Elena
Minha respiração é pessada, irregular, como se eu estivesse forçando meu
corpo a funcionar. Como pode alguém sentir tanta dor só por respirar? Estou
morrendo? Cada inspiração traz uma pontada aguda no peito, como se o ar
estivesse se recusando a cooperar. Por que meu peito dói tanto? De onde vem
essa dor latejante da minha cabeça? O mundo ao meu redor está turvo,
envolto em uma névoa que sufoca e confunde. Estou deitada em algo macio
e úmido — talvez grama, talvez terra — mas não consigo distinguir. O frio
que sinto vai além da pele; é como se ele tivesse se infiltrado nos meus ossos.
— Você consegue me ouvir? — uma voz ecoa, distante, como um murmúrio
vindo de outro mundo.
Tento responder, mas minha garganta está seca. Minha visão está embaçada,
as luzes ao redor se misturam em um borrão pálido e pulsante. Tudo dói: a
cabeça lateja, os braços estão pesados, o peito parece esmagado por um peso
invisível. Não sei onde estou, e isso me aterroriza.
— Está perdendo muito sangue... — ouço novamente, mas as palavras
chegam até mim abafadas, como se fossem pronunciadas debaixo d’água.
O som de passos rápidos e frenéticos, o tilintar de algo metálico. Tento
levantar a cabeça, mas a dor me força a parar. Estou presa nesse estado entre
o consciente e o inconsciente, flutuando em um mar de dor e confusão. O
gosto metálico do sangue invade minha boca, trazendo um pavor primitivo.
O que está acontecendo comigo?
Elena
Uma hora antes.
Eu estava feliz que nem percebi o quanto aquilo era ingênuo. Saí do trabalho
mais cedo, sorrindo, já imaginando a surpresa no rosto de Daniel. Ele tinha
dito que estaria ocupado em casa, trabalhando em projetos atrasados. Eu
sabia que ele odiava ser interrompido, mas queria fazer algo especial. Era o
mínimo que podia fazer depois de todas as pequenas brigas e desconfortos
dos últimos meses.
Quando chego à recepção do prédio, a mulher atrás do balcão me deu um
sorriso amigável, embora destraído. O saguão estava impecável como
sempre: mármore brilhante, um aroma leve de lavanda no ar, e um silêncio
que só era quebrado pelo som de passos e vozes abafadas.
— Olá, em que posso ajudar? — ela perguntou.
— Estou aqui para ver alguém. Meu namorado mora aqui.
Ela assentiu, os dedos dançando no teclado enquanto digitava alguma coisa.
Após eu informar o número do apartamento . ela hesitou.
— Só um momento. — seu olhar mudou de amigável para cauteloso, me
deixando confusa.
Fiquei esperando, olhando para o movimento na entrada onde pessoas
elegantes passavam , algumas com olhares rápidos e julgadores. Foi então
que ela voltou a falar:
— O senhor Daniel saiu faz três horas... A mulher que está no apartamento
disse que ele foi a um evento de trabalho e só volta na segunda-feira.
O tempo pareceu congelar por um momento, tudo pareceu incrivelmente
silêncio de um jeito e perturbador por um momento. Então tudo descogelou
e os murmúrios ao meu redor se tornaram a altos demais.
— Mulher? — minha voz saiu fina, quase um sussurro, enquanto eu tento
me agarrar a algum resquício de lógica, de esperança, de que eu tinha
entendido errado..
Mas as palavras estavam ali, tão claras, tão cruéis. Elas ricochetearam na
minha mente, repetindo-se como um eco infinito: "A mulher... no
apartamento..."
Senti o chão sumir sob meus pés. Um frio gélido tomou conta do meu corpo,
e minhas mãos começaram a tremer de forma incontrolável. O ar ficou
pesado, difícil de respirar. Minha garganta se fechou, mas, ao mesmo tempo,
meu peito parecia explodir com algo que eu não sabia se era raiva, dor ou
incredulidade. Meus olhos começaram a arder, mas eu não podia chorar ali.
Não diante daquela mulher, não diante de estranhos. Tudo dentro de mim
queria gritar, mas meu corpo não conseguia reagir.
Minha mente gritava para que aquilo fosse um engano. Talvez ela tenha se
confundido... Talvez ela tenha dito o número errado... Talvez...
Mas, no fundo, eu sabia. Sempre soube.
O peso da traição esmagou meu peito como uma tonelada de tijolos. Minhas
pernas vacilaram, e precisei me apoiar no balcão.
— Senhora? Está tudo bem? — a voz da recepcionista parecia distante, como
se viesse de outro planeta.
Preciso sair daqui. Preciso entender, preciso ver com os meus próprios olhos.
Eu me viro sem dizer mais nada, saindo apressada pela porta do prédio. As
palavras ainda ecoavam na minha cabeça: "A mulher... no apartamento de
Daniel."
O ar frio me atinge com força quando saio para a rua, mas eu não sinto nada,
exceto um vazio crescente dentro de mim. O prédio, as pessoas, tudo à minha
volta parece distante, como se eu estivesse caminhando em um sonho. Meus
pés tocam o chão de forma automática, mas minha mente está em outro lugar.
Meu estômago revira, e a sensação de náusea cresce enquanto eu tento
processar tudo o que acabei de ouvir.
As vozes das pessoas ao meu redor, os carros que passam, tudo isso se
mistura, fica abafado. Eu só consigo ouvir minha própria respiração
acelerada e os pensamentos que correm, desencontrados, tentando se
organizar. Ela está no apartamento dele. Essas palavras se repetiam como
uma sentença cruel, como se fossem tatuadas no meu cérebro..
Quem é ela? Por que estava no apartamento de Daniel? Meu celular vibra na
bolsa. Tiro o aparelho com as mãos trêmulas e vejo o nome de Daniel
brilhando na tela. Respiro fundo antes de atender, mas quando ouço sua voz,
tudo dentro de mim parece explodir.
— Amor, onde você está? Você foi até o meu apartamento? Olha, não é o
que você está pensando... — sua voz tem o tom de falsa calma que ele sempre
usava para me manipular. — Eu tive que sair cedo, e a Morgan estava lá...
Morgan. O nome dela me atingue como um soco no estômago, uma onda de
memórias se joga contra mim me levando a noite em que a conheci, no
evento da empresa onde ela e Daniel trabalham. Daniel me levou como sua
acompanhante, mas ficou ocupado com colegas e clientes. Morgan apareceu
do nada, alta, impecável, com um sorriso que não parecia amigável, e sim
calculado.
— Você é Elena, certo? — ela disse, me olhando de cima a baixo com os
olhos frios, como se estivesse procurando falhas em mim.
Naquele momento, não dei muita importância. Mas depois, no banheiro, ela
se aproximou novamente. Suas palavras ainda ecoam na minha cabeça.
— Daniel é tão... dedicado, não é? — disse ela, enquanto ajustava o batom
no espelho. — É raro encontrar alguém assim. Espero que você saiba
valorizá-lo. — seu sorriso me provocou calafrios.
Havia algo na forma como ela disse isso, um tom de desdém sutil. Como se
quisesse avisar que ele merecia algo melhor — ou alguém melhor. Desde
então, sempre que estávamos no mesmo espaço, eu sentia aquele olhar. Não
era ódio direto, mas uma mistura de superioridade e desprezo, como se ela
soubesse de algo que eu não sabia. Uma vez, peguei Daniel rindo de algo
que ela disse, de um jeito que ele raramente fazia comigo. Isso me deixou
inquieta, mas ele sempre jurava que não havia nada entre eles.
— Morgan? — perguntei naquela noite, minha voz hesitante.
— O que tem ela? — ele respondeu, confuso.
— Vocês... parecem próximos.
Ele riu. Um riso que deveria me tranquilizar, mas só me deixou mais ansiosa.
— Amor, ela é minha colega de trabalho. Só isso. Eu nunca trairia você,
ainda mais com ela.
A forma como ele enfatizou "com ela" me incomodou. Não era um "nunca
trairia você" absoluto. Era como se estivesse rejeitando especificamente a
ideia de estar com Morgan, mas não necessariamente a de trair. Agora,
enquanto ouço seu nome novamente, todos esses momentos se conectam. As
risadas abafadas, os olhares furtivos, a maneira como ela me tratava como se
eu fosse temporária na vida dele.
— A Morgan estava... o quê, Daniel? — minha voz sai trêmula, mas
carregada de algo que beira o ódio.
— Nada, amor. Estamos trabalhando em um projeto juntos, ela estava...
Desligo antes que ele possa dizer mais. Não quero ouvir. Não quero uma
desculpa esfarrapada ou outra mentira para cobrir as anteriores. Minhas mãos
estão tremendo tanto que mal consigo colocar o celular de volta na bolsa.
Morgan. Ela venceu, não é? Todo o desprezo que ela demonstrava, como se
eu fosse uma intrusa, estava certo. Ela sabia que um dia Daniel seria dela. E
eu... eu fui a tola que acreditou no contrário.
Sinto a bile subir novamente, o gosto amargo na minha garganta. Corro para
a calçada, pressionando as mãos contra o estômago, e vomito em uma lixeira
próxima. Pessoas me olham, algumas com preocupação, outras com
desprezo, mas eu não me importo. Tudo o que sinto é dor. Não física, mas
algo mais profundo, algo que rasga meu interior como uma lâmina invisível.
Como pude ser tão burra?
Eu mal consigo pensar, meus pensamentos são como um turbilhão, uma
mistura de raiva, tristeza e algo muito mais profundo e perturbador — uma
sensação de vazio. De perda. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu
me forcei a mantê-las presas. Não, não vou chorar por ele. Era tudo culpa
minha, não dele. Eu fui a tola, eu… O pensamento me dilacerava, e o vazio
no meu estômago parecia e expandir, fazendo o mundo girar em torno de
mim.
As ruas à minha frente estão borradas, como se o mundo tivesse sido pintado
em aquarela e a água tivesse se espalhado em cada direção. Tudo ao meu
redor pareceia distorcido, parecia que tudo estava coberto por uma névoa
espessa como em um pesadelo que eu não conseguia controlar. Cada passo
tornava a dor insuportável, minhas pernas se recusavam a obedecer, sinto
que perdi o controle do meu corpo, como se ele tivesse vida própia, seguindo
seus próprios comandos e ordens.
Não percebi, como eu poderia? O som de peneus cortou o ar, alto e frenético,
vindo na minha direção como um furacão. Não consegui perceber de ode
vinha o som, tudo parecia borrado, uma mistura de medo e confusão tomou
conta de mim, a ansiedade começou a me engolir, fazendo os meus pés
pararem como se estivessem presos no chumbo. Olhei para frente, sem
entender o que estava acontecendo O brilho de luzes finalmente me
alcançou, cortando a névoa que me envolvia, não consegui me mover, meu
corpo paralizou e o medo se intensifcou me fazendo congelar na calçada.
Senti a dor bem antes do impacto, uma ardência em meu peito, o gosto da
bile misturado, o ar saindo dos meus polmões. Senti algo quente escorrendo
do meu corpo, um gosto metálico na boca, meus olhos não conseguiam
definir o qu estava acontecendo, onde eu estava. Tentei abrir os olhos, mas
eles pareciam pesados, pegajosos. Nenhum som, nenhuma luz, tudo se foi.
Peter
Não sei mais há quanto tempo estou aqui. O trânsito simplesmente parou, e
a cada minuto que passa, a frustração dentro de mim cresce. Eu estou tão
atrasado para o jantar com a minha família que posso quase ver a expressão
no rosto do meu pai quando eu finalmente chegar lá, sem desculpa alguma
que seja boa o suficiente. Vai ser aquele olhar de desaprovação, e eu só sei
que vou ter que aguentar mais uma noite de reclamações. O pior é que eu
ainda vou sentir que ele tem razão. Como sempre. Sinto uma inquetação
crescente, eu já devia estar habituado com as coisas que o meu pai diz, mas
ainda assim nunca escapo das suas palavras duras. Ele está sempre lá, me
avaliando, me fulminando, me culpando por tudo.
As pessoas ao meu redor começam a sair dos carros, se arrastando com um
olhar curioso, tentando entender o que está acontecendo. Não vejo ninguém
muito preocupado, mais como uma mistura de curiosidade e tédio. Mas
então, a mulher no carro ao lado diz alguma coisa para o celular, e as palavras
dela são como um soco no estômago.
— Parece que é um acidente... Uma mulher foi atropelada. O motorista
estava bêbado, dizem.
Um acidente, espero que a mulher sobreviva. Pego o meu celular para avisar
para a minha irmã que não vou chegar a tempo. Eu paro por um momento,
quase não acreditando no que acabei de ouvir. Uma mulher foi atropelada?
O pensamento fica se repetindo na minha cabeça como um eco. Eu nem sei
como reagir. Claro, eu me preocupo, mas, ao mesmo tempo, uma parte de
mim só quer esquecer. Isso não muda nada para mim. Eu ainda estou preso
aqui, sem poder sair, sem poder fazer nada.
Respiro fundo e tentando me concentrar em algo que possa controlar. Pego
o celular, procurando o número minha irmã. Tenho que avisar que vou me
atrasar. Pelo menos isso.
— Onde você está, Peter? — ela parece quase descontrolada do outro lado
da linha. — O papai está perguntando por você, e eu estou ficando maluca.
A culpa me atinge. O que estou fazendo? Eu sou o irmão mais velho. Sou o
responsável, certo? Deveria estar lá, pronto para ser a pessoa que ela conta,
mas estou aqui, no meio de um trânsito parado, como se o mundo não
estivesse nem aí para mim.
— Desculpa, não vou conseguir chegar a tempo — respondo, tentando não
soar como se estivesse desesperado, embora sinta que estou. Minha mão vai
até a testa, pressionando com força, como se isso fosse me aliviar de alguma
forma. — A estrada está bloqueada. Aconteceu um acidente.
Ela fica em silêncio por um momento, e eu sei o que ela está pensando. Não
preciso que ela diga, mas sinto a tensão crescendo na linha.
— Meu Deus, que coisa horrível... — Ela soa mais calma agora, mas o medo
ainda está lá, subjacente. — Você está bem? Por favor, tenta dar um jeito de
sair daí, preciso de você aqui.
Eu queria poder fazer algo. Queria poder ser mais do que isso. Mas a verdade
é que eu não posso fazer nada além de esperar. Eu queria ser o tipo de pessoa
que encontra uma solução para tudo, mas hoje eu sou só um homem preso
no trânsito, vendo a vida passar.
— Vou tentar, ok? — Eu não sei se estou me convencendo ou tentando
convencer ela. — Amo você. Tchau.
Desligo a ligação, e fico olhando para o tráfego à minha frente, que não se
move. Cada carro que passa não me dá nenhuma solução. Eu olho para o
retrovisor, vejo os carros parados atrás de mim. Não posso sair, não posso
mudar nada. Sinto como se estivesse em um impasse, uma prisão invisível,
com nada mais a fazer além de esperar.
Eu queria estar lá com minha família, enfrentar a raiva do meu pai, ouvir
minha mãe reclamando do atraso. Eu queria estar com minha irmã, tentando
fazer as pazes antes que a noite acabe. Mas agora? Agora, tudo o que eu
posso fazer é esperar. E isso é o que mais me consome. O tempo está
passando, e eu estou preso, sem poder fazer nada.
°°°
— Desculpa a demora — digo assim que entro na casa dos meus pais,
segurando o bolo que agora parece pesar mais do que deveria. — O trânsito
estava horrível.
Minha mãe aparece quase imediatamente, como sempre, com um sorriso que
nunca perde a ternura, mesmo depois de tudo o que passamos.
— Meu amor, estava com tantas saudades. — Ela me abraça antes mesmo
de tirar o bolo das minhas mãos. O toque dela é suave, mas firme, como se
tentasse me manter ali, seguro. — Seu pai e sua irmã estão na sala.
Faço um aceno de cabeça e caminho até lá, com um nó crescente no
estômago. Sempre que cruzo a porta da sala, sinto como se estivesse entrando
em um tribunal. Não há necessidade de olhar para saber: meu pai está sentado
no canto direito do sofá, o lugar que ele reivindicou como seu domínio.
Emma está ao lado dele, mas seu corpo está tenso, e o sorriso que ela me dá
assim que me vê não chega aos olhos.
— Você está atrasado. — a voz grave e cortante do meu pai ecoa antes que
eu possa dizer qualquer coisa.
Suspiro e me sento no sofá, enfrentando a tempestade que já esperava.
— Houve um acidente. As estradas foram fechadas, e o trânsito ficou
insuportável. — minha explicação é objetiva, mas sei que, para ele, soa como
uma desculpa fraca.
— E você não podia avisar? — ele arqueia uma sobrancelha e se levanta, os
movimentos lentos e carregados de desdém. — Assim, poderíamos ter
começado sem você. Sua mãe ficou preocupada. E nós não podemos ficar
esperando por você como se...
Ele não termina, mas não precisa. Suas palavras sempre estão aí, mesmo
quando ele não as diz. Mesmo sem mencionar eu consigo ouvir: "Se fosse
Mark, isso não teria acontecido."
A sombra de Mark sempre esteve entre nós. Mark teria chegado na hora. Ele
nunca teria precisado dar desculpas. Ele teria sido a razão de orgulho que eu
nunca consegui ser. E mesmo sabendo que não é justo comparar, é inevitável.
O filho perfeito. O orgulho da família. O elo que eu nunca consegui alcançar.
Até hoje, me culpo pela última discussão que tivemos, dias antes de sua
morte. Ele gritava que eu precisava "crescer e ser útil", e eu, consumido por
minha própria raiva e insegurança, devolvia palavras que preferia nunca ter
dito. Eu sabia que meu pai também me culpava. Nunca foi dito abertamente,
mas estava lá, nos olhares, nos silêncios. Ele perdeu o filho favorito, e eu
fiquei para lembrar a todos o que ele havia perdido.
— Sim, pai. — minha resposta é automática, sem energia.
Ele me lança um olhar longo antes de sair da sala. O som dos passos dele
desaparecendo pelo corredor é um alívio, mas o vazio que deixa é quase pior.
Emma suspira ao meu lado, parecendo carregar o peso de toda a cena
sozinha. Ela se vira para mim, os olhos cheios de algo que só posso chamar
de cansaço.
— Você está bem? — pergunta Emma, sua voz suave me puxando de volta
ao presente.
— Estou. — minto com um sorriso fraco, desviando a pergunta. — E você?
Ela hesita, e por um momento seus olhos ficam distantes, como se carregasse
o peso do mundo em suas costas.
— Estou noiva.
Demoro um segundo para absorver a notícia.
— O quê? — minha voz sai mais alta do que deveria, mas rapidamente a
suavizo. — Isso é... incrível, Em.
Ela solta um suspiro, mas ainda evita meu olhar. Seus dedos brincam com a
bainha de sua blusa, um gesto nervoso que reconheço desde que éramos
crianças.
— Você acha que vou ser uma boa esposa? — sua voz é baixa, quase um
sussurro, carregada de dúvidas.
— Claro que vai. — respondo sem hesitar. Mas ela balança a cabeça, e vejo
as lágrimas começarem a cair, rolando silenciosamente pelas suas
bochechas.
— Eu não sei... — sua voz quebra, e ela finalmente me encara, os olhos
marejados e vulneráveis. — Não tenho certeza se consigo.
Respiro fundo, me inclinando para segurar suas mãos trêmulas.
— Emma, olha pra mim. — espero até que ela levante o olhar, mesmo
relutante. — Você é a pessoa mais incrível que eu conheço. Você tem o
coração mais gentil, a alma mais bonita. Você se preocupa até com as plantas
do jardim, por Deus.
Ela solta uma risadinha, ainda com lágrimas nos olhos.
— Lembra da vez que você resgatou aquele cacto na lixeira porque achou
que ele estava 'sofrendo'? — continuo, tentando esconder meu sorriso. —
Um cacto, Emma! Ele sobrevive no deserto, mas você achou que precisava
de você para salvá-lo.
Ela ri de verdade dessa vez, um som baixo, mas genuíno, enquanto enxuga
as lágrimas com as costas das mãos.
— Eu não tinha percebido que era um cacto... — murmura, um pouco
envergonhada.
— E ainda assim, ele floresceu, não foi? Porque você cuidou dele como se
fosse o bem mais precioso do mundo. E é assim que você ama, Emma. Com
tudo o que você tem. E isso... — faço uma pausa, apertando levemente suas
mãos. — Isso é tudo o que alguém poderia pedir.
Ela sorri, e, por um momento, vejo a Emma de sempre — forte, doce e cheia
de luz, mesmo em meio às suas dúvidas.
— Obrigada, Peter. — diz baixinho.
— Sempre, Em. — respondo, retribuindo o sorriso.
Elena
— Foi por pouco...
— Ela...
Vozes. Parecem misturadas, quebradas e abafadas, como se viessem de outro
mundo. Tento me concentrar, entender o que estão dizendo, mas é inútil. Elas
escapam, escorregam como água entre os dedos. Onde estou? Tento abrir os
olhos, mas é como se estivessem grudados. Há algo os mantendo fechados
— não sei se é cansaço ou outra coisa, mas dói. Tudo dói. Meu corpo inteiro
está pesado, como se eu tivesse sido atropelada por um caminhão.
Espera.
Atropelada.
A dor é imensa. E, aos poucos, como se uma porta estivesse sendo aberta
dentro da minha mente, as memórias começam a vir, fragmentadas, confusas.
As luzes, o som dos pneus, o impacto. Eu lembro do barulho ensurdecedor,
da sensação esmagadora de algo me atingindo, mas as imagens são rápidas,
borradas. A rua fria, as vozes gritando ao fundo, o calor do meu sangue,
talvez... Tudo se mistura em flashes, mas algo está faltando. Eu não consigo
pegar as peças. A sensação é de estar afundando, mas então...
Minha respiração acelera. O que está acontecendo comigo?
— Ela precisa descansar. A cirurgia foi um sucesso...
Sucesso? Cirurgia? Que droga aconteceu comigo? Tento mexer os dedos,
uma perna, qualquer coisa que me faça sentir viva, mas nada responde. Nem
sei se estou acordada ou presa em um pesadelo. Minha boca está seca,
amarga, como se tivesse engolido um punhado de areia. Tento engolir, mas
minha garganta parece fechada. E o silêncio ao meu redor é esmagador,
cortado apenas por aqueles fragmentos de vozes que não fazem sentido.
Quero ver, falar, entender. Mas estou presa.
Aos poucos, percebo o som constante de algo próximo — talvez um
monitor? Cada beep soa como uma batida de tambor, marcando o tempo que
estou aqui, nesse limbo. Minha mente insiste em correr para lugares que não
quero. Será que estou quebrada para sempre? Será que vou acordar e
perceber que perdi algo? Ou alguém?
Por que ninguém está falando comigo?
Por favor... alguém. Qualquer um.
°°°
Ainda sinto, é quase palpável, a escuridão densa e espessa, me cercando
como tubarões no mar. Não sei quanto tempo passou — minutos? Horas?
Não existe tempo aqui. Não há luz, não há som, só uma pressão constante
que puxa e me arrasta para algum lugar desconhecido. O som, lento e
insistente, chega aos meus ouvidos. Beep. Beep. Beep. O som do monitor
continua a marcar o tempo, mas sinto algo diferentel, como se a atmosfera
ao meu redor tivesse mudado, um pequeno ruído me alerta. Sinto algo se
aproximar, mas não sei o que. Minha mente está tensa, alerta, mas meu corpo
não responde. Eu tento gritar, mas minha garganta está seca e dolorida. É
como se eu estivesse sendo engolida por um buraco negro, puxada para
dentro de um vórtice de escuridão. Sinto uma pressão crescente no peito,
como se o ar estivesse se tornando mais denso, mais difícil de respirar.
— Elena...
A voz é baixa, familiar, mas ao mesmo tempo distante, como se estivesse
vindo de outro lugar. Um fio de esperança se acende em mim, uma faísca em
meio à escuridão. Eu tento chamar, tentar responder, mas minha boca não se
move. Não consigo. Só ouço a voz de novo, mais perto, mais clara.
— Elena, você está me ouvindo?
Eu não sei quem está falando, mas essa voz me traz algo que quase me faz
acreditar que ainda estou aqui. A escuridão não é tudo. Eu não sou só dor e
confusão. Mas ao mesmo tempo, essa voz me arrasta para uma sensação de
pavor, uma sensação de que estou prestes a descobrir algo que não quero
saber.
Eu não posso mais ficar aqui, não posso.
A agitação dentro de mim parece aumentar a cada instante, seguida por uma
vontade desesperada de acordar, de sair desse lugar. Minha mente volta no
mesmo lugar, o frio da rua, o barulho do impacto, o carro...tudo começa a
voltar com força total, como um loop infinito, como se o tempo tivesse se
dobrado e as lembranças estivessem sendo empurradas de volta para minha
mente. O acidente. Meu corpo sendo arremessado. O cheiro do asfalto, o
grito abafado de alguém... eu não sei quem. O som da ambulância chegando.
— Não, não... Por favor, não...
A voz chama de novo. Agora mais forte, mais urgente, e, pela primeira vez,
algo dentro de mim reage. Eu sinto os meus dedos, uma sensação, uma
pontada de dor. A voz se mistura com o som do monitor, agora mais rápido.
O que está acontecendo comigo?
Mas ao mesmo tempo que a sensação de algo está voltando, algo ainda me
puxa para o fundo. Eu me vejo sendo arrastada novamente para aquela
escuridão, para aquele vazio. Minha mente gira, e o medo toma conta. E no
fundo, uma pergunta me assombra: será que eu já estou morta?
°°°
A escuridão ainda me envolve, uma presença densa, esmagadora, como se
eu estivesse submersa em algo. Não sei há quanto tempo estou aqui, mas sei
que o tempo passou. Como? Não consigo entender. Não consigo lembrar.
A voz. De novo. Ela está ali, mais perto. Não sei quem é, mas o som me
arranca de dentro da névoa que me rodeia.
— Elena, você está me ouvindo?
É uma voz suave, familiar, mas ao mesmo tempo, distante. Como se viesse
de um lugar que eu não posso alcançar. Um lugar que não existe mais.
Meu corpo dói. A dor está em cada parte, em cada músculo, em cada fibra.
Mas o pior é a sensação de não conseguir me mover. Não consigo reagir.
Como se eu estivesse presa em um corpo que não me obedece, que não me
pertence mais.
Tento abrir os olhos, mas é como se estivessem costurados. Algo os mantém
fechados, como se eu tivesse sido arrancada de mim mesma e agora estivesse
aqui, flutuando.
A voz novamente.
— Elena, por favor, abre os olhos.
Eu queria responder. Queria pedir ajuda. Queria entender o que aconteceu,
onde estou, mas as palavras não saem. Nada sai. Só o som do monitor, o
constante "beep" que marca o tempo, me lembrando que eu estou... ainda
aqui? Mas onde? O que está acontecendo comigo?
O frio na minha pele me assusta. O cheiro de algo esterilizado, do álcool, da
clínica. Eu sinto que estou em algum lugar, mas é como se uma parte de mim
ainda estivesse presa em outro lugar. O acidente. A rua. O carro. As luzes. O
impacto. Mas essas memórias estão borradas, como se eu as estivesse vendo
através de uma janela embaçada.
Tento forçar meus olhos a abrir, e finalmente, depois de um esforço quase
insuportável, vejo uma luz, fraca, ofuscante. Eu a vejo, mas não consigo
entender o que é. O som do monitor, ainda constante, ainda martelando na
minha cabeça. E a voz, agora mais desesperada.
— Elena...
Eu tento falar. Tento dizer algo. Algo que faça sentido. Mas nada. Apenas
um som rouco, um gemido que mal escuto. A minha garganta queima, seca,
como se eu tivesse engolido areia. Não consigo respirar direito.
Eu não sei se estou acordando ou se estou ainda sonhando, se estou viva ou
se estou morta. O medo me consome, me puxa para baixo.
— Por favor... alguém. Me ajude.
A voz chama de novo. E agora, algo dentro de mim se move. Meu corpo
responde, lentamente, mas responde. Minha mão se mexe, minha perna... eu
sinto, eu posso sentir o peso, o cansaço, a dor. Eu tento abrir os olhos mais
uma vez, e dessa vez, consigo. Devagar, eles se abrem, e a luz me atinge de
uma vez, forte, dolorosa.
Mas o que eu vejo... não sei. Um teto branco. E eu não sei onde estou. Eu
tento me mover, mas meu corpo ainda está pesado, inútil. Eu quero gritar,
mas não consigo.
— Elena, está tudo bem.
A voz me acalma, mas a dúvida ainda está lá. Quem é essa pessoa? Onde
estou? O que aconteceu comigo?
Eu olho ao redor, forçando os olhos a focar. Um quarto de hospital. As
paredes brancas. O cheiro do esterilizado. Eu estou em um hospital.
Mas o que eu faço aqui?
Eu não me lembro.
O medo aperta meu peito, me sufoca. Eu tentei abrir os olhos antes, mas
agora... agora tudo parece tão claro, tão real, e ainda assim, algo dentro de
mim está quebrado. Algo que não posso entender. Algo que não quero saber.
— Você está acordando, Elena. Foi um acidente, mas você vai ficar bem.
Acidente? O que aconteceu comigo? O que está acontecendo?
Eu sinto o peso do silêncio, a pressão de estar tão perto da resposta, mas ao
mesmo tempo, ainda perdida, afundando mais fundo na dúvida, na incerteza.
O que eu perdi? Quem eu perdi?
Peter
Ainda estou tentando processar o caos da minha agenda. Dois pacientes com
lesões graves. Duas horas de fisioterapia para cada um, no mínimo. Hoje será
mais um dia daqueles. Suspiro, ajeitando a prancheta embaixo do braço, e
caminho para a sala de fisioterapia. Assim que entro, vejo Ben sentado na
cama, os olhos fixos no espelho à sua frente.
Paro por um instante, observando-o. Ele não percebe que estou aqui. Aquele
olhar... está vazio, distante. Já vi essa expressão antes, em outros pacientes,
em mim mesmo em momentos difíceis.
Ser fisioterapeuta é isso. Não se trata apenas de músculos e ossos. A
reabilitação física é o mínimo comparado ao trabalho invisível que faço
todos os dias. Muitos pacientes chegam aqui com o corpo despedaçado, mas
o que realmente os impede de avançar é algo muito mais profundo: medo,
insegurança, aquele tipo de dor que não se trata com exercícios ou palavras
simples. Minha função é ajudá-los a enxergar que existe um caminho,
mesmo quando eles estão cegos por sua própria escuridão.
— Ben? — minha voz sai baixa, gentil.
Ele suspira, longo e pesado, mas não desvia o olhar do espelho. A sensação
no ar é quase palpável. Sei que algo está errado.
— O que aconteceu? — pergunto, suavemente, enquanto me sento na beirada
da cama, esperando que ele confie em mim o suficiente para responder.
Finalmente, ele se vira para mim. Seus olhos estão vermelhos, como se
tivesse chorado. Ele tenta falar, mas parece que as palavras ficam presas.
Depois de um momento, ele apenas balança a cabeça.
— Vamos começar? — sua voz soa forçada, como se cada palavra fosse um
esforço.
Quero insistir, mas sei que às vezes as pessoas precisam de espaço.
— Tudo bem. Podemos começar quando você se sentir mais preparado. —
Respondo, com um sorriso encorajador.
Ele hesita, pega o casaco e, antes de sair, me olha com um meio sorriso
cansado.
— Até a próxima, Dr. Peter.
Fico ali por um momento, observando a porta se fechar atrás dele. Não
consigo evitar o pensamento: o que quer que esteja acontecendo com Ben,
não é algo que a fisioterapia possa resolver sozinha.
°°°
— Parece que ela foi atropelada na semana passada e ainda não acordou. —
a voz de uma enfermeira alcança meus ouvidos enquanto estou na sala de
descanso. — Nenhum parente apareceu para vê-la até agora.
Minha atenção é puxada automaticamente. A mulher atropelada. Elena Dave.
Esse nome parece ecoar de alguma forma na minha cabeça desde que ouvi
pela primeira vez. Tento me concentrar no meu almoço, mas a comida parece
de borracha entre os dentes. Empurro o prato para o lado e escuto mais
fragmentos de conversa ao redor.
— Dizem que o motorista estava bêbado... e ela foi lançada por metros.
— Está sozinha... ninguém para segurá-la se ela acordar.
Essas palavras cravam-se em mim como espinhos. Não sei por quê. Pessoas
vêm e vão deste hospital todos os dias, muitas em situações terríveis. Mas
algo sobre isso... sobre ela... me prende. Olho para o relógio. Minha hora de
almoço acabou. Levanto e jogo o prato intocado no lixo. Enquanto caminho
pelos corredores, tento deixar esses pensamentos para trás, mas eles
continuam a me seguir. Uma pergunta não para de martelar: quem é Elena
Dave? E por que isso está mexendo tanto comigo?
°°°
Depois do almoço, tento me concentrar. Realmente tento. Mas não consigo
afastar a sensação de inquietação que cresceu desde que ouvi o nome dela:
Elena Dave. Pessoas passam pelo hospital todos os dias, muitas em situações
terríveis, eu já presenciei coisas horríveis, mas algo sobre essa mulher é
diferente. Algo que não consigo explicar me puxa, como uma corda invisível.
Minha próxima sessão começa, e tento me afundar no trabalho. Meu paciente
fala sobre suas dificuldades e progresso enquanto fazemos os exercícios.
Respondo no automático, com palavras que já usei centenas de vezes antes.
Mas meu foco não está ali. Pela primeira vez em muito tempo, não consigo
deixar meus próprios pensamentos de lado para ser o profissional que eles
precisam. A sessão termina, e estou de volta à minha sala, olhando para a
prancheta, mas não lendo nada. As palavras da enfermeira continuam
ecoando: Ela foi atropelada... ainda não acordou... ninguém veio visitá-la.
Por fim, desisto. Preciso ver por mim mesmo.
Saio da sala e sigo pelos corredores, tentando parecer ocupado o suficiente
para não chamar atenção. Quando chego à ala onde Elena está, o ritmo do
hospital parece mudar. Os passos das pessoas ficam mais distantes, as vozes
mais abafadas. Aproximo-me do quarto dela com um nervosismo
inexplicável.
Paro na porta, olhando pelo vidro. Lá está ela, deitada na cama, envolvida
em máquinas que mantêm seu corpo funcionando. A cabeça está
parcialmente enfaixada, um braço engessado, e o rosto parece pálido demais
sob a luz fria do quarto. Ela parece frágil, quase irreal, como se pudesse
desaparecer a qualquer momento.
Minha garganta aperta. Por que isso está mexendo tanto comigo?
— Você está procurando alguém? — A voz da enfermeira atrás de mim me
faz sobressaltar.
— Não exatamente. — respondo, tentando soar casual. — Ouvi sobre ela...
e fiquei curioso.
A enfermeira me encara por um momento antes de suspirar.
— Está acordada há alguns dias, mas não fala muito. Só observa. Como se
estivesse tentando entender o que aconteceu... ou por que ainda está aqui.
Olho para Elena novamente, e a palavra "sozinha" parece ecoar pelo quarto.
— Ela tem família? Alguém veio vê-la? — pergunto, mais para preencher o
silêncio do que por curiosidade.
— Não. Nenhuma ligação, nenhuma visita. É como se ela não tivesse
ninguém.
Assinto, mas minhas mãos estão inquietas, enfiando-se nos bolsos do jaleco.
— Se precisar de alguma coisa, é só me chamar. — diz a enfermeira antes
de se afastar, deixando-me ali.
Permaneço na porta, observando Elena por mais alguns segundos. Algo
dentro de mim quer atravessar aquele limiar, entrar no quarto e... fazer o quê?
Falar com ela? Esperar que minha presença faça alguma diferença?
Finalmente, me forço a ir embora. Mas, enquanto volto para minha sala, a
sensação persiste. A cada passo, a pergunta cresce, mais forte: por que isso
está mexendo tanto comigo?
E, pela primeira vez em muito tempo, não sei a resposta.
Elena
Duas semanas. Já se passaram duas semanas desde que acordei neste
hospital, mas a sensação de estar presa em um pesadelo não desaparece. Cada
dia que passa, meu corpo me lembra de como tudo aconteceu. As dores nas
pernas, nos braços, aquela sensação de fraqueza constante... O que me faz
sentir como se estivesse presa em um corpo que não obedece. O som dos
monitores, com seus beeps regulares, é o único ritmo constante neste lugar.
Não são confortantes, não mais. Agora, são quase uma tortura, me lembrando
a cada segundo que estou aqui e não posso escapar.
A porta do quarto se abre suavemente, interrompendo meus pensamentos
sombrios. Um homem entra, alto, cabelos loiros cuidadosamente penteados,
e um sorriso que parece praticado. Ele segura uma prancheta contra o peito,
movendo-se com uma calma que parece quase insultante.
— Bom dia, Elena. — a voz dele é tranquila, mas firme. Ele puxa uma
cadeira para perto da cama e se senta. — Como você está se sentindo hoje?
Olho para ele, exausta de perguntas óbvias.
— Como se tivesse sido atropelada. — minha voz sai seca, cheia de
sarcasmo.
Ele dá um sorriso breve, como se já esperasse isso.
— Não é uma comparação tão longe da verdade, para ser honesto. — ele
anota algo na prancheta e me encara novamente. — Sei que deve estar
frustrada, então vou direto ao ponto.
Finalmente, penso comigo mesma.
— A cirurgia foi bem-sucedida. Conseguimos estabilizar suas fraturas, tratar
os traumas internos e evitar complicações maiores. Isso é uma boa notícia.
— Mas? — disparo, sem paciência para rodeios.
Ele faz uma pausa, como se escolhesse cuidadosamente as palavras.
— O impacto do acidente causou danos nos nervos de algumas áreas. Isso
afetou sua sensibilidade e mobilidade.
Franzo o cenho, tentando processar.
— O que isso significa exatamente?
— Por enquanto, você perdeu parte da sensibilidade nas pernas e tem
dificuldade para movimentá-las. Também há alguma fraqueza nos braços. —
ele me encara com seriedade, mas sem pena. — Isso não quer dizer que seja
permanente, mas vai levar tempo e trabalho para recuperar.
Minha garganta aperta, mas minha voz sai firme.
— E se eu não recuperar?
— É uma possibilidade que precisamos considerar. — ele inclina-se
levemente para frente, os olhos fixos nos meus. — Mas não estou dizendo
que será o caso. A fisioterapia será essencial, e seu progresso dependerá
muito de como seu corpo responderá.
— Quanto tempo? — pergunto, sem esconder a ansiedade.
— Não posso dar uma resposta exata. Cada caso é diferente. Pode levar
meses... talvez mais.
Fecho os olhos por um momento, respirando fundo.
— Tem mais alguma coisa?
Ele hesita, e isso já me diz tudo.
— Sim. O impacto também afetou parcialmente sua visão periférica no lado
direito e sua audição do mesmo lado. Estamos monitorando de perto, e há
chance de melhora, mas...
Ele não termina a frase. Não precisa.
— Então, basicamente, estou quebrada. — solto, a voz embargada.
— Não. — ele responde rápido, quase cortando minha frase. — você passou
por algo que poderia ter tirado sua vida. Está aqui. Está lutando. Isso não é
ser quebrada. É ser resiliente.
Rio sem humor.
— Resiliente? Tá brincando comigo? Eu mal consigo mexer meu próprio
corpo.
Ele suspira, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Não estou dizendo que será fácil. Não é. Vai ser uma batalha, e algumas
coisas podem mudar para sempre. Mas você não precisa enfrentar isso
sozinha.
Cruzo os braços, ou pelo menos tento. Meu corpo mal obedece.
— O que acontece agora?
— Começamos devagar. Fisioterapia, pequenos movimentos para fortalecer
seus músculos e reacostumar seu corpo. Teremos especialistas
acompanhando você. Um passo de cada vez.
Ele se levanta, ajeitando a prancheta debaixo do braço.
— E, Elena, sei que parece muito agora. Mas acredite: você é mais forte do
que imagina.
Ele deixa o quarto, e o silêncio retorna, interrompido apenas pelos beeps dos
monitores. Respiro fundo, tentando absorver tudo o que ele disse. Um passo
de cada vez... Mas será que algum dia conseguirei dar um passo de verdade?
°°°
Seguro o telefone contra o peito e fecho os olhos, tentando me preparar.
Meus dedos tremem, e a dor no meu corpo é quase esquecida diante da
ansiedade que me consome. Eles precisam saber. Não dá para esconder isso
deles, mas só de imaginar a reação dos meus pais, meu estômago revira. Eles
vão se culpar, eu sei. Sempre se culpam por qualquer coisa que aconteça
comigo, como se pudessem controlar o mundo. Amo tanto os dois, e não
quero estragar o dia deles, mas não posso deixar que outra pessoa lhes conte.
Pensei em deixar a enfermeira ligar, mas seria errado. Eles merecem ouvir
isso de mim, não de uma estranha. Isso precisa vir de mim.
Respiro fundo e disco o número.
— Lena? — a voz da minha mãe soa animada, quase cantarolada. — Meu
Deus! Albert, a Lena está ligando! — ouço ela chamar meu pai no fundo. —
Meu amor, como você está? Estamos morrendo de saudades! Seu pai não
para de perguntar quando você vem nos visitar.
Sorrio, mas a sensação de culpa logo engole qualquer conforto. Minha
garganta seca.
— Mãe... — minha voz sai baixa. — Preciso que você me escute, tá?
Ela fica em silêncio por um instante, como se pudesse sentir que algo está
errado.
— Estou ouvindo, filha. — sua voz agora é cautelosa.
Engulo em seco e solto o ar, tentando conter a emoção que ameaça me
dominar.
— Eu sofri um acidente.
O silêncio do outro lado da linha é ensurdecedor. Ouço a respiração dela ficar
um pouco mais rápida.
— O quê? — ela pergunta finalmente, sua voz tremendo. — Você está
machucada? Onde você está?
— Estou no hospital. — digo, sentindo a garganta apertar. — Não se
preocupem... Estou bem, ou... vou ficar bem.
Minha mãe não responde imediatamente. Posso imaginá-la sentada,
segurando o telefone com força, tentando processar as palavras.
— Albert... — ouço ela murmurar, a voz baixa, quase inaudível. — Nossa
menina está no hospital.
Meu pai pega o telefone antes que eu consiga dizer mais alguma coisa.
— Lena, me diga exatamente onde você está. — a firmeza na voz dele é
reconfortante e apavorante ao mesmo tempo.
— Pai... Não precisam vir correndo. Eu só... — minha voz falha. — Eu só
queria que vocês soubessem.
— Nós já estamos indo. — ele interrompe, sem dar espaço para discussão.
— Envie a localização.
Minha mãe volta ao telefone, sua voz carregada de emoção, mas ainda
controlada.
— Estamos a caminho, meu amor. Não se preocupe, tudo vai ficar bem.
Desligo a chamada, deixando as lágrimas caírem, um choro angustiado rasga
a minha garganta, aperto os lençois com força sentindo tudo dentro de mim
desmoronar. Eu não queria preocupa-los, eles não merecem isso. Me permito
chorar, deixando tudo dentro de mim sair, a dor se intensifica, meus olhos
doem, tudo dói. Só quero que isto acabe logo
°°°
Quando a porta do quarto se abre, vejo meus pais entrarem. Minha mãe está
pálida, mas mantém um sorriso trêmulo no rosto. Meu pai parece mais sério
do que o normal, os olhos fixos em mim como se estivesse avaliando cada
detalhe.
Minha mãe é a primeira a se aproximar.
— Minha menina... — Ela sussurra, inclinando-se para me abraçar com
cuidado.
Seu abraço é apertado, mas delicado, como se temesse me machucar ainda
mais. Meu pai se junta a ela, segurando minha mão com firmeza.
— Que bom que você está viva. — Ele diz, com a voz carregada de alívio.
Sinto as lágrimas voltarem, mas desta vez, há um pouco de conforto em tê-
los aqui.
Depois de alguns momentos de silêncio, minha mãe se afasta e limpa os
olhos rapidamente.
— E o Daniel? Ele não deveria estar aqui?
O nome dele faz meu estômago revirar.
Desvio o olhar, tentando encontrar uma forma de responder.
— Ele não sabe.
— Como assim, não sabe? — Minha mãe pergunta, confusa. — Ele é seu
namorado, Lena.
Engulo em seco, o gosto amargo da lembrança voltando com força.
— Ele me traiu, mãe. — Digo, a voz tremendo. — Descobri no dia do
acidente.
Minha mãe balança a cabeça lentamente, como se estivesse tentando
absorver a informação.
— Eu sabia que algo estava errado com ele. — Ela diz finalmente, com uma
raiva silenciosa. — Você merece alguém melhor.
Meu pai apenas aperta minha mão.
— Sempre mereceu.
Sorrio, mesmo em meio às lágrimas. Tê-los aqui torna tudo um pouco mais
suportável.
°°°
Meus pais saíram há alguns minutos para conversar com o meu médico, que
agora sei que se chama Cameron. O quarto ficou silencioso, exceto pelo som
dos monitores ao meu lado. Ainda preciso ligar para Emma. A última vez
que falamos, ela não estava bem — preocupada com o noivado, com dúvidas
sobre o futuro. Não sei se devo sobrecarregá-la com os meus problemas. Mas
ao mesmo tempo... Ela me mataria se descobrisse por outra pessoa que estou
aqui.
Respiro fundo e pego o telefone. Quando ela atende, sua voz vem carregada
de um alívio que me faz sorrir.
— Elena? Onde você se meteu? — o tom dela é direto, mas carinhoso. —
Você sumiu! Não dá notícias há semanas.
Sorrio, já esperando o sermão.
— Eu estou no hospital. — digo, hesitando um instante antes de continuar.
— Sofri um acidente.
Silêncio. Ouço sua respiração acelerar antes da resposta.
— O quê? Meu Deus! Em qual hospital você está? — sgua voz soa apressada,
como se ela já estivesse se levantando. — Estou indo até você agora.
— Vou te mandar a localização.
Termino a chamada e envio uma mensagem com o endereço. Coloco o
telefone de lado, suspirando. Emma tem uma habilidade única de preencher
qualquer espaço com sua energia. Ela nunca passa despercebida, e isso
sempre me faz sentir menos sozinha. Desde que acordei desse limbo, tudo
parece... diferente. O ar, a luz, até a maneira como percebo o tempo. Estou
presa a esta cama de hospital, com um diagnóstico que ainda é incerto.
Ninguém sabe se vou voltar a ser como antes. Eu sei que não vou. Algumas
coisas acontecem uma vez e mudam tudo para sempre.
Uma risada amarga escapa dos meus lábios. O universo tem um humor
terrível. Fui traída e atropelada no mesmo dia. Como isso sequer é possível?
Olho para o teto, respirando fundo, tentando afastar o peso das memórias.
Emma vai chegar logo. Talvez, com ela aqui, o mundo pareça um pouco
menos pesado por um tempo.
Demora menos de uma hora para Emma chegar. Ouço seus passos
apressados no corredor antes mesmo de vê-la. Quando a porta do quarto se
abre, ela entra como uma tempestade: cabelos desalinhados, uma bolsa
enorme pendurada no ombro e um olhar que mistura preocupação e alívio.
— Elena! — ela exclama, jogando a bolsa em uma cadeira próxima e vindo
direto para mim. — Meu Deus, você está... — sua voz falha por um segundo
enquanto ela avalia meu estado. — Você está bem?
— Estou... sobrevivendo. — tento sorrir, mas a expressão dela não muda.
Emma se inclina, envolvendo-me em um abraço apertado, mas cuidadoso.
Ela cheira a perfume cítrico e um toque de café, e sua presença é tão familiar
que meu peito aperta.
— Por que você não me contou antes? — A pergunta dela é direta, mas não
acusatória.
— Eu não queria te preocupar. — Minha voz soa cansada.
— Preocupar? — ela repete, incrédula. — Elena, você está em um hospital!
Isso não é o tipo de coisa que você esconde.
— Você já tem tanta coisa acontecendo, Emma. — tento justificar, mas ela
apenas balança a cabeça, impaciente.
— Dane-se o noivado. — ela joga as mãos no alto. — Isso não importa. Você
importa.
Engulo em seco, desviando o olhar.
— Emma, eu...
— Não começa. — ela me corta, sentando-se ao meu lado na cama. — Você
sempre faz isso. Tenta carregar tudo sozinha.
Eu suspiro, sentindo as lágrimas ameaçarem cair novamente. Emma pega
minha mão, apertando-a com força.
— Me conta tudo. — ela pede, a voz firme, mas gentil. — O que aconteceu?
Olho para nossas mãos, incapaz de encontrar seus olhos.
— Foi tudo tão rápido. — minha voz sai quase como um sussurro. — Eu
descobri que Daniel estava me traindo... e, antes que pudesse processar isso,
o acidente aconteceu.
O rosto de Emma muda instantaneamente. Seu maxilar se tensiona, e seus
olhos, antes cheios de preocupação, agora brilham com raiva.
— Ele o quê? — sua voz é baixa, mas cortante.
— Emma, não. — tento cortar, mas ela já está de pé, andando pelo quarto
como uma tempestade prestes a explodir.
— Aquele miserável... Como ele ousa? E depois de tudo o que você... — ela
para, jogando as mãos para o alto, frustrada. — Ele sabe que você está aqui?
— Não. — admito, olhando para minhas mãos.
— Bom. — ela cruza os braços, olhando para mim com determinação. —
Porque se ele aparecer aqui, eu juro que vou...
— Emma. — chamo, e ela para, respirando fundo antes de voltar a sentar ao
meu lado.
— Desculpa. — ela murmura, pegando minha mão de novo. — Eu só... odeio
ver você assim.
— Eu também. — confesso, minha voz embargando.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que Emma suspira.
— Olha, não importa o que aconteça. Eu estou aqui. — ela diz, a voz mais
suave. — Sempre estarei.
Assinto, sentindo um pequeno alívio no peito. Emma sempre foi assim: uma
força da natureza, alguém que segura o mundo para você quando ele parece
desabar.