http://dx.doi.org/10.
1590/2316-82422015v3602ad
O Super-Homem
(O fundamento evolucionista do
übermensch de Frederic Nietzsche)∗
Almachio Diniz**
Resumo: Neste ensaio, o “filósofo baiano” Almachio Diniz
procura descobrir no “super-homem” de Nietzsche os princípios
do evolucionismo filosófico, que ele remete a Ernst Haeckel.
Nesse sentido, defende que o übermensch, diante da ideia da
evolução universal, é um fato a consumar-se futuramente.
Palavras-chave: Nietzsche - super-homem - evolucionismo -
Zarathustra
Nenhuma obra litero-filosófica do século que passou, obteve
maior sucesso do que a extravagante e incongruente de FREDERIC
NIETZSCHE, o original viajante das solenes alturas do Sils-Marie.
A sua importância, portanto, se estende até às obras dos seus
críticos, dos seus interpretadores e comentários, com que nestes
últimos tempos se tem enriquecido a literatura filosófica de todos os
países. Se na sublime criação do superhomem se podem descobrir
a forma e o jeito de um grande fantasma, não se deve temer, por isso
mesmo, o seu fracasso: na correspondência de seu valor intrínseco
perante os princípios evolucionistas da ciência hodierna, se é um
fantasma, tem, contudo, as honras da imortalidade na tradição dos
conhecimentos humanos. Será possível a vinda do superhomem?
*
Publicado no livro Questões Atuais de Filosofia e Direito. H. GARNIER, Rio de Janeiro,
1909, p. 37-59.
**
Almachio Diniz Gonçalves (1880-1937) foi advogado, jurista, professor, escritor, filósofo e
poeta baiano.
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 123
Diniz, A.
Qual o fundamento natural desta previsão? Difíceis, no entanto,
não serão as considerações precisas para a sustentação do ideal
evolucionista de NIETZSCHE.
O LIVRO DE ZARATHUSTRA
Na fase aguda de combate ao idealismo de qualquer espécie que
se vem atravessando nestes últimos anos, sob a influência de um mesmo
ideal, em tempos e lugares diferentes, e sob as formas caprichosas de
temperamentos variados, JOHN RUSKIN apontou o aparecimento do
superhuman ideal na arte, JEAN IsouLET, traduzindo os representative-
men de D’EMERSON, chamou-os de les surhumains, GABRIELE
D’ANNUNZIO, o mais artista de todos, preparou, na arte, o advento
do superuomo, CARLYLE imaginou as fogosas figuras dos heróis, e
HENRYCK IBSEN a sua arbitrária e reação de seu drama Brand.
Nenhuma destas eloquentes passagens do idealismo de transição,
porém, se equiparar pôde à previsão evolucionista do ueber mensch
(sic), conforme a expôs o seu autor no — Also sprach Zarathustra — ou
seja nesse tratado que se deveria ter chamado, simplesmente, mas com
muita expressão, o livro de Zarathustra (sic).
Vem, nas páginas desse livro, desenhado o perfil do
superhomem, não como uma simples fantasia de um cérebro de
poeta, o que NIETZSCHE não foi, mas sim como uma doutrina
verificável, de futuro, resultante natural das fórmulas biológicas
do evolucionismo universal, segundo o maior dos filósofos que
é ERNST HAECKEL, principalmente como famoso autor da —
Naturliche Schopfungsgechichte. A história do — Also sprach
Zarathustra — a gênese desse livro altamente pretencioso, em
virtude de seu subjetivismo egoísta, o fieri enfim, da criação de
124| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
Zarathustra, graças à celeuma que conseguiu levantar entre os
adeptos dos preconceitos da ciência e do dogma, é fácil de ser
recomposta, e, assim, indispensável para a sustentação segura do
fato natural que no uebermensch se expandiu. A vida e a origem
do escandaloso livro, não se perderam, apesar do indiferentismo
que em seu torno procurou derramar a reptilosa (sic) malquerença
dos seus contemporâneos. Datam ambas elas do mesmo momento,
em que no sábio alemão germinou, com a beleza serena de sua
real superioridade, a sua intemperante indiferença aos homens
e às coisas de seu tempo. E, claramente, ele próprio assinala as
origens de seu revolucionário livro, apontando-as no “começo
do mês de agosto, em 1881, no Sils-Marie, seis mil pés acima
do nível dos mares, e, muito mais alto ainda, acima de todas as
coisas humanas”. É de conveniência, neste ponto, lembrar-se que,
como era natural, NIETZSCHE estivera em contato direto com o
mundo, aí sondando, superiormente, os vícios, como também as
perfeições do gênero humano, isto até ao momento da sua resolução
heroica de legar aos pósteros de sua geração as grandes ideias que
Zarathustra — o trabalhado símbolo de seu pensamento ardente
— lhe despertou, pela época de sua passagem em Engandine, nas
poéticas e admiráveis margens do lago de Silvaplana (sic).
Sabe-se que, de contínuo, fora ele um perseguido pelas
tentações de fazer-se escritor. Em 1871-1872, na verdade,
FREDERIC NIETZSCHE sentiu altas inspirações sob a subtil
influência dos largos e claros panoramas das eminencias, quando
ele jornadeara em Bâle (sic), e quando Zarathustra lhe palpitou
maravilho sãmente no cérebro, distanciando o pensador das
banalidades convencionais, do vaidoso convívio dos homens, numa
era de civilização em decadência. Mas, afastado do que ele diria o
parei foco real das corrupções, o autor da — Genealogia da Moral
— deixou que decorresse, nada fazendo de público, uma reticência
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 125
Diniz, A.
de dez anos... Depois de 1881, porém, as suas ideias rapidamente
se acentuaram, ganharam um modo definido, a fim de chegar a
hora da volta das cousas. Assim, tornando-se conhecidos os seus
primeiros esforços já deixavam a descoberto a beleza diamantina
das primeiras palavras de Zarathustra... Fora, portanto, julgando-se
purificado de tudo, que, em 1882, redigindo a conhecida— La gaga
scienza — deixava aí, como disse o seu mais assíduo interprete
HENRI ALBERT, “cent índices de l’approché de quel-que chose
d’incomparable”.
Pouco importa, aqui, a relação entre causa e consequentes;
mas guindado — e porque se não dizer assim? — à vida de
um exclusivismo voluntarioso, NIETZSCHE teve, com efeito,
a renitência da ideia de todo grande espírito, de todo homem
superior aos que o cercaram no início de sua ascensão original, do
homem que prescindiu dos apupos incondicionais das multidões
louvaminheiras, e nisto inconscientes, para conseguir o sucesso
universal de seus livros. Como todo espírito distinto, por certo,
quis ser incompreendido não só pelos grosseiros apreciadores das
banalidades que abarrotavam, nos seus dias, as livrarias, como
também pela arrojada corte dos nulos, dos pedantes na pretensão
de atingir os grandes intelectuais.
Tanto por isso, inscreveu-se como epígrafe do — Also
sprach Zarathustra — a celebre frase reveladora de muita filosofia
extravagante: “um livro para todo o mundo e para ninguém”.
Estabelecidos esses esclarecimentos, possível é que se
limitem os momentos evolucionistas daquela criação. Ora, nas
proximidades de Gênova, em Rapallo (Itália), durante os meses
de janeiro e fevereiro de 1883, NIETZSCHE escreveu a primeira
parte de seu livro capital, parte que, em opúsculo, teve publicidade
em maio do mesmo ano, pela casa editora de E. Schmeitzner, de
Chemnitz, trazendo já o curioso título bíblico de — Also sprach
126| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
Zarathustra. Compenetrado, então, da magna importância das
predicas que atribuía ao “Cenobiarca” o afervorado filósofo
justificou, deste modo, a concepção daquela primeira parte: “Pela
manhã, subi a soberba estrada de Zoagli, dirigindo-me para o sul,
ao longo de um pinheiral. Eu via desenrolar-se o mar diante de
mim, o qual se estendia até ao horizonte. Depois de meio dia, tinha
feito a volta de toda a baia, desde Santa Margherita até detrás de
Portofino. Foi por esses dois caminhos que me veio a ideia de toda
a primeira parte de Zarathustra, ou todo o Zarathustra, encarado
como um modelo; ou, melhor ainda, foi quando o Zarathustra
apareceu em mim (er fiel mir ein — e — er uberfiel mich) > (sic).
Com esses e outros dados mais precisos, constantes do Nietzsche-
Archiv, os biógrafos do filósofo consignam que na consubstanciação
da primeira parte dos discursos de Zarathustra, começados pelas
— Três transformações — porque pôde passar o espírito humano
— < como o espírito se torna camelo, como o camelo se torna
leão, e como o leão, enfim, se torna menino > — e terminando
pela — Virtude de quem dá — onde ele firmou, definitivamente,
que < todos os deuses estão mortos, agora vive o sobrehumano >
— gastou o eminente escritor apenas dez dias, despendendo menor
prazo, aliás, posteriormente, para a radical e perfeita redação do
trabalho escrito. E, por uma fatal coincidência, atendendo-se às
lutas e relações espirituais entre R. WAGNER e F. NIETZSCHE,
este terminou a — Virtude de quem dá — o último canto daquela
primeira parte, em 13 de fevereiro de 1883, “exatamente na hora
sagrada em que R. WAGNER morria em Veneza”... (sic).
Nessa data NIETZSCHE já era um sofredor. Mas, não seriam
os sofrimentos físicos (porque NIETZSCHE muito padeceu de
enfermidades do corpo) e morais, que cortariam os seus esforçados
empenhos para a conclusão, de sua obra original. E, convicto de
sua tenacidade, dizia em tese: “Duvido que o sofrimento nos torne
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 127
Diniz, A.
melhores; mas, o que sei é que ele nos torna mais profundos”.
Efetivamente, a sua filosofia tem a profundeza crescente de sua
enfermidade agravada, e, certamente, por força disto, a sua obra
fundou os alicerces de uma filosofia grandemente reacionária.
Por isto, entretanto, deixaria NIETZSCHE de concorrer para a
grandeza do atual sistema filosófico, do sistema dominante? Ao
contrário, e em virtude de uma reação contra o pessimismo de
SCHOPENHAUER, constituiu-se NIETZSCHE um “campeão
da vida”, na frase de JULES DE GAULTIER. Da reação que ele
estudou do poder da espécie humana contra o seu próprio destino
mostrando-se adversário intolerante da resignação evangélica
e do pessimismo cristão, veio o fundamento de seu contingente
à filosofia evolucionista, o qual foi o superhomem. Porventura, a
explicação filosófica dos mundos dispensaria o concurso de muitos,
para ser obra de um só? Ora, KANT buscando a norma dentro da
razão individual, HEGEL, SCHELLING, COMTE determinando o
terceiro estado da evolução geral, o positivo, Mill, RENOUVIER,
VIGO pregando que “il mondo éfatto dagli uomini”, SUMNER
MAINE, ARDIGÓ, SPENCER dando as fórmulas da moral animal
e da justiça sub-humana, e HAECKEL fundando o monismo
naturalístico, todos os que trabalharam para a fundação de uma
filosofia definitiva, foram, com grande mérito, obreiros do monismo
filosófico, que FREDERIC NIETZSCHE acentuou, ainda uma vez,
na unidade das forças que podem reger a vida humana, para a
formação transformista ou evolucionista do superhomem, que é o
próprio homem dominado por si mesmo... Apesar de aumentados, de
dia para dia, os padecimentos físicos do grande autor, ele escreveu,
“ao correr de uma primavera melancólica > (sic), a segunda parte
do — Also sprach Zarathustra — com espontaneidade muito
semelhante à da primeira. Iniciou-a com o eloquente discurso —
canto da noite — em maio de 1883 e deixou-a definitivamente
128| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
formulada num trabalho de 17 de junho a 6 de julho daquele
ano, fazendo-a manuscrito perfeito antes de 15 desse último mês.
NIETZSCHE começou-a em Roma, numa “loggia”, “de onde se
divulgava toda a cidade e de onde se ouvia mugir em baixo a
Fontana”, acabando-a em Sils-Marie, lugar soberbo, anteriormente
escolhido para a escrita de toda a primeira parte. Aquela foi editada
em setembro de 1883, pela mesma casa de E. Schmeitzner, em
Chemnitz, sob o mesmo título pomposo, trazendo, porém, para a
sua especificação, a rubrica do algarismo —2. Foi nesta segunda
parte que vieram os argumentos contra a moral humana de sua
época. E o filósofo alemão imaginou uma agonia da moral, chamada
pelos franceses — angoisse nietzschienne — assim exposta por
EUGÈNE DE ROBERTY. “Como quer que seja, finalmente, o
mundo ouviu a voz que há dois séculos, com SPINOSA, e há meio
século, com STIRNER, se ecoava no deserto, ainda. O mundo não
ficou surdo ao apelo eloquente de NIETZSCHE. Acolheu bem, ao
que parece, o formidável grito de guerra soltado por esse filósofo
combatente. Tudo isso indica, ao meu ver, que aquilo que se tem
chamado — angoisse nietzschienne—longe de ser um fato isolado ou
único, constitui já um estado de alma bastante espalhado. Tudo isto
testemunha que os tempos estão mudados, que nós estamos em plena
crise moral, que o século da sociologia não pensou, não refletiu e não
trabalhou em vão; que a ética tradicional, como as outras formas do
puro empirismo, na ciência, na filosofia, na arte e até na prática, está
gravemente atingida. Tudo isso prova, enfim, que NIETZSCHE não
foi injusto, talvez, anunciando “a morte da moral”, da moral cristã,
tão bem quanto da ética utilitária, como o ‘espetáculo grandioso em
cem atos’”, que terá cartaz durante < os próximos séculos da história
europeia >, espetáculo terrífico, entre todos, e, talvez, fecundo, entre
todos, igualmente, em magnificas esperanças”.
Morta, pois, a moral, convinha ir para diante. E NIETZSCHE
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 129
Diniz, A.
foi. Diante do maravilhoso sucesso da segunda parte, portanto,
escrevia o autor de — Also sprach Zarathustra — o terceiro trecho
de sua obra fundamental, deste modo referindo-se, mais tarde, a
este seu esforço: “No inverno seguinte (1884) sob o céu alciônico
de Nice, que, pela vez primeira raiava para mim, achei o terceiro
Zarathustra. Essa parte decisiva que traz o título— Velhas e novas
taboas — escrevi durante uma ascensão das mais penosas da gare
à surpreendente cidade maura Eza, edificada entre rochedos”.
E, no decurso de dez dias, antes de 31 de janeiro daquele ano, o
manuscrito estava pronto; e, trasladado, com zelo, para a impressão,
ficou antes do meado de fevereiro seguinte. O mesmo editor trouxe-o
à luz da publicidade sob a rubrica do simples algarismo —3 — em
abril do mesmo ano, sendo observados o mesmo título e a celebrada
frase com que se epigrafaram as outras partes. É de registar-se que
do discurso — O viajante — às páginas do — Sete flagelos —
a terceira parte do — Also sprach Zarathustra — se caracterizou
por uma dicção muito mais cuidada, por meio de um estilo mais
artístico, e uso de concepções altamente filosóficas.
Dois anos depois, foi feita uma edição das três primeiras
partes num só volume, nos fins de 1886, pela casa de E. W. Fritsch,
de Leipzig, constatando, de um modo efetivo, o mérito, e traçando-
se a glorificação do grande filósofo.
A perfeição das doutrinas deste crescia em todos os seus
novos trabalhos, sob todas as formas, e NIETZSCHE, cada vez mais
apurado no seu eterno sofrimento de solitário que se regenerou,
desdobrava-se no filólogo que não devia ter, como de fato não tinha,
rudezas nem banalidades na expressão; no esteta, que encantava
com a simplicidade genial de suas poéticas inspirações, e no sábio
filósofo, no evidente pensador, que reformar quis a moral secular
dos homens, dando a palavra de alarma, no sentido de sua morte,
impondo, enfim, o conhecimento da fase angustiosa da moral cristã.
130| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
Assim trabalhando, em Menton, correndo novembro de ano de
1884, começou de escrever a quarta parte de sua grande criação
evolucionista, e em princípios de 1885, tendo havido, no seu
esforço, uma luta inexplicável, fechou os discursos de Zarathustra,
concluindo a figura do superhomem. O autógrafo, então, foi enviado
para a impressão em 12 de fevereiro daquele ano. É sem razão que
se tem publicado esta última escrita de NIETZSCHE como quarta
e última parte do — Also sprach Zarathustra — porquanto, não só
pelas ideias ali expostas, como também pelo que o próprio autor
escreveu a BRANDES, outras partes deveriam seguir-se: “Seu
verdadeiro título” — dizia NIETZSCHE a BRANDES — < com
relação ao que precede e ao que deve seguir, deveria ser — A tentação
de Zarathustra — um intermezzo >. Efetivamente, planos e esboços
ao depois publicados, indicaram que novas partes viriam, e que a
grande força do livro de NIETZSCHE deveria terminar, tragicamente,
na morte de Zarathustra. Mas, a enfermidade, a sua grande dor
moral que levou o homem ao fim tristíssimo da loucura, todos esses
incidentes concorreram para que ele não pudesse completar o seu
esforço, arrojadamente começado. E, só por isso, a sua obra ficou
limitada na quarta parte, que, editada às expensas de seu autor, veio
a lume em abril de 1885, numa edição de quarenta exemplares, com
a especial inscrição— “para meus amigos somente e não para o
público”. Aos seus raros leitores se pediu uma absoluta discrição...
e só depois que a dolorosa enfermidade inibiu NIETZSCHE de não
querer a tiragem de seu livro para o conhecimento do público, foi
que a casa de C. G. Nau-mann, de Leipzig, a republicou, no correr
do mês de março de 1892. Neste tempo estavam perdidas todas as
esperanças de cura e NIETZSCHE era um enfermo sem salvação...
Tal foi a gênese do — Also sprach Zarathustra — da grande
concepção de FREDERIC NIETZSCHE: o modo por que o pensador
alemão idealizou, nas alturas do Sils-Marie, longe do bulício do
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 131
Diniz, A.
mundo, estabelecendo, assim, pelo isolamento, o processus da
seleção intelectual, é de grande valor para o conhecimento da real
importância filosófica do superhomem, no conjunto do atual sistema
filosófico dos mundos.
II
BASES IDEAES DA THEORIA DO SUPERHOMEM
A teoria do superhomem é o trecho capital, e talvez, o
único, de toda a obra de FREDERIC NIETZSCHE, quer se encare
esta como religião, ao modo de seus mais exagerados discípulos,
quer se a enfrente como uma filosofia subjetiva, merecendo os
qualificativos de neo-cinismo, como lhe deu J. BOURDEAU. Mas,
as bases daquela teoria são de ordens diversas — ideais, filosóficas
e naturais. O seu desenvolvimento, naturalmente, em qualquer
dessas espécies, é indispensável no presente estudo. Obedecendo
às maiores forças de sua fecunda inspiração filosófica, FREDERIC
NIETZSCHE, quando redigia, em 1882, La gaya scienza, lançou o
brado de alerta para a próxima futura metamorfose biológica que
há de fazer sair um ser novo do atual homem, não a encarando
como um acontecimento justificado no domínio da biologia animal,
mas sim como uma espontânea criação de seu grande intelecto.
“Se se considerar como agem — escrevia ele — as justificações
geral e filosófica de sua maneira de viver e de pensar sobre cada
indivíduo, isto é, o que o sol que brilha exprime para esse indivíduo,
um sol que excita, bendiz e fecunda, quanto essa justificação
torna independente dos louvores e das blasfêmias, satisfeito,
pródigo, rico, em felicidades e benevolências, quanto transmuda,
continuamente, o mal em bem, faz florir e amadurecer todas as
132| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
forças, e impede de crescer a pequena e a grande erva da aflição
e do descontentamento: — acabar-se-á por exclamar em um tom
de oração: — oh! que muitos desses sois sejam criados! Os maus,
também os infelizes, os homens de exceção, devem ter uma filosofia,
seu bom direito, seu raio de sol! Não é a piedade que é preciso
para eles! —é preciso que percamos este acesso de orgulho, ainda
que seja sobre ele que a humanidade se tenha instruído, de muito
tempo para cá, e o tenha exercido — não temos que instituir, para
eles, confessores, nigromancias, e sentenças de absolvições. É uma
nova justiça, que é necessária! É uma nova sanção! Há necessidade
de novos filósofos! A terra moral também é redonda! A terra moral
também tem os seus antípodas. Estes também têm o direito de
viver! Fica um outro mundo para se descobrir, e mais de um! Para
bordo, vós, outros filósofos!”.
Neste novo mundo, assim idealizado, NIETZSCHE teve a
ideia, ainda maior, do superhomem. Isso pareceu-lhe, ao meu ver, a
solução da grande incógnita filosófica que se ocultava na finalidade
hominal, que outra cousa não é senão a da celebre pergunta de
Louis BUCHNER— “para onde vamos?”. É, para mim, o que
planejou o solitário viajante do Sils-Marie, está bastante claro no
evolucionismo filosófico, de que é prógono ERNST HAECKEL, o
grande sábio alemão. Devia ser com este sentido, e com outro não
foi, por certo, que Zarathustra disse num dos seus discursos: “Ficai
fiéis à terra! O sobrehumano é o sentido da terra!”. Por aí se verifica
que, como homem, NIETZSCHE se considerava um animal, mas
evolucionista, capaz de reformar-se por seu próprio esforço — aí está
a artificialidade, ou o idealismo absoluto, de sua criação — capaz de
constituir o sobrehumano, traduzindo-se em realidade a concepção
firmada na celebre máxima: — “o superhomem é o sentido da
terra” — alhures completada pelo fogoso pensador germânico: “Eu
vos conjuro, meus irmãos, ficai fiéis à terra, e não crede naqueles
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 133
Diniz, A.
que vos falam de esperanças supraterrestres!”. Como se nota, pois,
em FREDERIC NIETZSCHE havia a possibilidade, apesar de seu
excitado idealismo, rara nos homens, do conhecimento de si mesmo,
e nisto, certamente, ficou a parte mais perfeita de sua obra eloquente
e bela. Era por isso mesmo que ele, impiedosamente, atacava o
homem e a sua moral; assim procedendo, o revolucionário escritor
tirava a limpo a ideia do superhomem, < cujo conceito — na frase
de EUGÈNE DE ROBERTY — é o ponto culminante do evangelho
moral promulgado por Nietzsche >. Este firmava-se, ainda mais,
no seu modo de encarar a filosofia, como o < juiz da vida e seu
reformador >, tendo a missão de “criar o que se chama cultura”, de
onde, em sua opinião, aliás racional, o problema filosófico reduzir-
se a “assegurar a grande imutabilidade que pertence às diversas
categorias de coisas, a fim de poder, apoiando-se sobre essa base,
proceder ao melhoramento da parte inconstante ou modificável da
existência”. Em virtude destes e outros conceitos, foram escritas
as seguintes palavras: < Quase todas as doutrinas e teorias de
NIETZSCHE nos trazem esta surpresa: resolvem-se, finalmente,
em contrário, contribuem para o triunfamento das ideias de suas
teses, que, à primeira vista, parecem dever ser excluídas > (sic).
Rebuscando elementos no seu idealismo subjetivista,
FREDERIC NIETZSCHE assentava o seu sistema filosófico do
superhomem sobre aforismas assim concebidos: “A terra tem uma
pele e esta pele tem moléstias. Uma destas moléstias chama-se, por
exemplo, — homem!”. Em outro ponto, acrescentava: “E eu vi uma
grande tristeza baixar sobre os homens. Os melhores fatigaram-
se com as suas obras. Uma doutrina foi posta em circulação, e,
ao lado dela, uma crença: — Tudo está oco, tudo está igualado,
tudo está findo!”. E, em todas as colinas próximas daquela em que
Zarathustra falava, ressoou a resposta melancólica e pesarosa: <
Tudo está oco, tudo está igualado, tudo está findo!> Sob um outro
134| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
aspecto, no costume de ver a vida do mundo seu contemporâneo do
alto das montanhas, assim delimitou as suas emoções: “O mundo
me parece o sonho e a invenção de um deus, vapores coloridos
diante dos olhos de um divino descontente > (sic). Por igual,
quando descia das montanhas, ou saia da solidão das selvas, para
viver com os homens, delineava bem o superhomem. “... Vosso
mais alto pensamento — é preciso que eu vo-lo indique — é este:
o homem é alguma coisa que deve ser subjugada”. Nessas descidas
inevitáveis, observava bem os conjuntos humanos, e horrorizando-
se escrevia: “... O estado é o mais frio dos monstros frios; mente
também friamente, e eis aqui a mentira que sai de sua boca: — Eu,
o estado, eu sou o povo!”. Diante dessa fantasia, o filósofo ficava
com habilitações para poder dizer: “Onde cessa a solidão começa
a praça pública, e onde começa a praça pública começa também o
ruído dos grandes comediantes e também o burburinho das moscas
venenosas”. Depois disto, se voltava para a habitual solidão, sobre
a qual EUGÈNE DE ROBERTY dissera:— “o que ele queria era a
elevação de cada um e de todos, era a aristocratização das multidões
> — NIETZSCHE agia de acordo com a sua crença de que “um só era
sempre muita gente em torno de si >... Ora, foi nas páginas de — A
virtude de quem dá --- sublime capítulo do —Also sprach Zarathustra
— que FREDERIC NIETZSCHE melhor falou sobre os homens,
embora que de referência aos discípulos de Zarathustra (sic).
“Ficai fiéis à terra” — dizia ele— “meus irmãos, com todo
o poder de vossa virtude! Que o vosso amor que dá e o vosso
conhecimento sirvam ao sentido da terra! Assim vos peço e para
isso vos conjuro... Solitários, hoje, vós, vivendo separados assim,
um dia sereis um povo. Escolhendo-vos, um dia, formareis um povo,
escolhido — e será quando o sobrehumano há de nascer. Realmente
a terra há de vir a ser, algum dia, um lugar de cura. E já um novo
perfume a cerca, um odor salutar — e uma esperança nova!”.
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 135
Diniz, A.
Aí fica a feição ideal do superhomem, sem nenhum fundamento
lógico na natureza das coisas. O uebermensch, porém, não é um
idealismo sobrenatural, que dê à filosofia de NIETZSCHE o caráter
corruptível da obsoleta metafísica. Aliás metafísico e transcendental
foi o seu próprio autor. O superhomem, pois, tem o seu fundamento
filosófico, e nada mais natural e conforme à boa razão.
III
BASES FILOSÓFICAS DA TEORIA DO SUPERHOMEM
EDOUARD SCHURÉ reconheceu no autor do — Jen seits
von Gut und Bose — as individualidades de um sábio, de um artista
e de um filósofo, em luta constante, não podendo nenhuma delas
se estender, como preciso era, pela concorrência indeclinável de
todas. Pode-se, pois, enfrentar a criação do superhomem, como
venho fazendo, sob esses três aspectos: poético, artístico, ou ideal;
filosófico, metafísico, ou transcendental; e científico, ou natural. Sob o
primeiro desses aspectos, já destaquei a idealização do adlermensch,
do homem-águia, figura capital do — Also sprach Zarathustra. E,
apreciando a guerra que NIETZSCHE movia ao positivismo, que não
percebe senão a aparência das coisas e quer, por sobre todas as forças
organizadoras da vida e da moral dos homens, com o prestígio de
uma religião, que ergueu a humanidade ao cargo de deus, determinar
aos homens e às suas sociedades normas de vida e de coexistência,
vou enfrentar com o uebermensch, com o superhomem, sob o aspecto
filosófico da grande obra nietzscheana (sic).
Neste caso, a forma do sobrehumano virá da destruição do
mundo moral de hoje. Nichts ist wahr, alies ist erlaubt! -- gritava
o filósofo. “Nada é verdadeiro, tudo é permitido!”. É bem de notar
136| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
que NIETZSCHE, como filósofo, era um puro metafísico, era um
transcendental, apesar do que tinha ligações com os maiores vultos
da filosofia moderna. “Através do exagero e da incontinência, diz
J. BOURDEAU, as teorias de NIETZSCHE não são sem afinidades
com as de KANT, de SPENCER e de DARWIN. KANT proclama
o imperativo categórico, não do interesse como quer NIETZSCHE,
porém da consciência; ele reconhece que o dever não é facilmente
obedecido; ele louva como um benefício as lutas malfazejas entre
os homens, e até a paixão de mandar porque ela desperta nobres
qualidades. NIETZSCHE celebra, por igual, a vontade de poder,
Wille zur Macht. SPENCER considera que a filantropia, que permite a
existência aos desamparados, opera uma seleção à rebours e acabaria
por transformar o mundo civilizado em uma corte dos Milagres.
NIETZSCHE vê, igualmente, a Europa inteira degenerar a olhos
vistos. A moral de NIETZSCHE, a moral de combate, é a verdadeira
moral científica, tal como se a pode deduzir, com mais ou menos
rigor e moderação, da teoria de DARWIN, sobre a struggle for life.
Tomados em pequenas doses esses venenos podem tornar-se salutares.
A filosofia de NIETZSCHE se oferece, como um antídoto, à doença do
século, ao pessimismo aniquilante, ao desgosto da vida, enfim”.
Também metafísico era o processo do superhomem.
Queria ele que este chegasse por Selbslaufhebung, ou pela auto-
suppressão, coisa muito semelhante à evolução, do cético, segundo
o pessimismo de SCHOPENHAUER. E tudo isto serve para
mostrar claramente que NIETZSCHE foi um filósofo e que a sua
obra não foi, absolutamente, uma filosofia. A sua versatilidade não
impediu que ele tivesse a compreensão dos preceitos mais comuns
do conhecimento humano para fazer a escolha consciente de suas
afirmações e negativas, não se importando com que, para a coesão
momentânea das ideias do presente, o passado ficasse considerado
como um grau menor de sua evolução intelectual. Por isso, JULES
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 137
Diniz, A.
DE GAULTIER asseverou: “A filosofia, em NIETZSCHE, existe
num estado de perfeita anatomia; mas, ela se mostra recoberta,
assim como de uma carne fremente, de um lirismo e de uma fase
concreta, rica em imagens, em que o abstrato se vivifica e se
realiza”. Mas também, um tal filósofo abusava das abstrações que
podia fazer das coisas humanas e terrestres. Daí o caráter metafísico
do superhomem, quando diz com toda a força de seu pedantismo:
“O sobrehumano é a razão de ser da terra”. Define-o bem HENRI
LICHTENBERGER, o mais profundo comentador das obras do
pensador alemão: “Que é o superhomem e como o homem poderá
dar-lhe nascimento? Pode-se definir o superhomem: o estado a que
atingirá o homem quando tiver renunciado à hierarquia atual dos
valores, ao ideal cristão democrático, ou ascético, que têm curso,
hoje, em toda a Europa moderna, para voltar ao quadro dos valores
admitido entre as raças nobres, entre os Mestres que criam, eles
próprios, os valores por eles reconhecidos em lugar de recebe-los
de fora. Bem entendido, não se trata, absolutamente, de voltar atrás,
de fazer renascer depois dos séculos de civilização, o selvagem de
cabelos castanhos dos tempos primitivos. O homem não deve perder
nenhum dos seus conhecimentos, das suas aptidões, das forças
novas que ele tem adquirido ao curso de suas longas e experiências;
mas ele deve quebrar os velhos quadros das leis que o seguram
na sua marcha de hoje, e substitui-los por novos preceitos”. É
a expressão fiel dos conceitos e dos estudos nietzscheanos, essa
claríssima página de LICHTENBERGER. Nada, porém, há de
mais metafísico do que o homem ser um anarquista, um niilista,
ou um simples transmutador de valores para continuar a ser o
mesmo homem. E neste ponto estão, entretanto, de acordo os vários
comentadores de NIETZSCHE.
Também é metafísico o processus para que se chegue à hora
de aparecer o superhomem. SCHURÉ assim o expõe: “Enterradas
138| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
para sempre essas velhas quimeras de Deus, de almas do outro
mundo, de sobrenatural; derribados, igualmente, todos esses falsos
deuses, no — Crepúsculo dos ídolos. Mas o homem forte, o homem
intelectual forjando-se o seu próprio ideal, sua humanidade,
ao seu gosto, sem nada acima dele, sem outra lei que não a sua,
desprezando os fracos e os tolos, e convidando todos os fortes para
fazerem como ele, tal é a concepção desse Zarathustra, com a qual
NIETZSCHE pretendeu revelar aos seus contemporâneos e à sua
posteridade “o homem-sobre-humano”, que tinha descoberto >.
São bem estes o tipo metafísico do superhomem, tanto quanto
se o chamou de adlermensch, homem águia, e o processus para a sua
perpetração. O primeiro — o simples homem de talento; o segundo
— a aristocratização das multidões. E isto para simplificar a dicção
própria do caso.
IV
BASES NATURAES, OU FILOGENÉTICAS, DA
TEORIA DO SUPERHOMEM
O superhomem pode também ser encarado como um produto
futuro e espontâneo da evolução do homem atual, produto tão
justificável quanto se leve em devida consideração o encadeamento
dos elos na escala zoológica, desde as moneras, de HAECKEL, até aos
seres humanos, que não têm, por certo, diferenças dos demais graus
da cadeia dos seres vivos, ao ponto de nele paralisar-se a evolução e
dele não vir um ser mais aperfeiçoado “capaz de o subjugar”.
Neste assunto, NIETZSCHE deixou de ser, como lhe chamou
SCHURÉ, “o pai sinistro e grave de todos os anarquistas do
pensamento”, para, antes de chegado ao seu ateísmo epiléptico,
lançar as bases de uma construção filosófica, admiravelmente
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 139
Diniz, A.
sustentada pelos princípios do monismo naturalístico de
HAECKEL e outros pensadores. Entretanto, não fora esse o único
ponto de contato dos dois escritores alemães. Diz SCHURÉ: <
Porque NIETZSCHE, com o seu orgulho intransigente, em seu
furor contra Deus, o Divino e o ideal, chegou á mesma conclusão
que HAECKEL, o discípulo adiantado de DARWIN, a saber que
a ideia da alma, na qual, nós outros partidários do espiritualismo
evolutivo e transcendente, colocamos todos os recursos e todas as
esperanças, é < uma regressão para o estado selvagem. > (sic).
Mas, fazendo volta para a questão do superhomem, é bem de
ver que o ilustre autor do — Also sprach Zarathustra — de acordo
com a sua razão de homem esteve quando escreveu: “Até agora
todos os seres têm criado alguma coisa acima deles, e quereis ser
o refluxo deste grande fluxo, e antes voltar à besta do que passar
além do homem? Que é o macaco para o ente humano? Uma
irrisão ou uma vergonha dolorosa. E é o que deve ser o homem
para o sobre humano: uma irrisão ou uma vergonha dolorosa”. Essa
evolução, por meio da qual, do homem sairá o superhomem, ou do
affenmensch, homem macaco, sairá o adlermensch, homem-águia,
está baseada, não sei, no entanto, se com o propósito preconcebido,
no transformismo animal, do que se encontram aplicações mais
poéticas e mais fantasistas, no capítulo das — Três transformações
— do — Also sprach Zarathustra. Na concepção do uebermensch,
porém, o vigoroso estilista alemão desprezou certas preocupações
banais de sua alma insatisfeita, para ser lógico, ao mesmo tempo em
que foi filósofo e transformista. E por ser racional, e muito racional,
aliás, a sua doutrina do transformismo humano, foi suscetível de
uma belíssima sistematização, apesar das superficiais contestações
de empavesados censores e discutidores apaixonados, que, como
adversários se têm agarrado à loucura final de NIETZSCHE —
porque FRE-DERIC NIETZSCHE morreu louco, encerrado num
140| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.
O Super-Homem (O fundamento evolucionista do übermensch de Frederic Nietzsche)
asilo — para tentar desvalorizar o seu espírito que, segundo JOÃO
RIBEIRO, tomou todas as feições de erudito, filósofo, filólogo,
literato, artista genial da palavra e poeta... Na verdade, negar não
se pode que há uma sistematização filosófica nas páginas do —
Also sprach Zarathustra. < Disputa-se > — são trechos estes de
Eugéne DE ROBERTY — “calorosamente a NIETSCHE o título
de filósofo. Pretende-se que o seu espírito caótico seja rebelde a
toda a sistematização verdadeira, a toda pesquisa de unidade, a
toda síntese. Não demorarei em refutar essa opinião tão injusta
quanto preconcebida, e que se apoia sobre um ideal, singularmente
estreito, de função filosófica, NIETZSCHE é de tal forma um filósofo
que, debaixo de um certo ponto de vista, pode-se dizer que a sua
obra se oferece como a antítese viva da do sábio. É filósofo segundo
o antigo sentido da palavra, então que a filosofia não se separava da
ciência, imobilizada em sua fase incoativa e empírica, e da arte que
ela própria inspirava e dirigia. Com outros escritores modernos,
como RENAN, com GUYON, por exemplo, admite, por sua vez, o
velho dogma da sabedoria, e disse ele que, ‘sem se deixar abusar
pelos milagres enganadores das ciências, fixava o seu olhar sobre
a viagem total do mundo’. A ética, mais particularmente aos seus
olhos, se confunde com a filosofia, a que incumbe o papel difícil
de examinar, de separar com cuidado os principais valores sociais
e morais, afim de fixar a ordem que lhe pertencer na hierarquia
universal das cousas”. Por força de tudo isto, tem-se verificado
que o estudo de sua concepção foi regulado, tendo por norma, ou
por farol, a interrogativa que se lê no prefácio da — Genealogia
da moral: “Que tenho eu com as refutações?”. E, coerente com
tudo isto, a vida do escritor foi de combate, foi de seleção, o que
ainda mais justifica as suas teses evolucionistas. Tudo, porém,
NIETZSCHE fazia no sentido de dar desprezo aos combatentes
fracos para se atacarem, somente, os filósofos e os escritores de
Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015. | 141
Diniz, A.
renome conhecido.
Daí as luminosas páginas de crítica que se podem dizer
NIETZSCHE versus WAGNER. Mas, sobretudo, o superhomem, o
uebermensch, foi um produto dessas grandes ideias filosóficas.
Alhures se tem crido numa humanidade ideal, sendo usado,
para isso, um sistema perfeito de educação. É bem fundamentada,
sem dúvidas, esta concepção, e muito semelhante à da obra
nietzscheana. SCHELLEY (sic), na opinião do grande crítico H.
TAINE — < um dos maiores poetas de seu século > — compreendeu
que — “se a humanidade abolisse as suas antigas instituições
e esquecesse os seus antigos preconceitos, todos os males que
existem neste mundo, poderiam desaparecer de repente...”.
Mas, aí está!
Fundamentada como a criação do superhomem, não se
conhece outra no transformismo hominal. O evolucionismo do
mundo não se deteria, por certo, no homem, neste ser falho e
ridículo, apesar de sua grande complexidade orgânica e de sua
presunção intelectual. O uebermensch, perante a ideia da evolução
universal, é um fato a consumar-se. O tempo disto, a era em que
tal terá de dar-se, poderá variar: mais séculos ou menos séculos,
mais dia de cem anos ou menos dia de cem anos, como falariam
os bíblicos. Todavia, poderá também chegar inesperadamente. O
esbarro, na verdade, da escala animal no homem inteligente é que
se caracteriza uma extravagante utopia, e quando foi destronado o
rei da criação foi porque, morta a sua dinastia, uma outra mais nova
e mais forte, terá de vir, como de fato.
Abstract: In this essay, the “baiano philosopher” Almachio
Diniz seeks to discover in the “superman” of Nietzsche the
principles of philosophical evolutionism, which he refers to Ernst
Haeckel. He argues that the Übermensch, in face of the idea of
universal evolution, is a fact to be consummated in the future.
Keywords: Nietzsche – superman – evolution – Zarathustra
142| Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.36 n.2, p. 123-142, 2015.