”, para algo como: “estudantes-militan-
tes e camponeses de Santiago del Estero, vamos nos unir para
construir uma “universidade camponesa aqui”.
Nunca inteiramente aceito e compreendido, O esgota-
mento de projetos-de-futuro de décadas passadas, em direção a
um modelo histórico-utópico de uma sociedade socialista social
e popularmente construída sobre as ruínas da sociedade capita-
lista, nunca deixou inteiramente de ser um horizonte. E, ao ver
e ao agir de algumas pessoas, um projeto de futuro histórico
único e irrevogável. No entanto, a partir dos próprios autores
-atores populares junto a quem participamos de ações sociais
de valor politico, dimensões mais realizáveis de transformação
sociais deveriam se tornar as metas viáveis, progressivamente
construíeis e presentemente partilháveis.
Tal como bradamos pelas ruas, durante nossos Fóruns
Sociais Mundiais”, ainda é um pluri-altermundismo o nosso
horizonte. “Um outro mundo é possível”! Apenas o seu tempo
de realização tornaram-se momentos sequentes de um presente

238
estendido e, não mais, um imprevisível e talvez inalcançável
sempre-futuro.
Cinquenta anos atrás eu participava de experiências de
ação popular em que toda e qualquer meta-mínima deveria
servir a uma média-meta. E esta média-meta e a soma delas
deveriam ser dirigidas à realização de uma ampla-meta. Agí-
amos então mais em nome de uma “política-de-movimento”,
do tipo: “saibamos transformar tudo e construir juntos a socie-
dade socialista! ”, bem mais do que do que em nome de uma
política-de-campanha” do tipo: “lutemos por uma educação
pública melhor em todos os sentidos possíveis”. E se agíamos
em favor desta segunda-meta, haveria de ser como um caminho
para atingir, através de uma “frente ampla” de ações sucessi-
vas, metas políticas bastante mais amplas, radicais e fracamente
utópicas11.
Veremos, no desdobrar das linhas a seguir, que um real ou
aparente reinvenção de metas de transformação social, asso-
ciada a uma assumida vocação contra-hegemônica e insurgente,
não abre mão do transformar o real social; de um abolir o
poder de gestão do sistema capitalista e do esgotar a sociedade

11 Estou aceitando secundariamente trabalhar aqui com a relação entre


relativos opostos: políticas de movimentos X políticas de campanha, a
partir de idéias vindas de Zygmunt Bauman. No livro Isto não é um
diário, e no dia 6 de janeiro de 2011 (pois o livro é dividido em dias-
temas e, não, em capítulos) e sob o título, Sobre a justiça e como saber
se ela funciona, Bauman recorre a Richard Rorthy para lembrar com ele
uma oposição que poderia aportar novos nomes para o que estou dese-
jando chamar aqui de: “metas-amplas” (a transformação estrutural de
uma sociedade), metas-médias (a construção de um sistema de educação
pública inclusivo, crítico e de qualidade), e metas-mínimas (a alfabetiza-
ção de uma turma de adultos analfabetos). Na esteira de Rorthy, Bauman
coloca de um lado o que seria uma “política de campanha” e, do outro,
uma “política de movimento”. E tanto Rorthy quanto Bauman parecem
optar pela primeira, diante da ineficácia comprovada, o ver deles, de um
aguardar algo efetivo “para agora e de modo duradouro” a partir de
uma política subjacente e posta à espera da construção de uma sociedade
futura em que enfim ela possa se realizar em plenitude.

239
de classes. Enfim, de um recriar cenários locais, comunitários,
regionais, nacionais, e mesmo planetários, de um multiforme
mundo isento de desigualdades (o primado da igualdade),
diversificado entre diferenças (o primado da inclusão), reali-
zado através da cooperação, da partilha e da responsabilidade
pelo outro (o primado da solidariedade), e aberto à autonomia
individual e coletiva, assim como ao diálogo entre convergen-
tes, diferentes e divergentes (o primado da liberdade).
Em um momento de sua presentación do livro El surgi-
mento de la antropologia posmoderna, o antropólogo argentino
Carlos Reynoso dialoga com Rorthy e com Lyotard, sem acolher
por inteiro as idéias, sobretudo do primeiro. Mas de ambos, e
com mais ênfase em Lyotard, ele recolhe como um fundamento
de uma nunca definida e sempre imprecisa pós-modernidade, a
premissa de que ela se volta contra toda e qualquer recriação
de meta-relatos. Simplificando al máximo, se llama entonces
posmoderna a la incredulidad respecto a tales metarelatos12. Do
Apocalipse de João Batista ao Manifesto do Partido Comunista
de Marx e Engels, nada mais sobra para ser acreditado. E, mais
ainda, todas aquelas meta-narrativas que desde um presente
anunciam um futuro utópico.
Na sequência do mesmo parágrafo, Carlos Reynoso acom-
panha Lyotard em seu desencanto com “o projeto da razão”. E,
no que nos interessa aqui, o parágrafo desagua em um duplo
desencanto. Primeiro: o da história como ciência, pois, tal como
a antropologia, ela não será mais do que uma sucessão de “nar-
rativas de narrativas”. Segundo: o do povo como sujeito e, no
limite, herói da história.
En lo político, la posmodernidad es tam-
bién el fin del “pueblo” como rey y héroe
de las historias. Si no se puede creer ya en
los relatos – dice Lyotard – menos se puede
creer en sus protagonistas. El pueblo (y ya

12 Na página 24.

240
no solamente el proletariado) ha desapa-
recido del imaginario posmoderno como
protagonista de la historia, la cual también
se ha esfumado como proceso más o menos
lineal, tendente a algún fin; no se sabe aún
quien será el protagonista que lo suceda y
el contexto temporal en que se situarán los
acontecimientos, si es que se siente alguna
vez la necesidad de postular alguno13.

Ora, páginas adiante teremos que convocar outra vez


Boaventura de Souza Santos, e outros e outras entre nós, para
buscar tornar efetivo um duplo resgate. O de “povo” e o de
“história”. Um “povo” pluralizado, ampliado e aberto, para
preservar ao mesmo tempo a sua existência e o seu protago-
nismo. Claro, não tanto em uma pós-modernidade desiludida
do Norte, mas no interior de uma sofrida presença ativa na vida
social e na persistência da história, aqui no Sul.
E plural, no sentido de que um povo, de que o modelo
ideal seria o “proletariado” urbano do “Manifesto”, desdobra-
se nos “povos do povo”. E “eles” vão dos povos da floresta até
“nós”, na cidade e em locais coletivos como este, aqui e agora.
Porque em uma outra direção, talvez não tão empiricamente
sociográfica, mas por certo assumidamente social, povo deverá
incorporar hoje não apenas quem como classe se assume como
tal, mas quem como tal resiste e luta, entre as famílias negras
do quilombo de Buriti do Meio, no Norte de Minas Gerais, aos
camponeses acampados sobre barracas de lona preta ao longe
de uma estrada no Rio Grande do Sul, e aos operários que na
noite de Neuquén saem do trabalho para uma das escola do
“Bachilerato Popular”.
Povo, também no conceito de uma cidadania ativamente
ampliada, que desde Rousseau estende-se à pluralidade daque-
las e daqueles que, como nós, não somos nem a antiguidade

13 Na página 24, ainda.

241
da nobreza aristocrática e nem, hoje, a atualidade do empresa-
riado capitalista e dos políticos que o servem.
E, mais, ao nos assumirmos como aquelas e aqueles que
se somam a imaginários, práticas de vida e ações de resistên-
cia-insurgência de pessoas e povos indígenas, quilombolas,
camponesas e operárias, reclamamos habitar tanto o “desde
abajo” onde imaginária e politicamente nos inserimos, quanto
uma história. Uma história em que não somente queremos nos
ver “fluindo”, mas que acreditamos que partilhamos do que
busca fazê-la vir a ser o que deveria ser. Isto é, algo mais do
que uma vaga e amorfa “trajetória da humanidade”, em dire-
ção aos acontecimentos de que participamos, e através do qual
essa história é também uma difícil, mas realizável trajetória de
humanização.
Em Ecos del subsuelo: resistencia y politica desde el sótano,
o uruguaio Raúl Zibechi logra escrever o relato que eu gostaria
de haver escrito, quando busca compreender justamente o que
mudou “de lá pra cá” e o que está acontecendo “agora”, entre
cenários em boa medida deslocados da cidade – mas nunca
inteiramente - para o campo e da fábrica – mas nem sempre -
para pluri-territórios de vida, luta e sentido.
Los desafíos iniciales partieron desde las áreas rurales y
pequeñas ciudades, hacia comienzos de los noventa, en las que
no había sido desarticulado el tejido social que hacia posible la
resistencia. Sin embargo en los últimos años se han producido
levantamientos urbanos que nos indican que las luchas más
importantes parten ahora de sujetos más heterogéneos que la
anterior clase obrera, luego de haber atravesad un proceso de
reconfiguración interna14.
O que foi “o povo” com um claro sentido de classe, e de
classe unificada como o proletariado - de que o “jovem Lula”
em sua luta sindical que derivou mais tarde no Partido dos Tra-

14 Na página 72 de seu artigo, no mesmo livro: De los saberes de la eman-


cipación y de la dominación

242
balhadores talvez tenha sido a figura pública mais notável, pelo
menos no caso do Brasil - desdobra-se agora em uma polifonia
de “povos do povo”. E o plural aqui é essencial, porque ele
não é apenas o sinal da expansão de um singular irremovível,
mas vale como a categoria que, ao tornar-se não apenas plural,
mas diferenciadamente multiforme, transforma por inteiro uma
velha compreensão de que, afinal é o “povo”.
O povo são povos. E povos, primeiro no sentido de sujeitos
individuais e coletivos, autores e atores de culturas/identidades/
histórias/lutas diferenciadas no interior de uma mesma nação,
como a Colômbia, por exemplo. E povos em um sentido antes
opaco e invisível, e por muito tempo presente mais em nossas
teorias e mapas mentais acadêmicos do que na realidade dos
imaginários de identidade, das redes e teias de interações e das
pluri-frentes de resistência e luta. Aí está o sentido de “Pátria
Grande” como um apelo popular de agregação de “Povos das
Américas e do Caribe”. E também do que veio a ser a “Via
Campesina”, não apenas latino-americana, mas internacional.
E também as conectividades que unem e irmanam “povos da
floresta”, que na Amazônia saltam fronteiras, primeiro em um
país, como o Brasil e, depois, entre nações e entre povos dos
“países amazônicos”. E, com ainda mais força, as redes e teias
de povos indígenas-andinos.
Desdobro agora algumas ideias de Raul Zibechi, e ouso
acrescentar outras, minhas. Ora, ao enunciar as características
de uma presença ativa e contra-hegemônica dos “sin trabajo,
sin techo, sin tierra” (aos quais eu agrego: “sin território”) Raúl
lembra - junto com o geógrafo brasileiro Porto-Gonçalves –
que:
Desde este punto de vista, podemos decir
que la estrategia a largo plazo de los que
viven en el sótano está siendo la de cons-
truir un mundo diferente desde el lugar que
ocupan. En ese sentido, rechazan – ahora
también de forma explícita y consciente

243
– incorporarse o integrarse en el papel de
subordinados o excluidos que les tiene
reservado el sistema15.

Podemos ir além. E podemos pensar que mesmo quando


inseridos em sociedades onde a conquista de igualdade-inclusão,
de autonomia-liberdade e auto-representatividade-e-participa-
ção solidária na construção de vidas, destinos e sociedades é
lenta e sempre parcial, uma das premissas essenciais de frentes
de resistência e de luta insurgente, está na ampliação, passo a
passo, de fragmentos de autonomia e protagonismo no correr
da vida cotidiana, assim como no acontecer da construção de
sua realidade, como aquilo a que insistimos em chamar de his-
tória.
Ao reunir às de Raúl Zibechi com as outras e outros pen-
sadores latino-americanos para dialogar com minhas vivências,
ideias e imaginários sobre o que está acontecendo agora e o que
mudou “de lá pra cá”, entendo que os processos de resistência
e luta em nome dos quais nos reunimos aqui:
1º. Brotam de e se ramificam desde e entre os mais diver-
sos territórios geográficos, sociais e simbólicos de
origem;
2º. Recusam um protagonismo único, mesmo quando
acolhem um horizonte unificado e, assim, estabele-
cem uma nova politização das diferenças culturais, de
modo que o que era cultura popular e, em alguns paí-
ses do Continente tendia a ser, oficialmente, política
cultural, torna-se agora algo assumido como cultura
política;
3º. Realizam uma politização de/entre culturas. O que
antes era criado para ser pensado-e-vivido, torna-se

15 Na página 74. O texto de Porto-Gonçalves em que se apoia aqui Raul é


Geo-grafias. Movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentabi-
lidad, de 2001, publicado por Siglo XXI, no México.

244
agora algo destinado a também transformar esque-
mas, estruturas e sistemas do pensar-e-viver. E essas
culturas plurais nutrem-se da ideia da inviabilidade
de uma qualquer “cultura única”, ou mesmo uma
“cultura socialmente “unificada” (uma “cultura
nacional” gramsciniana dos anos 60, “a cultura do
proletariado”, uma “cultura popular revolucionária”,
e assim por diante), associada à partilha da crença
em uma interlocução entre culturas diferenciadas,
justamente por causa de suas diferenças dialogáveis
e inter-infuentes, mas sempre irredutíveis a outras,
sobretudo em uma sociedade igualitária;
4º. Recusam os “modelos de transformação social” teó-
rica e programaticamente prontos e constituídos a
priori fora de seus mundos sociais, e “desde fora” des-
tinados a serem “aplicados dentro de seus mundos de
vida, e através da ação derivada de seus sujeitos”, em
direção a pluri-projetos abertos, dialógicos, flexíveis,
a serem construídos nos próprios múltiplos e diferen-
ciados processo de lutas populares emancipatórias.
5º. Lutam não mais apenas por “tr abajo, terra y trecho”,
mas agora também por “territórios”. Por territórios
que vão desde os enfretamentos de “povos andi-
nos’, “povos da floresta”, “povos de quilombos” em
nome da demarcação justa de seus territórios ances-
trais, assim como em nome de novos sentidos dados
às próprias ações populares de re-territorialização.
Territórios sociais, culturais, étnicos e simbólicos de
vidas e de atribuição identitárias a modos de vida e
aos seus sujeitos da vida.
6º. Ao lado de enfrentamentos em nome de uma trans-
formação das estruturas dominadores de economia e
poder, enfrentam o estado servil ao capital também
em nome da alternativa de criação, em uma mesma

245
nação soberana, de pluri-nações de vocação étnico-
cultural.
7º. Desqualificam as opções únicas, concentradas na
hegemonia de partidos, poderes e projetos excludentes
de condução de trajetórias emancipatórias uniformes,
em direção a uma “confederação solidária” de pluri
-poderes, de multi-projetos e de diferentes unidades
sócio-culturais gestoras de poderes”, mas nunca “do
poder”. De qualquer poder único. De qualquer poder
único e centralizador.
8º. Optam, como um horizonte de saída emancipatória
do sistema capitalista, por diversas, viáveis, diferentes
e convergentes alternativas de gestão de uma solidária
vida social pós-capitalista.
9º. A partir de sistemas próprios de endoeducação, ten-
dem a diferenciar e diversificar a “educação popular”,
deslocada de realizar-se como e através de propostas
e modelos únicos - para fazer frente à educação uni-
ficada, hegemônica e colonizadora - em direção a
diferentes modalidades e articulações críticas, criati-
vas e dialógicas de criação de diferenciados sistemas
de criação e partilha de saberes.
10º. Trazem para cenários de insurgências não apenas
suas vocações de resistência e de luta contra-hege-
mômica, mas também as mais diversas práticas de
produção e partilha da vida. Algo que deveria se cons-
tituir como fundamentos de alternativas tais como:
economia solidária, economia do dom, agroecologia,
agro silvicultura, ecologia, gestão de comunidades e
de territórios, éticas, estéticas e eróticas de vida, alter-
mundismo, etc.
11º. Neste sentido, de diferentes modos facultam com que
a “cultura” e “as culturas” deixem de ser apenas o
que em superfície se dá a ver como “as manifestações”
mais visíveis e, não raro, peculiarmente pitorescas,

246
e reclamem as suas reais densidades. Elas aspiram
traduzir-se em e como modos de vida, como constru-
ções profundas e interativas de sistemas próprios de
símbolos, de sentidos, de saberes, de significados, de
sentimentos e de sensibilidades, como a capacidade
humana de criar mundos de partilha da vida;
12º. Enfim, pessoas, comunidades, movimentos e culturas
patrimoniais-populares representam-se e se apresen-
tam como algo mais do que apenas a sua visível face
insurgente e a sua vocação mobilizada. Eis que desde
o que até há pouco nos aparecia como o mais residual,
o mais arcaico, o mais tradicional e, portanto, como
algo bom para pesquisas e teses acadêmicas, como “a
cultura dos outros”, mas questionável como “base-
de-ação”, agora nos surge como algo mais do que
sistemas peculiares e complexos de modos de vida.

Se estivermos atentos, lúcidos, críticos e sensíveis o bas-


tante para aprendermos a apreender a fundo o que “eles” nos
têm a dizer, a mostrar e a ensinar, poderemos vir a compreen-
der que muito provavelmente algumas das “lições ocultas” dos
povos e das comunidades patrimoniais (indígenas da floresta,
do cerrado, dos Andes, tradicionais, quilombolas, campone-
sas, etc.16) haverão de ser também indicadores de modos de ser,

16 E pelo menos no caso brasileiro, que conheço mais a fundo, este “etc.” é
fecundamente plural. Para se ter uma ideia, apenas na região do rio São
Francisco e dos sertões do Norte do Estado de Minas Gerais, o que em
geral denominamos de “comunidades tradicionais” abrange, de acordo
com auto atribuição de identidades as seguintes denominações: comuni-
dades sertanejas, comunidades beradeiras, barranqueiras, comunidades
varredeiras, comunidades ilheiras (raras), comunidades geraizeiras (ou
geralistas), comunidades chapadeiras, comunidades quilombolas e, no
limite, comunidades indígenas (ou comunidade xacriabá, comunidade
Krenak, etc.). Um dos depoimentos incluídos ao final deste escrito é de
uma de tais comunidades tradicionais.

247
viver e agir que, justamente em nome de sua preservada ances-
tralidade, serão “modelos de futuro” também para nós.
É neste sentido que tenho ousado defender que diante das
cada vez mais próximas ameaças das impropriedades e barbá-
ries do sistema-mundo capitalista – a começar pelas anunciadas
ameaças ao equilíbrio do já fragilizado planeta que habitamos
– talvez não seja mais das ciências-de-ponta dos “brancos do
Ocidente”, mas das faces e falas dos bronzeados povos patri-
moniais do Sul e do Oriente – entre os Andes e o Butão – que
deveremos mapear e aplicar imaginários, práticas e modos de
vida.
É também neste se tido que tenho insistido em pensar o
agronegócio como uma sobrevivência nefasta do passado, na
mesma medida em que procuro compreender a agroecologia,
a agro silvicultura, a economia do dom e suas derivadas, como
reinvenções tradicionais de vocação futura.
“Felicidade Interna Bruta”, a FIB do distante Butão
(budista) em lugar do PIB; modos de vida baseados não mais
no “bem viver” do capital (explorar o outro, esgotar a vida e
aproveitar a minha-vida, segundo o pragmatismo individualista
do sistema dominante), mas no interior das provocações dos
povos andinos, como: Sumak Kawsay, Suma Qamana, Balu
Wala. Como reinvenção de um coletivo e partilhado “viver
bem” uma vida em equilíbrio com a Vida e os Outro. Eis aqui
apenas algumas das tantas “inovações tradicionais” que, acre-
dito, tenderão a interagir na construção “desde abajo” do que
temos buscado tão geográfica e culturalmente longe de nós. E
que provavelmente esteve sempre, e quase às ocultas, tão perto
de nós, tão ao nosso lado, tão diante de nós17.

17 Como uma entre outras muitas leituras sobre esta questão sugiro a lei-
tura de Buen vivir, vivir bien – una utopia en proceso de construcción,
um pequeno e precioso livro escrito por Alfonso Ibáñez e Noel Aguirre
Ledezma e publicado na Coleção Primeros Passos, da Editora Desde
Abajo, de Bogotá, em 2013.

248
Pensar com o Outro, compartir saberes e aprender com Ele

Para cultores-amadores da música clássica que, como eu,


nunca conseguiram modernizar-se para além de Gustav Mahler,
existe sempre presente uma trilogia de compositores “sagra-
dos”, todos da Alemanha, e aproximados também pelo fato
de que são lembrados como os “três bês”: Bach, Beethoven,
Brahms (com a diferença de que o segundo pouco conheceu do
primeiro e o terceiro venerava a música do segundo).
Feita esta digressão, talvez pelo fato de que ancestralmente
escrevo sempre ouvindo música instrumental - uma outra tri-
logia de “bês” deve ser convocada aqui: Bachelard, Barthes e
Boaventura. E os trago a este escrito porque entre eles – bem
mais do que entre músicos – encontro inesperadas oposições.
Gaston Bachelard constitui a ciência como uma assumida
oposição ao senso comum. Porque pensamos “como senso
comum”, e como o senso comum se perde entre “opiniões” que,
acreditadas por seus emissores, são sempre não confiáveis e não
constitutivas de um saber construtivo, é preciso criar e apurar
um saber científico que, mais do que à ignorância, opõe-se à
multiplicidade infecunda do senso comum.
Em uma contramão da via de Bachelard, Roland Barthes
ousou apregoar um dia, que se existem formas de pensamento
grosseiramente ilusórias, elas são justamente as da ciência. E se
o ser humano é capaz de criar e alimentar-se de formas “rea-
listas” de saberes, elas estão na arte. Mais definidamente, na
literatura. Trago um fragmento – que leio e releio como um
“credo”, confesso – da “aula magna” que Barthes ministrou no
Colégio de França, quando foi eleito para ser um dos pensado-
res-docentes de lá.
Se, por não sei que excesso de socialismo
ou de barbárie, todas as nossas disciplinas
devessem ser expulsas do ensino, exceto
uma, é a disciplina literária que devia ser
salva, pois todas as ciências estão presentes

249
no monumento literário. É nesse sentido
que se pode dizer que a literatura, quais-
quer que sejam as escolas em nome das
quais ela se declara, é absolutamente, cate-
goricamente realista: ela é a realidade, isto
é, o próprio fulgor do real.
...
A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é
para corrigir essa distância que a literatura
importa. Por outro lado, o saber que ela
mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro;
a literatura não diz que sabe alguma coisa,
mas que sabe de alguma coisa; ou melhor;
que ela sabe algo das coisas – que sabe
muito sobre os homens18.

Ora, se entre Bachelard e Barthes existe uma presumível


oposição insuperável, o pensamento de Boaventura de Souza
Santos poderia introduzir não um ponto de interação entre os
dois franceses, mas pelo menos uma terceira via do olhar19. E

18 Roland Barthes, Aula, 2013 (16ª edição) Editora Cultrix, de São Paulo.
Págs. 18 e 19. O grifo no “de”, na penúltima linha é de Roland Barthes.
19 Em defesa de Gaston Bachelard, de quem me confesso um leitor fiel,
devo lembrar que ele... “são dois”. Aliás, uma de suas frases enigmáticas
é: “estou só, logo somos quatro”. Existe o “Bachelard diurno”, autor de
escritos sobre epistemologia das ciências de um enorme valor. Não são
poucas as pessoas que o consideram o mais fecundo “pensador da lógica
da ciência” na atualidade. Creio que Roland Barthes não o lia, e devo
confessar que eu o evito. No entanto existe um “Bachelard noturno”.
Este velho e querido escritor entre o crepúsculo e a noite, deixava de
lado o “conceito” a quem servia durante o dia, e tornava-se um cultor do
“devaneio”, sua amante noturna. Na esteira de Roland Barthes (a quem
não cita, até onde sei), ele deixa de lado a ciência e descobre a poesia
como um caminho excelente de amorosa e devaneante contemplação de
tudo. No Brasil os livros do “Bachelard noturno” estão em grande maio-
ria publicados pela Editora Martins Fontes de São Paulo. Sugiro ao leitor
que inicie pelo Fenomenologia do devaneio. Sugiro também que comece

250
é ela a que nos interessa aqui. Em seus livros Boaventura rei-
tera a ideia de que entre o saber científico e o senso comum
existe uma tendência a uma relação de contiguidade e de inte-
ração, mais do que de mútuo desconhecimento ou de oposição.
No ponto extremo de seu pensamento, a ciência de um futuro
humanizado – sem desigualdades e entre diferenças – em boa
medida se realizará como e através do senso comum.
Ora, na Introdução a uma ciência pós-moderna ele se volta
contra o cientificismo de Gaston Bachelard, e em um momento
de aproximação a Jean Piaget, trás dele o lamento – ou a espan-
tada revelação de que – tanto a sociologia quando a psicologia
sofrem “o triste privilégio de tratar de matérias de que todos se
julgam competentes”20.
Talvez à diferença do que foi em suas “origens burguesas”
e como uma reação ao racionalismo do século XVIII e da histó-
ria da Europa, em nossos dias e “aqui”...
... Se o senso comum é o menor denomi-
nador comum daquilo em que um grupo
ou um povo coletivamente acredita, ele
tem, por isso, uma vocação solidarista e
transclassista. Numa sociedade de classes,
como é em geral a sociedade conformada
pela ciência moderna, tal vocação não
pode deixar de assumir um viés conser-
vador e preconceituoso, que reconcilia
a consciência com a injustiça, naturaliza
as desigualdades e mistifica o desejo de
transformação. Porém opô-lo, por essas
razões, à ciência como quem opõe as tre-
vas à luz, não faz hoje sentido por muitas
outras razões. Em primeiro lugar, porque,

a ler após o crepúsculo. E que, tal como o próprio Bachelard, abra uma
garrafa de vinho.
20 Introdução a uma ciência pós-moderna, página 31. O trabalho de Piaget
que ele cita é Psicologia e Epistemologia.

251
se é certo que o senso comum é o modo
como os grupos e as classes subordinados
vivem a sua subordinação, não é menos
verdade que, como indicam os estudos
sobre subculturas, essa vivência, longe de
ser meramente acomodatícia, contém senti-
dos de resistência que, dadas as condições,
podem desenvolver-se e transformar-se
em armas de luta. Dando um exemplo da
minha própria investigação, é dessa forma
que interpreto o senso comum jurídico dos
habitantes das favelas do Rio de Janeiro
(1974; 1977; 1980)21.

Na sequência Boaventura de Souza Santos prossegue com


mais outros três motivos em nome dos quais ele nega a oposi-
ção ciência versus senso comum. Fiquemos no primeiro. Quero
ressaltar da contribuição de Boaventura, uma lembrança que
a bem da memória dos “velhos tempos” já era algo bastante
trabalhado desde a aurora da educação popular, para ficarmos
aqui com o que nos é mais próximo. E qual é ela? É a ideia de
que sensos comuns (imaginários, sistemas de crenças, saberes,
ideologias, etc.) populares e, no que me toca mais de perto:
camponeses e quilombolas, característicos do que costumamos
denominar “povos” ou “comunidades tradicionais”, depois de
haverem sido por séculos, sistemas simbólicos de uma sutil e
persistente resistência a um domínio invasor e colonizador, em
pouco tempo podem se tornar uma aguerrida vocação de luta
contra-hegemômica e insurgente.
E esta passagem de uma comunidade tradicional tradicio-
nalizada a uma comunidade tradicional crítica, mobilizada e
francamente contestadora, começa a realizar-se quando, dadas
as mudanças impostas pelo avanço do capital sobre territórios
geográficos, sociais e simbólicos da “gente do povo”, brota, em
contrapartida uma ativa aliança culturalmente política e peda-

21 Boaventura, op. cit. páginas 37 e 38.

252
gogicamente dialógica entre “nós-e-eles”. Bem sabemos que em
boa medida o que “eles” agora dizem e escreve, foi algo dia-
logado conosco e aprendido entre-nós. Não saberíamos sobre
eles sem haver aprendido com eles. E eles não saberiam saber
muito do que sabem agora se não tivessem dialogado e apren-
dido conosco. A isto chamo: educação popular.
Eis o que nos parece ser um desafio senão novo, pelo menos
reescrito para os dias de agora. E é juntamente um homem que,
vindo da tradição científica da Europa, e que se confessa um
aprendiz do que viveu e partilhou entre favelados do Rio de
Janeiro, quem – entre outras e outros – nos desafia ao passo
seguinte depois daqueles que começamos a ensaiar nos anos 60
e 70. Naquele então, indo até “junto ao povo”, enquanto ima-
ginávamos dialogar com ele, o mais que logramos realizar foi
falar “entre-nós” através “deles”. No entanto, aqueles foram os
primeiros passos do que veio a acontecer e acontece vertigino-
samente agora, aqui.
Em um primeiro momento, como lembrei em mais de um
escrito meu sobre a educação popular, nós, latino-americanas/
os nos descobrimos a nós mesmos. Aprendemos a nos ouvir e
ler. E se buscávamos ainda entre os pensadores do “Norte do
Mundo” alguma substância para os nossos saberes, sentidos
e ações, elas somente nos diziam algo quando em diálogo “de
igual para igual com os do Sul”. A começar pelo protagonismo
de Paulo Freire, Orlando Fals Borda e de Eduardo Galeano,
entre outras e outros tantos.
Bem mais do que em décadas atrás, agora chega o momento
em que aquelas bocas caladas se abrem entre os seus. E bradam
contra os maus, e nos falam, os que as desejamos ouvir. Seus
homens e suas mulheres escancaram falas, saltam fronteiras,
saem pelas ruas em passeatas, ocupam espaços entre escolas
e universidades, estudam-se a si-mesmos, dividem conosco as
principais mesas redondas e ouros momentos de debates em
eventos nacionais e internacionais. E começam a aprender

253
“desde abajo” a ousar desafiadoras perguntas e pesquisas sobre
quem afinal... “nós somos”.
Ora, Boaventura de Souza Santos nos trás de outros cam-
pos para os nossos a palavra “ecologia”, e ele nos propõe uma
sequência delas: ecologia dos saberes, como diálogo entre o
saber científico e o “saber popular e laico”, ao lado de uma
ecologia das temporalidades, que nos desafia a rever tempos e
cronologias que fundamentam narrativas de histórias (no plu-
ral), ao lado também de uma ecologia do reconhecimento, que
de uma vez rompa com as hierarquias - sem as quais não vivem
nem a ciência hegemônica e nem a sua morada, a academia - e,
como campo de práticas de vida, uma ecologia das produtivi-
dades, oposta a uma monocultura das produções “centrada na
valorização dos sistemas alternativos de produção da economia
solidária, popular e autogestionária”.
Centrada, lembro, não apenas em “novas’ práticas de
gestão humanizada da produção de bens, serviços, sentidos e
saberes, mas na busca do que vem “deles” e através “deles”.
E, como tal, possa ser relido e na reincorporação aos nossos
próprios mundos e momentos de experiências de relações com
a natureza e entre os seres humanos.
Arcaicos e inovadores sistemas de modos patrimoniais de
vida, enfim, que são a marca original da tradição dos “outros
povos” coletivamente e, também “dos outros dos povos”, nas
suas singularidades individuais22.
Envelhecemos demais o de que dispomos para pensar e
agir. Ao colocarmos na “roda dos diálogos” as hoje tão fertil-
mente ricas e diversificadas criações de idéias e de propostas de
insurgência e emancipação, demos um grande passo em direção
à originalidade que brota de nossa própria solidária autonomia.
Ao nos voltarmos como educadores-aprendentes aos diversos
territórios simbólicos de saberes, significados e sentidos das

22 Essas palavras e ideias estão na e ao redor da página 9 de renovar a teoria


crítica e reinventar a emancipação social.

254
pessoas e dos coletivos diversificadamente populares com quem
convivemos nossas esperanças de “um outro mundo”, teremos
dado o passo que nos falta.
Os instrumentos de que dispomos no
plano teórico e epistemológico são os hege-
mônicos, ou seja, nos termos do autor, as
semânticas legítimas da convivência polí-
tica e social: a legalidade, a democracia, os
direitos humanos. Essa contradição impõe
um duplo esforço: como trabalhar esses
instrumentos de forma contra-hegemônica
e tentar perceber, nas culturas e formas
políticas marginalizadas pela modernidade
ocidental, indícios, sementes e embriões do
novo?23

23 O mesmo livro. Página 11.

255
A VOCAÇÃO DO HUMANO NA PEDAGOGIA
DA EDUCAÇÃO POPULAR

P
aulo Freire não costumava empregar essas palavras de
algum modo polares: “iluminismo” e “romantismo”. E
quanto o fazia, por escrito ou oralmente, seria de forma
crítica. Relembro com insistência que sobretudo em Pedagogia
do Oprimido o qualificador com que ele se identifica é: “huma-
nismo”.
Em outra direção eu, um “romântico assumido”, penso
que uma das maiores lacunas entre as pessoas que se imaginam
“realistas”, é que elas acreditam que romântico é... “romântico”.
No que toca o que aqui nos importa - a educação - acredito que
o verdadeiro romântico é um realista que busca nas raízes do
povo e em suas culturas populares os fundamentos de sua ação
sobre a realidade social.
Entre Goethe e Gramsci, o romântico-realista volta-se ao
“seu povo” em busca das “tradições” das “culturas populares”
ontem e hoje escondidas dos, ou desqualificadas pelos “erudi-
tos”. “Tradições culturais vindas da terra”, e hoje tornadas “as
verdadeiras raízes de nossa identidade nacional”; eis a pedago-
gia política do projeto romântico.
E eu escrevo isto em um momento em que ao longo da
América Latina, e de maneira muito intensa e politicamente
polêmica no Brasil, vivenciamos uma era em que pessoas e
coletivos de pessoas, entre indígenas dos Andes ou da Floresta
Amazônica, negros quilombolas, camponeses e os mais diversos
outros “povos do povo”, surgem e emergem em um cenário
não apenas etnicamente cultural, mas culturalmente político.
E entre novos habitantes de nossas universidades, ou ainda em
suas aldeias de origem, eles nos falam como autores, atores e
senhores de suas falas e de seus imaginários. E, na sequência de
Paulo Freire sessenta anos antes, eles os falam como protago-

257
nistas de seus projetos e como pensadores e praticantes de suas
políticas de presença, partilha e participação social de vocação
descolonizadora, etc.
Quando imaginamos uma educação de e desde raízes
populares, como um projeto emancipador desde também a edu-
cação, de um modo ou de outro estamos tornando atuais para
o nosso tempo o que antes de nós homens como Simon Rodri-
gues, José Marti, e tanto outros pensaram e buscaram colocar
em prática.
Recordo que por vias oficiais e, não raro, através de
detentores militares ou militarizantes do poder, como algo pro-
veniente de importações diretas de um pluri-ideário europeu ou
norte-americano, a educação pública entre nós teve suas bases
fundadas seja sobre um imaginário iluminista em sua versão
mais colonizadora, revestida de uma releitura terceiro-mundista
desde um já distorcido e desqualificado projeto entre iluminista
e romântico na Europa.
O desafio de Simon Rodrigues: “inventamos ou erramos”
raramente foi levado a sério, e apenas “folcloricamente” veio a
se tornar um fundamento pedagógico consequente e durador. E
menos ainda nos dias de agora1.
Em praticamente todo o continente, desde o alvorecer
das colônias até a sedimentação das nossas repúblicas (não
esquecer que o Brasil foi um Império desde 1922 até 1989 – e
um “império” de vocação também imperialista”), primeiro os
nossos colonizadores e, depois, os nossos governantes dedica-
ram-se ao etnocídio de pessoas e de povos originais, ou à sua
redução a servos e marginais.

1 É uma felicidade sabermos que a Editora Autêntica, de Belo Horizonte,


acaba de fazer traduzir e publicar inventamos ou erramos. Penso que o
próprio Paulo Freire teria enriquecido bastante as suas ideias pedagógi-
cas se tivesse em seu tempo tido contato com os escritos deste notável
pioneiro de uma educação “nossa e para nós” na América Latina. Eu
também lamento só ter vindo a conhece-lo através de amigos educadores
da Colômbia.

258
Logo após a (relativa e parcial) “descolonização” da
América Latina, entre artistas, escritores, educadores, alguns
cientistas e raros políticos, algumas releituras “nativistas” sou-
beram redescobrir o indígena e desvelar tardiamente, como
pessoas, como coletividades e como culturas, os negros e os
camponeses mestiços em grande maioria, em alguns países
como o Brasil. Demoramos bastante mais para desvelar a rea-
lidade de que os “povos” estudados e recém-celebrados como
“autênticos criadores de nossas culturas nacionais”, ademais
de fornicar, comer, cantar, orar e bailar, foram protagonistas de
sucessivos enfretamentos e lutas contra o poder opressor dos
senhores brancos, portugueses primeiro e, depois, brasileiros.
Uma realista releitura da História do Brasil de antes e de
depois da independência, revelará que ao longo de praticamente
toda a nossa história os povos indígenas protagonizaram suces-
sivas lutas de resistência. Negros escravos criaram nas florestas
os seus quilombos, e um deles resistiu aos brancos por mais
de 60 anos. E as lutas camponesas no Nordeste e no Sul do
Brasil chegaram a chamar a atenção de Vargas Llosa, que veio
ao Brasil coletar dados e fatos para escrever A Guerra do Fim
do Mundo, romanceando as lutas de Canudos, talvez o mais
demorado e ferrenho conflito entre camponeses e forças arma-
das na América Latina.
Recordemos que Paulo Freira viveu os seus primeiros anos
em meio ao que veio a ser a educação popular, inteiramente
mergulhado no que então chamávamos no Brasil de “a ques-
tão da cultura popular”. E foi quando então considerávamos
tanto uma peça do “Teatro do Oprimido” de Augusto Boal,
quanto o trabalho de alfabetização de camponeses em Angicos,
nos sertões do Rio Grande do Norte, como “ações de cultura
popular”.
Na citação abaixo, quando Giovanni Semeraro fala de
“movimentos de educação e cultura popular no Brasil dos
“anos 60”, a palavra “educação” traduz “alfabetização”. E,
mais adiante, por extensão e segundo uma feliz expressão de

259
Paulo Freire, a lembrança de que “nem todos são professores,
mas todos nós devemos ser educadores”.
Em pouco tempo, o surto de prolifera-
ção dos movimentos de educação e de
cultura popular assumiu as proporções
de um fenômeno vertiginoso. Entre 1960
e 1961 podia-se contar só com algumas
organizações; no 1º Encontro Nacional de
Alfabetização e Cultura Popular, realizado
no Recife em setembro de 1963, foi possí-
vel registrar 77 movimentos presentes, dos
quais 44 realizavam atividades de alfabeti-
zação de adultos”2.

Em alguns escritos sobre a educação popular tratei de


elencar e dialogar com diferentes (e polêmicas) concepções de
Cultura Popular, entre militantes cristãos, marxistas e huma-
nistas laicos, inclusive as de Paulo Freire, ao longo dos anos 60
no Brasil.
Devemos notar que um crescimento de movimentos de
vocação emancipatória através das mais diversas esferas de uma
“ação cultural” ocorreram ao mesmo tempo em que em “meio
popular” uma equivalente recriação de movimentos sobretudo
camponeses estendia-se por quase todo o território brasileiro.
O que foi durante longos anos assunto de pesquisadores de
“nosso folclore”, veio a se tornar um alicerce cultural de ações
pedagógico-emancipadoras, entre os anos sessenta no Brasil, e
também em outras nações do Continente, a “Cultura Popular”.
Marilena Chauí lembra sentidos atribuídos a ela desde a
Europa de origem.
Ora, Cultura Popular também não é um
conceito tranquilo. Basta lembrarmos os

2 A primavera dos anos 60 – a geração de Betinho, página 89.

260
três tratamentos principais que ela recebeu.
O primeiro, vindo da Ilustração Francesa, a
considera como o resíduo da tradição, um
misto de superstição e ignorância a ser cor-
rigido pela educação do povo; o segundo,
com o Romantismo do século XIX, afirma
que a cultura popular é a cultura do povo
bom, verdadeiro e justo, ou aquela que
exprime a alma da nação e o espírito do
povo; e o terceiro, vindo dos populismos
do século XX, mistura a visão romântica
e a iluminista; da romântica mantém a
ideia de que a cultura, simplesmente por
ser feita pelo povo, é boa e verdadeira em
si; da visão iluminista, mantém a ideia de
que essa cultura, por ser feita pelo povo,
tende a ser tradicional e atrasada com
relação ao seu tempo, precisando, para
atualizar-se, de uma ação pedagógica, rea-
lizada pelo estado ou por uma vanguarda
política. Cada uma dessas concepções da
cultura popular configura opções políticas
bastante determinadas; a ilustrada ou ilu-
minista propõe a desaparição da cultura
popular por meio da educação formal, a ser
realizada pelo estado; a romântica busca
universalizar a cultura popular por meio
do nacionalismo, o seja, transformando-a
em cultura nacional; e a populista pretende
trazer a “consciência correta” ao povo
para que a cultura popular se torne revo-
lucionária (na perspectiva das vanguardas
de esquerda) ou se torne sustentáculo do
Estado (na perspectiva dos populismos de
direita3.

3 Marilena Chauí, Reflexões sobre Cultura e Democracia, em O pensar


filosófico, A cultura e a formação humana, páginas 40 e 41

261
Pode-se não concordar inteiramente com a passagem
acima, vinda de uma filósofa cujas coerentes e esquerdistas
filiações políticas são bastante conhecidas. No entanto acredito
que elas poderiam ser tomadas como um ponto de partida para
chegar de volta a Paulo Freire. A frase “e a populista pretende
trazer a “consciência correta” ao povo para que a cultura popu-
lar se torne revolucionária (na perspectiva das vanguardas de
esquerda)” merece ser relida desde uma diferença que em suas
áreas territoriais mais distantes tende a ser uma divergência.
Se pensamos as frentes de lutas populares juntamente com
a ativa presença de agremiações de um modo ou de outro vin-
culadas à cultura popular e, depois, à educação popular, entre
os anos sessenta e setenta no Brasil, poderemos assinalar no
que estarei chamando aqui de uma “vocação freireana”, alguns
eixos essenciais de imaginários e ideários que o separam (e de
forma extrema) dos “populismos de direita”, tanto quanto (e de
forma relativa e moderada) de concepções político-pedagógicas
então estabelecidas de modo geral pelos militantes marxistas.
Se sintetizarmos entre mínimas palavras diferenças e
divergência entre o imaginário humanista-emancipador de
Paulo Freire e o de pessoas e agremiações marxistas da década
dos anos 60, poderíamos colocar uma versão centrada em:
humano-cultura-sociedade-diálogo-povo-educação popular
X humano-trabalho-sociedade-dialética-classe-educação de
classe. Sem esquecer que as palavras “dialética” e “práxis” são
também caras em usuais em Paulo Freire. Sem, no entanto, o
mesmo sentido dado a elas pela ortodoxia marxista de então.
Uma leitura aberta de Pedagogia do Oprimido e dos livros pos-
teriores, a partir de Pedagogia da Esperança, deverá deixar isto
claro.
De outra parte, a categoria “consciência” e uma pri-
meira sequência algo “mecanicista” no “primeiro Paulo
Freire (consciência intransitiva-consciência transitiva ingê-
nua-conscientização- consciência transitivo-crítica) será logo
abandonada. De resto, a “consciência” era em seus primórdios

262
uma categoria bastante mais usual entre militantes cristãos de
esquerda do que entre militantes marxistas. Ela provinha de
Hegel e não de Marx, e no Brasil dos anos sessenta foi apro-
fundada e difundida pelo filósofo Henrique la Lima Vaz, um
sacerdote jesuíta estreitamente próximo da Juventude Univer-
sitária Católica e do Movimento de Educação de Base. Vem
dele a expressão “consciência histórica”, que em 1961 veio a
substituir a categoria “ideal histórico”.
Tento de forma aproximada e assumidamente precária sin-
tetizar o que me parecem algumas ideias de fundo em Paulo
Freire.
1º. Na tradição freireana saberes individuais e sistemas cul-
turais entre o que se vive e produz nas universidades, e
o que se cria e partilha em comunidades populares são
sistemas de saberes, de sentidos de vida e de significa-
dos de mundo diferentes, mas não desiguais. Assim, o
que existe nas culturas populares de propriamente alie-
nado, é o que sobre elas foi hegemonicamente imposto
pelas classes opressoras. Um trabalho de ação cultural
através da educação não deve apagar e reescrever o
que há de próprio nas culturas populares. Deve peda-
gógico-politicamente retirar, a partir do trabalho dos
próprios agentes populares, o que culturalmente é
invasor em suas culturas. A idéia de “invasão cultural”
está presente desde Pedagogia do Oprimido. E este tra-
balho desalienador não é uma ação pedagógica direta
do educado popular sobre o educando do povo. É o
acontecer de uma ação dialógica entre um e o outro.
2º. Assim sendo, o diálogo entre pessoas-e-seus-saberes,
quaisquer que sejam elas, é a forma original e essen-
cial em qualquer trabalho pedagógico e politicamente
emancipador através também da educação. O diálogo
não é uma metodologia facilitadora de uma trans-
posição, ou até mesmo uma imposição de saberes e
valores culturais de uma pessoa sobre outra, ou de um

263
coletivo cultural sobre um outro. O diálogo diferencia-
damente igualitário entre “quem- ensina-aprendendo”
e “quem-aprende-ensinando” é o único procedimento
político-pedagógico viável e consequente na pedagogia
freireana. Só se aprende o que mutuamente se cons-
trói. E só se constrói saberes a partir de uma igualitária
partilha de/entre sujeitos individuais ou coletivos de
criação de culturas.
3º. Como uma consequência, não lidamos com ciências
pre-construidas e prontas a serem ensinadas; mate-
rialismo histórico e materialismo dialético incluídos,
a não ser como mutáveis sistemas abertos ao diálogo
e à recriação. Não existem educadores estabelecidos,
individuais (uma professora) ou sociais (um partido).
Ensinar algo a alguém é a contraparte substantiva de
uma ação, cuja outra metade é o aprender.
4º. A dialética na pedagogia e na política freireana é
desveladoramente dialógica. E tanto o saber que
se partilha quanto uma ciência reconstroem-se e se
reconstituem-se no acontecer do processo de mão-
dupla de ensino-aprendizagem. Assim, a pedagogia
freireana diferencia-se de leituras dialéticas mais cienti-
ficistas, porque não pensa o desvelar de uma realidade
social e histórica através da aplicação centrada em um
fundamento científico e em um método e análise da
realidade pré-estabelecido.

A dialética-dialógica freireana tem os seus fundamentos


na interação entre saberes de uma mesma cultura (ciência, arte,
imaginários, etc.), na integração entre diferentes saberes, senti-
dos e significados culturais (os “eruditos”, os “populares”, os
“indígenas, etc. E na antecipada indeterminação. Sabemos o
criamos, e ao longo do proceso de mutua criação pedagógica
estamos abertas ao que virá a acontecer. Eis uma das dimensões
do “inédito viável” em Paulo Freire.

264
E nos seus escritos anteriores ao exílio, a presença da cul-
tura é marcante e fundadora. Trago um depoimento originário
de um dos primeiros movimentos de cultura popular. Trata-
se do movimento “De pé o chão também se aprende a ler”.
Sob forte influência das idéias de cultura, consciência e trans-
formação social através da cultura, eis o que os militantes do
“movimento” leem durante o Primeiro Encontro Nacional de
Alfabetização e Movimentos de Cultura Popular, em setembro
de 1963, no Recife.
Há (...) um entrelaçamento dialético entre
cultura popular e libertação nacional-socia-
lista e anti-imperialista. Por conseguinte,
embora pareça um princípio paradoxal, a
cultura popular tem papel de instrumento
de revolução econômico-social, mas, em
última instância, a afirmação e vitória
dessa revolução é que virá possibilitar o
superamento das alienações que se pro-
cessam o plano político e econômico. Fica
claro, portanto, o mais profundo sentido
dialético da revolução popular, que não
é um fim, porém um meio de conseguir a
libertação total do povo, fazendo-o cons-
trutor de seu destino. Nenhum povo é
dono do seu destino se antes não é dono de
sua cultura”4.

Em setembro de 1963, em algum lugar da Universidade


do Recife, Paulo Freire e companheiros do SER deveriam estar
presente e atento quando este documento era lido. Há fortes
acentos dele em Pedagogia do Oprimido.

4 Tomado de A primavera dos anos 60 – a geração de Betinho, páginas 90


e 91. Grifos e aspas dos autores originais,

265
VENDO E LENDO AS FICHAS DE
CULTURA DO MÉTODO DE
ALFABETIZAÇÃO DE PAULO FREIRE

A
respeito de Paulo Freire, quase sempre consideramos as
suas teorias a respeito da pessoa humana, da sociedade,
da cultura e de processos culturais de transformação de
pessoas, de coletivos e de sociedades através da educação.
Neste estudo quero focar mais imagens do que idéias.
Quero “ver”, mais do que “ler”. E para tanto quero dialogar
com as gravuras criadas para o início dos trabalhos de alfabeti-
zação através do que nos acostumamos a chamar de “Método
Paulo Freire”. É bastante frequente que cartilhas e outros
“livros de leitura” sejam ilustrados, sobretudo quando dirigi-
dos a crianças. No “Método Paulo Freire” também há imagens.
Apenas elas irão ser projetadas diante de pessoas alfabetizan-
das dispostas em um círculo para dialogarem a respeito do que
elas pensam a respeito das imagens que veem. Em palavras gra-
tas a Paulo Freire, eis um trabalho de alfabetização em que se

267
começa por aprender a “ler o mundo”, antes de se aprender a
“ler palavras” com que o mundo visto e vivido, é pronunciado1.
Em sua primeira versão e tal como foi “aplicado” em Angi-
cos, no Rio Grande do Norte, o trabalho de alfabetização de
adultos começava com a projeção de uma série de “fichas de
cultura”. Imagino que alfabetizandas e alfabetizandas talvez
decepcionados por não receberem nenhuma cartilha, livro de
leitura, caderno e lápis, estranhariam mais ainda quando se
vissem convocados a olhar imagens projetadas na parede e a
conversarem longamente sobre o que estavam vendo diante
delas.
Depois de alguns ensaios originais para a elaboração das
“fichas”, elas acabaram tomando forma final através do traba-
lho artístico de Francisco Brennand, um artista pernambucano
amigo de Paulo Freire. Antes, inclusive para uma “experiência
em Brasília”, as fichas de cultura foram redesenhadas a par-
tir das imagens nordestinas originais. Foram elaboradas em
meados de 1963 e destinadas à grande “cruzada” do Programa
Nacional de Alfabetização, abortado antes do início em conse-
quência do golpe militar de abril de 1964. O MEC pretendia
através do “Programa” alfabetizar 5 milhões de adultos no Bra-
sil em dois anos. Formavam originalmente um “filminho” que
de ficha em ficha iam sendo projetados diante dos alfabetizan-
dos.
No começo dos anos sessenta, entre Paulo Freire e outras
e outros educadores individuais ou coletivos era usualmente
chamado de “processo de conscientização”, tinha em seu foco
de origem a idéia de que tal “tomada de consciência” seria
realizada ente pessoas, coletivos e classes sociais, através do

1 Tanto as imagens quanto alguns dos dados e das ideias mais essenciais
foram obtidas da visão e da leitura de um artigo de Osmar Fávero e
Elisa Cota, da Universidade Federal Fluminense: As fichas de cultura do
Método de alfabetização Paulo Freire – um ovo de Colombo. Ele foi ori-
ginalmente publicado na Revista Linhas Críticas, v. 18 n. 37, set./dez.
2012, já lembrado aqui páginas acima.

268
reconhecimento de que através de ações realizadas como tra-
balho resultavam não apenas em produtos, como o feijão que
o lavrador planta e colhe. Realizavam-se como e através de
processos, por meio dos quais um “mundo de natureza dado”
era transformado em um “mundo de cultura transformado e
significado”. Processos através dos quais também aquele que
age-transformando o mundo, transforma-se a si-próprio com
um ser consciente de ser um “criador de cultura”.
Assim, uma a uma, as dez imagens deveriam ser sequencial-
mente projetadas diante de alfabetizandos sentados primeiro
diante de uma tela e, depois, ao redor do “círculo de cultura2.
Deixemos que com suas palavras Paulo Freire deponha
sobre a sua opção original pelo foco sobre a “noção de cul-
tura”.
E pareceu-nos que a primeira dimensão
deste novo conteúdo com que ajudaría-
mos o analfabeto, antes mesmo de iniciar
sua alfabetização, na superação de sua
compreensão mágica como ingênua e no
desenvolvimento de crescentemente crítica,
seria o conceito antropológico de cultura. A
distinção entre dois mundos: o da natureza
e o da cultura. O papel ativo do homem
em sua e com sua realidade. O sentido de
mediação que tem a natureza para as rela-
ções e comunicação dos homens. A cultura
como o acrescentamento que o homem faz
ao mundo que não fez. A cultura como
resultado de seu trabalho. Do seu esforço
criador e recriador. O sentido transcenden-
tal de suas relações. A dimensão humanista
da cultura. A cultura como aquisição siste-

2 Lembro que para o Dicionário Paulo Freire escrevi três verbetes. Um


deles sobre o conceito de “cultura’, outro sobre o “círculo de cultura”. E
um terceiro, recordando minha vida errante e também a de Paulo Freire,
sobre a “andarilhagem”.

269
mática da experiência humana. Como uma
incorporação, por isto crítica e criadora, e
não como uma justaposição de informes ou
prescrições “doadas”. A democratização
da cultura – dimensão da democratização
fundamental. O aprendizado da escrita e
da leitura como uma chave com que o anal-
fabeto iniciaria a sua introdução no mundo
da comunicação escrita. O homem, afinal,
no e com o mundo. O seu papel de sujeito e
não de mero e permanente objeto3.

Antes de apresentar aqui algumas das “10 fichas de cul-


tura”, junto com breves comentários meus, devo recordar de
passagem que como uma provável criação de sua época - o
começo dos “anos sessenta - as “fichas de cultura” configu-
ravam três “faltas” compreensíveis em 1961, e discutíveis em
2021. Primeira: elas traziam imagens de personagens huma-
nos quase sempre masculinos. Elas continham um viés típico
de uma antropologia evolucionista já então “fora de moda”,
como no momento em que apresentavam um índio com arco-e-
flecha, como um “caçador iletrado” e, depois, um branco, com
uma espingarda, como um “caçador letrado”. Elas apresentam
como atividades culturais, primitivas cenas de caçada, em que
um pássaro é morto. Em versões posteriores algumas fichas
de cultura originais foram revistas, tal como na retradução
do Método Paulo Freire feita pela equipe do Movimento de
Educação de Base de Goiás, em 1963, e que tomou o título de
“Benedito e Jovelina”, o casal camponês central na releitura do
método, então adaptado para a alfabetização através de escolas
radiofônicas4.

3 Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, 1967, páginas 108 e


109.
4 Escrevi um breve artigo a respeito do “Benedito e Jovelina”. Além de
“jogado nas nuvens” ao longo das muitas “lives” de que participei entre

270
A sequência das Fichas de Cultura

As fichas apresentam cenários entre a natureza selvagem


e o mundo rural. Nas duas primeiras fichas tanto o homem
quanto a mulher estão sem sapatos ou botas, o que poderia ser
uma clara mostra do que mais adiante seria em Paulo Freire
a “condição oprimida” (ou “subalterna”). Mas o que poderia
representar também a estreita relação entre o ser humano e a
natureza.
As duas primeiras fichas sugerem não apenas um cenário
rural, mas um lugar de vida já transformado da natureza para
a cultura... sem deixar de ser rusticamente natural. O homem
da primeira ficha é um camponês naturalizado. Descalço, ele
está sem camisa e com a calça remendada. No entanto por a
enxada com que planta o que colhe. E está próximo ao poço
que provavelmente terá construído, assim como a sua pequena
casa. Notemos que desde as duas primeiras fichas de cultura
as pessoas trazem nas mãos um livro. Nas do homem sozinho
na primeira; nas mãos da mulher, na segunda. Uma ficha que
de alguma maneira “culturaliza” mais os personagens, pois
o homem está completamente vestido, assim como a mulher,
embora os dois esteja ainda sem sapatos. Cercados de ani-
mais selvagens (uma onça) e domesticados (todos os outros),
o centro da imagem é uma planta, um arbusto, uma árvore,
que a imagem sugere haver sido ou estar sendo plantada pelo
homem.

os anos de 2020 e 2021, ele saiu impresso em 2021 no livro: Paulo Freire
– tantos anos depois, publicado pela Editora WAK, do Rio de Janeiro.

271
272
Seres e “coisas” do mundo natural interagem com seres e
“objetos” de uma natureza transformada através do trabalho
criador do ser humano. Habitando ainda um mundo dominado
pela natureza, o homem e a mulher o transformam através do
seu trabalho. Este é o sentido em que Paulo Freire empregará
a palavra “práxis”, vinda tanto da filosofia grega quanto de
Marx. Ela deverá significar não apenas o trabalho “em-si”,
como atividade manual e produtiva. Significará uma ação inten-
cional e criadora, através da qual, transformando um mundo de
natureza em um mundo de cultura, primeiro em sua mente e,
depois com as suas mãos, o ser humano se reconhecem como
um criador de seu próprio mundo, um recriador de si-mesmo e
um “sujeito da história”.
Era frequente entre nós entre os “anos sessenta” a tríade
de expressões: “consciência-de-si” (reconhecimento de um
valor pessoal que iguala os seres humanos entre as suas diferen-
ças); “consciência-do-outro (reconhecimento de meus outros
como seres-de-relações através dos quais eu me construo e
compreendo a mim-mesmo). “consciência-do-mundo” (o reco-
nhecimento do mundo como criação coletiva de seres humanos
acompanhada da consciência crítica do mundo dividido entre
opressores-e-oprimidos e, assim, destinado a ser transformado
através de um “trabalho político” emancipador).
Apresento aqui apenas a terceira das três fichas de cultura
apresentadas a seguir às futuras alfabetizandas. Em sequência
elas apresentam três seres em atividades de caça. A primeira é a
do “caçador Iletrado”, um indígena no pleno mundo da natu-
reza, sem qualquer dos elementos do rústico mundo camponês
das duas fichas precedentes.

273
Na quarta ficha de cultura retorna um camponês, agora
armado de uma espingarda e, tal como o indígena, abatendo
um pássaro. Na quinta ficha a imagem apresenta um “gato
caçador” ao lado de um rato morto por ele. Eis como Osmar
Fávero e Elisa Cota procedem a uma leitura crítica das três
fichas. Lembrando, claro, que elas representavam em boa
medida os imaginários de então. Tempos em que entre nós as
questões e os dilemas dos relacionamentos entre a sociedade e
o ambiente, e entre os seres humanos e a natureza ainda não
haviam emergido como imaginários, ações e questões relevan-
tes. Lutávamos por “reforma agrária” e por “justiça social”. A
“questão ambiental” e suas derivadas teriam que esperar no
Brasil e na América Latina pelas duas décadas seguintes5.

5 Posso dar aqui o meu próprio testemunho, Entre os anos 60 e 70 estive


dedicado a questões sócio-políticas através de ações culturais e pedagó-
gicas. Sobre tais questões escrevi alguns livros e organizei outros. Apenas
nas décadas seguintes associei a educação popular a questões e à educa-

274
Ao apresentar, nas fichas 3, 4 e 5, a dife-
rença ontológica entre os homens (índio e
caçador) e o gato, que não realiza cultura
ao caçar o rato, introduzindo a noção de
cultura como produto de relações sociais,
o Manual para os animadores, preparado
em 1962 pela equipe de Paulo Freire no
Serviço de Extensão Cultural da então Uni-
versidade do Recife, ainda insiste em uma
ideia evolucionista de estágios, já bastante
criticada na época pela produção antropo-
lógica.
Afirma que o caçador está no “estágio de
civilização”, comparando-o com o índio.
Estabelece, dessa forma, uma classifica-
ção hierárquica das diferenças, marcada
pelo etnocentrismo. No apêndice do livro
Educação como prática da liberdade, ela-
borado após as experiências da década de
1960,
Paulo Freire apresenta a discussão ocorrida
em círculos de cultura a partir das fichas e
não nega a existência de cultura e de edu-
cação nas sociedades indígenas. Diz que
o caçador e o índio estão em “fases histó-
rico-culturais” distintas, ou seja, o homem
iletrado vive oprimido; com a alfabetização
o homem passa a pertencer a uma cultura

ção ambiental. Participei então de curso e de incontáveis encontros sobre


“nós e a natureza”, e escrevi alguns livros com nomes como: As flores
de abril, O voo da arara azul, Aqui é onde eu moro, aqui nós vivemos
(para o Ministério do Meio Ambiente) Minha casa, o mundo, todos eles
com foco sobre a natureza e questões e vocações ambientais. Todos os
meus escritos “ambientais” são posteriores aos “anos 2000”. Após o seu
retorno ao Brasil sou testemunha de que Paulo Freire em pouco tempo
incorporou às suas ocupações anteriores questões como as feministas, as
das minorias e maiorias étnicas, e as relativas à natureza e ao ambiente.

275
letrada e poderá deixar de ser oprimido,
tornando-se sujeito de sua história6.

As três fichas seguintes, a 6, a 7 e a 8 de algum modo saltam


do mundo da natureza e do mundo da cultura rural para cená-
rios onde a vida e a cultura se aproximam de cenários situados
“entre a cidade e o campo”. Na ficha 8 dois homens – agora
plenamente vestidos e calçando sapatos – fabricam artesanal-
mente objetos de barro. Agem não mais sobre a pura natureza
viva, caçando ou plantando, mas sobre algo do mundo natural
trazido para o mundo da cultura. Trabalham a terra, mas sob
a forma do barro que não gera algo para comer, mas para per-
durar e utilizar.

6 As fichas de cultura de cultura do Sistema de Alfabetização Paulo Freire


– um “ovo de Colombo, página 13.

276
E, assim, a ficha seguinte, a 7ª apresenta a imagem de duas
dimensões da cultura realizada através de transformações da
natureza. Um dos seus objetos são flores, colhidas em plantas
provavelmente cultivada num jardim. E o outro é um jarro
onde as flores estão colocadas.
E logo a seguir a ficha 8, uma das mais significativas entre
todas, apresenta um livro aberto com fragmentos do que pode-
ria ser algo de “literatura de cordel” do Nordeste. Notemos que
o pequeno trecho de poesia escrita na segunda página do livro,
retoma a terrível ameaça da Bomba Atômica (então uma questão
central, em tempos de “Guerra Fria” e de expansão de arsenais
atômicos, entre os anos 50 a 70) e na segunda estrofe sugere
o mundo pacificado anos mais tarde escrito em Pedagogia do
Oprimido e em livros sequentes de Paulo Freire. Um mundo
em que “tudo ficasse unido”, desde quando libertados-eman-
cipados de sua “condição de oprimidos”, os “esfarrapados da
Terra”, a quem Paulo dedica Pedagogia do Oprimido, libertas-
sem também os que o oprimiam “de sua condição de opressor”.

277
Ao lado de um cavalo, a ficha 9 apresenta dois homens:
um gaúcho e um nordestino “encourado”. Ela serviu a reflexões
sobre diferenças culturais. E seria este um dos momentos iniciais
de diálogos através dos quais, após se descobrirem como auto-
res-atores culturais e sujeitos da história de vivem e constroem,
os alfabetizandos eram levados a uma reflexão a respeito de
algo mais que apenas “as diferenças culturais”. O foco da ques-
tão proposta então era o valor próprio de cada pessoa, de cada
coletivo de pessoas e de cada cultura, como sujeitos e cenários
de saberes, de sentidos, e de significados e valores cultural e
socialmente diferentes. Diversos, diferenciados, diferentes...
mas de modo algum hierarquicamente desiguais.
Apesar de um foco algo primariamente evolucionista nas
fichas anteriores, todo o acento do trabalho nos círculos de cul-
tura e, depois, em toda a sequência do acontecer da alfabetização
e da pós-alfabetização, estará centrado sobre um pedagógico
relativismo-igualitário. E o diálogo será em Paulo Freire não
um instrumento didático, ou uma metodologia pedagógica, mas
o próprio sentido e a razão de ser do ato de ensinar-a-aprender,
na mesma medida em que aprende-a-ensinar.
Cada pessoa, sendo em si-mesma uma experiência indivi-
dual-e-social de criação de cultura, e sendo as culturas em todas
as suas dimensões e realizações realidades humanas diferentes,
mas em nada desiguais, resulta que a ação de educar somente
poderá ser realizada em sua plenitude e em nome de sua vocação
humanizadora, como partilha, como encontro, como reciproci-
dades. Como diferentes ações dialógicas, portanto.

278
E o “circuito” das “fichas de cultura” se completa com a
“ficha 10”. Nela os alfabetizandos veem o que eles são naquele
momento. Um conjunto de pessoas reunidas para mutuamente
se ensinarem-e-aprenderem a ler o seu mundo, e a ler as pala-
vras com que ele pode ser também compreendido, traduzido,
interpretado e criticamente dialogado.

279
Eis como Osmar Fávero e Elisa Cota comentam esta derra-
deira ficha de cultura, na página 18 de seu artigo.
O círculo de cultura. Nesta última situa-
ção, está presente a valorização da cultura
letrada para a emancipação do povo que,
através da comunicação, baseada no diá-
logo, é educada e simultaneamente educa.
A identidade nacional, portanto, segue o
pensamento otimista da educação.
A democratização da cultura é um instru-
mento que permitirá a todos compreender
o contexto histórico em que estão inseridos.
Essa visão era recorrente durante a década
de 1960, marcado pela efervescência polí-
tica, social e cultural. Foi um momento
no qual se questionava o modo de ser
brasileiro, de viver e participar na histó-
ria política e cultural do país. O objetivo
principal era transformar a cultura brasi-
leira e, através dela, pelas mãos do povo,
transformar a ordem das relações de poder
e a própria vida do país – projeto, como
se sabe, interrompido bruscamente após o
golpe militar de 31 de março de 1964.

Um sentido de História como o lugar de realização da Pessoa


na Sociedade

Uma síntese algo mais complexa da leitura das “fichas de


cultura” com que eram iniciados os diálogos do “Sistema de
Alfabetização” de Paulo Freire, poderia ser escrita assim.
Aquilo que torna o ser natural em um ser humano (sem
por isso deixar de ser um “ser da natureza) é a sua ação moti-
vada e reflexiva de transformação de um mundo desde uma
natureza dada ao homem” em uma realidade social, através da
criação da cultura. Recordo que será esta ação que Paulo Freire

280
nomeará como uma “práxis transformadora”. Ela se realiza
através de ações de trabalho entre mentes e mãos, de que deriva
uma primeira tomada de consciência-de-si.
Sou quem eu sou, como um camponês, não apenas atra-
vés do milho que semeio e colho, ou da casa de adobe que eu
construo para viver. Sou um ser humano criador de cultura
através do sentido que atribuo ao que faço, ao como faço o
que faço, e ao em que eu me transformo, ao tomar consciência
da dimensão de quem eu sou, e de como partilho a realização
crescente de meu ser com os meus outros. A minha ação ativa e
reflexiva ao mesmo tempo somente ganha um sentido humana
quando partilhada com outros. Toda a ação verdadeiramente
humanizadora é uma ação partilhada. Logo, é uma dimensão
do que chamamos de ação social. E dado que todas as ações
desta natureza têm a ver com um propósito transformador em
direção ao “mais humano”, todas as ações de vocação social-
solidária são ações também políticas. Pois não somos criadores
de cultura apenas quando com o nosso trabalho produzimos
“algo”. Somos criadores de mundos de cultura quanto através
de nossas ações recriamos continuamente as nossas próprias
vidas, os nossos destinos e os mundos onde coletivamente par-
tilhamos vidas e destinos.
Sob o domínio opresso de um sistema capitalista original
e estruturalmente injusto, desigual, excludente, repressor de
liberdades e, enfim (e com palavras de Paulo Freire) “regido
pelo domínio do opressor sobre o oprimido”, é um mundo que
reclama por ações políticas emancipadoras. E essas ações têm
em sua origem e em sua destinação, o amor.
A sujeição ao opressor, originalmente injusta e injustifi-
cada, constitui-se como uma condição social de poder que
socialmente desiguala pessoas em sua origem e em sua vocação
de seres humanos criadores de cultura. Logo seres que singular-
mente se igualam entre as suas diferenças. Portanto, mulheres e
homens que deveriam partilhar uma mesma condição de digni-
dade e de direito à felicidade, em sua simples condição de seres

281
humanos. Seres tornados humanos através de criarem sobre a
mundo de natureza um mundo de cultura destinado a ser um
cenário universal de realização da vocação humana. As pes-
soas dos círculos de cultura eram dialogicamente incentivadas
a chegarem passo a passo a esta compreensão. Ao redor de um
círculo de cultura, como ao redor do mundo, quaisquer que
sejam, os seres humanos partilham a mesma condição e uma
igualada - entre suas diferenças devidas – vocação de “criar o
seu mundo de partilha da vida”. Tudo o mais são diferentes
atributos complementares que deveriam estabelecer o primado
de um mundo emancipado da dualidade opressor-oprimido. E
este par de opostos em Paulo Freire é a face real da dualidade
que outros preferem traduzir apenas como ricos-e-pobres.
Como um passo que alarga a sua pedagogia, desde um
horizonte francamente político e insurgente, traz a história para
a educação. E ele assim ele procede ao partir de uma ideia nem
sempre lembrada. A de Homem e de Pessoa Humana como um
ser em trânsito, um ente existente em um fluir; em um perene
fluxo. Seres que existem e se comunicam como um “inacabado
inacabável”. Como seres originalmente imperfeitos, e por isso
mesmo ser perenemente aperfeiçoáveis. Seres a quem seria
devida uma educação ao mesmo tempo emancipadora e perene
ao longo de suas vidas. Embora sempre associada a fases da vida
humana, entre a tenra infância e a maturidade, na realidade a
educação em Paulo Freire não é uma sucessão de estágios. Ela
é a permanência de um fluxo entre aprender-e-ensinar, durante
todo o percurso de uma existência.
Em uma direção em que o individual se coletiviza, ao pen-
sar uma “educação com prática da liberdade” e ao destinar ao
oprimido uma pedagogia, Paulo Freire pensa a educação como
uma presença transformadora entre mentes, mãos e ações
humanas, com uma vocação não apenas virtualmente eman-
cipadora, mas perenemente criadora mantenedora de uma
“ordem social” em que a vocação do humano – e de todos os
humanos – possa realizar-se inacabavelmente.

282
Cabe a quem aprende-e-ensina o conhecer e o compreen-
der uma história pessoal e coletiva realizada no passado. No
entanto, “conhecer e compreender sua história” com o propó-
sito de saber criar coletiva e ativamente uma história de presente
como primado da liberdade, da justiça, da inclusão.
Paulo Freire opõe um humanismo crítico e emancipador
que ao pensar o humano e sua condição lança-se do conheci-
mento que compreende, em nome de uma ação que transforma,
frente ao que ele domina um “humanitarismo” teórico preocu-
pado em apenas “pensar o humano” como uma questão teórica.
Assim também, desde os primeiros momentos de um trabalho
de alfabetização, a sua proposta pedagógica busca estabelecer
uma ação política humanista que ultrapassa uma filosofia ide-
alista do humano-em-si, para fundar uma pedagogia ativa do
humano-para-si. Ou seja, a de um alguém que somente pode
ser compreendido enquanto um ser individual e coletivo que se
humaniza, na medida em se transforma como Pessoa, transfor-
mando com os seus outros o mundo em que vivem.

Referências bibliográficas originais

Dado o valor como escritos de história e de depoimen-


tos de época, transcrevo aqui na íntegra a bibliografia utilizada
por Osmar Fávero e Elisa Cota no artigo que nos acompanhou
aqui.

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Cultura popular e educação popular; memória dos anos 60.
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ESTEVAM, Carlos. Cultura popular posta em questão. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963; republicado por José
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Ed. da UNE, 1963; republicado em 1965 pela Civilização Bra-
sileira e reproduzido em Arte em Revista n. 3, março 1980. Na
nova edição publicada pela José Olympio, em 2002: Cultura
posta em questão; Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios
sobre arte, o texto é precedido de um prefácio esclarecedor.

LIMA, Venício A. de. Comunicação e cultura: as ideias de


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São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011.

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programa para 1965 – 1ª parte: estudos sociais; 1.1 - cultura.
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&

TERRA, Antônia. 40 horas de esperança. O método Paulo


Freire: política e pedagogia na experiência de Angicos. São
Paulo: Ática, 1994.

285
LIVROS E OUTROS ESCRITOS LIDOS,
CONSULTADOS E INDICADOS

Nota:
Estão relacionados aqui livros, artigos e outros escritos consi-
derados proveitosos para leitura a respeito de temas tratados
neste livro. Assim, a relação incorpora alguns trabalhos não
lidos e nem consultados pelo autor para a realização do que
aqui está escrito. No entanto, livros e artigos julgados leituras
proveitosas a respeito dos temas e dilemas aqui tratados.

ADORNO, Theodor
Educação e Emancipação
1992, Editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de


Terras tradicionalmente ocupadas
Revista Brasileira Estudos Urbanos e Regionais, v.6, n.1 / maio
2004

ALVES, Rubem
Conversas com quem gosta de ensinar
2006, Editora Papirus, Campinas (9ª edição)

ANTÔNIO, Severino
Educação e Transdisciplinaridade – crise e reencantamento da
aprendizagem
2002. Editora Lucerna, Rio de Janeiro

AP – AÇÃO POPULAR
Cultura Popular - Documento 4: documento de orientação de
ações políticas aos militantes - MA60
1963, Rio de Janeiro, documento mimeografado.

287
AP - AÇÃO POPULAR - Cultura Popular
Documento da Ação Popular
In: Osmar Fávero (org.)
Cultura popular e educação popular – memória dos anos ses-
senta
1983, Edições GRAAL, Rio de Janeiro

ARANTES, Aldo, LIMA, Haroldo


História da Ação Popular - da JUC ao PCdoB
1984, Editora Alfa-Ômega, São Paulo

ARROYO, Miguel
Pedagogia do Oprimido
Verbete no: Dicionário da Educação do Campo
2010, Editora Expressão Popular, São Paulo

ARRUDA, Marcos
Educação para uma economia do amor – educação da práxis
e economia solidária
2013, Editora Ideias e Letras, Aparecida

ASSMANN, Hugo
Reencantar a educação – rumo à sociedade aprendente
1998, Editora Vozes, Petrópolis

ASSMANN, Hugo
O reencantamento da educação
1992, Editora VOZES, Petrópolis

ASSMANN, Hugo e SUNG, Mo Jung


Competência e sensibilidade solidária – educar para a espe-
rança
2000, Editora VOZES, São Paulo

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ASSUMPÇÃO, Rayane e BRANDÃO, Carlos Rodrigues
Cultura rebelde – escritos sobre a educação popular ontem e
agora
2009, Editora do Instituto Paulo Freire, São Paulo

BANCO MUNDIAL
Priorities and strategies for education – a world bank sector
review
1995, Banco Mundial Washington

BARREIRO, Júlio
Educação popular e conscientização
1984, Editora Vozes, Petrópolis

BARTHES, Roland
Aula
2013 (16ª edição) Editora Cultrix, São Paulo

BATTESON, Gregory
Mente e natureza – a unidade necessária
1986, Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro

BAUMAN, Zygmunt,
A arte da vida
2009. Editora Zahar, Rio de Janeiro

BAUMAN, Zygmunt
Isto não é um diário
2012, Zahar Editora, Rio de Janeiro

BEZERRA NETO, Luiz


Sem-Terra aprende e ensina – Estudo sobre as práticas educa-
tivas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
1999, Editora Autores Associados, São Paulo

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BIEGISEL, Celso de Rui
Estado e Educação Popular
1974, Editora Pioneira, São Paulo

BENEVIDES, Maria Victória


A cidadania ativa – referendo, plebiscito e iniciativa popular
1991, Editora Ática, São Paulo

BERGER, Thomas e LUCKMANN, Thomas


A Construção Social da Realidade
1998, 15ª edição, Editora VOZES, Petrópolis

BOFF, Cordovis
Como trabalhar com o Povo
1996, Editora VOZES, Petrópolis

BOGO, Waldemar
A questão da educação do campo e as contradições da luta
pelo direito
In: Educação do Campo e contemporaneidade – paradigmas,
estratégias, possibilidades e interfaces
2013, Editora da Universidade Federal da Bahia, Salvador

BRANDÃO, Carlos Rodrigues


Aprender o amor – sobre um afeto que se aprende a viver
2004, Editora Papirus, Campinas

BRANDÃO, Carlos Rodrigues


A canção das sete cores - educando para a paz
2005, Editora Contexto, São Paulo

BRANDÃO, Carlos Rodrigues


Educação Popular na Escola Cidadã
2002, Editora VOZES, Petrópolis

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313
Sobre o livro
Design da Capa,
Jéfferson Ricardo Lima Araujo Nunes
Projeto Gráfico e Editoração
Sabon LT Std 14/16pt
Tipologias Utilizadas
Apple Garamond 12/14pt
Este é um livro que procura ser fiel ao que
considero a súmula de boa parte do pensamento
de Paulo Freire, sobretudo a partir de Pedagogia
do Oprimido e na esteira deste livro fundador.
Eis o que imagino como roteiro: pensar o
trabalho humano como criador da cultura; pensar
a educação como uma dimensão da cultura;
pensar a cultura como uma vocação da política;
pensar a política como uma ação humana
destinada à transformação do mundo; pensar a
transformação humanizadora do mundo como
história; pensar a história como não apenas o que
se lê, aprende e conhece, mas como aquilo que
se vive e pratica, em nome da realização plena e
da felicidade dos e entre os Seres Humanos. De
todos eles e de toda a Vida.
O autor

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