Estudo Bíblico
Gênero Apocalíptico
Material Teórico
Gênero Apocalipse
Responsável pelo Conteúdo:
Prof. Dr. Anderson Oliveira Lima
Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Gênero Apocalipse
• Introdução;
• Sobre o Gênero Apocalipse;
• Características Gerais do Gênero.
OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Seguir estudando a apocalíptica de uma perspectiva histórica;
• Entender o surgimento da apocalíptica a partir da herança cultural de outras nações;
• Discutir questões de gênero estudando as características mais recorrentes nos livros
comumente rotulados como apocalípticos.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.
Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.
Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.
Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;
Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma
alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;
No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;
Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de
aprendizagem.
UNIDADE Gênero Apocalipse
Contexualização
Depois de tudo o que foi estudado até aqui, você já deve ter notado que, enquanto
estamos adquirindo conhecimentos para lidar com a literatura de gênero apocalíptico,
estamos nos preparando para muito mais do que ler o Apocalipse de João. Uma das
ênfases do nosso estudo tem sido a necessidade de ampliarmos nossos horizontes
de pesquisa para, quando necessário, fazer contato com a literatura não canônica.
Afinal, nossas Bíblias cristãs preservam apenas uma pequena amostra da produção
comumente atribuída a esse gênero, cujo conhecimento dependeu muito da produção
apócrifa. Teremos, mais adiante, a oportunidade de ler algumas passagens de um
interessante livro apócrifo que muito acrescenta à nossa compreensão de certos
textos bíblicos, e estamos certos de que essa experiência será compensadora.
Também gostaríamos enfatizar que, além do Apocalipse de João, a Bíblia cristã
preserva várias outras passagens, as quais, conforme evoluía o saber acadêmico
em torno da temática apocalíptica, foram mais bem compreendidas. Veremos
que o livro de Daniel, no Antigo Testamento, é um livro que hoje é considerado
autenticamente apocalíptico, que várias porções dos evangelhos sofreram influência
direta do estilo, da linguagem, da temática apocalíptica, e que até mesmo nas cartas
paulinas a presença desse imaginário religioso foi determinante.
Essas palavras de incentivo, que revelam mais sobre a ampla aplicação dos
conhecimentos que aqui estamos a compartilhar, não devem, todavia, produzir
pressa e ansiedade. Na verdade, nosso objetivo com essas linhas é incentivá-lo(a)
ao estudo atento destas primeiras unidades que possuem um caráter introdutório.
É absolutamente imprescindível que entendamos bem todos os elementos que
caracterizam o gênero apocalíptico para que, num futuro muito próximo, nos
aproximemos desses textos com propriedade, seguros de que estamos lidando com
textos apocalípticos e que nossa compreensão dos mesmos tem sido aperfeiçoada
pelo investimento feito através dos nossos estudos.
Enfim, retomaremos a discussão sobre o gênero apocalíptico de onde paramos,
e é importante compreender que o uso de tantas páginas de nosso material
didático (duas unidades completas do curso) para esses temas gerais e introdutórios
correspondem à importância que damos a esses primeiros conteúdos. Dito isso,
desejamos a você boas horas de estudo, leitura e reflexão, e esperamos que a
maneira pela qual o guiemos revele seus méritos ao final da jornada.
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Introdução
Esta segunda unidade da disciplina Estudos Bíblicos: Gênero Apocalíptico dá
continuidade àquilo que vinha sendo exposto anteriormente. Ou seja, nosso assunto
continua sendo o surgimento da apocalíptica judaica, suas razões, e principalmente
as características que, reunidas, nos permitem identificar com facilidade quando
estamos lidando com um texto que é considerado, pela comunidade acadêmica em
geral, como texto apocalíptico.
Recordemos, antes de seguir, que a apocalíptica descende diretamente da pro-
fecia. Vimos que a profecia bíblica nasceu como uma nova manifestação cultural e
religiosa que foi motivada por questões diversas de ordem política, histórica, social
etc. A profecia judaica era uma espécie de direcionamento da voz dos antigos videntes
para as questões sociais mais sensíveis da época, uma expressão da inconformidade
do mundo em relação à teologia de antigos(as) videntes. A apocalíptica, descendendo
dessa forma de expressão religiosa, não deixaria de ter seus pés no chão, embora a
linguagem mitológica, simbólica e obscura levasse o leitor além. A literatura apoca-
líptica renova a forma, mas sua mensagem continua contendo a revolta daqueles que
supunham conhecer a vontade de Deus e sua inconformidade com os acontecimentos
concretos, históricos. Um dos grandes desafios deixados para nós, leitores, é exata-
mente encontrar o vínculo que prende a literatura apocalíptica à realidade, para que
não subestimemos seu caráter crítico e prático desse apocalipsismo.
Figura 1 – Hieronymus Bosch, St. John the Evangelist on Patmos (1504-1505)
Fonte: Wikimedia Commons
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UNIDADE Gênero Apocalipse
Sobre o Gênero Apocalipse
A Society of Biblical Literature – SBL (Sociedade de Literatura Bíblia) –
publicou um periódico especializado nos estudos da literatura apocalíptica em
1979 (Semeia, número 14). Esse número ainda é considerado um marco na
história dos estudos da apocalíptica e, em especial, nas questões de gênero dessa
literatura. Os artigos podem ser lidos pelos que conhecem a língua inglesa e
estão dispostos a pesquisar na internet, mas o organizador do número (John J.
Collins) afirmou mais recentemente que as pesquisas então reunidas conduziram
às seguintes conclusões:
[...] define-se um apocalipse como “um gênero de literatura revelatória com
estrutura narrativa, no qual a revelação a um receptor humano é mediada
por um ser sobrenatural, desvendando uma realidade transcendente que
tanto é temporal, na medida em que vislumbra salvação escatológica,
quanto espacial, na medida em que envolve outro mundo, sobrenatural”.
(COLLINS, 2010, p. 22)
Partiremos dessa definição geral e procuraremos dar maior profundidade aos
tópicos mais relevantes do parágrafo de Collins nos itens a seguir. Assim esperamos
nos apropriar suficientemente das características gerais do gênero, as quais serão
posteriormente aplicadas em nossas leituras e análises.
Influências Estrangeiras na Apocalíptica Judaica
As características da profecia pós-exílica partem da profecia tradicional (aquela
do pré-exílio, do século VIII a.C.) e, pouco a pouco, caminham em direção à
apocalíptica propriamente dita. Por isso não custa lembrar que, da perspectiva dos
próprios autores bíblicos, estes que hoje chamamos de apocalípticos se intitulavam,
simplesmente, profetas. A transição, obviamente não se deu de uma hora para
outra, mas foi gradual e chegou ao auge no período que muitos chamam de
interbíblico (tempo que se caracteriza por ter transcorrido entre a composição dos
dois testamentos canônicos). Foi nesse tempo que foi escrito o mais apocalíptico
de todos os livros do Antigo Testamento, o livro de Daniel, que terá seu espaço
em nossas análises futuras.
Que a matriz profética fornece o pano de fundo sobre o qual começa a ser
desenvolvida a apocalíptica é inegável. Mas novidades tão grandes, que nos permi-
tem diferenciar com tamanha segurança a profecia e a apocalíptica, não poderiam
ter surgido espontaneamente por obra de um gênio individual. O contato prolon-
gado e multiforme dos judeus com outras culturas é, para dizer isso em poucas
palavras, o grande combustível que gerou o nascimento da apocalíptica.
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Muitos estudiosos que dedicam suas carreiras à história dos judeus e à evolução
de sua cultura falam que, a partir do 6º século a.C., o judaísmo sofreu mudanças
pela infiltração do dualismo persa (que dizem ser uma herança do zoroastrismo)
e dos símbolos advindos da mitologia desse povo. A influência persa, portanto,
está impressa no apocalipsismo judaico, mas não completamente. Consideremos
que as pesquisas também foram capazes de encontrar relações entre os textos
apocalípticos e a mitologia de outros povos, pelo que há um vasto material de
análise que levanta pequenas relações de intertextualidade entre os textos judaicos
e materiais de origem babilônica ou extraídos da mitologia canaanita-ugarítica
(COLLINS, 2010, pp. 52-61; SOARES, 2008, pp. 106-110).
Ainda que não tenhamos a oportunidade de avaliar esse rico material estrangei-
ro que supostamente ofereceu elementos para os judeus durante o desenvolvimento
da apocalíptica, o que importa é que, de maneira notável, após o exílio babilônico,
um horizonte celestial, transcendental, perfeito e imutável surge com mais força na
imaginação religiosa dos judeus. Esse mundo celestial está em oposição ao cenário
terreno que é frágil, transitório e que é por aquele determinado. A relação entre os
dois mundos (o terreno e o celestial) é complexa, começa a envolver uma agenda
escatológica em que um juiz de natureza divina julgará os atos humanos e, ao dar
cabo de tudo o que é imperfeito para inaugurar uma espécie de nova criação, ani-
quila mesmo todo o mundo empírico (COOK, 2009, pp. 322-324).
Mas os textos apocalípticos propriamente ditos não surgiram antes que o antigo
Mundo Mediterrâneo começasse a passar por um processo de helenização, isto é,
um processo de sincretismo cultural pelo qual diversas culturas foram modificadas
pelo contato com as tradições importadas durante a ampla dominação grega, a
partir do século IV a.C. Como o território dos judeus também foi temporariamente
dominado pelos gregos (através dos ptolomeus e selêucidas), o judaísmo não
escapou ao influxo da língua e da cultura grega, especialmente entre os séculos III
e II a.C. Isso ajuda a explicar, dentre outras coisas, porque o Novo Testamento foi
completamente escrito em língua grega.
Foi nesse período de helenização que se produziu a Septuaginta (LXX), uma tradução para
Explor
o grego dos textos bíblicos que eram mais populares na época. A LXX foi produzida em Ale-
xandria por volta do século III a.C. para atender aos interesses dos judeus viviam em comu-
nidades urbanas e helenizadas. Produzida antes do estabelecimento dos cânones judaico e
cristão, a LXX traz um maior número de livros que a Bíblia Hebraica e o Antigo Testamento e
preserva uma matriz textual que difere daquela que conhecemos através do texto massoré-
tico, cujos manuscritos datam dos séculos VI a X d.C. e são a base para a produção de nossas
traduções. É importante saber que a Bíblia grega foi a versão lida e citada pelos autores do
Novo Testamento e pelos cristãos até que, na Idade Média, sua popularidade foi finalmente
superada pela Vulgata latina. Essa é uma das razões pelas quais as citações feitas nos evan-
gelhos e por Paulo não costumam ser fiéis àquilo que lemos nos nossos Antigo Testamentos.
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UNIDADE Gênero Apocalipse
Características Gerais do Gênero
Depois do exílio, imaginamos que, no pensamento popular, Deus parecia ter
deixado de estar com Israel, no seu Templo, tendo preferido habitar num inatingível
palácio celestial. O mundo passou a ser visto como um cenário mais perigoso,
largamente visitado por seres invisíveis e malignos que eram dominados por Satan.
Essa figura foi ganhando contornos mais definidos ao longo dos anos e se tornou,
no período de produção apocalíptica, um opositor perigoso dos planos divinos.
A presença de Satanás entre os homens confirma a ótica pessimista dos apocalípticos
que sempre esperam por períodos de sofrimentos, provações, catástrofes etc. Todas
as esperanças dos apocalipses, portanto, voltam-se para o futuro escatológico, para
o que supostamente virá depois do fim (ou depois da morte) (VALDEZ, 2002, p. 58).
Leiamos as palavras de Collins a respeito do mundo que é imaginado pelos
apocalípticos:
[...] existe um mundo oculto de anjos e demônios que é diretamente
relevante para o destino humano; esse destino é determinado de
maneira final por um julgamento escatológico definitivo. Em suma, a
vida humana está limitada, no presente, pelo mundo sobrenatural de
anjos e demônios, e no futuro, pela inevitabilidade do julgamento final.
(COLLINS, 2010, p. 28)
Paulo Nogueira, com suas próprias palavras, acrescenta a essa descrição o
“pessimismo” apocalíptico:
O mundo dos apocalípticos é um mundo ameaçador e perigoso, onde
as artimanhas das forças demoníacas cercam as pessoas e a sociedade.
Não há uma concepção de progresso, de desenvolvimento moral no
tempo. Não faz sentido planejar, usar das boas estratégias da sabedoria
tradicional. Há um pessimismo tal que não permite esperanças do jeito
como as coisas caminham. É necessária uma ruptura e esta ruptura
acontece no juízo. (NOGUEIRA, 2008, p. 20)
Explicando o pensamento apocalíptico, Paulo Nogueira sabiamente o relaciona
ao pensamento mítico, pois os apocalipses se constroem a partir de uma maneira
de entender os tempos primordiais, tempos míticos, onde a criação de Deus
foi comprometida pelo confronto entre as forças do bem e do mal. Todas as
negatividades da existência são explicadas a partir dessa leitura mítica das origens
e, se os desequilíbrios nasceram assim, não há nada que os homens possam fazer
para mudar significativamente as estruturas do mundo e o estado caótico da
natureza. Nesse caso, compreende-se a razão de os apocalipses serem pessimistas
com relação ao presente e de falarem frequentemente do futuro, de um novo tempo
mítico onde as forças celestiais acertarão as contas em um embate final que, depois
de muitas consequências destrutivas, restabelecerá o equilíbrio antes planejado pelo
criador (NOGUEIRA, 2008, p. 21).
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Figura 2 – Pieter (the Elder) Bruegel, The Fall of the Rebel Angels, 1562
Fonte: Wikimedia Commons
Revelações Mediadas
Paulo Nogueira sugere que, embora o rótulo apocalipse seja demasiadamente
amplo para que dê conta de textos tão numerosos e diversos, o que se espera
é que leiamos esses textos que chamamos de apocalípticos como documentos
de “revelação mediada” (NOGUEIRA, 2008, p. 14). Essa literatura costuma
apresentar viagens celestiais que os visionários têm em momentos de êxtase; ou
seja, o que narram são supostamente revelações recebidas involuntariamente,
experiências que, quando os visionários tentam converter aos limites da linguagem
humana, esbarram em dificuldades que os levam a apelar a uma misteriosa
simbologia onde os protagonistas são animais de várias cabeças, dragões com
muitos chifres, anjos de muitas asas etc.
E essas revelações são chamadas de mediadas porque na narrativa da
experiência visionária há sempre a presença de um mediador. Nessas narrativas,
o personagem que narra a história, geralmente o próprio visionário, diz ter subido
às regiões celestiais passando por diferentes níveis; mas essa viagem não é possível
a homens comuns, pelo que tal privilégio só lhes é concedido porque sobem
àqueles cenários transcendentes acompanhados de alguém que tem acesso a
eles. Esse acompanhante, seja um homem já falecido (ou que foi arrebatado), um
anjo ou outra entidade qualquer, ajuda o visionário humano quando as visões
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UNIDADE Gênero Apocalipse
tiram-lhe as forças, explica-lhe as coisas misteriosas que ele vê, guia-lhe pelo
caminho correto, media sua experiência em vários aspectos. Nas palavras de
Collins: “A presença de um anjo que interpreta a visão ou serve de guia na
jornada sobrenatural é o elemento constante. Essa figura indica que a revelação
não é inteligível sem auxílio sobrenatural” (COLLINS, 2010, p. 23).
Visionários ou Escritores?
Dado os avanços na própria arte da escrita no mundo antigo e considerando os
contatos cada vez mais estreitos entre as lideranças religiosas judaicas e a tradição
escritural, os apocalipses já nascem como textos. Isto é, eles surgem como docu-
mentos escritos e não como memórias preservadas de discursos orais proferidos
por visionários, como se deu com boa parte da tradição profética. Em resumo, os
profetas tradicionais eram arautos, pregadores, oradores; apocalípticos, por sua
vez, eram escritores.
Um dado razoavelmente desconcertante relativo à apocalíptica é que, quase
sempre, ela era escrita lançando mão da pseudonímia. Isto é, seguindo uma tra-
dição bem conhecida na história da produção literária dos gregos (e também de
outras culturas), os autores dos textos apocalípticos não costumavam revelar suas
verdadeiras identidades nos livros que escreviam, mas empregavam personagens
célebres da tradição judaica para protagonizar as viagens celestiais que relatavam
(COLLINS, 2010, pp. 23, 69-70). Por conta disso, a maioria dos livros apocalípti-
cos são conhecidos como apocalipses de Enoque, Abraão, Pedro, Moisés, Daniel
etc., e é fácil notar que essas atribuições autorais são falsas, pois os livros apoca-
lípticos datam de períodos muito posteriores à vida desses célebres personagens
(NOGUEIRA, 2008, p. 15).
Esse dado – a certeza de que os textos apocalípticos são prioritariamente
pseudonímicos – também levanta dúvidas quanto à autoria do próprio Apocalipse
de João. O texto, como sabemos, menciona o nome de seu autor, mas em
nenhum momento o João que relata as experiências no livro se identifica como
o apóstolo que seguiu Jesus e, mesmo que o fizesse, ainda haveria motivos para
duvidar dessa informação por ser costume dos autores apocalípticos o emprego
de identidades fictícias (NOGUEIRA, 2008, p. 15). Essa questão, todavia, poderá
ser vista mais de perto no momento em que estudaremos o Apocalipse.
Discute-se muito se há realmente um evento visionário por trás de obras como o Apoca-
Explor
lipse de João, pois há inúmeras evidências de que este livro, uma obra literária planejada
conscientemente pelo seu redator, não é o perfeito relato de uma viagem celestial. Todavia,
negar qualquer evento extático por trás dos apocalípticos é negar-lhes todo caráter de reve-
lação em que se inspiram.
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Figura 3 – Ilustração de Wycliffe de Bíblia
Fonte: Getty Images
Revelação Progressiva e Visionários Abatidos
Uma outra característica constante na apocalíptica é que os relatos místicos
desses textos costumam apresentar revelações progressivas; a visita aos cenários
celestiais se dá de forma gradual e o visionário visita planos cada vez mais elevados
e secretos até atingir o ápice de sua experiência.
O visionário visita vários estágios, vários templos, vários céus, abre vários selos,
ouve o som de várias trombetas ou testemunha o derramar de muitas taças etc.
(GUNNEWEG, 2005, p. 338). Essa progressividade, essa divisão da narrativa
em estágios sucessivos é uma característica marcante que, ao que tudo indica, os
judeus também aprenderam em contato com culturas estrangeiras (no caso, com
a mitologia persa).
No clássico Divina Comédia, o poeta italiano Dante Alighieri criou, na Idade Média (século
Explor
XIV), uma viagem celestial em que ele mesmo visitou (acompanhado De Virgílio, o autor da
Eneida) o inferno, o purgatório e o céu. O livro de Dante demonstra que poeta italiano com-
preendeu várias das características da apocalíptica judaica e as empregou para compor seu
próprio texto: ele entendeu que tal viagem devia ser mediada por alguém que tinha acesso
aos céus, aplicou à sua poesia em tom apocalíptico, a estrutura progressiva, e não deixou de
incluir muitas críticas à sociedade e religião de seu tempo.
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UNIDADE Gênero Apocalipse
Um detalhe curioso que pode ser colocado nesse item é que a apocalíptica
costuma contrapor a magnitude da revelação à fraqueza do visionário. A sucessão
de estágios a serem visitados amplia a tensão do enredo, cria a ansiedade que
prepara o leitor para o momento em que o visionário alcançará o mais elevado
céu, quiçá o trono do próprio Deus com toda a sua glória. Mas, quando esse
visionário se depara com tais coisas grandiosas, seu corpo físico, humano, sofre,
enfraquece, adoece. Vejamos alguns exemplos breves:
Em Ezequiel 1.28-29, um daqueles textos proféticos que começam a nos
preparar para as novidades da apocalíptica, o visionário descreve uma experi-
ência mística, uma visão, e também fala sobre a fraqueza física decorrente dessa
experiência. Depois, ele ouve alguém falando com ele, é auxiliado e recupera
suas forças:
[...] Essa era a aparência da semelhança da glória de Jeová. Quando a
vi, caí com o rosto em terra e ouvi uma voz de quem falava. Essa voz
disse-me: ‘Filho do homem, põe-te sobre os teus pés, e falarei contigo’.
Falando-me ele, entrou em mim o Espírito, e pus-me sobre os meus pés
[...] (Ez 1.28-29)
Figura 4
Fonte: Wikimedia Commons
Se você já leu o livro de Daniel, no Antigo Testamento, talvez se lembre do relato
do visionário em Dn 8.26-27, no qual também ouvimos falar das consequências
físicas de uma visão sobrenatural. E temos ainda o relato do visionário que narra o
Apocalipse de João, que diz:
Quando o vi, caí aos seus pés como morto; e ele pôs a sua destra sobre
mim, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro, e o último, e o que vivo; fui
morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves
da morte e do Hades. (Ap 1.17-18)
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Nesses textos, os visionários perdem as forças por terem vislumbrado coisas
demasiadamente grandes, coisas sagradas. Assim, podemos dizer que, em geral,
na apocalíptica judaica, quem recebe grandes revelações sofre consequências na
própria carne, como a fraqueza física ou a perda dos sentidos. Alguns desses visio-
nários, após o retorno, podem exibir as sequelas de suas experiências fantásticas,
marcas que são provas da veracidade das revelações que agora fazem.
Figura 5
Fonte: jcchurches.org
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UNIDADE Gênero Apocalipse
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:
Sites
A Bíblia como Literatura
Indicamos um site de um grupo de pesquisas da Universidade Presbiteriana Mackenzie que se
dedica aos estudos da literatura bíblica de um ponto de vista literário. O conteúdo está
crescendo e, certamente, o site logo reunirá um bom número de trabalhos de relevância para
todos os estudiosos interessados na Bíblia no Brasil.
https://bit.ly/2H2yZbX
Leitura
A Literatura Apocalíptica enquanto Género Literário (300 a.C. - 200 d.C.)
Indicamos a leitura do artigo de Ana Valdez – A literatura apocalíptica enquanto género literário
(300 a.C. - 200 d.C.) – como um primeiro conteúdo complementar ao estudo desta unidade.
Ela trata de maneira introdutória do gênero apocalíptico empregando classificações ligeiramente
diferentes das nossas. Sua leitura proporcionará uma visão mais ampla da temática e mostrará
que há diferentes ênfases nessa área dos estudos bíblicos.
https://bit.ly/2LpSJuu
A Literatura Apocalíptica: O Gênero como Expressão
https://bit.ly/2J0OZxj
A Bíblia como Literatura
Mudando um pouco de assunto, indicamos a leitura de um texto de João Leonel sobre a leitura da
Bíblia como literatura. O texto é breve e bem didático. Seu propósito, aqui, é deixar claro o tipo
de abordagem que fazemos da literatura bíblica, um conhecimento que impedirá nossos leitores de
se escandalizarem com nossa postura crítica que deixa a fé religiosa em segundo plano.
https://bit.ly/2Pk2Jqq
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Referências
COLLINS, John. J. A Imaginação Apocalítica: Uma Introdução à Literatura
Apocalíptica Judaica. São Paulo: Paulus, 2010.
COOK, Stephen L. Hebrew Bible/Old Testament. In. Encyclopedia of the Bible
and Its Reception 2. Berlin/New York: Walter de Gruyter, pp. 321-324, 2009.
GUNNEWEG. A. H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento: Uma História
da Religião de Israel na Perspectiva Bíblico-teológica. São Paulo: Vida Nova, 2005.
NOGUEIRA, P. O que é Apocalipse (Coleção primeiros passos, 333). São Paulo:
Brasiliense, 2008.
SOARES, Dionísio Oliveira. A literatura apocalíptica: o gênero como expressão.
Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, pp. 99-113, 2008.
VALDEZ, Ana. A literatura apocalíptica enquanto género literário (300 a.C. - 200
d. C.). Millenarium (Revista Portuguesa de Ciência das Religiões), Ano I, n. 1, pp.
55-66, 2002.
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