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Numero Desconhecido - Kloppel, Juliana

O documento apresenta uma narrativa sobre Rafaela, uma adolescente que está passando por mudanças em sua vida, incluindo a reforma de seu quarto e a transição para o último ano escolar. A história explora suas interações com amigos, especialmente com Jaqueline e Nicolas, enquanto lidam com questões de identidade e relacionamentos. A autora, Juliana Kloppel, utiliza uma linguagem envolvente para capturar as emoções e desafios da adolescência.

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glam.ilda007
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© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Numero Desconhecido - Kloppel, Juliana

O documento apresenta uma narrativa sobre Rafaela, uma adolescente que está passando por mudanças em sua vida, incluindo a reforma de seu quarto e a transição para o último ano escolar. A história explora suas interações com amigos, especialmente com Jaqueline e Nicolas, enquanto lidam com questões de identidade e relacionamentos. A autora, Juliana Kloppel, utiliza uma linguagem envolvente para capturar as emoções e desafios da adolescência.

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Table of Contents

Dedicató ria
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Epílogo
Agradecimentos
Copyright © 2024 Juliana Kloppel

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicaçã o pode ser


reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma ou por
qualquer meio, incluindo fotocó pia, gravaçã o ou outros métodos
eletrô nicos ou mecâ nicos, sem a prévia autorizaçã o por escrito da
autora, exceto no caso de breves citaçõ es incluídas em revisõ es críticas
e alguns outros usos nã o-comerciais permitidos pela lei de direitos
autorais.
Esse é um trabalho de ficçã o. Nomes, personagens, lugares, negó cios,
eventos e incidentes sã o ou produtos da imaginaçã o da autora ou
usados de forma fictícia.

Capa: Giulia Rebouças | Gialui Design


Revisão e preparação de texto: Karen Valentino
Diagramação: Giulia Rebouças | Gialui Design
Dedicató ria
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Epílogo
Agradecimentos
Para todos que guardam seus sentimentos mais profundos em uma
gaveta: sonhe, fale, escreva. Eles nã o foram feitos para ficarem
escondidos.
POUCAS COISAS NA VIDA sã o tã o complexas quanto mudanças.
Mas Rafaela ainda se lembrava. Deitada em sua cama, logo apó s
um longo e cansativo dia na terceira série, ela balançava as pernas
curtas no mesmo ritmo de uma mú sica que tocava em seu fone de
ouvido. A menina sorriu, satisfeita, ao observar o teto cor-de-rosa, cheio
de flores sintéticas de diferentes tipos e tamanhos, agradecendo
mentalmente por ter uma mã e tã o criativa. Rafaela, com toda a certeza,
amava aquele quarto, sua estante de livros, sua cama confortável e as
flores brilhantes. Nã o fazia ideia onde a mã e as havia encontrado, mas
era um sucesso entre suas amigas — apenas uma, na verdade, mas
Jaqueline valia por dez — e, ali, ela teve certeza: aquele seria seu quarto
para sempre!
O problema é que, quando se tem 8 anos, a palavra sempre parece
ser a certa para usar com qualquer tipo de coisa que você goste. Aos
dezessete, é como uma sentença de morte.
Apesar das memó rias ainda vívidas na sua mente, Rafaela subiu a
escada com determinaçã o. Nem mesmo o bambear da madeira a fazia
desistir do seu objetivo: se desfazer de todas as flores bregas coladas no
teto do quarto. A mã e segurava a base da escada para evitar que ela
caísse, enquanto recitava todas as expressõ es capazes de demonstrar
sua insatisfaçã o com a decisã o da filha. Cada detalhe foi planejado com
tanto cuidado e carinho que a retirada da decoraçã o causava dor física.
Apesar das contraindicaçõ es da mã e, para Rafaela aquele era um
ato de coragem. É claro que as flores no teto tinham histó ria, mas
faziam parte de uma Rafaela sem noçã o nenhuma de design e que
acreditava que todas as escolhas de sua mã e eram perfeitas — pobre
criança iludida. Ali, naquela quarta-feira, ela era apenas uma
adolescente entrando em sua era clean e um quarto cor-de-rosa nã o
fazia parte da sua nova identidade.
— Arrancar meu coraçã o doeria menos — reclamou a mã e. Com a
mã o no peito, ela jogou a cabeça para trá s no maior ato dramá tico que
podia criar. Por um segundo, Rafaela cogitou a possibilidade de enviar
um e-mail ao Oscar para informar que a mais nova dona da estatueta
estava bem na sua frente. Ao contrá rio disso, ela respirou fundo e
ignorou as birras da progenitora, arrancando os ú ltimos vestígios da
decoraçã o.
Enquanto descia as escadas, Rafaela sentiu um peso sair de suas
costas. Por mais simples que fosse, tomar uma decisã o no começo de
um novo ano parecia a melhor opçã o para começar com o pé direito. A
menina sorriu, satisfeita. Os cachos suados e desgrenhados caiam sobre
os olhos quando ela abriu os braços e os enrolou em volta dos da mã e,
que nã o se mexia.
— Ano novo, vida nova, dona Helena — disse, dando uma
risadinha. Sentiu a mulher suspirar e abraçar de volta sem vontade,
sendo vencida pelo carinho. Quando se soltaram, ela passou a mã o
sobre o rosto da filha e deixou uma mecha do cabelo atrá s da sua
orelha.
— Meu bebê tá crescendo. — Ela fez um bico e Rafaela torceu a
boca.
— Nã o sou mais um bebê — reclamou enquanto caminhava em
direçã o à sua cama. Rafaela pegou a sua mochila e colocou-a no ombro
antes de lembrar: — Vou para o cinema com a Jaque e os meninos.
Helena assentiu.
— Você sempre vai ser meu bebê — foi o que a mã e disse, antes
de ver a filha atravessar a porta do quarto com pressa.
O caminho até o ponto de ô nibus era feito automaticamente pela
garota. O cinema era um ritual particular do quarteto: toda semana
assistiam um filme, aproveitando o projeto da escola que os
presenteava com quatro ingressos grá tis por mês. Contudo, aquele dia
era ainda mais especial, pois seria o ú ltimo antes do início das aulas e,
melhor ainda, do início do ú ltimo ano na escola.
Apesar de ser um há bito, os quatro amigos já sabiam que naquele
ano tudo poderia ser diferente. Afinal, o objetivo nã o era apenas passar
de ano, mas serem aprovados no vestibular.
Dessa forma, chegou ao ponto de ô nibus com uma sensaçã o quase
nostá lgica, como se já soubesse que aquele poderia ser um dos ú ltimos
momentos vivendo a parte favorita da sua rotina. Jaqueline já a
esperava, com seu cabelo loiro bem penteado, fones de ouvido e a
cabeça balançando de um lado para o outro ao som da mú sica.
Folheando um romance clichê com um sorriso bobo no rosto, a loira
nã o percebeu que a melhor amiga se aproximava.
— Buh — brincou Rafaela, puxando um dos fones da sua orelha.
Ao invés de se assustar, a loira abriu um sorriso e virou-se no banco
desconfortável para ficar de frente para a amiga.
— Que bom que você chegou! — Ela fechou o livro em suas mã os
com força, mais animada do que o normal. — Precisava mesmo te pedir
um favorzinho — cantarolou, fazendo o coraçã o de Rafaela acelerar. Lá
vinha bomba. Jaqueline só sorria daquele jeito quando precisava de
alguém para segurar vela em mais um de seus encontros com caras de
personalidade questionável.
— Ah, nã o. — Rafaela fez uma careta. — Me diz que, desta vez, eu
nã o vou precisar segurar a tocha olímpica para você e o Ricardo —
suplicou, juntando as mã os. A cacheada sentia calafrios só de lembrar
da ú ltima experiência dividindo uma mesa de jantar com aquele garoto
esquisito.
— Ricardo? — Jaqueline levantou as sobrancelhas, riu e deu um
tapinha no ombro da amiga. — Relaxa, mandei o psicopata pastar.
Dessa vez nó s vamos jantar com o Lucas.
Rafaela franziu a testa.
— Nó s vamos?
Ela assentiu.
— E ele vai bancar um peixinho à milanesa na Beira-Mar para a
gente! — avisou, animada. — Demais, né?
Rafaela torceu a boca. A ideia de comer a sua comida favorita nã o
parecia ser uma boa justificativa, tendo em vista o histó rico de dates
péssimos de Jaqueline.
— Onde você acha esses adolescentes com dinheiro suficiente
para bancar jantar para nó s duas? — Ela quis saber, curiosa.
Jaqueline deu de ombros.
— Eles é que me acham.
Rafaela poderia rir, se nã o estivesse cansada de ser arrastada para
encontros chatos com conversas desagradáveis que ela,
definitivamente, nã o deveria ouvir.
— Certo, me dê três motivos plausíveis para eu ir com vocês nesse
encontro. — Ergueu a mã o e fez o nú mero três com os dedos. — E o
peixe nã o conta como motivo, você sabe que eu amo peixe. —
Apressou-se em avisar, já sabendo o que a melhor amiga pretendia
numerar.
Jaqueline precisaria pensar um pouco para encontrar os motivos,
mas sentiu uma gargalhada escapar da sua garganta ao ver o que se
aproximava delas — ou melhor, quem. Confusa, Rafaela virou-se a
tempo de ver Nicolas andando em sua direçã o, enquanto passava a mã o
nos cabelos, exibindo um carã o, como num desfile de moda. A pele
queimada reluzia ao sol e ele abriu um sorriso assim que viu que
Jaqueline o aplaudia.
— Seu catwalk é melhor que o da Kendall — pontuou a amiga.
— Eu nã o sei o que isso significa. — O surfista sorriu. — Mas, pelo
menos, alguém reconhece o meu talento. — Nicolas ergueu os ombros
antes de dar um abraço apertado na loira.
Rafaela, por sua vez, nã o pode evitar fazer uma careta. Nã o sabia,
mas estava vivendo a fase chata da adolescência onde tudo é irritante e,
por isso, pensou que muito se falava dos casais fofos grumpy e sunshine,
dos livros de romance que Jaqueline costumava ler, mas pouco era dito
a respeito do sofrimento de um gato preto que tem como melhores
amigos dois goldens retrievers.
— Você nasceu idiota assim ou fez cursinho? — Ela botou a língua
para fora, fazendo Nicolas dar uma risada. A verdade era que ele pouco
se importava com o mau humor da amiga. Por isso, deu um sorriso de
lado antes de irritá -la mais um pouco:
— E tu nasceu mal-amada assim ou é falta de um namorado?
Rafaela rolou os olhos.
— Uau, que grande machista você tem se tornado, Nicolas —
reclamou, cruzando os braços. — O que você ser sem noçã o tem a ver
com eu nã o ter um namorado?
— Tudo — respondeu, enquanto se sentava no meio das duas
garotas. Nicolas colocou o braço direto sobre o ombro de Jaqueline,
antes de continuar: — O que acha de me ajudar a arrumar um
namorado para a Rafa?
Jaque ergueu a sobrancelha, como se aquela fosse uma boa ideia,
fazendo a cacheada se levantar com rapidez em um reflexo
superprotetor de si mesma, ficando de frente para os dois.
— Eu nã o preciso de ajuda.
— Acho uma excelente ideia! — a loira respondeu, sem olhar para
a melhor amiga, ignorando o ar pesado que saiu de seus pulmõ es ao
perceber que eles realmente começaram a conversar sobre como
arrumar um namorado para ela.
Tudo bem, era verdade que Rafaela nã o se envolvia com uma
pessoa há muito tempo e, provavelmente, nã o se lembrava mais como
beijar na boca. Mas, convenhamos, aquela nã o era a sua prioridade no
momento. Se considerava nova e com coisas mais importantes para
fazer. Tipo, reformar o seu quarto, passar no vestibular para design
grá fico e completar a sua coleçã o de chibis da Marvel — ela podia estar
na sua era clean, mas nã o estava morta e sempre seria meio nerd.
— Tive uma ideia! — gritou Nicolas, a tirando dos seus devaneios.
Com os cenhos franzidos, Rafaela o observou abrir a mochila e tirar de
lá uma caneta preta. Ele se levantou e virou-se na direçã o do vidro que
protegia a parte de trá s do ponto de ô nibus. Antes de escrever, o garoto
torceu a boca e olhou para a amiga: — Qual é o teu telefone, Rafa?
— Samsung, por quê?
Ele deu uma gargalhada e jogou a cabeça para trá s.
— O nú mero, idiota.
— 9975... — foi Jaqueline quem respondeu, sem que desse a
chance de Rafaela questionar o porquê de ter seu nú mero de telefone
escrito entre vá rias assinaturas e palavrõ es que cobriam o vidro.
— Prontinho — Nicolas anunciou depois de um tempo, afastando-
se com as mã os na cintura para observar com orgulho a sua obra.
Confusa, Rafaela aproximou o rosto, forçando a visã o para
entender o garrancho que Nicolas chamava de letra. Seus olhos
passeavam pelas palavras confusas, enquanto sentia o corpo ferver
conforme compreendia do que se tratava.
— “Sou do contra e digo que não preciso de um namorado. Quer me
fazer mudar de ideia? Me mande uma mensagem.” — Ao terminar de ler,
Rafaela fechou os olhos apenas por um segundo, o suficiente para
respirar fundo e voltar a abri-los como um dragã o com raiva. Ainda nã o
havia falado nada quando viu o garoto erguer as mã os em sinal de paz.
— É só uma brincadeira.
Rafaela piscou devagar.
— Uma brincadeira? — Balançou a cabeça, fazendo um esforço
gigantesco para nã o voar na cara do melhor amigo. — Você tá de
sacanagem, Nicolas?! — Ela cerrou os olhos e caminhou a passos lentos
em sua direçã o. — Você vai ver a brincadeira quando eu acabar com
esse seu cabelo ressecado na tesoura, seu projeto de surfista malfeito!
— Eu tenho quase certeza que isso é crime — Jaqueline
comentou, fazendo a amiga direcionar o olhar raivoso a ela. — Mas
quem vai te denunciar? Eu é que nã o sou.
— Ei! — Nicolas franziu a testa. — Nã o vai me defender?
Jaque ergueu os ombros.
— A ideia foi sua!
Rafaela bufou, passou a mã o pelas têmporas e ignorou a discussã o
ridícula que havia se formado em sua frente para observar o vidro
rabiscado. Nã o sabia há quanto tempo estava parada na mesma posiçã o,
mas sentiu Jaqueline e Nicolas se posicionarem ao seu lado.
— Ninguém vai ver isso, amiga.
Ela mordeu o interior da bochecha, assentindo.
— É claro que ninguém vai ver isso — disparou, puxando a caneta
preta da mã o de Nicolas e, imediatamente, riscando por cima do seu
nú mero de telefone até que ele ficasse ilegível. Depois, pegou a mochila
sobre o banco e a colocou no ombro. Sem falar mais nada, ela caminhou
em direçã o à rua.
— Aonde você vai? — Jaqueline quis saber.
— Embora.
Os dois se olharam, confusos.
— E o cinema? — gritou Nicolas, quando ela já estava a uma
distâ ncia considerável.
— Perdi a vontade! — gritou de volta.
No caminho para casa, Rafaela decidiu que, para garantir, voltaria
mais tarde com um pano e á lcool e se livraria de qualquer resquício da
brincadeira idiota dos amigos. Nã o queria arriscar ser incomodada por
ninguém e nã o precisava mudar de ideia sobre nada, pois já tinha uma
opiniã o formada em sua mente: relacionamentos estavam fadados ao
fracasso e ela nã o perderia seu tempo com eles.
RAFAELA TINHA APENAS uma certeza na vida: as aulas de física eram
seu karma.
Eram dez da manhã quando, por alguns segundos — aqueles em
que ela voltava para a realidade e percebia que, mesmo durante a aula,
nã o havia prestado atençã o em nada —, desejou sair correndo e nã o
voltar para escola nunca mais.
Ela iria rodar e, definitivamente, nã o passaria no vestibular. De
forma alguma poderia passar em uma matéria desumana e cheia de
fó rmulas contando com as suas habilidades cerebrais. Seus neurô nios
nã o possuíam a capacidade de assimilar qualquer coisa que envolvesse
nú meros — ela sempre se deu melhor com a parte artística da vida. Por
isso, quando o sinal do fim da aula tocou, a vontade de ajoelhar e
agradecer pela liberdade foi grande, mas a garota se contentou em ir
para o intervalo.
Sentou-se na mesa de sempre e pegou o jornal da escola que
estava sobre ela, indo direto à ú ltima pá gina conferir o horó scopo. Nã o
tinha certeza se acreditava em signos, mas, para garantir, sempre lia as
previsõ es.
— E aí, Rafinha — uma voz conhecida a cumprimentou, antes de
puxar uma cadeira e sentar-se ao seu lado. — Qual a previsã o do dia?
Rafaela virou-se para Vinicius. O garoto usava um moletom preto
pesado, mesmo que ainda estivesse no verã o. Uma mecha do cabelo
castanho caia sobre seu olho e ele deu um leve sopro para dispersá -la.
— Hum… — Ela torceu a boca. — Preciso ter mais calma ao tomar
decisõ es importantes, sentimentos podem ficar aflorados e a cor do dia
é rosa — leu rapidamente, uma careta se formando em seu rosto. —
Odeio rosa e nã o acredito em horó scopo.
— Você nã o odeia rosa, é só uma fase. — Ouviu Jaqueline dizer ao
se juntar à mesa onde estavam sentados. Com um suco de laranja na
mã o, a loira rodou o canudo pelo líquido enquanto olhava para a
melhor amiga. — Falando nisso, você vai hoje, né?
— O que uma coisa tem a ver com a outra? — Rafaela franziu a
testa ao perguntar.
— Nada. — Ela deu de ombros. — Mas, você vai hoje, né? —
insistiu mais uma vez e sorriu.
Rafaela suspirou, cansada da insistência.
— Ir aonde? — Vinicius quis saber.
— Comer peixe à milanesa na beira-mar. — Jaqueline se apressou
em responder.
— Segurar vela para Jaqueline e algum carinha sem noçã o —
Rafaela corrigiu.
— Rafa, por favor. — Jaque fez um bico, na tentativa de convencer
a amiga.
— Por que você só nã o finge que vou sair com você?
— Você sabe que minha mã e nã o acreditaria.
— Talvez tu só devesse trabalhar melhor a confiança da sua mã e
— Vinicius interrompeu mais uma vez, sendo fuzilado pelos olhos azuis
de Jaqueline.
— Primeiro, você sabe que nã o é tã o simples assim — Jaque disse,
apontando o indicador com a unha pintada de rosa na direçã o dele,
antes de voltar sua atençã o à melhor amiga. — E, Rafa, eu prometo que
ele é um cara legal.
— Depois de ontem, você nã o está merecendo. — Tentou
argumentar mais uma vez.
— O que aconteceu ontem? — Novamente, Vinicius se meteu na
conversa, sentindo que havia perdido mais do que imaginava.
— Eu já pedi desculpas por ontem, era apenas uma brincadeira.
— A loira o ignorou mais uma vez. — E você sabe que mamã e nunca me
deixaria sair com o Lucas sozinha.
— E nem deveria, ele provavelmente é um maluco igual a todos os
outros.
— Amiga, por favor!
— Nem pensar. — Rafaela cruzou os braços e balançou a cabeça
em negaçã o.
E assim, em uma ú ltima tentativa de convencer a amiga, Jaqueline
bufou e bateu com as duas mã os sobre mesa, erguendo seu corpo e
ficando cara a cara com a amiga enquanto gritava que “ISSO É MUITO
INJUSTO MINHA MÃ E NUNCA VAI DEIXAR EU IR SOZINHA E VOCÊ
SABE QUE SE VOCÊ FOR ELA DEIXA E VOCÊ SEMPRE FOI TÃ O BOA PRA
MIM E O LUCAS É UM GATO E VAI PAGAR UM PEIXE PRA GENTE
RAFAELA!”
Desse jeito, sem vírgula, sem pausa, fazendo Vinicius esticar a
mã o e tampar a boca da amiga, desesperado.
— Essa garota tá completamente fora de si! — ele disse, um pouco
mais alto, para os alunos que encaravam a cena.
— Tá maluca? Para de gritar! — Rafaela empurrou o corpo da
mais alta de volta à cadeira. Depois, apontou o dedo em sua direçã o. —
Você nã o merece e é completamente maluca, mas eu vou.
— Que isso, um filme? — Nicolas abriu os braços, enquanto se
aproximava do trio, confuso. Toda aquela gritaria havia chamado a
atençã o dos outros alunos, que observavam a mesa com cochichos e
caretas. — Porque tu tava gritando, loirinha?
Jaqueline ergueu os ombros, um sorriso satisfeito brotando em
seus lá bios. Nem se importou em ouvir os amigos reclamarem das suas
técnicas de convencimento, muito menos quis explicar o motivo do
exagero.
— Vocês podem contestar os meus métodos, jamais os meus
resultados — recitou, antes de dar um gole no seu suco.
Dentro do quarto da melhor amiga, Rafaela soltou um suspiro
cansado ao encarar o pró prio reflexo. Se perguntou mentalmente o
porquê ainda se prestava à quele papel ridículo.
Na verdade, quando tudo começou, acompanhar Jaqueline parecia
inofensivo. O primeiro date foi com Marcelinho e as duas só estavam no
quarto ano. A garota nã o conseguiu resistir ao seu cabelo loiro
enroladinho e os dois viveram uma paixã o arrebatadora, com direito a
andar de mã os dadas pelos corredores da escola e beijos na bochecha.
O romance durou dois dias e cinco horas, o suficiente para Jaqueline
chorar por duas semanas seguidas. Foi seu primeiro amor e,
consequentemente, sua primeira desilusã o. O problema era que, ao
invés de se traumatizar, Jaqueline se tornou insaciável.
Quer dizer, nã o havia problema nenhum em sair com outros
garotos, o problema era levar sua melhor amiga a esses encontros todas
as vezes.
Tia Mari, a mã e de Jaqueline, nã o deixava a filha sair sozinha, a
nã o ser que Rafaela estivesse presente. Entã o, enquanto ela achava que
a filha estava comendo pizza com a melhor amiga, vendo filme com a
melhor amiga, passeando na praia com a melhor amiga e batendo
palmas para o sol com a melhor amiga, ela estava, na verdade, comendo
pizza com o Ricardo, vendo filme com o Joaquim, passeando na praia
com o Rafael e batendo palmas para o sol com o Leonardo.
Enquanto Rafaela aumentava a sua coleçã o de velas e planejava
um incêndio a qualquer momento.
— Você vai assim? — Jaqueline perguntou, analisando-a de cima a
baixo.
Rafaela checou o espelho mais uma vez, antes de se virar para a
amiga. Usava uma blusa bá sica preta e uma calça jeans de cintura baixa.
O All Star vermelho no pé ditava o contraste do look simples, mas
suficiente.
— É você que está tentando impressionar alguém, nã o eu — disse,
colocando a mã o nos bolsos.
Jaqueline deu de ombros, satisfeita com a resposta e a segurou
pela mã o, arrasando-a pela casa quando a buzina soou do lado de fora.
Parado em frente a um carro, Lucas usava uma blusa preta e uma
calça que, considerando toda a sua cueca à mostra, nã o faria diferença
se nã o a usasse. O garoto sorriu e Jaqueline correu para envolvê-lo com
seus braços, enquanto ele abraçou o seu pescoço — já que era muito
mais alto, fazendo Rafaela parecer ainda menor.
Durante todo o caminho, a cacheada e o motorista do Uber
precisaram aguentar as cantadas baratas e risadinhas exageradas no
banco de trá s, e se limitaram a compartilhar olhares de descontento
entre si, afinal, nã o tinham outra alternativa a nã o ser ouvir aquele
recital de besteiras.
No restaurante, o peixe à milanesa pareceu satisfató rio, mesmo
com a trilha sonora de conversas desagradáveis. Para evitar problemas,
Rafaela planejava ficar em silêncio durante todo o encontro. O plano
corria bem até que Lucas resolveu incluí-la na conversa.
— Por que você nã o trouxe seu namorado, Rafa? — indagou com
curiosidade.
— Eu nã o tenho um namorado.
— Poderia ter me avisado. — Ele sorriu para Jaqueline e colocou o
braço direito em volta dos seus ombros. — Poderia ter trazido um
amigo pra ela.
Antes que pudesse responder: Não, obrigada. Eu não preciso de
um date duplo com um adolescente engomadinho, Jaqueline tomou a
frente.
— Rafa é uma mulher moderna, nã o precisa de um namorado —
respondeu, dando uma piscadinha para a amiga. Rafaela mordeu o lá bio
inferior e abaixou a cabeça, a fim de segurar a vontade quase
insuportável de começar uma discussã o ali mesmo.
— Ah, entendo. — Lucas assentiu, pegando um garfo e colocando
uma isca de peixe na boca antes de dizer, de um jeito esquisito: —
Lésbica, né?
Rafaela soltou um suspiro.
— Se eu fosse, teria algum problema? — Lucas negou
imediatamente com a cabeça.
— Claro que nã o. — Ele apertou mais forte Jaqueline em seus
braços. — Mas eu ficaria enciumado em te ver perto demais do meu
docinho.
Jaqueline mal pô de conter o sorriso bobo que se formou em seu
rosto, como se aquela fosse a melhor coisa que um homem já tivesse
dito a ela. Rafaela, por sua vez, sentiu o estô mago arder. De repente,
todo o jantar havia se tornado intragável.
— Nã o sei se você sabe — ela começou, ajeitando a postura —,
mas ser lésbica nã o significa dar em cima de todas as mulheres que
existem.
— Lá vem a defensora dos fracos e oprimidos. — A loira rolou os
olhos. — Amiga, hoje nã o, tá ?
Rafaela apertou os lá bios, sentindo o sangue ferver. Nã o podia
acreditar que sua melhor amiga havia acabado de bancar a esnobe para
cima dela. Justo ela, que ia a milhõ es de encontros chatos, mesmo que
odiasse cada momento, acobertando todos os seus namoros com caras
que nã o mereciam o seu esforço.
— Você é uma mal-agradecida — cuspiu as palavras, o rosto
queimando como pimenta. Com raiva, ela empurrou a cadeira para trá s
e se levantou, deixando a mesa com passos pesados.
— Aonde você vai? — Jaqueline perguntou, quase como um déjà
vu do dia no ponto de ô nibus. Mais uma vez, apó s agir como se Rafaela
nã o pudesse ter opiniã o pró pria, o tom de voz culpado a fez abaixar
alguns decibéis. Em um segundo, toda a sua pose havia sumido, dando
lugar a um semblante preocupado.
— Vou embora.
Seus pés faziam barulho no piso do restaurante à medida que se
afastava deles. Era a segunda vez na semana que precisava se afastar
daquela maneira, sentindo todos os seus ossos se contorcerem. Passou
pela porta como um furacã o e o choque do vento gelado percorreu seu
corpo, fazendo-a abraçar a si mesma como reflexo. Rafaela respirou
fundo, atravessou a rua e parou em frente ao mar.
Definitivamente, nã o era assim que imaginava o início daquele
ano.
Sentou-se em um dos bancos de madeira posicionado entre duas
á rvores grandes e soltou um suspiro pesado. O coraçã o acelerado batia
conforme os pensamentos irritados invadiam a sua mente. Ela passou
as mã os pelo rosto, jogando as costas sobre o encosto do banco,
soltando um grunhido agoniado.
Encarando a imensidã o azul-escuro, perdida nos pró prios
pensamentos, sentiu o celular vibrar no bolso. Sem vontade e torcendo
para nã o ser Jaqueline — porque, se fosse, planejava xingá -la de todos
os nomes possíveis — desbloqueou o telefone e clicou na nova
mensagem que havia recebido.
[20h35]
Número Desconhecido: Adoro desafios ;)

Rafaela franziu a testa, confusa. Depois, olhou para os lados, só


para ter certeza que estava sozinha ali.

[20h35]
Rafaela: Acho que você errou o nú mero.

[20h36]
Número Desconhecido: Tenho certeza que nã o, marrenta.

A escolha do adjetivo brega a fez torcer a boca.

[20h36]
Rafaela: Quem é ?
[20h37]
Número Desconhecido: O cara que vai te fazer mudar de ideia.
JAQUELINE SABIA QUE estava errada.
Por isso, enquanto aguardava Rafaela chegar na escola, em frente
ao portã o grande e branco, ela chacoalhava uma barra de chocolate
meio amargo — o favorito da amiga — com todo o seu corpo, que mal
podia se conter, tamanho o nervosismo.
Quando Rafaela viu de longe o coturno cor-de-rosa, apertou as
alças da mochila no caminho que as separava, se preparando para
aquela conversa. É claro que estava irritada, mas sua inconformidade
com a situaçã o andava junto a preocupaçã o. Apesar de demonstrar ser
uma mulher independente e dona de si, Jaqueline possuía uma
tendência forte a se adaptar a todo e qualquer garoto que a desse o
mínimo de atençã o e, por muitas vezes, Rafaela tentara avisar a amiga,
aconselhando de formas sutis. Dessa vez, estava decidida a nã o usar
meias-palavras.
— Nã o precisava do chocolate.
Jaqueline ergueu os ombros, os olhos azuis vagando por todos os
lugares. Parecia com vergonha de olhar para Rafaela.
— Você merece mais que um chocolate — disse, constrangida. —
Me desculpa por ontem?
A cacheada suspirou.
— Estou muito chateada com você — foi o que disse, vendo a loira
encolher ainda mais o ombro. — Mas é claro que eu te desculpo.
Se nã o fosse o barulho dos outros alunos chegando na escola,
seria possível ouvir o pulmã o de Jaqueline soltar todo o ar que ela
prendia.
— Mas, em nome da nossa amizade, eu vou ser muito sincera com
você — Rafaela continuou. — Aquela dizendo besteiras ontem... nã o era
você. E se esses caras nã o podem lidar com a verdadeira Jaqueline, eles
nã o te merecem.
No fundo, Jaqueline sabia que era verdade, mas sempre carregava
consigo um medo absurdo de ficar sozinha e, por isso, acabava agindo
como a Cady Heron tentando convencer a Regina George que era
descolada o suficiente para andar com As Poderosas. Acontece que, para
Rafaela, Jaqueline já era descolada o suficiente e nã o precisava fingir
nada.
— Tenho medo que, se você continuar se moldando para caber no
mundo de alguém, acabe mesmo se tornando aquela pessoa. — Rafaela
soltou um suspiro longo. — E sinceramente, nã o dá pra viver a vida
atrá s de homem e esquecer quem gosta de você de verdade, sem
precisar que seja ninguém além de você mesma.
Jaqueline apertou os lá bios e deu alguns passos em direçã o à
melhor amiga, o suficiente para envolvê-la em seus braços. Sem que
pudesse controlar, as lá grimas caiam dos seus olhos.
— Sou uma pessoa horrível e você é o ser humano mais evoluído
que eu conheço — disse entre lá grimas, apertando-a com força. — Me
desculpa, Rafa. Eu realmente agi como uma idiota, mimada e sem
noçã o.
Rafaela assentiu.
— Agiu mesmo. — Ela a abraçou de volta. — Mas você nã o é um
ser humano horrível. Só foi um pouquinho horrível ontem.
Jaqueline deixou escapar uma risada, se afastado enquanto
limpava as lagrimas.
— Obrigada por ter paciência comigo e me chamar pra conversar
ao invés de me xingar no twitter!
— Você precisa mesmo me agradecer — Rafaela concordou. —
Tenho conteú do o suficiente para fazer um exposed seu.
— Meu Deus, ainda bem que você é minha amiga.
Dessa vez, as duas riram, sentindo um peso sair de seus ombros.
Para Rafaela, a melhor escolha sempre seria resolver os problemas de
forma rá pida e com sinceridade. Alimentar a raiva só faz com que tudo
fique mais difícil.
— Amigas para sempre? — sugeriu Jaqueline, esticando a mã o em
sua direçã o.
Rafaela suspirou, apertando a mã o da amiga.
— Sempre.
— Ó timo. — A loira sorriu, satisfeita. — Agora pode me contar
tudo.
A cacheada franziu a testa com a mudança repentina de postura.
— Sobre?
— Ué, você me mandou um whatsapp à s cinco da manhã dizendo
que recebeu uma mensagem de um nú mero desconhecido! — A loira
apertou os olhos. — E apagou dois minutos depois, mas eu vi.
Droga, Rafaela tinha certeza que a amiga nã o havia acordado
ainda e jamais veria aquela mensagem enviada em um momento de
desespero.
— Ah, sobre isso… — Ela coçou a cabeça, sem jeito — Eu nã o sei
por que te falei, é besteira. Nã o estou interessada em manter conversa
com um maníaco.
— Você nã o pode estar falando sério.
— É claro que estou. — Rafaela ergueu os ombros. — Quem, em
pleno século 21, ainda envia mensagem de texto? Com certeza um velho
psicopata.
— Talvez ele só nã o quisesse ser identificado.
Rafaela mordeu o interior da bochecha. Tudo bem, ela tinha
razã o: o whatsapp impossibilitaria que a mensagem fosse em modo
desconhecido. Ainda assim, toda a situaçã o era muito esquisita. Como
ele pode ter, simplesmente, decidido enviar uma mensagem para uma
pessoa qualquer? E, segundo, mas nã o menos importante, como ele
havia conseguido seu nú mero?
— Mas eu risquei o nú mero.
— Pode nã o ter riscado o suficiente.
— Voltei lá depois — contou, e Jaqueline ergueu as sobrancelhas.
— Voltou?
Ela concordou com a cabeça.
— E apaguei qualquer vestígio daquela besteira.
A loira torceu a boca, pensativa.
— Bom, talvez ele tenha pegado o nú mero antes.
Rafaela franziu os olhos.
— A nã o ser quê…
— Que, o quê?
Ela cruzou os braços. Todo aquele comportamento de Jaqueline
parecia suspeito.
— Vocês tenham escrito de novo.
A melhor amiga balançou a cabeça, negando veemente.
— Eu nã o fiz nada! — garantiu. — E, pelo que vi, Nicolas também
nã o.
Ela cerrou os olhos.
— Sei…
Como se falar seu nome fosse o suficiente para invocar a sua
presença, um braço pesado e desajeitado pousou sobre os ombros da
mais baixa, que precisou erguer o rosto para encarar o rapaz de cabelos
desgrenhados. Nicolas puxou um dos fones que tinha no ouvido e
perguntou:
— O que vocês duas estã o aprontando?
Seus olhos azuis mudaram a direçã o esperando uma resposta e
Rafaela se desvencilhou de seus braços. Só ali ela pode observar que a
blusa do uniforme do garoto estava com uma mancha de café gigante na
parte da frente.
— A gente? — Rafaela estalou a língua, ignorando a mancha para
apontar o dedo no rosto queimado de sol. — Me diga você!
— O que tem eu? — O tom de Nicolas era de total confusã o.
— Você escreveu meu telefone de novo no ponto de ô nibus, né?
Ele franziu a testa.
— Tá doida?
— Se nã o foi você, foi a Jaqueline.
— Eu já disse que nã o fizemos nada! — repetiu ela, as mã os
presas na cintura.
— Que papo é esse?
Rafaela rolou os olhos.
— Ela recebeu uma mensagem anô nima — cantarolou Jaqueline,
cutucando a amiga com o dedo indicador.
Nicolas arqueou a sobrancelha.
— Sério?
Rafaela assentiu.
— Caraca! E ele é legal? — O loiro quis saber.
— Caras legais nã o se escondem atrá s de um nú mero
desconhecido — a garota respondeu, empurrando os amigos em
direçã o ao pá tio da escola. — E nã o enviam mensagem de texto.
Jaqueline voltou a repetir os seus argumentos, enquanto eles
caminhavam em direçã o à sala de aula, mas Rafaela nã o estava mais
prestando atençã o. Tinha a sensaçã o de que, se a ignorasse o suficiente,
ela iria parar de tentar defender um louco psicopata que enviava
mensagens anô nimas para uma adolescente de dezessete anos.
Antes que atravessassem a porta, eles ouviram o sinal tocar. Mas
Nicolas parou antes de entrar e apontou para trá s de si com o dedo.
— Preciso resolver um negó cio na secretaria, já volto.
Dando de ombros, Rafaela caminhou até sua mesa e se jogou na
cadeira, abrindo o livro de histó ria. Estava disposta a esquecer aquilo e
continuar sua vida como se tudo nã o passasse de uma piadinha de mau
gosto, mas, quando pegou a caneta para anotar o que a professora
falava, sentiu o celular tremer no bolso.
Ela desbloqueou a tela e precisou piscar os olhos algumas vezes
para ter certeza do que estava lendo.
[08h35]
Número Desconhecido: ainda nã o sei seu nome.

Rafaela rolou os olhos. Sabia que o ideal era nã o responder. Afinal,


continuar a conversa poderia significar o fim da sua vida. Por outro
lado, ela era inteligente demais para cair no papinho de um sem noçã o.
Por isso, julgou nã o ser uma má ideia respondê-lo até que pudesse o
mandar para aquele lugar.
— Por-que-eu-diria-meu-nome-para-um-tarado? — silabou
baixinho, conforme digitava, antes de enviar. Mordeu o interior da
bochecha enquanto esperava por uma resposta, que levou menos de um
minuto para pipocar em sua tela.
[08h36]
Número Desconhecido: para um tarado, eu nã o sei.

[08h36]
Número Desconhecido: mas pra mim tu pode dizer, eu meio que preciso
saber o nome do meu desafio.

Rafaela revirou os olhos. Além de maluco, era convencido.

[08h37]
Rafaela: Nã o confio em quem nã o tem a letra maiú scula ativada no teclado.
[08h37]
Número Desconhecido: ASSIM TÁ MELHOR?

[08h38]
Rafaela: Nã o teve graça.

[08h39]
Número Desconhecido: É claro que teve.

[08h40]
Rafaela: Você pode parar de me mandar mensagens, por favor?

[08h42]
Número Desconhecido: Se nã o quer falar comigo, pq continua me
respondendo?

[08h43]
Rafaela: Tem razã o, tchau.
Rafaela bloqueou o celular, ignorando todas as pró ximas
notificaçõ es. Para falar a verdade, precisou se segurar para nã o abri-las,
já que a curiosidade parecia estar sufocando a sua garganta.
Já havia assistido documentá rios true crime o suficiente para
saber que continuar respondendo poderia ser o início do seu fim. A
vida nã o é tã o simples como Jaqueline acha, muito menos leve e
descontraída como Nicolas costumava defender. Ela era uma mulher, ou
melhor, uma garota inteligente demais para cair no papinho de um
nú mero desconhecido.
NADA NAQUELA SEMANA parecia certo, mas Rafaela estava
convencida de que um começo conturbado nã o significava um ano
perdido. Quando deixava os pensamentos caó ticos de lado, ela sabia
que ainda tinha muitos outros dias para fazer o ú ltimo ano escolar valer
a pena. Quem sabe, ainda houvesse tempo de surgir a sensaçã o
nostá lgica que todos dizem sentir apó s a formatura, algo como uma
grande vontade de voltar no tempo e viver tudo mais uma vez.
Nã o que ela costumasse ser assim tã o positiva. Afinal, todas as
suas ú ltimas experiências acabaram com a sensaçã o de “eu quero
esquecer que tudo isso aconteceu”, mas Rafaela preferia fingir que nã o
era o caso dessa vez. Por isso, repetia mentalmente “eu vou sentir falta
disso” enquanto encarava a folha quilométrica de exercícios pré-
vestibular que precisava entregar na segunda-feira.
Estava determinada a nã o errar nenhuma equaçã o, quando duas
batidas na porta fizeram com que um grunhido saísse da sua garganta.
Ela girou a cadeira, a tempo de ver a mã e colocar a cabeça na fresta
aberta.
— Pizza? — Helena sorriu e Rafaela nã o pode evitar sorrir de
volta.
Aquele era a primeira sexta-feira do mês, o dia oficial de jantar
pizza. Um ritual que ela nunca se arrependia de ter criado quando era
criança. Por sorte, a pizza veio no momento certo: teria tempo de
relaxar antes de voltar a tortura psicoló gica a qual era obrigada a fazer
parte devido ao sistema de ensino ultrapassado do Brasil.
Foi inevitável soltar um suspiro quando o primeiro pedaço da
pizza de calabresa com cebola teve contato com o seu paladar, fazendo
a mã e rir do outro lado da mesa.
— O gosto fica ainda melhor quando lembro que estou
procrastinando as tarefas da escola — admitiu, ainda de boca cheia.
— O ano mal começou e você já odeia a escola? — Helena ergueu
uma sobrancelha.
Ela negou com a cabeça.
— Eu nã o odeio a escola — explicou, depois de mais uma
mordida. — Odeio o peso de precisar ir bem em matérias que nã o gosto
para, só entã o, poder estudar o que realmente gosto.
— Você terá que estudar coisas que nã o gosta na faculdade
também.
Rafaela fez uma careta.
— Obrigada pelo incentivo.
Helena riu, passando a mã o pelos cabelos longos e lisos — devido
a uma progressiva, já que seus cabelos naturais eram tã o cacheados
quanto os da filha — que estavam presos em um coque bagunçado.
— Vale a pena — argumentou a mã e depois de um tempo. —
Mesmo que à s vezes você precise estudar coisas que nã o gosta, ou
tomar decisõ es difíceis. Sempre vale a pena seguir seus sonhos.
A adolescente deu um sorriso leve, a boca ainda cheia de pizza. Na
verdade, nã o parou de comer nem por um segundo. Um costume que
seu pai detestava. “É impossível ter uma boa digestão comendo rápido
desse jeito”, era o que ele dizia.
Quase como se lesse seus pensamentos, Helena lembrou:
— Amanhã é dia de ir dormir na casa do seu pai.
Mais uma vez, Rafaela fez uma careta. Desde que os pais se
separaram, era obrigada a passar pelo menos metade dos finais de
semana do mês na casa do pai. O que nã o fazia muito sentido,
considerando que ele mal parava em casa.
Marcos trabalhava como um louco e nã o fazia nenhuma questã o
de estar presente nos dias que, supostamente, deveria estar com a filha.
Por isso, os finais de semana na casa do seu pai se resumiam a finais de
semana presa no quarto, já que seu ú nico objetivo era evitar a madrasta
— que era apenas dez anos mais velha que ela. Já seu irmã o, Diego, nã o
era um problema. Assim como pai, dificilmente parava em casa. O que
ajudava Rafaela na sua missã o de nã o interagir com ninguém.
— Tenho trabalho de geografia para fazer, entã o o Vini vai passar
o dia lá comigo.
A mã e sorriu.
— Que bom, pelo menos você nã o vai ficar sozinha.
— Gosto de ficar sozinha — disse, empurrando a cadeira e se
levantando. Pegou mais um pedaço de pizza da caixa antes de
continuar: — Preciso voltar para os exercícios. Tudo bem jantar
sozinha?
Helena assentiu.
— Também preciso finalizar algumas demandas da ONG.
Rafaela sorriu. Helena havia se tornado, recentemente, uma das
principais diretoras de uma ONG defensora do oceano e da vida
aquá tica. A sede principal ficava em Sã o Paulo, mas, assim como
quando era apenas uma assistente, ela continuava trabalhando a
distâ ncia. Sempre cheias de papéis e reuniõ es, a mulher também
trabalhava muito, porém fazia questã o de ser presente na vida da filha.
Antes de sair, a menina deu a volta na mesa e deixou um beijo
melado e com cheiro de calabresa na mã e, que deu uma gargalhada,
antes de a observar se afastar e fechar a porta do quarto.

Taylor Swift cantava incansavelmente uma mú sica no repeat pela


quinta vez, quando toda a concentraçã o de Rafaela — refazendo pela
milésima vez uma questã o de química — foi interrompida pelo celular
vibrando em cima da mesa.
Ela pensou em ignorar, já que tinha tendência a perder o foco com
facilidade, mas a curiosidade falou mais alto quando viu a notificaçã o
na tela bloqueada.
Rafaela torceu a boca, pensando se deveria responder ou nã o. Da
ú ltima vez, havia prometido para si mesma que nã o enviaria mais
nenhuma mensagem para o maluco desconhecido. Por isso, precisou
fingir que um sorrisinho nã o surgiu no canto da sua boca ao ler o que
havia recebido.

[21h40]
Número Desconhecido: O que acha de fazermos uma brincadeira?

[21h40]
Número Desconhecido: 2 verdades, 1 mentira. Conhece?

Ela respirou fundo antes de responder:

[21h41]
Rafaela: Eu disse que nã o quero falar com você .

[21h41]
Número Desconhecido: E ainda assim, tu continua me respondendo.

Ele tinha razã o, mas, em sua defesa, Rafaela era uma garota muito
curiosa. Mesmo com o perigo eminente, mal podia conter seus dedos de
responderem alguém que estava tã o empenhado em mandar
mensagens para uma completa desconhecida. Além de nã o poder
ignorar o seu esforço em ser um pouco legal.

[21h42]
Rafaela: Foi a ú ltima vez.

[21h42]
Rafaela: Tchau.

Respondeu, mas talvez aquilo nã o fosse totalmente verdade.


[21h43]
Número Desconhecido: Uma vez, quando eu era criança, quebrei o braço
tentando subir no telhado para me esconder no pique-esconde.
[21h43]
Rafaela: Você sabe ler?

[21h44]
Número Desconhecido: Minha comida preferida é lasanha.

A cacheada rolou os olhos. Um pouco legal e muito sem noção, ela


pensou.

[21h45]
Número Desconhecido: Nunca choveu em um aniversá rio meu. Tipo, nunca
mesmo.

[21h45]
Número Desconhecido: Sua vez.

[21h46]
Rafaela: Eu nã o preciso adivinhar qual é a mentira?

[21h46]
Número Desconhecido: Tu nunca acertaria.

[21h47]
Número Desconhecido: Vai, é a sua vez.

[21h47]
Rafaela: Eu nã o vou contar nada, nem te conheço.

[21h48]
Número Desconhecido: E daí? Eu també m nã o te conheço.

[21h48]
Rafaela: O que só mostra o quanto você é maluco e deveria parar de me
mandar mensagens.

[21h49]
Número Desconhecido: Nem pensar. Eu fui desafiado.

[21h49]
Rafaela: Por quem?
[21h50]
Número Desconhecido: Ué , nã o foi tu que colocou o nú mero no ponto de
ô nibus?

[21h51]
Rafaela: Eu nunca faria isso comigo mesma.

[21h51]
Rafaela: Foi um amigo, em uma brincadeira idiota.

[21h52]
Rafaela: Na verdade, eu apaguei…

[21h52]
Rafaela: Como você conseguiu meu nú mero, se eu apaguei?

Ela apertou os lá bios, curiosa para saber qual desculpa ele daria.
[21h53]
Número Desconhecido: Na verdade, tu riscou.

Ele a corrigiu e completou:


[21h53]
Número Desconhecido: Mas eu ainda consegui ler.

[21h53]
Rafaela: Você queria tanto assim falar com uma desconhecida?

[21h54]
Número Desconhecido: Queria. Acredite se quiser.

[21h55]
Rafaela: Eu nã o te conheço, difícil acreditar.

[21h55]
Número Desconhecido: Muitas coisas sã o difíceis.

[21h55]
Número Desconhecido: Na verdade, tu é difícil.

[21h56]
Número Desconhecido: Mas eu gosto de coisas difíceis.

Rafaela riu, balançando a cabeça.


A cada mensagem que trocavam, tinha ainda mais certeza que ele
realmente era maluco. Ainda assim, gostava da sua determinaçã o e,
talvez — só talvez —, achasse um pouco divertido manter uma
conversa descontraída com alguém que nã o a conhecia. Afinal, tudo era
simples e digital: se algo acontecesse, era só nã o responder e todos os
seus problemas estariam resolvidos.
— ODEIO COMO O SISTEMA nos obriga a estudar coisas que nunca
vamos usar na nossa vida — Vinicius comentou, enquanto grifava uma
pá gina inteira do livro de geografia. Eram pouco mais de três da tarde,
ele e Rafaela ainda nã o haviam começado, de fato, a fazer o trabalho.
— Eu sinceramente nã o me importo com as fossas oceâ nicas. —
Rafaela o encarou e agradeceu mentalmente por sua mã e nã o estar ali,
ouvindo-a falar uma frase que poderia destruir seu coraçã o. — Todo
mundo já sabe que o fundo do mar é menos conhecido que a Lua. Isso
nã o deveria ser um problema de, sei lá , cientistas?
— Ou de ONGs — ele completou e os dois riram. — Acho que, se
nem os especialistas se aprofundam muito no assunto, eu também nã o
deveria perder meu tempo com isso. — Vinicius torceu o lá bio, antes de
jogar o corpo sobre o livro e grunhir. — Nã o aguento mais esse
trabalho.
— A verdade é que nã o importa o que a gente acha. — Rafaela
suspirou, dando de ombros. — Precisamos nos encaixar no sistema
para finalmente estudar apenas o que a gente quer. — Ela fez uma
careta e completou, lembrando-se do que a mã e havia falado: — Mesmo
que na faculdade a gente também nã o estude só o que gosta.
— Eu nem sei o que quero. — Vinicius largou a caneta sobre a
mesa cheia de materiais escolares e olhou para a melhor amiga. — Quer
dizer, eu até sei. Mas serei pobre para sempre. — Ele deu uma olhada
em todo o apartamento. — Queria ser como seu pai, estudar direito e
ficar rico.
— Ele só é rico porque herdou o escritó rio já milioná rio do meu
avô , Vini.
— É , mas eu quero viver de mú sica, Rafa. — Ele deu uma risada
fraca. — Estou fadado ao fracasso.
— Ou talvez você seja mais feliz que o meu pai — Rafaela disse. —
Você vai fazer o que ama, mesmo que nã o tenha um apartamento de
frente para a praia e uma namorada com idade para ser sua filha.
Dinheiro nã o é tudo.
Ou pelo menos, não deveria ser. Rafaela completou mentalmente,
enquanto continuava anotando em seu caderno o que colocaria no slide
de apresentaçã o.
— Vamos fazer uma pausa? — ela sugeriu depois de algum tempo,
ainda que eles nã o tivessem feito muita coisa. — A gente merece.
Na verdade, nã o mereciam. Mas Vinicius preferiu ignorar os 90%
que ainda faltavam para terminar o trabalho e, na mesma hora,
levantou-se da cadeira e caminhou em direçã o à sacada, se jogando em
uma das espreguiçadeiras que ficavam ali. O céu azul, somado ao mar
também azul, parecia drenar toda a irritaçã o de minutos antes. Mesmo
que os outros milhares de prédios daquela á rea quase os impedissem
de vê-los com clareza.
— Finalmente um dia bonito — comentou Vinicius, soltando o ar
lentamente dos seus pulmõ es.
A resposta de Rafaela veio no formato de um sorriso. Ela se
ajeitou na cadeira e olhou para o amigo, que nã o tirava os olhos da
paisagem à sua frente. Mordeu o interior da bochecha, percebendo que
ele usava uma camisa surrada, a mesma que repetia pelo menos uma
vez por semana desde que tinha doze anos. Apesar de ter crescido
alguns bons centímetros desde aquela época, ele nã o se importava.
— Você pensa em algum dia aposentar essa camiseta velha? —
Rafaela ergueu as sobrancelhas, com um tom de deboche na voz.
Vinicius riu.
— Nunca, ela viveu grandes histó rias comigo.
A garota apertou os lá bios, concordando com a cabeça. Ajeitou a
coluna nas costas da espreguiçadeira e cruzou as pernas, agora também
encarando o céu azul.
Vinicius tinha muitos rituais e gostava de repetir padrõ es. Mas o
favorito de Rafaela era que ele fazia questã o de comprar, toda semana, o
seu suco de uva de caixinha favorito, apenas para se desculpar pelo que
aconteceu no quinto ano, quando se conheceram.
Um esbarrã o na hora do intervalo fez com que todo o líquido roxo
se espalhasse pela blusa do uniforme da menina que, chorando, o ouviu
pedir desculpas um milhã o de vezes. Foi ali que Rafaela percebeu que
ele era um bom menino, alguém que valia a pena estar por perto. Por
isso ele logo passou a fazer parte do grupo, fazendo com que o trio se
tornasse um quarteto.
Por esse motivo, ela nã o reclamou de estarem em silêncio, apenas
apreciando a vista. Na verdade, momentos assim apenas provavam que
aquela era uma amizade de verdade, do tipo que nada pode estragar.
Nem o-fatídico-dia-que-fingiam-que-nunca-aconteceu. Afinal, aquele
era o custo de uma amizade longa e muito pró xima: viver momentos
constrangedores juntos.
Eles nã o costumavam falar do assunto, mas vez ou outra a
lembrança surgia na sua mente. Quando tudo aconteceu, em jogo de
verdade ou consequência, Rafaela pensou que tudo estaria acabado e
que a amizade dos quatro nunca se recuperaria do beijo entre Jaqueline
e Vinicius. Mas nã o foi isso que aconteceu.
— Achei que a gente nunca se recuperaria daquele dia. — Ela
pensou alto e Vinicius a olhou com o cenho franzido.
— Do que tu tá falando?
— Sobre…O beijo.
Vinicius torceu a boca e passou a mã o pelos cabelos lisos,
colocando uma pequena mecha de cabelo que insistia em cair sobre a
sua testa para trá s, mas, um segundo depois, lá estava ela, pousando
sobre um de seus olhos verdes.
— Eu nem gosto de pensar nisso — revelou. — Acho que é tipo
estresse pó s-traumá tico.
Rafaela deixou uma risada escapar.
— Deixa a Jaqueline saber que beijar ela foi traumá tico pra você.
Ele também riu.
— Ela sabe que foi, é um fato.
— Mas…— ela começou, abrindo um sorriso quadrado. —
Traumá tico por que você estava beijando sua melhor amiga, ou por que
foi ruim?
Vinicius arqueou as sobrancelhas, virando o rosto em sua direçã o.
— Isso importa? Nã o tornaria menos traumá tico.
Tornaria, sim, Rafaela pensou. Ao invés disso, falou:
— Imagina só se vocês tivessem se apaixonado.
Vinicius fez uma careta.
— Eca! — Ele balançou a cabeça, como se tentasse espantar a
ideia da sua mente. — Nunca.
— Nunca diga nunca.
— Endoidou, Rafinha?
— Eu só estava pensando. — Ela deu de ombros — Apesar de
Nicolas e Jaque terem seus crushs, nó s quatro continuamos tã o
solteiros…
— Achei que tu preferisse ser solteira.
— Eu prefiro! — A voz mais alta fez Vinicius rir. — Mas penso
sobre isso à s vezes… Você nã o?
— À s vezes — ele respondeu, um suspiro quase que involuntá rio
escapando da sua garganta. Rafaela ergueu uma das sobrancelhas e
observou o amigo voltar a encarar o céu, erguendo os braços e os
colocando atrá s da cabeça, se esticando na cadeira. Por apenas alguns
segundos, Rafaela pode ver seus olhos brilharem e, como em uma
epifania, ela deixou o queixo cair.
— Meu Deus! — gritou, virando-se completamente para ele até se
sentar, os pés encostando no chã o. — Você está apaixonado!
Vinicius fez uma careta.
— Nã o sei do que tu tá falando, Rafinha.
— Sabe sim! — Ela se aproximou mais. — Me conta agora!
Ele suspirou mais uma vez e mordeu o interior da bochecha.
— Vinicius!
— Tá , tá . — Rolou os olhos, também se ajeitando na cadeira.
Agora que os dois estavam frente a frente, era mais difícil fingir. — Tu tá
certa. Mas eu nã o vou te contar nada.
— Quê? — Ela cruzou os braços. — Por que nã o?
— Fiz um juramento.
— Juramento? Com quem?
— Com o Nicolas — respondeu, como se aquilo fizesse algum
sentido.
— Nicolas é o maior boca de sacola que eu conheço! — disse e
Vinicius riu.
— Nã o se eu também souber algo sobre ele.
O queixo de Rafaela caiu ainda mais.
— Você só pode estar de sacanagem. — Ela balançou a cabeça,
sem acreditar no que havia acabado de descobrir. — Ele também está
apaixonado?
Vinicius ergueu os ombros, antes de se levantar em um pulo. Ele
bateu a mã o sobre os bolsos e puxou de um deles uma nota de vinte
reais. Decidido a ignorar o assunto anterior sorriu.
— Vou comprar sorvete — anunciou, sem dar nenhum espaço
para protestos, caminhou em direçã o à porta.
Incrédula, Rafaela permaneceu de boca aberta por alguns
segundos, antes de voltar a deitar na espreguiçadeira, sem acreditar no
que estava acontecendo. Era surreal o golpe que havia acabado de
sofrer. Como Vinicius tinha coragem de jogar uma bomba como aquela
em seu colo e sair como se nada tivesse acontecido?
Rafaela encarava o céu com um milhã o de pensamentos rodando
em sua mente quando sentiu o celular vibrar no bolso. Acreditando ser
o amigo perguntando o sabor do sorvete que ela queria — porque ele
nã o havia feito isso antes de sair — puxou sem vontade, mas sentiu
imediatamente o coraçã o travar com o nome que piscava em sua tela.
Caramba, ele nã o iria mesmo desistir.
[16h40]
Número Desconhecido: Tenho algo importante para te perguntar.
[16h41]
Rafaela: Estou ocupada.

[16h41]
Número Desconhecido: Mentira.

[16h41]
Rafaela: Verdade.

[16h42]
Número Desconhecido: Ocupada com o quê ?

[16h43]
Rafaela: Desde quando a minha vida é da sua conta?
[16h43]
Número Desconhecido: Nã o é . Mas fiquei curioso.

Ela rolou os olhos e digitou:


[16h43]
Rafaela: Trabalho da escola com um amigo.

[16h43]
Número Desconhecido: Ah, sim.

[16h43]
Número Desconhecido: Amigo, né ?

[16h44]
Rafaela: ?

[16h44]
Número Desconhecido: Tu gosta dele?

[16h45]
Rafaela: Claro, ele é meu melhor amigo.

[16h45]
Número Desconhecido: Nã o é disso que estou falando.

[16h46]
Rafaela: Nã o que isso seja da sua conta (de novo), mas eu nã o gosto dele
desse jeito que você está pensando.

[16h46]
Rafaela: Na verdade, eu nunca gosto de ningué m desse jeito.

[16h46]
Número Desconhecido: Por que nã o?

[16h47]
Rafaela: Sei lá , gosto de botar a culpa no meu signo. Sou aquariana.
Na verdade, Rafaela tinha bloqueios emocionais, mas ele nã o
precisava saber disso.

[16h47]
Número Desconhecido: Caraca, somos almas gê meas!

[16h48]
Rafaela: Você també m é aquariano?

[16h48]
Número Desconhecido: Peixes.

[16h49]
Rafaela: E isso significa que somos almas gê meas?

[16h50]
Número Desconhecido: Claro. Onde vivem os peixes? Em aquá rios!

[16h50]
Número Desconhecido: Sabe o nome disso? Destino.

[16h51]
Rafaela: Na verdade, eles vivem no oceano.

[16h51]
Rafaela: Ou, pelo menos, deveriam.

[16h52]
Número Desconhecido: Era uma piada.
[16h52]
Número Desconhecido: Credo, como tu é difícil.

[16h52]
Rafaela: Achei que você gostasse de coisas difíceis.
Rafaela nã o pô de deixar de sorrir, quando uma nova mensagem
piscou na sua tela:

[16h53]
Número Desconhecido: Tu nã o imagina o quanto.
O RECORDE DE PALAVRAS ditas em um minuto é de 655, batida por
um canadense que recitou um monó logo de Shakespeare. Mas, na
opiniã o de Rafaela, aquilo só aconteceu porque o Guiness Book nã o
conhecia Jaqueline.
Paradas em frente à escola, Rafaela tinha certeza de que a melhor
amiga acabara de quebrar o recorde. Naquele momento, a cacheada já
nã o ouvia mais nada, havia se desligado há algum tempo e apenas fitava
a boca da loira de mexer incessantemente, sem demonstrar nenhuma
reaçã o.
— Como você pode estar tã o calma? — Jaqueline perguntou e só
entã o Rafaela foi puxada de volta ao mundo real. Ela ergueu os ombros
e torceu a boca para baixo.
— Nã o adianta gastar a nossa energia com isso — disse, vendo o
rosto de Jaqueline se contorcer em uma careta. — Eu também fiquei
com raiva no começo, mas nã o tem o que fazer. Nã o posso forçar os dois
idiotas a falar.
— Isso é ridículo — protestou a loira, colocando a franja que caia
sobre o seu olho atrá s da orelha, com raiva. — Se eu pudesse, torturaria
os dois até que eles falassem o nome das garotas.
Rafaela arqueou as sobrancelhas.
— Acho que isso é crime.
— Claro que é. — Ela deu de ombros. — Mas eu nã o me importo.
Rafaela riu, balançando a cabeça.
As duas continuaram discutindo possíveis formas de fazê-los falar,
enquanto caminhavam pelos corredores da escola, mas era difícil
chegar em uma ideia boa o suficiente — pelo menos, nã o seguindo
meios legais.
Quando chegaram em frente à sala, a mais baixa informou que iria
ao banheiro primeiro e seguiu o caminho sozinha. Por ainda nã o ter
tocado o sinal de início da aula, o corredor estava tã o lotado que Rafaela
se sentia claustrofó bica. Por isso, decidiu ir ao banheiro dos fundos,
perto da biblioteca.
No caminho, desbloqueava e bloqueava o celular em suas mã os,
abrindo o aplicativo de mensagens vez ou outra. Nã o havia recebido
nenhuma mensagem desde a ú ltima vez e, de certa forma, estava um
pouco frustrada. Ela jamais admitiria, mas, ainda que houvessem mais
motivos para nã o falar com um desconhecido por mensagens, do que
para falar, ela estava sentindo falta.
Rafaela mordeu o interior da bochecha antes de bufar e colocar o
celular de volta no bolso. Só precisava dar mais alguns passos para
chegar no seu destino, mas uma voz conhecida, quase sussurrada, fez
com que seus pés travassem no chã o.
— Eu vou te matar! — Rafaela arqueou as duas sobrancelhas,
virando o rosto em direçã o à voz. Leu a placa que dizia “Proibida a
entrada de alunos, acesso apenas para funcioná rios” na porta branca ao
lado do banheiro, que indicava a sala do zelador. — Nã o acredito que tu
contou pra ela.
— Eu nã o contei, ela descobriu! — Vinicius respondeu e Rafaela
sentiu o coraçã o parar no peito. Devagar, deu dois passos até ficar mais
perto da porta e encostou as costas na parede, virando-se só o
suficiente para ouvir melhor.
— Descobriu porque tu é um burro! — A voz de Nicolas estava
esganiçada em um sussurro alto e nervoso. — Meu Deus, ela vai contar
pra Jaqueline! E se ela descobrir que…
— Ela nã o vai descobrir nada — Vinicius garantiu, interrompendo
o amigo em um tom um pouco mais baixo.
— Como tu pode ter tanta certeza disso?
— Eu nã o tenho — ele respondeu. — Mas preciso acreditar que
sim.
Rafaela franziu a testa e olhou para os lados, garantindo que nã o
havia ninguém a observando parada feito uma maluca ao lado da sala
que fedia a produto de limpeza, cada vez mais pró xima. Ouvir aquela
conversa escondido parecia ser um golpe bom do destino, mas fazia sua
respiraçã o perder o ritmo.
— Isso vai ser um caos — Nicolas constatou depois de um tempo.
— Tudo por culpa da sua boca grande!
— Calma aí, surfista! Nã o é como se tu fosse muito discreto
também, né? Ou esqueceu como eu descobri que…
— Ei, nã o estamos falando sobre mim! — o loiro o interrompeu.
— Só o que me faltava, o Senhor Fofoqueiro querendo me dar liçã o de
moral.
— Eu já disse que nã o fofoquei nada. — A voz de Vinicius parecia
cansada, como se já tivesse dito aquela frase um milhã o de vezes. — Ela
descobriu e...
— Tá , cansei desse papo. — Ouviu o mais alto dizer, o
interrompendo mais uma vez. — Vamos sair daqui, esse cheiro tá me
dando dor de cabeça.
Rafaela arregalou os olhos e se esgueirou para o banheiro, antes
que fosse descoberta ouvindo a conversa alheia. Confusa, tentando
entender o que havia acabado de descobrir, ela fitou o pró prio reflexo
no espelho. Naquele momento, tudo que desejava era ser uma
mosquinha, apenas para saber tudo com detalhes. Ainda sentindo a
adrenalina correndo nas veias, ela nã o conseguia parar de repetir em
sua mente as palavras que escutou dos amigos. Por isso, quando voltou
para a sala de aula, permaneceu em completo silêncio. Balançava a
caneta nas mã os e encarava o quadro negro, mas nã o prestava atençã o
no que a professora de literatura falava.
No intervalo, enquanto continuava presa no seu pró prio mundo,
sentiu uma mã o encostar na sua de leve, fazendo seu corpo balançar.
Quando virou o rosto, Nicolas a encarava com as sobrancelhas erguidas.
— Que foi?
— Que foi digo eu. — Ele soltou uma risadinha — Tu nã o falou
praticamente nada desde o começo da aula.
Rafaela ergueu os ombros e tomou um gole do suco de laranja
quase intacto.
— Só nã o tenho nada a acrescentar ao mundo hoje.
— Credo. — Ele fez uma careta. — O que aconteceu?
— O mundo está cheio de falsidade — Jaqueline respondeu por
ela, girando o canudo no seu pró prio copo de suco. — Isso deixa
qualquer um desanimado.
Rafaela viu Nicolas dar uma breve olhada de lado para Vinicius,
que abaixou os olhos em resposta. Os dois sabiam do que Jaqueline
estava falando, por isso, decidiram nã o prolongar o assunto. Afinal, era
o segredo deles que estava em pauta. O que fez com que aquele nã o só
fosse apenas o intervalo mais silencioso que o grupo de amigos viveu
em todos os anos de amizade, como também a manhã mais quieta.
E é claro que isso também valia para as mensagens do garoto
desconhecido.
Já em casa, Rafaela precisou ignorar a ansiedade latente que
começava a incomodar para ler o livro que a professora de literatura
havia passado. Deitada em sua cama, ela relia pela quinta vez a mesma
pá gina de “Senhora” de José de Alencar, quando sentiu o telefone vibrar
sobre o colchã o. Imediatamente, como se o livro em suas mã os pegasse
fogo, ela o largou sobre a cama e puxou o celular, sentindo o alívio
percorrer por todo o corpo quando viu o nome nas notificaçõ es.
Ele estava de volta.
Nã o que estivesse com saudade ou algo assim, mas abriu a
mensagem tã o rá pido quanto abria o Spotify em dia de lançamento de
algum á lbum regravado pela Taylor Swift.
[21h10]
Número desconhecido: Oi, saudades.
Rafaela precisou prender os lá bios para nã o abrir um sorriso. Pelo
visto, quem estava ficando louca era ela.
[21h11]
Rafaela: ?

[21h11]
Número Desconhecido: Vai dizer que nã o sentiu a minha falta nesses dias?

[21h12]
Rafaela: Pra falar a verdade, foi o melhor final de semana da minha vida.

Aquilo era, definitivamente, mentira. Mas jamais falaria que,


minutos antes, estava se lamentando pelo sumiço.
[21h14]
Número Desconhecido: Tudo bem. Pode mentir para mim, mas nã o para si
mesma.

[21h14]
Número Desconhecido: Aliá s, ainda nã o sei seu nome…

[21h14]
Rafaela: Eu també m nã o sei o seu.

[21h15]
Número Desconhecido: Essa é a graça do negó cio.
[21h15]
Rafaela: É , mas admiradores secretos geralmente sabem o nome das suas
admiradas.
[21h16]
Número Desconhecido: Nã o quando encontram o nú mero delas sem
identificaçã o em um ponto de ô nibus.

[21h16]
Rafaela: O que també m é BEM sem sentido. Por que você admiraria algué m
que nã o conhece? Inclusive, se você me conhecesse, nã o perderia seu tempo
com isso.

[21h16]
Número Desconhecido: Primeiro, tu precisa parar de se depreciar e, segundo,
eu aposto que perderia.

[21h17]
Rafaela: Duvido.

[21h17]
Número Desconhecido: Nã o duvide.

A cacheada torceu a boca e tirou os olhos do celular, encarando a


parede à sua frente. Talvez ele nã o fosse tã o ruim assim. Talvez, Rafaela
estivesse começando a curtir a ideia de ter um admirador. E, talvez, ele
merecesse um pouco mais de gentileza da parte dela. Foi por isso que
juntou coragem para, finalmente, enviar:
[21h20]
Rafaela: Rafaela.

[21h21]
Número Desconhecido: Quem é essa?

[21h22]
Rafaela: É meu nome, idiota.

[21h22]
Número Desconhecido: Ah, seu nome é bonito, gostei.

[21h23]
Rafaela: Seria legal se eu soubesse seu nome també m…

[21h23]
Número Desconhecido: Pode me chamar de lindo, maravilhoso, perfeito, etc.

[21h24]
Rafaela: E convencido…

[21h24]
Número Desconhecido: Se chama amor-pró prio, tu deveria tentar.

[21h25]
Rafaela: Obrigada pela sugestã o.

[21h26]
Rafaela: Já que você nã o vai me dizer seu nome, tem alguma coisa que eu
possa saber sobre você ?

[21h27]
Número Desconhecido: Já te contei vá rias coisas sobre mim.

[21h27]
Número Desconhecido: 2 verdades e 1 mentira, lembra?

[21h27]
Rafaela: Mas qual a graça, se eu nã o posso saber qual a mentira?

[21h27]
Número Desconhecido: Nã o importa, eu é que preciso de mais informaçõ es.

[21h27]
Rafaela: E por que você precisa de mais informaçõ es?
[21h28]
Número Desconhecido: Pra poder concluir o meu plano de te esquartejar e
jogar os restos mortais no mar :)

[21h28]
Número Desconhecido: Brincadeirinha kkkkkk

[21h35]
Número Desconhecido: Ei, Rafa?

[21h36]
Número Desconhecido: Rafinha?

[21h37]
Número Desconhecido: Rafona?

[21h40]
Número Desconhecido: Eu tava brincando, sé rio!

[21h45]
Número Desconhecido: Por favor, nã o para de me responder agora. O peixe
aqui precisa do seu aquá rio pra viver, lembra?

Rafaela estava paralisada. Podia sentir cada batimento cardíaco


diminuir e todo o sangue do seu corpo subir para a cabeça enquanto via
as mensagens chegando, uma atrá s da outra. Um sopro de realidade
havia acabado de a atingir e, junto a ele, o arrependimento amargo de
ter levado aquela conversa longe demais. Ela havia revelado seu nome
para um cara que, maluco ou nã o, fazia piadinhas com um dos maiores
medos de uma mulher — e aquilo nã o era motivo de risada.
[21h55]
Número Desconhecido: Tu nã o vai voltar a ser aquela marrenta do primeiro
dia só por causa de uma brincadeira, né ?

[21h56]
Rafaela: Vai à merda.
O CORAÇÃO ACELERADO de Rafaela poderia ser ouvido a quilô metros
de distâ ncia. Sentia como se as paredes à sua volta estivessem
encolhendo à medida que forçava os pulmõ es a puxarem o ar com tanta
dificuldade que, tinha certeza que a respiraçã o nã o era mais um
processo natural do seu corpo. Suas mã os seguravam firmes o assento
da cadeira, os braços colados ao corpo. Tudo parecia errado naquele
momento e ela tinha certeza que o universo conspirava contra a sua
felicidade. Nã o podia ver seu pró prio rosto, mas sabia que sua boca
estava aberta — um pouco para respirar, um pouco pelo choque do que
acabara de ouvir.
— Eu sei que pode parecer um pouco repentino. — Helena
apertou os lá bios antes de continuar. — Mas é uma oportunidade ú nica.
Os olhos castanhos piscaram lentamente enquanto Rafaela
alternava entre a mã e e o pai. Deveria ter imaginado que almoçar com
os dois significava uma má notícia. Havia anos que eles mal podiam
respirar o mesmo oxigênio, quem dirá dividir uma mesa de restaurante.
Além disso, a madrasta e o seu irmã o mais velho também estavam lá .
— Eu sinceramente, nã o sei o que dizer — foi o que conseguiu
falar, depois de quase um minuto em silêncio. Seus dedos agora
dedilhavam a mesa e ela olhava ao redor, buscando refú gio. — Quer
dizer, você realmente está falando sério?
— Sim.
— Nã o pode ser real — murmurou, mais para si mesma do que
para as pessoas ali. — Nã o acredito que vou me mudar para Sã o Paulo
no meio do ensino médio.
— Ninguém disse que você precisa ir. — Foi a vez do pai,
finalmente, abrir a boca. Ele estava quieto desde que a ex-mulher
contou sobre a promoçã o que recebeu no trabalho.
— O que quer dizer com isso? — Rafaela ergueu as sobrancelhas.
— Você pode morar com a gente.
— Morar com vocês?
— É . — O pai concordou com a cabeça, como se aquela opçã o
fosse ó bvia.
— Acho que pode ser legal. — Diego, seu irmã o, ergueu os
ombros. Seu cabelo escuro caía sobre a testa, formando a combinaçã o
perfeita com o sorriso amarelo que direcionava a mais nova. — Como
nos velhos tempos.
Rafaela suspirou, colocando uma mecha de cabelo cacheado para
trá s da orelha. O olhar apreensivo da mã e em sua direçã o fazia seu
rosto queimar. Sabia que Helena preferia que a filha a acompanhasse,
mas nã o era tã o fá cil assim deixar seus amigos, sua escola e sua vida.
Por outro lado, morar com o pai parecia ser a receita para um desastre.
Nunca conviveram, nem mesmo nos finais de semana que,
supostamente, eram dele. Seriam como dois estranhos morando na
mesma casa.
— Eu posso pensar? — perguntou e a mã e balançou a cabeça,
concordando. Imediatamente, todos voltaram a atençã o para a comida
em seus pratos e terminaram a refeiçã o em silêncio.
Era difícil decidir quando nenhuma das opçõ es parecia fazer
sentido e Rafaela já começava a sentir o peso dessa decisã o antes
mesmo de tomá -la. Entã o, fez o que qualquer adolescente faria antes de
responder os pais: mandou uma mensagem no grupo dos seus
melhores amigos.
Pessoas legais & Nicolas ✌🏼
[15h30]
Jaqueline: Vem morar na minha casa!

[15h31]
Rafaela: Tá doida? Eu sou menor idade.

[15h31]
Jaqueline: Eles podem te emancipar.

[15h32]
Rafaela: Será que a gente pode trabalhar com possibilidades reais?

[15h32]
Nicolas: Sã o Paulo tem ó timas baladas.

[15h33]
Rafaela: ?

[15h34]
Vinicius: Tu tentou conversar com eles sobre isso, Rafinha? Tipo, falar sobre
suas preocupaçõ es na hora de tomar essa decisã o… Quem sabe tu consiga
encontrar um equilíbrio, nada tã o drá stico.

[15h35]
Nicolas: Vini, a gente nã o tá em um concurso de giná stica olímpica para
encontrar equilíbrio, o negó cio é a Rafa meter o loco e fugir de casa.

[15h35]
Rafaela: ???

[15h36]
Jaqueline: Será que a gente pode falar sé rio um pouquinho?
[15h36]
Vinicius: Eu nã o sei porque tu pede a opiniã o do Nicolas, ele nunca tem nada
bom para acrescentar.

[15h37]
Nicolas: Tu tá dando conselhos ó bvios e eu que nã o tenho nada a acrescentar,
tá bom.

[15h37]
Jaqueline: GENTE!

[15h37]
Jaqueline: Vamos nos concentrar na Rafa, depois as duas crianças discutem.
[15h38]
Jaqueline: Amiga, o que exatamente está pesando na sua decisã o? Você
considera ir pra Sã o Paulo?

[15h38]
Rafaela: DE JEITO NENHUM.

[15h39]
Rafaela: Mas como eu vou falar isso pra minha mã e? Ela tá tã o empolgada
com a mudança…

[15h40]
Jaqueline: Você sabe que eu amo a sua mã e, mas també m quero te ver feliz.
Sei que você nã o quer deixar ela triste por ir sozinha, mas a decisã o foi dela de
aceitar. E, outra, você també m merece ser feliz e pensar em si um pouquinho.

[15h41]
Nicolas: É , Rafa. A vida é um campo minado de decisõ es complicadas. Mas
talvez esteja na hora de detonar uma que te coloque em primeiro lugar.
[15h41]
Vinicius: Pelo amor de Deus, Nicolas…

[15h42]
Nicolas: Que foi? Foi um ó timo conselho!

Rafaela respirou fundo. Mesmo com uma frase que parecia ser
tirada de uma pá gina de Facebook, Nicolas tinha razã o. A vida era
mesmo um campo minado e, independentemente da escolha, a bomba
explodiria na sua cara, sem que pudesse controlar até onde iriam os
estragos.
Ela mordeu o interior da bochecha, nervosa. Sabia que escolher
ficar era dizer sim para muitas incertezas, mas também era uma
oportunidade de explorar e arriscar conhecer uma nova Rafaela, uma
que nã o tinha a mã e sempre ao redor, pronta para resolver qualquer
problema.
A garota desbloqueou o celular, pronta para enviar mais uma
mensagem no grupo dos amigos, quando a conversa com o maluco
desconhecido pareceu brilhar aos seus olhos. Sentiu o coraçã o apertar,
mas preferiu ignorar aquela sensaçã o. Ainda estava magoada com a
piada sem graça, mesmo que parte dela sentisse falta das conversas
descontraídas na sua caixa de entrada.
Tentando espantar a confusã o de pensamentos, balançou a
cabeça, mas parecia em vã o. A ponta dos dedos coçava, quase como se
desejasse mandar uma mensagem. Mas o que ela diria? Nã o tinha
certeza. Queria falar com ele, mas era uma péssima ideia. Ainda nã o
sabia quem era o garoto — nem ao menos tinha certeza se, de fato, era
alguém da sua idade. Continuar conversando com o desconhecido era
perigoso e até um pouco irresponsável.
Ainda assim, continuou encarando o celular por mais tempo que o
necessá rio, pensando em apagar a conversa, mas era impossível. Seu
corpo se recusou a realizar o ato tã o simples e sensato. Ao contrá rio,
uma onda inconsequente de coragem subiu por suas veias e ela viu seus
dedos rá pidos sobre a tela digitarem uma mensagem, mas sua
consciência imediatamente a convenceu a apagar.
Mais uma vez, digitou.
Apagou.
Digitou.
Apagou.
Rafaela grunhiu e escondeu o rosto com as mã os. Sentindo o
sangue ferver, ela ergueu os olhos e pegou o celular, decidindo que, caso
algo desse errado, culparia os hormô nios da TPM.
[16h25]
Rafaela: Esse é um assunto sé rio.

[16h25]
Rafaela: Nã o se faz piada com algo que mata mulher todos os dias.

[16h25]
Rafaela: Promete que nunca mais vai falar essas coisas? Eu estava quase
começando a me acostumar com você .
RAFAELA PODIA SENTIR o suave balanço do ô nibus conforme ele
acelerava e desacelerava, fazendo seu corpo se mexer quando virava
uma nova esquina. Abraçada na mochila em seu colo, ela permanecia
alheia à conversa dos amigos que estavam à sua volta, falando desde
que se encontraram naquela tarde.
Era dia de cinema e apesar de o filme escolhido ser da Marvel, ela
nã o estava muito animada. A verdade era que, naquele momento, nem
os seus super-heró is favoritos seriam o suficiente para tirá -la da fossa.
Olhando pela janela, a adolescente observa a paisagem. Os
prédios altos, as lojas movimentadas e as á rvores pelo caminho se
tornavam um borrã o de cores e formas enquanto seu pensamento
voava e imaginava como seriam os pró ximos meses. Tentava criar
cená rios bons, mas tudo que sua mente produzia era apocalíptico e
desastroso.
A menina soltou o ar e encostou a cabeça no banco, fechando os
olhos. Queria sumir, mas sentiu um leve encostar no seu ombro e
grunhiu quando foi obrigada a abrir os olhos.
— Tá tudo bem? — Vinicius perguntou, as duas sobrancelhas
arqueadas. Nã o pareceu chateado por ser recebido com uma
reclamaçã o, nem mesmo com a careta que Rafaela fez em seguida. — Eu
sei que as coisas estã o complicadas, mas vai dar tudo certo, Rafinha.
Rafaela tentou forçar um sorriso, mas a sua expressã o era quase
assustadora. Mesmo que nã o pudesse ver, podia sentir o quanto sorrir
era desconfortável naquela situaçã o. Além disso, até queria acreditar
nos olhos verdes que a fitavam, cheios de sinceridade. Mas, no fundo,
ela sabia que o conceito de “dar certo” dos dois era um pouco diferente.
Vinicius possuía uma habilidade incrível de ver o lado bom das coisas,
mesmo que elas fossem péssimas.
Exatamente como naquele momento.
— Tenta esquecer isso um pouco, pelo menos hoje. — Ele colocou
a mã o sobre a sua. Seus corpos balançavam conforme o ô nibus se movia
e o toque fez com que entrassem em sincronia. — Vamos assistir um
filme da Marvel, tu ama!
— Essa nova fase tá uma porcaria — Jaqueline reclamou, fazendo
os dois a encararem. Sem tirar os olhos do celular um segundo, ela
digitava com pressa, sem perder o equilíbrio com o movimento do
ô nibus.
Vinicius bufou.
— Se nã o vai ajudar, nã o atrapalha, Jaqueline.
— Ué — ela desviou o olhar apenas o suficiente para exibir uma
expressã o irô nica —, eu menti?
— Ela tá certa, tá mesmo uma porcaria — murmurou Rafaela.
— Mas nó s sempre conseguimos fazer uma sessã o de cinema
bosta ficar maravilhosa — Nicolas lembrou, puxando Vinicius pelo
ombro e o forçando a sair do banco. Só ali ela percebeu que a mã o dele
ainda encostava na sua. — Rafa, negó cio é o seguinte: — ele se ajeitou
no banco e passou o braço pelos ombros da cacheada, a puxando para
perto — vamos pegar pipoca doce e salgada, já que tu adora misturar as
duas. E o maior refrigerante que tiver.
— Um chocolatinho também — a loira completou.
Ele assentiu.
— Um chocolatinho também — repetiu, sorrindo. — Chocolate
meio amargo, seu favorito. Depois, vamos pegar um Mc Lanche Feliz
com brinquedo.
— Com que dinheiro? — Rafaela franziu a testa.
— Eu pago — Jaqueline respondeu, provando que era multitarefa:
ainda nã o havia parado de digitar, mas prestava atençã o em tudo que
falavam.
Nicolas ergueu as mã os.
— Abençoada seja nossa amiga cheia da grana! — Ele gargalhou,
depois olhou para Rafaela mais uma vez. — E aí tu vai conseguir
esquecer toda essa confusã o.
— Foi exatamente o que eu disse! — Vinicius reclamou,
levantando a voz o suficiente para chamar a atençã o de algumas
pessoas no ô nibus, que começaram a observar o grupo.
— Mas expliquei como vamos fazer isso. — O loiro ergueu os
ombros. — Nã o adianta falar e nã o dar uma soluçã o plausível.
O mais alto revirou os olhos, empurrando Nicolas de leve no
braço. Aquilo foi o suficiente para os dois adolescentes voltarem à
quinta série e iniciassem uma sessã o de empurra-empurra. O que,
consequentemente, fez Vinicius esbarrar em Jaqueline.
— Ei! — ela gritou. O tom irritado fez os dois garotos pararem na
mesma hora. — Vocês nã o param de se provocar desde ontem, que
coisa infantil!
— Pelo menos a gente interage um com o outro. — Nicolas jogou
as costas no banco e se afastou de Rafaela, cruzando os braços. — Tu tá
grudada nesse celular há quarenta minutos.
— Eu estou resolvendo um… problema. — Ela deu de ombros. —
E você nã o tem nada a ver com isso!
— Que tipo de problema? — Rafaela quis saber e percebeu a
expressã o nervosa da melhor amiga ao ouvir o questionamento. Entã o,
ela apertou os olhos: — O que você aprontou?
— O que te faz pensar que eu fiz alguma coisa?
— Entã o quem fez?
— Isso nã o vem ao caso.
— Ah! — Vinicius balançou a cabeça e apontou para a amiga com
a mã o livre. — Depois eu é que guardo muitos segredos.
— Ei, uma coisa nã o tem nada a ver com a outra! — protestou a
loira. — É você que tá apaixonado e escondendo da gente quem é a
garota.
— Que diferença faz tu saber? — Ele fez uma careta, ao mesmo
tempo que o ô nibus passou em uma lombada, fazendo com que os dois
dessem um pulinho e ficassem mais pró ximos.
— Hum… Eu sou sua melhor amiga, isso nã o quer dizer nada?
— Nã o é verdade, nó s somos um quarteto — ele argumentou, mas
recebeu um olhar furioso de Jaqueline. — Posso escolher com quem
quero compartilhar a minha vida, nã o posso?
— Gente… — Rafaela tentou chamar a atençã o dos dois, mas eles
pareciam estar alheios a qualquer coisa, até mesmo aos outros
passageiros. O nú mero de interessados na conversa já começava a
aumentar.
— Você pode escolher o que quiser, Vinicius. Só nã o venha querer
me cobrar algo quando nem você faz o que diz.
— O que tu tá querendo dizer?
— Tá bom, gente, já deu. — Nicolas puxou o braço do amigo, mas
também foi totalmente ignorado.
— Que você é de falar, nã o de fazer — ela silabou, lentamente.
Rafaela observou Vinicius cerrar os dentes e respirar fundo, antes de
abrir a boca para responder.
— Chega! — gritou, antes que ele pudesse continuar. — Vocês
nunca foram de brigar, o que tá acontecendo?
Vinicius mordeu o interior da bochecha e, finalmente, desviou os
olhos da loira para encarar o chã o. Ele nã o respondeu, entã o a mais
baixa olhou para a melhor amiga, que respondeu rolando os ombros e
dando um suspiro cansado.
— Chegamos no nosso ponto — Nicolas avisou. Os quatro
ajeitaram a postura ao mesmo tempo e saíram do ô nibus em silêncio.
Rafaela nã o queria ser a amiga que só pensa em coisas ruins, mas
tinha certeza de que aquele dia seria pior do que a sua mente
catastró fica poderia imaginar.
ERA A QUINTA PIADA sem graça que Nicolas contava enquanto eles
esperavam a vez de comprar pipoca.
Nem mesmo o cheiro doce — ou a sua tentativa incessante de
fazê-los rir — conseguia aliviar a tensã o que rodeava o grupo de
adolescentes desde a briga no ô nibus. Rafaela criava teorias e tentava
entender de onde veio todo aquele estresse, enquanto observava o
pró prio pé bater sem parar no chã o. O barulho à sua volta mesclava
com os pensamentos conturbados da garota. Ela mordeu o interior da
bochecha e suspirou. Nã o bastasse precisar lidar com a vida virando de
cabeça para baixo, seus melhores amigos sequer pareciam estar
dispostos a fazer as pazes.
— Para com isso. — O som da voz de Vinicius pela primeira vez
em vinte minutos, chamou a atençã o da cacheada, que ergueu o olhar a
tempo de vê-lo empurrar Nicolas e guardar o celular no bolso. — Seu
fofoqueiro.
Do lado deles, Jaqueline apenas rolou os olhos.
— Cara, nã o acredito que você nã o me contou que ela estava na
cidade! — Nicolas reclamou, dando um empurrã o no ombro do mais
alto.
Vinicius arqueou as sobrancelhas.
— Contar pra quê? Tu fica insuportável quando tá perto da
Larissa.
E entã o, Rafaela finalmente entendeu do que os dois estavam
falando. Larissa era a prima mais velha de Vinicius e, desde que se
lembrava, Nicolas possuía um incontrolável — para nã o dizer
exagerado — crush na garota. Era realmente insuportável, por isso se
viu obrigada a concordar com a cabeça.
O loiro deixou escapar um grunhido, empurrando o amigo mais
uma vez. Vinicius fez uma careta.
— Para!
— Entã o para de contar mentira! — Nicolas protestou.
— Nã o é mentira — as duas garotas falaram juntas, mas Jaqueline
continuou: — É impossível ficar perto de você e da Larissa, Nicolas.
— Que absurdo! — Ele cruzou os braços e balançou a cabeça. —
Vinicius manteve a Larissa em segredo a semana inteira e é em mim
que vocês descontam?
— Eu nã o mantive ninguém em segredo, cara. — O grupo que
estava na frente deles na fila andou, Vinicius foi atrá s, sendo
acompanhado pelos amigos. — Larissa é minha prima, veio visitar a
minha família.
— Nossa prima — corrigiu, um sorriso torto surgindo nos lá bios.
Jaqueline rolou os olhos.
— Nojento.
— Meu Deus… — Vinicius passou a mã o pelo cabelo liso, fazendo
aquela mecha que ficava sobre a testa subir e voltar ao seu lugar de
origem.
— Eu juro… — a loira começou, empurrando Nicolas para que ele
fosse mais para frente, acompanhando a fila que havia andado outra
vez. — Um dia vou enlouquecer de vez com vocês.
— Acho que você já enlouqueceu. — Rafaela balançou a cabeça,
rindo. — Vocês dois fizeram o maior barraco no ô nibus.
— Eu estava de boa, foi ele quem começou. — Jaqueline ergueu as
mã os e Vinicius cerrou os olhos na direçã o dela.
Quando a voz do atendente soou alta o suficiente para impedir
que uma nova briga se iniciasse, Rafaela agradeceu silenciosamente
enquanto se dirigia ao balcã o. Lendo o cardá pio, ela entortou a boca,
cantarolando.
— Eu quero… Uma pipoca doce grande e uma média salgada. — A
cacheada ergueu os olhos e observou o garoto digitar o seu pedido,
concentrado na pequena tela em sua frente.
— Uma pipoca doce grande e uma média salgada! — ele repetiu
aos berros, para que o outro atendente ouvisse, antes de voltar o olhar
para as garotas. — Algo mais?
Rafaela queria responder “Duas cocas grandes, por favor”, mas as
palavras sumiram no instante em que seu olhar fixou no piercing de
metal preso na boca do garoto à sua frente. O cabelo dele parecia
perfeitamente arrumado — até demais, se ela pudesse opinar —, os
olhos castanhos estavam escondidos atrá s do ó culos grande e ela podia
jurar que o conhecia de algum lugar. Por isso, nã o percebeu, mas
franziu a testa enquanto o observava, tentando buscar na memó ria
onde já havia o visto.
Bruno, como indicava no crachá em seu pescoço, alternou o olhar
entre as duas, com as sobrancelhas arqueadas. Ninguém havia
respondido à sua pergunta, entã o repetiu:
— Algo mais?
— Ahn… — Jaqueline pigarreou, olhando para a melhor amiga
com uma expressã o engraçada. Percebendo que ela nã o iria responder,
falou: — Duas cocas grandes, por favor.
Ele assentiu e voltou a digitar.
Quando as pipocas e os refrigerantes foram deixados sobre o
balcã o, Jaqueline precisou cutucar Rafaela para que ela voltasse ao
mundo. Sua mente alternava entre o piercing altamente atrativo e o
crachá que dizia seu nome.
Onde ela já havia o visto mesmo?
— Conheço ele de algum lugar — sussurrou, enquanto as duas
caminhavam em direçã o aos amigos, longe o suficiente para que Bruno
nã o a ouvisse fofocar sobre ele.
— Claro que conhece, é o Bruno — disse, como se fosse ó bvio. A
mais baixa a encarou com a testa franzida e Jaqueline riu. — Do terceiro
ano C. Bonito, nerd, tutor das matérias de exatas…
Rafaela abriu a boca, surpresa. A verdade é que nã o se lembrava
de Bruno, mas com certeza já havia o visto pela escola. O que
imediatamente a lembrou que o veria novamente, depois de o encarar
por cinco minutos inteiros.
Ou melhor, depois de encarar a sua boca por cinco minutos
inteiros.
— Por que você está com essa cara? — foi Nicolas quem
perguntou, assim que elas os alcançaram.
— Ela está apaixonada — Jaqueline debochou e Rafa arregalou os
olhos.
— Cala a boca!
— Apaixonada por quem? — Vinicius virou o rosto rapidamente
em sua direçã o, a voz ficando mais aguda que o normal.
— Por ninguém. — Ela negou com a cabeça, desesperada.
— Pelo Bruno. — A loira riu, cutucando a amiga, que precisou se
equilibrar para nã o derrubar toda a pipoca no chã o.
— Que Bruno? — os dois perguntaram ao mesmo tempo. A
expressã o de confusã o estampada em seus rostos.
Rafaela soltou um suspiro longo e fez mençã o a responder, mas
sua melhor amiga foi mais rá pida:
— Do terceiro C, ele é o cara da pipoca. — Ela apontou na direçã o
do balcã o com o olhar e os dois a acompanharam.
Depois de alguns segundos observando, Nicolas colocou as mã os
no bolso e virou-se na direçã o de Rafaela que, apesar de nã o poder ver
o pró prio rosto, sabia que estava vermelha como um pimentã o. Ele
colocou uma mecha de cabelo loiro atrá s da orelha e fez uma careta.
— Nerds nã o fazem o teu tipo — acusou.
— Ele tem um piercing. — Jaqueline ergueu as duas sobrancelhas,
subindo e descendo em movimento sugestivo. — A Rafa gosta de
piercing.
— Desde quando? — Vinicius quis saber.
— Será que dá pra você calar a boca? — vociferou, rolando os
olhos e ignorando a pergunta do melhor amigo. — Eu nã o estou a fim
de ninguém, mal conheço o garoto.
Jaqueline riu, soltando um “aham” debochado.
Rafaela sabia que tudo aquilo era um exagero, mas antes de
entrarem no cinema, deu mais uma olhada para o balcã o da pipoca, só
para conferir se Bruno ainda estava ali. Para a sua surpresa, o alvo dos
seus olhares já a observava. Sentiu um arrepio percorrer a espinha e
precisou balançar a cabeça para espantar o choque.
Havia sido pega no flagra o olhando mais uma vez.
UMA CARETA INVOLUNTÁRIA se formou no rosto de Rafaela quando
as notificaçõ es começaram a subir na tela do celular. Sabendo que a
relaçã o com a família por parte de pai era tudo, menos íntima e boa,
nã o pode evitar o ponto de interrogaçã o gigante sobre sua cabeça.
Sentada no sofá , com um pote de brigadeiro quente sobre o colo,
ela virou-se para Jaqueline sem mudar a expressã o. A loira fazia o seu
skincare enquanto balançava a cabeça no ritmo da mú sica que tocava ao
fundo, totalmente despreocupada. A leveza de Jaqueline naquele
momento a fez sentir uma pontada de inveja.
— Meu irmã o enlouqueceu — Rafaela falou, chamando a atençã o
da melhor amiga, que franziu a testa enquanto virava a cabeça em sua
direçã o. O rosto verde por conta da má scara de argila quase fez a
cacheada rir.
— Como assim?
Rafaela apertou os lá bios, sentindo uma pontada de irritaçã o
crescer dentro de si. Ela mostrou o celular para Jaqueline, que se
inclinou para olhar a tela com curiosidade.
Grupo da Família Melo ��‍��‍��‍👧

[20h30]
Diego: Agora que vamos morar juntos, achei que um grupo cairia bem.

[20h30]
Diego: Quer dizer, eu sei que você ainda nã o aceitou oficialmente. Mas mesmo
assim.
[20h31]
Mirela: Eba!!!!! Já estou animada!
[20h31]
Mirela: Que tal reformamos o seu quarto para você se sentir mais em casa,
Rafa?

Jaqueline arqueou as sobrancelhas, claramente surpresa, criando


vincos na argila que começava a secar em seu rosto.
— Sua madrasta quer reformar seu quarto?
Rafaela franziu a testa, voltando a tela para si antes de soltar um
grunhido de frustraçã o. Era impossível engolir a existência daquela
mulher e a sua falsa simpatia. Mirela, leia-se, a mulher de vinte e sete
anos que seu pai resolvera namorar apó s uma crise de meia-idade e,
que o fez esquecer que tinha um filho apenas dois anos mais novo, era
intragável. Para a sua sorte, Mirela passava ainda menos tempo em casa
que o pai. Provavelmente gastando o dinheiro dele com pilates e roupas
de marca.
— Nã o sei se aguento conviver com essa mulher. — Pensou alto,
sem perceber que a loira já havia voltado a sua atençã o para o espelho
pequeno em sua frente.
— Você nunca deu uma chance de verdade pra ela. — O tom de
Jaqueline era de acusaçã o, como se tivesse esquecido que sua tarefa
como melhor amiga era apoiá -la. Sempre.
— E quem disse que ela merece uma chance? — rebateu com uma
voz amarga. — Ela podia ser minha irmã .
— Mas nã o é.
— De que lado você está ?
Jaqueline suspirou e a encarou por dois segundos, antes de
começar a rir, tentando aliviar a tensã o.
— Do seu, é claro — respondeu, pegando uma colherada do
brigadeiro. Antes de colocá -lo na boca, completou: — Mas ela nunca fez
nada pra você a odiar tanto. Parece até ser divertida.
Rafaela rolou os olhos, irritada. Nã o entendia por quê, de repente,
Jaqueline resolveu ser madura. Nã o gostou tanto daquela versã o da
amiga. Pelo menos, nã o quando o assunto era o pai arrumar uma
namorada mais nova que ele — e, pior ainda, colocá -la para morar com
eles em menos de cinco meses!
A garota nã o tinha certeza se o que a incomodava mais era a
presença de Mirela ou fato do seu irmã o ter a aceitado tã o bem, ao
ponto de criar um grupo de família com ela. O brigadeiro extremamente
doce parecia ser a ú nica coisa capaz de acalmar o turbilhã o de emoçõ es
dentro dela. Por isso, jogou o celular sobre o sofá e afundou a sua colher
no brigadeiro, sentindo o gosto explodir na sua boca, fazendo-a
esquecer, mesmo que por alguns segundos, da confusã o que era a sua
vida.

Como se tudo já nã o estivesse caó tico o suficiente, Rafaela


precisava agora lidar com mais um problema: o arrependimento. E,
sinceramente, aos dezessete anos, se arrepender de algo do passado é
praticamente uma regra.
Rafaela se arrependeu das flores no teto, da parede cor de rosa, da
franja que cortou aos dez anos e, definitivamente, de ter gastado toda a
sua noite no dia anterior comendo brigadeiro e fazendo skincare apó s
uma tarde no cinema. Quando ouviu o professor anunciar que a
primeira prova seria na semana seguinte, sentiu uma vontade genuína
de chorar. Como o tempo havia passado tã o rá pido?
Uma onda de desespero tomou conta dela. Sabia que nã o havia se
esforçado o bastante, mas mesmo nas vezes em que tentou com todas
as forças manter a atençã o nas fó rmulas quilométricas e explicaçõ es
complexas, seu cérebro parecia se recusar a processar a informaçã o. As
palavras do professor pareciam faladas em outra língua, uma que
Rafaela jamais entenderia.
Com o desejo latente de aceitar a derrota e reprovar na matéria —
ainda que estivessem apenas no primeiro bimestre do ano —, Rafaela
caminhou em passos lentos, quase dolorosos, até a sala da diretora e
aceitou as aulas de reforço que lhe foram indicadas algumas vezes.
— É incrível como vocês só se preocupam com essas coisas uma
semana antes das provas. — A mulher balançou a cabeça, enquanto
procurava por algo em seu computador. — Para a sua sorte, ainda
temos um monitor de física disponível para esse bimestre. — Ela voltou
a encarar a garota, com os olhos franzidos e os ó culos de grau
escorregando para a ponta do nariz. — Aproveite esta oportunidade,
Rafaela. Pedirei para que ele vá até você. Escolham juntos o melhor
horá rio para estudarem na biblioteca.
— Pode deixar, Diretora Má rcia! — A cacheada forçou um sorriso
enquanto saia da sala, já cansada das aulas de reforço que nem haviam
começado.
No caminho para a sala de aula, parou no banheiro e encarou seu
pró prio reflexo com angú stia. Sempre quis crescer, mas nã o se lembrava
de terem avisado que na adolescência tudo era tã o difícil.
Principalmente quando tudo que o cérebro conseguia produzir se
resumia a emoçõ es avassaladoras, impulsos e agressividade, além da
baixa produçã o de serotonina e dopamina. Ou seja, um prato cheio para
o desastre.
Era isso que pensava quando tirou o celular do bolso ao senti-lo
vibrar três vezes em um intervalo de dez segundos. Já sabia do que se
tratava antes mesmo de desbloqueá -lo. Esperava por aquela resposta
há tantos dias que, com toda a certeza, havia a imaginado de todas as
formas possíveis.

[10h20]
Número desconhecido: Eu prometo.

[10h20]
Número Desconhecido: Me desculpa mais uma vez. Foi uma piada sem graça,
nã o vai acontecer de novo.

[10h20]
Número Desconhecido: Desculpa pela demora també m. Eu estava um pouco
ocupado nos ú ltimos dias.

Rafaela sorriu, sentindo uma mistura de alívio e nervosismo


surgir dentro de si. Encarou o seu reflexo mais uma vez, sendo
surpreendida pela realizaçã o ao olhar seus pró prios olhos mudando de
expressã o, ganhando uma espécie de brilho. Sentia uma força estranha
em seu peito, o bastante para a deixar tonta.
A garota balançou a cabeça, tentando afastar a sensaçã o antes que
ela a dominasse por completo. Ajustou a postura, respirando fundo
para se acalmar. Digitou com rapidez, sem pensar muito e disposta a
nã o demonstrar a empolgaçã o, antes de guardar o celular e voltar para
a sala de aula:
[10h24]
Rafaela: Está desculpado.

A sensaçã o estranha persistiu ao longo da aula de histó ria.


Enquanto tentava anotar o que saía da boca e da mente da
professora em uma velocidade avassaladora, duas batidas
interromperam a explicaçã o. Todos os alunos observaram atentos a
mulher caminhar até a porta, os saltos fazendo barulho ao encostar no
chã o, e sussurrar algumas palavras. Ela só precisou de alguns segundos
de conversa para, suspirando, virar-se em direçã o à turma. Seu olhar
vagou pela sala até parar em Rafaela.
— Rafaela, vá até o corredor, por favor — sua voz arrastada
anunciou, enquanto retornava para seu posto ao lado do quadro negro.
— Seja rá pida. Este assunto irá cair na prova da semana que vem.
A garota franziu a testa e encarou os amigos que a olhavam com
curiosidade. Ergueu os ombros, sem ter ideia de quem poderia estar
aguardando do lado de fora, antes de se levantar. Apressou o passo para
nã o incomodar a professora, fechando a porta com cuidado. Quando se
virou, deu de cara com as costas mais largas que já havia visto.
— Hum…Oi? — chamou, os olhos franzidos em sua direçã o.
O que aconteceu a partir daquele momento parecia saído
diretamente de um filme de comédia româ ntica: de repente, tudo ficou
em câ mera lenta. Quando ele finalmente virou-se em sua direçã o, o
vento, vindo de algum lugar desconhecido, balançou algumas mechas
do seu cabelo castanho, levemente ondulado. O coraçã o de Rafaela deu
um solavanco quando ele ajustou os ó culos de grau com o dedo
indicador e deu um sorriso, fazendo com que os olhos dela se fixassem
em sua boca.
Aquela maldita boca.
Com aquele maldito piercing.
— Você é a Rafaela, né? — perguntou, precisando abaixar a
cabeça para olhá -la, devido à diferença de altura. Ele esticou a mã o em
sua direçã o antes de continuar: — Meu nome é Bruno. A diretora disse
que você precisa de ajuda em física.
Rafaela se lembrava muito bem de Bruno e de suas duas pipocas
grandes com refri e, tinha certeza que parecia patética, mas nã o
conseguia emitir qualquer som que nã o fosse um grunhido. Por isso,
balançou a cabeça em resposta, para evitar passar ainda mais vergonha.
— Você deu sorte. — Ele ajustou os ó culos mais uma vez, uma
mania fofa e hipnotizante. — Eu estava ocupado, mas estou livre nas
pró ximas semanas.
Ela sorriu. Como podia o destino ser tã o horrível para, dois
segundo depois, presenteá -la com o cara mais charmoso que já
conheceu?
— Obrigada — foi o que conseguiu dizer depois de um tempo. —
Preciso realmente de um milagre… — ela pigarreou. — Quer dizer, de
ajuda.
Bruno soltou uma risada, fazendo a peça de metal em sua boca
brilhar.
— Nunca fiz um milagre antes, mas podemos tentar.
Rafaela riu também e os dois ficaram se encarando por alguns
segundos, os sorrisos presos em seus rostos de uma forma quase
assustadora.
— Qual é o melhor dia para você estudar? — Bruno perguntou,
quebrando o silêncio constrangedor que começou a se formar.
— Qualquer dia.
— Você acha que uma hora e meia é suficiente para você?
Ela torceu a boca.
— Acho que sim. — Concordou com a cabeça, colocando uma
mecha cacheada atrá s da orelha. — Nunca estudei física por mais de
cinco minutos, mas isso deve ser suficiente.
Ele riu mais uma vez, e Rafaela riu de volta, corrigindo a postura.
Nunca se viu como uma pessoa engraçada, mas estava feliz em ser
responsável por arrancar aquela risada aveludada que parecia mú sica
aos seus ouvidos
— Podemos começar amanhã ?
Surpresa, ela arqueou as sobrancelhas.
— Amanhã ?
O garoto assentiu.
— Sim, a prova é na pró xima semana, lembra? — Ele coçou a
cabeça. — Bom, podemos almoçar no restaurante da escola e estudar
depois — sugeriu. — O que acha?
— Mas você nã o trabalha? — questionou, sentindo o rosto
queimar no momento em que se deu conta do que estava falando. —
Quer dizer, eu te vi no cinema outro dia… — ela explicou, constrangida.
— Trabalhando.
Se tivesse sorte, nã o pareceria uma stalker que sabia tudo sobre a
vida dele.
— Ah, sim — Bruno concordou, colocando as mã os nos bolsos da
calça jeans preta. Nã o pareceu se importar com o comentá rio
intrometido da garota. — Faço uns bicos lá à s vezes, nada fixo.
— Entendi. — Rafaela abriu um sorriso amarelo, sem jeito. —
Entã o, por mim tudo bem.
— Combinado! — Bruno falou e olhou para trá s, na direçã o da
porta de Madeira. Entã o, ergueu uma sobrancelha e apontou com o
dedo indicador. — Acho que é melhor você voltar para a aula. — Ela
olhou na mesma direçã o e assentiu. — A gente se vê depois —
completou com um aceno tímido, deixando-a sozinha no corredor.

Quando o sinal para o final da aula tocou, Rafaela guardou seus
pertences tã o rá pido que deixou o celular cair do bolso. Por
coincidência — ou talvez fosse o universo querendo agitar ainda mais o
seu dia —, o sentiu vibrar na mesma hora em que o pegou na mã o.
[12h55]
Número Desconhecido: Já almoçou?

[12h55]
Rafaela: Minha aula acabou agora. E você ?

[12h56]
Número Desconhecido: També m.

[13h57]
Rafaela: També m o quê ?

[12h57]
Número Desconhecido: Minha aula també m acabou agora.

[13h58]
Rafaela: Você ainda está na escola? Pensei que fosse mais velho. Tipo, uns 60
anos, careca, essas coisas…

[13h58]
Número Desconhecido: Hahaha, engraçada. Para sua informaçã o, eu tenho só
17 anos.

[13h58]
Número Desconhecido: E tenho muito cabelo (por enquanto).

Rafaela sorriu ao ler a mensagem. Imaginou algo engraçado para


responder, mas, enquanto digitava, sentiu uma mã o pousar em seu
ombro. Assustada, virou-se abruptamente para trá s, dando de cara com
Vinicius. Ele segurava as alças da mochila e tinha uma expressã o
divertida no rosto, com a cabeça inclinada para a direita.
— Viu um fantasma, Rafinha?
— Você chegou do nada! — Rafaela fez uma careta, empurrando
seu ombro.
Vinicius riu, aquele riso fá cil e contagiante que ela conhecia tã o
bem.
— Eu nã o te vi sair da sala e queria te convidar para almoçar lá
em casa hoje — convidou, apontando a cabeça em direçã o à saída.
— Ah. — Ela entortou a boca, chateada. — Hoje nã o dá , preciso
me preparar para as aulas de reforço que começam amanhã .
— Nossa, foi rá pido! Quem vai ser o teu tutor? — Vinicius
perguntou, ajustando a alça da mochila no ombro.
Rafaela mordeu o lá bio inferior e ergueu as sobrancelhas,
refletindo por um momento antes de responder.
— É o Bruno. — Vinicius franziu a testa, confuso. — Do terceiro
ano C — ela completou, esperando que ele se lembrasse. Apó s alguns
segundos, a expressã o dele se iluminou.
— Ah. — O garoto enfiou as mã os no bolso. — O cara da pipoca?
— É só um bico — Rafaela explicou rapidamente, mexendo no
cabelo. — Nã o é um trabalho fixo.
— Como tu sabe?
— Ele me contou. — Ela deu de ombros.
— Uau! — O mais alto ajeitou a postura e inclinou-se ligeiramente
na direçã o dela. — Já estã o falando sobre a vida pessoal?
Rafaela riu e empurrou o ombro dele de leve.
— Foi só um comentá rio normal, nada demais.
Ele estreitou os olhos, desconfiado.
— Sei…
— É sério! — a cacheada insistiu.
— Tanto faz — Vini disse, dando de ombros, antes de fazer outra
proposta: — Convidei os dois malucos para jantarem lá em casa hoje…
Tá a fim?
— Nossa, você quer muito dividir uma refeiçã o comigo, né? —
Rafaela arqueou as sobrancelhas, brincalhona. — Sua mã e vai cozinhar?
— Com certeza. Antes de sair, ela vai deixar a tua lasanha
preferida pronta.
O estô mago de Rafaela roncou levemente, lembrando-a de como
adorava a lasanha da mã e de Vinicius. Ela suspirou, apenas de imaginar
o sabor delicioso.
— Entã o eu topo! — respondeu com um sorriso largo, enquanto
ambos seguiam para fora da escola, o sol brilhando sobre suas cabeças
e a promessa de uma noite divertida pela frente.
RAFAELA PODIA SENTIR o suor escorrer pelo canto do rosto e a culpa
nã o era do calor.
A adolescente mordia o interior da bochecha e questionava ao
universo o que de tã o ruim havia feito para a sua vida se tornar uma
sucessã o de eventos catastró ficos. Mais cedo naquele dia, chegou a
acreditar que tudo estaria voltando aos eixos: as mensagens voltaram,
começaria as aulas de reforço no dia seguinte — com um garoto muito
gato — e iria jantar com seus melhores amigos. Tudo parecia
perfeitamente encaixado e ocorria como o planejado.
Até aquele momento.
É claro, ela sabia que erros fazem parte do ser humano desde o
início dos tempos. Se toda aquela histó ria de Adã o e Eva era verdade, os
seres humanos eram suscetíveis a falhas em qualquer circunstâ ncia.
Entã o, errar é normal e perfeitamente plausível, se feito uma ú nica vez.
Duas vezes, na mesma situaçã o, é muito mais do que burrice.
Quando a garrafa começou a girar mais uma vez no centro da
mesa, o coraçã o de Rafaela acelerou. Ela podia ouvir o som do vidro
raspando na madeira e cada giro parecia durar uma eternidade. Nã o
fazia ideia do porquê aceitou participar da palhaçada inventada pela
prima de Vinicius, mas ali estavam eles: imó veis, segurando o ar
enquanto o objeto se movimentava, ameaçando parar e arruinar suas
vidas a qualquer momento.
A cena toda era como déjà vu e ela se perguntava como havia
deixado se convencer por Jaqueline.
“Deixa de ser chata!”, a loira disse, quando Rafaela foi a ú nica a
sugerir que aquela nã o era uma boa ideia “Vai ser divertido!”. O quarteto
nã o precisou de muito tempo para perceber que ela estava errada. Uma
rodada depois, todos já haviam escolhido “verdade”, o que significava
que nã o restava outra opçã o a nã o ser “consequência”.
Rafaela encarava a garrafa como se, de alguma forma, pudesse
alterar o seu destino. Mas, quando o barulho da garrafa girando parou,
toda a atmosfera da sala ficou pesada. Rafaela prendeu o ar, olhando
para onde a tampa apontava. Viu Nicolas apertar os olhos e murmurar
algo inaudível. Entã o, encarou Larissa, prima de Vinicius, que exibia um
sorriso de orelha a orelha.
— Droga! — O loiro soltou o ar com força, passando a mã o pelo
rosto avermelhado. — Fala logo, o que eu tenho que fazer?
Larissa torceu a boca e passou os olhos atentos por todos eles.
Fora ela quem surgiu com a ideia e, como se nã o bastasse a péssima
sugestã o, ela parecia se divertir com todo o caos instaurado no grupo
de amigos do primo. Nã o era difícil notar que mal respiravam, tamanho
o nervosismo. Já estiveram ali antes na mesma situaçã o, e sabiam o
rumo que a brincadeira nada inocente poderia tomar.
— Hum… — Ela sorriu e seus dentes exageradamente brancos
fizeram o estomago de Rafaela revirar. — Eu te desafio a beijar… —
Larissa esticou o dedo e mordeu a boca. — A loirinha ali.
De repente, o ar se tornou denso, quase sufocante. Os
adolescentes pareciam ter medo de se mover, como se isso pudesse os
livrar das consequências.
— De jeito nenhum! — Jaque balançou a cabeça negativamente
vá rias vezes seguidas, encarando a unha cor de rosa apontada para si.
— Escolhe outra coisa.
Larissa rolou os olhos, com um sorriso. Com certeza era a ú nica
que se divertia com toda aquela situaçã o.
— Nã o é assim que verdade ou consequências funciona, docinho.
— A morena deu uma risada, recebendo os olhares furiosos de Vinicius.
Nicolas, por sua vez, continuava a encarar sem expressã o.
Ele piscou algumas vezes, antes de juntar as mã os e fechar os
olhos:
— Nã o dá pra ser outra coisa, priminha? — O tom de voz
arrastado nã o conseguia esconder o nervosismo que percorria seu
corpo. — Por favor.
Ela balançou a cabeça, negando.
— Gente, vocês sã o jovens! — A mais velha levantou as mã os,
passando os olhos por todos eles. Ela colocou a mã o no canto da boca
antes de sussurrar: — Beijar o melhor amigo é um evento canô nico.
Para surpresa de todos, Jaqueline bufou e rolou os olhos. Sem
paciência, espalmou as mã os sobre a mesa e levantou-se da cadeira.
Claramente incomodada, mas nã o disposta a ceder, deu a volta na mesa
e parou ao lado de Nicolas.
— Vamos logo com isso, surfista — ela o chamou, fazendo um
movimento rá pido com as mã os.
Quase como um reflexo, Nicolas empurrou a cadeira, antes de
levantar e pigarrear. Rafaela e Vinicius observaram o garoto parar em
frente à melhor amiga e colocar as mã os no bolso. A tensã o era tanta
que a cacheada podia jurar ouvir as batidas descompassadas dos dois
coraçõ es. Ele, sem mexer um mú sculo do corpo, apenas aproximou um
pouco a cabeça, diminuindo a distâ ncia entre eles em câ mera lenta.
O beijo durou menos de dez segundos, mas parecia uma
eternidade.
Em completo silêncio, Jaqueline voltou a se sentar à mesa e tomou
um copo com á gua gelada de uma vez só , enquanto Nicolas passou as
duas mã os no rosto e girou a garrafa, sem dar tempo para que sua
mente pensasse no assunto.
— Por que a gente nã o para de jogar essa porcaria? — Rafaela
perguntou, mas ninguém respondeu. Nã o eram obrigados a jogar e,
mesmo com um sinal claro de incô modo, nã o pareciam dispostos a
parar.
Dessa forma, viu a cena se desenrolar mais uma vez, como um
maldito replay, quando uma das pontas da garrafa parou em direçã o a
Larissa. De novo. Era como se objeto fosse atraído por ela com um ímã .
Dessa vez, a outra ponta, apontava para o pró prio primo do outro lado
da mesa.
Vinicius prendeu o ar, sem tirar os olhos da prima.
Larissa torceu a boca, parecendo pensar no que faria. Seus olhos
grandes e verdes — quase iguais aos do primo —, acompanhados pelo
contraste com o tom de pele, avaliaram cada um dos adolescentes,
quase como se pudesse enxergar através deles. Todos eles conseguiam
sentir a perna de Vinicius balançar freneticamente embaixo da mesa.
Larissa sorriu antes de dizer:
— Sua vez, Vivi.
Ele franziu a testa, confuso.
— Minha vez de fazer o quê?
— De beijar a Jaque — respondeu, como se aquela frase fosse
normal e nã o um completo absurdo.
Um silêncio assustador correu entre eles, antes de uma risada
forçada invadir o local. Todos moveram a cabeça em sincronia em
direçã o a Jaqueline, que balançava a cabeça com total descrença.
— Qual é o seu problema comigo? — foi o que ela perguntou,
virando-se para Larissa.
— Nenhum. — A morena riu, colocando a mã o no ombro da mais
nova. — Já falei, beijar o melhor amigo é um…
— Evento canô nico — completou a adolescente, afastando a mã o
que estava sobre ela com desdém. — É , você já falou isso.
Rafaela prendeu os lá bios enquanto observava a respiraçã o de
Vinicius ficar pesada. Seu peito subia e descia quando ele fechou os
olhos e passou a mã o pelos cabelos castanhos.
— Tu disse que a brincadeira seria leve e divertida — lembrou
ele, encarando a prima. — Mas isso passou dos limites, Lari.
— Vivi, é só uma brincadeirinha. — Ela esticou a mã o, colocando
sobre a do primo que estava sobre a mesa e sorriu.
Sem conseguir controlar as pró prias expressõ es, Rafaela rolou os
olhos. Quando era criança, queria ser como Larissa: ela estava sempre
linda, com seus cabelos pretos e lisos caindo sobre os ombros, o sorriso
branco e a pele perfeita. Além disso, ela costumava ser divertida — ou
fingia ser. Se perguntava quando a mais velha havia se tornado aquela
pessoa sem noçã o.
— Por que eu? — A voz de Jaqueline, um pouco mais aguda que o
normal, a tirou dos devaneios. — Nã o pode ser a Rafa? Ela nã o beijou
ninguém ainda!
— Ei! — A cacheada arregalou os olhos. — Tá maluca?
— Eu só nã o entendo por que precisa ser eu mais uma vez! — A
loira bateu as mã os sobre a mesa. Sentia a angú stia se alastrar pelo seu
corpo, junto com o desejo de ir embora.
— Mas você nã o é obrigada a fazer nada, Jaque.
— Eu sei… — Ela jogou as costas no encosto da cadeira,
suspirando. Jaqueline apertou a lateral da cabeça, sentindo uma
pontada de dor incomodar. — Mas você sabe que eu odeio ser desafiada
e nã o cumprir.
Rafaela fechou os olhos e franziu o rosto.
— Isso é ridículo! — reclamou, mais alto dessa vez. A garota
tamborilou os dedos sobre a mesa, parecendo pensar no que diria a
seguir. Entã o, questionou: — Será que só eu tenho cérebro aqui?
— É só um jogo, nã o precisa de todo esse drama. — Larissa
ergueu os ombros, fazendo o sangue da mais nova ferver em suas veias.
— O que deu em você, Larissa? — Rafaela fixou os olhos nos seus,
cruzando os braços e os apoiando sobre a mesa. — Nã o me lembrava de
você ser uma babaca.
— Rafa... — Nicolas deu um chute em sua perna por baixo da
mesa e ela fez uma careta.
— Eu estou errada?
Ninguém respondeu, sabiam que ela estava certa. A verdade é que
nenhum dos adolescentes aguentou nã o ceder à adrenalina do jogo da
garrafa, mas, sem sombra de dú vidas, nã o imaginaram o caos que se
tornaria. Arrependidos e sabendo que a prima do melhor amigo havia
passado dos limites, eles nã o ousaram discordar.
Larissa desviou o olhar, ajeitando-se na cadeira. Todos
observaram quando ela soltou um suspiro alto e olhou o reló gio em seu
pulso. Entã o, imediatamente, deu um pulo, levantando-se com pressa,
os olhos verdes arregalados.
— Meu Deus! Eu vou perder meu voo! — exclamou, correndo até
a sala. Larissa puxou sua mala de rodinhas e a arrastou pela casa.
— Nossa, que conveniente — Rafaela murmurou.
— A noite foi super divertida, gente. Adorei rever vocês. — Ela foi
até Vinicius e deixou um beijo estralado na sua bochecha. — Tchau,
Vivi. Manda um beijo pra titia. — Sorriu, antes de se aproximar do seu
ouvido e sussurrando alguma coisa que apenas os dois podiam ouvir.
Sob o olhar atento do quarteto, a instauradora do caos atravessou
o corredor e fechou a porta com tranquilidade, como se nã o houvesse
deixado uma torta de climã o gigante no meio dos quatro amigos.
Era possível ouvir a respiraçã o pesada dos quatro, encarando a
garrafa de vidro parada no meio da mesa. O silêncio agonizante parecia
fazer barulho, tamanho o desconforto entre eles. Rafaela desejava
intensamente ir embora, a agonia presente em seu olhar fixo na porta,
como se pudesse fugir apenas com o poder do pensamento.
Jaqueline, por sua vez, estava inquieta. Seus dedos tamborilavam
na superfície da mesa enquanto sua perna balançava freneticamente,
uma manifestaçã o física do turbilhã o de pensamentos que invadiam a
sua mente.
A sala parecia encolher ao redor deles, por isso Nicolas bufava
uma vez a cada dez segundos. Seu rosto estava contorcido em uma
expressã o de frustraçã o, como se estivesse a ponto de explodir a
qualquer momento. Já Vinicius balbuciava algo impossível de entender,
os lá bios se movendo em um murmú rio inaudível.
Foi quando Nicolas pigarreou, chamando a atençã o de todos.
— Hum… Chamei um uber. — Ele olhou levantou o celular e o
balançou. — Quer aproveitar que minha casa fica no caminho da tua,
Rafa?
Rafaela olhou para Jaqueline, como se esperasse pela aprovaçã o
da amiga. Queria ter certeza que ela nã o gostaria de conversar sobre
tudo que aconteceu.
— Pode ir com ele, nã o tem problema. — A loira forçou um
sorriso. — Meu pai já deve estar vindo me buscar.
— Certo. — Nicolas levantou-se da cadeira e bateu a mã o nas
pernas, como se a limpasse de algo. — Vamos descendo, entã o?
Rafaela assentiu, se despedindo com um aceno silencioso.
Da mesma forma, a descida no elevador foi quieta, nã o
demorando muito para que estivessem no carro a caminho de casa.
Apenas o barulho do vento entrando pela janela e bagunçando os
cabelos cacheados de Rafaela podiam ser ouvidos e acreditou que
seguiriam o restante da viagem assim, mas sentiu quando Nicolas,
gradualmente, se aproximou dela no banco do carro.
— Que merda, né? — Ele suspirou, jogando a cabeça para trá s. A
garota mordeu o interior da bochecha ao olhar para o melhor amigo.
— Uma merda completamente evitável, vocês nã o precisavam ter
feito aquilo.
— Eu só queria me divertir um pouco. — O loiro abaixou os
ombros, as mã os apertadas uma na outra. — Nã o achei que iria tã o
longe.
— Mas foi. — Rafaela passou a mã o sobre o rosto, cansada. —
Agora vocês vã o precisar agir como pessoas maduras e nã o deixar isso
atrapalhar a amizade.
Ele concordou com a cabeça.
— Eu sei, mas… — Fez uma careta e encarou a amiga. Rafaela
arqueou as sobrancelhas, esperando que ele completasse a frase, mas
Nicolas parecia hesitante.
— Que foi?
— Será que foi ruim? — perguntou finalmente.
— O quê?
— O beijo — explicou, desviando o olhar, sentindo o julgamento
de Rafaela sobre si.
Ela mal podia acreditar no que havia escutado.
— É com isso que você tá preocupado?
— Nã o, nã o tô preocupado. — Ele balançou as mã os. — Eu só tive
uma impressã o esquisita de que… Sei lá , de que beijo mal.
Rafaela sentiu os olhos rolarem com tanta força, que se
surpreendeu que eles nã o haviam saído de ó rbita. Era inacreditável
que, depois de uma noite caó tica como aquela, a preocupaçã o de
Nicolas fosse tã o fú til.
— Fala sério, Nicolas. — Ela suspirou alto.
— Ué, ela fez mó cara de quem comeu e nã o gostou, como eu
posso acreditar que nã o beijo mal?
— É claro que fez, ela beijou o melhor amigo em uma brincadeira
ridícula! — Rafaela balançou a cabeça, os cachos bagunçados caindo
sobre o olho. — De novo.
O surfista fez um bico e levantou os ombros, um sorriso de canto
surgindo.
— Isso quer dizer que eu nã o beijo mal?
Rafaela grunhiu, colocando as duas mã os sobre o rosto.
Quem quer que estivesse escrevendo o roteiro da sua vida,
precisava ser demitido o mais rá pido possível.
NA MANHÃ SEGUINTE, Rafaela percebeu que as coisas nã o voltariam
ao normal tã o facilmente.
Começando pela sua mã e.
Apesar de propor que a filha ficasse na cidade, Helena nã o parecia
ter superado a pró pria sugestã o. A verdade é que a mulher nã o
acreditou que Rafaela fosse mesmo escolher ficar com o pai. Afinal,
quã o improvável era a filha preferir morar na casa de um quase
desconhecido — apesar do parentesco — a continuar vivendo com a
pessoa que a criou e foi sua grande companheira por todos os seus
dezessete anos de vida?
— Você tem certeza que vai ficar? — Helena perguntou mais uma
vez, como se o questionamento pudesse fazer a menina mudar de ideia.
Rafaela deu um gole no café com leite antes de assentir, vendo a
mã e soltar um suspiro pesado com a resposta. Foi difícil decidir.
Nenhuma das escolhas era, de fato, boa. Mas a cacheada tinha certeza
que nã o queria morar em Sã o Paulo e, por isso, escolheu conviver com o
pai pelos meses seguintes.
— Você sabe que morar com seu pai pode ser difícil, nã o sabe? —
Helena continuou falando, os olhos claros brilhando em sua direçã o. O
cabelo alisado estava preso, mas a raiz cacheada começava a aparecer e
as bochechas estavam vermelhas por conta do café quente que bebia.
— Me mudar para uma cidade desconhecida também, mã e —
rebateu Rafaela, a voz arrastada.
— É ... — Helena torceu a boca, contrariada. — Mas lá você terá a
sua mã e.
— E aqui eu tenho meu pai — devolveu, sem pensar muito. — E
meus amigos, minha escola, minha vida… — tentou corrigir, mas já era
tarde demais. Os olhos da mã e estavam marejados e Rafaela sentiu
raiva de si mesma. O pai nã o merecia ser citado como se sua presença
fizesse alguma diferença.
Dessa vez, sabia que o que Helena sentia nã o era apenas drama e
viu a culpa tomar conta de si. Havia feito uma escolha, afinal de contas,
mas nã o podia ignorar o sofrimento de uma mã e que deixaria a filha
para viver seu sonho. Aquela promoçã o no trabalho era esperada há
muito tempo e nã o era justo que seus ú ltimos dias ali fossem cheios de
angú stia e arrependimento. Por isso, resolveu deixar de lado os
problemas acumulados para dar à mã e aquilo que ela precisava: amor.
— Me desculpa — pediu, observando o olhar baixo de Helena
encarar o bolo de chocolate sobre a mesa de café da manhã . — Nã o
queria te deixar chateada, falei sem pensar.
— Tudo bem. — Ela forçou um sorriso. — Você tá certa.
— Nã o, mã e. — Rafaela balançou a cabeça. — Me desculpa
mesmo. Sei que aceitar o trabalho em outro estado nã o foi uma escolha
fá cil, muito menos para me deixar ficar — admitiu, chamando a atençã o
da mulher, que ergueu o olhar para encarar a filha.
— Eu só … — A sua voz falhou e ela precisou respirar fundo antes
de continuar: — Vou sentir muito a sua falta.
Os olhos de Rafaela se encheram de á gua e ela precisou juntar
todas as forças para nã o chorar. Nos ú ltimos dias, parecia impossível
suportar a pressã o que vinha de todos os lados sem deixar escapar uma
lá grima. Ainda assim, preferiu engolir em seco, empurrando a cadeira
para trá s e caminhando lentamente até a mã e. Com força, envolveu os
ombros dela num abraço apertado, sentindo a respiraçã o pesada e
entrecortada da mã e por baixo de seus braços.
— Eu também vou sentir a sua falta, mamã e. — O corpo da mã e se
encolheu, mas Helena sorriu como beijo apertado que recebeu na
bochecha. — Preciso ir, vou me atrasar para a escola.
Sua garganta secou quando beijou a mã e mais uma vez, mas
ignorou a sensaçã o desconfortável enquanto colocava a mochila nas
costas e atravessava a porta de casa com pressa. Apesar do calor que
sentia dentro de si, o dia estava frio. O céu nublado e o vento que jogava
seus cachos castanhos para trá s faziam contraste com seus passos
lentos, quase preguiçosos, em direçã o à escola. O caminho nã o era
longo, mas ao cruzar a terceira rua, Rafaela sentiu o celular vibrar no
bolso e parou de andar.
Na noite anterior, havia enviado uma mensagem ao seu admirador
— talvez, maluco — secreto, falando sobre todos os acontecimentos
recentes, um desabafo sincero a alguém que nã o conhecia.
[07h25]
Número Desconhecido: Uau, tua vida é mesmo muito agitada.

[07h25]
Número Desconhecido: Mas eu sei que sua habilidade em resolver problemas
vai te ajudar a passar por cima de todas essas questõ es.

[07h25]
Número Desconhecido: E mudanças fazem parte da vida, Rafa. Tu vai
aprender a lidar com todas elas.

A garota prendeu os lá bios e voltou a caminhar enquanto digitava:


[07h26]
Rafaela: Eu, literalmente, nã o resolvi nenhum dos meus problemas até agora.
Você está sendo otimista.

Rafaela olhou para frente e viu os muros da escola mais perto do


que gostaria. Grunhiu, observando os outros alunos passarem por ela e
atravessarem o portã o. Botou uma mecha de cabelo atrá s da orelha e
parou, poucos metros da entrada, voltando a atençã o para o celular.
[07h27]
Rafaela: E estou prestes a encarar mais um deles.

[07h28]
Número Desconhecido: Qual?

[07h30]
Rafaela: A merda colossal de ontem.
[07h30]
Rafaela: Tenho certeza que o clima está horrível.

[07h31]
Número Desconhecido: Horrível por quê ?

[07h31]
Rafaela: Eu te falei, lembra? Nicolas e Jaqueline se beijaram e Vinicius
escapou por pouco.

[07h31]
Número Desconhecido: Ué , e eles foram obrigados a se beijar?

[07h32]
Rafaela: Nã o, era verdade ou consequê ncia.

[07h33]
Número Desconhecido: Entã o por que nã o estã o se falando? Se nã o queriam,
nã o era só nã o beijar?

[07h34]
Rafaela: Essa é uma ó tima pergunta. Jaqueline disse que nã o gosta de ser
desafiada, por isso aceitou.

[07h35]
Número Desconhecido: Entendo, també m gosto de desafios.

[07h35]
Número Desconhecido: Mas eles sabiam o que estavam fazendo, Rafa.
Ningué m mais é criança.

[07h36]
Número Desconhecido: Na verdade… posso ser sincero?

[07h36]
Rafaela: Claro.

[07h37]
Número Desconhecido: Na MINHA opiniã o, eles queriam isso, mas depois se
arrependeram. O jogo foi só uma desculpinha.
[07h38]
Número Desconhecido: Reflita.

Rafaela mordeu o interior da bochecha.


[07h39]
Rafaela: Você acha?

[07h39]
Número Desconhecido: Acho. Mas posso estar completamente errado :)

Aquela era uma possibilidade difícil de acreditar, mas ela nã o


podia enviar lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Jaqueline
nã o parecia querer beijar Nicolas, muito pelo contrá rio. Tinha a
impressã o que tudo que a loira desejava, no íntimo do seu ser, era sair
correndo e lavar a boca com sabã o imediatamente. Mas, considerando
isso, por que entã o ela nã o havia recusado?
[07h40]
Rafaela: Bom, eu nã o sei dizer, mas preciso de coragem para encarar todos
eles.

[07h40]
Número Desconhecido: Por quê ? O clima ficou ruim contigo també m?

[07h41]
Número Desconhecido: Quem tu beijou?

[07h41]
Rafaela: Ecaaaa

[07h41]
Rafaela: Nã o beijei ningué m, tá maluco?

[07h42]
Número Desconhecido: É sempre uma possibilidade.

[07h43]
Número Desconhecido: Mas, como falei antes, acredito na tua habilidade em
resolver problemas.
[07h44]
Número Desconhecido: Tu vai encontrar uma soluçã o para dar paz entre os
teus amigos.

Rafaela queria muito acreditar nas palavras escritas em sua tela,


mas a situaçã o era deprimente. Dali, conseguia ver os melhores amigos
sentados na mesa de sempre, mas, ao contrá rio de como costumava ser,
ninguém falava nada. Todos encaravam as telas dos seus celulares como
se estivessem sozinhos.
Maldita Larissa.
Maldito jogo da garrafa.
Maldita impulsividade adolescente.
A garota os observou de longe por mais alguns segundos, antes de
guardar o celular no bolso e caminhar em direçã o a eles. As mã os
fechadas ao lado das coxas, o maxilar travado e os passos pesados sobre
o chã o nã o deixavam dú vidas: Rafaela estava com raiva.
Apesar da chegada brusca, nenhum deles notou a sua presença,
visto que estavam com os seus olhos fixos nas telas retangulares em
suas mã os. Por isso, a menina aproveitou para — em um reflexo mais
á gil do que imaginava ter — tirar o celular da mã o de cada um deles.
Viu quando os três pares de olhos se arregalaram em sua direçã o,
finalmente a percebendo ali. Com o choque, apenas Jaqueline pareceu
capaz de reagir, levantando-se com pressa e esticando o braço em uma
tentativa frustrada de pegar o telefone de volta.
— Tá ficando maluca? — ela gritou. A mã o pequena tentava
alcançar o aparelho enquanto Rafaela desviava com facilidade. —
Devolve o meu celular, Rafaela!
— Nã o. — A cacheada permaneceu firme, guardando cada um dos
celulares na mochila, antes de puxar a cadeira e se sentar ao lado deles,
apoiando-a em seu colo e a abraçando com força. — Só quando vocês
pararem de agir como crianças.
Jaqueline bufou, mas o silêncio dos outros continuava pesando o
ambiente, ainda que os demais alunos continuassem falando sem parar
em volta deles. Era como se, naquele momento, uma redoma tivesse se
formado em volta do quarteto.
— A Rafa tá certa — foi Vinicius quem falou e Rafaela nã o se
surpreendeu ao vê-lo ser o primeiro a ceder. — Nã o deveríamos ter
aceitado brincar, já vivemos essa histó ria antes… — lembrou, olhando
para Jaqueline. A loira prendeu os lá bios, a lembrança invadindo a sua
mente e preenchendo todas as memó rias que ela fazia questã o de
esquecer.
— É , mas nã o temos como voltar no tempo — constatou Rafaela,
erguendo as sobrancelhas. — E precisamos encarar isso como adultos.
— Nã o somos adultos — Nicolas argumentou. Seu corpo estava
jogado sobre a cadeira, os braços cruzados e os olhos franzidos por
conta de um fino reflexo do sol que começava a aparecer no céu
nublado.
— Mas seremos, em breve — revidou Rafaela, os olhos passeando
sobre cada um deles. — E, gente, ultimamente nosso grupo está um
caos.
Os três se olharam por um milésimo de segundo, mas Rafaela mal
reparou. Estava tã o concentrada em tentar resolver aquela situaçã o o
mais rá pido possível que nã o pode perceber a culpa tomar conta de
cada um deles. Afinal, nã o era ela a culpada pelo caos, mas sim eles que
criavam conflitos desnecessá rios há dias.
— Com certeza é a pressã o com o vestibular — Vinicius acabou
dizendo, ajeitando-se na cadeira. Aquela poderia ser uma desculpa
plausível, se algum deles estivesse se dedicando (e se preocupando) o
suficiente para passar no vestibular. O que nã o era o caso. Ainda assim,
ele continuou: — Ou talvez a pressã o da vida. É ela que está um caos,
nã o só o nosso grupo.
— É verdade. — Nicolas jogou o cabelo loiro para trá s e apertou
os lá bios. — Ser adolescente é um saco.
— Mas a Rafa tá certa. — A voz baixa de Jaqueline chamou a
atençã o dos três que, surpresos, viraram-se para ela. Era difícil ver a
loira admitir que estava errada. — E você também, Nicolas. A
adolescência é uma merda, mas nó s nã o precisamos deixar a
experiência ser mais merda ainda.
Nicolas assentiu. Entã o, respirou fundo e esticou a mã o em sua
direçã o.
— Por mim, aquilo nunca aconteceu — sugeriu, erguendo as
sobrancelhas. — Vamos passar uma borracha em tudo e começar mais
uma vez, pode ser? — Ela encarou a mã o parada à sua frente e mordeu
o lá bio inferior. Precisou de alguns segundos para também esticar a sua,
apertando-a com força.
A atitude impulsionou Jaqueline a repetir a atitude do amigo,
dessa vez com Vinicius, que observava a cena se desenrolar a sua frente
com uma expressã o esquisita, que logo foi desfeita quando, imitando o
gesto de Nicolas, a loira esticou a mã o em direçã o ao mais alto.
— Me desculpa pelo dia no ô nibus. — Ela fez uma careta. —
Exagerei quando disse que você é de falar e nã o fazer.
Vinicius suspirou, mas apertou a sua mã o de volta.
— Me desculpa também, loirinha. — Ele abriu um sorriso
quadrado e olhou de canto de olho para Nicolas. — Por ter escolhido ele
para contar meus segredos e nã o vocês.
— Ei! — O loiro deu um empurrã o no ombro do melhor amigo,
que soltou uma gargalhada.
Pela primeira vez em algum tempo, Rafaela sorriu de verdade. Foi
o caminho todo para a sala de aula observando os três rirem e
brincarem um com o outro. Parecia que uma parte da sua vida havia
finalmente voltado aos eixos e ela nã o poderia estar mais feliz.
Já atravessando a porta em direçã o à sua mesa, virou-se para trá s
quando Nicolas cutucou o seu braço.
— Tu é boa nisso, Rafa.
Ela franziu a testa.
— Boa no quê?
Com olhos, ele apontou para Vinicius e Jaqueline, que estavam
andando um pouco mais a frente deles. Os dois riam de alguma coisa
enquanto dividiam um fone de ouvido.
— Em resolver problemas.

O sol escaldante fez Rafaela prender seus cachos em um coque.


Apesar de ter morado em Florianó polis a vida inteira, ela nunca
conseguia se acostumar com o clima imprevisível. Saíra de casa em uma
manhã fria e já estava suando de tanto calor. Ela abanou o rosto com a
mã o enquanto se encostava na parede do lado de fora da escola,
tentando aliviar o calor sufocante. Com a outra mã o, deslizou o dedo
pela timeline do Instagram, tentando se distrair. Já conseguia ouvir a
barriga roncar de fome quando sentiu um braço encostar em seu
ombro.
— Pronta? — Bruno sorriu, no â ngulo exato para o piercing
refletir o sol.
O dia anterior havia passado lentamente. Ela nã o tinha certeza se
era pelos acontecimentos catastró ficos ou por sua ansiedade para,
finalmente, começar as aulas de reforço.
Enquanto os dois caminharam em silêncio pelos corredores
movimentados da escola em direçã o à cantina, que possuía almoço livre
para os alunos em dias de semana, Rafaela pensava em todos os
assuntos que poderia puxar com o garoto. É claro que iriam para
estudar, mas ela também queria muito saber se ele era tã o legal quanto
era atraente.
Depois de montar seus pratos, decidiram se sentar em uma mesa
pró xima à janela. Rafaela já havia colocado o primeiro pedaço de batata
frita na boca quando notou o prato de Bruno, cheio de salada. Curiosa e
com um toque de provocaçã o, ela arqueou as sobrancelhas:
— Entã o quer dizer que você é fitness? — perguntou, espetando
mais uma batata frita com seu garfo antes de levar à boca.
Bruno a olhou com uma expressã o engraçada.
— Nã o do tipo que toma Whey, come batata doce e frango. — Ele
ergueu os ombros. — Eu só gosto de cuidar da minha saú de e ter
há bitos saudáveis.
— Nã o imaginava. Você nã o parece ser esse tipo de cara.
— E que tipo de cara eu pareço?
Rafaela torceu a boca, analisando-o com cuidado. O cabelo preto
bagunçado criava um contraste com a pele branca. Os ó culos de grau
em uma armaçã o fina escorregavam no seu nariz, criando uma
harmonia perfeita com o piercing que brilhava nos lá bios.
— Aqueles nerds estudiosos, sabe? — Ela deu uma risadinha. Nã o
podia falar o quanto o achava bonito, por isso tentou encontrar algo que
combinasse sua aparência com uma possível personalidade: — Que
usam o tempo livre pra fazer live jogando vídeo game.
Bruno soltou uma risada, ajustando os ó culos e fazendo um gesto
com a mã o para enfatizar seu ponto de vista.
— Bem, se você trocar “jogar vídeo game” por “assistir filmes”. —
Um sorriso de canto surgiu nos seus lá bios. — É quase isso.
— E que tipo de filmes você gosta? — perguntou, animada. Nem
percebeu que havia se inclinado levemente para frente, ansiosa para
ouvir tudo que ele tinha a dizer.
Bruno mastigava a comida quando apontou para o moletom preto
que usava. Foi só entã o que ela notou a estampa grande e dourada que
dizia “Star Wars”. Imediatamente, a garota ajeitou a postura e precisou
se segurar para nã o fazer uma careta.
— Star Wars é o meu preferido — explicou quando terminou de
mastigar. Ele puxou uma garrafa de á gua da mochila e girou a tampa. —
Eu sou tipo… muito obcecado.
— Nunca assisti. — Ela precisou admitir e viu quando os olhos
dele se arregalaram por trá s da armaçã o preta dos ó culos. Entã o, Bruno
colocou a mã o no coraçã o. — Prefiro a Marvel.
Ele torceu o rosto em uma careta e colocou a mã o sobre o peito.
— Nossa! Você acabou de partir meu coraçã o.
— É mesmo? — A cacheada riu.
O mais alto concordou com a cabeça, segurando a expressã o séria
por alguns segundos.
— Talvez seja melhor assim. — Ele suspirou e deu um gole na
á gua, antes de explicar: — A Disney estragou tudo mesmo.
— Sério?
Bruno assentiu mais uma vez. Agora, com uma expressã o de
desgosto.
— Sim, totalmente — Ele rolou os olhos, frustrado. — Mas nó s
ainda podemos assistir aos primeiros filmes como se o ú ltimo nunca
tivesse existido.
Rafaela arqueou as sobrancelhas. Nã o esperava que uma pequena
palavra de três letras pudesse fazer seu estô mago revirar daquela
forma.
— Nó s?
— Sim, depois que você terminar a prova e tirar uma nota
incrível, nó s faremos uma maratona de Star Wars — respondeu ele,
como se aquela fosse uma notícia incrível. — Você precisa conhecer o
lado bom da força, Rafa.
A cacheada nã o pode evitar abrir um sorriso. Nã o se importava
mais com o fato de que achava Star Wars totalmente sem graça. Já havia
tentado assistir outras vezes e sempre desistiu nos primeiros dez
minutos. De repente, uma vontade repentina de assistir à saga completa
começou a crescer dentro dela.
Durante o almoço, apó s as tentativas falhas do garoto em
convencê-la a comer salada e nã o batata frita, ao mesmo tempo que a
falava do quanto Star Wars era incrível, Bruno contou um pouco sobre
si. O pai cantava em uma banda de rock nã o muito famosa, mas
conhecida o suficiente para fazê-lo viajar com frequência. A mã e, por
sua vez, era cirurgiã geral em um grande hospital da capital e, por isso,
ele passava a maioria do tempo sozinho.
Rafaela aproveitou o momento para estreitar laços e falar um
pouco da sua família também, mesmo que ela nã o fosse tã o
interessante. E, depois de uma conversa longa sobre mudanças,
comidas saudáveis e bandas de rock de gosto duvidoso, os dois foram
para a biblioteca fazer o que de fato precisavam fazer: impedir a sua
reprovaçã o em física.
O problema era que a menina bocejava tanto durante as
explicaçõ es que Bruno começava a duvidar que Rafaela estava, de fato,
aprendendo alguma coisa.
— Levando em conta que fiz metade e acertei metade, é um
grande progresso, nã o é? — Ela forçou um sorriso.
— Você nunca deve se contentar com pouco, Rafa — respondeu,
sem tirar os olhos da folha, fazendo algumas anotaçõ es em cada
questã o. — A metade nã o vai fazer você passar em física.
Rafaela bufou e cruzou os braços, deixando o corpo escorregar na
cadeira de madeira. Em pouco tempo, ela percebeu que Bruno era tã o
insuportavelmente certinho, quanto era divertido. O garoto bem que
tentava fazer tudo soar legal, mas tudo nela odiava exatas.
Quando estava prestes a proferir mais uma de suas reclamaçõ es
ao errar a fó rmula pela milésima vez naquele dia, Rafaela sentiu o
celular vibrar sobre a mesa. De canto de olho, viu o visor indicar
“Nicolas” e apertou para encerrar a ligaçã o.
Ele podia esperar.
Ou, pelo menos, achava que sim.
Alguns segundos depois, a tela acendeu novamente e a menina
rolou os olhos. Ao recusá -la pela segunda vez, viu a luz ligar e desligar
diversas vezes e puxou o aparelho para perto de si, o suficiente para ler
uma quantidade avassaladora de mensagens que diziam “atende o
celular!!!!!” subindo na barra de notificaçõ es, seguidas por mais uma
ligaçã o.
Rafaela sorriu torto e fez um pedido de desculpas silencioso para
Bruno enquanto colocava o aparelho na orelha.
— Espero que alguém tenha morrido — foi o que disse, assim que
ouviu a voz do outro lado da linha.
— Achei que tu nã o ia atender nunca!
— Nicolas…— Rafaela suspirou, passando a mã o pelo rosto. —
Estou no meio da aula de reforço.
— Ah. — Do outro lado da tela, Nicolas ergueu a sobrancelha e
balançou a cabeça, entendendo finalmente o motivo da demora para
atendê-lo. — É verdade, esqueci.
— Tudo bem. — Ela torceu a boca. — O que você quer?
— Te fazer um convite. — Sua voz era animada e, do outro lado,
Rafaela teve certeza que o ouviu se jogar na cama. Nicolas cruzou as
pernas sobre o colchã o e apoiou a cabeça em uma das mã os. — Vamos
na praia amanhã ?
Imediatamente, a cacheada fez uma careta. Nã o respondeu à
pergunta, por isso o garoto afastou o celular da orelha, só para conferir
se a ligaçã o nã o havia caído. Franziu a testa, o colocando no ouvido
mais uma vez.
— Rafa?
— Você só pode estar de brincadeira, surfista. — A mais baixa
balançou a cabeça, sem acreditar que aquele era o assunto importante.
— Jura que você me ligou pra isso? Nã o podia esperar?
— Desculpa. — Sua voz parecia sincera. — É que estamos
organizando no grupo e você sumiu.
— Sim, porque estou na aula de refor...
— Eu sei, já entendi que atrapalhei o teu encontro — ele a cortou,
fazendo Rafaela corar.
— Ei! — Ela se ajeitou na cadeira, vendo que Bruno a observava
com a sobrancelha arqueada. Torcendo para que ele nã o estivesse
ouvindo nada do que o amigo falava.
— E entã o, vai ou nã o vai?
— Que horas?
— Depois da aula.
— Eu tenho aula de reforço depois da aula.
Rafaela o ouviu bufar do outro lado da linha.
— Tudo bem, a gente te espera — ele sugeriu, ainda que aquela
nã o fosse a sua vontade.
Rafaela coçou a cabeça, pensativa. A parte boa de morar perto da
praia era poder pegar um uber até lá em um dia aleató rio da semana,
ainda mais com seus amigos. Por isso, decidiu que tudo bem passar a
tarde relaxando, pegando um sol e tomando banho de mar. Quem sabe
era disso que precisava: da maresia trazendo de volta a sua paz.
ESTUDOS CONFIRMAM que o có rtex pré-frontal é a ú ltima camada do
cérebro a amadurecer. Essa á rea é responsável pela tomada de decisã o,
pensamento crítico e, principalmente, controle de impulsos. Sendo
assim, Rafaela tinha certeza que houve uma falha em seu có rtex pré-
frontal no momento em que aceitou que seus amigos esperassem por
ela. Pior ainda, quando aceitou que Nicolas e Jaqueline fossem embora
antes, deixando Vinicius presente na aula de reforço naquela sexta-feira
de sol.
— Entã o, teu super prêmio por passar em física é assistir todos os
filmes de Star Wars? — Vinicius fez uma careta enquanto encarava a
amiga, do outro lado da mesa. Já que a esperaria, ele também precisou
almoçar com os dois. Rafaela deu de ombros, enquanto colocava uma
batata frita na boca. — Nesse caso, seria melhor tirar zero.
A menina arregalou os olhos e virou-se para Bruno, que comia a
sua salada sem dizer uma ú nica palavra. É claro que ele estava ouvindo
tudo, mas havia escolhido ignorar todas as provocaçõ es que fora
obrigado a ouvir desde que Vinicius se juntou a eles no final da aula.
— Nã o deve ser tã o ruim — Rafaela supô s, ao tentar aliviar a
tensã o.
— Eu nã o consigo ver um motivo bom o suficiente para essa ser a
comemoraçã o — ele continuou dizendo já que, assim como o outro
adolescente, ignorava a presença de Bruno, ainda que estivessem
sentados lado a lado. — Sã o só vá rios caras bons e ruins arrumando
motivo para resolver tudo na base na briga. Star Trek é mil vezes
melhor, tem histó ria.
Rafaela viu quando Bruno respirou fundo e fechou os olhos com
força. Ela nã o podia ouvir, mas o coraçã o do garoto acelerou, como se
Vinicius tivesse acabado de falar mal de um parente seu. Dessa vez, ela
quase podia ver o có rtex pré-frontal do tutor de física sendo ativado
quando o garoto de ó culos parou de mastigar, olhou para o lado e
forçou uma risada.
— Claro, lotar o pú blico de uma ciência ó bvia é muito mais
interessante do que um entretenimento atemporal que nã o precisa
encher linguiça com explicaçõ es tecnoló gicas para ser incrível —
disparou.
Na cabeça de Rafaela, um grande ponto de interrogaçã o se
formava a cada nova palavra. Era como se Bruno tivesse falado em
grego. Vinicius, por sua vez, largou o garfo ao lado do prato e virou seu
corpo, ficando de frente para ele.
— Entretenimento atemporal? — O mais alto também soltou uma
risada forçada. — É assim que falam de filmes que usam magia como
justificativa pra tudo hoje em dia?
Bruno revirou os olhos por trá s dos ó culos de grau.
— Melhor do que o sono que sinto vendo todo aquele blá blá blá
de amor, virtudes humanas e elevaçã o do ser.
— Isso se chama “explorar temas importantes e reais da vida e
nã o fazer naves espaciais explodindo sem motivo nenhum” —
argumentou, pausadamente. Uma clara tentativa de mostrar paciência,
mas Rafaela o conhecia bem. Paciência nã o parecia fazer parte de
Vinicius nos ú ltimos dias. — Me surpreende você, um cara tão
inteligente, admirar coisas tão malfeitas.
— Talvez por ser tão malfeita — ironizou, cruzando os braços —
que Star Wars é mil vezes melhor e mais popular que Star Trek.
— Popularidade nã o define qualidade.
Bruno o fuzilou com os olhos. Rafaela viu que ele estava prestes a
falar mais alguma coisa, mas sabia que se nã o desse um fim naquela
conversa logo, tudo iria por á gua abaixo.
— Todo mundo sabe que o universo da Marvel é muito melhor do
que qualquer um desses filmes aí — foi o que ela disse.
Entã o, Bruno e Vinicius trocaram olhares por alguns segundos,
antes de explodirem em risadas.
— Nã o entendi, qual a graça? — Ela franziu a testa.
— Rafinha, por favor… — Vinicius secou o canto dos olhos e
puxou o ar, tentando parar as risadas. — Você sabe que isso nã o é
verdade.
Ela abriu a boca, inconformada, mas o melhor amigo nã o deixou
que falasse e continuou:
— Mas, se tu quer perder tempo vendo filme ruim, tudo bem. —
Vinicius deu de ombros.
Bruno apenas balançou a cabeça negativamente, pegou o garfo e
voltou a comer seu almoço.
Aquele seria um longo dia.

— Odeio física — Rafaela declarou, quando Bruno explicou pela


terceira vez o que era movimento retilíneo uniforme. — Sério, eu nã o
nasci pra isso, nunca vou conseguir aprender.
Ele soltou uma risadinha antes de ajeitar os ó culos com o dedo
indicador pela milésima vez no dia.
— É só você se concentrar... — Ele apontou para o caderno, o
movendo conforme dizia: — é o movimento de um corpo mó vel em
relaçã o ao seu referencial que está em velocidade constante — repetiu,
como se aquilo fizesse total sentido. — É só usar a fó rmula.
— Eu nã o consigo decorar a fó rmula, tenho TDAH.
Bruno a olhou, a sobrancelha arqueada de curiosidade.
— Diagnosticado? — Rafaela fez que sim com a cabeça. — Por um
médico?
— O Tiktok me diagnosticou.
Ele riu e balançou a cabeça, como se aquela fosse uma piada. A
verdade era que Rafaela havia assistido, ainda naquela semana, um
vídeo onde um garoto mostrava dez sinais que comprovam que você
tem TDAH, e ela tinha todos.
— A gente pode aumentar o tempo de aula — o garoto sugeriu,
ignorando as reclamaçõ es. — Tenho certeza que com um pouco mais de
tempo você consegue tirar uma boa nota.
— Era só o que me faltava mesmo — balbuciou Vinicius, do outro
lado da sala.
Só entã o Rafaela se lembrou que ele ainda estava ali, encostado
em uma das estantes de livros da biblioteca, lendo um livro qualquer
que havia encontrado. O melhor amigo havia prometido que nã o
atrapalharia a aula, mas ela já tinha o escutado bufar alto algumas
vezes. Bruno, incomodado, torceu a boca.
— Acho que acabamos por hoje, você tem uma criança birrenta
pra levar à praia. — Ele apontou para Vinicius com a cabeça. —
Conversamos sobre as aulas depois, pode ser?
A cacheada concordou, os olhos baixos, se despedindo de Bruno,
que ainda tentou forçar um sorriso enquanto saía da biblioteca. Quando
ele nã o podia mais ser visto, virou-se para o melhor amigo com os
braços cruzados.
— Quando foi que você virou uma criança da quinta série de
novo? — Seu tom de voz era esganiçado, uma resposta à irritaçã o que
sentia. — Nã o esperava isso de você, Vini.
Como se nã o soubesse do que ela estava falando, Vinicius ergueu
as sobrancelhas e caminhou em direçã o à amiga.
— Como assim, Rafinha? — Ele soltou uma risada fraca. — Tu tá
brava comigo só porque eu nã o gosto de Star Wars?
Ela nã o pô de evitar rolar os olhos na ó rbita.
— Eu nã o tô nem aí se você gosta ou nã o de Star Wars, Vinicius. —
Rafaela balançou a cabeça. — Mas nã o precisava daquela discussã o
idiota, muito menos das indiretinhas durante a aula. Eu realmente
preciso dessa nota e ele está me ajudando muito.
— Nã o foi uma discussã o, estávamos apenas conversando.
— É claro que foi.
— Rafinha… — Vinicius colocou a mã o sobre o seu ombro e fez
um leve carinho com o dedo. Aquele fio de cabelo que sempre insistia
em cair estava posicionado no meio da testa, contrariando o restante do
cabelo que se posicionava perfeitamente sobre a sua cabeça. — Eu só
achei que deveria expor a minha opiniã o sobre esse prêmio idiota que
ele propô s.
— Eu nã o me importo com o prêmio, só quero passar em física.
— Pelo visto, ele se importa.
Rafaela suspirou e passou a mã o pelos cachos.
— Sabe o que tá parecendo?
— O quê?
— Que você tá com ciú mes.
Vinicius soltou uma risada alta e os dois ouviram um "shi" vindo
da bibliotecá ria. Pediram desculpas quase que ao mesmo tempo e
saíram a passos apressados. Enquanto andavam pelo corredor, ele a
olhou de canto.
— Nã o era ciú mes. — Ele colocou as mã os no bolso e mordeu o
interior da bochecha. — Mas Star Wars é mesmo muito ruim, tenho
certeza que tu vai odiar.

Quando o carro parou em frente à praia, os dois adolescentes


soltaram um longo suspiro ao precisar deixar o ar-condicionado para
encarar o sol forte. De longe, ela podia ver os cabelos loiros de Nicolas
brilhando, enquanto ele se alongava ao lado de uma prancha de surf. Já
Jaqueline, estava sentada sobre uma toalha, debaixo de um guarda-sol.
Ao notarem que eles se aproximavam, a dupla de loiros sorriu.
— Finalmente! — comemorou a garota, erguendo as mã os para o
céu. Seu biquíni cor-de-rosa e a pele levemente amarelada brilhavam
com o toque do sol. — Achei que o crush tivesse te roubado do Vini. —
Ela piscou e Rafaela rolou os olhos.
— Crush? — Nicolas franziu a testa, aproximando-se de Vinicius
para ajudá -lo com sua mochila.
— Ela está falando do Bruno — Rafaela explicou enquanto
procurava o protetor dentro da bolsa. Tinha certeza que havia o
colocado ali. — Mas ele nã o é meu crush, é só um amigo.
— Ainda bem — Vinicius se apressou em dizer, jogando-se sobre
a areia. Ele cobriu os olhos com a mã o para olhar para cima. — Tu
acredita que ele gosta de Star Wars?
Nicolas olhou para Vinicius como se o amigo tivesse acabado de
falar o maior absurdo da vida.
— Eca, o nerd tem mau gosto! — Ele esticou o braço, passando-o
em volta dos ombros de Vinicius. — Ainda bem que tu tava lá pra
proteger a nossa garota.
— Nic, você nem conhece o menino. Para de falar besteiras —
defendeu Jaqueline. Vendo que a amiga nã o encontrava o protetor solar,
esticou o dela, fator trinta, em sua direçã o.
Decidida a ignorar o comentá rio ofensivo, Rafaela apenas aceitou
a oferta da amiga e deixou que a mochila caísse sobre a areia fina.
Entã o, puxou a blusa do uniforme e guardou lá , passando o produto
sobre a pele clara para, depois, esticar o corpo na toalha. Com um
suspiro longo, ela cobriu o rosto com o braço, sentindo o sol começar a
queimar. O cheiro salgado do mar se misturava com o aroma do
protetor solar e fazia todo o estresse do dia se dissipar pelo ar.
Ao longe, o som das ondas quebrando quase a levou ao
relaxamento total, se nã o fosse por um vento forte que fez um
amontado de areia se espalhar sobre ela. Rafaela levantou-se e bateu a
mã o pelo corpo, na tentativa falha de se limpar. Só entã o percebeu que
apenas ela e Jaqueline estavam ali.
— A areia nã o está incomodando você? — Rafaela questionou a
melhor amiga, que continuava deitada sobre a toalha ao seu lado.
Jaqueline ergueu os ó culos de sol para olhá -la, mas precisou
franzir os olhos por conta do sol forte.
— A areia faz parte da praia e nada sobre praia me incomoda.
A cacheada riu antes de se deitar novamente ao lado dela. Depois
de mais alguns segundos de silêncio, a mais alta virou o rosto em
direçã o à amiga.
— Se eu fizer uma pergunta, você promete ser sincera na
resposta?
Rafaela a olhou de volta e assentiu.
— É claro.
— Você acha que eu sou fá cil? — perguntou rá pido, como se
estivesse arrancando um BandAid.
Jaqueline sempre foi muito confiante e, por isso, se sentia um
pouco idiota por se preocupar com o assunto ao ponto de precisar
perguntar. Ainda assim, sabia que precisava ouvir alguém que a amava
falar o contrá rio. Entã o, suspirou e usou as mã os para se apoiar e
levantar. Sentada sobre a toalha, ela direcionou seu olhar para o mar.
Rafaela a imitou, antes de questionar:
— Por que você está me perguntando isso?
Jaqueline mordeu o interior da bochecha.
— Eu ouvi alguns garotos fazendo comentá rios desagradáveis
sobre mim — explicou, os olhos agora fixados em seus pró prios pés.
— Que tipo de comentá rios?
— Que eles estavam ansiosos para ter uma conversa comigo. —
Seus ombros se encolheram. Ela precisou conter a vontade de mudar de
assunto. Cada palavra que saia da sua boca fazia se sentir mais patética.
— Porque sabiam que nã o precisavam se esforçar, sabe? Já que sou fácil
demais.
Negando com a cabeça, Rafaela se ajeitou sobre a toalha para ficar
de frente para a amiga. Nada daquilo era novidade para ela. Os
comentá rios sobre Jaqueline sempre existiram e, sempre que podia,
repreendia qualquer pessoa que falasse da amiga. Mas aquela era,
definitivamente, a primeira vez que via a melhor amiga se importar
com aquilo. Entã o, segurou uma de suas mã os, antes de dizer:
— Esses garotos sã o babacas, nã o suportam ver uma mulher bem
resolvida e que faz o que quer.
— É , mas eu realmente fico com vá rios caras — disse, torcendo a
boca. — E todos sã o tã o babacas quanto eles, você sabe disso.
Rafaela respirou fundo. É claro que sabia que Jaqueline nã o tinha
um bom tato na hora de escolher os homens que se relacionava, mas
nã o a julgava por isso. Era uma boa observadora e conseguia enxergar
os padrõ es em todos os seus relacionamentos.
Veja bem, Jaqueline foi criada com todo o luxo possível. O pai
trabalhava em um importante banco da cidade e a mã e fazia pequenas
costuras, apenas para ocupar o tempo. Apesar de sua família parecer
perfeita dentro dos padrõ es da sociedade, nos bastidores, a situaçã o era
diferente. O pai de Jaqueline era um dos homens mais machistas que
Rafaela conhecia, com um mau humor insuportável e uma falta de
sensibilidade irritante; já a mã e, se comportava mais como uma
empregada, fazendo tudo o que o marido mandava.
Quando eles se separaram, Jaqueline tinha treze anos, e Rafaela
pensou que as coisas melhorariam, mas nã o foi o que aconteceu. Dona
Mari reproduziu na filha tudo o que o marido havia feito com ela até
entã o. Ela nã o podia sair sozinha, pois, para a mã e, moças de família
nã o deveriam andar por aí. E era por isso que a amiga sempre a
acompanhava em seus encontros. Além de precisar ouvir críticas
constantes a sua aparência, personalidade e açõ es. Inconscientemente,
a menina aceitava qualquer míseria migalha de atençã o e isso, por
vezes, resultava em relacionamentos passageiros com adolescentes
babacas.
— Tudo bem, você tem um dedo um pouco podre — Rafaela
admitiu, fazendo uma risada escapar da garganta da amiga. — Mas eu
também sei que os homens nã o se esforçam para provar que nã o sã o
idiotas. E nã o tem nenhum problema se você quiser beijar vá rios deles.
Jaqueline assentiu.
— Mas também nã o tem problema se eu decidir parar, né?
A cacheada apertou mais ainda a sua mã o, sorrindo.
— É claro que nã o, você é uma mulher livre! Mas também precisa
entender que nã o precisa fazer isso por conta dos comentá rios. Tem
que ser por você.
— Certo. — Ela balançou a cabeça. — Por mim — Jaqueline
repetiu, enquanto apertava a mã o da amiga de volta. Se sentindo um
pouco melhor, a loira virou o rosto em direçã o à praia, mas logo sua
expressã o mudou. — Hum… O que está acontecendo ali?
Rafaela franziu a testa e virou o rosto na mesma direçã o em que a
amiga olhava. De longe, ela podia ver Nicolas e Vinicius conversando
com duas garotas desconhecidas. A animaçã o podia ser notada a
quilô metros de distâ ncia, o que fez o rosto das duas se contorcer em
uma careta. Quase como se pudesse ler o pensamento uma da outra,
levantaram-se da areia ao mesmo tempo, e caminharam juntas em
direçã o a eles.
— Meninos! — foi Rafaela quem chamou, sendo recebida por dois
olhares assustados.
Nenhum dos dois respondeu, entã o Jaqueline sorriu.
— Fizeram novas amizades e nem pensaram em nos apresentar?
O tom irô nico fez um arrepio subir pela coluna dos meninos, que
instantaneamente começaram a mudar de cor, tamanho nervosismo.
Uma das garotas sorriu sem graça e esticou a mã o em direçã o à loira.
— Meu nome é Jéssica — disse, apontando para a garota ao seu
lado em seguida. — E essa é minha amiga, Ana.
— Jaqueline, muito prazer.
— Nó s sabemos. — Ana riu e olhou para Vinicius, que permanecia
imó vel ao seu lado. — Sua irmã , certo?
Ele abriu a boca, mas nenhuma voz saiu dela. Vinicius mal
conseguia respirar e sua mã o suava como se tivesse acabado de
cometer um crime. O cabelo castanho estava molhado, penteado para
trá s e o rosto começava a pegar um rubor avermelhado.
— Irmã ? — Rafaela franziu o cenho, confusa. — Como assim,
irmã ?
— É claro que vocês sã o irmã os! — foi Nicolas quem respondeu,
chamando a atençã o de todos ali. Apesar de saber que permanecer na
mentira era uma ideia idiota, decidiu se manter firme a histó ria e
precisou segurar a postura quando ouviu uma risada exagerada escapar
de Jaqueline.
— Vocês estã o ficando malucos? — Ela balançou a cabeça, sem
acreditar no que estava ouvindo. — É claro que nã o somos irmã os.
Ana, que parecia ser mais velha das duas, deu um passo para o
lado, o suficiente para se afastar dos garotos. Ela passou os olhos sobre
os dois e depois pelas meninas, antes de perguntar, incrédula:
— Vocês mentiram?
— Nã o exatamente — Vinicius finalmente respondeu e a voz
trêmula e esganiçada fez Rafaela ter vontade de rir. — Somos amigos há
tanto tempo, que nos consideramos irmã os. — Ele olhou para as duas,
os olhos verdes arregalados. — Né, meninas?
— É . — Nicolas balançou a cabeça rapidamente, sem deixar que
elas respondessem coisa alguma. — Tipo, eu nã o me considero irmã o
delas, só pra deixar claro. — Ele apontou para as duas, dando uma
risadinha. — Mas Vinicius facilmente poderia ser.
— Quê? — Vinicius o empurrou com o ombro, fuzilando-o com os
olhos. — Que papo é esse, Nicolas?
— Meu Deus, como vocês sã o mentirosos. — Rafaela acabou
deixando a risada presa na garganta escapar. Ela rolou os olhos antes de
cruzar os braços. — E pior, péssimos mentirosos.
— O que mais mentiram? — Jaqueline ergueu as sobrancelhas,
mas nã o teve uma resposta.
— Com certeza, a idade — Rafaela quem respondeu, como se
houvesse escutado toda a conversa dos quatro.
— Meu Deus! — Ana exclamou, os olhando assustada. De repente,
parecia ter tido uma epifania. — Quantos anos vocês têm?
E entã o, a cena toda se desenrolou em câ mera lenta, cada detalhe
sendo exposto enquanto os dois davam passos para trá s, como se
tentassem fugir do desastre iminente — o que era impossível. Nicolas e
Vinicius ouviram um discurso muito irritado sobre mentir a idade e
sobre como, ainda que as meninas fossem apenas dois anos mais
velhas, elas eram maiores de idade e toda aquela situaçã o poderia se
tornar um problema sério. Levou cerca de meia hora para os garotos
conseguirem se recompor e começarem a explicar que só queriam um
pouco de atençã o, e nã o fazer com elas cometessem um crime.
Rafaela revirou os olhos. Tinha certeza que aquela ideia idiota
havia vindo diretamente do có rtex pré-frontal mal desenvolvido.
Sem paciência, as duas mulheres foram embora, deixando o
quarteto em um completo silêncio, enquanto todo o clima de praia e a
felicidade de uma sexta-feira de sol ia embora com o balançar das
ondas. Em comum acordo, eles também decidiram ir embora. Nenhum
deles tinha coragem de falar nada, por isso todo o caminho de volta
pareceu ainda mais longo.
Sendo assim, Rafaela aproveitou a ausência de vozes para checar
o celular. Quando o desbloqueou, franziu a testa ao notar um nú mero
que nã o conhecia na sua barra de notificaçõ es.
[15h36]
048 9987----: Peguei o seu nú mero com a secretá ria da escola, espero que nã o
se importe. Beijos, Bruno.

Ela precisou controlar a vontade de dar pulinhos de alegria e


olhou para os lados, só para ter certeza que nenhum dos amigos
prestava atençã o no sorriso que mal podia conter. Constatando que
todos também encaravam seus respectivos celulares, voltou a atençã o
para o seu e, mordendo o lá bio inferior, pensou no que deveria
responder. Poderia ser fofa, enviando algo como “Fofo da sua parte
pedir meu número, adorei! Beijinhos, Rafa”, mas soava um pouco falso;
talvez devesse ser mais descontraída e enviar um “Opa, adorei! Achei
que eu teria que te pedir o número, já que você não toma a iniciativa
hahaha”, mas parecia ousado demais. Entã o, abanou a cabeça e tentou
encontrar um meio-termo.
[17h38]
Rafaela: Sem problemas haha ;)

Uma careta surgiu em seu rosto no mesmo segundo que clicou no


botã o de enviar. Aquela era a resposta mais sem graça do mundo, mas
nã o tinha mais volta. A menina precisou aceitar que nã o era boa em
responder mensagens de caras que ela possuía uma quedinha.
Frustrada, voltou para a sua caixa de entrada, abrindo outra conversa
cheia de notificaçõ es.
[12h14]
Número Desconhecido: Bom dia!!!

[14h15]
Número Desconhecido: Tá me ignorando?

[14h57]
Número Desconhecido: Ah, lembrei. Tu tá naquela aula chata de física…

[15h33]
Número Desconhecido: Sé rio, tá tudo bem? Pelos meus cá lculos, tua aula já
deveria ter acabado fazer tempo…

[16h00]
Número Desconhecido: Fiz algo errado?

[16h44]
Número Desconhecido: Sé rio, tu tá viva???????

[17h25]
Número Desconhecido: Rafa, eu tô ficando preocupado…

Rafaela prendeu os lá bios, segurando a risada ao notar seu desespero.


[17h40]
Rafaela: Desculpa, tive um dia cheio hoje e estou voltando agora da praia.

[17h40]
Rafaela: Mas, sé rio, você deveria aproveitar a vida em vez de se desesperar
por algué m que nem conhece direito.

Ela precisou esperar um pouco até ter a resposta, e o que recebeu


fez o seu estô mago revirar.
[17h45]
Número Desconhecido: Quem disse que nã o te conheço?
— EU TOMEI A LIBERDADE de olhar sua pasta no Pinterest — Mirela
revelou, enquanto os olhos de Rafaela varriam o quarto, observando
cada detalhes. — Sei que garotas da sua idade gostam de salvar
inspiraçõ es por lá .
A cacheada estalou a língua. A madrasta era tã o intrometida que
era impossível controlar o ranço que se formava dentro de sua alma. Ela
nã o poderia, simplesmente, ter perguntado seus gostos ao invés de
invadir a sua privacidade?
— Garotas da nossa idade — corrigiu, de costas para ela. Por isso
nã o viu quando Mirela suspirou, colocando uma mecha do cabelo
comprido de cor caramelo para trá s da orelha.
— Achei a sua cara — Diego interveio, sentindo a tensã o no ar.
E ele tinha razã o.
As paredes eram de um tom de cinza-suave, transmitindo uma
tranquilidade totalmente oposta ao seu estô mago embrulhado. Uma
cama perfeitamente arrumada ocupava um canto do quarto, os lençó is
brancos com delicadas listras.
Ao lado dela, uma escrivaninha branca. Fotos emolduradas de
Rafaela com os amigos e a família, frases inspiradoras e uma estante,
ainda vazia, ocupavam o espaço, quase como uma testemunha
silenciosa da esperança de Mirela de que a garota se sentiria em casa.
Ainda assim, Rafaela encarava a decoraçã o bem-feita com certo
desconforto. Era como se, cada detalhe apenas ressaltasse o quanto
aquele lugar era estranho.
— Ficou legal. — Ela acabou dizendo, erguendo os ombros.
Querendo ou nã o, aquele seria seu lar pelos pró ximos meses e,
provavelmente, o lugar que mais frequentaria da casa.
— Que bom que gostou. — Ouviu a voz grossa invadir seus
ouvidos e virou-se depressa, surpresa. O pai nã o parecia muito
dedicado a participar do momento. Havia ficado em seu escritó rio
durante todo o tempo que Rafaela estivera ali, como sempre. Por isso,
era normal que sua voz soasse um pouco estranha aos seus ouvidos. O
homem caminhou até a namorada e passou o braço em volta dos seus
ombros. — Mirela passou a semana toda perturbando os arquitetos.
A mulher deu uma risada fraca, envergonhada, e a menina quase
gostou um pouco dela. Nã o o suficiente para nã o sentir nojo ao lembrar
que ela era apenas alguns anos mais velha que o irmã o, mas o suficiente
para nã o a odiar.
— Eu só quero que você se sinta em casa — foi o que ela disse.
Rafaela suspirou e forçou um sorriso.
— Obrigada. — Ela deu mais uma olhada no quarto, antes de
completar: — Ficou lindo.
Era notável que um peso pareceu sair dos ombros de Mirela ao
receber aprovaçã o da garota, mas todos preferiram fingir que aquele
havia sido um diá logo normal entre elas.
— Bom, nã o sei vocês — Diego quebrou o silêncio, se
aproximando da irmã e dando uma leve cutucada em seu ombro —,
mas tô morrendo de fome.
Rafaela concordou com a cabeça, encarando o irmã o. O cabelo
bagunçado e a blusa três vezes maior que ele trazia um ar de nostalgia.
Diego se comportava e vestia exatamente como quando moravam
juntos — o que podia ser estranho, ou apenas demonstrava sua
personalidade convicta e imutável.
— Infelizmente, nã o vou poder almoçar com vocês — disse o pai,
para a surpresa de Diego e Mirela. Os dois olharam confusos para o
homem que, se afastando da mulher, colocou as mã os no bolso do terno
e deu um sorriso de lado. Rafaela, por outro lado, nã o se surpreendeu
em nada. — Preciso visitar um cliente com urgência. Mas Madalena está
com a mesa posta, vocês podem aproveitar a comida boa dela sem mim.
Enquanto os dois tentavam convencer o homem a ficar, Rafaela
aproveitou o momento para checar o celular. Nã o estava contando, mas
devia ser a sétima vez, apenas naquele dia, que se frustrava com a caixa
de mensagem vazia. Desde a volta da praia, a menina esperava por uma
resposta ao ponto de interrogaçã o enviado apó s a ú ltima mensagem
que havia recebido do Nú mero Desconhecido. Uma mistura de medo e
curiosidade visitava a sua mente toda vez que ela relia o que esperava
ser mais uma das piadas de mau gosto do garoto.
Mordeu o interior da bochecha e bloqueou o aparelho mais uma
vez, soltando um suspiro enquanto caminhava em direçã o à família que,
já convencida de que o pai nã o poderia ficar, se dirigia à mesa do
almoço.

Sair da casa do pai era como finalmente respirar apó s horas sendo
sufocada. Enquanto caminhava pela orla da praia à s duas da tarde,
depois de um almoço insuportavelmente silencioso, Rafaela se
perguntava como aguentaria os pró ximos meses naquele ambiente que
parecia comprimir seus pulmõ es com tanta força.
De chinelo de dedo, sentindo a areia dura sob os pés e o sol
escaldante sobre a cabeça, ela observava o mar impró prio para banho,
desejando intensamente que fosse seguro. Queria se jogar nas ondas e
deixar o sal lavar todo o peso que carregava nos ú ltimos dias. Era
exatamente disso que precisava para renovar suas energias.
A beira-mar do centro da cidade estava sempre movimentada,
ainda mais em um sá bado ensolarado como aquele. A adolescente, com
um mau humor insuportável, sentia que todos ao seu redor estavam
excessivamente felizes. Por isso, nã o se surpreendeu quando ouviu uma
risada alta atrá s de si. Ignorando a pessoa alegre, continuou
caminhando, chutando a areia sem vontade.
Depois de alguns segundos, mais uma risada, seguida por um
assobio alto demais, pareceu rasgar os seus ouvidos, mas Rafaela
apenas rolou os olhos e enfiou a mã o no bolso, se arrependendo por
nã o levar os fones de ouvido para a caminhada.
— Vai me ignorar por quanto tempo? — A voz conhecida fez seu
rosto virar-se abruptamente.
Ao contrá rio da sua expressã o carrancuda, Nicolas sorria como se
o universo fizesse sentido. O cabelo bagunçado estava penteado para
trá s, o tom loiro brilhando com a pele comumente queimada. Era
incrível como ele tinha sem esforço o efeito avermelhado que todas as
meninas buscavam com excesso de blush.
— O que você tá fazendo aqui? — ela perguntou, o cenho franzido
em direçã o ao amigo.
Nicolas fez uma careta.
— Credo, que bicho te mordeu? — O loiro colocou as mã os na
cintura, pendendo a cabeça para o lado esquerdo.
— Desculpa. — A garota torceu a boca e passou a mã o pelos
cabelos. Sabia que estava mais reativa que o normal, mas ele nã o tinha
culpa de nada. — Vim conhecer o meu novo quarto da casa do meu pai
e estou meio… sobrecarregada de emoçõ es.
Nicolas fez um “ah” com a boca, dando alguns passos para ficar
mais pró ximo da amiga. Entã o, apontou em direçã o a uma barraca de
sucos pró xima dali.
— Acho que tu tá precisando descontrair — disse, passando o
braço ao redor dos seus ombros, andando em direçã o ao local. —
Vamos tomar um suquinho e conversar sobre outra coisa que nã o seja
sua vida complicada.
Rafaela soltou uma risadinha.
— Você nã o me respondeu o que está fazendo aqui — lembrou,
virando o rosto em direçã o ao dele. — Sua casa é para o outro lado.
Ele tirou o celular do bolso e o balançou na sua mã o.
— Tô esperando o resultado da semifinal do festival de surfe da
pró xima semana — explicou, quando já haviam atravessado a rua. Ele
se sentou em uma das cadeiras de madeira na parte de fora da barraca.
Rafaela o acompanhou, sentando-se do outro lado da mesa.
— Você acha que vai passar? — ela perguntou, puxando o
cardá pio em sua direçã o.
O loiro ergueu os ombros. Queria muito passar, mas nã o tinha
certeza.
— Os caras que competiram comigo na ú ltima bateria eram bons
— comentou, os dedos tamborilando sobre a mesa. — Tipo, nó s temos
que pegar o má ximo de ondas possíveis em vinte, trinta minutos. Mas a
pontuaçã o só vale para as duas melhores ondas. Talvez a minha nã o
seja tã o boa quanto a deles.
Rafaela assentiu, embora nã o entendesse muito bem como
funcionavam as competiçõ es que Nicolas participava. Havia assistido
algumas, mas, para ela, todas as ondas eram igualmente difíceis e
complexas. Fora os muitos detalhes envolvidos na pontuaçã o.
No caso dele, ainda eram competiçõ es amadoras. Mas ele sonhava
em se destacar o suficiente para competir nas que eram realmente
difíceis. Palavras do pró prio.
— Tenho certeza que você vai passar. — Rafaela sorriu,
incentivando o amigo. — Estaremos lá para torcer por você.
Nicolas também sorriu, mas algo nele parecia diferente. Ele
observava o cardá pio com certo desinteresse e sua perna nã o parava de
balançar embaixo da mesa. Rafaela apertou os lá bios, observando o
amigo. Estava tã o ocupada com sua vida conturbada, como ele mesmo
disse, que nã o notou que ele também poderia estar precisando
desabafar.
— Ei — chamou e ele olhou em sua direçã o. — O que tá
acontecendo?
— Como assim?
— Você tá esquisito… — constatou e o garoto ajeitou a postura. —
Sabe que pode conversar comigo, nã o sabe?
Ele passou a mã o pelo cabelo, deixando-a posicionada atrá s do
pescoço. Nicolas parecia realmente nervoso, mas Rafaela nã o disse
nada, esperando que ele mesmo tomasse a iniciativa para falar.
— Sabe quando eu te expliquei que, durante a bateria, nas
competiçõ es, os surfistas precisam fazer vá rias manobras para
impressionar os juízes? — A cacheada assentiu, ajeitando-se na cadeira.
— Algumas manobras sã o bem-sucedidas, outras nem tanto…
Rafaela franziu a testa, sem saber onde ele queria chegar.
— Tu sabe que eu tô interessado por alguém, nã o sabe?
— É … — Ela sorriu, sugestiva. — Vini me contou.
— Aquele garoto é um fofoqueiro. — Nicolas balançou a cabeça
em negativa, mas uma risadinha saiu da sua garganta. — Mas, é sério,
Rafa. Eu nã o indico esse negó cio nem pro meu pior inimigo.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Tá ruim assim, é? — Quis saber, o incentivando a falar mais.
Afinal, a ú ltima coisa que sabia veio de uma conversa ouvida à s
escondidas. O que nã o significava muita coisa, considerando que nã o
conseguiu entender do que (e de quem) eles estavam falando.
— Eu surfo desde pequeno. E, cara, eu nunca sei o que esperar do
mar. Mesmo com as previsõ es, ele pode mudar de uma hora para a
outra. — Suas mã os brincavam com o pró prio cabelo enquanto ele
parecia buscar as melhores palavras para expressar o que sentia. —
Esse negó cio de se apaixonar é pior.
— Você tá muito enigmá tico.
— Eu nã o posso te contar tudo.
— E como eu vou te ajudar?
Ele suspirou, passando a mã o pelo rosto.
— Tudo bem, eu vou te contar. Mas, usando nomes fictícios —
explicou, balançando as mã os. Ele pigarreou antes de começar: — Era
uma vez…
Rafaela fez uma careta.
— Nicolas, você bebeu?
— Que ouvir, ou nã o quer? — Ele cruzou os braços e Rafa rolou os
olhos, indicandor com a mã o que ele podia continuar. Nicolas colocou
uma mecha do cabelo loiro atrá s da orelha e sorriu. — Recomeçando:
Era uma vez, eu — disse, apontando o dedo indicado para si. — Certo
dia, eu estava observando uma garota — continuou, mas logo parou,
mordendo o interior da bochecha. — Hum… Vamos fingir que o nome
dela é Jucicleide.
— Jucioquê? — Rafaela torceu o rosto. Que tipo de nome era
aquele?
— É um nome fictício, Rafaela. — A menina fez um “ah” com a
boca e assentiu. — Só que eu nã o sou muito discreto, tu sabe… Entã o,
Vinicius meio que me pegou no flagra.
Rafaela ergueu as duas sobrancelhas. Adiantando-se, Nicolas
resolveu se explicar.
— Nã o era nada de mais, eu só estava observando a Jucicleide.
— Você tava dando uma de stalker?
Ele negou com a cabeça.
— Eu estava andando e ela estava no meu campo de visã o, foi sem
querer.
Rafaela cerrou os olhos, mas ele continuou:
— Foi aí que acabei descobrindo que ele também estava
apaixonado por alguém, mas essa histó ria tu já sabe.
— É , mais ou menos. Né?
Nicolas deu de ombros, ignorando-a completamente.
— Enfim, Vini queria que eu me declarasse, mas a ideia dele era
meio sem graça.
— Qual era a ideia? — questionou, curiosa.
— Nã o importa. — Nicolas balançou a mã o. — Eu deveria ter
confiado no meu instinto! Mas confiei no Vinicius, o que parece nã o ser
uma boa ideia nos ú ltimos dias.
Rafaela torceu a boca. Era difícil até comentar sobre o assunto,
quando tudo que sabia eram nomes fictícios e histó rias pela metade.
— Tá , e aí?
— E aí que deu tudo errado. — O loiro soltou o ar, jogando o
corpo sob o encosto da cadeira de madeira.
— O quê, exatamente, está dando errado? — insistiu.
Sinceramente, já havia desistido de conseguir alguma informaçã o
completa, mas ainda queria ajudar o amigo.
— Ah, tudo. Tudo mesmo. — Nicolas coçou a cabeça. — Quer
dizer, é difícil conquistar quem nã o quer ser conquistado.
Uma risadinha escapou de Rafaela, sem que ela pudesse conter.
Aquela era, definitivamente, uma versã o de Nicolas que ela nã o
conhecia
— Uau… Quando você virou esse tipo de pessoa?
— Que tipo de pessoa?
— Todo apaixonadinho e choramingando pelos cantos —
provocou, fazendo um movimento engraçado com as mã os. Nicolas
esticou a língua em sua direçã o, sem conter a risada.
— Falando sério agora. — Ele colocou as duas mã os sobre a mesa,
afastando o cardá pio. Só entã o a cacheada percebeu que os dois
estavam ali há meia hora, mas nã o haviam pedido nada. Nicolas
respirou fundo antes de continuar: — Será que devo desistir? Quer
dizer, vale a pena todo esse estresse?
Rafaela inclinou a cabeça, os olhos fitando o vazio enquanto
processava a pergunta. Era difícil responder quando se sabia tã o pouco,
mas ela pensou em todos os filmes de romance que Jaqueline a obrigara
a ver. Imaginou o amigo dos protagonistas e suas palavras de sabedoria.
Entã o, esticou a mã o e colocou sobre a de Nicolas, sorrindo
suavemente.
— Se você gosta tanto assim dela, nã o deveria desistir.
Os olhos de Nicolas brilharam com uma mistura de esperança e
incerteza.
— Tu acha?
Rafaela assentiu, sentindo que aquele era o conselho mais sem
criatividade do mundo. No entanto, era fá cil perceber pelo tom de voz
de Nicolas que ele buscava apenas um incentivo para continuar.
— Mas, você sabe... — ela soltou a mã o dele e ajeitou a postura,
endireitando as costas — a minha mã e nã o vai gostar nada dessa
histó ria.
Nicolas franziu a testa, mas nã o demorou muito para entender
sobre o que ela estava falando: Helena o amava e, desde que se
tornaram amigos, torcia para ele e Rafaela namorassem.
— Você todo apaixonado por outra pessoa… — Rafaela continuou,
um sorriso brincalhã o nos lá bios.
— Ela ou tu?
— Eu? — A garota arregalou os olhos, surpresa pela provocaçã o.
— Pode admitir, Rafa. — Nicolas empurrou seu ombro com a mã o,
dando uma risadinha. — Tu tá com ciú me, nã o tá ?
— Da Jucicleide? Até parece, sou mais eu. — Ela passou a mã o
pelos cabelos, um olhar de desdém iluminando seu rosto.
Entã o, uma onda de risadas invadiu o ambiente, aliviando a
tensã o e tornando tudo mais leve. Quando finalmente pararam de se
provocar, Rafaela pensou em sugerir que pedissem o suco, mas o celular
de Nicolas vibrou. Ele olhou a tela e franziu a testa.
— Minha mã e — disse, levantando-se. — Quer que eu volte pra
casa agora.
Os dois se despediram, e ela observou Nicolas sair apressado.
Mesmo sozinha, escolheu ficar por ali mais um tempo, aproveitando a
brisa do mar. Sentada à mesa, observava a imensidã o azul balançar
como em uma dança. O vento brincava com seus cachos pesados e a
iluminaçã o dos postes começava a refletir em seus olhos castanhos, que
combinavam perfeitamente com sua pele oliva.
Foi quando sentiu o celular vibrar no bolso. De repente, todo o ar
em volta dela pareceu denso. As mensagens chegavam uma atrá s da
outra, numa velocidade impossível de ser digitada.

[22h52]
Número Desconhecido: Somos amigos, certo? Já compartilhamos vá rias
coisas um com o outro, ou seja, eu te conheço muito bem.

[22h52]
Número Desconhecido: Merda, acho que minha internet falhou, minhas
mensagens nã o estã o indo!!!!
[22h57]
Número Desconhecido: Oi, testando.

[23h30]
Número Desconhecido: Teste.

[23h55]
Número Desconhecido: Essa merda nã o envia!!!

[00h30]
Número Desconhecido: Quando receber minhas mensagens, avisa.
Paralisada, Rafaela relia cada uma delas, buscando entender o que
significavam, quando o celular vibrou mais uma vez.

[16h40]
Número Desconhecido: Finalmente! Acho que meu chip tinha parado de
funcionar.
[16h40]
Número Desconhecido: Por que tu me enviou um ponto de interrogaçã o?
MESMO COM A ÚLTIMA JUSTIFICATIVA, Rafaela nã o se sentia
convencida. Depois de alguns dias, era impossível nã o se manter com a
frase fixa em sua memó ria.
“Quem disse que eu nã o te conheço?”
Era por isso que seus olhos observavam todas as pessoas que
passavam por ela, analisando cada milímetro em busca de um sinal.
Qualquer sinal. À s vezes, apenas ver o celular na mã o de algum garoto
já era o suficiente para sentir todo o seu corpo gelar e milhares de
possibilidades surgirem em sua mente.
Tentava nã o transparecer a sua insanidade enquanto atravessava
o corredor, mas ela nã o podia evitar encarar todos aqueles
adolescentes. Qualquer mínima troca de olhares a fazia desconfiar: o
garoto que esperava o ô nibus no mesmo ponto; o cara que lhe servia o
café na cantina da escola; o menino que vivia na quadra de esportes da
escola ou qualquer um que cruzasse o olhar com o dela. Naquele
momento, todos eram potenciais suspeitos.
E, nossa, eram muitos.
Rafaela nã o se lembrava que havia tantos, até existir a
possibilidade de um deles ser o autor das mensagens.
— Maldita tecnologia — murmurou, os punhos cerrados ao lado
do corpo.
Quando finalmente visualizou a porta da biblioteca, fechou os
olhos por alguns segundos, o alívio de se trancar em um local sem
interrupçõ es por alguns minutos já a invadindo. Foi quando sentiu um
baque atravessar todo o seu corpo e, em apenas alguns segundos,
estava no chã o.
Rafaela abriu os olhos, assustada. Suas mã os estavam no chã o, em
uma tentativa de aliviar a queda. Ela seguiu o corpo esguio com os
olhos, sentindo a raiva se alastrar e disposta a xingar quem quer que
estivesse ali.
— Ei! — exclamou, entredentes. — Você deveria…
Sua voz morreu quando o rosto conhecido surgiu em frente aos
seus olhos.
O garoto se abaixou, o suficiente para ficar na sua altura, e
segurou seus braços, ajudando ela a se levantar.
— Me desculpa, Rafa! — Bruno pediu, os olhos checavam se a
garota nã o tinha se machucado com a queda. — Você tá bem?
A cacheada piscou devagar, ainda assimilando. Sem ouvir uma
resposta dela, ele completou:
— Eu estava mexendo no celular e nã o te vi — explicou.
Só entã o Rafaela riu, já em pé na sua frente. Ela esfregou as mã os
umas nas outras, soltando o ar com força.
— Eu é que peço desculpas, estou uma pouco desatenta hoje.
Bruno sorriu e empurrou os ó culos com o dedo indicador.
— No que estava pensando? — ele quis saber, enquanto colocava
as mã os nos bolsos. — Na prova de amanhã ?
Ela fez uma careta antes de assentir. Mesmo que esse nã o fosse o
motivo exato, é claro que ela também estava preocupada com a prova
no dia seguinte. Por isso estava indo à biblioteca, disposta a estudar a
lista de exercícios da aula de reforço durante o intervalo.
— Fica tranquila, Rafa. Você vai se dar bem nessa. — O tom de voz
confiante quase conseguia convencer a garota. — Hoje vamos estudar
mais um pouco, eu tenho certeza que você vai chegar na média.
— É … — Ela ergueu os ombros. — Eu sei que é só o primeiro
bimestre do ano, mas nã o queria começar com o pé esquerdo.
— E nã o vai, já falei. — Bruno sorriu. — Depois dessa, você vai até
começar a achar as aulas de física divertidas.
— Duvido muito. — Ela riu, colocando uma mecha do cabelo
cacheado atrá s da orelha. — Eu me sinto como se estivesse no corredor
da morte.
Ele balançou a cabeça, empurrando de leve seu ombro.
— Você precisa parar de se depreciar — falou, repetindo uma
frase dita pelo maluco desconhecido inconscientemente. Bruno abaixou
o corpo levemente, apenas o suficiente para que ficassem na mesma
altura. — Estudamos muito nos ú ltimos dias e vamos fazer o mesmo
para as pró ximas provas. Você vai conseguir responder cada uma das
questõ es.
Ela torceu a boca. Era fá cil para ele falar. Bruno explicava tudo
como se nã o estivesse falando grego.
— É , eu vou tentar.
Bruno negou com a cabeça, os cabelos pretos e bagunçados
balançando com o movimento.
— “Faça, ou nã o faça. Tentativa nã o há .” — citou, com um sorriso
de canto surgindo em seus lá bios, a peça de metal reluzindo em sua
direçã o. — Conselhos do mestre Yoda.
Rafaela nã o pode conter o sorriso que se formou em seus lá bios.
Bruno era, de fato, um cara muito legal. E aquela nã o era uma qualidade
tã o comum dos garotos da sua idade.
— Você gosta mesmo de Star Wars, né?
Ele assentiu.
— E você vai gostar em breve.
— Você quer tanto assim que eu assista a esse filme?
— Quero. Acredite se quiser — respondeu, mas Rafaela nã o riu
dessa vez. Ao invés disso, ela franziu a testa. Bruno havia repetido outra
frase que ela havia recebido do Nú mero Desconhecido. Pela segunda
vez.
Mas aquilo podia acontecer, não podia? Ela pensou, sentindo um
arrepio percorrer a sua espinha. As pessoas falam frases iguais o tempo
todo.
— Rafa? — Bruno chamou, só entã o ela percebeu estarem muito
pró ximos um do outro. Seu cenho estava franzido e os olhos fixos nos
seus.
Rafaela deu um passo para trá s.
— Desculpa, o que foi que você disse?
— Eu disse que o primeiro sinal do fim do intervalo já tocou. —
Ele apontou para um ponto mais distante no corredor e ela notou o som
alto. — Nos vemos depois?
A garota assentiu, sem conseguir fugir das ideias mirabolantes
que surgiam na sua cabeça.
Bruno se despediu com um aceno e seguiu o caminho até sua sala
com as mã os no bolso, mas o coraçã o de Rafaela continuava martelando
no peito, com mil e um sentimentos diferentes. Uma confusã o que
parecia ter se instalado em sua consciência de uma maneira absurda.
Era como se todos os seus pensamentos corressem em círculos,
gritando e falando ao mesmo tempo, impedindo que ela chegasse a uma
conclusã o coerente.
Era angustiante — até um pouco esquisito — admitir, mas,
naquele momento, qualquer um poderia ser o Nú mero Desconhecido e
Bruno estava no topo da lista.

— Pera, esse é o teu palpite? — Vinicius perguntou, a expressã o


incrédula estampada no rosto.
— Ele repetiu duas frases! — Rafaela falou, o corpo inclinado na
direçã o dele. — Nã o pode ser só coincidência.
Tudo bem, ela parecia completamente maluca. Mas, apó s passar o
restante da aula relendo as mensagens, até que fazia sentindo. Ou
talvez, alguma parte dela desejava que fizesse.
— Até que faz sentindo. — A voz de Jaqueline chamou a sua
atençã o, fazendo seu corpo virar abruptamente em sua direçã o.
— Você acha mesmo?
Vinicius rolou os olhos.
— Tu nã o pode estar falando sério, Rafinha. — Ele balançou a
cabeça. — O cara deve ser um maluco qualquer que tá te fazendo
perder tempo com esse negó cio de mensagens.
Tudo bem, Vinicius tinha um ponto. Talvez Rafaela estivesse
apenas caindo no conto do vigá rio, ao contrá rio do que ela havia dito
que faria. Mas, ainda assim, sentia-se inclinada a investigar mais a
fundo.
— Mas ele também pode ser o Bruno. — Jaqueline ergueu os
ombros.
— Para de influenciar ela nessa loucura, Jaqueline!
— Eu nã o tô influenciando nada! — A loira gesticulou com as
mã os, enquanto ficava mais pró xima dos amigos. — Eu só to dizendo
que faz sentido.
— Nã o faz sentindo nenhum — ele disse mais uma vez.
— Aliá s… — Jaque virou o rosto na direçã o da amiga, cerrando os
olhos. — Ele me perguntou de você hoje.
Rafaela arregalou os olhos, o coraçã o errando as batidas.
— Quem?
— Bruno.
Ela arqueou as sobrancelhas, sentindo o rosto esquentar. Rafaela
precisou se segurar para nã o escondê-lo com a mã o.
— O que ele falou?
— Ele veio com um papinho estranho, perguntando a sua comida
favorita…
— Sério?
— Uhum. — Jaqueline balançou a cabeça, um sorriso sugestivo no
rosto. — Disse que vocês vã o fazer uma maratona de Guerra nas
Estrelas.
Um grunhido fez as duas adolescentes virarem o rosto, lembrando
que Vinicius ainda estava ali. Ele cruzou os braços e fez uma careta.
— Nã o acredito que tu vai mesmo assistir esse negó cio.
A cacheada colocou as mã os no bolso. A ideia de assistir a um
filme com Bruno depois de tudo que ela estava pensando, parecia quase
assustadora. O estô mago revirava apenas de imaginar a possibilidade.
— Só se eu tirar média na prova de amanhã .
— Nã o entendo como isso pode ser um prêmio — murmurou o
mais alto.
Jaqueline soltou uma risadinha.
— Sei bem o prêmio que ele quer — insinuou, fazendo o queixo
de Rafaela cair com o comentá rio.
— O que você tá querendo dizer?
— Que é claro que ele quer te beijar, Rafaela. — Ela deu um
empurrã ozinho no ombro da amiga. — Você sabe como sã o os garotos,
o filme é só uma desculpa para ficar sozinho com você
— Você está delirando.
— Uhum, claro que estou — falou, fechando os olhos e fazendo
um bico. — E se ele tentar te beijar?
— Ele nã o vai tentar.
— E se tentar?
— Nã o faz diferença, porque ele nã o vai tentar me beijar.
Disse, mas nã o tinha certeza se aquilo era verdade. Pior ainda, nã o
tinha certeza o que faria caso fosse verdade.
— Pode ser que faça diferença — Jaqueline respondeu, sorrindo.
Jaqueline tinha razã o, mas isso nã o tornava a situaçã o mais fá cil.
Pensar na identidade do garoto das mensagens, na prova, no cinema e
na viagem da mã e, que estava cada vez mais pró xima, só fazia o
estô mago de Rafaela embrulhar. Naquele momento, ela só desejava que
o universo parasse de girar por alguns segundos, o suficiente para que
ela lidasse com um problema de cada vez.
[21h30]
Rafaela: Minha mã e acabou de ir embora.

FOI O QUE RAFAELA ENVIOU, antes de enfiar o celular no bolso e


passar a palma da mã o sobre a bochecha molhada. Observava a mã e
sumir pelo corredor de embarque, e a sensaçã o era parecida com levar
uma facada no peito — uma dor constante que parecia lembrá -la a cada
segundo que ela nã o teria mais o seu principal ponto de amor e
segurança da vida.
Dizem que, antes de uma grande mudança, é normal se sentir
perdido. Mas ela nã o tinha certeza se funcionava da mesma forma
quando você já se sente perdido há um bom tempo.
— Vai dar tudo certo, irmã zinha — A voz do irmã o era baixa e
calma, respeitando o momento da irmã mais nova. Diego envolveu seus
ombros com o braço, a puxando para mais perto. — Dó i menos com o
passar do tempo.
A menina o encarava com os olhos cheios de lá grimas. Diego havia
ido embora há muito tempo, quando ainda era um adolescente, para
morar com o pai. A decisã o pareceu tã o simples na época, que era difícil
acreditar que ele tenha sofrido com isso. Ainda assim, era diferente. O
garoto e a mã e continuavam morando na mesma cidade. Já Rafaela,
precisaria pegar um aviã o caso sentisse saudade.
Por isso, preferiu nã o responder e também nã o emitiu um ú nico
som em todo o caminho de volta para a casa. Oficialmente, sua nova
casa. Caminhou pelos corredores até seu quarto com aquele
desconforto que apertava o peito. Ela jogou as costas contra a cama e
encarou o teto branco. A saudade do teto manchado e do quarto que, no
começo daquele ano, sentia que nã o a representava mais, crescia e
quase riu.
Era engraçado como a vida podia mudar em um curto período de
tempo. Como as coisas se transformam e tomam rumos inesperados.
Como, de repente, tudo que representa sua vida nã o está mais lá .

[21h55]
Número Desconhecido: Sã o Paulo nã o é tã o longe, Rafa.

[21h56]
Rafaela: Eu ainda preciso pegar um aviã o se quiser visitar ela.

[21h57]
Número Desconhecido: Ou um ô nibus. 12 horas de viagem, vendo diferentes
paisagens, pode ser até divertido.

[21h57]
Rafaela: Eu nã o sei como você consegue tirar algo bom disso.

[21h58]
Número Desconhecido: É pra isso que servem os amigos.

[21h59]
Número Desconhecido: Para ver o que o outro nã o consegue ver.

Um sorriso se formou no canto da boca da menina, que deixou um


suspiro pesado escapar. Ainda tinha aquela leve desconfiança
perseguindo sua mente, mas nã o conseguia evitar o sentimento bom
que surgia toda vez que trocavam mensagens. De alguma forma, o
maluco desconhecido havia se tornado algo pra ela — algo ainda sem
nome definido, mas, com certeza, muito importante.
[22h00]
Rafaela: Obrigada por tentar me animar mesmo quando eu estou um poço de
negatividade.

[22h01]
Número Desconhecido: Tu sabe que pode contar comigo, nã o sabe?

[22h02]
Rafaela: Uhum.

[22h03]
Número Desconhecido: Eu li um livro muito legal e tive uma ideia. Talvez
possa te animar ainda mais.
[22h04]
Rafaela: Hum... Prossiga.

[22h04]
Número Desconhecido: No livro, cada um diz um fato sobre si mesmo. Acho
que pode ser uma boa oportunidade pra gente se conhecer melhor... Que tal?

[22h05]
Rafaela: Igual o 2 verdades e 1 mentira? Que eu nunca soube o que era a
verdade e o que era mentira...

[22h05]
Número Desconhecido: Isso, só que dessa vez tu també m vai participar ;)

[22h06]
Número Desconhecido: Ok, eu começo.

[22h06]
Número Desconhecido: Minha comida preferia é lasanha.

[22h07]
Rafaela: Hum... Você já me disse isso.
[22h07]
Número Desconhecido: É , e agora tu sabe que é verdade.

[22h08]
Número Desconhecido: Tua vez.

[22h08]
Rafaela: Hum... Estou oficialmente morando na casa do meu pai e, até agora,
ele nã o trocou nem duas palavras comigo.

Rafaela apertou os lá bios. Sim, ela sabia como deixar o clima


pesado. Mas viu na brincadeira uma oportunidade de tirar de dentro de
si o que a incomodava tanto. Nã o parecia de propó sito — ou talvez ela
só nã o queria admitir que era —, mas sentia que, quando se tratava
dela, o pai sempre preferia ficar em silêncio. Como se falar fosse um
sacrifício.
[22h09]
Número Desconhecido: Nossa, Rafa. Isso é ... Horrível?

[22h09]
Número Desconhecido: Ele nã o me parece um homem muito agradá vel.

[22h10]
Número Desconhecido: E como tu tá se sentindo?

[22h11]
Rafaela: Mal, mas nã o é nada que eu já nã o esteja acostumada.

[22h12]
Número Desconhecido: Tu nã o deveria precisar se acostumar com esse
sentimento. Nã o é justo.

[22h12]
Rafaela: Muitas coisas nã o sã o justas. E tá tudo bem.

[22h13]
Rafaela: Eu só espero que as coisas comecem a dar certo em algum momento.

E ela esperava mesmo. Ainda que, desde o começo daquele ano,


muitas coisas estivessem acontecendo para convencê-la do contrá rio,
Rafaela ainda acreditava que nã o era o fim do mundo. Quer dizer, era
apenas o primeiro semestre do ano, as coisas mal haviam começado de
fato. Entã o, ela nã o estava errada em acreditar que podiam melhorar.
Ou estava?
[22h13]
Rafaela: Mas, vamos lá , sua vez: me conte algo sobre você que vá me deixar
realmente feliz.

[22h14]
Número Desconhecido: Hum.... Deixa eu pensar.
[22h14]
Número Desconhecido: Sabia que, à s vezes, quando eu tô muito entediado,
tento imaginar sua aparê ncia?

Rafaela apertou os lá bios, sentindo os pulmõ es precisando se


esforçar mais para absorverem o ar. Havia pedido algo que pudesse a
deixar feliz e nã o que causasse a sua morte. Releu a mensagem mais
uma vez e, apenas o imaginar imaginando fazia todo o seu corpo
arrepiar.
[22h14]
Rafaela: É sé rio?

[22h15]
Número Desconhecido: Super sé rio, mas nem sempre a imaginaçã o é fiel a
realidade, né ?

[22h15]
Número Desconhecido: Que tal me dar uma dica?

Ela mordeu o interior da bochecha. Apesar da proximidade, ainda


nã o tinha certeza do que podia, ou nã o, abrir sobre a sua vida. Nã o se
importava em falar sobre o seu dia a dia e seus medos, mas falar sobre a
sua aparência levava tudo a um outro nível. Um nível perigoso.
[22h17]
Rafaela: Nã o sei se é uma boa ideia.

[22h18]
Número Desconhecido: Tu ainda tem medo de mim?

[22h18]
Rafaela: Nã o é isso, só acho melhor sermos cautelosos por enquanto.

[22h19]
Número Desconhecido: Tudo bem.

[22h19]
Rafaela: Ficou chateado?
[22h20]
Número desconhecido: Nã o, tá tudo bem. Tu tem todo o direito de nã o me
falar.

[22h21]
Número desconhecido: Quer continuar a brincadeira?

[22h22]
Rafaela: Pode ser, mas nã o sei mais o que dizer. Minha vida está um pouco
chata.

[22h23]
Número Desconhecido: Tenho certeza que deve ter algo legal para contar.

Rafaela torceu a boca antes de digitar:


[22h34]
Rafaela: Tem uma coisa...

[22h34]
Número Desconhecido: Sabia! Pode falar.

[22h35]
Rafaela: Talvez tenha uma pessoa apaixonada por mim.

Silêncio.
Rafaela observou a conversa com o coraçã o palpitante, mas ele
nã o dizia nada, ao contrá rio das mensagens rá pidas que trocavam
segundos atrá s. Havia começado a digitar quando a resposta piscou na
tela.
[22h38]
Número Desconhecido: É claro que tem, eu.

Seus olhos piscavam lentamente enquanto ela lia e relia a


mensagem. Sentiu seus batimentos perderem o ritmo de novo.
[22h38]
Rafaela: Você está apaixonado por mim?

[22h39]
Número desconhecido: Como assim? Nã o é ó bvio?

[22h39]
Número Desconhecido: Quer dizer que tu nã o tava falando sobre mim?

[22h40]
Rafaela: Nã o… Eu estava falando do Bruno.

Ou talvez estivesse falando dele, caso fossem a mesma pessoa,


pensou ela. Tudo bem que parecia loucura, mas Jaqueline concordou
que nã o era uma insanidade total que aquela ideia passasse pela sua
cabeça.
[22h41]
Número Desconhecido: Bruno?

[22h42]
Rafaela: Meu colega de escola, que me dá aula de reforço de física.

[22h43]
Número Desconhecido: Ah, esse Bruno.

[22h43]
Número Desconhecido: E existe alguma chance de tu sentir o mesmo por ele?

[22h44]
Rafaela: Existe.

Quer dizer, paixã o era uma palavra forte.


Rafaela achava Bruno lindo, engraçado, inteligente e muito, muito
legal. Havia sim um certo crush, aqueles que causam um pequeno
desconforto no estô mago. Mas, paixã o? Talvez aquele nã o fosse o
sentimento certo para usar.
[22h45]
Número Desconhecido: Uau. Tu nunca me falou sobre isso antes.

[22h46]
Número Desconhecido: E que qualidades ele tem? Por favor, me diga coisas
que nã o tenham a ver com aparê ncia.
A cacheada mordeu o lá bio inferior enquanto digitava.
[22h47]
Rafaela: Bom, ele é inteligente, gentil, tem bom gosto....

[22h47]
Número Desconhecido: Uau, o mínimo pra ser um ser humano civilizado.

[22h48]
Rafaela: Isso é ciú mes?

[22h49]
Número Desconhecido: Fala sé rio, Rafaela kkkkkk

Ela franziu a testa. Podia ser apenas uma mensagem, mas era
possível sentir o deboche transbordar dela.
[22h50]
Rafaela: Ah bom, porque se estivesse... Você estaria totalmente em
desvantagem.

[22h51]
Rafaela: Eu posso saber pouco sobre o Bruno, mas nã o faço a mínima ideia de
quem você é , nã o posso nem te ver.

[22h51]
Rafaela: Nã o faria o menor sentido.

[22h52]
Número Desconhecido: Na verdade, tu pode...

Uma bola se formou no estô mago de Rafaela, que precisou reler a


mensagem algumas vezes para entender o que ele queria dizer. Seus
dedos deslizavam nervosos sobre a tela enquanto digitava:
[22h53]
Rafaela: O que você quer dizer com isso?

[22h54]
Número Desconhecido: Quero dizer que
[22h54]
Número Desconhecido: Talvez nã o seja o melhor momento para falar isso, na
verdade.

[22h55]
Número Desconhecido: Mas tu promete que vai tentar me entender? E que
nã o vai parar de falar comigo quando eu contar?

[22h56]
Rafaela: Contar o quê ?

[22h57]
Número Desconhecido: Promete?

[22h57]
Rafaela: Prometo.

Ela estava de dedo cruzado, é claro que nã o prometia nada.


[22h58]
Número Desconhecido: Eu sei exatamente como é a sua aparê ncia.

[22h58]
Rafaela: Nã o entendi.

[22h59]
Número Desconhecido: Eu menti quando disse que era difícil te imaginar. Eu
sei exatamente como tu é .

[22h59]
Número Desconhecido: Eu estudo na tua escola, Rafa.
[15h30]
Bruno: Como foi a prova?

A MENSAGEM ERA SIMPLES, mas Rafaela nã o tinha certeza de como


responder.
Nã o porque nã o sabia se havia se saído bem. Na verdade, aquela
foi a primeira vez na vida que se sentiu segura ao responder questõ es
cheias de nú meros e fó rmulas. E, apesar de querer muito responder
agradecendo, havia aquela sensaçã o esquisita. Aquela que deixava tudo
à sua volta com um certo tom de desconfiança.
Era fá cil perceber que o gatilho que arrancou a verdade do
admirador desconhecido era o garoto com piercing, mas aquilo nã o
queria dizer nada. E, se fosse sincera consigo mesma, talvez aquilo só
tivesse alimentado o ú nico palpite para a sua identidade.
— Bizarro. E tu já desconfia de alguém? — Vinicius questionou,
enquanto encarava uma parede cheia de violõ es. Ele encostou em um
da cor branca e virou-se na direçã o da melhor amiga. — O que acha
desse?
Rafaela tirou os olhos do celular para fitar o amigo.
Eram quase quatro horas da tarde de sexta-feira e os dois
caminhavam por uma loja de instrumentos musicais. Mais cedo naquele
dia, o mais alto havia convidado Rafaela para acompanhá -lo na compra
de um novo violã o já que sua mã e havia, acidentalmente, quebrado o
seu. Alimentada pela culpa, ela iria o presentear com um novo e, assim
como no seu primeiro, quando ainda eram crianças, Rafaela precisava
ajudá -lo a escolher.
— Bom, você sabe meu palpite — respondeu com sinceridade,
guardando o aparelho no bolso sem responder à mensagem. — Mas,
sendo ele ou nã o, estou meio apavorada — admitiu, caminhando até
Vinicius com calma. Seus olhos passaram pelo violã o que, apesar de
branco, possuía cordas mais escuras que as outras e alguns botõ es na
parte de cima. Ela franziu a testa ao observar os detalhes.
— É elétrico — Vinicius explicou, notando a sua expressã o
confusa. — E "meio" apavorada? Te conheço, Rafinha, tu tá muito
apavorada.
Ela cerrou os olhos em sua direçã o, antes de apontar para o violã o
que ele segurava.
— Gostei deste — falou lentamente. — E, por favor, vamos fingir
que eu só estou meio apavorada.
Vinicius deu uma risada, mas concordou com a cabeça.
Já faziam alguns dias que havia recebido aquelas mensagens e
decidiu, como uma boa quase adulta, que o melhor a fazer era ignorar.
Com certa dificuldade, ela passou os ú ltimos dias ignorando todas as
tentativas de contato do garoto, deixando que as mensagens se
acumulassem na sua caixa de entrada.
Dentro dela, tudo estava uma bagunça — e nã o era para menos:
um maluco psicopata a mandava mensagens (e ela as respondia!) há
meses, fingindo nã o a conhecer quando, na verdade, estudava na sua
escola e a via todos os dias.
Aquilo era, ou nã o era, apavorante?
Rafaela, que se considerava uma garota tã o inteligente e
profissional em vídeos true crime, havia alimentado os sentimentos de
uma pessoa que podia muito bem ser completamente fora de si. Além
disso, era quase impossível fingir que, apesar de ter um nome
ocupando o primeiro lugar da lista, nã o desconfiava até da sua pró pria
sombra.
— Por que você nã o testa antes? — ela sugeriu, tentando espantar
os pensamentos ansiosos, quando viu o melhor amigo caminhar em
direçã o ao caixa.
Vinicius parou em seu lugar e torceu a boca. Rafaela o viu coçar a
cabeça, olhando em volta. Seu cabelo castanho bem hidratado
balançando conforme ele movia o rosto para observar as pessoas ali.
— Na frente de todo mundo? — Rafa assentiu, mas ele pareceu
hesitar, encolhendo os ombros. — Tenho vergonha.
— Nã o tem ninguém aqui além dos vendedores, Vini. — Ela
empurrou seu ombro de leve e Vinicius riu, fazendo uma careta. —
Vamos lá , você precisa ver se o violã o é realmente bom!
— Nã o sei nã o…
— Por favor! Faz muito tempo que nã o te ouço cantar! — A
cacheada juntou as mã os, fazendo um leve biquinho com a boca rosada.
Vinicius, por sua vez, cruzou os braços, pressionando os lá bios para
segurar a risada. Para ele, era quase impossível dizer nã o para a amiga
quando seus olhos brilhavam daquele jeito, feito o gato de botas.
— Além do mais, você tá me devendo essa.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Devendo?
Rafaela fez que sim com a cabeça.
— Por todo o estresse que tem me feito passar com o seu mau
humor.
Dessa vez, o garoto nã o segurou a risada.
— Eu nã o estou mal-humorado, Rafinha — disse, tocando o seu
nariz com o dedo indicador. — Sã o os hormô nios da adolescência.
— Eca! — Rafaela fez uma careta. — Será que você pode parar de
falar dos seus hormô nios e cantar pra mim?
Vinicius a fitou com uma expressã o engraçada por alguns
segundos. Olhou em volta mais uma vez, dando-se por vencido, soltou o
ar e assentiu.
— Tudo bem, tem alguma sugestã o? — questionou, enquanto
andava em direçã o a um banco no centro da loja. Ele se sentou e ajeitou
o violã o sobre a perna. Depois, bateu com a palma da mã o sobre o
espaço sobrando ao seu lado.
— Pensei em algo, mas é meio velho — a mais baixa avisou,
enquanto se sentava ao lado dele.
Vinicius arqueou as sobrancelhas.
— Quã o velho?
— Velho tipo... 2015.
Ele ergueu os ombros.
— Bom, qualquer coisa que tu escolher vai fazer com que essa
cena se pareça com o Ken cantando para a Barbie no filme, entã o tudo
bem.
Rafaela soltou uma gargalhada. Talvez, para as pessoas à sua volta
— que totalizavam dois vendedores e uma senhora que havia acabado
de entrar na loja — pudesse até parecer que aquele era apenas um
garoto com um violã o, tentando chamar a atençã o de outra garota, mas
ela sabia que nã o era verdade. Vinicius tinha um dom e Rafaela amava
vê-lo cantar desde que se entendia por gente. Jamais seria apenas um
cara. Era seu melhor amigo talentoso e ela iria, com toda certeza,
prestar atençã o em cada nota que sairia daquele violã o
— Entã o… Que tal cantar Tiago Iorc? — Um sorriso sugestivo
surgiu em seus lá bios.
— Credo. — Ele balançou a cabeça. — Nã o acredito que tu vai me
fazer cantar isso.
— Ei, ele é ó timo! — Rafaela empurrou seu ombro mais uma vez e
Vinicius deixou escapar uma risada.
— Eu nã o disse que o cara é ruim, é só muito… meloso. — O
garoto fez uma careta, mas já começava a dedilhar algumas notas no
violã o.
— Anda logo, canta aí.
— Mas tu nã o escolheu a mú sica…
Ela suspirou e mordeu o interior da bochecha.
— Hum… Amei te ver.
O mais alto sorriu de canto, mas antes que pudesse insinuar mais
alguma coisa, Rafaela cruzou os braços e fingiu estar brava. O garoto
deu mais uma risada antes de iniciar os primeiros acordes.
Fazia algum tempo que nã o tocava aquela mú sica, mas ainda se
lembrava de quanto fora obrigado a aprender. Ele costumava tocar em
todo lugar e, apesar de ser apenas uma criança na época, tinha no
violã o sua arma para chamar a atençã o das meninas.
— Ah, quase ninguém vê. — A voz dele ecoou, criando um eco
levemente acú stico por conta da loja vazia. — Quanto mais o tempo
passa, mais aumenta a graça em te viver. — Vinicius fechou os olhos
verdes, e suspirou antes de cantar o pró ximo verso. — Ah, e sai sem eu
dizer. Tem mais no que te mostro, não escondo o quanto gosto de você.
Rafaela apoiou o braço sobre a perna e encostou o queixo na mã o,
sorrindo. Era sempre uma surpresa o quanto a voz do melhor amigo era
linda.
— O coração dispara, tropeça, quase para. Me encaixo no teu
cheiro, e ali me deixo inteiro — continuou ele, alheio ao resto do mundo.
Era apenas Vinicius, o violã o e o olhar de admiraçã o que Rafaela
mantinha fixado em si. — Eu amei te ver, eu amei te ver, eu amei te ver.
Quando voltou a dedilhar apenas o instrumental, Vinicius abriu os
olhos, encontrando os seus. O adolescente arqueou as sobrancelhas,
esperando uma confirmaçã o de que estava indo bem. Rafaela fez um
sinal de positivo com a mã o e ele sorriu, antes de os fechar novamente.
Preparou-se para cantar o pró ximo verso, mas mal teve tempo de abrir
a boca, quando uma voz feminina fez com que o som do seu vilã o
parasse abruptamente.
— Ai, meu Deus! — Vinicius sentiu o corpo formigar ao mesmo
tempo em que o cérebro precisou assimilar que aquela era mesmo a
voz de quem ele estava pensando ser. — Eu jamais esqueceria essa voz!
Ele piscou os olhos devagar, quase como se quisesse ter certeza de
que a imagem que se formava na sua frente era real.
— Letícia? — A sua voz saiu sussurrada e ele pigarreou antes de
se levantar do banco de uma maneira um pouco desajeitada. — Nossa…
— soltou, parecendo nã o entender exatamente o que acontecia. —
Quanto tempo.
Rafaela continuava em choque, com as mã os apertando o banco
ao lado do corpo. Ela fechou os olhos e contou até três na sua cabeça,
buscando todo o controle que nã o sabia se tinha. Mesmo com o passar
do tempo, ainda podia sentir a raiva percorrer todo o seu corpo só de
ouvir o som daquela voz irritante.
— Muito tempo. — Letícia abriu um sorriso branco. Foi quando
notou que a menina nã o usava mais seus aparelhos coloridos nos
dentes. Seu cabelo, porém, continuava com o mesmo brilho de quando
eles eram crianças. — Você tá tã o… bem! Nã o me lembrava de ser tã o
alto.
Rafaela deixou escapar uma risada irô nica e só entã o a menina
notou que ele nã o estava sozinho.
— Rafaela, nossa! — Leticia sorriu sem jeito, colocando a mã o
sobre a boca. — Eu nã o tinha te visto aí. Adorei seu cabelo!
A cacheada passou a mã o por eles e se limitou a sorrir. Letícia, por
sua vez, voltou a olhar para o ex-namorado.
Muito tempo havia passado, aquele era um fato incontestável.
Apesar disso, Vinicius ainda se sentia como aquele garoto e, se fechasse
os olhos, podia ver a cena que mudou a sua vida completamente se
desenrolar na sua frente.
— E como você está ? — Ela quis saber, a respiraçã o pesada
denunciando que Vinicius nã o era o ú nico nervoso naquele momento.
— Legal encontrar vocês aqui.
— Estou ó timo — foi o que conseguiu responder.
Leticia sorriu.
— Que bom! E vocês ainda estudam no…
— Aham — ele responde, antes que ela sequer terminasse a
pergunta.
— E o Nicolas e a Jaque, eles…
— Estã o perfeitamente bem — interrompeu-a novamente,
cruzando os braços sobre o peito.
Letícia parecia sem graça, e nã o era para menos. Ao contrá rio da
empolgaçã o na sua voz, tudo que ela recebia era um tom frio, distante.
Rafaela se levantou e ficou ao lado dele. Parecia muito menor
quando estavam assim, lado a lado. Por isso, a morena precisava
abaixar o olhar toda vez que mudava a pessoa que encarava, o silêncio
tomando conta do lugar.
— Tudo continua na mesma, entã o — ela concluiu, meio sem
jeito.
— Algumas coisas, eu acho — Vinicius falou, o olhar fixo no dela.
— Outras mudaram completamente.
— Você nã o guarda má goas, entã o? — Ela acabou perguntando,
mudando o peso de uma perna para a outra.
Rafaela quis rir, mas segurou à vontade para ouvir a resposta do
melhor amigo. Era difícil nã o guardar má goa quando você é um pré-
adolescente traído pela namorada, mas Vinicius tentava odiá -la um
pouco menos a cada dia que passava. Já ela, como uma boa melhor
amiga, nã o fazia a mínima questã o, e a odiava com tudo que tinha de si
— afinal, foi ela quem o ouviu chorar por horas apó s o fatídico dia.
— Tem motivo pra isso? — O garoto riu, surpreendendo até
mesmo a mais baixa, que ergueu as sobrancelhas. — Tu foi a primeira
pessoa a partir meu coraçã o, mas éramos crianças. Guardar má goas nã o
vai me levar a lugar nenhum.
Letícia suspirou e prendeu os lá bios, piscando lentamente.
— Que bom, Vini. — O sorriso em seu rosto nã o parecia
verdadeiro. Ao contrá rio, traziam um ar de desconforto. — Eu me
arrependi, se isso faz alguma diferença.
Vinicius franziu o nariz.
— Hum, nã o faz. — Ele suspirou, erguendo os ombros. — Mas
tudo bem.
Surpresa, ela abriu a boca e fechou algumas vezes, em choque
pelo que acabara de ouvir. Deixou o ar sair do pulmã o com força, antes
de concordar com a cabeça, a animaçã o do início da conversa
desaparecendo completamente.
— Eu vou indo, entã o. — Leticia apontou para a porta, já se
afastando deles. — A gente se vê.
Vinicius torceu a boca.
— Eu espero que nã o.
Leticia apertou os lá bios mais uma vez, antes de dar as costas
para a dupla, que ficou em silêncio até que ela atravessasse a porta. Só
entã o Rafaela se permitiu soltar uma risada — quase que diabó lica —
olhando para o melhor amigo.
— Uau! — soltou, impressionada. — Esses hormô nios
adolescentes te mudaram mesmo.
Vinicius nã o respondeu, apenas caminhou até o banco e pegou o
violã o que havia depositado ali. Depois, virou-se para a melhor amiga.
— Vou levar o branco — informou, erguendo-o. — O que acha?
— Acho ó timo — Rafaela respondeu, sorrindo.
Ele sorriu de volta, enquanto apoiava o braço em seu ombro, a
empurrando em direçã o ao caixa. Vinicius cantarolava baixinho
enquanto a cacheada o observava, em completo choque. Ainda
precisava se acostumar com o novo Vinicius, mas precisava admitir: a
sua nova versã o nã o era tã o ruim assim.
— E COMO FOI A PROVA? — A pergunta surgiu novamente, desta vez
vinda da mã e, do outro lado da tela do celular.
Era assim que Rafaela havia sobrevivido à semana anterior:
videochamadas com a mã e, enquanto comia uma barra de chocolate
meio amargo. Infelizmente, as conversas nã o eram tã o longas quanto
gostaria, e a menina tinha a sensaçã o esmagadora de nã o ter
aproveitado esses momentos quando as duas moravam juntas.
Foi quando percebeu que o ditado: “Só se dá valor a algo quando
perde” era verdade.
— Fui bem — respondeu, com menos animaçã o do que deveria,
erguendo os ombros. — Tirei oito.
Surpresa, Helena ergueu as sobrancelhas, ajeitando-se no sofá .
Rafaela percebeu que a raiz cacheada da mã e começava a aparecer, com
alguns fios brancos.
— Oito é incrível! — Ela levantou um dos braços com um sorriso
estampado em seu rosto. — Por favor, agradeça esse menino que te
ensinou física, ele fez um milagre.
Rafaela precisou forçar um sorriso.
— Eu fiz a prova sozinha, ok? — brincou.
— Você sempre fez as provas sozinha, minha filha — a mã e
lembrou, antes de completar: — E sempre tirou notas baixas.
Ela até daria uma risada, se nã o fosse a bola de nervosismo que
ocupava sua garganta, causando um desconforto angustiante.
Era ó bvio que Rafaela era grata a Bruno. Ele nã o era apenas muito
inteligente, mas também a havia incentivado a nã o desanimar até o dia
da prova. O problema real morava na sua cabeça e na ideia fixa de que
ele era o Nú mero Desconhecido.
Tudo piorava quando se lembrava de que era sá bado: o dia de
receber seu prêmio. Prêmio este que, devido a toda a situaçã o, parecia
mais um presente de grego.
— Preciso desligar agora — a mã e avisou, torcendo a boca. —
Tenho uma reuniã o importante.
— Tudo bem — Rafaela respondeu, ouvindo o trinco da porta
chacoalhar. Levantou-se da cama onde estava deitada e caminhou até a
porta enquanto dizia: — Até a pró xima, dona Helena.
Apó s ouvir a mulher se despedir, ela destrancou a porta, dando de
cara com Mirela. Ao contrá rio dela, que continuava de pijama desde a
hora que abriu os olhos, a madrasta estava impecavelmente arrumada.
Um vestido justo e preto destacava seu corpo, os cabelos cor de
caramelo caíam perfeitamente em ondas sobre os ombros e seu rosto
maquiado, mas bá sico, ressaltava sua juventude de forma assustadora.
Era muito estranho associar aquela imagem à de uma madrasta,
mas Rafaela precisaria se acostumar em algum momento.
— O almoço está pronto — avisou. Depois, deu um suspiro
nervoso. — Seu pai precisou sair para almoçar com alguns clientes e
seu irmã o também tinha um compromisso. — Mirela juntou as mã os
em frente ao corpo. — Seremos só eu e você hoje.
Os lá bios de Rafaela formaram uma linha fina. Ainda nã o havia
ficado sozinha com Mirela. Diego sempre conseguia quebrar o clima
pesado que havia entre elas, o que a fazia ter medo do resultado
daquele almoço.
— Tudo bem.
— Se você preferir, pode almoçar no quarto — sugeriu, mas seu
rosto nã o parecia querer que isso acontecesse.
Rafaela negou com a cabeça.
— Tudo bem, mesmo — repetiu, abrindo mais a porta. Ela sentiu
a mais velha observando seu pijama de bolinhas enquanto as duas
atravessavam o corredor, mas ignorou.
Ao se sentar, a menina passou os olhos sobre a mesa
cuidadosamente posta, com um prato de estrogonofe de frango que
exalava um cheiro irresistível. Aquela era a sua comida favorita.
— Eu que fiz — Mirela informou, servindo seu prato. — É a minha
especialidade.
— Nã o sabia que você cozinhava. — Suas sobrancelhas estavam
arqueadas.
— Eu gosto muito de cozinhar. — Ela sorriu. — No meu primeiro
encontro oficial com seu pai, fiz uma pizza caseira incrível.
A menina nã o sabia o que tinha mais dificuldade de imaginar:
Mirela, com todo o seu porte de menina rica, fazendo pizza caseira, ou
seu pai, sempre sério, em um encontro. Mas mais estranho ainda era
identificar um certo brilho nos olhos da madrasta enquanto falava
sobre aquilo.
— Você gosta mesmo dele, nã o gosta? — Rafaela perguntou, o tom
de voz demonstrando que a constataçã o era uma surpresa.
Quando soube que o pai estava, nã o apenas namorando, mas
morando com uma garota poucos anos mais velha que Diego, Rafaela
surtou. Nã o tinha certeza qual era o sentimento, mas com certeza se
tratava de uma mistura de raiva, rancor e nojo. O que um homem velho
daqueles queria com uma garota mais nova? Ela se perguntava.
É claro que Mirela era maior de idade e podia gostar de homens
mais velhos. Mas a adolescente nã o podia ser julgada por imaginar que
se tratava de puro interesse mú tuo. O dinheiro, da parte dela, e o ego
masculino, da parte dele.
Por isso, por muito tempo nutriu um sentimento sincero de puro
desgosto pela madrasta. Evitava qualquer tipo de diá logo, o que era
fá cil considerando que precisava passar pouco tempo com o pai. Agora,
depois de todo o esforço para fazê-la se sentir em casa, Rafaela nã o
achava que o sentimento continuava sendo justificável.
— Eu gosto mesmo dele. — Foi o que ela respondeu com um
sorriso tímido nos lá bios. — Sei que ele nã o é o melhor pai do mundo e
nó s já conversamos sobre isso. — A surpresa nos olhos da adolescente
era evidente. — Seu pai gosta de você, Rafa, ele só é... complicado.
Rafaela engoliu em seco. Sim, ele era muito complicado. Mas o
choque maior era descobrir que a madrasta intervinha por ela. Sentiu a
culpa por tê-la odiado por tanto tempo crescer dentro de si.
— Obrigada — falou, colocando comida na sua colher. Antes de
comer, ela olhou para a madrasta, que já a observava. — Por ser legal
comigo.
Mirela sorriu.
As duas nã o conversaram muito durante o almoço, mas aquela
conversa havia sido o suficiente para elas entenderem que as coisas
seriam mais agradáveis dali pra frente.

Suas pernas balançavam freneticamente, enquanto as mã os


apertavam o estofado do sofá grande e confortável. Virando o rosto com
ansiedade, Rafaela observava cada canto daquela sala de estar: os
quadros coloridos por todos os lados, o tapete felpudo no chã o, os
instrumentos musicais nas paredes e a televisã o enorme à sua frente.
Nada ali a lembrava de Bruno, ainda que fosse a sua casa.
[14h30]
Rafaela: E se eu for embora?

Foi a mensagem que enviou para Jaqueline enquanto esperava a


pipoca ficar pronta. Tirou acima da média na prova de física e por isso
estava ali, na casa de um garoto que havia conhecido há poucos meses,
esperando para assistir um filme que só de ver o título sentia sono.
Talvez toda a situaçã o fosse menos desconfortável se o garoto em
questã o nã o fosse o top um da sua lista de suspeitos — pior ainda, se
nã o fosse o único.
Decidir nã o falar com o autor das mensagens nos ú ltimos dias
havia sido uma boa ideia, mas deixava tudo ainda mais desesperador.
Para aliviar a tensã o — ou aumentá -la ainda mais —, Rafaela lia e relia
as mensagens que haviam trocado durante todos aqueles meses. À s
vezes, buscando uma dica da sua identidade, outras por pura saudade
(o que a fazia parecer completamente louca, entã o gostava de fingir que
essa razã o nã o existia).
[14h31]
Jaqueline: Enlouqueceu?

[14h31]
Jaqueline: Você nã o pode fugir agora.

[14h32]
Jaqueline: Aproveite o filme e a pipoca (e o Bruno, rsrsrs)

Rafaela soltou um suspiro pesado, guardando o celular no bolso,


quando ouviu o barulho de pés descendo as escadas. Forçou o sorriso
quando o viu segurando dois copos grandes e um balde de pipoca.
— Particularmente, minha pipoca é maravilhosa — Bruno avisou,
entregando o pote a ela. — Aprendi muitas coisas com os meus bicos no
cinema.
— Deve ser incrível — respondeu Rafaela, aceitando o balde com
um leve sorriso. Entã o apontou com a cabeça para o moletom do amigo,
cerrando os olhos em tom de brincadeira. — Você nã o me avisou que
era pra vir a cará ter.
Bruno franziu a testa e olhou para baixo, observando o pró prio
moletom com uma expressã o de leve surpresa, quase como se tivesse
acabado de perceber o que estava vestindo. O garoto usava um
moletom branco, com um dos personagens do filme, aquele verde e fofo
que, por algum motivo, Rafaela sabia que se chamava Baby Yoda.
— Ah, é uma tradiçã o. Eu nã o consigo assistir Star Wars sem usar
isso — explicou, rindo, entregando para ela um copo grande de
refrigerante. Bruno fez um gesto amplo com a mã o, enfatizando a
importâ ncia do traje.
Ela também riu e esticou a mã o para pegar o copo, o sorriso ainda
presente em seus lá bios.
— Refrigerante para você, á gua para mim — disse, acomodando-
se ao seu lado no sofá . Ela se ajustou com um movimento suave,
tentando relaxar. — Preparada para a melhor experiência da sua vida?
Rafaela colocou uma pipoca na boca e ergueu os ombros, o queixo
ligeiramente levantado enquanto tentava manter a compostura.
— Nã o tenho certeza — falou, oferecendo a pipoca para ele, mas
Bruno se limitou a fazer um sinal negativo com a mã o, desviando o
olhar para a TV com uma expressã o de foco.
— Eu fiz com ó leo, porque imaginei que você gostaria mais —
disse Bruno, enquanto pegava o controle remoto segurando com
firmeza. — Por isso vou ficar só na á gua mesmo.
A cacheada torceu a boca, inclinando a cabeça para o lado em um
gesto de curiosidade.
— Você vai assistir ao filme só tomando á gua?
Ele assentiu.
— Ah, e sobre o filme. — Bruno a olhou, com um sorriso. — Você
vai amar, prometo.
Rafaela também sorriu, mas franziu a testa ao encarar a televisã o,
seus olhos seguindo os movimentos na tela enquanto tentava entender
o que estava acontecendo.
— Por que vamos começar pelo quatro?
O garoto deu uma gargalhada que fez seus ombros se sacudirem.
Ajeitando os ó culos com o dedo indicador, seu olhar passou de Rafaela
para a TV.
— O primeiro filme lançado foi o episó dio quatro — respondeu,
se inclinou um pouco para frente, colocando os braços sobre os joelhos.
— Dizem que, para a tecnologia da época, era melhor começar por esse.
O episó dio um só foi lançado vinte e dois anos depois.
A menina fez uma careta.
— Quer dizer que as pessoas esperaram vinte e dois anos para
descobrir o começo da histó ria?
— É , tipo isso. — Bruno balançou a cabeça, concordando. — Você
vai entender tudo com o tempo.
Ela ergueu as duas sobrancelhas e pegou mais uma pipoca,
observando-o com um olhar cético.
— Você está tã o confiante assim que vou conseguir assistir todos?
— Eu confio no meu gosto para filmes, só isso. — O tom de
certeza era tã o firme que Rafaela quase acreditou. — Enfim, podemos
começar?
Ajeitando-se no sofá , assistiu, com o má ximo de atençã o que
conseguia, os primeiros cinquenta minutos em completo silêncio. Nã o
que realmente estivesse gostando, mas Bruno estava tã o concentrado
que Rafaela temia interromper a experiência.
De repente, o gosto da pipoca começou a embrulhar seu
estô mago, o canto da sua boca doía de tanto que o mordia e sua perna
mexia descontroladamente. Por vezes, sentia os olhos castanhos de
Bruno a observando, embora seu foco principal fosse a tela que ele já
havia visto um milhã o de vezes.
— Que foi? — perguntou, sem desviar a atençã o da TV.
— Nada. — Rafaela deu de ombros, tomando mais um gole do
refrigerante. — Mas eu meio que detesto esse cara.
Bruno franziu a sobrancelha, virando-se em sua direçã o com uma
expressã o confusa.
— Que cara?
— Darth Vader e esse papo de “Vou conquistar a galáxia, blá blá,
vou explodir todo mundo que não concorda comigo”. — Ela estalou a
língua e balançou a cabeça em um gesto de desdém — Tipo… Que
chatice — reclamou, soltando o ar com força e cruzando os braços com
uma expressã o frustrada. — E esses dois, Luke e Leia? Todo mundo já
percebeu que eles se gostam, por que nã o ficam juntos logo?
Bruno a fitou por alguns segundos, antes de explodir em risadas.
Rafaela apertou ainda mais os braços cruzados, os olhos piscando de
impaciência.
— Qual a graça?
— Você definitivamente precisa ver o resto — ele disse, ainda
rindo.
Rafaela revirou os olhos e se afundou no sofá , escorregando as
costas pelo encosto. As cenas de luta a deixavam sonolenta, precisando
de forças para manter os olhos abertos.
— Você está odiando — afirmou, com um tom que nã o era
exatamente uma pergunta. Ela virou o rosto para evitar a visã o direta
dele e forçou um sorriso.
— Ó dio nã o é a palavra certa. — Soltou uma risada fraca,
balançando a cabeça. — Mas, assim, só para saber: o que mais você
gosta de fazer além de ver filmes chatos? — Rafaela pigarreou,
colocando a mã o em frente à boca. — Quer dizer, filmes ó timos.
Bruno balançou a cabeça, os cabelos escuros se mexendo junto ao
movimento, um sorriso brincando em seus lá bios.
— Você quer saber isso agora? — A garota assentiu, piscando os
olhos e se ajeitando no sofá para ficar de frente para ele, com um olhar
curioso. — É , você odiou mesmo.
A cabeça dela caiu para a esquerda, com um olhar pensativo.
— Eu nã o odiei. Só é meio… — Ela parou um segundo, procurando
a melhor palavra para descrever seus sentimentos. — Cansativo.
— Tudo bem, um dia eu supero que você odiou meu filme favorito
— dramatizou, colocando a mã o no coraçã o em um gesto exagerado,
antes de dar uma risada. — Ok, vamos ver… O que mais eu gosto?
Hum… — Bruno entortou a boca, pensativo, enquanto pausava o filme.
Ele coçou a cabeça e entã o arqueou a sobrancelha. Levantando-se do
sofá , foi até uma gaveta no hack da TV. Rafaela o seguiu com o olhar,
observando cada movimento com interesse.
Quando voltou para o sofá , estava com vá rias folhas em mã os. Se
acomodou ao lado de Rafaela, fazendo com que seus braços se
tocassem.
— Quando eu nã o estou estudando ou assistindo meus filmes
favoritos, que, a propó sito, sã o ó timos. — Ele a olhou de lado. — Eu tiro
algumas fotos.
Passando pelas imagens lentamente, inclinou as fotos em direçã o
à amiga, que se inclinou para mais perto, observando com atençã o cada
uma delas.
— Uau! — Ela aproximou mais o rosto, estudando-as com uma
expressã o de admiraçã o. Eram fotos de lugares aleató rios, mas cada
uma parecia capturar a essência desses lugares de uma maneira
especial. — E você planeja seguir carreira?
Bruno balançou a cabeça, negando, o sorriso permanecendo no
rosto.
— É só um hobby.
— É . — Rafaela sorriu, entendo o que ele queria dizer. — Nem
tudo que a gente gosta precisa virar trabalho.
Continuou observando com interesse, fazendo perguntas e
recebendo respostas empolgadas. Estava adorando descobrir como
Bruno via o mundo e toda a felicidade que transbordava ao explicar
cada uma delas.
Até chegarem em uma imagem que fez todo o seu corpo parar.
Seus olhos dançavam sobre cada detalhe, formando um nó em sua
garganta.
Bruno havia acabado de dizer que só tirava fotos de lugares que
tinham algum tipo de importâ ncia na sua vida. Era o parque aonde ia
com o pai; a praça onde seu avô jogava dominó aos domingos; o
shopping onde a prima de cinco anos adorava passear.
E entã o, o ponto de ô nibus.
— Por que você tirou foto do ponto de ô nibus? — perguntou, a
voz tremendo ligeiramente enquanto evitava encarar Bruno
diretamente.
O adolescente levou um tempo para responder, o olhar fixo na
imagem, como se buscasse as palavras certas.
— Bom… — começou, trazendo a foto para mais perto dele. — Me
parece um lugar com bastante histó ria — respondeu, entortando a
boca. — Com muitas informaçõ es, sabe?
Rafaela franziu a testa, o coraçã o batendo forte no peito.
— Que tipo de informaçõ es?
— Eu nã o sei. — Mordeu o interior da bochecha, antes de voltar o
olhar para Rafaela. — Provavelmente vá rias.
— Mas qual o significado pra você? — insistiu, o tom de voz fino,
quase desesperado.
Bruno apertou os lá bios.
— Eu gosto de lugares com histó rias.
— Qual seu signo? — A pergunta saiu da sua boca sem que
pudesse ao menos controlá -la.
Confuso, Bruno soltou uma risada fraca.
— Eu nã o acredito nessas coisas, Rafa — explicou, sem entender o
porquê da pergunta repentina.
— Nã o foi isso que perguntei.
Ok, Rafaela parecia uma maluca. Mas nã o era para menos. Toda
aquela histó ria, somada à s suas nóias, estavam causando um tornado
dentro dela.
Bruno riu mais uma vez e parou de olhar a foto para a encarar, só
entã o notando o quanto estavam pró ximos.
— Peixes.
O coraçã o da garota, que quase já nã o tinha mais controle, pulou
do peito. Era impossível raciocinar corretamente, muito menos tomar
decisõ es sensatas naquele momento.
— E o seu? — ele perguntou depois de um tempo.
— É … — Ela piscou devagar, tentando recuperar os sentidos. —
Aquá rio.
Bruno sorriu.
— Eu ainda nã o acredito nessas coisas, mas isso significa que a
gente combina, né? — Quis saber, sem tirar os olhos dos seus. — Tipo,
peixe no aquá rio, e tal.
Rafaela abriu a boca para responder, mas a fechou imediatamente.
Nã o conseguia formar uma frase sequer. Era como se, na sua cabeça,
vá rias vozes falassem ao mesmo tempo, e fosse impossível escolher
qual ouvir.
Como se fosse impossível tomar uma decisã o sensata.
Foi entã o que o beijou.
RAFAELA PODERIA CITAR um milhã o de sensaçõ es que Bruno causava
ao seu corpo, mas, definitivamente, nã o estava apaixonada.
Sabia disso porque, embora um arrepio percorresse todo o seu
corpo enquanto o beijava, o sentimento avassalador nã o o
acompanhava. Mesmo assim, segurava a sua nuca com força enquanto
tentava assimilar tudo que havia acabado de descobrir.
Tinha a certeza de que ele poderia fugir a qualquer momento e
por isso nã o pretendia parar até que Bruno também parasse. Enquanto
estavam ali, envoltos por sensaçõ es agitadas, ele nã o era simplesmente
o seu professor bonitinho de física. Ele era o cara que ela trocava
mensagens diariamente; o cara que sabia seus segredos mais
profundos; o cara que a conhecia de verdade.
Em um primeiro momento, Bruno havia paralisado, em choque
pela atitude inesperada da garota, mas nã o precisou de muito para
retribuir o beijo. Agora, ele segurava a sua cintura com delicadeza
enquanto passava a mã o levemente pelos seus cachos. Rafaela nã o
sentia borboletas no estô mago, mas, de certa forma, todas as aulas de
física serviram para que os dois tivessem algum tipo de química.
E, claro, tinha o piercing.
Ah, o piercing.
Rafaela arfou. Toda vez que o metal raspava em sua boca, um
choque invadia a sua alma. Ela tinha certeza que poderia fazer aquilo
mais vezes — com sentimentos, ou nã o. Por isso, apertou a mã o que
segurava seus cabelos e o trouxe mais para perto. Em resposta, Bruno
envolveu a sua cintura com mais força e o beijo tornou-se rá pido, com
mordidas e suspiros soltos involuntariamente.
Era impossível dizer quanto tempo estavam ali, mas suas
respiraçõ es começaram a ficar ofegantes. Quando pararam, as testas
estavam coladas e nenhum dos dois ousou abrir os olhos. Apenas
continuaram ali, buscando recuperar o fô lego perdido.
— Você… — Rafaela puxou o ar com força, o peito subindo e
descendo. — Poderia ter me dito antes.
Bruno deu uma risada fraca e passou o polegar na sua bochecha.
— Como assim? — Sua voz era um sussurro abafado e ela sorriu
com o arrepio de ouvi-lo tã o de perto.
— Sobre as mensagens — explicou, sentindo a sua testa franzir
sobre a dela.
Nervosa, Rafaela ajeitou a postura. Já com os olhos abertos,
encarou Bruno por alguns segundos, esperando que ele dissesse
alguma coisa.
Qualquer coisa.
— As mensagens anô nimas, Bruno.
Ele fez uma careta.
— Eu deveria saber do que você está falando?
Todo o seu corpo formigou — agora, de desespero. A respiraçã o,
que já era feita com dificuldade, tornou-se ainda mais irregular.
— Isso é algum tipo de brincadeira?
— Desculpa, Rafa. — Sem nem perceber, Bruno afastou o corpo do
dela, se recostando no sofá . — Mas eu nã o faço ideia do que você está
falando.
Rafaela piscou algumas vezes, as palavras pareciam fugir de sua
boca. Sentiu o rosto corar enquanto a realidade do engano se instalava
dolorosamente em sua mente. Beijar Bruno havia sido um impulso
desesperado, alimentado pela ilusã o de que ele era o autor das
mensagens. Agora, diante dele, sem ter certeza de como explicar sua
confusã o, ela sentia o peso do constrangimento crescer a cada segundo.
— Você… Me beijou por que achou que mandei… mensagens? —
Bruno perguntou. O seu tom de voz era baixo, quase sussurrado. —
Quer dizer, que tipo de mensagens eram essas?
Ela prendeu os lá bios e abaixou o olhar.
Aquela era uma pergunta difícil de responder e, talvez, nem ao
menos tivesse uma resposta concreta. Sabia que queria beijá -lo, mas
quanto da sua coragem estava ligada à crença de que ele era o nú mero
desconhecido?
— Eu realmente quis te beijar — respondeu, constatando um fato.
— Mas, eu também achei que era você.
Bruno suspirou e passou a mã o pelos cabelos para tentar arrumar
a bagunça que a garota havia feito, ao mesmo tempo que ela se retirava
do seu colo. Rafaela estava imó vel, travada, com as costas retas e as
mã os apertando o estofado.
— Que tipo de mensagens eram? — ele repetiu, já que nã o havia
recebido resposta da primeira vez.
Ela bem que queria olhar e responder, mas seu rosto estava
paralisado, a atençã o focada nos pró prios pés que encontram o chã o.
Era impossível encarar aqueles olhos cheios de confusã o. Nã o depois de
beijá -lo achando que era outro cara e da vergonha de descobrir que
estava enganada.
— Eram mensagens anô nimas — explicou, sentindo um gosto
amargo na boca. — Pelo celular.
Ela ouviu uma risada fraca escapar da garganta de Bruno.
— Uau.
— Pois é.
— E se ele for um psicopata? — Bruno a observava com atençã o,
mas Rafaela ainda nã o conseguia fazer o mesmo.
— Ele nã o é.
— Como você tem tanta certeza? — Ele cerrou os olhos, o rosto
mais perto dela dessa vez. Em resposta, a garota forçou o dela a virar
em sua direçã o, sentindo o chã o se mover ao encontrar os olhos
castanhos vidrados nela. — Quer dizer, vai continuar beijando qualquer
pessoa que achar que é ele?
Ela respirou fundo e passou a mã o pelo rosto.
— Bruno… — Rafaela balançou a cabeça. — Me desculpa. Eu juro
que eu nã o…
— Eu já entendi — ele interrompeu, soltando um suspiro pesado.
— Você nã o me beijou só por isso.
— Eu nã o te beijei só por isso — ela repetiu, sem ter certeza de
quem tentava convencer: Bruno ou ela mesma.
— De qualquer forma, você achou que era eu.
Ela apertou os olhos com força. Queria que tudo aquilo nã o
passasse de um pesadelo.
— Eu sei — disse, o desejo de sumir crescendo dentro dela.
— Mas nã o sou eu. — Ele ajeitou os ó culos com a ponta do dedo
indicador. — Entã o, o que a gente faz agora?
Para falar a verdade, Rafaela queria ir embora.
Diante de toda aquela confusã o, o certo a se fazer era se esconder
em um buraco fundo e escuro. Para sempre. Afinal, como ela pô de ser
tã o impulsiva e errar tanto? A vergonha a consumia, e a ú nica coisa que
passava pela sua mente era desaparecer dali o mais rá pido possível.
— Eu nã o sei. — Ela mordeu o interior da bochecha. — Acho
melhor eu ir embora.
Bruno assentiu, a expressã o gélida em seu rosto quebrava o
coraçã o de Rafaela em pedaços.
— Eu levo você até a porta.
Assim, todo o caminho até a parte de fora da casa pareceu durar
horas. Bruno estava em silêncio, mas esse silêncio dizia muitas coisas.
Estava, definitivamente, frustrado. Queria beijar Rafaela há muito
tempo, mas nã o imaginava que, quando finalmente acontecesse, seria
por ela acreditar que ele era outra pessoa.
Quando atravessaram a porta, ele quebrou o silêncio:
— Vou esperar o Uber com você — disse e Rafaela assentiu, dando
dois passos até alcançar a pequena escada do convés de entrada e
sentar-se. Ele a acompanhou, enquanto a menina encarava o celular à
espera do motorista de aplicativo. — Olha, Rafa — começou, sem se
virar para ela dessa vez. Encarava o jardim da casa a sua frente como se
sua vida dependesse disso. — Você sabe que me beijou porque achou
que eu era esse cara. E tudo bem, eu supero. Mas você precisa mesmo
tomar cuidado.
Rafaela prendeu os lá bios.
Por que ele precisava ser um cara tão legal?
— Eu estou tomando cuidado.
— Você sabe que isso nã o é verdade. — Bruno torceu a boca. — Se
você for encontrar com esse cara, leva alguém com você. Nã o vai
sozinha de jeito nenhum.
— Bruno. — Ela tirou os olhos do celular para o encarar. —
Relaxa, eu nã o vou morrer. E você nã o precisa se preocupar com isso, eu
já fui babaca o suficiente.
— Você foi bem babaca. — Bruno apertou os lá bios, mas deu uma
risada fraca. — Mas eu nã o sou, entã o, por favor, tome cuidado.
Rafaela soltou uma risada fraca. Definitivamente, ele nã o era um
babaca e seu có rtex pré-frontal estava a anos-luz do dela, que havia
cometido a maior burrice da vida.
— Eu vou tomar mais cuidado, prometo. — Tentou tranquilizar. —
Obrigada por se preocupar.
Era difícil prometer aquilo — principalmente apó s perceber que
havia, realmente, beijado um garoto achando que era outro. Pior, outro
que ela nã o conhecia. Rafaela nã o fazia a menor ideia de como era seu
rosto, sua voz, ou a vida que o desconhecido levava. Nã o sabia se ele
falava sério quando disse que era da sua escola. Nã o sabia de nada. A
ú nica coisa que tinha certeza era que precisava ir embora dali o mais
rá pido possível. Por isso, quando o carro parou em frente ao portã o, ela
se levantou com pressa e sorriu, ansiosa para deixar aquele
constrangimento para trá s.
— Se precisar de alguma coisa, pode me chamar — Bruno falou,
enquanto via ela se afastar.
Rafaela se limitou a assentir, dando um leve tchauzinho com a
mã o.
Assim que entrou no carro e fechou a porta, sentiu como se todo o
ar tivesse ficado do lado de fora, ao mesmo tempo que todo peso de
suas atitudes caíram sobre o seu colo. Segurando as lá grimas que
começavam a se formar em seus olhos, ela pegou o celular e discou
rá pido o nú mero da melhor amiga.
Nã o sabia o que faria, mas precisava de ajuda.
NO DICIONÁRIO, a definiçã o de melhor amiga é descrita como a pessoa
que está lá por você, para ajudar e apoiar. Mas é claro que isso só é
verdade se a sua melhor amiga nã o for a Jaqueline.
Rafaela estava sentada na sua cama, de pernas cruzadas e cabeça
baixa enquanto ouvia a loira explicar o porquê de ela ser burra. Sem
tempo para justificativas, ela já havia chamado a amiga de: sem noçã o,
trouxa, idiota, péssima detetive, pessoa com dificuldades de entender o
que acontece a sua volta, entre outros adjetivos igualmente exagerados.
— Foi você quem me disse para aproveitar o momento! —
protestou, batendo no colchã o com força. — Você me disse que ele
queria me beijar e disse fazer sentido ele ser o Nú mero Desconhecido!
— Mas em nenhum momento eu disse para você beijar o cara e
imediatamente falar das mensagens! — Jaqueline retrucou, as mã os
apertadas na cintura.
— Você nã o pode me julgar! — Rafaela se levantou, o dedo
indicador apontado em direçã o à amiga. — Tudo fazia sentido na hora,
eu nã o consegui evitar!
Jaqueline balançou a cabeça, uma expressã o de impaciência clara
em seu rosto, e começou a andar pelo quarto com passos rá pidos e
nervosos. Ela passou as mã os pelo cabelo loiro, os dedos se movendo
com rapidez e precisã o enquanto o prendia em um coque apertado.
Lançou um olhar penetrante para Rafaela e soltou o ar com força.
— E agora, o que você vai falar para ele?
A cacheada franziu a testa.
— Para o Bruno?
— Nã o, para o Nú mero Desconhecido! — Ela jogou as duas mã os
para cima e colocou sobre a cabeça. — Meu Deus, ele vai surtar.
— Oi? — Rafaela fez uma careta, seu rosto contorcendo-se em
uma expressã o de confusã o genuína, sem entender o comentá rio de
Jaqueline. — Primeiro, que eu nem estou mais falando com ele.
Segundo — ela ergueu a mã o, fazendo o nú mero um com os dedos —,
que eu nã o preciso falar nada. Beijei o Bruno, e daí? Nã o é como se eu
fosse apaixonada por ele ou algo do tipo.
Jaqueline soltou um suspiro alto antes de olhar para a melhor
amiga. Ainda tentava assimilar o choque de saber que a iniciativa do
beijo havia sido de Rafaela e, pior ainda, que fora por puro impulso.
Rafaela nã o era aquele tipo de pessoa que beijava sem pensar nas
consequências. Pelo menos, nã o costumava ser.
Nã o que isso fosse um problema, é claro. Era Jaqueline quem
frequentemente ignorava os possíveis resultados de suas atitudes
impensadas. Era Rafaela quem geralmente a fazia botar a cabeça no
lugar, que a lembrava de pensar antes de agir.
— Ainda bem! — Jaqueline cruzou os braços. — Mas acho que ele
merece saber.
— Você está enlouquecendo.
— Foi você que beijou um cara pensando ser outro. — A loira riu,
empurrando seu ombro. — Nã o acha que é importante que o outro
saiba?
Em resposta, Rafaela também cruzou os braços e, antes que
pudesse pensar em reclamar com a amiga que havia a chamado para
ajudar e nã o para encher o saco, a porta do seu quarto foi aberta
abruptamente.
Como um furacã o, Nicolas atravessou o curto espaço que os
separava, sua presença enchendo o ambiente de uma energia intensa e
urgente. Ele entrou com passos firmes e rá pidos, o olhar fixo em
Rafaela.
— Recebi um chamado que dizia que uma das minhas melhores
amigas estava em apuros, vim sem pensar duas vezes! — ele explicou,
aos berros, segurando os ombros da cacheada e a sacudindo para todos
os lados, procurando por alguma coisa. — Tu tá machucada?
— O que aconteceu? — Vinicius perguntou, paralisado na porta
entreaberta.
— Para com isso! — Rafaela segurou as mã os do amigo, o
forçando a parar. Nicolas piscou os olhos, confuso.
— Quando tu me disse que tinha uma emergência, eu pensei que
pudesse ser algo grave! — Ele se virou para Jaqueline.
— Sua fofoqueira!
— Eu estava tentando ajudar! — ela se defendeu.
— Ei! — Nicolas começou a bater palmas, chamando a atençã o da
dupla. — Nã o importa o motivo, qual era a emergência?
Rafaela apertou os lá bios, seus olhos alternando entre os dois
adolescentes parados em frente a ela. A tensã o no ar era palpável. Ela
ajeitou as costas, endireitando-se na cama, e soltou o ar lentamente,
tentando manter a calma diante da situaçã o. Já havia contado toda a
histó ria para Jaqueline e nã o tinha certeza se estava disposta a repetir,
considerando o risco de ouvir mais uma sessã o de xingamentos.
— Quer que eu fale? — Jaqueline sussurrou ao seu lado.
— Você já me atrapalhou o suficiente — rebateu, os punhos
cerrados.
Entã o, apertou os olhos e tampou o rosto com as mã os. Nã o sabia
qual seria a reaçã o dos dois, mas sua mente fértil conseguia imaginar
vá rios cená rios. Principalmente ao lembrar que 1) Vinicius detestava
Bruno sem motivo nenhum e 2) Nicolas era maria vai com as outras e,
com certeza, apoiaria o ranço sem fundamento do amigo.
— Eu fiz algo…
Nicolas franziu o cenho.
— O quê?
— Beijei uma pessoa — respondeu, a voz tã o baixa que eles
precisaram se esforçar para conseguir ouvir o que ela havia dito.
Quando finalmente perceberam que Rafaela estava falando sério, os
dois pareciam atô nitos… — O Bruno. Eu beijei o Bruno.
Nicolas pigarreou, tentando processar a informaçã o.
— Tu beijou o Bruno — repetiu, lentamente.
— É.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Rafaela sentia o peso do olhar
dos dois sobre ela, esperando mais explicaçõ es. Foi quando Vinicius
soltou um suspiro, antes de perguntar:
— Tu tá apaixonada por ele?
— Precisa estar apaixonada para beijar alguém?
Ele torceu a boca.
— Tu nã o costuma fazer esse tipo de coisa.
— Ei — Jaqueline chamou e, mesmo que tenha pensado o mesmo,
o repreendeu: — Cuidado com o que você fala.
— Eu menti?
Rafaela suspirou, apertando a nuca.
— Eu nã o acredito que tu tá afim de um cara que gosta de Star
Wars — foi Nicolas quem disse, balançando a cabeça.
— Eu nã o estou a fim dele.
— É verdade, ela nã o está . — A loira olhou de canto para a melhor
amiga. — Na verdade… ela achou que Bruno era o desconhecido.
Nicolas ficou em silêncio por alguns segundos, uma expressã o
indecifrável no rosto.
— Tu gosta de um cara que nunca viu na vida?
— É claro que nã o! — afirmou Rafaela, os braços gesticulando
mais do que o necessá rio. — Eu nã o quero beijar uma pessoa que eu
nunca vi na vida.
— Acredito em você — Vinicius falou, depois de um tempo. Ele
estava com o corpo encostado na escrivaninha, as mã os no bolso e a
cabeça baixa. — Rafa sabe que é loucura querer beijar um maluco
psicopata. Nã o sabe?
— Psicopata? — Jaqueline balançou a cabeça, rindo. — Você está
exagerando.
— Eu tô exagerando? — O adolescente apontou para si. — Eles
nem se conhecem!
— Qual é, Vinicius! — Nicolas rolou os olhos. — Para de ser chato!
Cansada, Rafaela passou a mã o pelo rosto. Aquele papo nã o
ajudava em nada.
— Gente…
— Eu nã o sou chato, sou realista — Vinicius argumentou e
Jaqueline riu mais uma vez. — Que foi agora, Jaqueline?
— Nã o importa o que a gente diga, isso é um fato: — ela começou,
virando-se para Rafaela. — você está caidinha por esse cara. —
Jaqueline ergueu os ombros. — Você nã o sabe como ele é, mas está a
fim dele. Nã o só quebrou seu pró prio conceito de nã o gostar de alguém,
como também se apaixonou por um desconhecido.
— E ainda magoei o Bruno.
E, juntamente com a vergonha de ter feito aquela confusã o,
Rafaela também sentia culpa. Bruno era um cara legal e compreensivo,
mas ela nã o acreditava que merecia isso. Mesmo diante da sua
babaquice, ele se mostrou preocupado e disposto a perdoá -la. Enquanto
o autor das mensagens mentia o tempo todo.
— Ele vai superar. — Jaqueline caminhou até ela, enganchando o
braço no dela. — Só que ficar tentando encontrar o Desconhecido em
qualquer um nã o vai dar certo.
— Tu precisa falar com ele — foi Vinicius quem disse, chamando a
atençã o dos três. Ele suspirou, olhando diretamente para Rafaela. — Se
ele estuda mesmo na nossa escola, precisa falar com ele e descobrir
logo quem é esse garoto.
— Tá doido? — Nicolas franziu a testa. — Nã o é assim que as
coisas funcionam.
— E como as coisas funcionam, Nicolas? — Rafaela quis saber. —
Eu estou trocando mensagens com um cara há meses e só agora
descobri que ele sempre soube quem eu era. Acha isso justo?
— Ele deve ter os motivos dele.
— De que lado você tá , afinal?
— Do seu, é claro! — O loiro caminhou até mais perto dela. —
Mas tu nã o precisa ter pressa.
Rafaela balançou a cabeça, em negativa.
— O Vini tá certo. — Ela suspirou, se desvencilhando de Jaqueline.
— Preciso mesmo falar com ele, urgente. — Seus olhos passearam pelo
quarto, enquanto andava em passos apressados por ele. — Alguém viu
meu celular? Vou mandar uma mensagem para ele agora!
— Agora? — Vinicius quem pergunta, observando-a vasculhar o
quarto.
— Nã o precisa ser agora — Jaqueline se apressa em dizer, indo
até Rafaela e colocando a mã o sobre o seu ombro. — Que tal um
brigadeiro para acalmar os â nimos primeiro? — pergunta, sem dar
tempo para aceitar sua oferta, já a empurrando em direçã o à porta.
É , talvez um brigadeiro nã o fosse uma má ideia.
O PÁTIO DA ESCOLA parecia sufocante.
Nã o apenas pelo calor intenso — nã o estavam mais no verã o, mas
ainda sentiam os efeitos do aquecimento global no clima instável da
cidade —, mas também pela ansiedade crescente dentro do seu corpo
cada vez que encarava a tela do celular.
Nã o havia respondido nenhuma das ú ltimas mensagens, porém,
estava decidida a dar um fim a todo aquele mistério. Sua disposiçã o
para fazer merda havia acabado no momento em que beijou Bruno
achando que era o autor das mensagens. Aquilo foi o suficiente para
Rafaela saber que aquele nã o era o tipo de atitude que queria levar para
a sua vida. Pensar antes de fazer era sempre a melhor escolha.
A verdade é que nã o era fá cil ser uma adolescente que recebe
mensagens anô nimas, muito menos quando você sabe que ele está por
ali, em algum lugar, observando cada passo dado. E Rafaela bem que
tentou evitar encarar por todo aquele tempo a realidade de que, mesmo
com todas as mentiras e enrolaçõ es, estava interessada nele.
Interessada de verdade.
E aquela constataçã o era um pouco desesperadora. Do tipo que
faz o coraçã o acelerar e o corpo inteiro estremecer; do tipo que faz
loucuras; do tipo que a fazia parecer uma psicopata, observando todo e
qualquer garoto que passava por ela.
— O plano é o seguinte — Rafaela anunciou, sentando-se mais
perto de Jaqueline no banco de concreto. — Vou enviar uma mensagem
e você — ela apontou para a amiga — observa as pessoas. Se desconfiar
de alguém com um celular na mã o, me avisa.
— Esse é um plano idiota. — Jaqueline balançou a cabeça. —
Estamos no século da tecnologia, todo mundo está mexendo no celular.
A cacheada passou a mã o pelo rosto, respirando com força. Nã o se
importava se aquela era, ou nã o, uma ideia ruim. Precisa fazer alguma
coisa. Qualquer coisa.
— Você tem uma ideia melhor? — Ela arqueou as sobrancelhas.
— Nã o.
— Entã o faz o que eu falei.
Jaqueline pensou em negar, mas nã o tinha muita escolha. Assentiu
com a cabeça e esperou a melhor amiga digitar para iniciar a sua
investigaçã o. Era difícil dizer que alguém ali parecia suspeito, visto que
todos estavam com um celular na mã o — exatamente como ela
imaginava que seria. Mas buscou se atentar a cada mínimo detalhe.
[07h35]
Rafaela: Oi.

A resposta veio mais rá pida do que ela esperava.


[07h36]
Número Desconhecido: Achei que nunca mais ia ver seu nome na minha caixa
de entrada.

Rafaela piscou algumas vezes, antes de se virar para Jaqueline.


— E entã o? — Ela cutucou o ombro da loira que negou com a
cabeça.
— Nada.
Bufando, seus dedos digitaram rapidamente enquanto a
frustraçã o aumentava.

[07h37]
Rafaela: Você nã o está merecendo mesmo.

[07h38]
Número Desconhecido: Desculpa por ter mentido pra ti.

[07h38]
Número Desconhecido: Mas a verdade é que tu nunca me responderia se
soubesse quem eu sou.
[07h39]
Rafaela: Como você pode ter tanta certeza?

[07h40]
Número Desconhecido: Sexto sentido.

— O Nicolas! — a loira gritou, esticando o braço e apontando para


um lugar longe delas. Rafaela acompanhou seu olhar e viu o amigo
encostado em uma parede, ao lado da porta de entrada, mexendo no
celular. — Ele tá com o celular na mã o — explicou.
Rafaela rolou os olhos.
— Pelo amor de Deus, Jaqueline. — Ela balançou a cabeça,
voltando a encarar a tela do aparelho.
— Ué, mas nã o era pra eu… — Jaqueline parou de falar e cutucou
seu ombro. Seus olhos estavam fixos em um ponto atrá s dela.
— Eu disse pra você…
— Xiu — ela a interrompeu. — Seu amigo de beijo chegou. — Ela
apontou com a cabeça.
Movendo o rosto rapidamente, Rafaela se levantou em pulo
quando viu a figura de Bruno se formar na sua frente. Ela sentiu a
barriga embrulhar e precisou engolir em seco antes de dizer:
— Bruno, oi! — Ela guardou o celular com pressa. — Ahn… Tudo
bem?
Ele assentiu, com as mã os no bolso da calça jeans.
— E você? — Quis saber, mas olhou para Jaqueline e corrigiu: — E
vocês?
— Estamos ó timas — a mais alta respondeu, antes que Rafaela
tivesse tempo de dizer alguma coisa. — Fiquei impressionada com o
resultado da prova da Rafa, viu? Você é bom em ensinar.
Imediatamente, o rosto de Bruno atingiu um leve tom
avermelhado. O garoto ajeitou os ó culos com o dedo indicador, antes de
colocar as mã os no bolso da calça jeans novamente.
— Ah, eu só fiz minha parte. — Ele ergueu os ombros. — Rafa se
dedicou bastante pra isso também. Tenho certeza que para as pró ximas
ela nem vai precisar de mim.
— Eu acho que consigo me virar daqui pra frente. — Rafaela
conseguiu dizer, forçando um sorriso. — Quer dizer, com certeza vou te
chamar pra me ajudar uma vez ou outra, mas agora eu nã o sou mais
uma negaçã o em física.
Bruno sorriu, daquele jeito que fazia o piercing brilhar.
— Você pode contar comigo sempre que precisar, Rafa. — Ele
parecia sincero, Rafaela pensou, o que só provava que era realmente um
cara legal. — Mas eu já vou indo. — Ele apontou para trá s, já
caminhando de costas. — Te vejo depois.
Rafaela se limitou a assentir, observando se distanciar.
— Ele é um fofo — Jaqueline constatou, virando o rosto para a
melhor amiga. — E você é meio burrinha.
— Quê? — A cacheada franziu a testa.
— Ele fala você e o cara as mensagens fala tu — ela explicou, mas
Rafaela continuava confusa. — Ele tem sotaque, amiga.
— 90% das pessoas que moram aqui tem sotaque, isso nã o ajuda
em nada — reclamou, mas quis bater no pró prio rosto com a
constataçã o de Jaqueline. Como pode nã o ter percebido algo tã o ó bvio?
Quer dizer, é claro que ele podia mudar o jeito de falar de propó sito,
mas esse tipo de coisa costuma ser natural.
— Quando esse cara resolver aparecer — Jaqueline olhou para a
amiga —, vou contar pra ele como você nã o reparou nos sinais mais
importantes.
— Se ele resolver aparecer, né?
— Ele vai. — A loira envolveu seu ombro com o braço, começando
a caminhar em direçã o à escola. — Ninguém consegue ficar escondido
por muito tempo.
RAFAELA NÃO TINHA CERTEZA se um dia teria uma mente sã
novamente.
Por isso ela estava ali, juntando toda a sua força na tentativa falha
de abrir um pote de Nutella que encontrou na geladeira da casa do seu
pai — quer dizer, da sua casa. Ainda era um pouco difícil sentir que
aquele era seu lar, mas Rafaela estar tentando comer algo da geladeira
sem pedir era uma prova disso.
A menina nã o havia tirado o pijama e os cabelos cacheados
estavam presos em um coque desajeitado. As olheiras gigantes
denunciavam que nã o havia dormido bem (como todas as outras
noites) e, por isso, tudo que ela queria era um pouco de chocolate.
Irritada, ela soltou o pote sobre a mesa de má rmore e colocou as
mã os na cintura. Coçou a testa antes de juntar fô lego para tentar, mais
uma vez, girar a tampa. Quem havia fechado aquilo, afinal?
— Eu nã o faria isso se fosse você. — A voz de Diego, seu irmã o,
preencheu a cozinha vazia, acompanhado do barulho da pantufa sendo
arrastada pelo chã o. Rafaela sentiu o coraçã o acelerar, como se
estivesse fazendo algo errado e soltou a Nutella sobre a mesa com
pressa. — Esse pote é do papai, ele come enquanto trabalha de
madrugada.
A mais nova franziu a testa, observando o irmã o de cima a baixo.
Ele também parecia ter acabado de acordar.
— E só ele pode comer? — Ela quis saber.
A resposta de Diego foi um bocejo longo enquanto caminhava até
a geladeira. Ele enfiou a mã o até o fundo, só para tirar de lá outro pote.
Entã o, o jogou sobre a mesa e deu dois tapinhas nas costas da irmã .
— Esse é o meu, pode comer à vontade. — Ele puxou uma colher
da gaveta e a entregou, estreitando os olhos. — Você nã o deveria estar
se arrumando para a escola?
A menina suspirou pesado, puxando o talher para si antes de
enfiar no pote cheio de chocolate. A verdade é que ela deveria, sim, mas
só de pensar em atravessar aqueles corredores, sentia uma pressã o
forte no peito. Era como se fosse observada o tempo todo e a sensaçã o
de nã o saber de onde vinham os olhares era angustiante. Por isso, se
limitou a dar de ombros, e ele nã o contestou. Eram irmã os, mas nã o
íntimos o suficiente para fazer mais perguntas.
— Eu faltei muita aula na sua idade — Diego disse, de costas para
a irmã . Rafaela virou-se, encostando na mesa enquanto o observava
fazer um sanduíche. — Nosso pai nunca soube, porque a Mirela me
dava cobertura.
— E você gosta dela?
Diego virou o rosto, olhando para a irmã . Ele conseguia sentir o
tom avesso da pergunta. Rafaela já estava convencida de que a mulher
nã o era um monstro, mas ainda nã o admitiria isso.
— Ela nã o tem culpa do papai ser um bosta — explicou, voltando
a preparar o seu café da manhã . — É uma mulher legal, no fim das
contas. Você vai ver. — Entã o, ele olhou para o reló gio sobre a pia. —
Você vai se atrasar.
Rafaela concordou com a cabeça, mas ele nã o pode ver.
Guardando o pote novamente na geladeira, ela deu mais uma olhada
para o irmã o, que mastigava o sanduíche enquanto mexia no celular.
— O que acha de pizza? — ele perguntou, sem olhar pra ela.
— Pizza?
— Para o jantar.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Vamos jantar juntos?
— Se você quiser. — Diego ergueu os olhos.
— Pizza é ó timo.
O irmã o sorriu, antes de voltar a olhar para o celular. E Rafaela
pensou que, pelo menos, alguma á rea da sua vida pudesse estar se
alinhando, só para variar.

— É como se eu fosse invisível — reclamou a garota na fila da


cantina.
Rafaela nã o pretendia ouvir a conversa dos outros, mas, enquanto
era obrigada a esperar para comprar seu suco de laranja, as risadas e os
comentá rios eram tã o pró ximos que, sem querer, ela se viu atraída pela
conversa alheia. Entã o, nã o teve outra escolha se nã o prestar atençã o
nas duas adolescentes.
— Ele fingiu que nem ouviu o que eu falei, acredita?
— Pensando bem, ele também nã o me cumprimentou hoje — a
outra disse, colocando uma mecha do cabelo liso atrá s da orelha.
— Eu ouvi alguns boatos… — A amiga abaixou o tom de voz,
enquanto acompanhava a fila devagar. — Parece que eles estã o
apaixonados.
— Um pelo outro? — A mais baixa arregalou os olhos, fazendo a
menina rir.
— Nã o um pelo outro. — Ela balançou a cabeça — Por duas
garotas da escola.
— Uau, Nicolas e Vinicius apaixonados. — Imediatamente, Rafaela
sentiu toda a sua atençã o focar apenas nas duas meninas à sua frente,
como se o pró prio nome fosse chamado. — E se for por nó s?
— Eu bem que queria — a outra comentou. — Mas eles nã o
estariam nos ignorando se fosse.
A cacheada ainda viu uma delas fazer uma expressã o triste, mas
nã o se importava mais. Seu olhar voou por toda a cantina à procura de
Jaqueline, que deveria estar a esperando pró xima à mesa. Tirou o
celular do bolso só para conferir o horá rio e viu que ainda faltavam dez
minutos para o início das aulas apó s o intervalo, entã o se apressou em
encontrar a amiga.
Depois de enviar um “cadê você?” no WhatsApp e nã o ter a
mensagem visualizada, ela mordeu o interior da bochecha, caminhando
em direçã o ao lado de fora da cantina. Rafaela andava pelo pá tio, os
olhos vagando por todos os cantos, quando ouviu uma risada alta. Nã o
precisou escutar uma segunda vez para ter certeza: aquela era a risada
da melhor amiga.
Por isso, foi em direçã o à quadra de esportes, de onde o som
parecia ter vindo, e, de longe, a viu ao lado de Nicolas. Sentiu o corpo
congelar quando percebeu que aquela conversa estava estranha. Os
dois gesticulavam de forma um pouco agressiva e suas expressõ es
denunciavam que aquele papo, com certeza, nã o era nada amigável. Por
isso, se esquivou para o lado, ficando escondida atrá s da parede alta,
perto o suficiente para ouvir tudo que eles diziam.
— Você parece uma criança birrenta — Jaqueline reclamou e a
amiga agradeceu, pela primeira vez, por seu tom de voz ser tã o alto. —
Por sua culpa isso nã o vai dar certo.
— Eu pareço uma criança birrenta? — Nicolas deu uma risada
irô nica. — Nó s já conversamos sobre isso vá rias vezes, mas tu insiste
em ficar insinuando coisas que nã o existem.
— Eu? É você quem fica mandando indiretinhas! Desse jeito ela
vai descobrir tudo.
Rafaela prendeu os lá bios com força. O coraçã o batia tã o
acelerado que ela tinha certeza que sairia pela sua boca a qualquer
momento.
— Jaque, eu nã o aguento mais esconder. — Sua voz ficou um
pouco mais baixa. — Tô começando a achar que essa foi a pior ideia que
eu já tive na vida.
— Ih, tá arrependido, Nicolas? — A loira quis saber. — Agora nã o
adianta, deveria ter pensando nas consequências antes.
— Nã o é arrependimento — explicou, o tom trêmulo. — Só é...
Difícil.
— Você fez uma escolha, Nicolas — ela lembrou o amigo. — Agora
que começou, tem que ir até o final.
Seria difícil nomear o turbilhã o de sensaçõ es que percorriam
agressivamente o corpo de Rafaela. Dormente, ela parecia nã o sentir
seus membros, enquanto na sua cabeça a conversa se repetia em
looping, girando como um furacã o. Precisou apoiar as mã os na parede
para nã o cair e apertou os olhos com força.
— Nã o sei se eu vou aguentar até o final — ele confessou. — Nã o
consigo mais esconder isso de ninguém, Jaque. Qualquer pessoa
consegue ver a verdade só de olhar pra mim.
— Você prometeu, Nic. — Dessa vez, a voz de Jaqueline atingiu um
tom suave. — Só até a formatura, lembra?
Rafaela abriu os olhos, ajeitando a postura. Ainda que sentisse
que suas pernas podiam falhar a qualquer momento, sabia que
precisava sair dali. Nã o escutou a conversa toda e nem queria, o que
havia acabado de ouvir era o suficiente para tirar o seu mundo do eixo.
Seus mú sculos doíam enquanto corria em direçã o ao banheiro,
tentando segurar as lá grimas que começavam a invadir seus olhos. Nã o
conseguia fugir das ideias que rodeavam a sua mente, mas também nã o
tinha dú vidas: seus amigos estavam escondendo alguma coisa e ela
desejava, do fundo do coraçã o, que fosse apenas uma coincidência.
Precisava ser apenas coincidência.
FINGIR FAZ PARTE da natureza humana, um mecanismo de defesa sutil
e quase instintivo, projetado para nos proteger de desilusõ es. Mas há
momentos em que esse disfarce se torna insustentável, e é entã o que
você sabe que algo está muito errado.
Rafaela tentou — ou, pelo menos, ela gostava de acreditar que sim
— sorrir e acenar como se nã o tivesse escutado aquela conversa
comprometedora entre Jaqueline e Nicolas, mas cada vez que seus
olhos encontravam os deles, um torpor nauseante se instalava em seu
estô mago.
“É apenas coincidência”, murmurava para si mesma em um loop
mental interminável. Seu pé direito marcava um ritmo frenético no
chã o, e a dor na bochecha era um reflexo da força com que apertava
seus dentes. Mais uma vez, ela desbloqueou o celular, apenas para
confirmar que nã o havia recebido mais nenhuma mensagem.
De novo.
A professora falava alguma coisa, mas era impossível ouvir.
Rafaela largou o celular sobre a mesa e fechou o caderno, ouvindo o
sinal do final da aula soar em seus ouvidos. Quando a turma se
levantou, ela rapidamente se apressou para pegar a mochila e se
aproximar de Vinicius, que ria descontraído com os amigos.
Ela o puxou pela mã o e, enquanto caminhavam para fora da sala,
ele resmungava, protestando contra a interrupçã o, mas Rafaela
ignorava.
— Enlouqueceu? — Vinicius perguntou, mas nã o recebeu uma
resposta. Rafaela continuou o arrastando até estarem longe o suficiente.
— Vou te fazer uma pergunta simples, rá pida e prá tica — disse, o
tom ríspido atravessando o melhor amigo enquanto os dois pararam
em um corredor vazio da escola. — Se você ousar mentir, Vinicius, pode
esquecer que eu existo.
Ele arregalou os olhos. Rafaela nã o era a pessoa mais calma do
mundo, mas nã o costumava falar assim, principalmente com ele. Por
isso, nã o tinha como evitar o friozinho na barriga que surgiu ao ouvi-la
falar daquela maneira.
— O que aconteceu?
— Eu já sei de tudo.
Vinicius inclinou a cabeça para o lado.
— Tudo o quê?
— É o Nicolas, nã o é? — perguntou, como se arrancasse um
BandAid com força. — É ele que está me mandando mensagens.
— Quê? — Vinicius apertou os olhos. — Tá maluca, Rafinha?
— Eu sei que sou sempre a ú ltima a saber, mas eu ouvi a Jaque e o
Nicolas conversando — revelou, os braços cruzados apertados sobre o
peito.
Ele coçou a cabeça, olhando para os lados. Depois, se abaixou um
pouco, apenas o suficiente para que seus rostos ficassem na mesma
altura.
— Tu ouviu ele falando que era o cara das mensagens?
Rafaela mordeu o lá bio inferior e negou com a cabeça.
— Mas sei que eles estã o me escondendo algo — afirmou. Nicolas
poderia nã o ter dito com todas as letras, mas alguma peça daquele
quebra-cabeça estava faltando.
— Rafaela… — O garoto ajeitou a postura, soprando de leve a
mecha de cabelo rebelde no meio da testa. — Deve ser outra coisa. Eu
saberia se fosse ele.
— Saberia e nã o me falaria. — Ela rolou os olhos.
— Olha, Rafinha. — Vinicius colocou as mã os no bolso e encarou o
pró prio pé antes de continuar — Eu sei que nosso grupo está em crise
ultimamente, mas tenho certeza que tu entendeu errado a conversa dos
dois malucos.
— Tudo bem, eu posso até ter entendido errado. — Rafaela
apontou o dedo indicador para ele, que ergueu os olhos. — Mas se nã o
foi isso, eles estã o escondendo outra coisa.
O garoto ergueu os ombros e torceu a boca.
— A gente pode tentar descobrir alguma coisa hoje, lá em casa.
— Na sua casa?
— Minha mã e convidou a família pra jantar e, tu sabe, meus avó s
adoram vocês. — Ele deu uma piscadinha. — Aproveitamos pra tentar
arrancar alguma coisa deles.
— Hoje? — perguntou mais uma vez, só para ter certeza. Havia
combinado com o irmã o que jantaram juntos e nã o queria cancelar.
— Hoje.
Rafaela umedeceu os lá bios, pensativa. Sabia que Diego estava se
esforçando para fazer com que ela se sentisse em casa, mas Rafaela
precisava mesmo resolver seus problemas antes. Por isso, ainda que um
aperto no peito se fizesse presente, ela concordou.
— Promete me ajudar a descobrir a verdade?
— Nã o é ele, já falei.
— Talvez seja.
— Nã o é — repetiu, dando uma leve cutucada no seu nariz com
dedo indicador. — Mas vou te ajudar, seja lá o que iremos descobrir.

[19h54]
Rafaela: Prometo jantar com você amanhã .

Foi o que Rafaela enviou para Diego, com um suspiro pesado.


Esperava que o irmã o nã o se sentisse magoado. Embora admirasse o
seu esforço para reconstruir a relaçã o que tinham perdido, havia
problemas mais urgentes ocupando sua mente no momento.
Apertou a campainha e tamborilou as mã os nas coxas, ansiosa.
Quando o melhor amigo abriu a porta, uma expressã o de alívio surgiu
no seu rosto. Vinicius sorriu e a abraçou, com a respiraçã o quase
ofegante.
— Eles já chegaram? — Rafaela perguntou, a voz abafada pelo
abraço apertado.
O mais alto a soltou e fez uma expressã o de desespero.
— Meus avó s, sim. Nicolas e Jaque, nã o — disse, dando espaço
para que ela passasse pela porta. — Preparada? Eles estã o inspirados
hoje.
Com “inspirados”, Vinicius queria dizer “propensos a fazê-los
passar por grandes vergonhas”, pois era isso que os seus avó s faziam de
melhor. Rafaela nunca sabia se as perguntas constrangedoras eram
feitas deliberadamente ou se era apenas o jeito deles, mas toda vez que
eram feitas, ela sentia vontade de se enfiar em um buraco e
desaparecer.
Era por isso que Rafaela, Nicolas e Jaque — que estavam meia
hora atrasados — iam a todos esses encontros da família. Com quatro
alvos, era mais fá cil de aguentar os tiros.
— Seus amigos nã o vêm hoje? — Dona Ivonete, avó materna de
Vinicius, perguntou, quando todos se sentaram na mesa.
— Você nã o percebeu, amor? — O avô deu uma risadinha. — É um
encontro de casais, por isso eles nã o vieram. — Entã o, ele olhou para os
adolescentes. — Quando vocês resolveram assumir?
Rafaela arregalou os olhos e encarou Vinicius com desespero.
— Nã o, nó s nã o somos…
— Pare de envergonhar os meninos, Adauto. — Ela pressionou a
mã o do marido sobre a mesa. — Eles sã o jovens e jovens sã o assim
mesmo.
— Esse mundo de hoje em dia está uma loucura. — Adauto
balançou a cabeça. — Vocês estã o usando camisinha, pelo menos?
Vinicius colocou a mã o sobre o rosto, sentindo-o queimar.
— Vô , pelo amor de Deus, nó s nã o… — Tentou dizer, mas a avó o
interrompeu mais uma vez.
— Os jovens também nã o gostam disso, amor.
— Mas nã o tem que gostar, é proteçã o! — Ele bateu na mesa e
apontou o dedo para o neto. — Doenças podem ser transmitidas pelo…
— Vô ! — Vinicius arregalou os olhos e segurou o dedo do mais
velho, o abaixando. — A gente nã o tá namorando nã o. Somos amigos.
— Deixa os meninos em paz, pai — a mã e de Vinicius, Manoela,
disse, surgindo no ambiente com uma travessa de lasanha nas mã os. —
Cadê seus amigos, filhote?
O garoto olhou o reló gio no pulso e suspirou.
— Nã o sei.
— E cadê o imprestável do seu marido? — Seu Adauto quis saber,
um tom de provocaçã o no ar.
— Viajando, pai — a mulher explicou sem vontade.
— E te deixou sozinha cuidando dessa criança? — Ele balançou a
cabeça com uma expressã o de desgosto… — Que absurdo!
— O Vini já tem quase 18, nã o é mais criança.
Quando a campainha tocou, todos se viraram para a porta e
Rafaela prontamente se dispô s a atender. A menina a abriu preparada
para reclamar do atraso, mas se deparou com duas pessoas dando
gargalhadas. Ela torceu a boca observando a cena. O que quer que fosse
tã o engraçado, fez com que eles nem a notasse ali.
— Qual a piada? — perguntou, chamando a atençã o dos
adolescentes. Nicolas parou de rir e atravessou a porta, entrando na
casa sem responder a sua pergunta.
— Desculpa a demora. — Jaqueline forçou um sorriso, seguindo o
garoto.
Fechando a porta quando os dois já haviam atravessado, ela rolou
os olhos. Nã o tinha certeza se conseguiria aguentar a noite toda
fingindo que nã o sabia de nada, já que sentia todo o seu corpo ferver de
raiva.
— Finalmente! — Vinicius levantou os braços e puxou a cadeira
para que eles se sentassem. — Por que demoraram tanto?
— Nicolas demora muito pra se arrumar — a loira explicou,
juntando-se a eles.
Rafaela precisava muito controlar suas emoçõ es, mas estava
vivendo aquele momento em que é impossível esconder a sua
expressã o de descontentamento. A menina sentou na mesa, se
concentrando no pé balançando embaixo dela, tentando conter o
nervosismo. Mas, só de olhar para os melhores amigos, a conversa que
ouvira invadia a sua mente, com todas as perguntas que ela causou.
Para sua sorte, a lasanha estava maravilhosa. Assim, ela pode
depositar toda a sua frustraçã o nos sabores maravilhosos, degustando
cada pedaço como se engolisse todos os seus problemas.
Até nã o conseguir mais.
O gosto do frango começou a embrulhar seu estô mago enquanto
todos conversavam animadamente. Nicolas e Jaqueline riam feito bobos
e Vinicius parecia se divertir com a situaçã o. Rafaela sentiu o coraçã o
bater forte no peito e em um impulso, jogou o garfo sobre a mesa — um
pouco mais forte do que havia desejado. No mesmo instante, todos
pararam de rir e a encararam com confusã o.
— Rafinha, o que houve? — foi Vinicius quem perguntou, os olhos
assustados em sua direçã o.
Rafaela apertou os lá bios com força, sentindo os olhos queimarem
com as lá grimas que se formavam.
Era impossível aguentar a noite toda.
— Você tá passando mal? — Jaqueline levantou da cadeira com
pressa, parando ao lado dela. Mas nem a sua expressã o genuína de
preocupaçã o diminuiu o que a melhor amiga sentia.
Rafaela a olhou, a bochecha doendo enquanto a mordia com força.
Por alguns segundos, precisou fechar os olhos para que seu cérebro
parasse de girar. Quando percebeu ser seguro levantar sem se sentir
tonta, ela suspirou, empurrando a cadeira. Sem dizer nada, caminhou
em direçã o ao quarto de Vinicius com calma, sentando-se na cama.
Ela apertou a roupa de cama entre os dedos e esperou. E nã o
demorou muito para os três entrarem apressados.
— O que houve, aconteceu alguma coisa? — Jaqueline foi a
primeira a perguntar, sentando-se ao lado dela. Ela colocou a mã o sobre
a sua e seus lá bios formaram uma linha fina.
Apesar da vontade crescente de chorar, Rafaela engoliu em seco.
— Me diga você. — Ela encarou a amiga.
Jaqueline franziu a testa.
— Nã o entendi.
— Na verdade, quem nã o está entendendo sou eu. — Rafaela
puxou a mã o que estava embaixo da dela, levantando-se com força.
— Rafa, tu tá parecendo uma maluca — Nicolas interveio,
colocando as mã os na cintura. — Fica falando em enigmas.
— Eu pareço uma maluca? — Rafaela apontou para si mesma e
soltou uma risada irô nica. — É ló gico que eu pareço uma maluca, vocês
nã o param de esconder as coisas de mim!
Todos fizeram uma expressã o confusa, exceto Vinicius, que já
sabia do que Rafaela estava falando. Ainda assim, ele estava nervoso.
— Eu achei que fossemos amigos — ela continuou. Suas mã os
esfregavam uma na outra, o peito subindo e descendo rá pido. — Mas
vocês estã o agindo pelas minhas costas.
— Rafinha… — Vinicius tentou se aproximar dela, mas Rafaela
esticou a mã o, fazendo com que ele parasse de andar.
— Olha, eu entendo. — A cacheada colocou a mã o sobre o peito.
— Estamos crescendo e somos um grupo de quatro pessoas. À s vezes,
vamos contar algo para um e nã o para o outro e tá tudo bem. — Ela
olhou para o trio, que a observava com atençã o. — Mas eu nã o entendo
porquê estã o fazendo isso comigo.
— Isso o que, exatamente? — Nicolas quis saber.
A menina soltou o ar com força.
— Pode parar com esse teatrinho, Nicolas. — Ela balançou a mã o,
o tom de voz debochado. — Eu ouvi a conversa de vocês ontem, tá bom?
Eu já sei de tudo.
Um silêncio descomunal se formou entre eles. Jaqueline e Nicolas
se olharam assustados, sem dizer uma ú nica palavra. Vinicius passou a
mã o pelo rosto e suspirou.
— Tudo? — a mais alta perguntou.
Rafaela grunhiu, olhando-a de volta. Foi quando sentiu os seus
olhos ficarem borrados. Nã o queria chorar, mas ver o medo estampado
no rosto da amiga, doía mais do que poderia imaginar.
— Tudo. — A sua voz saiu trêmula, mas ela manteve a postura.
Ainda que os olhos marejados denunciassem seu verdadeiro
sentimento. — Vocês estã o me escondendo algo… Algo sério.
A loira engoliu em seco.
— Amiga... — começou dizendo, dando mais um passo para
frente. Como em um reflexo, Rafaela se afastou e Jaqueline abaixou o
rosto, passando a mã o sobre ele. — Olha, eu sei o que parece, mas nã o é
o que você está pensando.
— Ah, nã o? — Ela riu, balançando a cabeça. — Você sempre me
conta tudo, Jaque. Até o que eu nã o quero saber. Agora, do nada,
resolveu mentir pra mim?
— Nã o é só sobre mim. — Ela tentou se defender. — Entã o nã o
sou eu quem tem que te contar.
Rafaela franziu a testa, o olhar dividido entre os dois amigos, que
continuavam em silêncio. Nicolas a olhava apreensivo e Vinicius
encarava os pró prios pés, que esfregava no piso de porcelana.
— O que você quer dizer com isso?
— Eu prometi nã o falar. — Jaqueline ergueu os ombros.
Ela se pergunta em que momento os seus amigos se tornaram
fiéis uns aos outros, mas nem um pouco a ela. Quando foi que eles
decidiram que ela nã o merecia fazer parte das coisas? Que Rafaela
deveria ser enganada?
— Isso só pode ser algum tipo de brincadeira de mau gosto —
reclamou, mais para si mesma do que para eles. — Que tipo de amigos
vocês sã o? — Seu tom de voz aumentou e ela viu quando os três pares
de olhos se arregalaram em sua direçã o.
— Rafa...
— Eu nã o quero mais desculpas, Jaqueline — ela a interrompeu,
as lá grimas rolando pelo rosto. — Quando vocês resolverem falar a
verdade, me procurem. Enquanto isso, eu nã o existo pra vocês.
Rafaela nã o esperou por uma resposta. Caminhou firme e bateu a
porta atrá s de si, sem ligar para os olhares confusos na sala de estar.
Saiu dali como quem foge de um cá rcere privado. Seu peito
queimava e ela parecia ter esquecido como se respirava. Nã o olhou para
os lados, nã o pensou. Apenas correu para longe, tentando se livrar da
sensaçã o sufocante que apertava todo o seu corpo.
JAQUELINE ENVIOU cerca de cinquenta mensagens, fora as ligaçõ es
que Rafaela ignorou. Algumas afirmavam que ela diria a verdade, outras
eram pedidos de desculpas quilométricas. Exceto os dramas, Rafaela
sentiu-se tentada a atender as ligaçõ es, mas ainda nã o tinha certeza se
queria ouvi-la.
Ela estava ferida, em todos os aspectos possíveis. E, por isso,
permaneceu a ignorando enquanto tentava fazer as lá grimas pararem
de cair. Descobrir que seus amigos estavam mentindo para ela foi um
baque mais forte do que imaginara. Era como se todos aqueles anos de
amizade nã o tivessem valido de nada. Como se, nã o apenas aquele
período, mas toda a sua vida tivesse sido uma mentira.
De olhos fechados, ouviu Taylor Swift cantar no fone de ouvido
“você não tem o direito de me dizer que se sente mal”, e teve vontade de
enviar o link da mú sica quando o celular tremeu em sua mã o mais uma
vez. Preparada para ignorar como nas outras vezes, ela soltou um
grunhido enquanto desbloqueava o aparelho, mas o nome piscando em
sua tela fez seu corpo gelar.
Rafaela se sentou, ajeitando a postura. Mordeu o interior da
bochecha enquanto as mensagens continuavam a aparecer.

[23h40]
Número Desconhecido: Oi.

[23h40]
Número Desconhecido: Sei que tu nã o vai responder essa mensagem, mas eu
queria pedir desculpas.
[23h41]
Número Desconhecido: Deveria ter falado a verdade desde o início, mas eu
duvido que tu me ouviria. Aliá s, tu continua no direito se nã o quiser me ouvir
agora també m.

[23h41]
Número Desconhecido: Mas, se mudar de ideia, estou disposto a te contar
tudo. Desde o início.

A menina suspirou, soltando todo o ar que nã o sabia que estava


prendendo. Voltando para a pá gina principal da sua caixa de
mensagens, ela abriu a conversa de Jaqueline e secou as lá grimas antes
de enviar uma simples "Venha até a minha casa. Rápido."
Alguns minutos depois, três batidas na porta fizeram seus joelhos
fraquejarem. A impressã o que teve era de que Jaqueline esteve o tempo
todo atrá s da sua porta, esperando apenas por uma oportunidade.
Rafaela caminhou devagar, girando a maçaneta sem pressa.
— Obrigada por me receber — Jaqueline disse, os olhos
vermelhos denunciavam que havia chorado. Com a cabeça baixa, a
cacheada abriu toda a porta, fechando-a quando a amiga já estava lá
dentro, mas nã o falou nada. — Sério, Rafa. — Ela sentou-se na cama, o
corpo encolhido, como se estivesse com medo de fazer qualquer
movimento brusco e incomodá -la. — Eu juro que senti saudade
nessas… — ela conferiu o reló gio — três horas que você me ignorou.
— Você merecia muito mais — foi o que conseguiu dizer, antes de
sentir os olhos encherem de á gua mais uma vez. Ela precisou engolir
em seco para garantir que nã o demonstraria ainda mais o quanto
estava quebrada.
— Você tem todo o direito de me odiar. — Jaqueline apertou os
lá bios. — Sinceramente, nã o era para tudo ter acontecido desse jeito.
Rafaela franziu a testa, virando o rosto em sua direçã o.
— E o que seria esse “tudo”? — Ela fez as aspas com as mã os. —
Você achou mesmo que uma mentira nã o resultaria em confusã o,
Jaqueline?
Ela torceu a boca.
— Nó s só queríamos te fazer feliz, eu juro.
— Mentindo pra mim? Sério? — Rafaela balançou a cabeça e
bateu palmas. — Parabéns, me fizeram muito feliz.
Jaqueline negou com a cabeça. Ela se levantou, andando rá pido
até Rafaela, que estava com o corpo recostado na escrivaninha.
— Nã o, você nã o está entendendo — argumentou, gesticulando
de forma exagerada. — Nó s nã o mentimos. Nó s só …omitimos.
— Mentiram, sim! — Rafaela corrigiu, cruzando os braços sobre o
peito, como se tentasse se proteger. — Brincaram com os meus
sentimentos.
— Foi mais longe do que esperávamos. Quando vimos, nosso
plano tinha virado uma bola de neve.
— Plano? — Um vinco se formou entre as sobrancelhas grossas,
os olhos confusos com aquela afirmaçã o.
— Quando o Nic escreveu seu nú mero no ponto de ô nibus, nó s
ainda nã o havíamos pensado em nada, era só uma brincadeira — ela
explicou, estalando os dedos ao lado do corpo. A respiraçã o de
Jaqueline era tã o ofegante que Rafaela sentia falta de ar apenas de a
olhar. — Foi só depois que você foi embora que tivemos a ideia.
— A ideia de fingir que alguém estava apaixonado por mim? — A
cacheada arqueou as sobrancelhas.
— Nunca foi fingimento.
Rafaela prendeu o ar. Por um segundo, teve a impressã o de que
sua alma havia se afastado do pró prio corpo, observando a situaçã o do
lado de fora. Tudo parecia girar, o corpo dormente mal conseguia
controlar as batidas do coraçã o. Como assim nunca foi fingimento? Ela
pensou. Alguém, de fato, estava apaixonado por ela?
— Você acabou de dizer que foi um plano — lembrou, tentando
entender a situaçã o.
— E foi! — Jaqueline confirmou, balançando a cabeça. — Mas nã o
um plano pra te enganar, ele sempre foi apaixonado por você!
Nã o tinha certeza se era possível, mas a cada frase que ouvia seu
rosto se contorcia ainda mais em confusã o.
— Ele? — perguntou, lentamente.
Rafaela sentiu o coraçã o quase pular do peito, a garganta se
fechando em completo choque. Entã o, ele existia. Nã o havia falado com
alguém que nã o existe, no final das contas. Ele era real.
— Eu sei que parece loucura, mas a gente sempre soube que você
nã o ia se apaixonar se soubesse quem era — foi o que Jaqueline
argumentou, erguendo os ombros. — Quer dizer, pelo menos,
achávamos que nã o.
— Jaqueline. — Rafaela apertou os olhos, respirando fundo, antes
de continuar: — De quem você tá falando? — perguntou sentindo todos
os mú sculos do seu corpo se contraírem.
Ela passou a mã o sobre o rosto, colocando uma franja do cabelo
liso para trá s da orelha.
— A gente pensou que, se você nã o o visse apenas como um
amigo, mas como alguém que realmente gosta de você, seria mais fá cil
— continuou falando, ignorando completamente a sua pergunta.
Rafaela sentia que explodiria a qualquer momento. — Depois de todos
esses anos, você nunca falou nada. Nunca demonstrou nem um
sentimentozinho sequer.
— Por quem, Jaqueline? — questionou novamente, a voz mais alta
dessa vez.
— E ele tinha muito medo, sabe? — Jaqueline deu uma risada,
balançando a cabeça. — Se dependesse dele, nunca teria falado nada.
Rafaela ajeitou a postura e caminhou em passos pesados até mais
perto dela. Cerrando os dentes, seu peito subia e descia com força.
— Pelo amor de Deus. — As palavras saiam pausadas da sua
garganta, mas pesadas como um elefante. — Ele quem?
Jaqueline respirou fundo, os olhos arregalados passeavam por
todos os lugares, menos pela amiga, como se procurassem a coragem
para falar o que guardava a tanto tempo. Quando sua boca finalmente
silabou as letras que formavam aquele nome, todo o corpo de Rafaela
pareceu esquecer como fazer suas funçõ es bá sicas.
Seus olhos piscaram, sua boca ficou seca e suas pernas pareceram
perder a habilidade de se mexerem. Como se as paredes estivessem se
fechando sobre ela, Rafaela precisou se segurar em Jaqueline.
De repente, um filme começou a passar pela sua cabeça, com um
plotwist que nem mesmo ela, com toda a sua criatividade, poderia
imaginar.
Uma semana depois.

DEPOIS DE UM TEMPO encarando o pró prio reflexo no espelho,


Rafaela decidiu que precisaria encarar a situaçã o de cabeça erguida.
Havia conseguido se livrar do assunto por sete dias, quando fingiu
uma dor de estô mago para nã o encarar a verdade — que, por acaso,
tinha nome e sobrenome — na escola. E para ser sincera, nã o foi tã o
difícil assim convencer o pai que nã o precisava de hospital, mesmo que
todos os dias ela fingisse uma dor que mal a deixava andar. Essa era a
parte boa de ter um pai que nã o a conhecia de verdade, afinal: ele nã o
perguntou, apenas aceitou.
Mesmo assim, Jaqueline a visitou todos os dias, com a desculpa de
passar as tarefas que estava perdendo. Ela nã o se importava em ser
xingada ou completamente ignorada e, graças à sua insistência, Rafaela
havia a perdoado — o que nã o significava que as coisas haviam voltado
ao normal. Ainda era difícil de lidar com toda aquela histó ria. Mesmo
assim, nos dias em que se ocupou com playlists depressivas no Spotify
enquanto encarava o teto branco do quarto, decidiu que a culpar nã o
mudaria nada. Conseguia enxergar a boa — apesar de burra e
completamente desnecessá ria — intençã o que a melhor amiga tivera
com a ideia. Também acreditava no seu arrependimento, nas lá grimas
derramadas e nos milhõ es de pedidos de desculpas.
Ele, porém, Rafaela nã o tinha certeza se conseguiria perdoar.
Apesar de saber que, se ele tivesse sido sincero ao invés de fingir
ser outra pessoa, realmente nã o teria dado certo, ela se sentia
enganada. Conseguia visualizar essa realidade, onde dizia que nã o
sentia o mesmo, que nã o queria estragar a amizade e que,
provavelmente, o que ele sentia por ela era coisa da sua cabeça.
A verdade é que Rafaela teria quebrado seu coraçã o, mas isso nã o
diminuía a sua raiva.
— Isso nã o vai dar certo — ela disse, ainda virada para o espelho.
Queria voltar para a cama e dormir até esquecer seu nome. — Nã o vou
conseguir.
Mirela suspirou, caminhando até ela. Colocou as mã os sobre os
seus ombros, enquanto olhava nos seus olhos através do espelho. Nã o
esperava, mas nos dias em que passou enterrada no fundo da cama, era
a madrasta quem fazia companhia na maior parte do tempo. Entre o
excesso de doces — afinal, a madrasta descobriu que a dor era
fingimento com muita facilidade — e longas conversas, ela acabou
contando o que havia acontecido.
— É claro que vai. — A mulher passou as mã os pelo seu cabelo
com cuidado. — Você conseguiu perdoar a Jaqueline.
— É diferente. — Rafaela balançou a cabeça. — É muito diferente.
— Um pouco. — Mirela fez uma careta, se afastando dela para
puxar um casaco do guarda-roupa, a entregando. — Coloca isso, você
vai passar frio.
Rafaela cruzou os braços.
— Eu nã o vou.
— Você vai, sim. — Ela riu, puxando-a pela mã o, fazendo com que
as duas ficassem de frente uma para a outra. Mirela sorriu, abaixando-
se só um pouco a fim de ficar na mesma altura. — Você disse que o
ouviria, lembra? O que você vai fazer depois disso, nã o importa agora.
Mas vai ser bom ouvir o que ele tem a dizer.
Rafaela bufou. Estava agindo como uma criança, mas tinha todo o
direito de fazer birra depois de tudo que havia passado.
— Por que ele quis me encontrar na praia em um dia frio desses?
— questionou, vestindo o casaco com força.
— Nã o sei. — Mirela ergueu os ombros. — Preparada?
— É claro que nã o.
— Ó timo. — Ela sorriu, a puxando para um abraço. — Se precisar
de mim, é só ligar.
Rafaela concordou com a cabeça e suspirou. Balançou o corpo
todo, tentando liberar o peso que sentia em seu corpo, antes de dar as
costas e caminhar em direçã o à porta, sentindo como se o chã o se
movesse embaixo dela.
— E, Rafa… — Mirela chamou, quando já estava quase
atravessando a porta. A cacheada virou o rosto para trá s e viu a
madrasta sorrir. — Vá com o coraçã o aberto, você pode se surpreender.

Enquanto sentia a areia preencher seus sapatos, Rafaela tentava


encontrar as palavras certas.
Poderia xingá -lo, como era a sua vontade inicial desde o momento
em que Jaqueline juntou as sílabas que formavam seu nome; ou talvez
ouviria as suas desculpas e, quem sabe, em algum momento,
conseguisse explicar que saber que ele era ele, tornava seus
sentimentos pelo nú mero desconhecido bem mais difíceis de lidar, já
que nã o era um desconhecido, no final das contas.
Por isso, quando o viu sentado sobre uma toalha azul, sentiu todo
o seu corpo estremecer. Ele observava o mar agitado com uma
expressã o forte no rosto, de uma forma que Rafaela nunca havia visto. O
cabelo voava com o vento e a menina precisou respirar fundo algumas
vezes, conforme seus passos a deixavam ainda mais perto.
De costas, o garoto nã o percebeu quando eles finalmente
dividiram o mesmo espaço. Rafaela sentiu a boca secar e passou a
língua sobre ela, observando-o por alguns segundos até enfim
conseguir dizer alguma coisa.
— Realmente, sua comida favorita é lasanha e nunca choveu no
seu aniversá rio — foi o que conseguiu dizer, vendo o rosto conhecido
virar em sua direçã o com os olhos arregalados e apavorados. — E
mentiu seu signo, você nã o é pisciano.
— A PIADA PERDERIA A GRAÇA se eu dissesse que também sou
aquariano — Vinicius explicou, os cabelos voando para trá s enquanto
ele forçava um sorriso.
Rafaela continuou parada, em pé, a alguns centímetros de
distâ ncia. Sentia-se um pouco sufocada, mesmo em um lugar tã o
grande, enquanto aqueles olhos grandes verdes a observavam, como
um completo estranho. Naquele ponto, ela mal podia se reconhecer,
quem dirá o garoto que costumava chamar de melhor amigo.
Vinicius estava com um moletom grande e preto, o violã o branco
que haviam comprado juntos sobre o colo e um espaço vazio — e muito
convidativo — ao seu lado. Seus mú sculos se contraiam enquanto o
observava de cima, cada detalhe parecendo novo.
— Você mentiu pra mim. — Seus olhos se encheram de lá grimas,
mas Rafaela nã o tentou contê-los dessa vez. Em resposta, Vinicius
apertou os lá bios e, de repente, nã o conseguia mais encará -la.
— Eu sei. — Ele abaixou a cabeça, as palavras escapando da sua
boca. Queria dizer tantas coisas, mas nã o sabia por onde começar. — Eu
nã o deveria ter feito isso. Me desculpa, Rafinha.
Rafaela sentiu vontade de xingá -lo, mas algo dentro dela se
recusava. Era como se seu corpo lutasse para ceder enquanto outra
parte só queria fugir dali. Sem conseguir controlar o pró prio corpo, ela
se sentou ao lado dele.
— É meio tarde para se arrepender. — Estavam, definitivamente,
frente a frente, e ela conseguia sentir cada gota de sangue correndo em
suas veias, o toque do vento em sua pele a fazendo confundir o arrepio
de estar tã o perto com o frio.
— Na verdade, eu nã o estou arrependido. — Ele finalmente
levantou o rosto e, meu Deus, como Rafaela estava linda. Seu cabelo
cacheado voava por conta do vento e seus olhos pareciam ainda mais
brilhantes dali. — Quer dizer, estou arrependido de mentir, mas nã o me
arrependo de tentar.
Ela franziu a testa.
— Tentar me enganar?
Vinicius balançou a cabeça. Seus olhos verdes observavam cada
traço do rosto da amiga e, de alguma forma, Rafaela sentia vergonha.
Como se, pela primeira vez, estivesse livre para admirá -la de verdade.
— Foi um plano idiota — admitiu, sem desviar os olhos dos dela.
— Mas eu nã o estava mentindo sobre meus sentimentos. Por mais
ridículo que seja se apaixonar pela melhor amiga, também é muito
confuso.
Rafaela mordeu o interior da bochecha enquanto pensava no que
falar. Seu melhor amigo estava ali, com a guarda baixa, revelando seus
sentimentos e ela nã o sabia o que dizer. E, afinal, como saberia? Tudo
ainda era complicado e tão confuso.
— Nem passou pela minha cabeça que poderia ser você. — Ela
colocou uma mecha cacheada atrá s da orelha e riu fraco. — Ainda é
difícil de acreditar.
— Eu sei. — Ele deixou escapar uma risada, balançando a cabeça.
— Tu pensava em todo mundo, menos em mim e, sinceramente, eu nã o
sabia se ficava feliz porque o plano estava dando certo, ou me
desesperava. — "Ou desistia de tudo", Vinicius pensou em completar,
mas deixou a continuaçã o apenas na sua mente. — Me desculpa,
Rafinha — ele continuou, ignorando o pensamento intruso. — Me
desculpa, de verdade.
Rafaela soltou o ar e passou a mã o pelo rosto. Se forçava a
controlar aquele impulso crescente de perdoá -lo, mesmo nã o tendo
certeza de que deveria. Afinal, Vinicius ainda era seu melhor amigo de
infâ ncia, o que deixava tudo mais complexo.
— Vini…
— Eu sei que tudo deve estar confuso na sua cabeça, mas,
acredite, é confuso pra mim também — o garoto a interrompeu,
soltando um suspiro pesado. — Desde o começo.
— Desde o começo? — repetiu, confusa.
Ele assentiu.
— Desde quando percebi que era loucamente apaixonado por ti.
Rafaela sentiu o corpo gelar, seus neurô nios se movendo em
câ mera lenta, enquanto aquela palavra repetia na sua mente.
Loucamente. Loucamente apaixonado. Loucamente apaixonado por ela.
A menina tinha certeza que o seu pulmã o havia esquecido como
respirar, porque o ar nã o parecia mais enchê-lo.
Vinicius, por sua vez, estava sério, mas nã o desviava os olhos dos
seus. Ele tentava manter a postura, enquanto tudo que sentia era uma
vontade latente de vomitar de desespero.
— Eu sei, parece exagero — disse, como se lesse seus
pensamentos. — mas nã o é. E tudo que eu fiz, Rafinha, foi porque eu
nã o conseguia falar. Tinha muito medo de estragar o que construímos
até aqui. — Vinicius soltou o ar, antes de completar: — Eu sei que
mentir pra ti nã o deveria ser uma opçã o, mas quando Nicolas teve a
ideia das mensagens... Parecia ser a soluçã o perfeita para tudo que eu
sentia.
Rafaela abriu a boca para responder, mas nã o conseguia pensar
em algo que pudesse expressar o que sentia. Tudo ainda parecia fazer
parte de um sonho esquisito, daqueles que você acorda sem saber o
pró prio nome.
— Você realmente nã o acha que seria mais fá cil me contar? — foi
o que conseguiu perguntar, depois de um tempo. — Tipo, preferiu se
esconder a me contar a verdade?
— E correr o risco de perder pra sempre? — Ele balançou a
cabeça. — Eu nã o podia.
— Vini... — Rafaela suspirou pesado, o coraçã o apertando no
peito. — Isso é loucura.
— Eu sei. — Ele concordou com a cabeça. — E foi só quando tu
começou a desconfiar daquele cara que eu vi que tudo tinha dado
errado.
Os olhos de Rafaela alternavam entre a areia e o mar, sem
considerar olhar para Vinicius.
— Eu nã o sei o que te dizer. — Sua voz saiu tã o baixa que ele mal
conseguia ouvir. — Vini, isso é coisa demais pra mim.
E realmente era. Nã o bastava lidar com toda a mentira, Rafaela
agora precisava colocar o rosto de Vinicius no garoto das mensagens,
mas parecia uma missã o impossível.
— Eu sei, nã o precisa dizer nada agora, Rafinha. — Ele mordeu o
interior da bochecha e Rafaela concordou com a cabeça.
— Até ontem, você era meu melhor amigo de infâ ncia, que
compartilhava histó rias e uma panela de brigadeiro e de repente... —
Ela apertou os lá bios. — De repente eu nã o te conheço mais.
O rosto de Vinicius murchou imediatamente. Sabia que seria
difícil, mas nã o imaginou que doeria tanto.
— Eu entendo. — Ele forçou um sorriso, tentando disfarçar o
incô modo. —Sei que foi uma ideia idiota e eu também nã o quero que tu
finja sentimentos por mim, jamais faria isso. — Vinicius deixou a cabeça
pender um pouco pro lado direito e abriu um sorrisinho, que fez o
coraçã o de Rafaela apertar. — Como é que tu sempre diz? "Aquarianos
são racionais", né? — Vini ajeitou a postura. — Bom, eu prometo que
vou agir mais com o meu cérebro dessa vez.
Rafaela torceu a boca.
— Os Aquarianos costumam ser corajosos.
— Eu tenho ascendente em câ ncer — respondeu, prontamente.
Nã o entendia muito de signos, mas sabia que mesmo que Rafaela
fingisse que nã o, sabia tudo sobre eles.
Ela quis rir, mas nã o deixou que seu gosto por signos e tendência
a rir das piadinhas de Vinicius vencerem a guerra. Em vez disso, soltou
um suspiro.
— Antes de você ir embora e ficar mais uma semana sem falar
comigo... — Ele puxou o violã o e ajeitou sobre a perna, que estava
cruzada. — Posso cantar pra ti?
Rafaela mordeu o interior da bochecha. Provavelmente, aquela
nã o era uma boa ideia.
— Vini, nã o sei se é uma boa ideia… — externalizou o
pensamento.
— Por favor. — Vinicius fez um bico e juntou as mã os. — Tu pode
me odiar o quanto quiser depois.
Ela quis negar, mas quando abriu a boca, sequer conseguia
pronunciar a palavra. Sentia raiva, mas nã o o suficiente para dizer nã o
aos olhos verdes que a encaravam. Entã o, respirou fundo antes de
responder:
— Tudo bem.
A garota o observou quando os primeiros acordes começaram a
surgir. O barulho das ondas ao fundo criava uma atmosfera leve, bem
diferente da que sentira quando chegou ali. Rafaela o olhou de cima a
baixo: a mecha de cabelo que caía sobre a testa; a pintinha no canto do
olho que ela havia esquecido que estava ali, criando o contraste perfeito
com os cílios longos e escuros; o moletom que o fazia parecer ainda
mais alto e os pés na areia. Tudo tã o familiar que era impossível nã o
sentir o corpo amolecer.
— Oh, there she goes again, every morning is the same. You walk on
by my house, I wanna call out your name. — ele cantou e Rafaela quis
gritar. Nã o era justo que Vinicius tivesse escolhido Shawn Mendes, nã o
naquele momento. — I wanna tell you how beautiful you are from where
I'm standing. You got me thinking what we could because, I keep craving,
craving. You don't know it but it's true. Can't get my mouth to say the
words they wanna say to you. This is typical of love, can't wait anymore
won't wait I need to tell you how I feel when I see us together forever.
Vinicius estava de olhos fechados, concentrado em cada palavra
que saia da sua boca. Rafaela quis acreditar que era uma mú sica
aleató ria, mas conhecia a letra muito bem.
Ele havia escolhido de propó sito.
— In my dreams you're with me, we'll be everything I want us to be,
and from there, who knows? Maybe this will be the night that we kiss for
the first time. — Vinicius continuou, abrindo os olhos. — Or is that just
me and my imagination?
E entã o, silêncio. As ondas do mar eram a ú nica coisa que emitia
som, enquanto os dois adolescentes se encaravam.
Rafaela pensava na traduçã o, que parecia aparecer em caixa alta
na sua mente.
“Aí vai ela de novo, todas as manhãs é a mesma coisa. Você passa na
frente da minha casa, eu quero chamar seu nome. Eu quero te dizer o
quão linda você é de onde estou observando. Você me faz pensar no que
podíamos ser. Eu fico na vontade. Você não sabe, mas é verdade. Não
consigo fazer minha boca dizer as palavras que quero dizer a você. Isso é
típico do amor, não posso mais esperar. Oh espere, eu preciso te dizer o
que sinto, quero nos ver juntos para sempre. Em meus sonhos você está
comigo e somos tudo o que queria que fôssemos. E assim, quem sabe?
Talvez esta seja a noite que nos beijaremos pela primeira vez. Ou será que
sou só eu e minha imaginação?”
Para a surpresa de Vinicius, a garota sorriu.
— Você é ó timo nisso — constatou e, mesmo que ele já soubesse,
gostava de ouvi-la falar aquilo. O coraçã o de Rafaela batia forte quando
ela disse: — Mas, eu preciso ir.
Nã o o esperou responder, e tentou ignorar a expressã o frustrada
em seu rosto. Usou as mã os de apoio para ficar em pé, esfregando a
roupa para espantar a areia acumulada em si. Vinicius assentiu,
forçando um sorriso. Os seus olhos, porém, mostravam que nã o queria
que ela fosse.
— Nos vemos depois, Vini.
NO COMEÇO, Rafaela nã o entendeu quando Jaqueline olhou nos seus
olhos e disse, como se aquele nã o fosse o maior absurdo já proferido
por ela: "eu estou apaixonada pelo Nicolas e ele por mim”. Soltou uma
risada alta, mas a melhor amiga continuava a encarando séria, o que a
fez perceber que nã o era uma piada.
Na quinta-feira, quando finalmente decidiu ir à aula, Rafaela ficou
os observando de longe durante o intervalo enquanto conversavam.
Nã o havia feito muitas perguntas, nã o tinha cabeça para fazê-las. Mas
vendo os sorrisinhos e os olhares intensos, muitos questionamentos
surgiram em sua mente.
Foi por isso que eles estavam ali, sentados frente a frente. A dupla
de loiros parecia tensa, os ombros encolhidos e expressõ es nervosas em
sua direçã o. Rafaela franziu o cenho e soltou um suspiro, sentindo a
curiosidade explodir por todas as suas veias.
— E aí, quem vai me contar como isso começou? — Ela apontou
para os dois, que trocaram um olhar rá pido.
Jaqueline sentia o coraçã o pular no peito e buscava em sua mente
a melhor maneira de explicar como os dois haviam se tornado… aquilo.
Ainda nã o tinham dado um nome, até porque nem sabiam o que eram.
Eles apenas eram algo.
— Vinicius descobriu que eu estava apaixonado um pouco depois
de começar com as mensagens — foi Nicolas quem começou a explicar,
sem medo. Desde o início, ele havia sido o mais corajoso dos três. — Ele
me pegou encarando a Jaqueline e sacou na mesma hora.
Rafaela franziu a testa e percebeu que já havia escutado aquela
histó ria antes.
— Jucicleide!
— Jucicleide? — A loira fez uma careta. — Quem é Jucicleide?
Nicolas deixou escapar uma risada. No fundo, ele havia ficado
impressionado com como Rafaela nã o descobriu tudo no dia em que
precisou desabafar. Estava tã o atordoado com tudo, que mal teve tempo
de inventar um nome que nã o começasse com a mesma letra da loira.
— Tu é a Jucicleide. — Ele virou o rosto em sua direçã o e abriu
um sorriso. Depois, voltou a encarar Rafaela: — Eu disse pra ti, a Juci…
Jaqueline, nã o queria nada comigo. E eu tentei, tá ? Muito.
A loira assentiu.
— Me mandou bilhetes româ nticos. — Ela ergueu os ombros, e o
queixo de Rafaela caiu.
— Preferi ser mais old school que o Vinicius.
A cacheada riu, balançando a cabeça. Queria sentir raiva por só
saber daquela histó ria tanto tempo depois, mas mal podia se conter. A
vida do quarteto parecia a porcaria de um filme adolescente clichê,
aqueles em que ela costumava reclamar por ser tã o previsível.
— Foi até um pouco fofo — Jaqueline admitiu, segurando o riso.
— Mas a nossa vida amorosa nã o era o foco do momento, por isso
tentei fugir o má ximo que pude.
— Pode admitir, loirinha, foi muito fofo. — Nicolas piscou pra ela,
um sorriso travesso nos lá bios. — Eu sei ser um cara româ ntico quando
quero.
Rafaela apertou os lá bios, tentando conter o sorriso. Aquela era
uma dinâ mica engraçada de observar, e também era suficiente para que
nã o se importasse mais com as mentiras. Com certeza já havia os
perdoado por ter a deixado fora daquela histó ria de amor e era tudo
culpa daquele maldito e nítido brilho nos olhos de cada um deles.
— Entã o, vocês estã o namorando? — Ela quis saber.
Nicolas torceu a boca, passando a mã o pelos cabelos loiros.
— Eu já pedi cinco vezes, mas ela disse que nã o.
— Quê? Por quê? — Rafaela franziu a testa e encarou a melhor
amiga. — Achei que você gostasse dele.
— Eu gosto! — Jaqueline se defendeu, erguendo as mã os. —
Mas… Eu nã o queria aceitar sem que você soubesse de tudo.
Foi entã o que Rafaela sorriu de verdade depois de muito tempo.
Mesmo que para muitas pessoas perdoar seus melhores amigos, depois
de todas as mentiras, pudesse ser um absurdo, ela nã o conseguia fazer
diferente. Aprendeu nos ú ltimos dias a analisar o todo ao invés de se
fechar o pensamento a uma ú nica coisa — sua amizade repentina com
Mirela que o diga. E, no fim das contas, todos sabiam que estavam
errados e pediram desculpas.
Por isso, ela soltou um suspiro longo e se levantou da cadeira. Deu
a volta na mesa da cantina que os separaram e parou no meio dos dois,
que continuavam sentados.
— Levantem.
Nicolas e Jaqueline trocaram um olhar desconfiado antes de
ficarem de pé em frente a garota. Rafaela deu um tapa no ombro de
Nicolas antes de dizer:
— Vamos lá , pede de novo.
Ele franziu a testa.
— Como assim?
— Pede ela em namoro, idiota. — Rafaela rolou os olhos.
O loiro sorriu, antes de girar o corpo até ficar de frente para
Jaqueline. Ela prendeu o lá bio inferior nos dentes, tentando conter o
sorriso que começava a se formar em sua boca e Rafaela sentiu vontade
de chorar, mas foi obrigada a rir quando o mais alto balançou todo o
corpo, tentando se livrar do nervosismo.
— E aí, loirinha. — Ele soltou o ar com força antes de pedir: —
Quer namorar comigo?
Jaqueline mal pô de conter suas reaçõ es. Seu rosto se transformou
em um sorriso ambulante, a risada alta ecoando por toda a escola. Todo
o seu corpo pulava quando ela se jogou nos braços de Nicolas, que foi
obrigado a pular junto por conta do contato dos seus corpos.
Rafaela riu junto, observando a cena se desenrolar na sua frente.
— Acho que isso é um sim — constatou e os dois olharam em sua
direçã o.
Nicolas e Jaqueline sorriram e a cacheada se perguntava como
nã o havia percebido antes que eles eram tã o lindos juntos. Nã o apenas
porque a cor de cabelo combinava, mas porque tudo nos dois parecia
ser feito sobre medida um para o outro.
— E tu? — Nicolas perguntou, sem tirar os braços da nova
namorada. Rafaela trocou o sorriso por uma careta confusa.
— O que tem eu?
— Vai ficar sem falar com o Vini por quanto tempo?
Todo o corpo de Rafaela murchou. Os dois ainda nã o tinham se
falado desde o dia na praia, ainda que a cena se repetisse na sua mente
feito looping desde entã o.
A verdade era que ela mal sabia por onde começar. Nã o podia
fingir que, em um passe de má gica, tudo ficaria bem — mesmo que, lá
no fundo, tivesse o perdoado. Também nã o era como se pudesse se
apaixonar por ele de repente. Vinicius ainda era o seu melhor amigo e
mudar aquela percepçã o em sua mente era difícil, mesmo que tivesse se
interessado pelo nú mero desconhecido.
Aliá s, fazer seu cérebro entender que eles eram a mesma pessoa
também estava sendo um processo complicado.
— Eu nã o tenho nada pra dizer.
Jaqueline empurrou seu ombro.
— É claro que você tem. Ele é seu melhor amigo.
— Ele está apaixonado por mim — Rafaela lembrou e falar aquilo
ainda era estranho. — Como posso agir como se isso nã o fosse algo
super sério?
— Nã o estamos pedindo para fingir que ele nã o é apaixonado por
ti — Nicolas interveio. — Mas, sério, Rafa. Será que tu nã o pode dar
uma chance? — Ele fez o nú mero um com o dedo.
— Uma chance?
— Para ver no que vai dar. — Ele ergueu os ombros e abriu um
sorriso. — Nã o precisa fazer nada, só deixar Vini voltar pra tua vida
para descobrir como é a versã o apaixonada dele.
— É . — Jaqueline concordou com a cabeça. — Quem sabe você
descubra que gosta dessa versã o.
Rafaela apertou os lá bios, sem saber o que responder. Apenas
algumas semanas antes, nunca imaginaria cogitar aquela possibilidade.
Tanta coisa havia mudado, em tã o pouco tempo, que ela nã o tinha
certeza nem se a sua versã o continuava a mesma.
Ela respirou fundo. Bem, é claro que poderia pelo menos tentar.
Na pior das hipó teses, perderia o melhor amigo e precisaria de muita
terapia — sendo que, na verdade, aquele já parecia ser o cená rio atual.

O sinal do início da aula apó s o intervalo já havia tocado, mas


Rafaela andava pelos corredores como se estivesse procurando um
lugar para se esconder em meio ao apocalipse. Tudo isso porque
Vinicius nã o havia voltado para a sala de aula.
Por um lado, ela tinha certeza que a culpa era sua. Há dias evitava
o melhor amigo, enquanto Nicolas e Jaqueline tentavam garantir que
nenhum dos dois ficasse sozinho durante as horas que passavam na
escola. Por isso, quando ele nã o voltou depois do intervalo — em que
ela sequestrou o casal e Vinicius, consequentemente, precisou passar
vinte minutos abandonado — ela soube que precisava ir atrá s dele.
Ainda nã o sabia o que falaria ao encontrá -lo, mas caminhava pela
escola à procura do melhor amigo, colocando o rosto por todas as
portas vazias e chamando seu nome nos banheiros masculinos feito
uma maluca. Curiosamente, o colégio nunca pareceu tã o grande
conforme ela andava por cada parte dele.
Rafaela virou o corredor que levava para a biblioteca quando
ouviu um barulho alto que provou um eco no caminho vazio. Ela franziu
a testa e continuou caminhando, acompanhando mais uma série de
estrondos seguidos um do outro. Quando seu corpo parou em frente ao
que parecia ser o lugar de onde vinham, ela quase soltou uma risada.
A placa da sala do zelador a encarava como em um déjà vu e a
cacheada apertou os lá bios enquanto girava a maçaneta com cuidado,
sem saber o que encontraria ali dentro.
Uma fresta de luz preencheu a sala escura e ela reconheceu o
cabelo castanho e brilhante no momento que o viu. Vinicius colocou o
braço sobre os olhos, incomodado com a luz, antes de perguntar:
— Nicolas? — Ele esfregou os olhos e abaixou a cabeça. — Cara,
me ajuda aqui. Esbarrei em uma vassoura e causei um efeito dominó .
Rafaela nã o conseguiu segurar a risada dessa vez, entrando na
sala e fechando a porta atrá s de si, fazendo com que a escuridã o
voltasse.
— Eu nã o sou o Nicolas — respondeu, enquanto se abaixava para
o ajudar a arrumar a bagunça. — A luz ajudaria nesse processo.
— Pensar no escuro é melhor — ele disse, colocando algumas
delas de volta na parede. — Como me achou aqui?
— As vassouras te denunciaram. — Rafaela deu uma risadinha e,
se a luz estivesse acesa, Vinicius perceberia que a risada era mais de
nervosismo do que por achar a situaçã o engraçada.
Da mesma forma, ela também veria que o seu cabelo começava a
grudar na testa, o suor denunciando o pâ nico de estar perto dela. Já
haviam ficado sozinhos antes, mas nunca com ela sabendo dos seus
sentimentos.
Tudo agora parecia diferente.
— Desculpa ter saído daquele jeito — ela falou, depois de um
tempo. Os dois já haviam juntado todas as vassouras e estavam
parados, envoltos pela escuridã o. — No dia da praia, era muita coisa
para assimilar.
É claro que Rafaela preferiu omitir o fato de que o ouvir cantar
havia afetado seu estado mental naquele dia e a feito sonhar com
aquela cena, dia e noite. Era como se estivesse sendo assombrada pela
mú sica do Shawn Mendes.
— Tudo bem, Rafinha. Eu entendo — respondeu, a voz baixa.
— Obrigada por entender.
E silêncio.
Nenhum dos dois sabia como continuar aquela conversa depois
de tudo. O que antes era algo corriqueiro, tinha agora uma trava, onde
nenhuma palavra parecia a certa a ser usada com o outro. Como se
qualquer coisinha pudesse fazer um estrago.
— Gostou da mú sica? — Vinicius perguntou.
— É claro que gostei. — Ela sentiu o rosto esquentar e tinha
certeza que estava vermelha. Agradeceu mentalmente pela sala escura,
antes de continuar: — Quer dizer, eu amo Shawn Mendes.
— Eu sei. — Vinicius riu. — Achou que eu ia desperdiçar todo
aquele trabalho com um sertanejo ó bvio? — brincou, fazendo a menina
rir também.
— É , preciso admitir que você é uma pessoa criativa.
— Eu preciso ser — disse, enquanto apertava a mã o ao lado das
coxas. — Quer dizer, te conquistar nã o é uma tarefa para amadores.
Rafaela prendeu os lá bios, sentindo o coraçã o pulsar no peito.
Mais uma vez, lá estava o enjoo de puro desespero que aparecia sempre
que se lembrava que Vinicius gostava dela. Gostava de verdade.
— Olha, Vini. — Ela passou a mã o pelo pescoço. — Eu nã o posso
dizer que sinto algo assim por você também, mas somos melhores
amigos. Eu te perdoei e, prometo, vou tentar me acostumar com a ideia.
— Certo… — Vinicius franziu a testa. Nã o sabia muito bem o que
ela queria dizer com aquilo e, como se lesse seus pensamentos, Rafaela
completou:
— Isso nã o quer dizer que vou me apaixonar de volta, só quer
dizer que… — Ela soltou o ar e mordeu o lá bio inferior. — Que nã o vou
te manter longe de mim.
Vinicius pularia de alegria se pudesse, mas se limitou a aproveitar
a escuridã o para sorrir como há muito tempo nã o sorria. Aquela
poderia nã o ser a resposta perfeita, mas era alguma coisa. Em um
mundo em que ele precisou se acostumar com a dú vida, ter Rafaela por
perto enquanto nã o precisa se esconder parecia ser uma ó tima ideia.
— Isso é ó timo.
— Nã o quero te dar falsas esperanças.
Ele concordou com a cabeça, sem lembrar que ela nã o podia o ver.
— Eu me preocupo com isso depois — disse firme. Queria abraçá -
la, mas sabia que aquilo podia ser um pouco demais. — Só de saber que
podemos continuar de onde paramos, faz tudo valer a pena.
Rafaela também sorriria se nã o fosse pela vontade de vomitar
com o nervosismo. Nã o tinha certeza de onde a sua decisã o poderia os
levar, mas sabia que ali, na sala fedendo a desinfetante, uma nova
temporada da sua vida começava.
O SOL BRILHAVA naquele fim de tarde e as ondas dançavam com a
força do vento, criando o cená rio perfeito para aquele momento. O mar,
com seu azul profundo, parecia aplaudir silenciosamente, enquanto
todos se reuniam ao redor do pó dio, montado na areia fina e dourada.
O coraçã o de Rafaela estava quentinho, os olhos fixos no loiro
sobre o topo. Seu sorriso parecia brilhar mais que o pró prio sol e se
juntava com os cabelos loiros e molhados, penteados desajeitamente
para trá s. Nicolas segurava o troféu como se fosse a conquista de uma
vida inteira. Ao seu lado, os outros finalistas exibiam sorrisos
orgulhosos, cada um segurando suas medalhas e prêmios.
A multidã o ao redor aplaudia e torcia, mas ele só se importava
com o trio, que pulava animado. Era impossível nã o lembrar de quando
tudo começou e como, desde cedo, Nicolas aprendeu a amar o mar e a
liberdade que ele trazia.
Quando desceu do pó dio, Jaqueline mal pô de se conter e correu
ao seu encontro. Animada, a loira o envolveu em um abraço apertado, e
por um momento, eles pareceram flutuar em seu pró prio universo,
alheios ao mundo ao seu redor, enquanto Rafaela observava a cena com
um sorriso sincero.
Quando os dois amigos se aproximaram, Jaqueline deu espaço
para que eles também cumprimentassem o namorado.
— Você foi incrível! — Rafaela falou, o envolvendo em um abraço
apertado. — Eu tô muito orgulhosa!
Nicolas soltou uma gargalhada.
— Obrigada, baixinha. — Ele passou a mã o pelos seus cabelos,
bagunçando-os, e se virou para Vini.
O mais alto depositou um soco forte no braço do melhor amigo,
antes de puxá -lo para um abraço.
— Aquela ú ltima onda, cara! — Vinicius falou, abafado pelo cabelo
comprido do loiro. — Tu é o melhor de todos.
Agitada, Jaqueline o puxou o loiro pelo braço, juntando os corpos
com animaçã o.
— E agora, vamos comemorar no parque! — Ela pulou, animada,
olhando para o namorado com um sorriso sugestivo antes de dizer: —
Vamos logo, eu sinto que o dia de hoje promete.

As noites costumavam ser geladas naquela época do ano, mas


Rafaela nã o se importava. Depois de um dia de sol escaldante na sua
cabeça, ela quase agradeceu por estar com frio, enquanto caminhava
pelo parque abraçada com o urso de pelú cia gigante.
Suas pernas já começavam a doer, resultado de horas andando de
um lado para o outro, mas estava tã o satisfeita que jamais reclamaria —
nem quando Nicolas apontou para a roda gigante que brilhava junto
com as estrelas do céu.
Rafaela mordeu o interior da bochecha enquanto observava a
grandiosidade do brinquedo no seu lugar da fila. Sinceramente, nã o
conseguia entender a fascinaçã o das pessoas por girar em algo que,
com certeza, nã o era seguro. Principalmente em parques montados e
desmontados vá rias vezes no ano.
— Você foi onze vezes seguidas na montanha-russa. — Jaqueline
rolou os olhos. — Como pode estar com medo da roda-gigante?
— Tem muito vento! — Ela apontou para a cadeira parada lá no
alto. — Olha como balança.
Mas ninguém se importou. Rafaela estava destinada a subir
naquele monstro gigante e aguentar longos quinze minutos girando
sem parar. Rapidamente, agradeceu pelo medo que sentia de morrer
quando entrou em uma das cabines e percebeu que o mais novo casal
nã o iria com ela. Na verdade, eles estavam muito felizes que só duas
pessoas podiam entrar em cada uma delas, porque significava que a
cacheada seria obrigada a ficar sozinha com Vinicius.
Algo que eles tentavam incansavelmente há dias.
Nã o que para Rafaela isso fosse um problema, se ignorasse o
embrulho no estô mago toda vez que ficavam sozinhos.
Quer dizer, nã o que fosse uma sensaçã o ruim. Costumava ser, no
início, agora era apenas… diferente. Principalmente quando surgia
depois de Vinicius sorrir. Ou quando aquela mecha de cabelo caia sobre
o olho, e ela precisava segurar a vontade de tirá -la dali; ou quando ele
sorria a ponto de fazer os olhos se fecharem quase que completamente.
Ela jamais admitiria algo tã o absurdo. Exagerado. E,
completamente, sem sentido.
Por isso, preferiu se sentar do outro lado, mesmo que tenha se
arrependido alguns segundos depois. Frente a frente, Vinicius
tamborilava sobre o banco da cabine, cantarolando alguma mú sica que
Rafaela nã o conseguia reconhecer.
— O que você tá cantando?
Vinicius a olhou e ergueu os ombros.
— Ed Sheeran.
Rafaela assentiu, suspirando forte. O que chamou a atençã o do
melhor amigo.
— Tu tá passando mal? — Ele quis saber, preocupado.
A menina deixou uma risada escapar antes de dizer:
— Eu já comentei com você que rodas-gigantes de parques
mó veis nã o sã o seguras, nã o comentei? — Rafaela fez uma careta.
Estavam cada vez mais no alto e, mesmo com a velocidade baixa por
ainda ter pessoas subindo no brinquedo, o vento fazia a cabine balançar
mais do que acreditava ser aceitável.
Ao invés de apoiá -la, Vinicius riu, balançando a cabeça. Depois,
apontou para a cabine acima deles.
— Olha ali — ele disse, se direcionando a Nicolas e Jaqueline. —
Eles estã o se divertindo. Deveríamos nos divertir também.
Rafaela apertou os lá bios. É claro que eles estavam se divertindo,
pensou ela, os dois haviam acabado de começar uma histó ria de amor
cheia de fofurices e carinhos, enquanto ela só tinha uma dor de
estô mago constante.
— O tempo parece nã o passar aqui — Rafaela comentou,
ignorando a fala do melhor amigo. Vini olhou o reló gio e assentiu.
— É , só se passaram cinco minutos.
A menina queria jogar as costas no banco e escorrer até que
estivesse no chã o, sem a possibilidade de ver que estavam cada vez
mais alto. Ao invés disso, admitiu:
— Estou com medo.
— Essas coisas recebem milhares de pessoas todo dia e nada
acontece. Além disso, Rafinha, eles fazem manutençõ es recorrentes e…
Rafaela balançou a cabeça, em negativa, fazendo com que as
palavras sumirem da sua boca.
— Nã o, nã o é disso que estou com medo — ela explicou, as mã os
indo e voltando na pró pria coxa. — Quer dizer, estou com um pouco de
medo da altura e dos parafusos enferrujados, mas nã o é disso que eu tô
falando.
Vinicius franziu a testa, sem entender o que a melhor amiga
estava dizendo. Na verdade, Rafaela era uma incó gnita para eles nos
ú ltimos dias. É claro que um pouco da culpa era dele: descobrir que o
seu melhor amigo nã o apenas gosta de você, mas costumava te mandar
mensagens anô nimas fingindo ser outra pessoa nã o era uma tarefa fá cil
— e perdoá -lo, menos ainda — mas ele realmente esperava que, com o
passar dos dias, tudo se resolvesse.
— Qual o problema, Rafinha?
A menina suspirou. Eram muitos e, se fosse citar todos, precisaria
de muito mais do que dez minutos. Mas ela preferiu ser sincera.
— Isso tudo é muito estranho, você nã o acha? — ela perguntou,
apontando para os dois. — Nó s nos conhecemos há tanto tempo, mas os
ú ltimos meses foram diferentes.
Vinicius nã o falou nada, apenas continuou olhando com atençã o.
Por isso, Rafaela completou:
— Acho que fui ingênua em acreditar que seria mais fá cil. — Ela
olhou para o lado, sentindo um friozinho na barriga ao se perceber tã o
pró xima à lua. — Sei lá , estou me sentindo estranha.
Ele franziu a testa.
— Estranha como?
— Nã o sei. — Rafaela balançou a cabeça. — Quando estou com
você, tenho vontade de vomitar.
Vinicius arregalou os olhos. Sentiu o coraçã o apertar tã o forte no
peito que pensou ser um infarto.
— Tu tem nojo de mim? — Seu tom de voz era triste, por isso
Rafaela abanou as mã os com rapidez.
— Quê? Nã o! — Ela balançou todo o corpo, fazendo a cabine se
mover também. Imediatamente, a cacheada apertou as mã os no banco.
— Nã o é isso.
Vinicius suspirou de alívio, mas fez uma expressã o confusa em
seguida.
— Entã o eu nã o entendi.
— Nã o é nojo, eu só … — Rafaela apertou os lá bios e o olhou.
Mesmo no escuro, os olhos verdes de Vinicius brilhavam tã o fortes que
ela os sentia observando a sua alma. — Você me deixa… Nervosa.
— Nervosa? — Ele arqueou as sobrancelhas.
Rafaela concordou.
— Isso é ó timo! — Ela franziu a testa, confusa. Vinicius abriu um
sorriso tã o grande que Rafaela quase se assustou. — Sabe quanto
tempo eu me senti assim do teu lado, Rafinha?
— Você sentiu vontade de vomitar?
— O tempo todo. — Ele deu uma risada. — Com o tempo eu me
acostumei, mas, Rafa, isso é ó timo, significa que tu…
Ela franziu a testa.
— Sente algo — completou, com medo de acabar insinuando algo
que pudesse ser demais para ela.
Rafaela sentiu o enjoo se intensificar e mordeu o interior da
bochecha.
— Você é meu melhor amigo.
— Tu sabe o que dizem, né?
— O quê? — Seus olhos formaram uma linha fina e ela colocou a
mã o direita na barriga, sentindo a embrulhar.
— Que o ideal é se casar com o seu melhor amigo.
Ela engoliu em seco, sentindo uma onda de energia percorrer o
seu dedo mindinho até um fio de cabelo.
— Quem disse isso?
— Alguém muito inteligente, com certeza. — Vinicius sorriu, mas
Rafaela só conseguia sentir a cabeça girar.
— Ei, casal! — A voz de Nicolas fez os dois virarem-se
imediatamente e ela sentiu o rosto queimar quando percebeu que
respondeu ao “casal”. — Vocês têm mais uma volta para acabar com
essa enrolaçã o no lugar mais româ ntico desse parque!
— Ou eu juro — Jaqueline completou a frase do namorado,
abrindo um sorriso. — que vou trancafiar vocês em um quartinho
escuro até que esse beijo aconteça!
O QUARTO DE NICOLAS cheirava a praia. O que era um pouco
estranho, considerando que sua casa nã o era tã o pró xima assim. Talvez
fossem as pranchas, Rafaela pensou, com certeza elas deveriam ser
guardadas em um lugar apropriado e nã o em um quarto de 12m².
Além disso, estaria totalmente escuro ali se nã o fosse pelo abajur
azul-marinho com desenhos de peixes iluminando apenas um ponto do
quarto. Por isso, quando Vinicius sentou-se ao seu lado, Rafaela prestou
atençã o nos detalhes visíveis no rosto dele: aquele fio de cabelo que
insistia cair em sua testa e os olhos verdes ainda mais brilhantes devido
à pouca luz. Ele estava tã o perto que fazia o interior da garota revirar.
— Eu nã o achei que ele estivesse falando sério — Vinicius
comentou, soltando um suspiro alto.
Os dois estavam trancados a mais ou menos meia hora, apó s
serem enganados com um jantar falso de comemoraçã o e aprisionados
no quarto com cheiro de mar.
Nicolas e Jaqueline nã o pareciam se importar com possíveis
ataques de claustrofobia e fizeram questã o de retirar a lâ mpada, os
obrigando a permanecer no escuro — mas, para a sua sorte, eles
esqueceram do abajur.
A loira havia batizado o momento de "o dia do beijo" e Rafaela
sabia disso porque Jaqueline fez questã o de gritar do outro lado da
porta, seguido por uma gargalhada maquiavélica.
— Tu sabe que nã o precisa fazer nada, nã o sabe? — Vinicius
cutucou seu ombro e abriu um sorriso de lado. — A gente pode ficar
conversando até que eles desistam dessa brincadeira idiota e nos tirem
daqui — sugeriu.
Rafaela deixou uma risada escapar e assentiu.
— Como você pode ser tã o paciente? Quer dizer, qualquer outra
pessoa não continuaria me esperando… …
Vinicius riu, antes de falar:
— Rafinha, eu passei anos gostando de ti em segredo — lembrou.
— Acha que eu nã o posso esperar o tempo que for necessá rio?
Ela apertou os lá bios e virou o rosto em direçã o ao seu.
— É que já se passaram dois meses desde que Jaque me contou
tudo — ela recordou, erguendo o canto dos lá bios. — Você nã o tem
medo desse dia nunca chegar?
O garoto soltou o ar, deixando a cabeça pender para o lado direito,
pensando.
— Nã o há nada que eu nã o possa superar — disse, mas sua voz
nã o parecia muito segura.
— Posso te contar uma coisa? — Ele concordou com a cabeça. —
Eu sinto falta das mensagens.
Vinicius sorriu e seus olhos, que antes eram iluminados pela
fresta de luz, quase sumiram. O estô mago de Rafaela revirou em
resposta.
— Era divertido — disse. — E um pouco angustiante.
Rafaela riu.
— Você me ajudou muito, sabia? Pessoalmente e virtualmente.
Ele sentiu o rosto queimar.
— Vai demorar muito aí? — A voz esganiçada de Jaqueline ecoou
dentro do quarto, interrompendo a conversa e o adolescente revirou os
olhos. — Eu e meu namorado já nos beijamos umas duzentas vezes só
nesses minutos que vocês estã o tagarelando aí dentro!
Rafaela escondeu o rosto com as mã os e balançou a cabeça,
sentindo a vontade de se esconder em um buraco crescer
gradativamente.
— Nã o tenho culpa se vocês nã o conseguem manter essa língua
na boca por tempo suficiente! — Vinicius gritou de volta e a cacheada
quase riu, se nã o fosse a vontade de sumir.
— E minha língua está muito satisfeita com isso, obrigado! —
debochou Nicolas, seguindo a gargalhada de Jaqueline. Rafaela soltou o
ar e se levantou da cama, caminhando até a porta. Ela bateu forte por
três vezes.
— Jaqueline, isso é ridículo! — reclamou, batendo mais algumas
vezes na estrutura de madeira. — Abre essa porta e deixa a gente sair
daqui!
— Nem pensar — a loira respondeu, do outro lado. — Vocês dois
estã o evitando o inevitável e eu vou deixar vocês aí até que percebam!
A garota encostou a testa na porta e grunhiu. Queria ser forte o
suficiente para quebrar a fechadura, mas sabia que só ganharia uma
contusã o caso tentasse. Por isso, fez a voz mais triste que conseguia.
— Você sabe que isso é crime, né?
— Nem começa, Rafaela — foi Nicolas quem respondeu. — Para
beijar o Bruno achando que era o Nú mero desconhecido, tu nã o pensou
duas vezes.
Ela sentiu o rosto queimar.
— É diferente — ela respondeu baixinho, mas o loiro nã o ouviu.
— Vamos ser sinceros, Rafinha — Nicolas continuou, chamando-a
pelo apelido que apenas Vinicius costumava usar. — Tu já sabe o que
quer, o que está te impedindo agora?
Rafaela soltou um suspiro alto e virou-se, de costas para a porta.
Vinicius ainda estava sentado, uma fresta de luz iluminando uma parte
do seu rosto. A menina apertou os lá bios e caminhou até ele
lentamente.
— Você também me acha uma idiota?
O menino balançou a cabeça, fazendo o cabelo balançar e aquela
mecha insistente cair sobre o seu olho.
— Eu nã o te acho uma idiota — respondeu. Apesar de Rafaela nã o
acreditar, ele parecia sincero. — Mas confesso que eu me pergunto por
que foi fá cil beijar o Bruno.
Rafaela ergueu os olhos, sentindo o coraçã o apertar. Até ali, o
melhor amigo nã o havia usado abertamente a palavra beijo e apenas a
mençã o daquelas sílabas saindo da sua boca fazia aquela sensaçã o
incô moda na barriga surgir.
Nossa, ela deveria ir ao médico. Aquilo, definitivamente, nã o era
normal.
— A culpa foi sua — se defendeu e Vinicius arqueou as
sobrancelhas. — O que você queria que eu fizesse? Estava descobrindo
meus sentimentos por você, mas eu nunca soube que você era você.
Ele cruzou os braços, erguendo apenas uma sobrancelha.
— Entã o, eu sou o culpado?
— É claro, foi você quem começou a mentir. — Rafaela ergueu os
ombros. — Ele é pisciano, sabia? Fez a mesma piadinha ridícula que
você fez por mensagem.
Vinicius fez uma careta, tentando segurar a risada. Quais as
chances de o culpado pelo beijo ser o mundo astroló gico?
— Que merda.
— Pois é. — Ela colocou as mã os na cintura. — Eu só segui os
meus instintos.
— Engraçado… — Dessa vez, Vinicius riu, chamando a atençã o da
melhor amiga. — Comigo esses instintos estã o sempre bem contidos,
né?
O tom insinuante da sua voz fez Rafaela arquear as sobrancelhas,
surpresa. Vinicius tinha um sorriso quase contido no rosto, mas algo
estava diferente. De repente, a atmosfera nã o era mais a mesma e o
coraçã o dela parecia pular no seu peito.
— Eu tenho uma técnica — respondeu, sem conseguir conter sua
pró pria boca. — Meio que trancafiei todos eles em uma jaula.
E ela estava falando sério.
Rafaela amava Vinicius porque eram amigos desde criança.
Cresceram juntos, aprenderam juntos e compartilharam tantos
momentos que seria difícil falar de todos eles. Mas aquele sentimento
nunca havia passado pela sua cabeça antes e ela tinha certeza era
porque ele nã o existia. Vinicius era seu melhor amigo e, até entã o, isso
bastava.
Até Rafaela descobrir que, à s vezes, tudo que precisa para iniciar
um incêndio é uma fagulha.
— Trancafiou seus instintos em uma jaula? — Vinicius perguntou,
seu pomo de adã o subindo e descendo.
Mais pró xima dele, Rafaela precisou erguer a cabeça para poder
olhá -lo nos olhos.
— Todos eles — respondeu, lentamente.
Vinicius deixou o rosto cair para o lado e um sorriso, grande dessa
vez, surgiu nos seus lá bios. Ele deu um passo para frente, só para
encurtar a distâ ncia dos dois, antes de dizer:
— E onde está a chave dessa jaula? — Mais dois passos e Rafaela
sentia como se as paredes do quarto se fechassem sobre ela. — Sério,
eu meio que preciso dela, Rafinha.
Ela precisou juntar todas as suas forças para balançar a cabeça
para os lados, quase como se seus mú sculos tivessem esquecido como
se movimentar.
— Eu nã o sei onde a chave tá . — Sua voz era um sussurro
praticamente inaudível.
Vinicius ajeitou a postura antes de esticar a mã o e passar por um
de seus cachos, o colocando atrá s da orelha. Como se quisesse matá -la
do coraçã o, ele deixou sua mã o ali, na bochecha quente da garota que
mal conseguia piscar.
— Entã o eu vou ter que procurar.
Foi quando Rafaela percebeu que o enjoo nã o era nada perto da
sensaçã o avassaladora de beijar Vinicius. Era como se, naquele
momento, ela pudesse sentir tudo: a eletricidade que atravessava seu
corpo, os pensamentos que giravam em câ mera lenta, e as pernas
moles, quase como se fossem derreter e desaparecer pelo chã o do
quarto. Seu coraçã o batia com tanta força que parecia querer saltar do
peito, pulsando em cada célula do seu ser.
Os dedos dos pés da menina se esticaram. Ela já estava na ponta,
mas ainda nã o parecia o suficiente para alcançar a altura de Vinicius. Na
verdade, nada parecia suficiente. Nem mesmo as mã os apertadas no
cabelo liso e castanho dele, que faziam força na mesma proporçã o da
vontade de Rafaela de nã o se afastar nunca mais, eram o bastante para
que ela se sentisse satisfeita.
Todos os seus sentidos agiam ao mesmo tempo, criando uma
combustã o instantâ nea em seu corpo. A sensaçã o era tã o intensa que
ela mal podia acreditar que fosse real. Entre seus pensamentos, os
poucos que ainda conseguia assimilar, Rafaela ponderou que talvez a
química deles devesse ser estudada. Nã o acreditava que mais alguém
no mundo compartilhasse aquela eletricidade como eles — porque, se
assim fosse, nã o existiria frustraçã o.
Quando ela aproximou ainda mais o corpo pequeno do dele,
Vinicius apertou a mã o direita na sua cintura e a cacheada sentiu como
se chamas fossem acesas ali. O toque dele era firme e seguro, mas, ao
mesmo tempo, cheio de uma ternura que fazia seu coraçã o derreter. Ela
podia sentir o sorriso do garoto quando ele a apertou mais, como se
fosse possível que eles ficassem ainda mais pró ximos.
Como se nã o pudesse existir nenhum milímetro de distâ ncia.
O gosto doce preencheu toda a sua boca e Rafaela decidiu que
aquele era seu sabor favorito. O ritmo acelerado, conforme os segundos
se passavam em câ mera lenta ao redor deles, fazia com que o mundo
exterior desaparecesse.
Quando os lá bios de Vinicius se afastaram, ela soltou o ar com
força, os olhos piscando rá pido, tentando melhorar a visã o turva. Mal
podia pensar, por isso nã o emitiu nem um ú nico som. Apenas ficou ali,
parada, observando-o recuperar o fô lego. Nenhum dos dois tinha
sequer coragem de desviar o olhar, com medo de perder ainda mais
tempo compartilhando o mesmo ar.
— E agora, achou? — Vinicius perguntou, ofegante.
Rafaela franziu a testa, confusa. Ela deixou o rosto pender para o
lado esquerdo, antes de questionar:
— Achei o quê?
Ele sorriu e uma gotinha de suor escapou da sua testa, brilhando
com a luz do pequeno abajur que iluminava o quarto. Vinicius esticou o
braço, encostando mais uma vez na sua cintura. Nã o precisou de muito
para que o corpo de Rafaela voltasse a queimar e ela precisou se
controlar para nã o arfar ao mínimo toque dele.
— Tu disse que nã o sabia onde estava a chave dos seus
sentimentos. — Vinicius lembrou, seu rosto tã o pró ximo que era difícil
controlar seus pensamentos. — E agora, achou?
Rafaela sorriu.
De repente, havia descoberto algo que nã o esperava: a chave dos
seus sentimentos sempre esteve com ele.
DONA HELENA chorava feito criança do outro lado da tela enquanto
Rafaela tentava a consolar. Nã o achava uma boa ideia borrar a
maquiagem perfeita que a madrasta havia feito para a sua formatura,
por isso tentou manter a postura enquanto conversavam.
— Mã e, eu já disse: Diego vai filmar tudo para você — falou mais
uma vez, segurando o celular com uma mã o e ajeitando o vestido
marsala com a outra. — Vai ser como se você estivesse lá .
— Nã o, eu nã o quero um vídeo. — A mulher balançou a cabeça,
mas Rafaela nã o conseguia ver tã o bem. Helena nã o entendia como
funcionava chamadas de vídeo e estava praticamente filmando apenas a
sua testa. — Eu quero ao vivo.
Rafaela suspirou. O tempo havia passado em um piscar de olhos e
ela mal podia acreditar que finalmente aquele dia havia chegado. Entre
trancos e barrancos, ela havia se formado — e com uma boa nota em
física! Queria muito que a mã e estivesse presente, mas, infelizmente, a
mulher nã o conseguiria chegar a tempo, apenas alguns dias depois.
— Eu já falei que nã o sei se vai ter sinal lá ! — Diego gritou da
cozinha, enquanto se aproximava da irmã . Quando chegou ao lado dela,
empurrou o rosto da mais nova com o seu, a fim de dividirem a tela. —
Eu vou tentar abrir uma chamada, mas se nã o der, eu vou gravar. Tudo
bem?
Helena bufou, iniciando uma sessã o longa de reclamaçõ es sobre
como os jovens de hoje em dia fazem tudo pela internet, mas nã o
movem um dedo na hora de ajudar a família. Diego tentou explicar que
nã o tinha controle sobre as redes de internet, mas a mã e nã o se
importava: ele precisava dar um jeito.
— Tudo bem… Vou fazer uma chamada. — Ele suspirou, dando-se
por vencido. Torcia mentalmente para que tudo funcionasse, ou teria
grandes problemas. — Agora precisamos mesmo ir, ou Rafaela irá
chegar atrasada na pró pria formatura.
— Tudo bem. — Helena secou os olhos mais uma vez. — Você está
linda, minha filha.
— Obrigada, mã e. — Rafaela sorriu. — Nos vemos depois.
Quando desligou a chamada, virou-se para o irmã o com um
sorriso amarelo e ele riu, apontando para a pró pria gravata.
— Você pode me ajudar?
— Você já deveria saber dar um nó na pró pria gravata —
debochou, puxando o vestuá rio com força.
— E você deveria comparecer à s noites da pizza. — Ele riu,
empurrando o ombro da irmã . — Sempre tem uma desculpazinha.
A menina torceu a boca e apertou a gravata, antes de abrir um
sorriso envergonhado.
— Eu sei, prometo que vai rolar essa semana.
Ele franziu a testa.
— Promete mesmo?
Rafaela assentiu.
— Certo, entã o vamos. — Diego dobrou o braço e indicou que a
irmã o segurasse. — Seu par está esperando.

A mú sica alta fazia a cabeça de Rafaela latejar, mas ela fingia nã o


se importar. Precisava se concentrar em dar dois passos para um lado e
depois para o outro, ao mesmo tempo em que precisava desviar dos
dois pés esquerdos do seu pai.
Todos os alunos do terceiro ano dançavam a valsa com os seus
progenitores e ela estava odiando cada segundo. Rafaela tinha certeza
que nada poderia deixar aquela situaçã o mais constrangedora — até
aquele momento.
— Está chegando a hora de trocar de par — o pai anunciou e ela
ergueu os olhos surpresa. Ele estava puxando assunto, o que era muito
raro naquela relaçã o.
— É verdade. — Rafaela concordou com a cabeça, quase sem
saber o que deveria fazer. De longe, viu Mirela os olhando dançar com
um sorriso no rosto. Ela sorriu também, recebendo um aceno em
resposta.
— Você gosta mesmo desse menino? — O homem quis saber,
olhando para o lado.
Rafaela acompanhou seu olhar, mas nã o precisava saber de quem
estava falando. Vinicius dançava com a mã e com um sorriso no rosto, o
cabelo penteado para trá s e um terno que caía perfeitamente sobre o
seu corpo magro e alto. Ela teria perdido o fô lego com aquela cena, se o
pai nã o pisasse no seu pé mais uma vez.
— Ai! — Rafaela fez uma careta, sentindo a dor subir pela sua
perna. — Você é péssimo nisso.
— Faz muito tempo que nã o faço isso — admitiu, começando a
olhar para os pró prios pés, acompanhando o movimento que faziam. —
E entã o? — Marcos ergueu a sobrancelha, esperando uma resposta.
A menina suspirou. Nã o conseguia entender o interesse repentino
pela sua vida, mas resolveu ignorar aquela sensaçã o latente de
incô modo.
— É , eu gosto mesmo dele.
O homem assentiu, junto com a mú sica de fundo, que mudou para
algo mais româ ntico. Um pouco a contragosto, os pares finalmente
foram trocando e Rafaela sentiu todo o seu corpo relaxar de alívio.
Era bom estar nos braços de alguém que transmitia tanta
segurança.
Vinicius soltou o ar quando colocou a sua mã o esquerda sobre a
cintura da namorada e a direta encostou na sua.
— Você parece nervoso — Rafaela comentou, os olhos cravados
nos seus. Naquele momento, nem a mú sica alta poderiam tirar o seu
foco.
— Tu viu o jeito que ele me olhou?
A cacheada franziu a testa.
— Quem?
— Seu pai. — O mais alto continuava dançando, os passos nã o tã o
atrapalhados quanto os do sogro. — Tenho certeza que ele tá
planejando a minha morte nesse exato momento.
— Até parece que ele se importa — disse, mas nem ela tinha mais
tanta certeza disso.
— Ele pode até fingir que nã o, mas posso sentir seus olhos
fulminando minhas costas de longe.
A menina riu, balançando a cabeça.
— Ele vai se acostumar.
— Pode ser. — Vinicius ergueu os ombros, ao mesmo tempo que
apertou mais a cintura da garota. — Mas, mudando de assunto, esse
vestido ficou perfeito em ti.
Nem se quisesse Rafaela conseguiria segurar o sorriso que se
formou em seu rosto. Era difícil acreditar que estavam ali, dançando
juntos.
Desde o dia do quartinho escuro, ela precisava se segurar para
nã o beijá -lo o tempo inteiro, quase como se nã o pudesse controlar o
pró prio corpo. Definitivamente, a falta de um có rtex pré-frontal bem
evoluído era a causa da também falta de controle em seus hormô nios.
Ou talvez fosse aquele sorriso de canto que ele sempre fazia.
Quando o garoto a girou, puxando-a para ainda mais perto, ela
quis morar em seus braços e soube que faria o que ele quisesse, era só
pedir. Como se lesse seus pensamentos, Vinicius a ergueu as
sobrancelhas antes de perguntar:
— O que tu acha de sair e ir até aquela má quina de fotos? — Ele
apontou para a má quina com a cabeça.
Rafaela franziu o cenho.
— Você quer tirar fotos agora? — questionou, vendo-o torcer a
boca. Vinicius parecia estar segurando uma risada.
— Hum, nã o é bem isso que eu quero fazer. — Os olhos verdes
pularam diretamente para a sua boca e Rafaela sentiu o corpo inteiro
esquentar. Se nã o fosse pelo toque firme em sua cintura, ela tinha
certeza que derreteria pelo chã o.
— Agora? — A cacheada virou-se para os outros casais que ainda
dançavam. — No meio da dança?
— Nã o é como se isso fosse importante.
— E me beijar é importante?
Vinicius sorriu.
— Tudo que te envolve é importante para mim.

Beijar Vinicius era como pular de paraquedas, viajar de aviã o ou


andar em uma montanha-russa gigante. Rafaela podia sentir a sua alma
saindo e voltando do corpo, como se pudesse voar para qualquer lugar,
ainda que o ú nico lugar onde quisesse estar era ali, nos braços do seu
namorado, sentindo a pele em contato com a sua, queimando em cada
lugar que passava.
Rafaela embrenhou os dedos no cabelo curto e molhado de gel
quando o primeiro flash iluminou o lugar, fazendo-o soltar uma risada
abafada enquanto apertava ainda mais a sua cintura, puxando o corpo
pequeno sobre si. Mais um flash e ela arfou quando Vinicius desceu a
mã o para a sua perna, levantando a saia do seu vestido longo e,
automaticamente, fazendo com que a sua perna fosse parar em cima da
dele.
Nossa, Rafaela pensou, ela poderia fazer aquilo para sempre.
Quando o ú ltimo flash invadiu o ambiente, a garota soltou uma
risada, ainda com a boca colada na dele. Vinicius precisou se afastar
para respirar, os lá bios entreabertos e o peito subindo e descendo,
buscando o ar que havia perdido.
— As fotos mais ousadas da formatura — conseguiu dizer,
soltando uma risada fraca pelo nariz.
— É . — Ela concordou com a cabeça. — Acho que vou precisar
guardar a sete chaves, só para quando eu sentir saudades.
Ele sorriu, passando a mã o pelos seus cabelos, se esforçando para
nã o estragar o penteado da namorada. Ainda era um pouco difícil de
acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo e nã o era apenas mais
um dos seus melhores sonhos.
— Quem diria… — Vinicius pensou alto e Rafaela riu.
— O quê?
— Que tu seria assim.
— Assim? — Ela franziu a testa.
— Româ ntica. — Um sorriso safado se formou em seus lá bios e
ele esticou o braço, apenas para apertar a bochecha da cacheada.
— Ei! — Rafaela fez uma careta, empurrando seu ombro. Sentia o
rosto queimar e sabia que devia estar vermelha por baixo de toda
aquela maquiagem.
— Eu acho fofo — disse, segurando a sua mã o. — Gosto dessa
Rafinha, assim como gostei de todas as suas versõ es.
A menina sorriu, pela milésima vez naquele dia, e se preparou
para o beijar novamente, quando ouviu o som alto de gritos no lado de
fora.
— Acho que está na hora do brinde — constatou, apontando para
o lado de fora.
— Hum. — Rafaela torceu a boca, aproximando seu corpo do dele.
— Tenho uma ideia melhor do que brindar com bebidas sem á lcool.
— Tem?
Ela balançou a cabeça, um bico se formando em seus lá bios.
— Rafinha… — Vinicius apertou a mã o que estava em sua perna.
— Tu é insaciável.
Rafaela deu uma gargalhada alta, jogando a cabeça para trá s e
colocando as duas mã os em seu pescoço. Mas, quando aproximou seu
rosto, ele se afastou.
— Eu nã o sou o tipo de cara que falta em comemoraçõ es
importantes como o brinde dos formandos — informou. Apesar das
palavras, seus olhos estavam cravados nos lá bios da garota, que nã o
pode evitar abrir ainda mais o seu sorriso.
— Depois de tanto tempo me escondendo as coisas, você perdeu o
direito de decidir o que a gente faz ou deixa de fazer.
— É mesmo? — Ele ergueu uma sobrancelha. — E tu acha que é
quem para dizer o que vou ou nã o fazer?
Ela sorriu.
— A garota que vai te fazer mudar de ideia.
— VOCÊ ME OUVIU DIZER vá rias vezes que eu nã o precisava de
ninguém para ser feliz — Rafaela começou, sentindo o coraçã o bater
forte no peito. — A verdade é que eu sempre soube que já era completa
sozinha, e achava besteira a mania que pessoas apaixonadas têm de se
declarar o tempo todo e andarem de um lado para o outro como se
fossem colados.
Ela pigarreou, enquanto arrumava a folha que segurava na mã o
que tremia, assim como todo o seu corpo. Nã o tinha certeza por quanto
tempo conseguiria segurar as lá grimas que se formavam em seus olhos.
— E para ser sincera, eu nã o precisei de muito tempo para
entender que as declaraçõ es e o grude fazem sentido, já que tudo fica
mais chato sem o outro — continuou, abrindo um sorriso. — Eu
também acho que eles nã o sabem se expressar direito, porque
“completar” nã o é a palavra certa. Continuo sendo completa, com ou
sem você. Mas a questã o é que, quando estamos juntos, eu sou bem
mais. E, quando estamos longe e, automaticamente, esse 'mais' vai
embora, é como se faltasse uma parte de mim. — Rafaela ergueu os
olhos, sentindo-os marejarem no instante em que fitou a íris verde
cheia d'á gua na sua frente. — Demorei para entender qual era a parte
de mim que ia embora com você, mas quando parei para pensar, tudo
ficou ó bvio: você me faz ver a parte boa da vida, Vini. Mesmo que meu
cérebro catastró fico pense que vai dar errado. Até porque, com você,
mesmo que dê errado, dá certo.
Rafaela precisou puxar o ar que começava a faltar nos pulmõ es, ao
mesmo tempo que lutava internamente contra o bolo que estava se
formando em sua garganta.
— Foi quando percebi que nã o fazia sentido morarmos longe um
do outro. Foi quando revi tudo que passamos e tudo que aconteceu nas
nossas vidas até que chegá ssemos onde estamos e notei que, depois de
todo o seu esforço em me conquistar da forma mais sem noção do
mundo. — Ela ergueu as sobrancelhas. — E de tudo o que você me fez
sentir quando aceitei que, no fundo, sempre fui apaixonada por você, eu
precisava te recompensar de alguma forma.
Um coro de "own'' vindo de algum lugar. Provavelmente das vá rias
pessoas à sua volta, mas nenhum deles deu atençã o. Tudo em volta
parecia sumir quando seus olhos se cruzavam, e Rafaela amava aquela
sensaçã o mais do que amava a sua pró pria vida.
— Eu nã o costumo ter boas ideias quando se trata de nó s dois —
ela admitiu, as lembranças tomando conta de sua mente. — Como
naquela vez que decidi fazer uma trilha até a praia em um dia de chuva
e tropecei. Você tentou me ajudar e acabou quebrando o braço. —
Vinicius soltou uma gargalhada, acompanhada pela dos convidados. —
Me desculpe por isso, aliá s. Sei que foi difícil passar aquele tempo todo
longe do violã o.
Vinicius sussurrou um “tudo bem'', e Rafaela voltou a ler:
— A forma que achei para te recompensar foi, como todo mundo
aqui pode perceber, passar o resto da minha vida ao teu lado e hoje
estamos dando um enorme passo em nossas vidas. Apó s anos juntando
motivos plausíveis para que isso finalmente acontecesse. Eu e você.
Você e eu. Nossos melhores amigos malucos e o cachorro devorador de
sofá s que eles nos deram de presente.
Finalmente, ela sentiu quando as lá grimas começaram a escorrer
pelo seu rosto.
— Obrigada, Vini. Eu nã o preciso de você para ser completa, mas
preciso de você para transbordar. E você sabe que, no fundo, se meu
copo de suco nã o estivesse cheio demais, jamais estaríamos aqui hoje.
Eu te amo.
Vinicius secou o canto dos olhos e sorriu para a esposa, com o seu
cabelo penteado e o fio que sempre caía sobre seus olhos, um terno
preto e a gravata roxa que ela mesmo escolheu, contrastando com o
anel de ouro brilhante em seu dedo.
Exatamente sete anos depois de receber a primeira mensagem de
um nú mero desconhecido, Rafaela estava me casando com o seu melhor
amigo.
E nã o poderia estar mais feliz.
A primeira versã o deste livro foi escrita em 2015, durante as aulas
na escola. Obviamente, eu deveria estar prestando atençã o, mas havia
tantas ideias na minha cabeça que eu simplesmente nã o consegui me
conter. O Wattpad foi um sonho, e a histó ria alcançou lugares que eu
nunca imaginei. Mas, por conta da vergonha que eu sentia em
compartilhar isso com as pessoas pró ximas, Número Desconhecido foi
um sonho vivido apenas pela Juliana adolescente. Entã o, meu primeiro
agradecimento vai para ela: aquela Juliana cheia de sonhos e medos. Ela
escreveu uma histó ria que perdurou por anos no meu coraçã o, que
amadureceu, cresceu junto comigo e que hoje chega até vocês
totalmente sem má scaras.
Também agradeço aos mais de três milhõ es de leitores que me
acompanharam ao longo desses anos, que leram todas as versõ es,
suportaram minhas idas e vindas na plataforma, e que sempre me
disseram que queriam ND nas suas estantes. Esse dia ainda nã o chegou,
mas, por causa de vocês, eu sei que um dia chegará .
Agradeço à minha mã e, que, quando finalmente me ouviu dizer
que era escritora e lançaria um livro, me apoiou e contou para todas as
pessoas que conhecia. À Marina, minha melhor amiga, que me inspira
todos os dias, ouve todos os meus surtos e sempre foi a maior
incentivadora das minhas ideias. Ao meu namorado, que apoia todos os
meus sonhos e nunca me deixa desistir de nenhum deles.
E, por fim, a Deus, que, independente do que me disseram,
plantou essa histó ria no meu coraçã o e nunca me deixou sozinha.

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