A MÁGOA COMO PAIXÃO PARALISANTE EM GILLES DELEUZE
Robson de Sousa Moraes1
[email protected]Resumo:
Este artigo propõe uma investigação filosófica sobre a mágoa a partir da obra de
Gilles Deleuze, articulando-a com as tradições éticas de Baruch Spinoza e
Friedrich Nietzsche. Longe de ser apenas um sentimento psicológico, a mágoa
é analisada como uma paixão triste, paralisante e reativa, que atua sobre o
corpo, a linguagem e o tempo, bloqueando a potência de agir do sujeito. Com
base em conceitos como afecção, ressentimento, acontecimento e linha de fuga,
o trabalho mostra como a mágoa funciona como operador de captura subjetiva
e política, impedindo a variação e a criação de novos modos de vida. A partir de
uma leitura crítica e afirmativa da filosofia deleuziana, o artigo propõe a
superação da mágoa por meio de uma ética da alegria ativa, da experimentação
existencial e da afirmação do devir como potência de transformação. Trata-se de
um esforço por deslocar a mágoa de seu lugar central na subjetividade
contemporânea, e reconfigurá-la como ponto de passagem para novas
possibilidades de existência.
Palavras-chave:
mágoa; afeto; Gilles Deleuze; Spinoza; ética da alegria.
Introdução:
A mágoa, como afeto duradouro de dor, ferida e recusa, é um dos afetos mais
comuns e silenciosos da existência humana. Embora raramente tematizada
diretamente pelos sistemas filosóficos clássicos, a mágoa representa um ponto
de condensação entre a dor moral, o sofrimento psíquico e a paralisia do desejo.
No campo da filosofia contemporânea, poucos pensadores enfrentaram os
afetos com tanta radicalidade quanto Gilles Deleuze, cuja obra se propôs a
liberar o pensamento da interioridade melancólica e da moral dos
ressentimentos. Este artigo tem por objetivo investigar a noção de mágoa a partir
1
Geógrafo, Docente na Universidade Estadual de Goiás – Campus Cora Coralina; Membro da Associação
dos Geógrafos Brasileiros (AGB – Seção Cidade de Goiás).
da filosofia de Deleuze, em especial por meio de sua leitura de Baruch Spinoza,
Friedrich Nietzsche e sua articulação com a clínica e a política.
A mágoa será tratada aqui como uma paixão triste, no sentido spinozista, ou
seja, um afeto que diminui a potência de agir do corpo e da mente. Em Ética
(SPINOZA, 2009), a tristeza é um movimento que reduz a força vital, e quando
fixada na memória, associada à representação de um agente externo causador
da dor, ela se cristaliza em formas como o ressentimento, o ódio, a vingança ou,
como se pretende mostrar neste trabalho, a mágoa. Deleuze, ao retomar
Spinoza, propõe uma filosofia dos afetos centrada não na moral, mas na
cartografia das forças que atravessam o corpo. A mágoa, nesse sentido, surge
como uma espécie de “afeto paralisante”, resultado de um encontro que, ao invés
de aumentar nossa capacidade de existir, nos aprisiona numa repetição do
trauma e da impotência.
Além de Spinoza, a análise será aprofundada a partir da leitura deleuziana de
Nietzsche. Em Nietzsche e a Filosofia (DELEUZE, 2006), Deleuze identifica no
ressentimento uma lógica reativa que constitui a base de uma moral da mágoa
e da culpa. A mágoa, longe de ser apenas um sentimento individual, pode tornar-
se força coletiva que estrutura discursos, identidades e políticas baseadas na
negação da vida e na conservação do sofrimento. Deleuze nos oferece, portanto,
um caminho ético-político de superação da mágoa: não pelo esquecimento, mas
pela criação de novos modos de existência que deslocam o sujeito da lógica da
repetição para a da afirmação.
Este artigo está dividido em seis reflexões, além desta introdução e da
conclusão. Na primeira reflexão, discutiremos a noção de mágoa em sua
dimensão existencial e afetiva, distinguindo-a de outros afetos como o
ressentimento, o ódio e a tristeza. No segunda reflexão, analisaremos como a
mágoa se constitui como paixão triste em Spinoza, e como Deleuze reinterpreta
essa tradição afetiva em chave prática. Na terceira reflexão, abordaremos a
genealogia da moral em Nietzsche, compreendendo como a mágoa participa da
estruturação de subjetividades reativas. Na quarta reflexão, exploraremos os
efeitos psíquicos - sociais da mágoa, com base na obra Lógica do Sentido,
articulando a dor ao paradoxo da linguagem e do corpo afetado. Na quinta
reflexão, trataremos das implicações políticas da mágoa, discutindo a
possibilidade de sua superação por meio da criação de linhas de fuga. Na sexta
reflexão, proporemos uma leitura da mágoa à luz da ética deleuziana da alegria
e da potência, destacando o papel da experimentação e da criação de novos
modos de vida como saída para os afetos paralisantes.
Por fim, este texto pretende contribuir para uma compreensão mais ampla da
mágoa não como categoria psicológica ou moral, mas como afetividade política,
implicada em modos de existência que podem ser transformados por práticas
ético-estéticas do viver. Ao invés de buscar o apagamento da mágoa, o percurso
deleuziano aponta para a sua transmutação: o ato de converter a dor que isola
em força que compõe, em ato que afirma.
A mágoa como afeto: entre tristeza, paralisia e repetição.
A mágoa é uma daquelas experiências afetivas que, embora profundamente
enraizadas na vivência cotidiana, raramente são tematizadas em profundidade
no pensamento filosófico. Mesmo nas tradições em que os afetos ocupam papel
central, como na filosofia moderna de Baruch Spinoza ou na genealogia da moral
em Friedrich Nietzsche, a mágoa não aparece nomeada diretamente. No
entanto, ela habita o cruzamento entre o que Spinoza chama de paixões tristes,
afetos que diminuem nossa potência de existir e o que Nietzsche nomeia como
ressentimento, uma moral da impotência e da fixação na dor. Gilles Deleuze, ao
retomar e atualizar os dois autores, oferece instrumentos conceituais potentes
para pensar a mágoa como um afeto paralisante, cuja lógica não é apenas
psicológica, mas política e ontológica. Propõe-se compreender a mágoa como
forma específica de afecção, marcada pela passividade, pela repetição e pela
fixação em um acontecimento ferido, e investigar seus efeitos subjetivos e
coletivos à luz da filosofia deleuziana.
A mágoa não é uma dor qualquer. Não é a dor súbita da perda imediata,
tampouco o ódio que irrompe como reação ativa à injustiça. A mágoa é, ao
contrário, a dor que se instala, que se retém, que se deixa sedimentar nas dobras
da memória e do corpo. É uma forma de sofrimento que não se atualiza como
ato, mas que permanece como afeto que retorna. Esse retorno não é exatamente
voluntário: ele acontece nas pausas, nos silêncios, nos gestos que tocam,
mesmo sem querer, na lembrança do que machucou. A mágoa é a permanência
do acontecimento em sua dimensão afetiva: não como fato, mas como ferida.
Por isso, ela não se resolve por explicações ou racionalizações, pois atua abaixo
da razão, no plano daquilo que Deleuze (1992) chama de signos afetivos, signos
que nos afetam mais do que nos informam, que nos ferem mais do que nos
explicam.
É nesse ponto que a leitura de Spinoza, feita por Deleuze em Spinoza – Filosofia
Prática, torna-se fecunda. Spinoza concebe os afetos como variações na
potência de agir do corpo e da mente. A tristeza, em particular, é definida como
a passagem de um estado de maior potência para um de menor potência, ou
seja, uma diminuição da capacidade de existir, de afirmar-se, de compor com o
mundo. Essa tristeza pode ser momentânea ou duradoura. Quando fixada, ela
se torna uma paixão crônica, uma espécie de afecção melancólica que impede
a transição para modos mais ativos de vida. A mágoa, sob essa perspectiva,
pode ser lida como uma forma cristalizada de tristeza, uma tristeza que não é
superada, que se converte em estado passivo permanente. Ao contrário do luto
que se elabora e permite reinvestimentos afetivos, a mágoa é o luto que não
cessa, que permanece em suspensão.
Os afetos não são bons ou maus em si, mas em relação à sua capacidade de
aumentar ou diminuir nossa potência de existir (MORAES, 2025). Nesse sentido,
a mágoa seria um afeto reativo, por excelência. Ela não move o sujeito à criação,
à composição ou ao encontro, mas o retém numa cena interna repetida, na qual
ele é, simultaneamente, vítima, espectador e narrador. É como se o
acontecimento que a originou, uma traição, uma exclusão, uma humilhação
fosse permanentemente revivido, mas nunca ultrapassado. E essa repetição não
é sem consequências: ela ocupa espaço psíquico, diminui a capacidade de criar,
e gera corpos cada vez menos disponíveis à experimentação. Assim como o
ressentimento, a mágoa é uma paixão do tempo paralisado.
No entanto, se o ressentimento, como mostra Nietzsche (2006), é uma forma de
revanche moral, um modo de transformar a dor em superioridade simbólica
frente ao outro, a mágoa é ainda mais silenciosa. O ressentido acusa e constrói
valores; o magoado recua, isola-se, adoece em silêncio. O ressentimento
constrói um tribunal; a mágoa ergue um túmulo. Mas ambos operam a partir de
uma mesma lógica: a da impotência diante de um acontecimento que não se
pode modificar. No caso do ressentido, essa impotência se converte em
acusação e em moral. No caso do magoado, ela se converte em retração, em
fechamento afetivo, em repetição da dor.
Há também um vínculo profundo entre mágoa e memória. Deleuze, ao ler Proust,
sugere que há uma memória involuntária que se diferencia radicalmente da
memória racional ou voluntária. A mágoa habita essa memória involuntária: ela
emerge de forma imprevisível, ativada por um cheiro, um nome, uma frase ou
um tom de voz. Não se trata de lembrar racionalmente do que se passou, mas
de reviver, em carne e afeto, a experiência da ferida. É por isso que a mágoa
não se dissolve com o tempo cronológico, pois, seu tempo é o da repetição, não
o da sucessão. O tempo da mágoa é circular: ela retorna ao ponto de origem
sempre que há um novo disparador afetivo.
Essa temporalidade circular é o que impede a elaboração. O tempo da mágoa é
incompatível com o devir, com o acontecimento, com a variação. Em Deleuze, o
devir é o tempo da criação, da experimentação, da metamorfose. O sujeito que
se deixa atravessar pelos devires está sempre em movimento, sempre em
composição com outras forças, abrindo-se a encontros que o deslocam. A
mágoa, ao contrário, é o efeito de um encontro ruim que se fixou. O magoado
evita o novo por medo de repetir a dor. Ele se blinda, mas paga por essa
blindagem com a perda da variação. O sujeito magoado não deseja mais: ele
espera não ser ferido novamente.
É por isso que Deleuze insiste tanto na necessidade de liberar os corpos dos
afetos tristes. Em Nietzsche e a Filosofia, ele afirma que “os afetos tristes são a
arma da reatividade” (DELEUZE, 2006, p. 64). Eles mantêm o sujeito num estado
de reação, nunca de ação. A mágoa, portanto, é menos um sentimento do
passado do que uma condição presente de impotência. Enquanto ela persistir, a
vida será redução, repetição e retraimento. Superar a mágoa, nesse sentido, não
significa esquecê-la, mas sim transforma-la: fazer com que ela deixe de ser
prisão para tornar-se linha de fuga.
Essa transmutação exige um outro modo de pensamento, um pensamento que
não parte da identidade, da culpa ou do juízo, mas da experimentação, do desejo
e da composição. Essa é a tarefa ética que Deleuze propõe: não uma filosofia
da reconciliação ou do perdão, mas uma filosofia do encontro e da variação. A
mágoa, enquanto afeto triste fixado, é precisamente aquilo que bloqueia os
encontros. Ela precisa ser deslocada não por negação, mas por superação
(MORAES, 2025).
Compreender a mágoa, portanto, é compreender uma lógica de funcionamento
do desejo aprisionado, da memória como campo de batalha e do corpo como
arquivo de feridas. Ela não é apenas individual: pode se tornar coletiva, histórica,
transgeracional. A mágoa dos povos colonizados, das minorias excluídas, das
vidas precárias, tudo isso pode ser lido à luz de uma teoria dos afetos (MORAES,
2025) que reconhece a dor sem congelá-la. O desafio é não negar a mágoa, mas
recusar sua eternização. Deleuze nos oferece, para isso, as ferramentas de uma
filosofia afirmativa, cujo gesto mais radical é transformar a dor em criação.
A mágoa como paixão triste: Spinoza e sua reinvenção por Deleuze
A mágoa, entendida como uma forma de tristeza persistente e paralisante, pode
ser inscrita, com rigor filosófico, na tradição da filosofia dos afetos inaugurada
por Baruch Spinoza. A partir da Ética, Spinoza propõe uma ruptura com a
concepção cartesiana da mente como substância autônoma e racionalmente
soberana. Ao contrário, ele concebe a mente como a ideia do corpo, de tal modo
que toda afecção do corpo é também uma modificação da mente. Os afetos são,
para Spinoza, modos de ser do corpo e da mente, e sua análise exige uma
compreensão ontológica e prática da existência. É nesse contexto que as
chamadas paixões tristes, entre elas a tristeza, o ódio, o medo e, por extensão,
a mágoa ,surgem como objetos centrais de uma filosofia que visa à libertação do
sujeito por meio do aumento de sua potência de agir.
De acordo com Spinoza (2009), os afetos podem ser classificados em ativos e
passivos, conforme o grau de autonomia que o sujeito possui em relação às
causas que o afetam. Quando a causa de um afeto está fora de nós, isto é,
quando somos afetados por algo externo cuja natureza desconhecemos ou não
dominamos, o afeto é passivo. Trata-se, nesse caso, de uma paixão. Por outro
lado, quando somos a causa adequada de uma afecção, estamos diante de uma
ação, de um afeto ativo. A mágoa se inscreve claramente no primeiro caso: ela
é uma paixão na medida em que depende de um acontecimento passado,
geralmente atribuído a outro sujeito, e cuja dor permanece sem ser reelaborada.
A mágoa, neste quadro, aparece como uma tristeza associada a uma
representação duradoura. Spinoza define a tristeza como a transição de um
estado de maior para um estado de menor perfeição, ou seja, de diminuição da
potência de agir. A mágoa seria, portanto, uma tristeza que se fixa e que retorna,
reiteradamente, pela imaginação. Esse retorno está relacionado ao que Spinoza
chama de ideias inadequadas: representações parciais, confusas, que não
expressam a realidade de maneira clara e distinta, e que por isso permanecem
envoltas em afecção passiva. Quando a mágoa se instala, o sujeito não
compreende adequadamente as causas do que sente, e por isso permanece à
mercê das imagens do passado, das dores vividas, das perdas não elaboradas.
Para Spinoza, libertar-se das paixões tristes é uma tarefa ética e política. A
liberdade consiste, em seu pensamento, não na ausência de determinações,
mas na passagem da paixão à ação, da tristeza à alegria, da impotência à
potência. Isso não se faz por meio da repressão ou da negação dos afetos, mas
por meio do conhecimento adequado das causas. A mágoa, por conseguinte, só
pode ser superada se for compreendida como afeto resultante de um encontro
que diminuiu a potência do corpo e essa compreensão deve ser acompanhada
de um trabalho ativo de transformação.
É nesse ponto que Gilles Deleuze realiza uma leitura profundamente criativa de
Spinoza. Para Deleuze, Spinoza é “o Cristo da filosofia”, aquele que
compreendeu o corpo e os afetos como campos de experimentação e
composição. Em Spinoza – Filosofia Prática, Deleuze (2002) propõe uma
cartografia dos afetos que não visa a sua moralização, mas sim a sua análise
em termos de potência: o que um corpo pode? Em que medida um afeto me
aproxima de mim mesmo, ou me afasta de mim? A mágoa, nessa cartografia,
seria um afeto que “trava” o corpo, que impede o pensamento de circular, que
reduz as conexões possíveis. Ela é, como o ressentimento, uma paixão triste
que precisa ser desativada, não por negação, mas por superação compositiva.
Deleuze recusa a ideia de que os afetos negativos devam ser eliminados por
uma via racionalista tradicional. Ele não propõe o domínio da razão sobre a
emoção, mas uma reconexão com a potência do corpo. A mágoa, nesse sentido,
não é vencida por um imperativo racional, mas por meio da produção de novos
encontros, de novas imagens, de novas relações. “Só outro afeto pode vencer
um afeto”, afirma Spinoza (2009), e Deleuze assume essa afirmação como chave
metodológica. Superar a mágoa, então, exige a criação de condições para que
outros afetos, mais ativos, mais afirmativos.possam emergir.
No entanto, Deleuze não se limita a repetir Spinoza. Ele o reinventa a partir de
uma ética do devir. Para Spinoza, a liberdade está associada à aquisição de
ideias adequadas; para Deleuze, ela é também uma questão de criação, de
invenção de modos de existência. Em seu diálogo com Nietzsche, Deleuze
acentua o aspecto produtivo da vida: não basta compreender, é preciso criar. A
mágoa, que em Spinoza é uma paixão causada por ideias inadequadas, torna-
se, em Deleuze, um entrave ao devir. O sujeito magoado é aquele que não
consegue devir, que não consegue se transformar, que está preso a uma forma
fixa, a uma dor fixa, a uma imagem fixa.
Essa concepção tem implicações políticas importantes. A mágoa não é apenas
um problema individual: ela pode se tornar uma condição coletiva, uma forma de
subjetivação política. Populações inteiras podem ser mantidas em estado de
mágoa: povos colonizados, comunidades humilhadas, grupos minoritários
marcados pela exclusão e pela violência simbólica. A mágoa, nesse contexto, é
uma estratégia de dominação: manter os corpos tristes, envergonhados,
culpados, paralisados. Deleuze, ao lado de Guattari, denuncia esse processo em
Mil Platôs (2005), quando afirma que “os aparelhos de captura operam pelos
afetos tristes”.
Mas se a mágoa é uma forma de aprisionamento afetivo, ela também pode ser
ponto de partida para a reinvenção. Deleuze propõe uma ética afirmativa,
baseada na experimentação de novos modos de existência. Isso exige a
construção de agenciamentos que possibilitem a emergência de afetos alegres,
aqueles que aumentam nossa potência de agir. A superação da mágoa, nesse
sentido, não é um processo de cura no sentido terapêutico tradicional, mas um
deslocamento ético-político. O magoado não deve buscar reconciliação com o
passado, mas abrir-se a outros encontros, a outros corpos, a outras formas de
vida.
Para Spinoza, toda ética é ontologia. Isso significa que a questão não é “o que é
certo ou errado?”, mas “o que aumenta ou diminui minha potência?”. A mágoa,
como afeto que diminui, é eticamente negativa, não moralmente, mas
ontologicamente. Em Deleuze, essa dimensão se intensifica: a mágoa não
apenas diminui a potência, ela cristaliza formas de subjetivação que impedem o
pensamento e a criação. O desafio, então, é encontrar linhas de fuga: meios
pelos quais se possa escapar da repetição do mesmo, do retorno da ferida, da
memória paralisante.
Em síntese, a mágoa, sob a ótica de Spinoza e Deleuze, é um afeto que bloqueia
a ação, que prende o corpo e a mente num circuito fechado de tristeza. Ela é o
resultado de encontros ruins, de conexões que nos diminuem, de imagens que
nos fixam em versões empobrecidas de nós mesmos. Mas ela não é um destino:
ela pode ser transformada, atravessada, deslocada. Para isso, é preciso
compreender suas causas, como propõe Spinoza, e, mais ainda, criar novas
formas de vida, como propõe Deleuze. Só assim será possível sair da lógica da
mágoa e entrar na lógica da potência: não a potência do controle, mas a potência
do encontro, da variação e do devir.
A mágoa como motor da moral: Nietzsche, Deleuze e a gênese da
subjetividade reativa
A compreensão da mágoa como um afeto que se cristaliza e paralisa o devir
exige, além da ontologia dos afetos de Spinoza, um mergulho genealógico na
constituição histórica da subjetividade moderna. Nesse sentido, a filosofia de
Friedrich Nietzsche, especialmente a elaborada em Genealogia da Moral,
oferece uma chave decisiva para pensar a mágoa não apenas como um estado
afetivo individual, mas como um dispositivo de produção de subjetividades
marcadas pela culpa, pelo ressentimento e pela moral da impotência. Gilles
Deleuze, em sua leitura inovadora de Nietzsche, vai radicalizar essa
interpretação, propondo que os afetos tristes, como a mágoa, são peças centrais
na montagem de um regime de forças reativo e niilista, que constitui o que
chamamos de “sujeito”. Tentaremos compreender como a mágoa participa da
constituição da moral e da subjetividade reativa, tornando-se, ao lado do
ressentimento, uma das paixões fundamentais da obediência, do julgamento e
da negação da vida.
Em Genealogia da Moral, Nietzsche (2006) investiga as origens históricas e
afetivas dos valores morais. Ele rejeita qualquer fundamento absoluto da moral,
e propõe que os valores, especialmente os valores do bem e do mal, são
produtos de conflitos de forças. A moral, para Nietzsche, é o resultado de uma
luta entre duas formas de avaliação: a moral dos senhores, afirmativa e vital, e
a moral dos escravos, reativa e ressentida. O surgimento da moral do
ressentimento ocorre quando os fracos, impossibilitados de agir diretamente
sobre os fortes, internalizam sua impotência e a transformam em julgamento. O
que antes era objeto de admiração, força, liberdade, potência, passa a ser
nomeado como mal, enquanto a passividade, a humildade e o sofrimento
passam a ser valorizados como bens morais.
A mágoa se insere neste processo como um afeto que prepara o terreno para o
ressentimento. Enquanto o ressentimento é uma estrutura organizada de
resposta à impotência, a mágoa é o estado anterior, mais difuso, mais afetivo,
da dor que não pode ser exteriorizada. É a mágoa que inicia o processo de
interiorização, que cria o cenário da dor repetida, da ferida simbólica não
cicatrizada. A mágoa, nesse sentido, é o solo afetivo sobre o qual se constrói a
moral do ressentimento. Ela contém uma dor que não encontra ação e que, por
isso, se volta contra o próprio sujeito ou mais precisamente, contra a imagem do
outro em sua memória. É uma forma de sofrimento cuja causa permanece viva
pela repetição psíquica, e que impede o esquecimento, condição que Nietzsche
identifica como essencial para a saúde.
Deleuze (2006), ao interpretar Nietzsche, insiste que a genealogia da moral não
é uma análise psicológica, mas uma crítica ontológica da formação dos valores.
Ele destaca que o ressentimento não é um simples sentimento de revanche, mas
uma força de reatividade que se apodera da vida e a impede de afirmar-se. O
ressentido, segundo Deleuze, não quer mais destruir o outro, mas submetê-lo ao
julgamento moral, perpetuar a dívida e a culpa. A mágoa é, portanto, um modo
de preparação dessa lógica: ela cultiva a memória do dano, reencena a dor e
inicia a subjetivação pela dor.
Um dos conceitos centrais dessa crítica é o da interiorização da força. Nietzsche
observa que, diante da impossibilidade de descarregar suas forças para fora,
como faz o nobre ou o senhor, o sujeito reativo volta-se contra si mesmo. Surge,
então, o “animal de consciência”, o ser que julga a si mesmo, que guarda
mágoas, que cultiva sua dor como identidade. A mágoa é o primeiro estágio
desse processo de subjetivação pela dor. Ela fixa o acontecimento traumático,
transforma-o em imagem permanente, em narrativa identitária. É na mágoa que
o sujeito aprende a dizer “eu fui ferido” e a repetir essa afirmação como
fundamento de sua existência.
Nesse sentido, a mágoa não é apenas um afeto triste, mas um dispositivo de
captura da memória e do corpo. O sujeito magoado é aquele que vive sob o signo
de um passado que não cessa de retornar. Essa insistência do passado bloqueia
o devir, pois impede a abertura ao novo. A mágoa funciona como uma máquina
de repetição, onde o sofrimento é reciclado, reorganizado e constantemente
reencenado. Deleuze, ao dialogar com essa lógica, propõe uma fuga: romper
com a repetição da mágoa exige não o apagamento da memória, mas a sua
transmutação, fazer com que a memória não seja prisão, mas potência de
invenção.
A moral do ressentimento, para Nietzsche, é também uma moral da dívida. O
sujeito ressentido transforma sua dor em acusação, mas também em culpa. Ele
não apenas julga o outro, mas também se julga, pois o ressentimento precisa de
um sistema de equivalência entre dano e compensação. A mágoa, enquanto
ferida, é o testemunho dessa dívida. Ela exige compensação, reconhecimento,
reparação. No entanto, como essa compensação nunca é suficiente, a mágoa
se perpetua. Deleuze, ao enfatizar essa lógica, propõe uma crítica ao “paradigma
da compensação” e sugere que a vida não se equilibra por equivalências, mas
por intensidades. A mágoa, ao insistir na medida da dor, impede a emergência
do imprevisível, da diferença, do encontro.
O que está em jogo, portanto, é a constituição de um tipo de subjetividade
paralisada, que se estrutura em torno da mágoa. Essa subjetividade é marcada
por uma economia afetiva negativa, pela constante atualização da dor como
núcleo de identidade. O sujeito magoado é aquele que responde à vida com
cautela, que evita os encontros, que teme o novo por antecipação da ferida.
Como afirma Deleuze, “não é possível criar a partir de afetos tristes” (2006, p.
85). A criação exige um corpo disponível à variação, à abertura, ao devir, udo o
que a mágoa inibe.
Esse diagnóstico tem implicações políticas profundas. Quando a mágoa é
capturada por discursos institucionais, sejam eles religiosos, jurídicos ou
terapêuticos, ela pode ser funcionalizada como forma de controle. O poder
moderno, como analisa Foucault (2008), não se exerce apenas pela repressão,
mas pela produção de subjetividades dóceis, sensíveis à culpa, à dívida, à
inadequação. A mágoa, nesse contexto, é uma das ferramentas mais eficazes
de docilização do sujeito. Ao manter o indivíduo preso a sua dor, o impede de
desejar, de afirmar, de lutar.
Entretanto, Deleuze insiste que há saídas. A mágoa pode ser atravessada por
uma ética da criação, que não busca apagar o passado, mas conectar-se a
outros fluxos de vida. Isso exige não apenas a crítica da mágoa enquanto afeto,
mas a desmontagem dos dispositivos sociais que a mantêm. Como afirma
Deleuze, “só se pode combater um poder ao inventar novos modos de existir”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 170). A luta contra a mágoa não é interior, mas
coletiva, micropolítica, e exige a criação de espaços onde a vida não seja
reduzida à repetição da dor.
Em suma, a mágoa, à luz da genealogia nietzschiana e da leitura de Deleuze, é
mais do que um sentimento: é um elemento ativo na constituição de
subjetividades reativas e de sistemas de poder. Ela prepara o terreno para o
ressentimento, fixa o sujeito na dor, e alimenta a moral da compensação e da
dívida. Romper com a mágoa é, portanto, uma tarefa ética e política, que exige
ultrapassar a lógica da ferida e adentrar a lógica do devir, não como negação da
dor, mas como reinvenção da existência.
A mágoa como dobra do sentido: corpo, linguagem e repetição em Deleuze.
Se nas reflexões anteriores buscamos compreender a mágoa enquanto afeto
paralisante a partir da tradição spinozista e da genealogia nietzschiana da moral,
procuraremos agora uma abordagem mais ontológica, centrada na análise de
Lógica do Sentido, obra em que Deleuze (2006) articula filosofia, literatura,
psicanálise e lógica para pensar a produção do sentido como acontecimento. A
mágoa será tratada como um fenômeno que se inscreve na dobra entre corpo e
linguagem, entre acontecimento e enunciação, entre passado e presente. Em
vez de tomar a mágoa apenas como um sentimento moral ou psíquico, propõe-
se analisá-la como uma forma de repetição traumática, que habita o plano do
sentido e da existência, afetando diretamente a subjetividade e a capacidade de
criação.
Em Lógica do Sentido, Deleuze parte de uma constatação fundamental: o
sentido não é algo dado, mas produzido no encontro entre a superfície da
linguagem e a profundidade dos corpos. A linguagem, para Deleuze, não é um
espelho do mundo, mas um campo de forças, um plano de expressão que
envolve deslocamentos, paradoxos e bifurcações. O sentido, portanto, não é a
representação de algo, mas o efeito de uma articulação entre signos e corpos.
Essa concepção se aproxima da clínica, pois os sintomas, como os afetos, não
dizem respeito a conteúdos ocultos a serem desvelados, mas a modos de
funcionamento do desejo, da memória e do corpo.
A mágoa, nesse contexto, pode ser pensada como uma produção de sentido
fixada em uma repetição de sofrimento, um acontecimento que não cessa de
retornar como falha, como marca, como silêncio ou como excesso. Trata-se de
um tipo de sentido que não circula, que não se esgota, que não se dissolve na
cadeia significante. A mágoa insiste, e sua insistência é sintomática: ela indica
uma interrupção no fluxo do desejo, uma condensação temporal que impede a
ultrapassagem do acontecimento. A mágoa, nesse sentido, é o que resta de um
acontecimento mal incorporado, mal vivido, que permanece como resto, como
ruído, como dobra mal resolvida.
A relação entre mágoa e linguagem aparece aqui de forma crucial. O sujeito
magoado, muitas vezes, não consegue dizer o que sente. Sua dor escapa à
nomeação, ou, quando é nomeada, já aparece distorcida, condensada,
deslocada. A mágoa, como afeto enrijecido, costuma habitar as entrelinhas, os
silêncios, os gestos interrompidos, as palavras não ditas. Em termos
deleuzianos, ela é uma produção de sentido que não se resolve no significante,
mas que se apresenta como efeito do acontecimento sobre o corpo. O sujeito
magoado vive em um tempo em que o passado não se conclui, e por isso retorna
no presente como falha de linguagem.
Essa falha, no entanto, não é ausência, mas excesso. A mágoa é, muitas vezes,
um dizer demais, um dizer repetido, mastigado, retornado em forma de lamento
ou acusação. Não se trata, portanto, apenas de silêncio, mas de uma linguagem
que gira em torno de um centro ausente, de um sentido que não se fixa. Essa
ambivalência, entre silêncio e excesso, é constitutiva da mágoa. Ela não é uma
ausência de sentido, mas um sentido insuportável, que fere, que corta, que
divide. Deleuze, ao pensar o acontecimento como aquilo que não se esgota na
atualidade, abre espaço para essa concepção de mágoa como “acontecimento
que insiste”, como sentido que se recusa a passar.
Nesse ponto, a articulação com a clínica se torna mais clara. A mágoa se
aproxima da estrutura do trauma, mas não o trauma clássico da psicanálise,
entendido como cena reprimida e passível de rememoração. A mágoa, em
Deleuze, é mais próxima daquilo que ele, ao lado de Guattari, chamará de
“bloqueio do desejo” ou de “sintoma maquínico”: uma condensação de forças
que afeta o corpo e o pensamento, mas que não pode ser traduzida
simbolicamente sem perda. Por isso, ela escapa à análise interpretativa,
exigindo outro tipo de abordagem: uma cartografia dos afetos, das intensidades,
das repetições.
A mágoa, enquanto dobra entre corpo e linguagem, exige um pensamento do
tempo. Em Lógica do Sentido, Deleuze propõe uma tripla dimensão temporal: o
presente da ação, o passado do estado e o futuro do devir. A mágoa, nesse
esquema, prende-se ao segundo plano, o tempo estático do passado como
estado, impedindo o acesso ao devir. Ela é uma forma de presente bloqueado,
um presente que carrega consigo o excesso do passado e não consegue
projetar-se no futuro. O sujeito magoado é aquele que vive um presente
congestionado, pesado, habitado pela cena dolorosa que insiste.
A repetição, nesse contexto, não é simples redundância, mas uma estrutura
ontológica. Como afirma Deleuze (2006), “a repetição é a diferença sem
conceito”, ela não é a reprodução do mesmo, mas a insistência de uma diferença
não resolvida. A mágoa, ao repetir-se, não volta exatamente ao ponto de origem,
mas se intensifica, se transforma, se inscreve mais profundamente no corpo e
no discurso. Cada retorno é uma nova ferida, não porque a cena se repita, mas
porque o sentido da cena se multiplica, se desloca, se esgarça. A mágoa é,
assim, um excesso de sentido que não pode ser contido, um acontecimento que
escapa à cronologia e à representação.
Essa abordagem da mágoa permite deslocá-la do campo da moral e da
psicologia para o campo da ontologia do acontecimento. A mágoa não é apenas
uma dor causada por outro, mas uma relação entre corpo e tempo, entre
linguagem e silêncio, entre o que se viveu e o que não pôde ser vivido. Ela habita
entre o passado que retorna e o presente que não se realiza. Por isso, ela exige
um outro modo de pensamento, que não se baseie na verdade, mas na potência.
A pergunta, para Deleuze, não é “o que é a mágoa?”, mas “o que ela faz ao
corpo?”, “que linhas ela traça?”, “quais os encontros que ela impede?”.
Ao pensar a mágoa a partir da lógica do sentido, é possível perceber que seu
campo de ação não se limita à esfera do sujeito, mas atinge a linguagem, a
política, o desejo. A mágoa pode ser um discurso social, um modo de
funcionamento institucional, uma forma de organização coletiva da dor. Por isso,
sua superação não é apenas individual, mas micropolítica. É preciso desmontar
os circuitos de repetição, abrir novas conexões, criar dispositivos que permitam
ao corpo escapar da fixação afetiva.
Essa tarefa não é fácil. A mágoa oferece um tipo de gozo: o gozo da identidade
ferida, do sofrimento que se justifica, do lugar simbólico de vítima. Deleuze não
nega esse gozo, mas propõe sua ultrapassagem: uma ética da experimentação,
que permita ao corpo e à linguagem encontrar outros arranjos. Não se trata de
esquecer a mágoa, mas de produzir sentido a partir dela, deslocar sua posição,
reconfigurar seus efeitos.
Em última instância, a mágoa é uma dobra do sentido, uma dobra dolorosa, mas
também uma possibilidade de criação. Quando o acontecimento não se fixa
como trauma, mas se abre à variação, ele pode gerar novas formas de vida. A
mágoa, então, deixa de ser paralisia e torna-se potência: potência de dizer, de
habitar o tempo de outro modo, de criar mundos que não estejam submetidos à
repetição do dano.
Da mágoa à linha de fuga: afetos tristes, captura política e ética da
afirmação.
Procuramos investigar a mágoa como um afeto individual de natureza passiva,
enraizado na dor não elaborada, na memória do acontecimento ferido e na
paralisação do devir. A partir de Spinoza e Nietzsche, com forte releitura por
Gilles Deleuze, delineamos a mágoa como uma paixão triste que fixa o sujeito à
impotência e ao passado, comprometendo sua potência de existir. Vimos como
a mágoa opera como dobra do sentido e forma de repetição temporal traumática.
Nosso objetivo agora é dar um passo adiante, deslocando o foco do campo ético
para o campo político. Perguntamos: quais os usos políticos da mágoa? Como
os afetos tristes, entre eles a mágoa, operam na produção de formas de sujeição,
normalização e obediência? E, mais do que isso, como podemos desativar a
mágoa enquanto dispositivo de captura subjetiva, abrindo espaço para a
emergência de linhas de fuga e modos de vida afirmativos?
A filosofia política de Deleuze, sobretudo em sua obra com Félix Guattari, parte
de um princípio radical: a subjetividade não é uma instância natural ou interior,
mas o resultado de processos de produção. O sujeito é fabricado, moldado,
interpelado, constituído por forças sociais, linguísticas, econômicas e afetivas.
Em O Anti-Édipo (DELEUZE; GUATTARI, 1996), essa ideia aparece na crítica à
psicanálise e à forma como ela reduz o desejo ao modelo familiar. O desejo,
dizem os autores, não é falta nem representação, mas produção de realidade. E
os afetos são peças fundamentais nesse processo. A mágoa, como afeto
persistente de dor e retração, pode ser compreendida como um dos
componentes dessa máquina de produção de subjetividades dóceis e
paralisadas.
Em Mil Platôs (1995), Deleuze e Guattari introduzem a ideia de aparelhos de
captura, sistemas sociais que operam sobre os corpos e os desejos, organizando
os fluxos para mantê-los dentro de formas reconhecíveis e governáveis. A
escola, a família, o Estado, a religião, a psicanálise: todos esses dispositivos
funcionam como tecnologias de captura. Mas eles não capturam apenas pela
força. Ao contrário, capturam afetivamente, pelo medo, pela culpa, pela
vergonha e, como também, pela mágoa. A mágoa é um dos modos pelos quais
o corpo é mantido em estado de inércia, incapaz de criar novas conexões ou de
desejar intensamente. Ela sustenta a obediência pelo laço afetivo com a dor.
É nesse sentido que os afetos tristes são considerados, por Deleuze,
instrumentos de dominação. Eles mantêm os corpos em estado de espera, de
contenção, de subjugação. A mágoa funciona como um afeto de vinculação
negativa: ela conecta o sujeito a uma cena de violência simbólica, mas o impede
de agir sobre ela. Em vez de fazer da dor um impulso de transformação, o sujeito
magoado a converte em identidade negativa, em memória paralisante, em rancor
estéril. A mágoa é o que resta quando a dor se transforma em modo de vida,
quando a ferida se torna centro da subjetividade.
A lógica da mágoa é, portanto, profundamente política. Em contextos coloniais e
pós-coloniais, a mágoa aparece como dispositivo de sujeição histórica. Povos
marcados pela dominação, indígenas, negros, mulheres, populações LGBTQIA+
são muitas vezes condenados a repetir a mágoa como única narrativa possível,
como forma de inscrição no campo social. O reconhecimento, nesse modelo,
passa pela reiteração da dor, da perda, da exclusão. Embora haja uma
importância incontornável na memória e na denúncia, o risco está na fixação
identitária pela ferida. A mágoa, nesse caso, deixa de ser afeto que convoca à
justiça, e se torna um modo de subjetivação melancólica.
Isso não significa negar a legitimidade da dor. Ao contrário, trata-se de recusar
a captura da dor por dispositivos que impedem sua transmutação em potência.
Deleuze e Guattari insistem que todo processo de criação exige uma
desidentificação. um movimento de desconexão das formas fixas de
subjetividade, sejam elas repressivas ou vítimas. A linha de fuga é, nesse
sentido, um ato ético e político de deslocamento. Ela não é fuga no sentido de
covardia ou recuo, mas uma ruptura com o que paralisa. A mágoa é o que fixa;
a linha de fuga é o que varia.
Para além do diagnóstico, Deleuze propõe uma ética da afirmação. Afetar-se
não é suficiente, é preciso criar com os afetos. A mágoa, ao ser atravessada por
uma linha de fuga, pode tornar-se matéria de criação, de linguagem, de luta. A
condição é que ela deixe de ser prisão. Como afirmam Deleuze e Guattari (1996),
“é preciso extrair do delírio um agenciamento coletivo de enunciação, e não um
sujeito”. Da mesma forma, é preciso extrair da mágoa uma política da diferença,
não uma política da repetição. Uma política que não se organize em torno da
ferida, mas da invenção de novos modos de vida.
Essa proposta ressoa com práticas culturais e políticas em curso nas periferias,
nos territórios indígenas, nos movimentos negros e feministas contemporâneos.
A arte, o corpo, a música, a performance, a dança — todas essas formas
aparecem como linhas de fuga possíveis que, sem negar a mágoa, a deslocam,
a desorganizam, a reconfiguram. O que está em jogo é a produção de
subjetividades capazes de desejar de novo, de afirmar-se de novo, de fazer da
dor o início, não o fim. É nesse gesto que a mágoa deixa de ser condição e torna-
se acontecimento.
A superação da mágoa, portanto, não se dá por esquecimento, mas por
transformação da lógica que a sustenta. Trata-se de passar do sujeito magoado
à multiplicidade em variação. Isso implica desmontar as máquinas de repetição,
desprogramar os roteiros identitários, abrir espaço para a experimentação. A luta
política, nesse horizonte, não é apenas pela redistribuição de recursos, mas pela
redistribuição dos afetos. O corpo, como lugar onde a mágoa se inscreve, torna-
se também o lugar de sua reinvenção.
Para Deleuze, a filosofia é inseparável da vida. Pensar é um ato de resistência.
Resistir à mágoa é afirmar a vida para além da dor, não apesar dela. É tomar o
acontecimento e fazê-lo passar ao ato. É, como diz em Conversações, recusar
o rosto, o nome, o trauma como destino. A mágoa pode ser memória viva ou
peso morto. Cabe à política da afirmação decidir entre essas formas.
Procuramos mostrar como a mágoa, longe de ser apenas um sentimento
privado, é um elemento ativo nos dispositivos de captura social e subjetiva. Ela
fixa, paralisa, moraliza, transforma o acontecimento em identidade, e o
sofrimento em valor. Contra isso, Deleuze propõe uma política da criação,
baseada na produção de linhas de fuga e na ética dos encontros. Superar a
mágoa, nesse contexto, não é apagá-la, mas fazer dela um motor de
transformação, um ponto de virada, uma dobra que se abre
Superar a mágoa: alegria, criação e novos modos de vida.
A filosofia de Gilles Deleuze, intensamente inspirada por Spinoza e Nietzsche,
nunca se interessou por consolar ou curar. Seu gesto radical é outro: criar as
condições para que a vida possa ser vivida como potência, para que o
pensamento não seja prisioneiro das formas já dadas, para que o desejo não se
confunda com falta ou carência. Dentro desse horizonte, a mágoa aparece, ao
longo deste trabalho, como uma figura essencial da paralisia afetiva, da fixação
no acontecimento ferido, da repetição do trauma como identidade. Mas a filosofia
de Deleuze é também, e sobretudo, uma filosofia da afirmação. É nesse ponto
que se abre o espaço para a superação da mágoa, não como esquecimento,
negação ou perdão moralizante, mas como transmutação ética, como passagem
de um estado de reatividade para a criação de novos modos de vida.
A superação da mágoa não é um retorno à origem ou uma restauração do sujeito
ferido. Ao contrário, é um deslocamento da própria lógica da subjetividade. Em
Spinoza – Filosofia Prática, Deleuze (2002) insiste que a alegria é o afeto que
aumenta nossa potência de agir, e que toda a ética deve ser pensada a partir
dos encontros que nos fazem variar, nos afetam positivamente, nos compõem.
A alegria, nesse contexto, não é euforia, contentamento superficial ou otimismo
moral. É o efeito de um encontro que amplia a capacidade de existir. Superar a
mágoa, portanto, significa reencontrar a possibilidade do encontro, não com o
outro que feriu, mas com a vida que varia, que pulsa, que insiste em escapar da
forma.
Essa proposta exige, antes de tudo, uma mudança no regime dos afetos.
Deleuze compreende os afetos como variações de potência entre corpos, como
forças que podem aumentar ou diminuir a intensidade de existir. A mágoa, vimos,
é uma dessas forças que nos diminuem: ela fixa o corpo a uma imagem do
passado, ela impede a variação, ela repete o mesmo. A alegria, ao contrário, é
variação. Um corpo alegre é um corpo que entra em composição com outros
corpos de maneira a aumentar sua potência. A questão, portanto, não é abolir a
mágoa, mas introduzir uma nova lógica, na qual os afetos não sejam organizados
pela memória do dano, mas pela abertura ao devir.
A alegria, em Spinoza, é sempre coletiva. Não existe alegria no isolamento. Por
isso, a superação da mágoa exige também um trabalho coletivo de
reconfiguração dos afetos. Deleuze, ao lado de Guattari, propõe que a
subjetividade é sempre socialmente produzida. Isso significa que a mágoa não
é apenas um problema psicológico, mas uma forma social de vida afetiva,
sustentada por instituições, narrativas, dispositivos de reconhecimento. O sujeito
magoado é também aquele que foi induzido a viver na dor como única forma de
inscrição social. A superação da mágoa, nesse sentido, não é só ética, é política.
Trata-se de produzir outros modos de inscrição, outras formas de vida em
comum, nas quais a potência e a alegria possam circular.
Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1995) afirmam que a política não é a luta
entre ideologias, mas a luta entre formas de vida. E a mágoa é uma forma de
vida, uma forma triste, mas estável, reconhecível, funcional. A alegria, ao
contrário, é instável, imprevisível, dissonante. Ela não é funcional: ela escapa.
Por isso, o pensamento da alegria não é apenas ético, mas profundamente
inventivo. Ele exige a construção de dispositivos que possibilitem a
experimentação, arte, filosofia, sexualidade, coletivos, gestos, políticas do corpo
e da linguagem. Superar a mágoa é construir uma vida onde o acontecimento
não seja paralisante, mas gerador de novas conexões.
Esse processo é também clínico. Como lembra Suely Rolnik (2018), uma das
herdeiras do pensamento deleuzoguattariano, a clínica política dos afetos
precisa romper com a lógica da vitimização e da superação moral. A mágoa não
se dissolve por vontade ou por perdão. Ela se desfaz no atravessamento dos
corpos por outras intensidades. A tarefa da clínica, nesse sentido, é abrir espaço
para o novo, para o indizível, para aquilo que ainda não se pôde viver. A alegria
ativa é a disposição a esses encontros que ainda não foram vividos, uma
disposição ao futuro.
Nietzsche, em A gaia ciência (2001), já apontava esse caminho: o de uma vida
capaz de afirmar mesmo o que dói, não por masoquismo, mas por reconhecer
que a dor também é parte do real. A superação da mágoa, portanto, não é uma
anestesia, mas uma transvaloração. O sujeito não nega que foi ferido; ele apenas
deixa de ser definido pela ferida. Ele passa a ser definido por seus encontros,
suas criações, suas forças de composição. A mágoa dá lugar ao desejo, não
como carência, mas como produção de realidade.
Essa proposta tem implicações existenciais decisivas. A vida definida pela
mágoa é uma vida que se explica sempre a partir de um ponto anterior: “eu sou
o que me fizeram”. A vida afirmativa, ao contrário, é uma vida que se abre para
o que ainda não é: “eu sou aquilo que posso vir a ser”. É nesse segundo
horizonte que Deleuze inscreve sua ética: uma ética do vir-a-ser, do devir-outro,
do devir-alegria. A mágoa paralisa o tempo; a alegria o reinaugura.
Nesse caminho, é possível pensar a filosofia como uma prática da alegria. Em O
que é a Filosofia? (1997), Deleuze e Guattari definem a filosofia como a criação
de conceitos. Criar conceitos é criar formas de viver, de sentir, de pensar. Um
conceito é sempre uma ferramenta de variação. A superação da mágoa exige,
portanto, criar outros conceitos, outras palavras, outras narrativas. Criar um
corpo sem órgãos, ou seja, um corpo capaz de escapar das codificações que o
impedem de variar. Criar um plano de consistência onde o sujeito não se
confunda com sua dor.
É nesse horizonte que a vida se reconcilia com a criação. A mágoa não
desaparece: ela se transforma em material de composição. A ferida não é
apagada, mas não é mais o centro da subjetividade. A alegria não vem do
perdão, mas do deslocamento do centro da existência. O que se propõe, ao fim,
é uma vida que não seja definida por sua dor, mas por sua potência de afetar e
ser afetada. Uma vida que não repita o mesmo, mas que se arrisque ao novo.
Em síntese, a superação da mágoa, à luz da filosofia de Deleuze, é um processo
de afirmação ativa, de criação contínua, de recomposição dos afetos e das
formas de vida. Trata-se de passar da fixação à variação, da dor à potência, da
identidade à diferença. A mágoa, enquanto afeto triste, é uma das formas pelas
quais o poder se exerce sobre os corpos. A alegria, enquanto afeto ativo, é uma
das formas pelas quais a vida resiste. Entre uma e outra, o pensamento filosófico
abre o caminho: não para nos consolar, mas para nos fazer pensar e viver de
outro modo.
A mágoa e sua superação: uma ética do devir.
A mágoa, ao longo deste ensaio, foi analisada como uma paixão triste que opera
na zona de interseção entre o corpo, a linguagem e a memória. Seu caráter
persistente, circular e repetitivo impede o devir e compromete a potência do
sujeito. Mais do que um sentimento individual, vimos que a mágoa é uma força
de captura subjetiva e social, uma afecção que estrutura modos de vida reativos,
identidades fixas, e relações baseadas na dívida, na dor e na repetição do
trauma.
Partindo da ontologia dos afetos em Spinoza, compreendemos a mágoa como
um afeto passivo que diminui a potência de agir, resultante de encontros ruins e
de ideias inadequadas. A leitura de Deleuze dessa tradição permitiu expandir o
entendimento da mágoa como parte de uma economia afetiva que pode ser tanto
clínica quanto política. Através da genealogia de Nietzsche, a mágoa apareceu
como afeto preparatório da moral do ressentimento, consolidando-se como
forma de subjetivação paralisada, que responde à dor com fixação e julgamento,
e não com criação ou variação.
No plano da linguagem e da existência, explorado com base em Lógica do
Sentido, a mágoa foi tratada como dobra temporal, como acontecimento que não
se conclui e que afeta o sujeito pela repetição traumática. Sua força não está
apenas na lembrança, mas na insistência de um sentido que fere, de uma
linguagem que não consegue metabolizar a dor, e que por isso a repete. A
mágoa aparece, nesse contexto, como bloqueio do tempo e da linguagem, como
falha de elaboração e como sintoma existencial.
Mas é no campo político que a mágoa revela toda sua dimensão operatória.
Como mostraram Deleuze e Guattari, os afetos tristes e entre eles a mágoa, são
ferramentas de docilização e normalização. Mantêm o sujeito ligado a sistemas
de reconhecimento baseados na dor e na identidade da ferida. A mágoa é,
assim, funcional aos aparelhos de captura: ela impede a subjetividade de se
tornar linha de fuga, a existência de se tornar criação.
Contra essa lógica da paralisia, o pensamento deleuziano propõe uma ética da
afirmação, centrada na experimentação, na composição e na alegria ativa. A
superação da mágoa, nesse horizonte, não significa apagamento ou
esquecimento, mas transmutação afetiva e deslocamento existencial. Significa
fazer da dor um ponto de partida para a criação de novos modos de vida.
Significa abandonar a fixação na ferida como identidade e reencontrar a potência
de existir na variação, na diferença, no devir.
Ao invés de uma ética do perdão ou da reconciliação, Deleuze oferece uma ética
do acontecimento: uma filosofia que reconhece a dor, mas recusa sua
eternização. A mágoa não é ignorada, mas superada na medida em que perde
sua centralidade. Ela torna-se resto, traço, dobra, mas não destino. O que se
afirma, no lugar dela, é a potência do corpo de afetar e ser afetado, a
possibilidade de criar mundos, de desejar novamente, de viver à altura do que a
vida pode.
Procuramos compreender a mágoa como um dos afetos mais sutis e mais
poderosos da vida afetiva contemporânea. A mágoa não é apenas sintoma de
sofrimento, mas mecanismo de fixação, técnica de subjetivação, operador de
poder. Sua superação (MORAES, 2025), portanto, exige um trabalho múltiplo:
clínico, ético, estético, político. Um trabalho que não busca curar a mágoa, mas
ultrapassá-la e, com isso, abrir caminho para modos de existência capazes de
resistir, de inventar, de afirmar. Uma vida que, diante da ferida, não se recolhe.
mas cria.
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