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Efeitos Do Binarismo Colonial Na Psicologia

O documento discute a influência do binarismo colonial na Psicologia brasileira, destacando como essa perspectiva tem perpetuado a violência colonial e a desumanização de povos indígenas e outras minorias. A autora, Geni Núñez, argumenta que a construção de uma Psicologia anticolonial deve respeitar a autonomia dos grupos minorizados e reconhecer a interconexão entre saúde mental e territorialidade. A crítica ao binarismo é central para descolonizar a narrativa psicológica e promover uma compreensão mais complexa das identidades e relações sociais.

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Efeitos Do Binarismo Colonial Na Psicologia

O documento discute a influência do binarismo colonial na Psicologia brasileira, destacando como essa perspectiva tem perpetuado a violência colonial e a desumanização de povos indígenas e outras minorias. A autora, Geni Núñez, argumenta que a construção de uma Psicologia anticolonial deve respeitar a autonomia dos grupos minorizados e reconhecer a interconexão entre saúde mental e territorialidade. A crítica ao binarismo é central para descolonizar a narrativa psicológica e promover uma compreensão mais complexa das identidades e relações sociais.

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V O L U M E 1

PSICOLOGIA
BRASILEIRA
NA LUTA ANTIRR ACISTA
N A P S I C O L O G I A A N T I R R A C I S TA
Efeitos do binarismo colonial
na Psicologia: reflexões para
uma Psicologia anticolonial
Geni Núñez1

Desde 1500 a história do Brasil vem sendo contada sobretudo pela perspectiva
dos colonizadores. Esse Brasil cuja língua oficiosa é a portuguesa, cuja religião oficiosa
é o cristianismo, essa nação em que há apenas um povo (o “brasileiro” genérico) só se
faz por meio do etnogenocídio racista e colonial. Para se afirmar e se sustentar como
verdade hegemônica, essa narrativa apaga reiteradamente a existência das centenas
de línguas indígenas e originárias desse território, nega as diversas formas de espi-
ritualidade que aqui resistem e oblitera sobretudo a presença de outras centenas de
povos indígenas que, contrariando as profecias coloniais, não são etnias “do passado”.
Assim se organiza todo um sistema de monoculturas que impõe um único jeito de se
relacionar (monocultura dos afetos), uma única forma de sexualidade (monocultura
heterocissexista), um único deus verdadeiro (monocultura da fé) e uma monocultura
contra a terra, cuja exploração é antagônica à floresta e sua intrínseca diversidade.
A academia também tem sido, historicamente, uma grande aliada da colo-
nialidade, a partir do momento em que vem construindo ao longo dos últimos
séculos suas epistemologias e práticas pautadas de forma central nas perspectivas
europeias, muitas das quais não só não dialogam com nossas realidades como
ativamente perpetuam determinados modos de subjetivação que reproduzem e
atualizam a violência colonial.
Segundo Fanon (1968), o mundo colonial é um mundo dividido em comparti-
mentos binários2 e hierárquicos: mente e corpo, natureza e cultura, humano e animal,
selvagem e civilizado, homem e mulher, feminino e masculino, entre tantos outros. O

1 Graduada em Psicologia (UFSC), mestre em Psicologia Social (UFSC) e doutoranda no Programa de


Pós-graduação em Ciências Humanas (UFSC). Ativista indígena guarani.
2 É importante não confundir binarismo com dualismo, pois o primeiro é necessariamente hierárqui-
co, por isso deve ser problematizado. Já os dualismos que estão presentes em diversas culturas indí-
genas não buscam a hegemonia global como verdade única nem trazem em seu bojo uma essência
hierárquica.

Psicologia Brasileira na Luta Antirracista 49


binarismo, embora pretenda ser uma descrição simples da realidade, em verdade as
inventa no seu gesto de nomeação. A Psicologia como parte desse processo histórico
também é profundamente afetada pela binarização como lente de organização do
mundo. Cabe nos perguntarmos que: A “saúde mental” também não está no corpo?
Que violência física que não é, ao mesmo tempo, psicológica e vice-versa? Elaborar
a complexidade dessas relações para além da simplificação que o binarismo traz é
fundamental no sentido de uma reparação das feridas coloniais, ainda abertas, na
terra e nos animais (humanos ou não).
Apesar da narrativa binarista se impor de modo profundo, nós indígenas,
quilombolas e demais coletivos dissidentes da hegemonia cis hétero branca temos
pontuado, há séculos, que há outros modos e mundos possíveis. Esses caminhos de
bem viver nos ensinam que as identidades não precisam ser parasitárias, ou seja, é
possível que um grupo se positive sem que para isso elimine e extermine outros povos.
A ideologia binarista também encontra nos marcos temporais um meio de se
impor. É por meio dessa lógica que o etnogenocídio, compreendido como a ten-
tativa de extermínio simbólico-material de povos indígenas, busca se consolidar.
Quando dizem que somos seres do passado, de 1500, querem dizer também que se
estamos na cidade e vivendo no contemporâneo, então isso significaria uma prova
de que estaríamos no lugar e tempo errado. Grada Kilomba reflete sobre este “fora
do lugar” que o racismo implica, quando reflete que “corpos brancos, ao contrário,
são construídos como próprios, são corpos que estão “no lugar”, “em casa”, corpos
que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares” (KILOMBA, 2019, p. 39).
Quando a elite branca se narra como quem é “ordem e do progresso”, isso
também é sobre uma ideologia temporal. Quando se busca dizer que o racismo e a
colonização são fenômenos do passado, o objetivo é evitar o trabalho de reconhe-
cimento dos privilégios adquiridos com séculos de espólio escravagista, repassados
hereditariamente, assim como o empobrecimento herdado pela maioria das famílias
negras e indígenas do país. Descolonizar essa narrativa temporal implica um chama-
do à reparação histórica: a colonização não acabou, ela continua, atualizada. E tanto
mais forte será quanto menos for reconhecida.
A invasão colonial não incidiu apenas sobre a terra, no seu sentido mais literal,
mas também em nosso território-corpo (GRIJALVA, 2012), impondo um sistema
de monoculturas (monoteísta, monogâmico, monossexista) à vida. A imposição de
um único caminho para ser, sentir e se relacionar tem como um de seus efeitos o
sofrimento. A mesma aceleração do tempo, a mesma pressa que exaure, cansa e
desgasta a terra também nos atinge quando somos submetidos a um mundo cujo

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ritmo agride nossa saúde, explora nossa energia e nos tira as condições de uma vida
potável. Por potabilidade compreendo a condição do possível, no sentido que a água
potável não é isenta de toxinas, mas é aquela em que essas toxinas estão em um
nível que não nos faz mal. Reconhecendo, nesse sentido, que a violência colonial
nos precede e nos sucede.
O binarismo também orienta o projeto racial do Brasil, no qual muitas vezes
povos indígenas somos invisibilizados do ponto de vista epistemológico, demográfico
e político. Esse apagamento ocorre por meio do que chamamos de etnogenocídio
e se estrutura por intermédio da tentativa de desqualificar as identidades indígenas
por meio de alguns paradoxos como: a) a exigência de habitação em terra aldeada,
que ignora a falta de demarcação de terras e expulsão de indígenas de seus territó-
rios; b) a exigência do falar a língua indígena: muitos povos, mesmo em contexto de
aldeamento, não puderam manter suas línguas por conta da perseguição e violência
estatal; c) a exigência da aparência física correspondente ao estereótipo colonial da
“cara de índio”, que nos homogeneiza e nos desqualifica por meio de um ideal purista
que ignora não só a diversidade de nossos povos como também o processo, em mui-
tos casos, forçado de miscigenação. Também vivemos um apagamento demográfico
quando se assume que apenas a população negra constitui a estática da categoria
“pardo” no IBGE (NÚÑEZ, 2021).
Historicamente diversas áreas de conhecimento, pautadas na colonialidade
colocaram-se no lugar de privilégio de definir, categorizar e legitimar ou não iden-
tidades de grupos minorizados. Nesse sentido, é fundamental que o princípio da
autonomia seja respeitado na construção de uma Psicologia crítica que recuse esse
lugar de quem tutela o outro, seja do ponto de vista da luta antimanicomial, seja do
ponto de vista da luta antirracista e anticisnormativa. Cada grupo minorizado deve
ter sua autonomia coletiva respeitada quando se trata dos seus meios de nomeação,
reconhecimento e identificação.
Neste texto buscarei contribuir com a elaboração sobre o que é colonialidade
e como opera na Psicologia, tendo como eixo central a crítica ao binarismo que
sustenta o mundo colonial.

1) Efeitos da binarização na construção do que é corpo,


desenvolvimento e vínculo

Para iniciar, a pergunta que abre a discussão é: O que define um corpo? Essa
questão já foi e continua sendo alvo de inúmeros pensadores/as, entre os quais Merleau-
Ponty (1989) chama atenção para a reflexibilidade como o fundamento corpóreo. Por

Psicologia Brasileira na Luta Antirracista 51


exemplo: se eu escuto, sou escutada e me percebo escutando, há aí um processo de
três dimensões, reflexivo3. Quando minha mão toca meu braço eu já não sei se é o
meu braço que tocou minha mão ou o contrário. Na verdade ambos se tocaram, pois
meu corpo reflete circularmente aquilo que é. E aqui trago as perspectivas indígenas
do meu povo: não é possível nos afastarmos do mundo se somos (parte) dele. Como
pontua o filósofo guarani Vera Timóteo Popygua Silva:

A Mata atlântica é uma floresta genuína que tem uma sere-


nidade especial, no sentido de que quando buscamos espiri-
tualmente um equilíbrio, um equilíbrio no pensamento até
mesmo de habitat, de tekoa (aldeia, espaço para viver), tekó
(modo de ser e viver), arandu (tempo sabedoria), encontramos
uma harmonia com a essência dessa, que também fazemos
parte. (SILVA, 2017)

Tanto por isso, a saúde e o acolhimento das nossas feridas psicossociais estão
intimamente ligados à cura e cuidado com as feridas da terra. Como lembra Fanon
(1963, p. 33), “para a população colonizada o valor mais essencial, por ser o mais con-
creto, é em primeiro lugar a terra: a terra que deve assegurar o pão e, evidentemente,
a dignidade”. Não ter o direito à terra é também não ter o direito à saúde, é não ter
o direito de ser e viver de modos originários. É preciso terra para que a alimentação
originária, autônoma, ancestral possa se efetuar. É preciso do território para que a
cultura seja mantida, de maneira que a retirada das terras é também uma forma de
epistemicídio. Sem a terra, a qualidade da vida fica completamente prejudicada.
Não à toa, entre povos indígenas no Brasil a taxa de suicídio é três vezes mais
elevada que da população não indígena, é impossível discutir esse tema sem lembrar
que a retirada das terras, o racismo e o etnogenocídio impactam profundamente no
sofrimento psicossocial dessa população (SOUZA et al., 2020). A luta pela demarcação
das terras é, portanto, também uma luta pela saúde dita mental.
Os compartimentos binários do mundo colonial, como dito, são criados e
mantidos com o objetivo de tentar um sentido “natural” às hierarquias de raça,
gênero e classe. Quando Fanon (1968) discute a compartimentalização do mundo
colonial, compreendemos que esse recorte vai desde as noções racializadas de mente
e corpo – relação na qual a pessoa branca seria correspondente à mente, enquanto
pessoas não brancas a corpo – até à própria relação binária entre natureza e cultura,
selvagem e civilizado, humano e animal (FAUSTINO, 2007).Se aí, o que distingue

3 Friso a aleatoriedade do exemplo, já que poderia ser outra ação, posto que corpos são diversos e plurais.

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o humano dos demais bichos é a capacidade de pensar, a pressuposição é a de que
pessoas negras e indígenas seriam menos humanas por seu suposto afastamento da
dimensão mental e proximidade ao domínio do corpo.
A partir do momento em que o branco é tomado como representante uni-
versal do humano, o subtexto complementar desta premissa é a de que “quem não
for branco não é tão humano assim” (FAUSTINO, 2017, p. 128). Se compreendemos
a violência do racismo como assente na desumanização, é indissociável desse mo-
vimento a animalização do não branco, tornado um outro. Fanon ressalta que na
própria linguagem do colonizador essa animalização é assídua, em outros termos,
utiliza-se de uma “linguagem zoológica” para descrever ao colonizado, associado ao
“bestiário” (FANON, 1968, p. 31).
A colonialidade não admite concomitâncias, é binarista, então não temos corpo
e mente, mas corpo ou mente, não somos humanos e animais, mas humanos, porque
não seríamos também bichos e assim por diante. Como constrói suas identidades
de forma parasitária, para se afirmar civilizada, a colonialidade precisa de nós como
seu contraste selvagem; para se narrar como uma nação da ordem, do progresso e
do desenvolvimento, a nação colonizadora precisa de nós como representantes do
atraso, do subdesenvolvimento. Como sabiamente assinala Fanon (1968), não existe
um terceiro mundo sem a invenção de Europa, pois há uma íntima correlação entre a
inferiorização do primeiro com a superiorização da segunda. Pautamos a necessidade
de uma luta anticolonial, contracolonial porque não é possível que a colonialidade
coexista com a descolonização, se ela se positiva por meio de nossa negativação, essa
relação não pode ser apenas reformulada, mas deve ser destruída.
Do ponto de vista psicológico, a branquitude se sustenta por intermédio da edi-
ção para si do que considera a parte “boa” do ego e projeta a “má” para o sujeito não
branco, especialmente no que diz respeito aos tabus de agressividade e sexualidade
(KILOMBA, 2017). Fanon (2008, p. 161) enfatiza que “na Europa, – o preto tem uma
função: representar os sentimentos inferiores, as más tendências, o lado obscuro da
alma”. Nesse sentido a branquitude se constitui desde a exploração do Outro, sendo,
portanto, uma identidade dependente (KILOMBA, 2017).
Da mesma forma, o elogio do humano só se faz com o parasitismo simbólico
da figura dos demais bichos: um tratamento humanizado é tido como bom, um
desumanizado, como ruim, precisamente porque, a despeito de todas as violências
que perpetra, a colonialidade continua a se narrar pela sua dimensão pretensamente
positiva. Ser tratado como animal é sinônimo de ser maltratado. O repertório co-
lonial se utiliza fartamente de outros bichos quando quer diminuir (determinados)

Psicologia Brasileira na Luta Antirracista 53


humanos: na misoginia temos ofensas como: cadela, vaca, égua; na homofobia:
viado; no racismo, macaco, burro, porco; como alusões à falsidade: onça, cobra; na
hipersexualização: touro, cavalo e assim segue4.
Todo esse conjunto de cisões dificulta a compreensão da reflexibilidade, inter-
conectibilidade e interdependência que nos constitui.

2) Por uma Psicologia Contracolonial: desenvolvimento,


envolvimento e construção de vínculos

Segundo o filósofo quilombola Antônio Bispo Santos (2018), a mitologia


eurocristã convoca a todo momento um des-envolvimento, como se quanto mais
distanciada a relação com a terra, com os demais seres, maior a evolução. O elogio
do humano como ser civilizado é espelhado na projeção da ofensa ao que seria ani-
mal e nessa hierarquia que reifica a autorização à violência, exploração e extermínio
de outros seres. No desenvolvimento, a ordem, o progresso e a independência são
valores que negam que o que nos constitui é a interdependência. A lógica desenvol-
vimentista ignora que não somos autossuficientes, nunca fomos: precisamos do ar,
da água, da terra, do alimento, precisamos uns dos outros o tempo todo. Quando
não estamos em rede, adoecemos, algo que a vida nas cidades e no seu ritmo indi-
vidualista compele a todo momento.
Em vez dessa noção de desenvolvimento, o que Mestre Bispo Santos (2018) sinaliza
é que para nós, povos da terra, indígenas e quilombolas, o que realmente buscamos
como saúde coletiva é a construção de um envolvimento de qualidade com os demais
seres, lembrando sempre que o cuidado com a terra é também um autocuidado.
A reflexibilidade dos ciclos da natureza nos ensina que o cuidado precisa ser
vivo, em movimento, para ser saudável. Entre humanos, historicamente vemos
que essa dimensão do cuidar ficou sob responsabilidade de um grupo específico,
marcadamente mulheres, em especial as não brancas. Se não houver circularidade
do cuidado, o que temos é sobrecarga, cansaço e exaustão. Nos ciclos da natureza,
aprendemos que os raios, por exemplo, não necessariamente vêm de cima para bai-
xo, caindo passivamente no solo que os recebe. Não, há diversos tipos de raios nos
quais as partículas positivas saltam da terra em direção às negativas e é precisamente
desse encontro que se faz o raio. A terra não é apenas um receptáculo, ela é ativa,
suas partículas pulam, saltam, são vivas! Quando nos deitamos na terra ela é meu

4 Reflexão presente no capítulo “Os semeadores da Terra e a luta anticolonial: tecelânias indígenas com o
pensamento de Fanon”, presente no livro “Frantz Fanon: 60 anos depois”, Editora Ciclo Contínuo, prelo.

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colo, mas também eu a abraço. Não existe na vida passividade nem atividade, senão
encontro. A violência é exatamente a quebra da reflexibilidade, da reciprocidade.
Não escapam disso os processos de construção de autoestima, pois nos constituí-
mos de forma relacional: o modo como nos vemos é, também, afetado pelo modo
como nos veem. Portanto se nos veem desde uma ótica racista, misógina, lgbtfóbica,
o retorno deste espelho relacional que teremos será de uma devolução quebrada,
dolorida, distorcida. Construir terrenos relacionais em que possamos ser enxergados
dignamente é parte intrínseca do processo de podermos nos ver de modo saudável.
Por isso temos pautado que nosso espelho não pode ser estático, nosso espelho, que
sempre tivemos e nunca precisamos como regalo colonial, é o das águas, que está
sempre em movimento, fluindo, em vida e transformação, assim como nós.
Há que se ressaltar que o sentimento de inferiorização colonial, como salienta
Fanon (1968), é “correlato nativo da superiorização europeia. Precisamos ter a cora-
gem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (FANON, 1963, p. 90). Dessa forma,
para uma vida sem hierarquia colonial, é necessário que não apenas a autoestima do
colonizado seja restabelecida, como também a superioridade branca cis hétero seja
destituída do seu lugar de privilégio.
Essa destituição, reestruturação da estrutura violenta pode acarretar desconfor-
tos por parte de quem ocupa o lugar de hegemonia e aí é importante a sensibilidade
para compreender que nem todo sofrimento é garantia ética, nem toda dor é prova
de uma evidência de justeza em sua demanda. Um misógino pode manifestar sofri-
mento ao ver seu cerceamento machista sendo contrariado, um racista pode sofrer ao
ver que seu lugar de supremacia está sendo contrariado e assim por diante. Não nos
cabe questionar a veracidade desse sofrimento, mas problematizar as condições de
sua emergência, pois experiência não é uma evidência, um produto a ser partilhado,
mas precisamente o que nos constitui (SCOTT, 1999).
Como nos ensina Fanon, a clínica anticolonial não deve se preocupar em fazer
com que os colonizadores continuem praticando violências, mas com o auxílio da
Psicologia para fazê-lo sem angústia, sem ansiedade ou desconforto, e sim deve deter-se
em construir modos de acolhimento que tomem esses sintomas também como sina-
lização da necessidade urgente de uma ruptura com a necropolítica (MBEMBE, 2018).
Nesse sentido, uma psicologia anticolonial preocupa-se em colaborar ativa-
mente nas lutas antirracistas, antilgbtfobias e demais sistemas coloniais promotores
de chacinas, massacres, exploração e dominação de seres humanos e não humanos.
Da mesma forma que o não branco é o “outro” do branco, a natureza é “outro” do
humano universal. Reflexo disso é o frequente afastamento presente em análises

Psicologia Brasileira na Luta Antirracista 55


não indígenas sobre humano, costumeiramente concebido como indivíduo, como
unidade independente e apartada da natureza, como se dela estivesse emancipado.
No imaginário etnogenocida nós indígenas estamos sempre longe, não só
necessariamente afastados do espaço das cidades, como apartados no/do tempo.
Uma presença que, quando lembrada, é associada ao discurso capitalista do atraso
e sobretudo vista como um inimigo do “progresso” civilizatório. Nesse imaginário
etnogenocida, é como se nossa relação íntima com a “natureza” nos colocasse junto
dela, em um fora, em um longe. Só é possível tratar como objeto distanciado, como
produto a ser consumido, como propriedade a ser vendida aquilo com o qual não se
tem um vínculo de respeito e dignidade.
A dúvida ontológica direcionada a nós pelos missionários em 1500 detinha-se
na investigação de identificar se teríamos ou não alma. Se sim, estaríamos elegíveis
à catequização; se não, seríamos como os demais bichos, sem alma. É uma pergunta
fundamentalmente direcionada ao escrutínio de quem poderia ser humano. Nossa res-
posta a essa questão é a de que sim, temos alma, mas o milho, os rios, as matas também
a têm (PERALTA, 2017). Nossa contribuição das perspectivas indígenas busca apresen-
tar e estender a noção de parentalidade, afeto e cuidado para horizontes relacionais,
recíprocos e não hierárquicos. É, portanto, imprescindível que para a construção de
vínculos saudáveis possamos ir além do binarismo humano x animal cuja hierarquia
entre si e com os demais seres fundamenta todas as violências do mundo colonial.

Considerações finais: os marcos temporais da colonialidade e


alguns de seus impactos

São múltiplos os efeitos da binarização do mundo e seus marcos temporais,


seus tentáculos se estendem a toda uma economia relacional. Nessas capturas hege-
mônicas, também se busca possuir e dominar o ritmo das relações entre si e com os
demais seres, como reatualizam os dizeres populares: “tempo é dinheiro”.
Na corrida por acúmulo e posse, a tentativa de domínio do tempo acelera e
descompassa a sazonalidade dos processos psicossociais, de modo que podemos ver
esse atropelo como um importante componente dos adoecimentos de nosso tempo,
marcadamente, em psicopatologias como depressão e ansiedade5. O aceleramento da
produtividade explora não apenas nosso território-corpo como também agride a terra,
machucada pelo ritmo do desenvolvimento do agronegócio (PERALTA, 2017). Por isso

5 Parte das reflexões deste texto estão presentes no capítulo “As cores do sofrimento e as dores do tem-
po: reflexões para uma psicologia anticolonial”, no prelo.

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reafirmamos: para um acolhimento efetivo do trauma colonial é necessário um reco-
nhecimento da interconectibilidade entre as diferentes dimensões dessas violências.
Se, entre os pressupostos da colonialidade estão a não concomitância horizontal
e plural de modos de vida, a dominação, a hierarquia, o tempo linear, enfim, todo
o sistema de monoculturas e suas imposições, em nossas perspectivas indígenas e
quilombolas o que temos é a confluência, a concomitância existencial, a descentra-
lização do humano e a convivência (SANTOS, 2018).
Aristóteles dizia que Deus era o primeiro motor imóvel, aquilo que moveria a
tudo e a todos e não seria movido por ninguém. Essa forma de se relacionar com a
existência orienta também uma forma de lidar com a temporalidade. Narrar o tem-
po como passado-presente-futuro necessariamente precisa acionar algum tipo de
criacionismo, algum tipo de motor imóvel que iniciou tudo e não foi iniciado por
ninguém (em geral, Deus).
Se o tempo não é presente-passado-futuro, se ele não é linear, então ele é cir-
cular (no sentido que circula, não de ser um círculo fechado), espiral: não há começo
nem fim, pois não há um ponto de partida nem de chegada.
No cristianismo, a miséria da vida é suportada muitas vezes com a promessa
de seu fim, com a promessa do paraíso, do céu. De uma evolução “dessa para uma
melhor”. Como pensar a vida sem esses marcadores do tempo? Uma pista é o acolher
da transformação circular como condição da existência. Um dia não teremos mais o
corpo que temos e daí seremos terra, planta, formiga, ar, água. Não há vergonha nem
tristeza nisso. Nenhum ser é maior nem melhor que outro. Não há defeito nem falta
na repetição. A chuva se repete, o sol se repete, tudo igual e novo ao mesmo tempo.
A afirmação da vida envolve reconhecer a concomitância de outras vidas, inclusive
porque o fim do mundo humano não é fim do mundo todo. É comum que quando
gostamos de algo desejemos que isso se repita: que sintamos novamente a delícia
dos sons, cheiros, gostos. Se nos apavora a ideia de que nossa vida nunca acabe, que
essa pergunta nos inspire a fazermos uma revisão sobre a qualidade do nosso víncu-
lo, coletivo, com a existência. Só é possível amar a transformação da vida com teias
igualmente mutáveis.
Gersem Baniwa (2006) nos ensina que a noção de “sobrenatural” da matriz fi-
losófica eurocristã não contempla nossas perspectivas indígenas. Isso porque a ideia
de algo sobre/supernatural coloca a natureza como apartado, inferior, distante – e,
para nós, não há nada que está sobre a natureza, pois ela é tudo que há. Os deuses
coloniais costumam ser os seres nomeados como sobrenaturais – eles e os demais
seres que excedem de alguma forma a ordem “natural” das coisas, como aquilo que

Psicologia Brasileira na Luta Antirracista 57


está acima, a quem todos devem obediência irrestrita, de quem todos têm medo,
daí a ética punitivista.
A relação de distanciamento com esse outro nos faz esquecer que nosso próprio
corpo não termina na pele, como diz Haraway e Gane (2010). Somos uma multidão
de seres, íntima e profundamente conectados com o ar, com todos os poros da nossa
pele, desde antes de nascermos até depois de nossa morte/transformação. Nesse sen-
tido, tanto vida quanto morte fazem parte do ciclo de transformações da natureza e
compreendendo isso percebemos que não há nem fim nem começo. Sem super-hu-
mano e sem sobrenatural conseguiremos parar de ferir (nossa) natureza, lembrando
que hierarquia entre humanos e não humanos é a base de todas as violências.
Uma psicologia anticolonial reconhece que as relações que nos constituem
não se circunscrevem apenas ao vínculo dos humanos entre si, mas também contam
como rede de apoio, saúde, encanto e afeto os pássaros, o vento, as joaninhas, os rios,
a terra. Gosto muito das palavras refrigerante e restaurante, não no sentido artificial
que a colonialidade lhes deu, mas sim precisamente pela sua literalidade: algo que nos
refrigera e restaura nossa saúde, nossa alegria. O reflorestamento aqui importa como
um processo de cura não só das feridas da terra como também do nosso imaginário,
de maneira tal que possamos cultivar, artesanalmente em nossas singularidades co-
letivas, meios de relações não mediadas pela propriedade, controle, hierarquia. Nós
povos indígenas nunca lutamos por um projeto de mundo em que apenas nossos povos
teriam alimento, moradia, saúde. O elogio da exceção, da meritocracia não compõe
nossas perspectivas de mundo. Como nos ensina Cacique Babau (2019):

Como podemos achar que somos os únicos com direito à terra?


E o direito dos pássaros de ter suas árvores para pousar, cantar
e fazer ninho? E o direito da preguiça de ter sua árvore para
morar? E o direito do tatu de ter uma terra para cavar e morar
dignamente? Por que só o ser humano acha que pode viver dig-
namente sobre a terra? Nós, Tupinambá, não pensamos assim.

Se a colonização não acabou, nós também não deixamos de existir, nossa resis-
tência vem de muito longe e em nosso caminho temos a companhia de milhões de
outros seres que também estão em luta conosco. Que a cada dia mais o direito à vida,
alimentação, saúde e dignidade não seja privilégio de poucos tidos como humanos,
mas um usufruto livre de todos os seres: gente humana, gente rio, gente árvore, gente
vento. Que não mais a diferença tenha sua potência reduzida pelo empobrecimento
do binarismo colonial e que possa ser múltipla, diversa, fluida e, sobretudo, sem hie-
rarquias que sustentem as racionalidades da morte. É nessa psicologia que acredito.

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