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Bioética

O documento discute a importância da ética médica sob a perspectiva da bioética, enfatizando a necessidade de uma abordagem humanística na prática cirúrgica. A ética deve permeiar não apenas os procedimentos cirúrgicos, mas também a vida e a conduta do cirurgião, assegurando que todos os atos profissionais sejam eticamente válidos. A bioética é apresentada como uma disciplina que integra ciência e ética, abordando dilemas éticos na medicina e promovendo a dignidade do paciente.
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Bioética

O documento discute a importância da ética médica sob a perspectiva da bioética, enfatizando a necessidade de uma abordagem humanística na prática cirúrgica. A ética deve permeiar não apenas os procedimentos cirúrgicos, mas também a vida e a conduta do cirurgião, assegurando que todos os atos profissionais sejam eticamente válidos. A bioética é apresentada como uma disciplina que integra ciência e ética, abordando dilemas éticos na medicina e promovendo a dignidade do paciente.
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Antonio

A ética médica sob o viés da bioética: o exercício moral da cirurgia 355


Bioética na Cirurgia

A ética médica sob o viés da bioética: o exercício moral da


cirurgia
Medical ethics under the bioethics’ point of view: the moral surgical practice
ELIANA MARIA RESTUM ANTONIO, TCBC-RJ1; TEREZA MARIA PEREIRA FONTES2

R E S U M O

O exercício profissional da medicina atual tem uma forte abordagem biológica, devido à crescente especialização da ciência médica.
Com frequência, a ciência, por si só, não ajuda a enfrentar e resolver uma situação particular de um profissional médico, e este é
o lugar onde as ciências humanas, sociais e, especialmente as outras disciplinas, como a Bioética, podem dar uma abordagem mais
humana e socialista, ao estudar sistematicamente a conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, através da luz dos
valores e princípios morais. Como parte deste estudo, o segmento que está limitado à análise dos conflitos éticos decorrentes da
prática da medicina e da assistência ao paciente, é conhecido como Ética médica. A Ética médica, no âmbito da cirurgia, compreende
a integração do paciente cirúrgico com a natureza do cirurgião, influenciada pela sua formação e pelo seu treinamento, pela sua
sensibilidade em identificar o que é correto. O ético não deve estar apenas no procedimento, no ato cirúrgico propriamente dito ou
no que acontece em uma sala de operação ou mesmo no exercício da cirurgia como especialidade. A ética deve estar na vida e
conduta do cirurgião, de forma que todos os atos profissionais e de vida devam ser eticamente válidos.

Descritores
Descritores: Ética médica. Bioética. Cirurgia.

1. INTRODUÇÃO ta o cuidado e a preocupação com a saúde e a vida do


mesmo3.
No que concerne à Ética para se referir aos dilemas ou Nesta fruição do próprio direito de viver, o Cirur-
escolhas, o desenvolvimento ético existe porque há uma gião busca o seu compromisso com o paciente que neces-
possibilidade de mais de uma decisão, se for devidamente sita de sua arte e de sua experiência na solução de cada
fundamentada. Por isso, em todas estas considerações de- terapêutica, para cada patologia, particular, irremediavel-
vemos construir alguns pressupostos básicos doutrinários, mente limitada à problemática de cada caso.
como admitir algumas semelhanças e diferenças entre as
disciplinas filosóficas e “natural”, “exato” ou
“mensuráveis”. Entre as semelhanças, temos a mesma base 2. ANTECEDENTES
científica e profundidade semântica e, entre os contrastes,
a incapacidade de observar estritamente e experimental- 2.1. Ética e medicina
mente as disciplinas abstratas, mesmo assim, em especial Tradicionalmente, o médico viu-se como um
a ética, não deve ser baseada em metas e objetivos espe- pequeno patriarca que exerce pouco controle sobre seus
cíficos e concretos, mas em princípios e valores, para não pacientes e exige destes, obediência e submissão
perder sua essência. “Integridade sem conhecimento é fraca (paternalismo). Para Aristóteles, o paciente é como uma
e inútil e o conhecimento sem integridade é perigoso e criança ou um escravo, irresponsáveis, incapazes de
horrível”. Samuel Johnson (1709-1784)1. moralidade, que não pode e não deve decidir sobre sua
“A humanidade tem uma dupla moral. Aquele própria doença4. A doença tem um caráter imoral para
que prega e pratica, e outra, que pratica mas não prega” eles. A atitude do médico para com o paciente é algo
Bertrand Russell (1872-1970)2. religioso. O médico é uma espécie de sacerdote. Este é o
O que é ético é o que deve ser atingido, é o que paternalismo médico que tem dominado a medicina oci-
deve ser estabelecido como padrão de conduta, que está dental desde o século V a.C. até hoje. O médico Hipócratico
acima de uma regra técnica apenas, ou de um procedi- e Galénico, vai se transformar no curso da modernidade,
mento estratégico. O zelo pela vida do paciente ainda que sem perder o seu caráter paternalista. Percival acredita que
materializado em ações objetivas, na sua essência é dirigi- o paciente pode agravar-se se as suas decisões e preferên-
do subjetivamente por um devotamento ético que desper- cias são autoritariamente canceladas. Esta doutrina é

1. Chefe da 17 Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro- – RJ-BR; 2. Professora da Universidade Gama Filho/
Hospital da Piedade- Rio de Janeiro – RJ-BR.

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estabelecida em 1847, no Código da American Medical completamente meu juramento... No que diz respeito à
Association, e depois no Código Nacional de Ética Médi- cura do doente... Considerarei sagrada minha arte e mi-
ca. Portanto, desde a tradição médica hipocrática, até ago- nha vida...”10.
ra, sempre se defendeu o critério ético da beneficência. Da mesma forma, disse Razetti “nós médicos
Isto tem sido entendido como um paternalismo, negando devemos preservar a profissão dentro dos limites da digni-
a capacidade do paciente de tomar decisões, portanto, dade e grandeza”10.
violando a sua autonomia5.
O exercício profissional médico de hoje tem uma 2.2. Fundamentos e princípios da Bioética
forte abordagem biológica, devido à crescente especiali- De origem recente, o vocábulo composto
zação da ciência médica, o que resulta em uma prática bioética, cuja etimologia dos radicais gregos que formam
impessoal. Os doentes necessitam de cuidados de saúde a palavra bios (vida) e éthos (comportamento, ética, con-
integral para recuperar o seu equilíbrio emocional. Exige, duta) já revela o campo de reflexão. Indubitavelmente, a
portanto, um resgate humanitário no ensino médico, a cri- palavra bioética representa uma daquelas palavras em que
ação de uma ponte entre estas duas disciplinas, garantin- as pessoas se acostumam com o seu uso, mas não se pre-
do que os médicos em formação possam adquirir e trans- ocupam muito com a definição de seu significado. Esta
formar uma atitude, para manter os direitos dos pacientes situação é semelhante ao que ocorre com palavras como
e ampliar a obtenção de uma formação humanística do justiça, liberdade, amor, felicidade, Deus, ética, e outras11.
médico formado nas universidades6. Segundo Cely, a Bioética é definida como “dis-
O médico é confrontado com situações novas e, ciplina científica que estuda os aspectos éticos da medici-
muitas vezes, complexas, onde a forma para resolver esta na e da biologia em geral, assim como a relação do ho-
situação pode refletir uma determinada ideologia, muitas mem com outros seres vivos; o estudo sistemático do com-
vezes, dependente de sua formação integral ao longo da portamento humano no campo das ciências biológicas e
sua vida e carreira, a sua decisão terá uma repercussão da atenção à saúde, na medida em que esse comporta-
direta sobre o paciente e seus familiares7. Com frequência, mento é considerado a luz dos valores e princípios mo-
a ciência por si só não ajuda a enfrentar e resolver uma rais”10. “A bioética trabalha na afirmação da vida como
situação particular de um profissional médico, e este é o um fator de convergência e de integração entre o homem
lugar onde as ciências humanas, ciências sociais e especi- e a natureza; é um reflexo basicamente em três níveis
almente as outras disciplinas, podem dar uma abordagem intrinsecamente relacionados à vida, a sua qualidade e
mais humana e socialista6. sentido”12.
Maia assinala alguns aspectos importantes da Bioética, em um de seus significados de maior
ética médica: a necessidade de dar ênfase a um enfoque importância, é “um estudo sistemático da conduta huma-
humanístico para a educação médica, a necessidade de se na no campo das ciências da vida e da saúde, através da
criar a um profissional com atitude, compromissado com luz dos valores e princípios morais”13. Como parte deste
seu meio ambiente natural e social, a necessidade de de- estudo, o segmento que está limitado à análise dos confli-
senvolver qualidades essenciais para o profissional da me- tos éticos decorrentes da prática da medicina e da assis-
dicina, permitindo um exercício médico não apenas volta- tência ao paciente, é conhecido como Ética Médica ou
do para conquistas materiais, mas também alcance um Ética Clínica14.
desenvolvimento moral, científico e, até mesmo estético, Segundo James Drane: “...o problema começa
com uma vocação médica, visando prioritariamente a rea- com a tentativa de definir o termo bioética. Pode-se definir
lização plena da dignidade do homem como um ser hu- bioética como uma disciplina nova e verdadeiramente
mano7. emblemática da nossa época. Nenhuma outra disciplina
Santo Agostinho se destacou pois, foi o primeiro ou área de estudo reflete mais fielmente a nossa
a ter um pensamento eminentemente ético, referindo-se contemporaneidade…”15. “O campo da bioética abrange
sobretudo ao encontro da felicidade; todos os recursos de- muitos dilemas éticos gerados pela pesquisa da ciência bi-
vem ser concentrados na mente e no coração8. O amor é a ológica e aplicações médicas. É uma disciplina
força que o atrai: assim como os corpos físicos são atraídos paradigmática porque esses dilemas forçam-nos a lidar com
para o centro da Terra. Com o seu peso, Santo Agostinho os problemas essenciais da vida e da morte: Quem so-
é atraído para seu centro – Deus – por amor. Daí seu mos?, Porque estamos aqui?, O que é a família, a integri-
criptograma: “Meu peso é o meu amor”9. dade, a identidade, o parentesco, a liberdade, o amor ou
A importância da formação na ética médica em a comunidade...”16.
sua capacidade profissional, é demonstrada pelo fato de O primeiro uso do termo, um neologismo, de
que, durante séculos, o código de ética médica limitou-se fato, foi feita pelo Dr. Van Raessenlaer Potter, oncologista
ao famoso juramento estabelecido pelo histórico médico e humanista da Universidade de Wisconsin, Estados Uni-
grego Hipócrates, onde se lê: “Juro por Apolo, médico, e dos, falecido em 07 de setembro de 2001, em Madison,
Panacea Hígia, a cujo testemunho apelo, que eu, com to- também nos Estados Unidos, aos 90 anos de idade. Potter,
das as minhas forças e com pleno conhecimento cumprirei em 1971, publicou um livro chamado “Bioética: Ponte para

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o Futuro”, no qual expressa sua profunda preocupação com humanizadora já estava sendo defendida por autores como
a interação das questões ambientais e de saúde, combi- André Comte-Sponville20 e reforçada pela posição da Or-
nando suas idéias com as do Professor Aldo Leopold e sua ganização Panamericana de Saúde, que, em 2001, defi-
“Ética da Terra”. Potter afirmou que “Ciência e Ética mar- niu a Bioética de forma mais ampla, incluindo a vida, saú-
cham através de caminhos diferentes, mas paralelos e a de, e ambiente, como suas áreas de reflexão21.
Bioética deve ser a ponte que os une”.
Potter lembrou que, em 1975, já havia alertado
para a dicotomia entre a concepção original de bioética e 3. O EXERCÍCIO MORAL DA
dos eticistas médicos; uma preocupação com o fato de CIRURGIA
que a ética deve estar presente nos limites das observa-
ções biológicas, empíricas e experimentais, e com a ne- Oriundo do grego éthos – conduta, hábito ou
cessidade de se elaborar um sistema de ética capaz de comportamento –, o termo ética designa, em geral, a ci-
promover diretrizes para uma atuação responsável do ser ência da conduta. A palavra humildade, oriunda do latim
humano em relação ao futuro. Potter ainda afirmava en- humilitas, designa a virtude que nos dá o sentimento de
tender a bioética como uma ciência da sobrevivência nossa fraqueza e que informa a atitude do ser humano
humana,e pedia que se pensasse bioética como uma nova consciente dos seus limites. O termo responsabilidade, do
“ciência ética” que combina ‘humildade”, “responsabili- inglês responsability, indica a possibilidade de prever os
dade” e uma competência “interdisciplinar”e “intercultural” efeitos de um comportamento e de corrigi-lo, antes de sua
potencializadora do senso de humanidade11. realização, com base na previsão. A ética, dessa forma,
Esta nova abordagem espalhou-se rapidamente exprime uma preocupação com o resultado final do com-
ao redor do mundo e o governo norte americano formou a p o r t a m e n t o 11.
Comissão Belmont para estabelecer padrões éticos a se- A ética médica, no âmbito da cirurgia, compre-
rem seguidos pela pesquisa científica. Esta comissão apre- ende a integração do paciente cirúrgico, com a natureza
sentou seu relatório em 1978 e estabeleceu os primeiros do cirurgião, influenciada pela sua formação e pelo seu
princípios da Bioética: beneficência, autonomia e justiça, treinamento, pela sua sensibilidade para identificar o que
aos quais, mais tarde, Beauchamp e Childress acrescenta- é certo22. A incorporação da ética na prática da medicina
ram outro: Não maleficência. Nos anos seguintes, a Bioética tem uma longa tradição que começa na Grécia clássica, o
evoluiu e recebeu contribuições de vários autores, tendo Juramento de Hipócrates, que era o referencial ético médi-
sido definido três etapas principais neste processo17. co no Ocidente por muitos séculos, e foi continuado nos
a) A primeira fase chamada de Bioética Ponte, últimos tempos com a Oração Maimonides, do Século XII;
interdisciplinar, utilizada como base para todas as aborda- os padrões éticos do Royal College of Physicians, da In-
gens na tentativa de integrar as ciências da vida, do meio glaterra, em 1543; as normas reguladoras da prática
ambiente, da ecologia e das ciências humanas, no estilo médica no Protomedicato, de Nueva Espana, em 1628; a
Potter. No entanto, sua duração não foi muito longa devi- obra de John Gregory: Observations on the Duties and
do ao desenvolvimento rápido e descontrolado da Offices of a Physician and on the Method of Prosecuting
tecnologia e descobertas na área da saúde; Enquiries in Philosophy, de 1770; o Código de Ética Mé-
b) Na segunda fase, conhecida como Bioética dica do Thomas Percival, de 1806; o Código de Ética da
Global, o professor Potter, em 1988, reiterou as suas idéi- Associação Médica Americana, em 1847, e, finalmente,
as iniciais e, o termo foi mundialmente compreendido como os muitos documentos escritos ao longo do Século XX
uma proposta para incluir todos os aspectos da vida, saúde pelos países, instituições e universidades, destacando em
e ecologia. O professor Tristan Engelhardt manteve o pon- sua ampla aceitação internacional da Declaração de Ge-
to de vista de que a bioética deveria continuar a ser uma nebra, o Código Internacional de Ética Médica, o Código
proposta pluralista. Outros autores, como Alistair Campbell de Nuremberg e a Declaração de Helsinki promulgada
e Solly Benatar entenderam o termo global, não no senti- pela Associação Médica Mundial, na segunda metade
do de incluir a todos, mas uma visão uniforme e consisten- do século passado23.
te em termos mundiais, enquadrada no âmbito do proces- A cirurgia, sem dúvida, é uma invasão e uma a
so de globalização que o mundo estava começando a ex- agressão cruenta ao paciente, talvez uma das maiores
perimentar, ou seja, eles queriam, de alguma forma, esta- demonstrações de como um paciente pode, literalmente,
belecer um único paradigma filosófico para a abordagem entregar a própria vida, nas mãos de um médico, deposi-
das questões morais na área da saúde, o que poderia ser tando nele, toda a sua confiança. A cirurgia tem como
interpretado como uma nova versão do “imperialismo”18; objetivo principal a cura ou, pelo menos, a melhora do
c) A terceira fase começa com o lançamento, paciente, acreditando que, naquele momento, é a me-
pelo próprio Potter, no final de 1998, da Bioética profunda, lhor, se não a única opção terapêutica que permite, na
aceitando a equiparação feita por Peter Whitehouse que medida do humanamente possível, proporcionar a cura de
aplicava a bioética ao conceito de Ecologia Profunda do uma doença com uma atitude, um comportamento profis-
filósofo norueguês Arne Naess 19 . Esta proposta sional consciente e ético24.

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O ético não deve estar apenas no procedimen- as temporárias ou ocasionais. Sem o terrível espectro da
to, no ato cirúrgico propriamente dito ou no que acontece Morte, da Complicação, da Sequela e da Recidiva, seria
em uma sala de operação ou mesmo no exercício da cirur- impossível enfrentar as vicissitudes do difícil caminho do
gia como especialidade. A ética deve estar na vida e con- aperfeiçoamento e do domínio da doença com a finalida-
duta do cirurgião, de forma que todos os atos profissionais de da cura.
e de vida devam ser eticamente válidos, desde o estudo A lição de Claude Bernard, diz: “La vie c’est la
do paciente, a realização de estudos para a investigação mort”, porque morremos a cada instante, à medida que
diagnóstica, a informação do paciente, a obtenção do con- nos aproximamos da morte. Tudo é feito para “estar na
sentimento, o ato cirúrgico, os cuidados pós-operatórios, vida” como instinto de conservação da espécie26. Para os
etc. Na cirurgia, as causas etiológicas (patologia cirúrgica) pacientes como Preceito Ético, conservar a vida é o dever
e efeitos (procedimento cirúrgico), culminam na invasão do médico, que lhe impõe, como selo simbólico, o Jura-
física e real pelo cirurgião, no corpo do paciente; é onde a mento Hipocrático. O cirurgião sabe que o revés existe, o
relação médico-paciente adquire dimensões de alto im- paciente que não admite, até porque Freud explica que a
pacto. O cirurgião é o único que aceita, de forma ética e idéia da própria morte não tem acesso ao nosso inconsci-
responsável, a indicação inegável e necessária de uma ci- ente, só a morte dos outros é admitida. O revés não está
rurgia como resultado da sua capacidade profissional e de no inconsciente do paciente, mas está no inconsciente do
seu comportamento em relação ao paciente, familiares, médico.
colegas, seu meio e especialmente, consigo mesmo25. A conduta na adversidade é científica e técnica
O cirurgião não cuida apenas dos corpos huma- como comportamento, mas como atitude é acima de tudo
nos, trata de pacientes que são seres humanos. Estes pro- Ética3.
curam o cirurgião, porque eles estão sofrendo, sentindo,
pensando e ainda vivenciam, com medo e tristeza, algo 3.2. Os Fantasmas do Cirurgião
que ameaça à sua integridade. Eles têm limitações e im- O cirurgião depois do ato cirúrgico, passado o
potência, buscam ajuda no cirurgião que deve estar prepa- impacto do período da execução, tem com certa frequência,
rado para fornecê-la. A ajuda deve ser prestada com atitu- com uma descontinuidade que se extende pela continui-
des e decisões com significado ético profundo, sem nunca dade de sua arte e de sua profissão o que é denominado
esquecer do livre arbítrio do paciente, ao escolher um de Fantasmas do Cirurgião. É que a cirurgia é Arte que se
médico para resolver os seus problemas; na verdade, um erige sobre a Ciência e que se transmuta em Técnica.
cirurgião não pode nem deve falhar25. Quando alcança os objetivos, fica acessível aos técnicos,
A cirurgia é uma atividade intervencionista de vulgariza-se esquecida dos primórdios quando foi sobretu-
diversas especialidades médicas, baseada no conhecimen- do Arte; é Técnica-Ciência-Arte que se pode atingir com a
to, regida pelo raciocínio e executada com compaixão, penetração no conhecimento e disciplina no exercício; é
paixão, perfeccionismo e bioética. Em sua prática, a satis- Técnica que se aplica ao corpo humano na intenção de
fação e a felicidade do cirurgião projetam uma condição restituir-lhe a harmonia perdida pelo desvio das normalida-
psíquica consoante com o exercício da virtude humana, e des e alteração das funções biológicas. Esta sempre sujeita
isso, de acordo com o preceito aristotélico, é a excelência às imperfeições do homem, ao erro essencial, ao erro ver-
da alma. Os dilemas atuais da bioética são oriundos do dadeiro, ao erro dos mortais. Para a nobre missão de tratar
exercício inadequado da atividade cirúrgica, onde princípi- a vida humana em seus males, o importante é o compor-
os como a distribuição justa dos recursos, a autonomia do tamento diante do erro, a dignidade. A consciência do
paciente cirúrgico e a beneficência da cirurgia sobre a não perigo eventual e do risco previsto está em permanente
maleficência foram resgatados, a fim de integrar o perfil julgamento do próprio médico no espaço impenetrável de
atual do cirurgião virtuoso. sua liberdade de confrontar o certo e o errado; é nele que
a liberdade absoluta de julgar compõem o primeiro tribu-
3.1. Os Quatro Gigantes da alma do ci- nal do ato médico. Tudo isso é íntimo e ético; o que sobra
rurgião é a alternativa da Consciência Ética ou do Remorso com
Todas as operações despertam na alma do cirur- amargura. A Ética é o único padrão que independe de
gião os “Quatro Gigantes” que desfilam no painel invisível uma circunstância episódica que é moral social, temporal
da mente: a Morte, a Complicação, a Sequela e a Recidi- e mutável. O pensamento ético jamais poderá apartar-se
va. É impossível afastar o trágico que assume o pensamen- de sua própria essência, espécie de superego, matizado
to como vigilante; é o subjetivo que vive no recôndito do pelas conveniências de cada um, mas presente e vigilante
Psique, que adverte, conscientiza, torna o cirurgião res- no comportamento geral e nas atitudes particulares.
ponsável. Os Quatro Gigantes de aparecimento presuntivo Torna-se presente, na sua particularidade, na sua
acabam por se tornarem verdadeiros mandamentos da objetividade e na sua concretização em cada ato, mas ori-
natureza ética pelo que representam como advertência e ginário inconfundível do geral, do subjetivo e do abstrato
norma de cautela a ser seguida, independentemente de que são as formas essenciais que compõem a globalidade
qualquer dificuldade ou contingência ligada à circunstânci- do que é Ético3.

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4. ÉTICA MÉDICA VERSUS atividade cerebral ou limitar-se ao tronco encefálico, a ati-


BIOÉTICA ? vidade cortical, etc. Desses dilemas, há muitas e diferen-
tes posturas e fundamentações, mas o que é intrigante é a
Todos os médicos têm conhecimento que a prá- falta habitual,e nesse campo amplo de exceções
tica da medicina atual envolve muitos dilemas bioéticos, justificadas, de motivos ético-biomédicas da necessidade
oriundos do desenvolvimento de novas tecnologias e no- obrigatória de diagnosticá-la16.
vos procedimentos, que implicaram no surgimento de uma De qualquer maneira, o que deve ser o ponto
maior reflexão ética para tomada de qualquer decisão. É fundamental das discussões bioéticas são os motivos para
essencial, então, a presença da bioética no histórico esco- a necessidade de diagnosticar a morte encefálica, porque
lar das Faculdades de Medicina, e a atualização de Bioética o dilema, neste caso, é na definição conceitual de
aos médicos praticantes27. Para aumentar a importância presumíveis diferenças entre Indivíduo, Ser e Pessoa, tor-
da bioética na prática diária da medicina, José Alberto nando-se necessário propor uma análise mais profunda de
Mainetti afirma justamente: “O caduceu, o estetoscópio e várias visões filosóficas, na escolha entre quem sobrevive e
a dupla hélice do código da vida são símbolos da transfor- quem morre, os fundamentos e as causas dessa seleção (e
mação e síntese da medicina em chave humanística. A quem decide).
concepção pós-moderna das chamadas ciências da arte O objetivo teórico da Ética Biomédica, não é
da cura, apresentam um novo instrumento, o ethoscopio, converter-se em um mediador de procedimentos, com um
o visor dos valores, para olhar o axiograma nas relações suporte cuja legitimidade está em discussão, mas não a
médico-paciente e da medicina social”28. sua legalidade, pois seria sustentada apenas pelas bases
A Bioética como uma das muitas microéticas, jurídicas. A bioética é teoricamente baseada na ética e
tem uma série de éticas biomédicas alternativas coerentes deveria conter cada uma de nossas ações cotidianas, pos-
com a visão ética que a sustenta, e, mesmo assim, são suir uma escala de valores hierárquicos e, ter possibilida-
possíveis várias opções para os dilemas de acordo com seus des para formular e decidir dilemas, sempre, e em princí-
princípios prioritários (autonomia, caridade, equidade etc.). pio, com base na bondade ou maldade de cada ação, e
O papel da bioética não é explicar e induzir comportamen- não na sua conveniência22.
tos, mas esclarecer os fundamentos que aprovam ou não Deste ponto de vista, não deve haver uma ética
essas decisões e essas condutas21. pragmática. No entanto, como é atualmente concebida, a
As bases da Bioética devem ser aplicadas para Bioética parece manter uma dependência com a política, com
os problemas morais, que definem os seus limites que, a economia e com as políticas sanitárias mais com que a
certamente, não são econômicos nem legais. Se a bioética moral. Se a Bioética simplesmente limita-se a responder de
tivesse às abordagens técnicas, tais como o jurídico ou eco- forma mais ou menos mecânica aos dilemas, os converte
nômico, poderia estar limitada a aplicar mecanicamente o simplesmente em fórmulas inflexíveis, em receitas.
que está legislado, o que um juiz ordena, ou estar determi- Pelos grandes interesses, é evidente, que nada
nada pelas regras de uma política de saúde ou orçamentá- poderá impedir o auge da bioengenharia embrionária huma-
ria29. Em ambos os casos, o médico estará livre de diver- na, e até a mesmo a clonagem; acredita-se que ninguém
gências, pois não tem opções selecionáveis. Se nos referir- poderá deter a expansão deste processo, mas a pergunta que
mos pontualmente a uma questão médica abordada a partir devemos formular neste âmbito é se a bioengenharia embri-
de uma base técnica, a noção de um diagnóstico de morte onária e a clonagem humana são atividades éticas. Por outro
encefálica é definida, por décadas, por necessidade. De lado, se esses fatos não podem ser interrompidos, a Bioética
um ponto de vista, é certamente um problema técnico deve impor modificações nos seus valores que justifiquem e
imediato, que se refere à metodologia aplicada para fazer permitam estes avanços tecnológicos. Até onde é necessário
um diagnóstico correto ou o critério adotado para sua defi- e se pode flexibilizar as regras e os valores humanos, e até
nição, este pode ser considerado como a total ausência de que ponto fazê-los é moral?

A B S T R A C T

The professional practice of medicine today has a strong biological approach due to the increasing specialization of medical science.
Often, science itself does not help to address and resolve a particular situation of a medical professional, and this is where human and
social sciences, and especially other disciplines such as bioethics, can give a more humane and socialist approach, by systematically
studying human behavior in the field of life and health sciences, considering moral values and principles. As part of this study, the
segment that is limited to the analysis of ethical conflicts arising from the practice of medicine and patient care is known as medical
ethics. Medical ethics, in the context of surgery, involves the integration of the surgical patient with the nature of the surgeon,
influenced by his training and experience, his sensitivity to identify what is right. Ethics should not only be in the procedure, the
surgery itself or in what happens in an operating room or even in the exercise of surgery as a specialty. Ethics must be in the life and
conduct of the surgeon, so that all life and professional acts should be ethically valid.

words: Ethics, medical. Bioethics. Surgery.


Key words

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