Uma tradução do projeto Traduções Abolicionistas
Texto original:
GILMORE, R. W. Abolition Geography and the Problem of
Innocence. In: JOHNSON, G. T.; LUBIN, A. (eds.). Futures of
Black Radicalism. New York: Verso, 2017, pp. 225-240.
Tradução autorizada por Ruth Wilson Gilmore.
Traduzido por Margarida Nogueira.
Data de publicação: 11 out. 2022.
Geografia da abolição
e o problema da inocência
Ruth Wilson Gilmore
Buscávamos uma linguagem para entender
um tempo anterior ao que veio depois.
— China Miéville, Embassytown
Dinheiro
Saque. Pagamento. Salário. Lucro. Interesse. Imposto. Renda.
Acumulação. Extração. Colonialismo. Imperialismo.
A prisão moderna é uma das principais, mas não a única
instituição definidora das geografias do cárcere nos Estados Unidos e
além, geografias que marcam estratégias de acumulação regional e
revoltas, imensidades e fragmentações, que se reconstituem no espaço-
tempo (mesmo que geometricamente as coordenadas permanecem
inalteradas) para executar novos ciclos de acumulação.
A prisão surgiu em conjunto a transição histórico-global do
papel do dinheiro no quotidiano. Em retrospecto, a transformação
aparece apenas como um clique. De ter sido, como para a maioria das
© Traduções Abolicionistas, 2021
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Ruth Wilson Gilmore
pessoas continua a ser, um meio de mover a energia armazenada entre
vendedores e compradores de objetos, o dinheiro tornou-se o fim
desejável, não para as carícias eróticas dos colecionadores e dos
avarentos, mas para se tocar de forma diferente e por pouco tempo –
para animar, através da pressão em movimentos imperativos irregulares,
mas perpétuos, os ciclos de transformação para ganhar mais dinheiro.
Capitalismo: sempre racial, incluindo na Inglaterra rural, ou em
qualquer lugar da Europa, onde, como Cedric Robinson nos ensina,
hierarquias entre pessoas cujos descendentes poderiam ter se tornado
brancos dependiam, para sua estrutura, da vulnerabilidade de grupos
específicos à morte prematura, explorada pelas elites, como parte de
toda natureza-como-Outro explorável, de modo a justificar a
desigualdade tanto no final do dia como na manhã seguinte.
Capitalismo racial: um modo de produção desenvolvido na
agricultura, aprimorado pelo cercamento no Velho Mundo, e pela terra
e trabalho cativos nas Américas, aperfeiçoado pela escravidão e sua
coreografia fabril ditada pelo tempo, seu imperativo coreográfico
forjado nas fornalhas dos monarcas imperialistas e suas elites que
tinham que pagar impostos – em dinheiro e não em espécie – para que
o soberano pudesse armar militares cada vez mais centralizados e
regularizados que haviam se tornado menos capazes de sustentar a si
próprios apenas realizando, como no passado, pilhagens ao final de
cada batalha. Não que tenham deixado de pilhar posteriormente.
Nem o pacote de pagamento veio de uma só vez: nos Estados
Unidos, muitos cidadãos-soldados do século XIX foram para a
sepultura ainda à espera de serem pagos por terem matado ou
concordado em matar Povos Originários ou franceses ou seus
representantes. A compensação assumiu forma de algo que poderia ser
transformado em outra coisa: títulos de terras saqueadas – uma honra
para o vasto pariato herrenvolk1 da terra dos homens brancos, um bem
1 Nota da Tradutora (NT): Herrenvolk é um sistema governativo em que apenas um
grupo étnico específico controla e participa das instituições do governo, e os restantes
grupos são privados de direitos. Aproxima-se do conceito de etnocracia. No texto, a
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Geografia da abolição e o problema da inocência
que não pode ser movido, embora uma escritura possa ser embolsada
ou vendida ou dada como garantia ou apreendida por um penhor, por
outras palavras, transformada em dinheiro; e se não um título, uma
pensão, um direito pago regularmente como dinheiro para facilitar os
anos dourados.
As prisões modernas nasceram e cresceram com os Estados
Unidos da América. As penitenciárias estabeleceram a gestão estatal nas
margens da recente república, em que cada documento fundador
recapitulava a liberdade como oposição ao outro, o importado como
oposição ao imigrado, para deixar claro que os ideais de defesa e de
bem-estar geral, muito antes da Décima Terceira Emenda, não tinham
uma missão universal, definindo desde as primeiras páginas quem
estava dentro e quem estava fora.
Então, tal como agora, esses conceitos concorrentes de
liberdade moldaram o movimento planetário de pessoas e relações. À
semelhança das vidas, as penas eram curtas, absorvendo uma por uma
pessoas que não se alinhavam ao caminho atribuído ou presumido, que
não desempenhavam o seu papel, que não acertavam suas falas nos
ciclos de construção de lugares em grande escala do capitalismo racial
– que inclui todo sistema escravista, o imperialismo, o colonialismo de
ocupação, a extração de recursos, a coordenação infraestrutural, a
industrialização urbana, o desenvolvimento regional, e a financeirização
de tudo.
A força animadora extensiva e intensiva do capitalismo racial, a
sua consciência contraditória, os meios para transformar objetos e
desejos em dinheiro, são as pessoas no auge da vitalidade, as mais
jovens, as pessoas que fazem, movem, crescem e cuidam de coisas e de
pessoas.
Então, quem estava ou está fora do lugar? Pessoas não-livres
que vendiam coisas que fizeram ou plantaram às margens, escondendo
o dinheiro num pote de emancipação. Pessoas que não podiam dizer
autora utiliza o termo para descrever o domínio da população branca sobre os povos
originários dos Estados Unidos e sobre a população negra escravizada.
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Ruth Wilson Gilmore
onde trabalhavam, ou comprovar que eram livres, ou mostrar um
bilhete ou um passe, um documento para salvar a própria pele, ou se
salvarem da narrativa de que a sua pele, alongando-se de forma
particular através dos músculos e ossos, parecia ou parece sugerir algo
sobre onde não deveriam estar/ser – capturadas.
O imperativo do capitalismo racial exige todo tipo de esquemas,
incluindo o trabalho árduo das elites e seus representantes na
sobreposição e interligação das economias espaciais da superfície do
planeta. Eles constroem, destroem e reconfiguram Estados, deslocando
capacidades para dentro e para fora do domínio público. E pensam
muito bem no dinheiro em movimento. No mundo contemporâneo,
em que os ciclos produtivos e lucrativos aceleram cada vez mais, com
o capitalismo racial cada vez mais impaciente com qualquer fricção no
fluxo monetário, alocar recursos nas prisões de onde possam não
emergir a tempo e na qualidade exigida não é assim tão atrativo, apesar
de as celas estarem cheias de milhões de pessoas no auge da sua
vitalidade.
Costumávamos pensar que nos Estados Unidos a não-liberdade
em massa contemporânea, racialmente organizada, era uma
recapitulação do modo escravocrata de produzir dinheiro. Mas se estas
instituições carcerárias massivas, tão pesadas quanto cidades, não são
fábricas ou centros de serviços, onde está o lucro, a mais-valia, no final
do dia? As prisões de hoje são extrativistas. O que isso significa?
Significa que as prisões permitem que o dinheiro se desloque devido à
inatividade forçada das pessoas nelas presas. Significa que pessoas que
são extraídas das comunidades, e pessoas que retornam às
comunidades, mas não têm o direito a elas, permitem a circulação do
dinheiro em ciclos rápidos. O que é extraído dos extraídos é o recurso
do tempo-vida.
Se pensarmos sobre esta dinâmica através de políticas de escala,
compreendendo corpos como lugares, a criminalização, então,
transforma os indivíduos em pequenos territórios preparados para o
desenrolar da atividade extrativista – extraindo continuamente tempo
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Geografia da abolição e o problema da inocência
dos territórios-do-eu. Este processo abre um buraco na vida,
aprofundando, talvez para nossa surpresa, a aniquilação do espaço pelo
tempo. Um auxílio social roubado e corrompido voa através do buraco
do tempo para os salários dos funcionários das prisões. Para os
vendedores. Para as empresas de serviços públicos. Para os
empreiteiros. Para o serviço da dívida. O dinheiro assume várias formas
finais: salários, juros, renda, e por vezes lucro. Mas mais do que isso, o
processo extrativista traz à mente os mecanismos do imperialismo
contemporâneo: extração, na forma-dinheiro, dos produtores diretos
cujas comunidades também se encontram desestabilizadas. Mas o
dinheiro também nos dá uma ideia da enormidade dos possíveis
habitantes e criadores das geografias da abolição – a geografia da
abolição, a contradição antagônica das geografias do cárcere, forma um
padrão interligado através do terreno do capitalismo racial.
Conseguimos vê-lo.
Geografia da abolição
A geografia da abolição parte da simples premissa de que a
liberdade é um lugar. A construção de lugares é uma atividade humana
normal: tentamos encontrar formas de combinar pessoas, terra e outros
recursos com a nossa capacidade social de nos organizarmos numa
variedade de formas, tanto para ir como para ficar. Cada um destes
fatores – pessoas, terra, recursos, capacidade social – aparece de várias
formas, que determinam, mas não definem, o que pode ou poderia ser
feito. Trabalhando a partir desta premissa básica, a crítica abolicionista
se ocupa com o maior e o menor detalhe destes arranjos de pessoas, de
recursos e de terra ao longo do tempo. Demonstrando como relações
de não-liberdade se consolidam e expandem, mas não com o propósito
de documentar a miséria. Pelo contrário, o objetivo não é apenas
identificar as contradições centrais – vícios inerentes – dos regimes de
expropriação, mas também, com urgência, de expor como a consciência
radical em ação resulta em modos de vida emancipados, por mais
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Ruth Wilson Gilmore
provisórios que sejam, no presente e no passado. A tradição radical a
partir da qual a geografia da abolição traça o seu significado e método
recua no tempo, não para abolir a história, mas para encontrar
alternativas à sensação de desespero de que tanta mudança, no final das
contas, parece ter sido apenas a deslocação e redistribuição do sacrifício
humano. Se a libertação inacabada é o trabalho da abolição ainda por
concretizar, então o que deve ser abolido não é o passado ou o seu
fantasma atual, mas os processos de hierarquia, expropriação e exclusão
que se congregam enquanto vulnerabilidade de grupos específicos à
morte prematura.
Todos ficaram surpreendidos em maio de 2011 quando
Supremo Tribunal dos Estados Unidos (SCOTUS), conhecido por
favorecer os direitos dos estados, ratificou uma decisão para que o
Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia2 reduzisse o
número de pessoas detidas em prisões e campos para adultos. O
Supremo Tribunal confirmou a opinião do tribunal de uma instância
inferior de que o Golden State [Estado da Califórnia] não se livraria das
violações constitucionais tão graves, que podiam ser medidas em
mortes prematuras, ou seja, evitáveis, apenas construindo mais prisões.
As mortes eram em média, uma por semana, todas as semanas, durante
décadas, devido a negligência médica bem documentada.
A decisão, apesar de ser uma vitória, não constituiu um claro
desvio dos quase quarenta anos de encurtamento da vida mediante o
encarceramento em massa, apesar de os cinco juízes terem reconhecido
a catástrofe acumulada de morte prematura que atingia pessoas cuja
maior parte dos estadunidenses de todas as raças, gêneros e idades
aprenderam a abominar e ignorar. Mesmo assim, no contexto da guerra
global contra o terror aliada às guerras domésticas contra pessoas
vulneráveis, sabemos que a oposição a escândalos mortais (tortura,
ataques com drones, assassinatos policiais, água envenenada) se dissolve
facilmente em atividade analítica frenética que produz novas
2O Departamento de Correções da Califórnia (CDC) foi renomeado como
Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia (CRCR) em 2004.
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Geografia da abolição e o problema da inocência
justificações, anulando proibições pela força combinada da violência
aplicada, pela revisão do raciocínio jurídico, e longos relatórios de
comissões. Na sequência do escândalo e das exigências por reformas
prisionais, os impiedosos princípios e procedimentos da criminalização
permanecem intactos, ruidosamente ajustados à margem, mas sempre
fortalecidos no centro, onde a maioria das pessoas na prisão definha:
penas médias, condições médias, celas médias, acusações médias,
miséria média. Por outras palavras, contra o escândalo da negligência
documentada, a criminalização continua a ser um meio e um processo
complicado para alcançar um objetivo simples: prender pessoas em
situações em que se espera, e muitas vezes se compele, o adoecimento
e a morte.
Os processos que contribuem tanto para o desenvolvimento
como para a normalização da criminalização em massa têm sido o foco
da pesquisa, ação, defesa, e outras formas de estudo que tentam dar
sentido à experiência. Um resumo geral, mas não exaustivo, é assim:
nos Estados Unidos, a economia política impulsionada por décadas de
crise gerou excedentes que se tornaram fatores básicos da expansão
prisional: terra, pessoas, capital monetário e capacidade estatal. Os
elementos da “solução prisional” não se combinam automatica ou
necessariamente nestas geografias do cárcere extensivas. Uma
economia política enormemente complicada – pessoas, rendimentos e
bens – gerou uma reviravolta relativamente súbita e redirecionou terras,
auxílios sociais, usou a dívida pública, e removeu em série milhares e
milhares e milhares e milhares e milhares e milhares e milhares de
pessoas com modesta escolaridade de famílias e comunidades.
Como podemos ver, algo mudou. Fundamentalmente, em vez
de imaginarmos a reiteração persistente de relações estáticas, pode ser
mais potente analisar as dinâmicas relacionais que se estendem para
além das fronteiras conceituais e espaciais óbvias e depois decidir de
que forma particular, antiga ou nova, é feita, tentando transformá-la
noutra coisa. Isto – transformá-la numa outra coisa – é do que se trata
a negação. Fazê-lo é questionar o padrão presente e futuro de uma
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Ruth Wilson Gilmore
forma – algo que podemos discernir a partir da evidência dos seus
padrões constitutivos, sem sermos enganados ou distraídos pelos
antepassados sociais que percebemos, razoavel ou emocionalmente, nas
características da forma. (Voltarei aos antepassados em algumas
páginas.) Pensar dessa forma é pensar de forma dedutiva (existem
formas) e indutiva (relacionar os padrões revela generalidades que
podem ou não ser estruturais). Suponho que me tornei geógrafa por
conta desse vai-e-vem que fazemos, tentando observar e explicar as
formalidades e improvisações na construção de lugares, que são
moldados pelas relações humanos/natureza, sempre elaboradas em
dependência – a conjunção ou conexão do poder com a diferença – e
às vezes, mas não de forma inevitável, interrompidas por fatalidades
evitáveis. Fatalidades deliberadamente propagadas, e formas e padrões
que resultam na morte prematura, revelam o sacrifício humano como o
princípio organizador, ou mais precisamente como uma forma de
organização sem princípios, que nos leva de volta ao capitalismo racial
e ao papel da criminalização.
O prolífico trabalho formador dos esforços que promovem
consciência e ação antiprisional revela parcialmente, campanha por
campanha, partes da estrutura sufocadora do encarceramento em
massa. A seleção e disposição de categorias que inspiram a ação
coordenada tendem ironicamente a legitimar o sistema como tal,
concentrando-se em como ele é especificamente prejudicial para jovens,
mulheres, pais, mães, homens, pessoas não-binárias, idosos, ou doentes,
ou aquilo que é o resultado da guerra às drogas, das revistas policiais,
do racismo, da privatização, e assim por diante. E, no entanto, a
extração de tempo de cada corpo-território muda especifica e
visceralmente vidas em todo lado – parceiros, crianças, comunidades,
movimentos, a possibilidade de liberdade. Ao mesmo tempo, o
particular também implica geografias históricas inteiras em constante
agitação. Pense-se, por exemplo: Gentrificação. Fabrico de automóveis
ou de aço. Mineração de carvão. Mineração de ouro. Recursos de
conflito. Fracking [Fraturamento Hidráulico]. Novas tecnologias de
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Geografia da abolição e o problema da inocência
transporte. Robótica. Cadeias de commodities. Capital financeiro. O
desafio é manter a totalidade das geografias do cárcere – mais do que
apenas os seus aspectos prisionais ou repressivos – ligadas, sem as
colapsar ou reduzir umas nas outras. Qualquer categoria ou sistema tem
múltiplas dimensões, sendo analiticamente necessário expandir a escala
de modo a perceber o mundo material enquanto uma variedade de
totalidades sobrepostas e interligadas. O imperativo básico requer mais
consciência autocrítica do que dados adicionais (já temos demasiados):
embora o real seja absolutamente importante, a experiência dessa
realidade nunca vai revelar automaticamente como e por que é que a
negação (o constante refazer da materialidade e da experiência), por
vezes, é bem-sucedida.
Atualmente, a nível mundial, onde a desigualdade é profunda,
prevalece o uso da prisão como uma solução universal para problemas
sociais – agora, em nenhum lugar tão extensivamente como nos
Estados Unidos, liderado pela Califórnia. Ideologicamente, isto é, na
consciência e na cultura cotidiana, a expressão e normalização dos
processos conjuntos de centralização e descentralização – padronizados
como estão pela sensibilidade da crise permanente – moldam as
estruturas de sentimento e, em grande medida, determinam socialmente
o aparente leque de opções opostas disponíveis. Por outras palavras, a
doutrina da descentralização resulta numa constante fragmentação de
centros de luta e objetos de antagonismo para pessoas que procuram
igual proteção, para não falar de oportunidades. Em crise, em
resistência, em oposição: Para quem, a quem, contra quem se carrega a
petição ou se levanta o punho?
Descentralização é divisão, por vezes temporária, às vezes mais
estável. As suas capacidades normalizadoras são profundas,
padronizando a imaginação política e contornando os ataques à forma
carcerária. Consequentemente, muitos desses ataques exibem
tendências que, sem surpresa, aderem rigorosamente a categorias
específicas: policiamento, imigração, terrorismo, ativismo orçamental,
liminares, sexualidade, gênero, idade, morte prematura, paternidade,
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Ruth Wilson Gilmore
privatização, pessoas anteriormente e atualmente encarceradas,
sindicatos do setor público, trabalho desvalorizado, e a inocência
(relativa). O racismo tanto liga como diferencia como estas categorias
coexistem em políticas radicais e reformistas – ou seja, como as pessoas
(e aqui cito a primorosa frase de Peter Linebaugh) “trespassam o futuro
por esperança”. Na medida em que as políticas são um roteiro para o
futuro, elas devem ser precisas, uma qualidade frequentemente
confundida com estreiteza excessiva – estreiteza sendo algo que o
padrão inerente da descentralização encoraja. Como ensina A.
Sivanandan, enquanto a economia determina, as políticas raciais
definem técnicas e compreensões, ainda que as categorias e hierarquias
raciais – em qualquer momento sólidas – não sejam definidas em
concreto. Se, como Stuart Hall colocou no final da década de 1970, a
raça é a modalidade através da qual se vive a classe, então
encarceramento é luta de classes.
E, no entanto, a amplitude traz também desafios analíticos e
organizacionais. Não é novidade que encontramos as respostas às
perguntas que colocamos. Qual poderá então ser o termo ou termos
gerais mais adequados que se reúnam de forma útil para um escrutínio
e uma ação tão díspar, mas ao mesmo tempo tão interligada, de
categorias, relações e processos como os conjugados com a
criminalização e o encarceramento em massa?
Há 17 anos, surgiu a organização abolicionista Critical Resistance,
tomando como sobrenome Beyond the Prison-Industrial Complex [Para
além do Complexo Industrial-Prisional]. O propósito heurístico do
termo “complexo industrial-prisional” era provocar uma série tão
ampla quanto possível de compreensões sobre as relações
sócioespaciais através das quais o encarceramento em massa é
construído, usando o complexo industrial-militar como modelo flexível
– toda sua geografia histórica, economia política, demografia,
intelectuais e tecnocratas, teóricos, especialistas, impulsionadores, e
especuladores, todos aqueles que participaram em, beneficiaram de,
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Geografia da abolição e o problema da inocência
foram remetidos ou desorganizados pela reestruturação do
Departamento de Guerra no Pentágono.
Por outras palavras, queríamos que “complexo industrial-
prisional” fosse tão conceitualmente amplo quanto nosso objeto de
análise e luta. Mas penso que em muitos casos o seu efeito tem sido o
de esvaziar – atrofiar, na verdade – em vez de expandir a compreensão
imaginativa de um sistema que aparentemente não tem limites.
Consequentemente, pesquisadores passam demasiado tempo provando
coisas banais ou rebatendo críticas hostis, e ativistas dedicam
demasiados recursos a combater escândalos em vez de fontes. E,
mesmo assim, existe um complexo industrial-prisional. Assim, ocorreu-
me, enquanto projeto de correção, chamar provisoriamente o complexo
industrial-prisional por outro nome – um que dei num curso que
desenvolvi em 1999 e ministrei durante meia década em Berkley –, o de
“geografias do cárcere”, um termo um pouco mais genérico. O objetivo
aqui é renovar e tornar crítico o que se compreende por abolição. Assim,
a geografia da abolição é a contradição antagônica da geografia do
cárcere.
Voltarei a este ponto no final, mas aqui – como vocês que me
conhecem esperarão – lembro que, no registo histórico da auto-
organização e da atividade de construção do mundo entre pessoas
negras do Sul sob a Reconstrução, o grande comunista W. E. B. Du
Bois observou os lugares que as pessoas construíam – geografias da
abolição – sob a égide política participativa do que ele chamou de
“democracia da abolição.” (Thulani Davis elaborou mais recentemente
e de forma primorosa este trabalho, traçando a sua expansão e
contração através do espaço-tempo). As pessoas não faziam o que
faziam a partir do nada – embora milhões fossem resultado do grande
esforço da luta para se libertarem e para estabelecer uma nova ordem
social. Elas traziam coisas com elas – sensibilidades, dependências,
talentos, um verdadeiro complemento de consciência e capacidade que
Cedric Robinson chamou de “totalidade ontológica” – para transformar
onde estavam em lugares que desejavam estar. E, no entanto, deixaram
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Ruth Wilson Gilmore
evidências abundantes demonstrando como a liberdade não é
simplesmente a ausência da escravatura como forma jurídica e de
propriedade. Em vez disso, desfazer a escravidão – abolição – é
literalmente mudar de lugar: destruir a geografia da escravidão
misturando o seu trabalho com o mundo externo para mudar o mundo
e, assim, a si próprios – por assim dizer, a habitação como natureza –
mesmo se, geometricamente falando, não tivessem sequer se movido.
Tal Reconstrução de lugares negou a negação constituída como
e pela escravidão, e enquanto ninguém habita plenamente a sua
linhagem sócioespacial direta por causa da contrarrevolução da
propriedade, a consciência permanece na cultura política, expressiva e
organizacional se olharmos e ouvirmos. (Inclusive, 2015 é o centésimo
aniversário de The Birth of a Nation [O Nascimento de uma Nação] –
uma história que tornou os wages of whiteness [os salários da branquitude]3
não só desejáveis, mas em muitos sentidos obrigatórios.) O que
particularmente nos preocupa aqui é um ponto geral: para aumentar a
capacidade de extrair valor do trabalho e da terra, as elites fabricam
instituições políticas, econômicas e culturais utilizando ideologias e
métodos adquiridos localmente, nacionalmente e internacionalmente.
Elas constroem Estados. Refina-os. Engrandece-os e os descentraliza.
Promovem e esvaziam explicações e justificações para o porquê de as
coisas deveriam ser diferentes ou como são. Mas mesmo no auge do
abandono periódico, as elites dependem de estruturas de ordem e de
3 NT: Partindo de Du Bois, a expressão wages of whiteness, ou salários da branquitude,
indica o “salário público e psicológico” do qual trabalhadores brancos se beneficiam
em virtude da supremacia branca e do processo histórico de escravidão e expropriação
do povo Negro e dos povos originários. Em Black Reconstruction [Reconstrução Negra,
1935] Du Bois explica que: “Deve-se lembrar que o conjunto dos trabalhadores
brancos, embora recebesse um salário baixo, era compensado em parte por uma
espécie de salário público e psicológico. Eles receberam deferência pública e
títulos de cortesia porque eram brancos. Eles foram admitidos livremente em todas as
classes de pessoas brancas para funções públicas, parques públicos e as melhores
escolas. A polícia foi construída a partir de suas fileiras e os tribunais, dependendo de
seus votos, os trataram com tanta clemência que encorajaram a ilegalidade.” (ibidem:
700-701; tradução livre; grifo nosso)
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Geografia da abolição e o problema da inocência
significado que a anarquia do capitalismo racial nunca poderá garantir.
Ademais, como a experiência real do negro durante a Guerra Civil e a
Reconstrução demonstram, as não-elites nunca são peões passivos.
Pessoas comuns, em sua diversidade, descobrem como ampliar ou
diminuir formas sócioespaciais para abrir espaço para as suas vidas.
Sinais e vestígios das geografias da abolição afluem, mesmo em sua
fragilidade.
***
Gaza e Cisjordânia: Durante a Primeira Intifada (1987-93),
comitês populares em todos os territórios organizaram um
surpreendente conjunto de instituições que constituíram o esboço de
uma infraestrutura pós-colonial para a Palestina. Os projetos incluíam
clínicas de saúde, escolas, lojas, capacidades produtivas e
processamento de alimentos e fábricas de vestuário. As pessoas que
organizaram e trabalharam nestes lugares discutiam o trabalho como
parcial embora necessário para a libertação, exigindo um trabalho
persistente de consciência através de educação imaginativa, da
formação e de outros programas. Algumas das mulheres que
trabalhavam no processamento de alimentos, por exemplo, discutiam
como a revolução em progresso não podia ser sustentada a não ser que
o patriarcado e o paternalismo se tornassem inaceitáveis e impensáveis
tal como a ocupação. O trabalho de educação popular dependia da
ampliação da consciência, do particular (uma inoculação, uma vala de
irrigação, uma máquina elétrica) até aos requisitos gerais para que as
geografias da abolição desse espaço-tempo viessem a ser continuamente
sustentadas através de uma ação consciente.
Violência Doméstica: O feminismo carcerário falhou em eliminar
a violência contra mulheres e a violência doméstica no geral, apesar de,
às vezes, a intervenção policial criar tempo e espaço para que as pessoas
encontrem alternativas. Assim, a INCITE! Women of Color Against
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Ruth Wilson Gilmore
Violence [INCITE! Mulheres de Minorias Étnico-raciais Contra a
Violência] e tantas outras pessoas organizadas de variadas formas ao
redor do mundo tentaram descobrir como fazer esse espaço-tempo no
contexto da construção doméstica ou comunitária em vez da
criminalização. A ideia aqui, em vez de punir melhor ou mais rápido a
violência, é eliminar a violência através da transformação das relações
sociais em que ela ocorre. Como resultado, e como demonstra o Story
Telling & Organizing Project [Projeto de Organização e de Narração de
Histórias], pessoas ao redor do mundo conceberam várias abordagens
para acabar com o problema central – a violência – sem usar violência
para alcançar uma mudança bem-sucedida, envolvendo amigos,
vizinhos, as comunidades no geral, e diferentes estratégias.
Educação Decolonial: A tese de doutorado de 2016 de Sónia Vaz
Borges sobre as escolas de libertação estabelecidas pelas forças
anticoloniais durante os treze anos da Guerra de Libertação na Guiné-
Bissau demonstra a intrincada inter-relação da construção e
transformação de espaços. Educado para ser um membro da classe
gestora profissional ultramarina do Estado português, o papel de
Amílcar Cabral no desenvolvimento da consciência revolucionária foi,
em parte, inspirado pelo seu treinamento como agrônomo. Tendo
percorrido o território de Guiné-Bissau e Cabo Verde para avaliar os
problemas e soluções para a produtividade do solo, conheceu também
as pessoas que viviam e trabalhavam nessa terra. O Partido Africano
para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) criou um
currículo de literacia e de alfabetização prática e política, escreveu
manuais e formou soldados para se tornarem professores. As escolas,
construídas e equipadas assim que possível após a expulsão do exército
colonial em cada região do país, articulou futuros possíveis para
localidades e para o exterior, com ênfase particular na ligação Pan
Africana e Terceiro Mundista.
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Geografia da abolição e o problema da inocência
Injunções Anti-Gangues de Oakland: A amplitude do controle
concreto exercido pelo sistema de justiça criminal não se detém nos
limites do sistema. Pelo contrário, os administradores locais podem
recorrer à lei civil para ampliar o regime de instituição total das prisões
aos ambientes domésticos e comunidades, enquanto empregadores
podem discriminar arbitrariamente 65 milhões ou mais de pessoas nos
Estados Unidos que têm documentação e não trabalham devido a
detenções ou registos criminais desqualificadores. Em Oakland, uma
coligação de pessoas anteriormente encarceradas, várias organizações
de justiça social e econômica, famílias, e outros, lançaram uma
campanha para obrigar o governo a cancelar uma zona de injunção
estabelecida e para não estabelecer mais zonas planejadas. Numa zona,
as pessoas nomeadas pela injunção, e os lugares em que vivem e
frequentam, não existem barreiras para questionamentos e buscas
policiais. Além disso, os membros do agregado familiar tornam-se
policiais involuntários, esperando-se que façam cumprir os termos da
injunção ou que se metam eles próprios em apuros. Transformar a zona
numa geografia da abolição requer transformar consciências, uma vez
que indivíduos ridicularizados e injuriados oficial e localmente tiveram
de desenvolver o seu poder persuasivo tanto na Câmara Municipal
como nas ruas e nos terrenos vazios onde construíram comunidade e
confiança através de extraordinário empenho nas coisas ordinárias:
criando um jardim e um mural. Sendo os primeiros a responder em
tempos de dificuldades. Liderando através do exemplo. Curiosamente,
pessoas sem medo de morrer tiveram de demonstrar novo destemor
em contextos totalmente novos.
O problema da inocência
Anteriormente, apontei que muitos defensores de pessoas
encarceradas e as comunidades de que fazem parte tomaram um
caminho perigoso ao argumentar porque certos tipos de pessoas ou
lugares sofrem de maneiras específicas quando se trata da
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Ruth Wilson Gilmore
criminalização. Assim, o argumento diz que prisões são feitas para
homens e, portanto, ruins para mulheres. Prisões são feitas para jovens
adultos e, portanto, ruins para os idosos e para os doentes. Prisões são
feitas para adultos e, portanto, ruins para jovens. As prisões separam as
pessoas das suas famílias e, portanto, são ruins para mães que têm a
responsabilidade primária pela coesão familiar e pelo trabalho
reprodutivo. As prisões são baseadas no sistema binário e são, portanto,
ruins para pessoas trans e pessoas não-binárias. As prisões são jaulas e
pessoas que não machucaram ninguém não deviam estar em jaulas. Isto
não esgota a ladainha de quem não deveria estar na prisão, mas produz
dois efeitos. Primeiro, estabelece como fato que algumas pessoas
deveriam estar em jaulas, e somente contra essa conveniência ou
inevitabilidade poderá ocorrer alguma mudança. A estrutura de
sentimento que molda as narrativas de defesa da inocência não é difícil
de se compreender: afinal de contas, se criminalização é sobre encontrar
o culpado, dentro dessa lógica dominante é razoável imaginar que o
caminho para a desconstruir seja encontrar aqueles condenados
injustamente.
A insistência em encontrar inocentes entre os condenados ou
mortos tanto projeta como deriva sua energia de todas aquelas
categorias “não deveriam estar em jaulas” que listei anteriormente. Mas
ela também invoca, com uma estonteante imprecisão histórica, um
desfile de outros inocentes para enfatizar a injustiça de algum aspecto
do encarceramento em massa. Em particular, é como se o
encarceramento em massa fosse o meio pelo qual se presume termos
herdado um dever associado a tarefas não compensadas pelo que os
nossos antepassados foram violentamente compelidos a fazer. É uma
conclusão razoável tendo em conta os fatos históricos do arrendamento
de condenados e das chain gangs [grupos de presos acorrentados] que
outrora se generalizou. No entanto, dado que metade das pessoas presas
não são, obviamente, descendentes do sistema de escravidão racial, o
problema exige uma explicação diferente e, portanto, políticas
diferentes. Isto não significa que a linhagem da abolição que se estende
16
Geografia da abolição e o problema da inocência
através do sistema de escravidão não seja robusta o suficiente para
formar pelo menos parte da plataforma para acabar com o
encarceramento em massa no geral. No entanto, tal como está, para
alcançar importância, a extensão acrítica de um passado parcial para
explicar um presente diferente exige uma afirmação política sentimental
que depende da figura de uma vítima trabalhadora cujo arco narrativo
– cuja estrutura de sentimento – é fixo e, portanto, suscetível de
reabilitação – ou expurgação – em inocência relativa. A viragem para a
inocência assusta no seu esforço desesperado de repor o vazio deixado
por várias agressões, calculadas e cínicas, sobre o universalismo, por um
lado, e os direitos, por outro. Se não existem direitos universais, então
que categoria diferencial pode oferecer alguma proteção para os
vulneráveis? Na minha opinião, os defensores da inocência estão a
tentar construir tal abrigo, mas a sua linha de demarcação – tal como
aquela que demarca “legalmente” as pessoas assassinadas por drones ou
extraditadas por parte dos Estados Unidos no estrangeiro – pode e
move-se, expurgando a própria inocência anteriormente alcançada
através da expurgação. Por outras palavras, a dialética exige que
reconheçamos que a negação da negação é sempre abundantemente
possível e não tem uma direção fixa ou fim assegurado. Ela pode mudar
de direção e, consequentemente, pode não reviver a história antiga, mas
calibrar de novo os diferenciais do poder.
Considere-se o seguinte: um desenvolvimento contemporâneo
na patrulha da inocência relativa, destacado pela decisão do Supremo
Tribunal, mas não nascido dela, é no sentido de uma propagação
fenomenal tanto do policiamento de saturação (abordagem policial;
janelas quebradas; e vários tipos do chamado “policiamento
comunitário”) como da sua nova formação (que ecoa algumas práticas
do Second Klan): humanitarismo carcerário ou policial. Um dos
resultados da incansável estruturação das capacidades estatais-
institucionais do capitalismo racial contemporâneo, e os discursos e
práticas que combinam para as animar, é o “estado anti-estatal” – a
capacidade governamental dominada por partidos da ordem e políticas
17
Ruth Wilson Gilmore
públicas que alcançam o poder sob a plataforma de que os Estados são
ruins e devem encolher. O encarceramento em massa pode parecer
inconsistente com o chamado estado anti-estatal. Penso que, pelo
contrário, o encarceramento em massa é a sua base. Por outras palavras,
a tendência dominante que vai par a par com o encarceramento em
massa é a descentralização – a responsabilidade de encolher a prestação
de assistência social é continuamente relegada a instituições públicas
locais e privadas. Ao mesmo tempo, a crescente centralização (um
executivo forte) desmente uma das ilusões contemporâneas da
democracia – a noção de que o mais local é de alguma forma mais
participativo.
O humanitarismo carcerário/policial é um programa doméstico
de contrainsurgência que se espalha rapidamente pelos Estados Unidos
e no exterior. Tal como o encarceramento em massa, este
humanitarismo é uma característica daquilo que há algum tempo venho
chamando de forma estatal anti-estado, que distribui (para trazer Du
Bois) os salários da inocência relativa para conseguir uma nova ronda
de construção do estado anti-estatal. Não é uma novidade, mas agora é
algo totalmente visível na paisagem geral da exclusão e definição,
captura e recompensa. Isto também faz parte da descentralização e do
engrandecimento das organizações policiais junto aos parceiros sem
fins lucrativos e paraestatais a fim de identificar e atender as vítimas
(relativamente) inocentes de excesso de policiamento e prisão – por
vezes pessoas anteriormente encarceradas, por vezes as suas famílias,
por vezes os seus bairros. O humanitarismo policial chega às pessoas
vulneráveis com bens e serviços que, de fato, todos precisam –
especialmente todos aqueles que são pobres. Mas essa porta só se abre
através da colaboração com as próprias práticas que sustentam as
geografias do cárcere, que minam e destroem, em primeiro lugar, tantas
vidas de geração em geração.
Já vimos que a inocência não é estável, e é um mistério porque
é que alguma vez pareceu fiável. E embora nada nesta vida seja estável,
sentar-se para fazer causa comum com os autores intelectuais e agentes
18
Geografia da abolição e o problema da inocência
sociais que desencadearam e geriram o flagelo do abandono organizado
– iluminando, para a presente discussão, a violência organizada da qual
ele depende –, coloca em termos muito claros o perigo da defesa da
inocência.
Vamos, por um momento, pensar sobre este problema de outra
forma. Enquanto todos aqueles que se beneficiaram do sistema de
escravidão em ambos os lados do Atlântico, e de todas as formas de
escravidão que a precederam e se cruzaram com ela e desde então, são
responsáveis por injustiças viciosas contra os indivíduos e a
humanidade, provar a inocência daqueles que foram ou são
escravizados para qualquer fim não desempenha qualquer papel na
reparação da escravatura. No controverso, mas indispensável Slavery and
Social Death [Escravidão e Morte Social], Orlando Patterson observa que
o poder para matar é uma pré-condição para o poder de “domínio
violento, alienação natal, e desonra geral”. O poder de colocar seres
humanos em jaulas também deriva do poder de matar – não só por
meio da punição ritualizada da pena de morte, mas também através das
penas perpétuas, assim como o ritual de assassinatos em série pela
polícia que transformaram o lamento #BlackLivesMatter num
movimento. Patterson nos oferece a elegante reviravolta que nos ajuda,
infelizmente, a refletir em torno do continuum matar para manter: “Um
caiu porque era o inimigo, o outro se tornou o inimigo porque caiu.”4
O sacrifício humano, e não a inocência, é o problema central que
organiza as geografias do cárcere do complexo industrial-prisional. Na
verdade, para a abolição, insistir na inocência é render-se politicamente,
uma vez que a “inocência” escapa ao problema que a abolição é levada
a confrontar: como diminuir e remediar o dano em vez de procurar
melhores formas de punição. Para explicitar melhor aquilo que estou a
discutir, recorro às palavras da grande assaltante e espiã Harriet
Tubman. Ela contou a seguinte história:
4 PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death: A Comparative Study.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1982, p. 44.
19
Ruth Wilson Gilmore
Conheci um homem que foi enviado para a State Prison por vinte e
cinco anos. Durante todos esses anos ele pensou em sua casa,
contando o tempo até ser libertado. Os anos passaram e o tempo
de prisão terminou, o homem estava livre. Ele deixou os portões
da prisão, percorreu o caminho para a sua velha casa, mas a velha
casa não estava lá. A casa em que ele habitou durante a infância fora
destruída, e uma nova tinha sido colocada no lugar; a sua família
havia morrido, o seu nome esquecido, não havia ninguém que o
levasse pela mão para o acolher de volta à vida.
Também foi assim comigo. Eu tinha ultrapassado a linha com que
há tanto tempo sonhava. Eu estava livre, mas não havia ninguém
para me acolher na terra da liberdade, eu era uma estranha numa
terra estranha e a minha casa, afinal, estava na velha cabana com os
velhos camaradas e os meus irmãos e irmãs. Mas a esta solene
resolução eu cheguei; eu era livre, e eles também deviam ser livres;
eu faria um lar para eles.5
Infraestrutura de sentimento
W. E. B. Du Bois entrevistou Harriet Tubman no final de sua
vida. Por um tempo, em meados do século XX, uma pequena, mas
bastante estridente competição acadêmica se desenvolveu de modo a
“provar” quantas (isto é, o quão poucas) pessoas Tubman ajudou a
“passar” pela Underground Railroad [Estrada Subterrânea]. Por outro
lado, o historiador e sociólogo Du Bois, formado em Harvard e
Humboldt, um cara dos números, se é que já existiu algum, disse
centenas. E depois milhares! Por quê? Ele acabou se desleixando? Ou
começou a ver como as geografias da abolição são construídas, no
território, em todo lado ao longo da estrada – a estrada-tempo assim
como a estrada-espaço. Na verdade, terá ele sido capaz de reconstruir
em Black Reconstruction in America [Reconstrução Negra na América] a
5 “Harriet Tubman Narrative, 1849 (Based on an interview with Sarah Bradford after
the war),” in WRIGHT, Michelle D. (ed.). Broken Utterances: A Selected Anthology
of 19th Century Black Women’s Social Thought. Baltimore: Three Sistahs Press, 2007,
p. 89–90.
20
Geografia da abolição e o problema da inocência
sua pesquisa inicial sobre o Freedmen's Bureau6 por conta das reflexões –
verdadeiramente visionárias – que recebeu ao falar com a velha
Tubman? É aqui que considero que o conceito “infraestrutura de
sentimento” nos pode ajudar a pensar sobre o modo como refletimos
sobre o desenvolvimento e a perpetuação das geografias da abolição e
como tais geografias tendem, ainda que nem sempre de forma plena, à
negação da negação das geografias do cárcere sobrepostas e interligadas,
das quais o complexo industrial-prisional é um exemplo – embora
absolutamente não-exaustivo, como os exemplos das geografias da
abolição mostram.
Há mais de cinquenta anos, Raymond Williams argumentou que
cada era tem sua própria “estrutura de sentimento”, uma estrutura
narrativa para compreender os limites materiais dinâmicos perante a
possibilidade da mudança. Paul Gilroy e muitos outros pensadores
entraram em debate com o pensamento de Williams e demonstraram
que eras e lugares possuem necessariamente múltiplas estruturas de
sentimento, que são dialéticas e não meramente contemporâneas.
Williams explicou como podemos compreender a tradição como um
acúmulo de estruturas de sentimento – que se unem não pelo acaso,
nem por um processo natural semelhante a uma deriva ou maré, mas
por aquilo que ele chama de “seleção e re-seleção de ancestrais.”7 Com
isso, Williams nega a rigidez da cultura ou da biologia, descobrindo
perpetuamente como até mesmo os aspectos menos coerentes da
consciência humana – os sentimentos – têm forma dinamicamente
substantiva.
A Tradição Radical Negra é uma acumulação em constante
evolução de estruturas de sentimento cujos arcos narrativos individuais
e coletivos tendem persistentemente à liberdade. É uma forma de ação
consciente que se renova constantemente ao longo do tempo, mas
6 NT: O Freedmen's Bureau [Agência dos Homens Libertos] foi uma agência do início
da Reconstrução com o objetivo de prestar assistência aos homens libertos do Sul.
Foi estabelecida em 3 de março de 1865 e operou até 1872.
7 WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. London: Penguin, 1965, p. 69
21
Ruth Wilson Gilmore
mantém a sua força, velocidade, agilidade, flexibilidade e equilíbrio. As
grandes explosões e distorções da modernidade colocaram em
movimento – e em constante interação – compreensões novas e já
existentes sobre diferença, posse, dependência, abundância. Como
resultado, a seleção e re-seleção de ancestrais é, em si, parte do processo
radical de encontrar em qualquer lugar – se não em todos os lugares –,
na prática política e no hábito analítico, expressões vividas (incluindo
opacidades) de abertura participativa ilimitada.
O que está na base de tal acumulação? Qual é a capacidade
produtiva da re-seleção visionária ou motivada pela crise ou mesmo pela
exaustão? O melhor que posso oferecer até algo melhor surgir é o que
tenho há muito tempo chamado de “infraestrutura de sentimento”. No
mundo material, a infraestrutura está na base da produtividade – acelera
alguns processos e desacelera outros, estabelecendo agendas,
produzindo o isolamento, permitindo a cooperação. A infraestrutura de
sentimento também é material, no sentido de que a ideologia se torna
material, bem como as ações que os sentimentos possibilitam ou
restringem. Assim, a infraestrutura de sentimento é, portanto, a base da
consciência, robusta, mas não estática, subjacente à nossa capacidade
de reconhecer visceralmente (não menos que prudentemente) a
possibilidade imanente à medida que selecionamos e re-selecionamos
linhagens libertadoras – durante sua vida, Du Bois e Tubman são
exemplos entre e através de gerações. O que importa – o que se
materializa – são as rearticulações vívidas e os sincretismos
surpreendentes. Se as estruturas de sentimento para a Tradição Radical
Negra são, geração após geração, moldadas por uma tão almejada
consciência sobre a libertação e o mover-se em sua direção, então a
tradição é, sem exatidão, movimento para longe da compartimentação
e exclusão – de fato, seu inverso.
Libertação, Contra conclusão
Eis a geografia da abolição – como e com que objetivo as
pessoas constroem a liberdade provisoriamente, imperativamente,
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Geografia da abolição e o problema da inocência
enquanto imaginam um lar em oposição à trituração desintegradora da
partição e repartição através da qual o capitalismo racial perpetua os
meios de sua própria valorização. A geografia da abolição e os métodos
que lhe são adequados (para fazer, encontrar e compreender)
concretizam os processos espaciais – isto é, os processos humano-
ambientais – da democracia da abolição de Du Bois e Angela Davis. A
geografia da abolição é ampla (não é só feita por, para, ou sobre pessoas
negras) e específica (é um guia para a ação para compreender e repensar
o modo como combinamos nosso trabalho uns com os outros e com a
Terra). A geografia da abolição considera que o sentimento e a agência
são constitutivos da estrutura, não menos do que constrangidos por ela.
Por outras palavras, é uma forma de estudar, e de construir o trabalho
de organização política, de estar no mundo, e de trazer o mundo para
nós.
Dito de outra forma, a geografia da abolição exige desafiar a
presunção normativa de que o território e a libertação são ao mesmo
tempo alienáveis e exclusivos – que deveriam ser repartidos por vendas,
documentos ou paredes. Em vez disso, aproveitando as capacidades
particulares que temos, e nos repetindo – tentando, como C. L. R. James
escreveu sobre o período que antecedeu as revoluções, tentando cada
pequena coisa, indo e voltando – vamos, porque já o fizemos, mudar a
nós mesmos e ao mundo externo. Mesmo sob extremas restrições.
Uma última história: na década de 1970, o Departamento de
Correções da Califórnia decidiu reorganizar o mundo sócioespacial das
pessoas presas em resposta às mobilizações tanto reformistas e radicais.
Evidências mostram que o Departamento de Correções experimentou
uma variedade de esquemas disruptivos para eliminar a solidariedade
que tinha surgido entre a diversa (apesar de majoritariamente branca)
população prisional em prisões para homens. A cooperação, forjada em
grupos de estudo e outras atividades de conscientização, tinha resultado
em vitórias significativas com relação às condições de confinamento e
também resultado em retaliação mortal contra os guardas que matavam
presos com impunidade. Apesar de há vinte anos Washington ter
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Ruth Wilson Gilmore
proibido, entre outras coisas, a segregação, a falta de aconselhamento
sobre os direitos, a falta do devido processo legal e a punição
extrajudicial, o Departamento de Correções decidiu segregar os presos
em grupos raciais, étnicos e regionais rotulados como gangues, a fim de
deter alguns deles em confinamento solitário indefinido e para limitar o
fim da punição a três ações: delatar, liberdade condicional ou morrer.
Para reificar o sistema como um ambiente construído, o Departamento
de Correções criou duas prisões para homens e uma para mulheres com
Unidades Habitacionais de Segurança de alta tecnologia (SHU – uma
prisão dentro de uma prisão). A história das Unidades Habitacionais de
Segurança ainda está por ser contada; é indiscutível que induzem a
doenças mentais e físicas, que podem levar ao suicídio ou outras formas
de morte prematura evitável. Efetivamente, as Nações Unidas definem
o confinamento solitário por mais de quatorze dias como tortura.
As pessoas encarceradas na Prisão Estadual SHU de Pelican
Bay, algumas desde o dia em que foi inaugurada, a 10 de dezembro de
1989, podem ou não podem ter feito aquilo pelo que foram condenadas
em tribunal; a sua inocência não importa. Por muitos anos, advogados
e outros trabalharam com pessoas nas Unidades Habitacionais de
Segurança tentando descobrir uma saída, não escolhendo quem ajudar,
mas entrevistando qualquer pessoa disposta a falar sobre as condições
de confinamento, lutando para elaborar um plano geral. Ativistas
criaram manuais e websites, fizeram lobby, testemunharam a juízes de
direito, iniciaram ações judiciais, fizeram workshops, organizaram-se com
familiares e procuraram expor o flagelo das Unidades Habitacionais de
Segurança. (Em 1998, numa audiência sobre o encobrimento do caso
de sete presos das SHU que foram assassinados por guardas, o produtor
do programa 60 Minutes, de Mike Wallace perguntou: “Digam-me, por
que deveríamos nos importar com esses caras.” “Você se preocupa com
a justiça?” “Claro. Mas o público precisa se importar com as pessoas.
Por que o público deveria se importar?”)
O Departamento se absolve pela infração de leis e violação de
decretos judiciais insistindo que as gangues que eles fomentaram
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Geografia da abolição e o problema da inocência
administram as prisões e as ruas. Depois de quase quarenta anos de
pessoas circulando pelo Departamento Correcional expandido, é
impossível que não haja qualquer estiramento ou ressonância nas
paredes da prisão. A SHU mistura pessoas de geografias sociais do
mundo livre atribuídas (o que o Departamento diz) e assertivas (o que
os próprios presos dizem), a fim de minimizar a possibilidade de
solidariedade entre pessoas que, segundo a lógica circular, são inimigas,
caso contrário não estariam nas SHU. Não se podem ver ou tocar, mas
através do barulho dos aparelhos de televisão e do barulho das
máquinas das prisões, eles conseguem conversar, debater, discutir. E
embora a raça não seja o único fator organizador nas SHU, raça é o
termo sumário que pessoas comuns, dentro e fora, usam para nomear
as divisões. Por muitos anos, alguns dos residentes mais ativos das SHU
debateram racismo versus racialismo, primeiro abraçando e depois
questionando uma série de supremacias, enquanto por anos
continuaram aceitando a estrutura de sentimento que mantém a raça
como naturalmente dotada ou culturalmente preferível.
As pessoas constroem geografias da abolição a partir do que
têm; transformar consciências pode alterar radicalmente a compreensão
do que pode ser feito com os materiais disponíveis. É claro que as SHU,
em oposição calculada às prisões Soledad, San Quentin ou Attica dos
anos 1970, reduzem os recursos sociais ao ponto de ruptura. Mas o que
se quebra? Em muitos casos, as pessoas presas. Mas a consciência pode
irromper numa dimensão diferente, desfazendo os entendimentos de
senso comum do ser e solidariedade, da identidade e da mudança. A
negação da violência mediante violência é possível, o que nos leva de
volta ao território-do-eu invocado nas páginas que abriram esta
discussão. Mesmo numa instituição total, a soberania é contraditória,
como demonstra a resistência à tortura. O regime – os seus autores
intelectuais e agentes sociais, os seus prédios e regras – tortura os
cativos um a um. Eles podem se voltar contra o regime transformando
o objeto da tortura no sujeito da história por meio de greves de fome.
Indivíduos participantes voltam a violência da tortura contra si mesma,
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Ruth Wilson Gilmore
não de modo a torná-la não-violenta, mas redirecionando
intencionalmente a vulnerabilidade à morte prematura como uma
totalidade a ser considerada, mantida pela pele.
A primeira greve, cujos organizadores representavam todas as
supostas gangues prisionais, enviaram suas demandas para o
Departamento de Correções, pedindo melhorias modestas para todas
as vidas e destinos dos habitantes das Unidades Habitacionais de
Segurança: melhor alimentação, melhores condições de visitas e alguma
forma de poder para contestar as penas das SHU com base em
evidências em vez do engrandecimento do sistema. Pessoas em muitas
prisões não-SHU se juntaram à greve em solidariedade e uma morreu.
O Departamento se ofereceu para negociar e a greve terminou. Nada
mudou.
Irrompeu uma segunda greve, mantida tanto pelos sempre
presentes boatos na prisão quanto pela infraestrutura de apoio que o
coletivo organizador recebia do mundo exterior. No contexto da
decisão da Suprema Corte em relação à negligência médica e às revoltas
em várias partes do planeta – África do Norte, Sudoeste Asiático, África
do Sul, as ruas dos Estados Unidos – as demandas tomaram uma nova
direção, contra as divisões que, especialmente na era contemporânea,
normalizaram imaginações descentralizadas e diminuíram as afinidades
quando era absolutamente necessário expandi-las. O coletivo enviou
suas exigências, horizontalmente, para suas comunidades constituintes
de dentro e do exterior, pedindo o fim das hostilidades entre as raças.
Apesar de algumas pessoas interpretarem os apelos como
“solidariedade entre pretos e pardos (Black-brown solidarity)” – porque
raça parece significar pessoas não-brancas –, os documentos do coletivo
eram radicais e abrangentes. O apelo tem uma história tão antiga quanto
a modernidade, por mais anacrônicos que rótulos contemporâneos
possam ser.
O racial no capitalismo racial não é epifenomenal, nem se
originou em cor ou conflito intercontinental, mas sempre na
diferenciação de grupos à morte prematura. O capitalismo requer
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Geografia da abolição e o problema da inocência
desigualdade e o racismo a garante. O coletivo da Prisão Estadual de
Pelican Bay, escondidos uns dos outros, vivenciando ao mesmo tempo
a tortura, o isolamento e a extração do tempo, reconfigurou o seu
mundo ainda que provisoriamente numa geografia da abolição ao
encontrar uma infraestrutura de sentimento sobre a qual podia trabalhar
a sua experiência e compreensão das possibilidades por meio da
consciência renovada. A ficção da raça projeta uma ação particular do
corpo humano e as pessoas ocupam as ruas em oposição aos seus
efeitos reais e mortais. E, no final, à medida que as relações do
capitalismo racial recaem sobre a pele das pessoas, a contradição da pele
se torna mais visível. A pele, o nosso maior órgão, vulnerável a todas as
toxinas ambientais, é tudo que, no final, temos para nos manter unidos,
não importa o quanto ela pareça nos manter separados.
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