● Estética musical que emerge das condições impostas pelos processos de colonização,
racialização e subalternização na Jamaica
● A história das existências negras em diáspora é marcada pelo assalto de suas
memórias e pela fratura das suas inscrições no mundo.
● A música reggae desponta no século XX, como uma resposta sociocultural engajada
pela luta contra o colonialismo
● As formas de dominação socioculturais estão alicerçadas na tentativa de imposição de
padrões de existência. Nesse cenário, tornou-se comum no campo da música a
universalização dos pressupostos ocidentais. A música passou a ser vivida como se
ela tivesse assumido a sua expressão mais virtuosa no Ocidente (Quijano,2006)
● As musicovivências eclodem na música afro- -jamaicanas a partir de subjetividades
que se alicerçam em sentimentos coletivos de existências que foram insistentemente
negadas. Em forma de reggae, elas propagam os sentimentos, as dores, as alegrias, os
gritos e os sussurros que emergem dos guetos do Caribe
● Estilo reggae jamaicano, construído a partir de um cenário de colonialidade, mas
também de (re)existência, como um estilo outsider frente a um padrão estético
colonial
● fazer música que se associa aos padrões estéticos dos grandes centros do mundo
ocidental euro-americano, conformando o campo da música como um espelho do
modo de existência colonialista
● As teorias musicais ocidentais, embora tentem afirmar a pureza de sua musicalidade,
comportam traços sonoros que acusam uma forte influência de outras culturais
musicais em sua conformação
● Napolitano (2002) argumenta que historicamente se estabeleceu uma falsa dicotomia
no estudo da música erudita e da música popular, o Ocidente institui um modelo
desejado para a forma/conteúdo musical, a qual repercute em efeitos negativos no
modo como a música popular nas Américas é analisada.
● A música erudita e os estilos que mais dialogam com ela passam a compor o padrão
positivo dentro de um sistema classificatório musical
● Foi como consequência dessa cisão que a música produzida no Ocidente passou a ser
considerada de qualidade, enquanto a que era criada nas periferias se tornou ruim
● Dentre os estilos que se lançaram nesse embate pela ressignificação, encontra-se o
reggae jamaicano, surgiu nos anos 60 frente à modernidade ocidental, e apresentou ao
mundo a capacidade das músicas construídas pelo dilema das populações
afrodiaspóricas transatlânticas em busca de Ser, a partir da confluência sonora,
simultaneamente moderna e modernizante. Assim, Gilroy (2001, p. 159) nos sinaliza
sobre a potência descolonizadora das sonoridades do Atlântico negro
● Na medida em que despontou do cotidiano da periferia, dotou-se de uma posição
instável diante do capitalismo. Por outro lado, enunciou ao mundo uma
musicovivência capaz de ao mesmo tempo se inserir nas condições de produção
exigidas pela indústria fonográfica e desarticular a estreiteza dos padrões estéticos de
música ocidental
● Música fortemente ligada aos anseios de contestação e libertação das populações
afrodiaspóricas diretamente relacionadas com o processo de reafricanização
● O processo de reafricanização corresponde ao movimento de apropriação pelos(as)
negros(as) dos rumos de sua existência, diante da negação colonialista de sua
humanidade, práxis de reconstrução dos seus horizontes de localização no mundo, a
partir da formação de textos, objetos, narrativas, símbolos, discursos, performances
processo de reexistencia do sujeito afrodiaspórico. Essa (re)existência afrodiaspórica,
a partir da afirmação das matrizes africanas, conforma-se como uma práxis política
frente as opressões
● Composição musical do reggae jamaicano tem uma interface com estilos e gêneros
locais como: as músicas indígenas, as músicas dos marroons, mentos, ska e
rocksteady. Desse modo, o reggae tem em suas bases uma forte influência de estilos e
gêneros musicais de outros países
● O cotidiano dos afro- -jamaicanos das periferias estava recheado por experiências
musicais. A música vinha de muitos lugares e de diversas formas para ser absorvida e
regurgitada em novas sonoridades. As sonoridades chegam através dos fluxos das
ondas das rádios norte-americanas, das tradições musicais trazidas pelos colonos,
dos discos que acompanhavam os trabalhadores marinheiros aos diferentes portos,
dos cânticos religiosos do trabalho rural, das rodas de confraternização e dos rituais
religiosos.
● Em um cotidiano marcado pela colonialidade, para os afro-jamaicanos as relações
afetivas e religiosas foram as poucas lacunas de liberdade encontradas por eles para
continuarem o desenvolvimento de suas habilidades humanas, tais como a
sensibilidade estética, a cultural e a manutenção da ancestralidade africana
● As práticas artísticas e musicais dos afrodiaspóricos nos estados periféricos estavam
relacionadas ao estabelecimento de laços afetivos, que transbordavam do domínio do
ensino formal das escolas de arte. Esses espaços foram de fundamental importância
para oferecer aos negros as condições necessárias para criação de suas
musicovivências
● Os músicos afro-jamaicanos estão amparados em suas trajetórias pela mobilização de
afetos, realizada por formas de sociabilidades como os laços de afinidades, a
religiosidade, o ativismo político e a práxis filosófica marginal
● Os cenários criativos dessas musicovivências estavam alicerçados na precariedade e
no terror da racialização, escravização e das necropolíticas adotadas, como as
políticas de secessão e a política de extermínio, definindo aqueles que morrem e que
vivem
● O Estado semi-independente jamaicano, aplicou uma política de austeridade e de
redução das redes de proteção social.
● a capital, Kingston, foi lugar de aplicação intensa de necropolíticas. Os dois exemplos
mais expressivos do desamparo correspondem à realidade de miséria vivenciada pelo
bairro de Trench Town e à formação dos Rude Boys, grupo de jovens que viviam de
furto, espalhando terror e violência entre a população da capital. É nesse cenário de
miséria que foram forjados os principais representantes do reggae jamaicano, dentre
eles Bob Marley, Bunny Walers e Peter Tosh
● Viver a realidade de miséria das favelas, como em Trench Town, corresponde a uma
atualização dos processos de desumanização vivenciados na face mais cruel da
escravização. Ser um ser humano negro na fase do colonialismo contemporâneo
também produz ódio, violência e inveja
● Nesses cenários de crueldade, aos quais foram jogados os jovens afro-jamaicanos,
restava-lhes compor uma canção que se tornasse um grande hit dos dance hall da
cidade de Kingston, ao invés de conviver com a certeza do abreviamento de sua
existência, pelo estado de exceção dos aparelhos estatais
● Foram as desgraças produzidas pela condenação de existências afro-jamaicanas às
condições de miséria que fundamentaram a base contestatória e potente para o
cenário de eclosão do reggae, relacionado com uma forma de fazer música
diretamente associada a um engajamento sociopolítico, latência política que estava
presente nas bases de surgimento do reggae
● Para os negros de todo o mundo, os anos 60 foram um tempo de conscientização
● A associação entre a música e a filosofia rastafári cumpriu papel sine qua non para
estabelecer os princípios e horizontes a serem perseguidos pelos músicos na
orientação das suas composições. A filiação de muitos dos intelectuais orgânicos do
reggae ao rastafarianismo funcionou como um mediador da relação entre estética
musical e filosofia marginal nas produções das músicas
● Ao estabelecer um diálogo com uma filosofia política marginal, o reggae jamaicano
buscou redefinir os limites rígidos das formas ocidentais estéticas
● Assim, o gênero jamaicano realiza um processo de transfiguração das relações
estabilizadas em uma ciência autônoma e asséptica, ao colocar em curso um processo
de ruptura entre as fronteiras rígidas existentes entre a música e os saberes do mundo.
O estilo adiciona as possibilidades de conhecer expressões sociais ligadas
diretamente à esfera do sensível
● O reggae é um estilo que terá suas produções sonoras firmadas nos principais dilemas
que os afro-jamaicanos vivenciavam em sua realidade cotidiana. Posto que, aliado à
efervescência da cotidianidade, estava o vigor da ancestralidade de matriz africana,
que criou caminhos alternativos à colonialidade
● A educação musical dos cantores e instrumentistas do reggae estava diretamente
ligada a um aprendizado cotidiano de entrelaçamento entre o continente africano e a
diáspora, através das lutas e das expressões de (re)existências musicais das
ancestralidades afrodiaspóricas
● A música reggae jamaicana é um estilo que não se restringe às partituras musicais,
pois o seu compasso é marcado pelas nuances rítmicas que tocam o corpo (este já
extremamente sensível às marcas históricas do colonialismo). Ela é uma música que
surgiu do reconhecimento das marcas que estavam dentro dos afrodiaspóricos, a partir
dos sons.
● O reggae veio com a obrigação artística de refletir o seu tempo, a luta contra o
colonialismo. Não há como tocar uma música de corpos tão marcados sem se colocar
na trincheira. Na realidade social afro-jamaicana, a música cumpriu essa incumbência
de ser o baluarte de (re)conexão da sua herança ancestral com o dilema do que é ser
negro nas periferias das Américas no século XX
● Os músicos do reggae utilizavam a matriz africana na música em comum acordo com
o desenvolvimento da tradição de ensino europeu. Essa hibridez musical levou à
produção de músicas que em suas bases romperam com as diretrizes estéticas de
padrão ocidental
● os sistemas instrumentais harmônicos e dissonantes estavam alinhados ao movimento
estrutural das claves rítmicas
● o reggae jamaicano em seu processo de internacionalização passou por diversos
cenários de coação para que se adequasse à indústria fonográfica. Danny Simso,
proprietário da editora Cayman Music, um dos responsáveis por internacionalizar os
The Wailers, chegou a deixar claro em entrevista que exercia pressão sobre Bob
Marley para diminuir o conteúdo político de suas músicas
● os músicos do reggae eram intelectuais orgânicos da música da diáspora negra no
Atlântico. Esses cantores e instrumentistas não encaravam a música meramente como
uma expressão artística, mas como um instrumento estético sonoro engajado em
lutas políticas dos seus cotidianos afrodiaspóricos. As suas músicas e seus ideais
estavam entrelaçados com as lutas do povo periférico negro no mundo
● O estilo conseguiu que sua estratégia de resistência fosse ouvida pelos negros e
negras, e por sujeitos subalternizados, espalhados pelo mundo
● possibilitou ao reggae fazer parte da indústria de massa, mas sem ser necessariamente
subsumido pelos seus interesses. A existência da internacionalização do reggae
possibilitou que o mundo dos povos diaspóricos pudesse olhar para África e se
identificar, ajudando a cantar as canções de liberdade.
● Mesmo as tensões que emergiram com a internacionalização do reggae, que se deram
por uma tentativa de colonizar o estilo musical, o reggae pode ser compreendido aqui
como uma música popular, por ter suas bases estéticas mobilizadas, por um lado, pela
relacionalidade entre as diversas culturas sonoras no mundo, por outro, por trazer em
suas sonoridades a vivência de uma população que busca (re)existir, pela música, às
agruras da colonialidade
● O reggae se constitui como um estilo musical que contrapõe uma acepção
universalista do modelo estético ocidental, criando uma estética que se conforma
pelos diálogos entre os múltiplos saberes