Karla Rampim Xavier
Karla Rampim Xavier
PUC-SP
SÃO PAULO
2022
KARLA RAMPIM XAVIER
SÃO PAULO
2022
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos
KARLA RAMPIM XAVIER
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTO CAPES
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) - nº. 88887.364397/2019-00.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Raul Pacheco Filho, pelo Núcleo Psicanálise e Sociedade, um espaço
tão importante para a minha formação: agradeço por sustentar, de maneira pioneira, o debate
entre Psicanálise e Política, privilegiando a temática do laço social... e pelas festas e saraus.
À Ana Paula Gianesi, por todas as valiosas contribuições, no exame de qualificação,
pela maneira carinhosa com que leu e devolveu meu texto, e pela transmissão de uma
Psicanálise que pode avançar.
À Carla Garcia, por todas as contribuições, no meu exame de qualificação, por me
ensinar tanto sobre a práxis feminista e sobre as coisas da vida: uma sobe e puxa a outra! E
agradeço, especialmente, ao café, que me transmitiu tanto sobre autoria.
Ao Pedro Ambra, por ter aceitado o convite para a banca e por sustentar uma Psicanálise
que se autoriza a circular. Ao Fábio Franco, pelo interesse em debater e trocar sobre o laço
social, a política, os feminismos, a música, Maria Bethânia, e as encruzilhadas.
À Patrícia, pela parceria, por todos os debates ‘incendiários’ e férteis, pela forma
entusiasmada com que debatemos sobre Psicanálise e política, na banca e na vida.
Ao Gui, pelo bom humor, pela doçura e por me lembrar que há horas em que é
importante tirar o pé do acelerador.
À minha amiga Andreia, companheira de consultório, agradeço os cafés, as aventuras e
as palestrinhas.
Ao lua vai: à querida Thaís, aos conselhos, às mandingas, pela leitura e pelas
observações sobre os feminismos e por insistir no fato de que não cabe tudo em uma tese. À
Roberta, minha parceira nessa empreitada de querer derrubar o patriarcado, agradeço as trocas
que contribuíram muito para a construção desta tese, pelas conversas na escada, pelos carnavais
e tudo mais.
Por falar em escada, agradeço por toda troca com os amigos que fiz, ao longo desses
anos no Núcleo - desde aqueles que acabaram de chegar, como Lucas e Gustavo, aos mais
antigos que prosseguiram presentes nesta reta final, como Gabriel, que estava no ato de
fundação dos debates na escada, e Neto, que participou comigo do seu ato de dissolução, com
testemunho do Leo. Agradeço, nominalmente, aos amigos que contribuíram de forma ainda
mais direta, com conversas sobre os vários temas que permeiam esta tese: Gabriel e Milton
Neto, como citei acima, Augusto, Thainá, Carol, Paulo, Michele, Aline. À Luisa, que
compartilhou comigo momentos-chave para compreender um discurso específico. Mas também
a todes colegas que participaram de maneira indireta desta construção. À companheira Renata,
por dividir comigo o significante Rampim e seus efeitos.
Aos meus amigos de virada de ciclo e Ano Novo: Thaís, Roberta, Fábio, Delano, Arthur,
Niki, Natália e Mari. Obrigada pelos portais, por cantarem e dançarem comigo, pisando na
grama molhada ao som de Não mexe comigo, que eu não ando só, na voz da Maria Bethânia.
Aproveito a deixa de Carta de Amor, para agradecer às minhas musas inspiradoras,
especialmente Maria Bethânia, Elza Soares, Dilma Rousseff e Lélia Gonzalez.
Às professoras do programa de Psicologia Social. Aos colegas do Fórum do Campo
Lacaniano, pelas trocas e transmissões tão valiosas para a minha formação de analista. À Yliah,
pelas trocas de figurinhas na reta final. Ao Leonardo e ao Niki, pelas traduções.
Ao companheiro Eric, pelos gestos, shows, viagens, músicas, banquetes e por me
oferecer sua maneira pragmática de levar a vida, sem perder a ternura.
Agradeço à minha mãe Isabel, por me ensinar sobre teimosia e sobre o saber-fazer que
sustenta a vida cotidiana.
Ao meu pai, Carlos, por me dar seu nome, só incluindo uma diferença. Pelo meu lado
destemida, fanfarrona e bem-humorada, sem perder a seriedade: heranças fundamentais para a
construção do meu feminismo. E por todos os sambas e o gosto pela música. Já que está difícil
escrever em memória, vou deixar uma música: Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar,
a beleza de ser um eterno aprendiz, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso
não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita! (GONZAGUINHA).
Dedico esta tese a todas que vieram antes de mim
e àquelas que ainda estão por vir!
UM OLHO ABERTO
(Mariá Portugal)
Para Elza Soares
Da sede, do sexo
O peixe, o índio
O rio concreto
Invadindo os edifícios
O nome, o muro
Circuito fechado
Um olho aberto
Pra você dormir tranquilo
RESUMO
XAVIER, Karla Rampim. O laço social e a práxis feminista: Lélia Gonzalez para seguir
adiante. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022.
Lacan propõe pensar os laços sociais a partir de quatro modalidades discursivas que estruturam
as relações sociais de maneiras distintas; desse modo, são quatro discursos que conduz a forma
como os laços são estruturados. No discurso do mestre, o dominante é a lei; no discurso
universitário, é um saber sem sujeito que opera a dominância, e ambas as modalidades são
discursos de mestria. Já o discurso da histérica pretende fazer frente a essa lógica de mestria
que os outros dois discursos determinam: tal modalidade discursiva, ao confrontar o mestre,
produz uma construção de saber que pode ser pensada tanto nos aspectos clínicos, por ser
condição para um ser falante entrar em análise, interrogando-se sobre sua divisão, a fim de
produzir saber, como pode servir para compreender questões políticas, confrontando o discurso
hegemônico, podendo, eventualmente, modificar os rumos da história, mas, ainda assim, sem
romper com as coordenadas de mestria. Por fim, o discurso do analista é responsável por dar
lugar aos equívocos, para que algo da lógica de mestria possa cair: é a única modalidade
discursiva que não converte as assimetrias a uma lógica hierarquizante e, desse modo, pode
produzir algo novo, fora das coordenadas anteriormente estabelecidas. O feminismo surge
como uma posição política de questionamento e enfrentamento à lógica hegemônica e, ao longo
da história, foi se modificando, até alcançar o que conhecemos hoje como feminismo
interseccional, ou seja, um feminismo que mantém, no seu horizonte, construir possibilidades,
para acabar com as diversas formas de opressão e, por isso mesmo, considera a intersecção
entre gênero, raça e classe, como estruturando as dominações e exclusões operadas no laço
social. Dito isso, a presente tese versa sobre a interpretação do laço social, a partir do ensino
lacaniano, e seu intercruzamento com a práxis feminista interseccional para, acompanhando
Lélia Gonzalez, indicar como ela, por meio da sua clínica, opera um giro de modalidades
discursivas. Inicialmente capturada nas armadilhas discursivas impostas pelos discursos de
mestria, Lélia efetua uma histerização discursiva que lhe permite a construção de um saber
sobre tornar-se mulher negra, lançando luz sobre como os discursos estruturam a cultura
brasileira - trata-se de um giro em direção ao discurso do analista, o que faz cair as mestrias
hegemônicas, possibilitando a ocupação de outro lugar no laço, um lugar capaz de sustentar as
assimetrias e produzir um novo significante mestre, capaz de inaugurar novos sentidos, o
pretuguês.
XAVIER, Karla Rampim. El vínculo social en Lacan y la praxis feminista: Lélia González
para avanzar. Tesis (Doctorado em Psicologia Social) – Programa de Estudos de Posgrado em
Psicologia Social, Pontifícia Universidad Catolica de São Paulo, São Paulo, 2022.
Lacan propone pensar los vínculos sociales a partir de cuatro modalidades discursivas que
estructuran las relaciones sociales de diferentes maneras, así, existen cuatro discursos que
transmiten la forma en que se estructuran los vínculos. En el discurso del amo lo dominante es
la ley, en el discurso universitario es el saber sin sujeto el que opera el dominio, ambas
modalidades son discursos de dominio. El discurso de la histérica, en cambio, pretende
enfrentarse a esta lógica de dominio que determinan los otros dos discursos. Esta modalidad
discursiva, al confrontarse con el amo, produce una construcción de conocimiento que puede
pensarse tanto en aspectos clínicos, como condición para que un ser parlante entre en análisis,
interrogándose sobre su división para producir conocimiento; así como puede servir para
entender cuestiones políticas, confrontando el discurso hegemónico, pudiendo, eventualmente,
cambiar el curso de la historia, pero, aun así, sin romper con las coordenadas de dominio. El
discurso del analista, en cambio, es responsable de dar lugar a malentendidos, para que algo de
la lógica del dominio pueda caer. Es la única modalidad discursiva que no convierte las
asimetrías en una lógica jerárquica, y así puede producir algo nuevo, fuera de las coordenadas
previamente establecidas. El feminismo surge como una posición política de cuestionamiento
y confrontación de la lógica hegemónica, a lo largo de la historia se ha ido modificando, hasta
llegar a lo que hoy conocemos como feminismo interseccional, es decir, un feminismo que
mantiene en su horizonte construir posibilidades para acabar con las diversas formas de
opresión, por ello considera la intersección entre género, raza y clase, como estructurantes de
las dominaciones y exclusiones operadas en el lazo social.
Dicho esto, la presente tesis aborda el vínculo social desde la enseñanza lacaniana en la
encrucijada con la praxis feminista interseccional para, siguiendo a Lélia González, indicar
cómo ella, a través de su praxis, torna las modalidades discursivas, inicialmente capturadas en
las trampas discursivas impuestas por los discursos de dominio, pasando por la histerización
discursiva que le permite construir un saber sobre el devenir negro y sobre cómo los discursos
estructuran la cultura brasileña, para dar un paso más allá y virar hacia el discurso del analista,
abandonando los dominios hegemónicos, ocupando otro lugar en el vínculo, un lugar capaz de
sostener asimetrías y producir un nuevo significante maestro capaz de inaugurar nuevos
significados, el pretugês.
RAMPIM, Karla. Le lien social chez Lacan et la praxis féministe: Lélia Gonzalez pour
avancer. Thèse de Doctorat, Programme d´Études Supérieures en Psychologie Sociale.
Pontificale Université Catholique de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2020.
Lacan propose de penser les liens sociaux à partir de quatre modalités discursives qui structurent
les relations sociales de manière différente, ainsi, il y a quatre discours qui transmettent sur la
façon dont les liens sont structurés. Dans le discours du maître la dominante est la loi, dans le
discours universitaire c'est une connaissance sans sujet qui opère la domination - les deux
modalités sont des discours de maîtrise. Le discours hystérique, quant à lui, entend se confronter
à cette logique de maîtrise que les deux autres discours déterminent. Cette modalité discursive,
lorsqu'elle se confronte au maître, produit une construction de la connaissance qui peut être
pensée à la fois sous des aspects cliniques - car c'est une condition pour qu'un locuteur entre
dans l'analyse - en s'interrogeant sur sa division pour produire des connaissances, ainsi qu'il
peut servir à comprendre les enjeux politiques, en se confrontant au discours hégémonique et
en pouvant, éventuellement, modifier les directions de l'histoire, mais toujours sans rompre avec
les coordonnées de la maîtrise. En revenche, le discours de l'analyste est responsable de laisser
place à des idées fausses pour que quelque chose de la logique de la maîtrise puisse tomber -
c'est la seule modalité discursive qui ne convertit pas les asymétries en logique hiérarchique et,
de cette manière, peut produire quelque chose de nouveau, en dehors des coordonnées
précédemment établies. Le féminisme apparaît comme une position politique de
questionnement et de confrontation de la logique hégémonique qui, au cours de l'histoire, a
changé jusqu'à atteindre ce que nous connaissons aujourd'hui comme le féminisme
intersectionnel, c'est-à-dire un féminisme qui continue à son horizon de construire des
possibilités pour mettre fin aux diverses formes d'oppression et qui, pour cette raison même,
considère l'intersection entre le genre, la race et la classe, comme structurant les dominations et
les exclusions opérées dans le lien social. Cela dit, la présente thèse traite de l'interprétation du
lien social à partir de l'enseignement lacanien et de son métissage avec la praxis féministe
intersectionnelle pour, en accompagnant Lelia Gonzalez, indiquer comment elle, à travers sa
clinique, opère un virage de modalités discursives. D'abord prise dans les pièges discursifs
imposés par les discours de maîtrise, Lelia effectue une hystérisation discursive qui lui permet
de construire une connaissance sur le fait de devenir une femme noire, éclairant comment les
discours structurent la culture brésilienne - c'est un virage vers le discours de l'analyste, qui fait
tomber les maîtres hégémoniques, permettant l'occupation d'un autre lieu dans la boucle, un
lieu capable de soutenir les asymétries et de produire un nouveau signifiant maître capable
d'inaugurer de nouvelles significations, le « pretuguês ».
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 15
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 22
A práxis feminista e a cultura........................................................................................ 27
APRESENTAÇÃO
A presente tese tem como objetivo específico mostrar como a práxis feminista pode
prescindir da lógica de mestria que emoldura as relações no campo social.
De maneira geral, apresento aqui algumas questões às quais me dedico há um tempo,
indagações que advêm do meu trabalho como analista, minha posição política dentro e fora do
campo psicanalítico, que é atravessada pelo feminismo. Inquietações e posicionamentos que
nascem da minha práxis.
Como pensar uma análise que possa considerar questões interseccionais, sem que isso
altere as coordenadas do dispositivo analítico? Para começar a conversa, é importante pensar
que gênero, raça e classe não necessariamente reivindicam identidades; inclusive, dependendo
do prisma utilizado para analisar tais questões, podemos entender justamente o contrário: tais
categorias são anteriores ao aparecimento dos movimentos e não categorias criadas pelos
movimentos.
No interior do discurso do/a analista, é notável considerar não só a relevância dessas
questões, mas também o fato de que, certamente, estar atento/a a elas enriquece o trabalho do/a
analista. Não digo no sentido de orientar a escuta com ideias preconcebidas sobre os sujeitos
que procuram os consultórios para iniciar suas análises; muito menos para reforçar
identificações ou direcionar a análise para uma prática militante: devemos estar atentos/as por
se tratar de questões que atravessam os sujeitos, especialmente no Brasil.
Sendo assim, é bom para os/as analistas estarem advertidos/as das incidências de tais
questões e como esses assuntos estão enraizados socialmente, já que pensar e se posicionar
dessa forma é compreender como o/a psicanalista deve estar atento/a ao seu tempo – e ao
território que ocupa. Por essa via, estar atento/a é considerar como esses processos tocam cada
sujeito, dependendo do lugar social em que tais sujeitos são colocados. Ao contrário de reforçar
identidades, essa preocupação tem por consequência esvaziar a identidade preexistente advinda
do discurso hegemônico, que criou quem pode ser sujeito e quem deve ocupar o lugar do outro
no laço, que, como sabemos, é um processo de identificação que se dá de maneira velada e,
quando não se reconhece assim, aponta o outro como identitário, sem se perceber na trama
discursiva. Assim, advertido sobre as questões interseccionais, o/a analista pode escutar cada
ser falante considerando o ‘real’ (violência, segregação, dominação) presente no laço, ao
mesmo tempo em que tonifica o lugar das diferenças no campo social.
A Psicanálise, na cultura, aponta para a fenda que insiste, apesar da lógica
homogeneizante de um laço excludente que tenta de todas as formas suturar essa fenda. Assim,
16
compreendo que um/uma analista não é (nem precisa ser) necessariamente militante, mas em
sua práxis não deixa de fazer política.
Como veremos, a presente tese é uma pesquisa acadêmica e, também, é um testemunho
da minha experiência: como mulher, feminista, psicanalista e tantas outras coisas. É uma
pesquisa teórica, mas não sem incluir a minha práxis política e clínica, e as implicações atuais
do que é estar atenta a esse momento histórico, especialmente na sociedade brasileira.
Não pretendo apresentar nenhum caso clínico, mas, sem dúvida, este trabalho está
atravessado pela minha escuta clínica, por cada ser falante que escuto, bem como está pautado
nos meus dez anos de experiência nas políticas públicas e na minha participação política em
movimentos sociais1. Nesse sentido, acompanho Mohanty (1997) e Kilomba (2019): não existe
academia apolítica, nem ciência (ou tese acadêmica) que seja neutra.
Para a professora Margareth Rago, em se tratando da teorização do conhecimento
feminino, “a reflexão filosófica foi posterior à prática teórica”, ou seja, é a posteriori que
acontece “uma incorporação das questões feministas em diferentes campos da produção do
conhecimento científico, de fora para dentro, como, por exemplo, na psicanálise ou no campo
marxista” (RAGO, 1998, p. 8).
Por fim, estou advertida de que a política da Psicanálise é diferente do fazer político no
campo social; no entanto, é fato que o psicanalista não está fora do campo social, da cultura a
que pertence.
E, embora o objetivo desta tese não seja rever conceitos psicanalíticos, compreendo que
esse olhar crítico a acompanha. Afinal, essa não seria uma maneira de estarmos atentos/as ao
nosso tempo, sem enfraquecer a importância e o vigor da Psicanálise, mas, pelo contrário,
atualizando-a para fazê-la avançar?
Outra ressalva importante é a de que, quando uso o termo feminismo, estou ciente de
que não é um movimento único, muito menos coeso em si, mas são movimentos feministas, no
1
Participações em diversas conferências e movimentos: diferentes edições do Fórum Social Mundial, encontro
Jovens Políticos pela América Latina, participação em conferências de políticas públicas (de saúde, juventude,
política para as mulheres e movimento negro). Esses eventos me possibilitaram trocas, pensar e vislumbrar: um
outro mundo é possível. Tenho a sensação de que essas vivências me trazem certa ‘mandinga’, na leitura, na
interpretação de textos e na minha escrita, um saber fazer e pensar política para além de elaborações e
compreensões racionais, entendendo mandinga como um modo de incluir o corpo na escrita da tese: “A mandinga
é a sapiência do corpo, é o saber que é lançado ao mundo a partir dos princípios e potências corporais. A mandinga
está expressa também na fala, já que não há separação entre o que é dito verbalmente ou não verbalmente. Tudo
que é textualizado nas mais amplas possibilidades de linguagens parte de uma experiência de saber que transita
pelo corpo enquanto agente coletivo e individualizado que é” (RUFINO, 2019, p.59). Incluo essas questões na
Introdução e na Metodologia, porque tenho a sensação de que essas experiências, na práxis pública, interferem na
interpretação do que vou extraindo nas entrelinhas, em alguns textos, especialmente na maneira como interpreto
Lélia Gonzalez.
17
plural, múltiplos e, muitas vezes, distintos entre si, abarcando contradições que são próprias ao
movimento. Quando trago o termo no singular, é considerando o feminismo interseccional, ou
seja, como práxis que, ao final, visa a acabar com qualquer forma de opressão e dominação,
seja essa opressão sexista, racista ou classista.
18
REFLEXÕES METODOLÓGICAS
2
Em certo sentido, a Psicanálise e o candomblé têm algo em comum. Ambos apreciam o mistério, sabem sobre os
limites do simbólico.
20
Em Pedagogia das encruzilhadas, Rufino (2019, p. 73) vai dizer que: “Os saberes em
encruzilhadas são saberes de ginga, de fresta, de síncope, são mandingas baixadas e imantadas
no corpo, manifestações do ser/saber inapreensíveis pela lógica totalitária”. Assim,
encruzilhada não diz respeito ao ponto limite entre dois caminhos, mas pode ser pensada como
um ponto de encantamento, no qual caminhos paralelos encontram-se e influenciam-se.
Segundo o historiador Luiz Antônio Simas (2020), a encruzilhada é um terreiro pluriversal, de
disponibilidade para o inesperado; é destino de permanência só viável na alteridade. Inclusive,
ela é considerada, em diversas culturas, como encontro entre caminhos, como o lugar em que
acontece o mágico, o extraordinário, ou seja, é menos um lugar de um impasse que fecha
caminhos e mais um lugar de encontro e possibilidades para o surgimento do novo.
Evidencio essa passagem, pois Gonzalez faz uso do lacanês em alguns momentos, mas
não deixa de lado o uso de termos populares, miscigenando vários saberes sem ficar capturada
pelo lacanês; pelo contrário, ela faz questão de sustentar certa informalidade na sua transmissão
– seja nos discursos, nas entrevistas ou em artigos. Segundo Januário Garcia34, ela usava a
mesma forma de se comunicar, independentemente de falar em conferências ou espaços
universitários, com interlocutores considerados intelectuais, ou de estar em ambientes entre
amigos ou nos movimentos nos quais circulava – como marca linguística da Amefricanidade.
Lélia movimenta esse lugar e, por consequência, altera a função da linguagem, ocupando de
outra forma, de uma maneira própria, o “lugar e função fundamental para a significação”, de
tal modo que, marcando essa posição, opera modificações via linguagem, subvertendo a
estrutura.
3
Essa referência pode ser encontrada no documentário Amefricanidade, disponível no Youtube
(AMEFRICANIDADE, 2020).
4
Fotógrafo do movimento negro desde 1974, foi por intermédio do movimento que ele e Lélia Gonzalez tornaram-
se amigos, em 1981, quando, a convite dele, ela concedeu uma entrevista para a Cultne (A PENSADORA É, 2020).
22
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa pretende tomar como ponto de partida a teoria dos discursos, para pensar
a práxis feminista como laço social, mais especificamente, como a práxis feminista pode ocupar
o lugar de agente no discurso do/a analista, produzindo significantes inéditos e fazendo circular
novos significantes mestres (S1) na cadeia discursiva, possibilitando, portanto, a invenção de
novos sentidos no laço social.
Explico: a teoria dos discursos, em Lacan, é um instrumento para pensar e compreender
o laço social e a política, a partir da Psicanálise, como disse Lacan, na última aula do seminário,
prepara e antecede a formulação e a apresentação dos quatro discursos - “das funções da
Psicanálise no registro político” (LACAN, 1968-69/2008, p.387), à medida que “o inconsciente
é a política!” (LACAN, 1966-67, p. 236).
Política é um termo amplo, que originalmente se refere “à vida na polis, às instâncias de
poder estabelecidas cuja função era a de governar a vida na cidade” (CHECCHIA, 2011, p. 69)
ou seja, a política é a mediação das relações de poder.
A constituição do sujeito do inconsciente se dá na entrada da linguagem, na relação com
os significantes vindos do Outro; por sua vez, o discurso do Outro é a ideologia “dominante
que marca a época, o lugar, e determina subjetividades, preconceitos, hábitos de agir, falar e
pensar herdados como ‘naturais’ e que são bem mais inconscientes do que supomos” (QUINET,
2021, p. 15).
Segundo Marx, ideologia são os mecanismos operados por uma classe dominante, para
que os interesses de uma parte da sociedade pareçam, de maneira ‘inconsciente’, o interesse ‘do
todo’ da sociedade. Assim, a ideologia é o pensamento hegemônico ou, dito de outro modo, são
os interesses que se iniciam na base econômica, visando aos interesses materiais da classe
dominante, os quais, por sua vez, se expressam em ideias dominantes, consequentemente, em
dominação e, sendo assim, convertem-se, nas “únicas racionais, nas únicas universalmente
válidas” (MARX; ENGELS, 2007, p.48).
Assim, os discursos como laço social marcam e destacam essa relevância política
23
moderna na organização social tanto quanto na constituição do sujeito do inconsciente. Por isso,
assumimos essa chave de leitura, para pensar os sujeitos e o modo como se constroem suas
posições e giros nesse laço, incluindo as dimensões ideológicas e econômicas – incluindo a
economia de gozo de cada ser falante – e ressaltando os discursos como laços sociais para
pensar a práxis feminista, enquanto ocupando o lugar de sujeito político, para pensar essa práxis
em relação aos aparelhos discursivos como aparato para conjecturar a cultura e o modo como
se dão as relações pertinentes e inerentes ao laço social, de tal forma que cada modalidade opera
de maneira diferente, em cada modalidade discursiva.
Inicialmente, pretendíamos destacar o discurso da histérica como aquele que produz
modificações no campo social, seguindo os vestígios deixados por Lacan sobre a potência dessa
modalidade discursiva, quando afirmou que o discurso da histérica foi o que permitiu a
passagem histórica decisiva, “dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou. Que é
existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de sintoma”
(LACAN, 1969-70/1992, p.214).
No encontro com os conceitos marxianos, Lacan modifica o estatuto do sintoma. Nas
primeiras passagens do ensino em que inclui as referências dos conceitos de Marx, ele vai dizer:
“[...] sintoma, quer dizer a significância das discordâncias entre o real e aquilo pelo que ele se
dá, a ideologia, se quiserem, mas com uma condição: é que, para esse termo, vocês vão incluir
até a própria percepção; a percepção é o modelo da ideologia, é o crivo em relação à realidade”
(LACAN, 1966-67, aula de 10 de maio de 1967). Nesse contexto, o que movimenta a história
são as contradições, os conflitos. Marx é aquele que nomeia o surgimento de um novo
protagonista na história - o proletário – bem como o surgimento da luta de classes, como
marcadores da passagem do feudalismo para o capitalismo (XAVIER, 2013).
opera a partir desse lugar de contestação à ideologia vigente e, dessa maneira, pode produzir
avanços históricos.
Acontece que é importante reconhecer essa potência de fazer desordem, e sua força
contestatória; todavia essa modalidade discursiva, apesar de possibilitar giros, não renuncia à
referência ao mestre, ela modifica, faz girar, mas não faz cair a ideologia vigente. Sendo assim,
compreendemos o seu valor no campo histórico, mas identificamos o seu limite, naquilo que
diz respeito a uma mudança estrutural que possa deixar cair a relação com a mestria posta, já
que fazer frente ao mestre também é manter-se referenciado por ele.
Dessa forma, valorizaremos tal modalidade, à medida que podemos dispor do discurso
da histérica, para fazer a passagem para outro elemento, que é o discurso do/a psicanalista
(LACAN, 1969-70/1992, p. 193). Portanto, nosso argumento é de que o primeiro movimento
‘necessário’ é o da histerização do discurso, já que é o discurso da histérica que permite a
passagem para o discurso do/a analista. Na práxis analítica, essa é uma posição a ser alcançada
na entrada em análise, isto é, o processo de ‘histerização discursiva’.
Desse modo, reconhecemos no discurso da histérica sua força crítica, o dizer “isso não”
a qualquer tentativa de captura proposta pelos discursos de mestria, suas coordenadas puderam
produzir “o retorno da verdade nas falhas do saber”, a partir do momento em que as teorias
críticas denunciam como e o que foi construído e estabelecido como “verdade” até então.
Lembrando que o significante só tem sentido articulado com outro significante, “se afirmarmos
materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia significante”
(LACAN, 1966/1998, p. 235).
Conquanto entendemos que fazer oposição é fundamental na disputa por espaço e que
o discurso histérico tem essa eficácia política, sendo um dispositivo crucial no âmbito político,
já que denuncia a tirania do mestre que faz da diferença uma forma de dominação, histerizar é
indiciar tal dominação.
Histericizar o sintoma altera o estatuto da insatisfação, e daí a importância do feminismo
no campo histórico como operando uma denúncia do que não vai bem. Afinal, como poderiam
as mulheres e os sujeitos racializados estarem ‘satisfeitos’ em uma formatação de laço social
que os destina a um lugar de exclusão, inferioridade e subalternização?
Assim, os movimentos, ao ocuparem essa posição de agente do discurso, no campo da
História, de maneira análoga ao que ocorre no processo de histerização discursiva, fundamental
em um processo analítico, fazem girar certo movimento que interroga o significante mestre,
questionando seu saber e propondo outro tipo de enlace que não visa ao universal. Destarte,
25
localizamos aí uma passagem importante que pode girar para a lógica não-toda, incluindo as
diferenças que podem originar algo inédito, semelhante à produção de S1 do discurso do
analista. Defendemos que essa é a via para desconstruir uma discursividade e realizar algum
tipo de passo adiante que, nesse caso, se dá pela via do desejo.
Desse modo, entendemos e defendemos a importância da construção de uma narrativa
no laço social que permita fazer circular – e escutar – a história, aos moldes do que se produz
em um processo de análise. Evidenciando a importância do discurso da histérica, mas para ir
além dele; por isso se faz necessário um segundo movimento, a passagem ao discurso analítico
como modalidade que abre para o não-todo, para sair do desejo como desejo insatisfeito e, nesse
segundo movimento necessário, alcançar o desejo decidido. Esse segundo movimento, que
opera o giro a partir do discurso histérico, no sentido do discurso do/a analista, é um passo
‘necessário’, por se tratar da única modalidade discursiva que é avessa à lógica de mestria,
senão a práxis feminista não poderia ir além do patriarcado. Esse segundo movimento é
necessário para sair do questionamento e inventar novas formas de estar no laço, de tal modo
que as assimetrias postas não se reduzam a um processo de hierarquização.
Nesse sentido, podemos encontrar em algumas práxis feministas esse giro orientado pela
lógica não-toda. Assim, analisaremos, particularmente, como Lélia Gonzalez faz girar o
discurso, levando esse giro até o ponto em que deixa cair algo, produzindo um significante
mestre inédito, capaz de introduzir novos sentidos, novas formas de estar no laço.
Gonzalez produz e provoca deslocamentos dentro e fora da Psicanálise, primeiro
histericizando, mas não parando por aí, por exemplo, quando em uma intervenção, no contexto
específico do lançamento de um livro - “negócio de livro sobre a gente” (GONZALEZ, 2020,
p. 75) -, ela diz: “nós, negros, estamos na lata do lixo da sociedade” (Ibidem, p. 77). Esse ato
contém um duplo aspecto: por um lado, denuncia o mito da democracia racial no Brasil, por
outro, coloca o lixo da sociedade no lugar de agente, operando com esse semblante no discurso,
colocando-se como resto, como objeto a, modificando toda a discursividade em ato,
desarranjando a mestria imposta.
O feminismo é diverso e se constitui de diferentes correntes; na verdade, o correto é
dizer que são feminismos, porém eu uso o termo no singular por dois motivos:
1) porque estou localizando como o movimento nasce dentro da cultura patriarcal
hegemônica. Feminismos, enquanto teoria, será trabalhado de maneira mais detalhada em
capítulo específico. O principal, neste momento, é entender que ele surge reivindicando direitos,
como uma práxis crítica ao status quo, buscando construir saídas para o lugar a que as mulheres
são destinadas, nessa configuração social, quando a práxis feminista pode ocupar o
26
agenciamento que orienta o discurso da histérica, ou seja, o lugar de agente que faz frente a esse
S1 hegemônico opera, desse modo, uma oposição ao mestre;
2) também uso feminismo, no singular, para me referir ao recorte específico do
feminismo que tomo como eixo central, a práxis feminista interseccional de Lélia Gonzalez.
Assim, escutaremos o feminismo como sujeito político no discurso, suas transmissões e
seus efeitos, a partir da circulação de outros significantes mestres, que escapam ao formato de
mestria/dominação, produzindo outros enunciados e enunciações, outros lugares e giros,
visando a uma política orientada pelo não-todo.
Ainda por meio da histerização discursiva, o sujeito político, tal como os seres falantes
nos consultórios, conta suas narrativas, e isso não é a partir do vazio, mas da história, entrando
em contato direto com o passado, que pode ser e é sempre reenscrito. Essa é a via possível para
compreender o presente e pensar em possibilidades e potencialidades para o futuro. De tal
modo, que incluir os giros é considerar que não será mais do mesmo mestre que se trata, talvez
se produzam deslizes e outro significante mestre. No entanto, é daí que se pode, aos poucos, e
em movimento, chegar a qualquer espécie de ‘separação’ ou ‘emancipação’ política.
Neste sentido, Audre Lorde (2019) vai dizer que devemos fazer das diferenças a nossa
força, não para fixar identidades, mas para abrir possibilidades, insistindo que as ferramentas
postas pela mestria vigente não servirão para superar essa lógica, mas podem ajudar a criar
possibilidades, para daí desmantelar a casa do mestre e produzir novos significantes mestres.
Antes disso, com a Psicanálise, sabemos que é preciso e precioso que se recorde, repita e elabore
– para, deste modo, reenscrever o que aconteceu e seguir adiante.
Advertimos que a aproximação da práxis feminista ao discurso da histérica, ocorre
devido ao lugar de contestação que o discurso possibilita e que a práxis movimenta. Por outro
lado, consideramos que, nessa modalidade discursiva, o desejo presente permanece como
desejo insatisfeito.
Como veremos, a práxis feminista que nos interessa realiza a contestação, passa por esse
quarto de giro, mas pretende um passo a mais, capaz de operar o giro discursivo que produza
modificação nas coordenadas discursivas, alterando sua lógica de poder, ou seja, o discurso
do/a analista. Por isso, retomamos a citação que abre esta introdução:
[...] ao nível do discurso do analista. [...] é muito curioso que o que ele produz
nada mais seja do que o discurso do mestre, já que S1 é o que vem no lugar
da produção. [...] talvez seja do discurso do analista, se esses três quartos de
giro, que possa surgir um outro estilo de significante-mestre (LACAN, 1969-
1970/1992, p.187).
27
Por isso, para Garcia (2021), “o que feministas como Lélia Gonzalez, bell hooks, Audre
Lorde propõem vai além de questionar o pai, soltando a mão do pai para ir adiante, produzindo
algo novo, inédito, que modifica a ordem vigente, mas mantém certa filiação”5.
Enfim, a presente tese tem como objetivo mostrar que, se, por um lado, o feminismo
exerce a função de questionar e fazer oposição ao discurso hegemônico, que impõe o masculino
como universal, por outro, pode ir além, dar um passo a mais – e aí cito outras feministas, mas
destaco Lélia Gonzalez e o seu “ir além do pai, sem perder a filiação”. Movendo giros
discursivos que culminaram na criação de novas discursividades. Partindo do uso contra-
hegemônico do pensamento do mestre, para alcançar seu avesso, o avesso do pensamento
hegemônico. Operando o giro necessário para a produção de um S1 inédito.
5
Transmissão oral, na banca de qualificação.
28
Inicialmente, o feminismo surge enquanto sujeito político, para evidenciar o que surge
como sintomático na modernidade.
Sabemos que, desde a modernidade, o estatuto das mulheres na sociedade apresenta uma
contradição no âmbito dos chamados Direitos Universais do Homem e do Cidadão (versão
original 1789)6, já que a promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade” excluía as mulheres
que igualmente estiveram à frente nesse processo revolucionário, mas que foram deixadas de
fora no momento seguinte. Assim, podemos pensar sobre isso que é sintomático na cultura,
quando fixa a mulher no lugar do Outro - “é notável como nessa construção o Outro muitas
vezes aparece como um grupo homogêneo no discurso (mulheres, negros, LGBTQIA+) ...] esse
outro que aparece fetichizado no discurso” (GIANESI; MOUNTIAN, 2017) -, reservando às
mulheres o lugar de submissão na sociedade, operação sustentada por uma ideologia que parte
da divisão sexual como marca inicial da diferença humana, uma ideologia tangenciada pelo
sexual, fundamentando uma discordância entre os sexos. Lembrando que a ideologia é a tática
de tornar certas ideias como verdadeiras e aceitas pela sociedade, sendo elas criadas pela classe
dominante de acordo com seus interesses (MARX, 1993). Como veremos, as questões relativas
ao sexo organizam a cultura como conhecemos.
Assim, a modernidade, situada a partir do advento da Revolução Francesa, inscreve uma
“contradição fundamental” (CEVASCO, 2010, p. 29). A Revolução Francesa e seu lema de
Igualdade, Fraternidade e Liberdade colocam em jogo uma ilusão, em um primeiro aspecto
sobre a igualdade de direito para homens e mulheres, para ambos os gêneros, na medida em que
tomou o homem como universal da humanidade, excluindo as mulheres dessa condição de
sujeito (na política e no campo dos direitos); além disso, consideramos a colonialidade como
produto da modernidade: a humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade
moderna (FANON, 2009; SANTOS, 2009). “A negação de uma parte da humanidade é
sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar
enquanto universal” (SANTOS, 2009, p.31). Santos afirma que essa realidade é tão verdadeira
hoje quanto foi no período colonial.
O capitalismo consolidado na modernidade instaura a ilusão da liberdade do/a
trabalhador/a, que esbarra e desaparece na necessidade da manutenção da própria
6
A Assembleia Nacional Constituinte da França Revolucionária aprovou, em 1789, a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, sintetizada em dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários. Pela primeira vez,
são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do homem, de forma econômica, visando a abarcar toda
a humanidade e sendo reformulada em 1793. Serviu de inspiração e base para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, promulgada pelas Nações Unidas, séculos mais tarde (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1948).
29
sobrevivência, de modo que, para o proletário, vender sua força de trabalho não é
necessariamente uma opção, como é hegemonicamente pregado no sistema capitalista. Essa
ilusão em torno da liberdade no capitalismo é uma criação, uma fantasia; e no âmbito social a
ideologia é uma realidade construída e sustentada pela classe dominante, pelos formadores de
opinião, por meio dos aparelhos ideológicos. Tal ideologia está impregnada de valores sexistas
e racistas, para além da exploração de classes. Marx é responsável por desvelar essa trama, por
mostrar como algo dessa realidade constitui-se, ao mesmo tempo que é velada, definindo como
a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Igualmente, o pensamento feminista e o
movimento negro desvelaram outros aspectos dessa contradição fundamental que emerge na
modernidade.
Assim, se, por um lado, o que aparece na Revolução Francesa é um suposto humanismo
que anuncia liberdade, igualdade e fraternidade, por outro, o que fica recalcado é toda
exploração e expropriação decorrente da colonização7 e exploração realizada pela Europa
contra as Américas e o continente africano. E a outrificação das mulheres, e a outrificação dos
“não europeus”.
Ora, nesse âmbito do que é construído e operado via discurso, como pensar os efeitos
que isso tem nas relações de dominação impostas pelo machismo em relação às mulheres? O
que dizer do colonialismo?
Não vem daí a práxis feminista como resposta, no campo social, subvertendo a
aparência ideológica, na cultura que naturaliza o status quo?
Por isso, o destaque dado à teoria dos discursos, para pensar o laço social atual levando
em conta como a práxis feminista interseccional - que considera gênero, raça e classe - constrói
epistemologias que desmentem “verdades hegemônicas”, tanto pelo valor de contestação, mas
não só, considerando-se também sua importância contra-hegemônica e como, historicamente,
tal práxis abala e movimenta a cultura.
Acompanhando a teoria lacaniana dos discursos, procuro situar as condições
apresentadas para pensar os artifícios que promovem exclusão, segregação e hierarquização,
nos laços e nos desenlaces sociais, via uma leitura psicanalítica, visionando possibilidades de
resistências e mudanças que podem emergir a partir de outras coordenadas, no artifício que
estrutura e organiza as sociedades.
Daí a importância do que podemos escutar e localizar de sintomático no laço social. Se,
7
Diversos autores trabalharam esse tema. Destaco aqui a maneira como Eduardo Galeano, em Veias Abertas da
América Latina, descreve o passo a passo desse processo, de como “A América era um negócio europeu”
(GALEANO, 2001, p. 36).
30
no laço, circulam significantes que impõem certas exigências, o sintoma é justamente uma
oposição às exigências colocadas, desvelando algo inerente ao mal-estar. Por isso, nossa aposta
é a de que, quanto mais o imperativo “recatada e do lar” aparecer, mais o oposto se fará
presente em ato. O sintoma é um posicionamento frente a esse mal-estar, é a resposta que vem
do encontro com o real, é uma resposta, um efeito.
Dito isso, no primeiro Capítulo, pretendemos trabalhar mais diretamente os conceitos
da Psicanálise, sobretudo a relação do sujeito no laço social, os discursos, a função política do
sintoma e seus afetamentos no corpo. Já que, como sabemos: “Um corpo humano é um
acontecimento que ocorre como efeito da entrada de um ser humano no âmbito da linguagem e
suas relações com o simbólico e a cultura” (PACHECO, 2010, p.297). Parto da Psicanálise
como um discurso, abrindo para toda a complexidade do que isso quer dizer, a saber: que ela é
uma prática clínica; que sustenta uma relação política interna ao nosso campo (o campo
lacaniano, o campo do gozo); que, enquanto discurso do analista visa à política do inconsciente,
o sintoma, como marca de singularidade. Mas, ao mesmo tempo, também é discurso, à medida
que ocupa um lugar político na cultura.
A teoria dos discursos é tomada por muitos como uma virada no ensino lacaniano,
acumulando ao campo da linguagem o que Lacan inventou e nomeou como campo do gozo: a
formalização da homologia entre mais-valia e mais-de-gozar possibilita pensar nas dimensões
daquilo que ultrapassa as palavras, uma teoria sobre o laço social, chamada de dos discursos,
que inclui o incalculável, daí a importância dessa homologia que Lacan apresentou. Esse
desenvolvimento mostra-se indispensável para que possamos trabalhar os aspectos que
ultrapassam o discurso “somente” como linguagem. Por isso, é necessário apresentar um pouco
das bases que configuram a teoria dos discursos.
O discurso do mestre é o discurso da dominação por excelência. Já, o discurso do
analista é a modalidade de laço que coloca o outro no lugar de sujeito, o agente presente nesse
discurso encarna o semblante de objeto a, sustentando um saber sobre a falta, para que o outro,
na condição de sujeito, opere a produção de um saber que visa ao avesso do que pretende um
significante universal. No discurso do analista, a política é a do sintoma enquanto marca de
singularidade. O matema que organiza os discursos tem quatro lugares fixos: o do agente, o do
Outro, o da produção e o da verdade. A escrita dos matemas se dá incluindo-se quatro elementos
que circulam por esses lugares: o S1, como significante mestre; o S2, como saber; o sujeito
dividido, que é o sujeito da Psicanálise, e o objeto a.
Acontece que, a cada giro a partir do qual os termos ocupam outros lugares, o
ordenamento discursivo modifica-se. Assim, o S1 agente do discurso do mestre não é o mesmo
31
tempo, como tal condição está diretamente ligada ao modo como se estruturaram as relações
civilizatórias, inferiorizando as mulheres, a ponto de tratá-las como mercadoria, como ponto
estruturante na organização social e econômica das sociedades ocidentais.
O feminismo se estabelece como um discurso de caráter político, intelectual e filosófico,
que produz teoria e se constrói em ato; é um fazer político, didaticamente trabalhado e
compreendido em ondas, surgindo no século XIX. No ano de 1897, deu-se, no Reino Unido, a
fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino, com o protagonismo de mulheres na
Europa, reivindicando direitos políticos e jurídicos, bem como pleiteando o direito à educação.
Esse momento é reconhecido oficialmente como primeira onda do feminismo. Acontece que,
em 1851, em uma reunião de clérigos, na Convenção dos Direitos das Mulheres, em Ohio, a
abolicionista estadunidense Sojourner Truth toma a palavra para protestar: “E não sou uma
mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos
celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”. Era uma
resposta aos homens que, naquela ocasião, diziam que as mulheres precisam de ajuda até para
entrar em carruagens e atravessar valas. A força do seu discurso ecoa até os dias atuais,
materializando a complexidade do feminismo, portanto se, oficialmente, as sufragistas
inauguram a primeira onda do feminismo, não podemos ignorar que. antes mesmo de esse fato
histórico acontecer, podemos identificar, de maneira retroativa, o protagonismo do feminismo
negro, com o ato de Sojourner Truth.
Incialmente, o movimento feminista surge enquanto práxis política que se escreve
fazendo frente ao discurso hegemônico, aos discursos de mestria que destinam as mulheres ao
lugar de Outro, de outrificado, como apresentou Simone de Beauvoir. A filósofa aprofunda a
análise da condição feminina em todas as suas direções e vai verificar que “é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam
de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como Outro”
(BEAUVOIR, 1949/2019, p.11), crítica altamente relevante que influencia a maneira de se
pensar a condição feminina dali em diante. Seu livro O segundo sexo revelou-se uma obra-
prima, um divisor de águas dentro e fora das teorias feministas. A racionalidade moderna toma
como verdadeira a concepção de um sujeito universal, dotado de razão e de propriedades
universais e identificáveis a todo indivíduo, ou melhor, a todo homem, estabelecendo esse
sujeito universal como uma referência epistêmica para toda tradição da educação moderna,
como um produto das ideias iluministas, concebido como modernidade, sendo que a educação
contemporânea é tributária da modernidade.
Então, quando Beauvoir descreve o lugar em que a mulher é colocada na cultura, no
33
lugar do Outro por mediação de outrem, ela produz uma crítica à modernidade, que concebe
um sujeito universal, idêntico a si mesmo, designando a mulher como Outro, assim, tem o
sujeito homem, e o outro que é a mulher. “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”
(BEAUVOIR, 1949/2019, p.13).
A publicação de O segundo sexo acontece em 1949, revolucionando o cenário
intelectual e político, apontando como “a humanidade é masculina, e o homem define a mulher
não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR,
1949/2019, p.12). Daí a tão conhecida sentença que vai dizer que a mulher precisa tornar-se
mulher.
A segunda onda tem início na década de 1960, influenciada por Beauvoir. Betty Friedan,
em 1963, escreve A Mística feminina, uma publicação importante, mas que só contemplava um
tipo de mulher, a mulher estadunidense branca, de tal modo que a publicação é reconhecida
como um marco da segunda onda e, ao mesmo tempo, muito criticada por mulheres que não se
identificavam com os dilemas apresentados no livro.
À medida que o feminismo avança, ele se constrói como um movimento plural e diverso,
classificado didaticamente em ondas. Ao longo desse terceiro Capítulo, apresento breve
histórico sobre as primeiras ondas do feminismo.
No quarto Capítulo, trabalharemos especificamente a terceira onda do feminismo, a
partir de duas ramificações: primeiro como se deram certas filiações: partindo de Beauvoir e da
filiação de Irigaray, para o surgimento do feminismo da diferença. A partir delas, destaco,
principalmente, o pensamento de Carla Alonsi, Luisa Muraro e Fina Birulés, por representarem
elaborações importantes, que localizam o pensamento das mulheres na academia e na produção
de conhecimento. Mas como minha ideia não é defender a diferença nesse sentido de ressaltar
as mulheres ou um feminismo que inverte as posições reforçando as diferenças existentes, já
que isso seria a manutenção do binarismo de gênero, tomarei emprestados alguns conceitos
disponibilizados por essas autoras, mas pretendendo dar ênfase a outra vertente do feminismo
da terceira onda.
Dentre filiações e rupturas, interessa-me trabalhar as feministas da interseccionalidade,
demonstrando como o feminismo da diferença é um passo importante de elaboração, mas é
necessário um passo a mais, ir além de reivindicar direitos e apontar a castração inerente ao
pensamento universal. A teoria interseccional, mais do que denunciar as formas de mestria que
se pretendem universais, visa a propor outra forma de laço, questionando não só os lugares de
mestria, mas colocando na berlinda a própria forma que sustenta essa lógica. Assim, autoras
como Angela Davis, Audre Lorde, Patricia Hill Colins, bell hooks e Lélia Gonzalez apresentam
34
8
Via transmissão oral na banca de qualificação.
9
Termo usado pelas autoras do feminismo.
35
em diálogo com o que Lacan propõe como não-todo, de tal modo que, primeiramente, passa
pela histerização possível, via discurso histérico, operando uma denúncia ao mestre, para dar
um passo a mais, vislumbrando uma lógica discursiva que, mais do que denunciar o mestre,
possa renunciar a esse mestre. Por isso pensar o discurso do analista, já que, nesse discurso, a
assimetria não visa à dominação. A partir daí, como pensar o feminismo e a possibilidade de
uma saída coletiva?
36
Este Capítulo é, inicialmente, uma revisão teórica da teoria lacaniana dos discursos, de
como se opera a constituição do sujeito e suas implicações para pensar o laço social, indicando
como as estruturas de linguagem precedem o sujeito e como Lacan, nesse momento teórico,
inclui o campo do gozo e atualiza alguns conceitos - como objeto a e grande Outro -, e as
implicações presentes nesse processo que possibilita o surgimento do sujeito em sua relação no
laço social. É uma estrutura que propõe lugares e funções, e que apresenta uma chave de leitura
para pensar questões políticas. É via articulação significante que se produz a amarração social
possível, sem deixar de fora os tropeços, a dimensão do ‘incalculável’ que permeia as relações.
É uma forma de retomar os processos civilizatórios para analisar o laço social atual e
sua origem, além de incluir críticas pertinentes ao modo de estruturação social.
Em O mal-estar da civilização (1930/2010b), Freud apresenta a relação da cultura com
a produção do mal-estar nos seres humanos. Ele firma a tese de que existe um antagonismo
intransponível entre as exigências da pulsão e as cobranças da civilização. Com Freud,
pensamos cultura, ou civilização, como tudo aquilo que domestica o homem e o separa dos seus
“instintos animais”: na verdade, após a entrada na cultura, pelas vias da linguagem, não se trata
mais de instintos, de tal modo que, a partir da teoria psicanalítica, Freud irá desenvolver o
conceito de pulsão. A civilização exige do sujeito uma renúncia pulsional; desse modo, o mal-
estar na civilização é o mal-estar do laço social. Já nas suas pesquisas iniciais, Freud aponta a
cultura como uma oposição estrutural à vida pulsional, e como isso tem um efeito
“patologizante”.
Assim, desde o início, surge um impasse entre a natureza e a cultura: por um lado, o
recalcamento pulsional é necessário para a instauração da cultura, ao mesmo tempo há algo que
resiste e escapa a esse ordenamento pulsional. Existe, assim, uma relação de determinação
dificilmente contornável entre as condições de possibilidade de instauração da cultura e seus
efeitos patológicos sobre essa mesma cultura.
37
– em virtude do significante que, no caso, funciona como representando esse sujeito junto a um
outro significante”. Nessa estrutura, o S2 é o signo do campo do grande Outro, da bateria
significante que “integra a rede do que se chama um saber” (LACAN, 1971/2007, p.11).
Saber como ambiguidade, “saber o gozo do Outro” (Ibidem, p. 12) e, para fechar, os
termos a - o objeto a - são aqueles que vão operar a função presente, que determina cada
discurso:
Antes de prosseguir com a revisão e a compreensão dos termos referentes aos discursos,
proponho um retorno ao seminário De um Outro ao outro (1968-69/2008b), que prepara e
orienta o que será proposto como discursos no seminário seguinte, O avesso da Psicanálise
(1969-70/1992).
Podemos identificar a maneira pela qual modelos, esquemas, grafos e matemas estão
presentes, ao longo do ensino lacaniano, como uma tentativa de apresentar conceitos,
articulando determinadas relações inerentes aos conceitos. Há uma espécie de sincronicidade
nas relações que organizam o inconsciente. O que quer dizer que há uma lógica própria que
agencia o estado ou a condição de dois ou mais fenômenos ou fatos que ocorrem
simultaneamente, relacionados entre si ou não. Para Eidelsztein (1992), criar os esquemas e
matemas foi a maneira encontrada por Lacan para analisar e transmitir a sincronia - os conceitos
que são postos em jogo e estão dados simultaneamente - e, ao mesmo tempo, transmitir que
qualquer apresentação discursiva implica necessariamente a diacronia. Falando de outro modo,
os esquemas, modelos e grafos, presentes ao longo do ensino, são “una buena vía para seguir
40
y estudiar la articulación entre lo que se caracteriza por estar marcado por una lógica
sincrónica y aquello que lo hace por una lógica diacrónica” (EIDELSZTEIN, 1992, p. 12) e,
ainda, “Todo discurso responde a una estructura fundamental consistente en ser una cadena
de términos, lo que produce como efecto ineludible que los conceptos y sus articulaciones sean
expuestos primero uno, luego el outro, y así sucessivamente” (Ibidem, p. 11).
Para Eidelsztein (1992), por exemplo, o Esquema L tem a estrutura do que, em
matemática, chama-se um grupo, enquanto o Esquema R tem uma estrutura topológica. Ele vai
dizer que Lacan está, desde seus primeiros esquemas, elaborando as consequências de ter
introduzido na Psicanálise a estrutura de seus três registros - o Real, o Simbólico e o Imaginário
– que, tardiamente, Lacan situa pela via topológica do nó nomeado de borromeo. O que para
Freud distribuiu-se em tópica, para Lacan tem uma dimensão topológica: “[...] llamada
segunda, adolece de certa torpeza. Me imagino que era para darse a entender dentro de los
limites de su época.” (LACAN, 1980, apud EIDELSZTEIN, 1992, p. 264-265).
A articulação psicanalítica acerca dos três registros implica o sujeito do inconsciente,
produzindo uma diferenciação em relação ao ensino freudiano e sua proeminência do registro
simbólico. No Seminário 5, As formações do inconsciente (1957-58/1998b), já está presente a
tentativa de Lacan de articular algo do Real em relação ao Simbólico, à medida que propõe o
grafo do desejo, que é um passo a mais, a partir dos seus esquemas anteriores, para pensar
demanda, desejo, e o que transborda: a linguagem.
Desse ponto, gostaria de dar um salto teórico para chegar ao Seminário 16, De um Outro
ao outro (1968-69/2008b), e ao Seminário 17, O Avesso da Psicanálise (1969-70/1992), já que
estão lá os esquemas e matemas que nos interessam para pensar o laço social e a práxis política,
nesta tese.
Retomando, então, a frase escrita no quadro na entrada do Seminário 16: De um Outro
a outro: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 1968-69/2008b,
p. 11), Lacan anunciava o que estaria por vir sobre o campo do gozo, e sua intersecção com o
campo da linguagem. “A essência da teoria psicanalítica é a função do discurso, e é muito
precisamente nisso, que talvez lhes pareça novo ou, pelo menos, paradoxal, que eu digo sem
fala” (LACAN, 1968-69/2008b, p. 14). Nessa ocasião, ele introduz os discursos como laço
social, considerando suas construções e elaborações anteriores, ao mesmo tempo que
movimenta certos conceitos em outras direções.
Nos discursos, Lacan monta sua estrutura e trabalha a intersecção entre o sujeito e o
41
Outro10, incluindo em tal estrutura um ponto de entropia11. Para Lacan, não há uma
metalinguagem que daria a última palavra sobre o sujeito e, ao invés disso, o inconsciente está
estruturado por um vazio, marcado por uma impossibilidade. Portanto Lacan vai situar o sujeito
via relação com o significante, e sem sua posição em relação com o seu gozo.
É em relação à regulação de gozo que aparece a dimensão entrópica, à medida que o
significante introduz uma perda existente na estrutura, produzindo um efeito de gozo. De tal
modo que é a posição do sujeito em relação ao seu gozo que determina o vínculo social, é isso
que resultou na formulação dos discursos como laço social. Se, com Freud, a linguagem regula
a lei, via processo civilizatório, agenciando a renúncia à satisfação pulsional, com a teoria dos
discursos, Lacan funda o campo do gozo e os efeitos da linguagem sobre o real ‘do corpo’,
sobre o gozo.
Assim, para Lacan, o discurso é um dispositivo que origina e regula relações
fundamentais em que “se instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais
pode certamente inscrever-se algo que é bem amplo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 11). Não são
puramente enunciações, mas um aparato que organiza as relações do “Outro ao outro”, ou dos
sujeitos com os seus “semelhantes”.
Cada discurso é um modo de engendramento de gozo que condiciona as posições e os
procedimentos inerentes às relações. Longe de ser pura abstração, as funções, os movimentos,
os sentidos, a dinâmica e os elementos que agenciam o gozo, via aparelhamento significante,
são modos de dizer sobre o que enlaça os corpos em uma sociedade, como se constituem as
relações sociais.
Os discursos resultam da articulação significante que aparelha o gozo “como uma
estrutura necessária” (LACAN, 1969-70/1992, p. 11), sendo o discurso do mestre o que
inaugura a cadeia significante, de tal modo que há uma homologia entre o discurso do mestre e
o discurso do inconsciente, já que ambos contêm os mesmos elementos em sua escrita, no modo
como se escrevem os matemas, por isso o discurso do mestre é considerado o discurso mais
antigo, e o responsável por inaugurar o laço social. Na origem do discurso, está S1, que se dirige
ao campo do Outro, a bateria significante escrita no matema como S2, e é dessa articulação que
emerge o sujeito da Psicanálise.
10
Em 1938, Lacan trabalha o estádio do espelho, buscando entender os primeiros momentos do sujeito humano e
a função da alienação na construção da imagem do seu corpo, na construção do Eu. Assim, o estádio do espelho
aparece como formador da função do Eu (je), e o que advém da sua relação com o Eu (moi), de tal modo que o
estádio do espelho revela a alienação à imagem especular na constituição do Eu, bem como revela seu destino
alienante. O espelho é utilizado como metáfora para, posteriormente, pensar o grande Outro.
11
Retomaremos esse conceito em momento oportuno.
42
Assim, o termo discurso é usado para distinguir “o que está em questão no discurso
como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos
ocasional [...]”, tratando-se de um “discurso sem palavras” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 11).
Nesse aspecto, é interessante pensar por onde Lacan quis falar sobre o que escapa à fala.
Lembrando mais uma vez que, no quadro, na entrada do seminário, estava escrito: “A essência
da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (Ibidem). Ele nos apresenta mais: “Trata-se da
essência da teoria. A essência da teoria psicanalítica é a função do discurso, e é muito
precisamente nisso, que talvez lhes pareça novo ou, pelo menos, paradoxal, que eu diga sem
fala” (Ibidem, p.14).
Em Além do princípio do prazer (1920/2010c), Freud propõe que os aspectos
econômicos da vida psíquica passavam por uma regulação que mescla prazer e desprazer. Freud
toma exemplos de repetição que ilustram o funcionamento desse entrave, dessa regulação
ambígua. Sobre isso, Lacan discorre:
Lacan reafirma que, no nosso campo, nenhuma harmonia é possível, ela é inadmissível.
Os ditos produzem efeitos, uma regra do pensamento que se assegura no não pensamento, como
aquilo que pode ser sua causa: é com isso que nos confrontamos ao pensar sobre o inconsciente.
É fora de sentido que “existo como pensamento”, “meu pensamento não é regulável ao meu
bel-prazer” [...] “ele é regulado” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.13), gerando fenômenos à sua
própria lógica. “O ser do pensamento12 é a causa de um pensamento como fora-de-sentido”
(Ibidem), logo “Com efeito, há um processo de falha, e é desse processo que a prática da
12
A ciência é um advento moderno, bem como a sua categoria de sujeito é igualmente moderna. Assim, Lacan
parte de Descartes, que fez da dúvida seu método, inaugurando o Cogito: “Cogito, ergo sum” ou Penso, logo
existo. É nesse sentido do “ser do pensamento” e da inclusão do “fora de sentido” que Lacan formaliza o sujeito
da Psicanálise como marcado pela divisão, por uma falta estruturante, deslocando o sujeito do Penso, logo existo,
para subverter, articulando o “penso onde não sou, sou onde não penso”.
44
estrutura se serve, mas só pode servir-se dele [...]” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.13).
É nessa orientação, atento ao que escapa à fala, que Lacan retoma a função da repetição
em Freud, para localizar algo do gozo. O que ocasiona essa dobrada com Marx, para atualizar
o campo psicanalítico, por meio das considerações sobre a economia política em Marx. O
conceito de mais-valia é utilizado para destacar a função do mais-de-gozar no discurso do
analista, algo que está no coração da fórmula dos discursos. O objeto a ocupa uma função
essencial a partir do conceito de mais-valia13, em Marx. É por esse caminho que se dá a
descoberta do mais-de-gozar, conceito homólogo à mais-valia: o mais-de-gozar é uma função
de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso (LACAN, 1968-1969/2008b).
O princípio do prazer é um limite em relação ao gozo. A repetição funda-se em um
retorno ao gozo, em uma busca por representação, por algo que totalize, represente. Na
engrenagem de recuperação impossível do gozo perdido, “O significante, então, articula-se por
representar um sujeito junto a outro significante. É daí que partimos para dar sentido a essa
repetição inaugural, na medida em que ela é repetição que visa ao gozo” (LACAN, 1968-
1969/2008b, p. 49). É a isso que Lacan conecta a função do objeto perdido, chamado objeto a.
Um gozo a mais, não passível de simbolização pela via da significação fálica, tal como a mais-
valia de Marx. Essa matemática do gozo, como estamos vendo, é imperfeitamente realizável,
ou, por outro lado, é perfeitamente irrealizável. Não se trata de um desajuste que pode ser
ajustado ou uma conta sem resto, pelo contrário, sempre haverá uma falta e um excesso de resto.
É nesse descompasso que funciona o cálculo do gozo.
É isso que dá lugar ao objeto a: “[...] o sujeito não pode reunir-se em seu representante
de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto
a. Nada pode ser produzido aí sem que o objeto seja perdido”. Marx decifra que entre o valor
de uso e o valor de troca produz-se e cai a mais-valia, e Lacan elabora “que é ele senão a maior
ou menor facilidade da condução do sujeito em torno desse algo que chamamos de mais-de-
gozar, mas ao qual ele é incapaz de dar nome?” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.21).
O trabalho não é algo novo, mas é Marx, a partir da função do mercado, que o situa em
um lugar diferente, no qual o trabalho em si passa a ser um mercado – mercado de trabalho – e
é isso que permite a Marx mostrar o que é a mais-valia. Assim como o trabalho não é novo, e
13
A mais-valia é a parte do valor do trabalho que não é remunerado, a produção que não volta para o trabalhador.
Essa dimensão é tempo, um tempo que não se recupera. No capitalismo, as mercadorias produzidas pelo trabalho
do proletário passam a ter função de troca, o valor não é pautado pelo valor de uso e sim de troca, e é desse modo
que se gera a valorização do capital. Trata-se da mais-valia, o valor incomputável nas relações entre força de
trabalho e capital – “perdido” – pelo trabalhador, porque este não recebe de maneira justa pelo produto de seu
trabalho. Desta feita, a mais-valia é essa margem que ultrapassa o lucro – a mais-valia ultrapassa precisamente o
lucro, que é representável simbolicamente sob a forma do cálculo (MARX, 2012).
45
O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz
evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a
essência do discurso analítico. Essa função aparece em decorrência do
discurso, [...] um efeito do próprio discurso (LACAN, 1969-1970/1992, p.
17).
14
Na teoria marxista, o materialismo histórico pretende a explicação da história das sociedades humanas, em todas
as épocas, por meio dos fatos materiais, essencialmente econômicos e técnicos. A sociedade é comparada a um
edifício cujas fundações, a infraestrutura, seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em
si, a superestrutura, representaria as ideias, costumes, instituições (políticas, religiosas, jurídicas etc.). As relações
sociais são inteiramente interligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens
modificam o seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, modificam todas as relações sociais. A propósito,
Marx escreveu, na obra A miséria da filosofia (1847), na qual estabelece polêmica com Proudhon: “O moinho a
braço vos dará a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial” (MARX,
1847/2001, p. 106). Tal afirmação, defendendo rigoroso determinismo econômico em todas as sociedades
humanas, foi estabelecida por Marx e Engels, no cenário do permanente clima de polêmica que mantiveram com
seus opositores, e foi atenuada com a afirmativa de que existe constante interação e interdependência entre os dois
níveis que compõem a estrutura social: da mesma maneira pela qual a infraestrutura atua sobre a superestrutura,
sobre os reflexos desta, embora, em última instância, sejam os fatores econômicos as condições finalmente
determinantes. As relações sociais do homem são constituídas pelas relações que o homem mantém com a
natureza, onde desenvolve suas práticas, ou seja, o homem constitui-se a partir de seu próprio trabalho, e sua
sociedade constitui-se a partir de suas condições materiais de produção, que dependem de fatores naturais (clima,
biologia, geografia...), ou seja, da relação homem-natureza, assim como da divisão social do trabalho, da sua
cultura.
46
São esses os conceitos que irão assistir a tese sobre o mais-de-gozar como função nos aparelhos
de discurso.
A passagem do feudalismo para o capitalismo foi uma revolução operada pela
burguesia; nesse sentido, a observação lacaniana sobre o “ato revolucionário”15 é algo que
conhecemos mal - não podemos confundir revolução com subversão. A revolução burguesa
introduz na cena histórica, de maneira obscura, a função da mais-valia como peça principal na
engrenagem do capitalismo.
É uma revolução que percorre todo um ciclo, mas que volta ao mesmo lugar, a uma
estrutura de mestria. Para Lacan (1969-1970/1992), a lógica é a mesma sugerida por Hegel com
a dialética do senhor e do escravo, pois a cena histórica desloca-se, mas a estrutura se mantém.
Por isso, a observação sobre ter cautela quando o assunto é revolução. Lacan, inclusive, recorre
a Copérnico para que não haja dúvidas sobre isso. O que Copérnico fez - segundo Lacan - foi
tão somente mudar o centro, trocá-lo da Terra para o Sol, o que não muda em nada nossa
concepção de mundo, que permanece, ainda assim, perfeitamente esférica: “O significado acha
seu centro onde quer que vocês o carreguem” (LACAN, 1972-1973/1996, p. 59).
Dito isso, podemos concluir que considerar Marx é incluir a leitura política no que diz
respeito ao interesse sobre os discursos que estabelecem a cultura.
As relações sociais, a política, são como os sujeitos, emergem para depois evanescerem.
O laço social é estruturalmente descontínuo e desarmônico, em ambos os casos a satisfação não
é plena, de forma que é geradora de um resto irrecuperável.
15
Referência ao “ato revolucionário” dos estudantes, em maio de 1968, que veremos adiante.
47
Lacan estava atento ao seu tempo, aos barulhos nas ruas, aos burburinhos nos cafés, ao
que diziam as outras vertentes psicanalíticas, às conferências de colegas da academia. A
formulação da teoria dos discursos da Lacan tem como referência, também, a conferência O
que é o autor? (1969/2001), na qual Michel Foucault discute o que é o autor, separando Freud
e Marx dos demais autores das Ciências Humanas. Nessa ocasião, Foucault situa a Psicanálise
como mais uma discursividade:
Essa exposição antecede a formulação lacaniana da teoria dos quatro discursos, que se
48
[...] a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas
regras, e passa, assim, para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou
da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em
uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve
não para de desaparecer (Ibidem, p.7).
Podemos identificar aí uma resposta a Foucault sobre Marx e Freud inaugurando novos
discursos, justamente por ocuparem uma função, a função do autor. Freud, por exemplo,
minucioso trabalho articulando autores, conceitos e sentidos para, ao final, apresentar o discurso
do analista como uma estrutura discursiva, topologicamente organizada.
De tal modo, vou entendendo que chamamos de discursos um dispositivo pensado para
compreender o laço social de forma estrutural, aparelhando o gozo de maneira distinta, a cada
discursividade. Este é responsável por agenciar as relações que enlaçam os seres falantes, cada
aparelho de linguagem reserva posições capazes de produzir funções diferentes, logo, produtos
diferentes. É um modo de pensar o que tem de ‘estrutural’ no sujeito e suas modificações, a
partir de quatro modelos estabelecidos como laço social.
Considerando o preâmbulo sobre os esquemas, a entrada com Marx e o diálogo com
Foucault, não considero as estruturas arranjos definitivos e trans-históricos. Interessa-me partir
desse instrumento, para pensar as relações que constituem o ser falante que conhecemos, a partir
desse dispositivo do lacaniano: como cada forma discursiva interfere de maneira distinta no
funcionamento das coisas, como se estabelecem as relações e como cada uma dessas relações
geram produtos distintos. Enfim, os discursos são formas de submissão de gozo, um
aparelhamento, um ordenador de gozo; logo, os discursos operam pela via do poder. Há uma
relação de poder entre os discursos e sua dimensão política, porque, no fundo, os discursos
dizem respeito ao exercício das relações de poder (CHECCHIA, 2015).
significante mestre, a um mestre, mesmo que seja para renunciar a ele. O discurso da histérica
é um dispositivo interessante para pensar política, já que podemos pensar os movimentos sociais
no lugar de agente, movimentando as estruturas, realizando avanços históricos e operando a
circulação de significantes de mestria diferentes, produtores de novos sentidos menos
universalizantes.
Lacan (1969-1970/1992), por exemplo, localiza o método socrático como agente, nesse
laço. O semblante que ocupa o lugar de agente segue endereçando e abrindo novas questões, ao
mesmo tempo em que mantém “salvo” o lugar reservado ao mestre, mesmo que seja para dizer
que esse mestre é castrado. É interessante pensar uma aproximação com Sócrates, no que se
refere aos efeitos do endereçamento de questões, já que colocadas, por um lado, nesse lugar de
passagem, como acontece em uma análise, por outro lado, o problema é que o circuito
promovido por esse enlace, por vezes modifica, mas não rompe relação com a lógica de mestria.
Historicamente, podemos, inclusive, identificar o contrário: as vezes em que a partir do discurso
da histérica algo vacila e o giro retorna para o discurso do mestre, ao invés de avançar no sentido
do discurso do analista. Quando isso acontece, observamos uma maior rigidez ou autoritarismo
que aparece no retorno ao mestre16. De todo modo, esse giro, quando operado de maneira
coletiva, possibilita a mudança de acontecimentos no campo da história, como veremos.
Quanto ao discurso da histérica, foi este que permitiu a passagem decisiva, dando seu
sentido ao que Marx historicamente articulou, que é, a saber, existirem acontecimentos
históricos que só podem ser julgados em termos de sintomas. Não se viu aonde isso chegaria,
até o dia em que se dispôs do discurso da histérica para fazer a passagem com uma outra coisa,
que é o discurso do psicanalista (LACAN, 1969-1970/1992, p.193).
Daí o quarto discurso proposto por Lacan, o do analista, como um discurso que autoriza
um enlace às avessas ao discurso de mestria, capaz de produzir um outro enlace que preserve a
assimetria. Por fim, destacamos a função de Freud como autor, como criador de um dispositivo
que produz um novo laço, inaugurando um novo campo.
16
Olhando retroativamente, podemos perceber tal efeito, o giro que convoca um mestre nos acontecimentos
conhecidos como junho de 2013.
51
São quatro lugares que, partindo de quarto de voltas, produzem quatro discursos. A
constituição do sujeito emerge entre S1 no lugar agente e S2 como campo do outro, quando S1
se dirige a S2. Os outros dois lugares que completam o discurso localizam-se abaixo da barra:
embaixo do agente está o lugar da verdade, que, nessa discursividade inaugural, é ocupado pelo
sujeito dividido, barrado; embaixo do Outro, é o lugar da produção e, nele, nessa modalidade,
localiza-se o objeto a.
Portanto, nessa lógica, o discurso do mestre é o que funda o sujeito e a sociedade, já que
permite e promove a entrada na linguagem, inaugurando a civilização.
O deslocamento no sentido horário é chamado por Lacan (1969-1970/1992) de
regressão, uma vez que desvela o que emerge sob a barra do recalque. Esse deslocamento se dá
por um giro de ¼ de volta. Com os discursos, é formalizado o modo de ação do que é dominante,
como efeito do enunciado em cada discurso, sendo assim: S1, o significante mestre, no Discurso
do Mestre; $, o sujeito dividido, no Discurso da Histérica; S2, o saber, no Discurso da
Universidade, e a, o mais-de-gozar, no Discurso do Analista. Desse modo, no Discurso do
Mestre, domina a lei da estrutura; no Discurso do Universitário, o saber; no Discurso Histérico,
o sintoma; no Discurso do Analista a, o mais-de-gozar.
O lugar inicial é chamado de lugar do agente, porque está no lugar de dominância, lugar
privilegiado, por determinar a intencionalidade do discurso. Assim,
1. Discurso do Mestre, a dominante é a lei (S1) o ato é governar;
53
O Outro é o lugar a ser dominado, “aquilo que ele confessa querer dominar, querer
amestrar” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 65). A seta que vai do agente em direção ao Outro
revela o que o dominante pretende tomar para exercício do seu poder, para exercer domínio.
Por isso a tomada inicial de Lacan, para partir da relação do senhor e do escravo como modelo
inaugural, à medida que o mestre - enquanto significante dominante - exerce poder sobre o
escravo que, por sua vez, detém um saber, um saber que não é “dominado” – sabido – por ele.
Uma volta de giro, partindo do discurso do mestre, e temos o discurso da histérica: o
agente está no lugar que, ao mesmo tempo, sustenta e faz furo na ordem do discurso do mestre
– o agente é a própria insatisfação, o agente aparece como um sintoma. O avesso do discurso
do mestre é o discurso do analista, pois o discurso do analista procura escutar a verdade sobre
a falta, a castração sobre a qual o discurso do mestre não quer saber. O discurso do mestre é o
molde da operação de simbolização, é o discurso do inconsciente.
[...] determinado por razões históricas, que essa primeira forma, a que se
enuncia a partir desse significante que representa um sujeito ante outro
significante, tem uma importância toda particular, na medida em que, entre os
quatro discursos, ela se fixará no que iremos enunciar este ano como discurso
do mestre (LACAN, 1969-1970/1992, p. 19).
da bateria significante que não podemos desconsiderar como fazendo parte da rede chamada
saber. Dito isso, podemos afirmar que a posição do sujeito do inconsciente, no laço social, passa
pelo lugar que ele ocupa e está intimamente conexo com a cultura da qual o sujeito faz parte.
Dizer que é uma estrutura que ultrapassa as palavras não quer dizer que as palavras não sejam
sem efeitos, como veremos em outro momento deste texto.
Como exposto, Lacan propõe uma trama entre linguagem, discurso, campo do Outro e
gozo, como estratégia para falar do laço social, assim reforçando, mais uma vez, a não separação
entre a psicanálise do sujeito do inconsciente e o social. Dito de outro modo, “o sujeito carrega
as marcas do social e não há sujeito fora do social” (IZCOVICH, 2016, p. 8), e essa concepção
é anunciada desde Freud:
Uma breve reflexão: seria justamente porque o sujeito carrega as marcas do social, como
lembrou Izcovich, que podemos repensar quais as marcas do social em cada tempo, de que
modo elas influenciam os sujeitos na atualidade. Daí a proposta de pensar e acolher a ideia de
interseccionalidade na nossa práxis. Entendemos que é pertinente aos analistas estarem atentos
ao pensamento feminista, antirracista e anticolonial, bem como considerar as questões sociais.
Dito isso, é a partir da entrada na linguagem que o ser humano constitui-se como
humano, cada ser falante irá se formar por meio do cuidado e do desejo que lhe é oferecido. É
a partir de um laço entre quem oferta o cuidado e o bebê que necessita de cuidados que algo
acontece, instaurando-se, assim, um enlaçamento e, ao mesmo tempo, uma perda, um laço que,
de saída, inscreve um furo, um furo que diz sobre a falta17 estrutural produzida simultaneamente
à entrada na linguagem. Um dos seus nomes é castração.
Segundo Lacan, “não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e
se define por um discurso” (1972-73/2009, p. 37). São essas coordenadas que moldam as
pulsões, as relações passam por uma construção cultural, uma operação significante, que
permite que as coisas se estabeleçam na cultura de determinada maneira, de tal modo que isso
tenha uma aparência que vela essa operação, não deixando claras as origens desses efeitos
17
Falta já que a entrada no simbólico, na linguagem, faz com que algo fique de fora, algo que não é da ordem do
simbolizável, aquilo que diz respeito ao inconsciente, ao sexual, outro argumento importante que aparece ao longo
da tese, mas que irei aprofundar na articulação entre as partes 1 e 2 do trabalho.
55
processo é circular, mas, por sua natureza, sem reciprocidade. Por ser circular, é dissimétrico”
(p. 203).
Portanto, desde o Seminário 11, quando acontece sua ‘excomunhão’, fruto da
divergência com os pós-freudianos, Lacan autoriza-se a novas formulações, apresentando
elaborações e formalizações que sedimentam os discursos como aparelho de linguagem que
estrutura o campo do gozo, do sujeito como “uma resposta do real da repetição significante de
gozo” (QUINET, 2006, p.32). É nesse contexto que o objeto a é definido como mais-de-gozar,
pois, de maneira entrópica, “organiza toda a dialética da frustração” (LACAN, 1969-
1970/1992, p. 18).
Comecei destacando, nesses trechos anteriores, a formulação dos discursos, que é o eixo
teórico que apresentarei, para recuperar como algo da lógica que irá ser estabelecida somente
nos seminários De um Outro ao outro (1968-1969/2008b) e O avesso da Psicanálise (1969-
1970/1992), mas já estava presente anteriormente, ao mesmo tempo que passam (qual o sujeito
desse verbo?) por modificações que resultam em um novo campo, o campo lacaniano como
campo do gozo.
O objeto a ocupa uma função capital, a partir do conceito de mais-valia em Marx. É por
esse caminho que se dá a descoberta do mais-de-gozar, conceito homólogo à mais-valia. “O
mais-de-gozar é uma função de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar
ao objeto a” (LACAN, 1968-1969/2008b, p. 19).
O deslocamento teórico do conceito de sintoma segue e acompanha as formulações em
torno da noção de objeto a. Inicialmente o objeto a encontrava-se no âmbito do Imaginário, em
referência ao desejo e ao Outro/Autre, cuja sigla é a. Lacan introduz o objeto a, desse modo, no
Seminário De um Outro a outro: “Este outro, o pequeno, com seu tom de notoriedade, era o
que designamos nesse nível, que é de álgebra, de estrutura significante, como objeto a”
(LACAN, 1969-1970/1992, p. 12).
Na cadeia significante, o significante intervém e articula-se com outros significantes, e
é na emergência dessas articulações que surge o sujeito barrado, dividido. “Enfim, nós sempre
acentuamos que desse trajeto surge alguma coisa definida como uma perda. É isto o que designa
a letra que se lê como sendo o objeto a” (LACAN, 1969-1970/1992, p.13). O objeto
originalmente perdido e por onde extraímos uma função, encontra-se diretamente ligado ao
discurso freudiano “sobre o sentido específico da repetição no ser falante” (Ibidem). Segundo
Lacan: “a repetição tem uma certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite – e que se
chama gozo” (Ibidem).
Pois bem, a repetição não é aquilo que começa, termina e recomeça, mas sim algo com
58
que lidamos na exploração do inconsciente, é uma “[...] denotação precisa de um traço que eu
extraí para vocês do texto de Freud como idêntico ao traço unário, ao pequeno bastão, ao
elemento da escrita, um traço na medida em que comemora uma irrupção de gozo” (LACAN,
1969-1970/1992, p. 81).
O objeto a é também o supereu:
Quando o significante se introduz como aparelho de gozo, não temos que ficar
surpresos ao ver aparecer uma coisa que tem relação com a entropia, posto
que se definiu precisamente a entropia, quando se começou a sobrepor esse
aparelho de significantes à sonda física (LACAN, 1969-1970/1992, p. 50).
Este tema não vem da Psicanálise, mas da época, certamente, ainda que a
Psicanálise tenha o que dizer sobre. Ela se insere em uma questão mais ampla:
qual é a relação que há entre as identidades dos indivíduos e o laço social? Na
realidade, eu disse, no laço social, cada um é sempre já identificado pelo
Outro, isto é, sempre fixado sobre índices identitários (SOLER, 2018, p. 30).
18
Sendo uma pesquisa que se propõe a conversar com o feminismo, aponto uma breve problematização sobre os
efeitos do fenômeno que se criou, a partir da revelação do sexo do bebê, como o chá revelação, festas gigantescas
e toda a expetativa que se cria em torno dessa revelação, antes mesmo de o bebê vir ao mundo, atribuindo, assim,
desde antes do nascimento, em um ato público, posições que avigoram o imperativo dos papéis de gênero, na
cultura, a partir da construção da diferença sexual na cultura. Essa problemática será aprofundada no Capítulo
seguinte.
60
o campo do gozo como engendrado pela linguagem, assim o aforisma lacaniano sobre o sujeito
vai dizer que “o significante, então, se articula por representar o sujeito junto a outro
significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição que visa ao gozo” (Ibidem,
p.49).
Lacan nomeia a repetição como um saber que está presente desde a origem,
formalizando a repetição articulada ao conceito de entropia, vinculando o objeto a ao gozo,
formando assim uma estrutura. “O saber está em certo nível, dominado, articulado por
necessidades puramente formais, necessidades da escrita, o que culmina em nossos dias em um
certo tipo de lógica” (LACAN, 1969-1970/1992, p.49-50).
Não é linguagem ou gozo, mas é o ordenamento que a linguagem opera no campo do
gozo que constitui o sujeito e o laço. O discurso sendo a entrada na linguagem, como “instituinte
da colonização do real pelo simbólico, deixando um resto de gozo (a), equivale à civilização e
seu mal-estar, o qual retorna através do que é excluído” (QUINET, 2021, p. 85), ou seja,
discurso é a maneira com que se aparelha a estrutura.
Desta feita, a formalização dos discursos ou do laço social incorre na definição do
campo do gozo. O campo do gozo traz alterações teóricas que se tornam cada vez mais
importantes e constantes no ensino lacaniano. O campo do gozo é estruturado pela linguagem,
que constitui a civilização, determinada por uma renúncia pulsional imposta ao sujeito. Desse
modo, a entrada no laço é um enquadramento da pulsão, como vimos com Freud ou, nos termos
lacanianos, a entrada no laço resulta em perda de gozo, entropia: “só a dimensão da entropia dá
corpo ao seguinte – há um mais-de-gozar a recuperar. [...] tal saber é meio de gozo. E quando
ele trabalha, repito, o que produz é entropia” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 52-53).
Ainda que a Psicanálise opere no campo do gozo, ou seja, do discurso sem palavras, é
inegável que as palavras estão presentes o tempo todo. Embora seja do significante que se trata,
aqui vale uma ressalva importante sobre o peso do significado, de como este impregna o
significante, produzindo efeitos de gozo.
Isso pouco tem a ver com a sua fala, com sua palavra, isso tem a ver com a
estrutura que se aparelha. O ser humano, que, sem dúvida, é assim chamado
porque nada mais é que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar,
digo, se apalavrar com esse aparelho (LACAN, 1969-1970/1992, p. 53).
Um parêntese: a maneira com que cada sujeito é apalavrado não é sem consequências,
se será possível ocupar o lugar de sujeito ou se já está estruturalmente destinado ao lugar de
objeto via machismo e racismo estrutural (FANON, 2008; KILOMBA, 2019), não podemos
61
A realidade social tem a linguagem como seu fundamento, “é a rotina do laço social que
faz com que o significado possa deter algum sentido” (HARARI, 2008, p. 4).
Ainda que a teoria dos discursos trabalhe podendo prescindir das palavras, é inegável
que o significado sobrecarrega o significante. Insisto que as palavras não são sem efeitos e,
neste sentido, por exemplo, sabemos que homem e mulher são posições significantes no
discurso, no que tange ao interior do nosso campo. No entanto, não são só dois significantes,
pois é inegável que são termos carregados de história. Acompanhando Harari:
Daí a teoria dos discursos como via para pensar o social, já que as relações
sociais são constituídas formando um laço, que se monta por estrutura, pelo
estofo da linguagem. Laço social como discursos que aparelham o gozo, ‘na
medida em que o processo civilizatório, para permitir o estabelecimento das
relações entre as pessoas, implica a renúncia da tendência pulsional em tratar
62
A cultura exige uma renúncia, sendo assim, todo laço é um emolduramento pulsional, é
a delimitação de um determinado ordenamento, produzindo sempre que algo fica de fora da
cadeia significante, neste sentido há sempre uma perda de gozo.
Toda relação se estabelece a partir de um determinado discurso, a partir de determinados
lugares e vetores impostos e previamente determinados. Assim,
O discurso do mestre é aquele que coletiviza a realidade no laço social, ele representa o
sujeito para outro significante. S1/$ – S2, “essa matriz que, por ser uma necessidade da estrutura
de linguagem, o significante mestre não pode desaparecer” (SOLER, 2010, p. 255). Ele é o
próprio inconsciente, e esse modelo é aplicado em diferentes níveis, “aplica-se ao laço social
que o discurso do mestre é coletivizante: digamos à realidade” (Ibidem).
Entendendo a realidade como uma chave para compreender o mundo, o “conjunto do
discurso” (SOLER, 2010, p. 255) sustenta a lógica patriarcal como universal e, por
consequência, por sustentá-la assim, ela passa a ser universal, desencadeando a estrutura da
linguagem, com ou sem palavras, pois sabemos que o gozo é engendrado pela estrutura
discursiva, e recordando que “as ilusões que [ele] comporta [devem-se] ao significante-mestre,
63
ao passo que [a] inserção no gozo se deve ao saber” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 97). A
realidade é a fantasia como cada um consegue ler o que aparece na cena social, a realidade diz
sempre sobre a realidade psíquica, mas que, na cadeia discursiva social, ganha outro valor, valor
de verdade.
Colette Soler, em seu seminário Os nomes da identidade, vai afirmar que o discurso é
um “espelho identitário do qual ele – o indivíduo - não pode sair e que é constituído por uma
constelação de significante” (SOLER, 2018, p. 30), produzindo, assim, índices que advêm do
discurso - tais como gênero, idade, sexo, família, origem, história, nacionalidade -,
corroborando uma “identidade social”, pois se referem àquilo que circula no laço.
Desse modo, podemos notar que “neste contexto, o indivíduo está sempre já
identificado, é dividido entre anseios contrários. Ele aspira, certamente, a uma identidade, mas
que não é uma identidade qualquer” (SOLER, 2018, p. 31). Essa valorização implica duas
pretensões contraditórias, que tencionam os indivíduos no laço. Entendo que, ao usar o termo
indivíduo e não sujeito, Soler pretende destacar os fechamentos que os espelhos identitários
podem produzir. Certa sutura que o discurso de mestria – em especial no circuito capitalista19 –
pode determinar.
Logo, a civilização é produto do discurso, com os seus giros e engendramentos, com a
montagem que estrutura o laço social. “[...] uma estrutura necessária” (LACAN, 1970, p.11).
Por se tratar das relações fundamentais que se sustentam da linguagem, ainda que subsista sem
palavras, vai além das enunciações efetivas. Para Lacan, há enunciados primordiais que
transmitem nossas condutas, costumes, atos e pensamentos. Ele dirá que “o pensamento não é
uma categoria. Quase diria que é um afeto” (Ibidem, p. 160).
Portanto, “a linguagem é a condição do inconsciente” (LACAN, 1970, p. 42) e o sujeito
da Psicanálise emerge dessa estrutura. É nessa direção que iremos acompanhar a orientação do
ensino lacaniano. Por um lado, olhando para o que se transmite e, por outro, para o que escapa
na cultura, o que aparece e o que fica recalcado, como algo que opera “nesse nível de estrutura
significante” (Ibidem, p.12) e mais além dela20.
Desse modo, o ponto de partida é o significante mestre – e seus efeitos – que circula e
estabelece a cultura. O discurso do mestre é o que inaugura essa lógica, o mundo que
19
Não pretendo incluir o discurso capitalista e toda a discussão sobre ele ser ou não um quinto discurso, ou se é a
versão desenlaçada do discurso do mestre, por isso digo circuito, para enfatizar como a circulação nessa
modalidade se dá de um outro modo e não efetiva um laço, daí o indivíduo e a forma individualista – a não
circulação.
20
Parte intimamente ligada ao texto da Lélia sobre o que fica recalcado na cultura brasileira (GONZALEZ,
1984/2020).
64
conhecemos inscreve-se a partir dele, é o ponto inicial para os demais giros e desdobramentos.
Por isso, o laço como um sistema estruturado, via linguagem e, mais além dela, posicionando
os sujeitos de maneira diferente, com implicações econômicas e sociais desiguais.
21
Que resultou no termo indivíduo, o sujeito sem divisão.
65
Todo discurso coloca algo em movimento, “no caso do discurso universitário, esse
agenciamento é efetuado pelo saber que, por isso, está no lugar do agente, já que no discurso
universitário, é o saber que move todo o edifício das relações que nele se fazem” (ALBERTI,
2009, p. 119).
Como dito em outro momento, o saber para a Psicanálise diz respeito ao lugar do Outro,
uma inscrição no inconsciente. Lacan disse em uma das suas conferências – O saber do
psicanalista (1971-1972) – que todo saber registra-se a partir de um não saber, já que o não
saber é imensamente maior do que o saber. Vale marcar que o não saber não é simplesmente
aquilo que não sabemos, como o que foge à consciência, ou como se houvesse possibilidade de
saber, mas trata-se justamente de uma impossibilidade de um todo saber. Algo que está
colocado como impossível, e que diz respeito à própria relação do sujeito com o registro do
Real, tem algo que escapa sempre à possibilidade de simbolização, isso marca a existência de
um furo da linguagem.
A burocracia localizada no discurso universitário solicita o saber, por isso, os títulos
acadêmicos validam como verdadeiro o agente do discurso. Independentemente do trabalho
apresentado, os títulos validam o lugar. “Se existe um discurso, dentre os quatro estabelecidos
por Lacan, que joga fora o sujeito, esse é o discurso universitário. Ele produz e joga fora o
sujeito” (ALBERTI, 2009, p. 120). A autora completa, afirmando que “quando no discurso
66
22
Inclusive a crise na França, em 1968, e a maneira como essa crise instalou-se nas universidades, ratificando o
lugar de saber como mercadoria, na contagem de créditos, foi um dos estopins para toda a movimentação que
aconteceu em Paris, com os estudantes tomando as ruas.
67
2 DISCURSO DA HISTÉRICA
23
A verdade sobre a relação sexual (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98).
69
que está aí a importância desse discurso, que, no campo político, vai provocando fissuras,
produzindo enfrentamentos aos saberes hegemônicos.
Ainda de olho nessa homologia, cito Lacan: “quanto ao discurso da histérica, foi este
que permitiu a passagem decisiva, dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou.
Que é, a saber, existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de
sintoma” (LACAN, 1966/1998a, p. 214).
Tanto para pensar o que aparece como tragédia, quanto para analisar o que se apresenta
como farsa, em termos de história, será que o que separa tragédia e farsa não tem relação com
a produção de um saber sobre o gozo, no discurso do mestre ou nos discursos de mestria?
Colocando a questão de um outro modo: ao deslocar significante mestre do lugar do agente que
coloniza e domina, ou desarticulá-lo do lugar e da sua relação com a verdade, não podemos
reconhecer como farsa aquilo que, a princípio, fazia semblante de tragédia?
Isso pode ser um prisma para rever diferentes momentos sociais, em que a colonização
produzida, via discurso, determinou subalternização do Outro como “destino”. Historicamente,
podemos analisar como se procedeu à tentativa de civilizar os povos que vivem de maneira
diferente do dito sujeito universal, como se construiu um saber sobre o homem de que esse
sujeito precisa ser “idêntico à sua própria imagem”, para ser reconhecido como sujeito; um
processo que cria para esse sujeito uma identidade que é recalcada como identidade, como
aquilo que diz de um particular. Tal negação identifica que algo da identidade está no outro, e
não nele, assim, esse sujeito dito universal, presente nos discursos de mestria, quando não
encontra no Outro o reflexo de si mesmo, não reconhece o Outro como sujeito. São inúmeros
os exemplos que a história oferece e cito alguns: como foram tratados os povos originários, que,
justamente por não se deixarem colonizar, foram massacrados, ou como foram tratados
historicamente os diversos povos do continente africano, raptados, explorados e racializados,
ou o lugar destinado às mulheres na civilização patriarcal.
Os discursos de mestria foram, originalmente, pensados a partir da dialética do senhor
e do escravo da teoria hegeliana. Lacan parte daí, para encontrar os elementos que fazem da
relação assimétrica entre os sujeitos uma hierarquização prenhe de consequências para o laço
social.
Ressalto, assim, o valor político do discurso da histérica (e do sintoma) no laço social,
já que “o discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, dado que o
saber vem ali do lugar do gozo” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98), e tal revelação, ao
evidenciar que o mestre é castrado, cria uma fissura no saber de tal modo que pode produzir
giro discursivo.
70
24
Entendemos que é fundamental rever pontos problemáticos presentes na epsitemologia psicanalítica revendo
alguns pontos que podem reforçar a dominação heteronormativa e patriarcal, visando fazer avançar a Psicanálise,
adequando-a à atualidade deste tempo.
71
Dito isso, quando penso a práxis feminista no lugar de agente do discurso da histérica,
tem relação com a sua determinação de denunciar qualquer saber que se proponha universal.
O sujeito dividido, no lugar de agente, dirige-se ao mestre, demandando decifração. Ao
propor um laço nomeado como histérico, o que está em pauta não são os sintomas histéricos e,
sim, o endereçamento do saber a um outro. É fazer da histeria, no laço, um endereçamento
particular de gozo, um ordenamento diferente em relação ao desejo. Por isso, Lacan vai escolher
Sócrates para exemplificar esse discurso, justamente porque o filósofo não personificava
respostas, mas como produtor de giros, movimentava a roda do desejo por saber.
O desejo de saber é o que origina a Psicanálise, desejo de saber sobre o sintoma que
aflige o sujeito, é isso que leva um ser falante a procurar uma análise, saindo do discurso do
mestre para se interrogar sobre sua divisão. É graças à histerização discursiva como regra
fundamental a todo tratamento que Freud descobre o inconsciente e inventa a Psicanálise, a
‘histerização do discurso’ instituída pelo analista, na experiência analítica. “É a histerização do
discurso que faz surgir um sujeito com o Outro, ou seja, a ‘histerização’ do discurso se refere a
um sujeito com o Outro significante” (GALLANO, 2006, p. 15); em uma análise, o sujeito
precisa passar por esse lugar.
Além disso, ao introduzir a noção de um discurso da histérica como uma modalidade de
laço social, cuja posição dominante é ocupada por $, “o sujeito exibe as marcas do significante
em seu próprio corpo sob a forma de sintomas” (CASTRO, 2009, p.2). Um mecanismo que
localiza o desejo como desejo de saber. Nesse matema, o saber ocupa o lugar da produção.
Lacan complementa, ainda, que a histérica “quer um mestre sobre o qual ela reine e ele
não governe” (1969-1970/1992, p.136). Acontece que, desse modo, o discurso da histérica
interroga os discursos de mestria, mas não deixa de estar referenciado ao mestre.
No parágrafo seguinte ao que acabo de citar, Lacan retoma Freud retirando o
sexo/gênero desse estereótipo que relaciona a mulher a essa modalidade discursiva, dizendo:
“Ela é a histérica, mas isto não especifica forçosamente um sexo. Desde o momento em que
fizer a pergunta – O que quer fulano?, vocês entram na função do desejo e fazem o significante-
mestre sair” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 136).
Ouso dizer que essas últimas falas podem ser ponderadas de várias formas, digo isso
considerando o calor do momento, da conjuntura política presente nas ruas naquela ocasião, já
que essa aula acontece no dia 19 de abril de 1970 e, em 13 de maio de 1970, ocorre a famosa
Conversas nos degraus do Panteão (1969-1970/1992), na qual Lacan refere-se aos
revolucionários.
As datas são relevantes, pensando-se que o retrato do discurso da histérica que vem
72
nesse período remete às manifestações e, no entanto, na ocasião dessas duas aulas, o cenário
político parisiense já era outro. O panorama político continha a derrota dos movimentos das
classes trabalhadora e estudantil. Se, em um primeiro momento, os estudantes manifestaram-se
pelo excedente de alunos e, como as universidades não acompanharam esse aumento, de modo
a aceitarem todos, era um movimento contra a reforma universitária, bem como exigiam a
renúncia do presidente Charles de Gaulle, considerado um conservador, e incitavam a
convocação de eleições gerais; ao mesmo tempo, os trabalhadores protagonizaram uma greve
geral de proporções alarmantes: mais de nove milhões de trabalhadores protagonizaram a greve
por melhores condições de trabalho. Acuado, de Gaulle concedeu o abono e convocou novas
eleições, que ocorreram em 23 e 30 de junho do mesmo ano. Os partidos de esquerda, então
considerados parcialmente responsáveis pela referida crise, sofreram uma derrota esmagadora,
em benefício da maioria cessante, que, no entanto, experimentara graves dificuldades de vitória
nas eleições anteriores. Assim, de Gaulle fez o seu sucessor, e os movimentos sofreram uma
derrota importante, atualizando e, de certa maneira, reforçando a volta “ao mestre”.
Dito isso, será que, nesse a posteriori, os movimentos já não estavam gendrados
novamente no discurso universitário? Pela forma com que, no momento seguinte, acomodaram-
se na estrutura? Ou será que as manifestações esvaneceram e perderam seu vigor tão
rapidamente ao ponto de não conseguirem transpor o “é proibido proibir” do lugar de
contestação para a proposição de novos significantes? Será que esses significantes, enquanto
palavras de ordem, foram insuficientes para implicar uma coletividade e, por isso, o giro levou
à repetição e à volta, no sentido de um retrocesso, em comparação com a expectativa criada
pelo movimento, em maio de 68? E mais, como essa derrota dos movimentos influenciaram a
leitura política de Lacan naquele momento?
Antes de prosseguir com a discussão sobre o discurso da histérica, vale retomar alguns
acontecimentos históricos que influenciaram o andamento dos conceitos, e já adianto que não
é à toa que Lacan, entre 1968 e 1970, vai associar a greve ao discurso da histérica e, nesse
contexto, aponta a greve como um sintoma social: “Na greve, a verdade coletiva do trabalho se
manifesta” e, ainda, “quando a verdade coletiva sai, sabemos que todo o discurso pode cair
fora” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.41-42). A greve entra como uma verdade coletiva, já que
é ela que possibilita a relação entre sujeitos, ou seja, a entrada do proletário no laço social. Até
então, influenciado por Marx, ele valorizava a greve, ressaltando, no Seminário 16, que é ela
que vai reunir o trabalhador no laço, defendendo que, na greve, a verdade coletiva manifesta-
se.
Acontece que, anos depois, em 1974, influenciado pelos rumos da história, no seu
73
“disco-urso” de Roma, A Terceira, Lacan dirá que só há um sintoma social, o proletário, e ainda
ironiza os anseios revolucionários de Marx:
[...] cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso
com que fazer laço social, em outras palavras, semblante. Foi ao que Marx
remediou, remediou de uma maneira incrível. Dito e feito. O que ele emitiu
implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua
exatamente como antes (LACAN, 1974, p.9).
implantado, a chamada Grande Revolução Cultural Proletária. Mao queria um giro que
abandonasse os “quatro velhos”: pensamentos, cultura, costumes e hábitos (BEZERRA, s.d.).
Mas, como vimos, provocar o giro discursivo também pode levar a um retorno, ao invés de a
um avanço; assim aconteceu e, em outubro de 1968, Mao ordena de maneira ditatorial a
perseguição daqueles que questionassem o novo regime.
Já, no Chile, há uma crescente onda de protestos contra o governo do presidente Gustavo
Diaz Ordaz, conhecido por seu autoritarismo e por perseguir movimentos sociais que ele
considerasse uma ameaça comunista. E, às vésperas da realização dos Jogos Olímpicos, na
Cidade do México, manifestantes reúnem-se na Plaza de las Tres Culturas, em resposta às
manobras das Forças Armadas, na Universidade Autônoma de Nuevo León, buscando reprimir
o movimento. Acontece que nesse dia, 02 de outubro de 1968, a polícia abre fogo contra os
estudantes e trabalhadores que aderiram aos protestos. O número de mortos na ocasião é
desconhecido, mas os dados oficiais registram 36 mortos. Depois desse feito, as lideranças dos
movimentos foram criminalizadas e exiladas.
No Brasil, estávamos submetidos ao regime militar, instalado no país com o golpe
militar de 1964, a ditadura avançava e seu regime endurecia cada vez mais. Em março de 1968,
um tenente da Polícia Militar mata um estudante, durante uma invasão policial em restaurante
estudantil25, enquanto alunos protestavam contra o aumento dos preços e a má qualidade das
refeições do estabelecimento. Tamanha violência gerou uma grande reação e, em 26 de junho,
ocorre a Marcha dos Cem Mil. O governo proíbe tal passeata mas, pela magnitude do ato, o
maior contra a ditadura militar, até então, é obrigado a recuar nesse dia. As manifestações
continuam e o uso da violência policial também, até que, em 13 de dezembro de 1968, é
promulgado o AI-5 (Ato Institucional número 5), sancionando de vez a arbitrariedade, a
violência e a censura como regra e marcando o início dos anos de chumbo no país.
Por fim, na França, acontece o Maio de 1968. Vanier (2021, p. 1) vai dizer que é
perigoso declarar alguma coisa sobre maio de 68: “O acontecimento se esmigalha sob os
comentários. Assistimos hoje a uma verdadeira querela das interpretações”. Da greve geral mais
importante que a França conheceu no século XX, agitando o país em vários níveis, o que se
depreendia, no campo social, era uma enorme insatisfação:
25
O Restaurante Central dos Estudantes (Rio de Janeiro), conhecido como Calabouço, foi o palco do primeiro
homicídio de um estudante pela ditadura militar, o estudante secundarista Edson Luís (OTAVIO, 2008).
75
Já havia uma agitação instalada, por um lado, pelos estudantes; por outro, pela classe
trabalhadora. Acontece que, no campo discursivo, são os semblantes que dão as cartas e, como
já advertiu Marx, “primeiro, como tragédia, depois, como farsa”26; mais uma vez o
autoritarismo policial contra os estudantes desencadeia o acontecimento Maio de 1968, a partir
da greve geral que se inicia no dia 08 de maio daquele ano e vai seguindo, numa crescente,
entre os estudantes. A população, em choque por testemunhar a violência contra os estudantes,
solidariza-se e adere ao movimento, até que, no dia 13 de maio, “a greve geral é desencadeada
em toda a França, uma manifestação gigantesca acontece em Paris, um milhão de pessoas sai
às ruas em protesto” (VARNIER, 2021, p. 2).
Ao final, depois de muita violência e desgaste, os sindicatos negociam um acordo que
resultou na conquista de 30% de aumento salarial e do salário-mínimo, e o chamamento de
novas eleições. Eleições em que Charles de Gaulle conquistou a manutenção do poder, elegendo
o seu sucessor. No campo universitário, a derrota representa a ocorrência da reforma que
transforma o conhecimento em unidade de valor, como “mercado do saber”, do qual Lacan era
crítico:
Quanto mais ignóbil – não disse obsceno, não se trata disso há bastante tempo
– melhor será. Isto esclarece verdadeiramente a reforma recente da
Universidade, por exemplo. Todos, unidades de valor, créditos – tendo na
algibeira de vocês o bastão da cultura, marechal à beça, mais medalhas, como
nos concursos de animais, que vão etiquetá-los com o que se ousa chamar de
mestria. Formidável, terão disso em profusão (LACAN, 1969-1970/1992, p.
194).
26
A célebre frase de Karl Marx, na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852).
76
Depois desse pequeno desvio histórico, podemos voltar para Lacan e a provocação aos
estudantes. Maio de 1968 traz na cultura uma marca simbólica, que, imageticamente, remete ao
auge das manifestações, na primavera! Não à toa, a capa do Seminário 17: O Avesso da
Psicanálise, é uma foto de Dany le Rouge - Daniel Cohn-Bendit - encarando com ar de riso um
policial, marcando a impotência da autoridade policial em reprimir o movimento nas ruas.
Assim, as imagens que marcam as memórias do que foi o Maio de 68 passam por essas
fotografias do movimento em ato, e não desse momento seguinte, que representa o
enfraquecimento do movimento e o giro que faz voltar o recalcado, instalando o discurso
universitário, culminando na manutenção da direita autoritária ocupando o Estado e na
burocratização do ensino.
Por isso, no ano seguinte aos acontecimentos, entre final de 1969 e 1970, ao ser
contestado, Lacan vai dizer que o que os estudantes, aos quais ele chamou de revolucionários27,
queriam era um novo mestre, e assim a experiência mostrou. Desse modo, parece-me que é
mais uma fala acalorada pela proximidade dos acontecimentos e pela forma com que o discurso
girou em retroação. Tanto o discurso da histérica como o discurso universitário não são
marcados por um impossível, mas sim por uma impotência.
Nesse caso, os significantes mestres colocados na cena não apontaram para o
impossível, como opera o discurso da histérica, quando gira no sentido do discurso do analista.
Ao invés de apostar em algo inédito, o movimento - por essa via da impotência, como se
virássemos a direção dos olhares na capa do livro -, ao aderir às regras do mestre, tendeu à
repetição e validou a provocação lacaniana: “eles aspiravam por um novo mestre” (LACAN,
1969-1970/1992, p. 196).
Em uma discussão apresentada em artigo sobre Psicanálise e movimentos sociais,
Patrícia Ferreira analisa junho de 2013, sob a ótica da noção de histeria, analisando como se
opera aí a modalidade discursiva possível para pensar coletividade e movimentos sociais, a qual
se origina a partir da “existência de ao menos dois desdobramentos diferentes que se originam
do mesmo tipo clínico: ‘histeria coletiva’ e ‘discurso da histérica” (FERREIRA, 2018, p. 67).
De tal modo que:
27
Ao passo que Lacan vai ironizar as aspirações revolucionárias, ao mesmo tempo, os movimentos aos quais ele
se dirigiu não reivindicavam tomar o poder, assim, não são propriamente os estudantes que estavam preocupados
com um ataque a fim de tomarem o poder (TOURAINE, 2008).
77
Assim, para a autora, histeria coletiva é importante, por enlaçar os sujeitos a partir da
identificação apresentada por Freud (1921/2011), quando apresenta a referência das moças no
internato; assim, é fundamental que essas identificações aconteçam orbitando em torno de
significantes que organizem os sujeitos coletivamente. No entanto, quando as identificações
não se efetivam em torno de significantes que possibilitem aberturas na lógica hegemônica, só
‘histeria coletiva’ acaba sendo insuficiente e, desse modo, a ‘histerização discursiva’ pode ser
vã, tendendo a cair na repetição, como sugere Lacan aos revolucionários. Por outro lado,
também pode seguir pela via do discurso da histérica e pela possibilidade de produzir saber a
partir dessa lógica coletiva, fazendo circular um novo significante mestre, que seja outro, “já
não será o mesmo mestre e é daí que se pode, aos poucos e em movimento, chegar a qualquer
espécie de ‘separação ou ‘emancipação’. Antes disso, sabemos: é preciso e precioso que se
recorde, repita e elabore” (FERREIRA, 2018, p. 87).
Portanto, acompanhando Ferreira (2018) notamos que como retorno do recalcado, o
discurso da histérica tem essa vacilação que possibilita um giro que volta um quarto ao invés
de avançar, a depender do que será produzido como saber nessa relação com o S1. Mas vale
advertir que todo discurso, assim como todo sujeito, pode estar refém dessa vacilação.
No campo político, Gallano e Cevasco (2014) compartilham dessa aposta em pensar
saídas coletivas no campo político. Ambas acompanharam o Movimiento 15-M, na Espanha, e
a efervescência que tomava as ruas, no clamor por mudanças sociais, em maio de 2011.
Exaltando que subjetividade e lógica coletiva é uma articulação, e articulando Lacan para
pensar chaves de mudanças sociais, não há possibilidade de transformação social sem
transformar as subjetividades que passam pelas experiências coletivas. E, para explicar melhor
o que Lacan quer dizer com lógica coletiva, podemos pensar no sofismo dos três prisioneiros.
Eu tendo a pensar que muitos aspectos puderam avançar e outros significantes mestres
passaram a circular, embora os movimentos disparados em maio de 1968 tenham sofrido uma
derrota no que eles tinham de mais central, fazendo avançar a gestão sem sujeito (com a reforma
universitária e a manutenção e endurecimento da direita no poder, em vários lugares no mundo),
pelas periferias da estrutura, ou melhor, na emergência de outras estruturas simultâneas e
paralelas.
Inúmeros movimentos sociais criam corpo e se fortalecem, no final da década de 1960,
78
um S1 não do sexo, mas sim da política, e esse ponto nos interessa, para pensarmos os
movimentos sociais que se propõem a fazer furo nos discursos de uma mestria universal. O
mestre da histérica é castrado, ele é privado desse lugar de todo, que como ‘todo’ é um lugar
somente suposto. No entanto, ele domina a posição de mais-de-gozar, e é justamente pela
exclusão do gozo fálico – como todo – que esse mais-de-gozar é possível. Por isso, por esse
prisma, a modalidade histérica como discurso “revela a relação do mestre com o gozo”
(SOLER, 2016, p. 74). Não é só a perda que se dá pela castração, mas é esse artifício de
tamponar a perda que Lacan nomeou de mais-de-gozar, a partir do conceito de mais-valia em
Marx:
28
Frase pronunciada, em abril de 2016, pelo então vice-presidente Michel Temer (MDB), apresentando Marcela
Temer, sua esposa – e “quase primeira-dama”, nas palavras da publicação. Bela, recatada e do lar era o título da
reportagem da revista Veja, que, na ocasião, pretendia com essa matéria defender um modelo de mulher a ser
seguido (LINHARES, 2016).
80
29
Termo usado por Lacan e retomado por Colette Soler (2006), em O que faz laço?, “hystóricas, é como Lacan se
refere às histéricas. Isso nos diz duas coisas. Primeiro, a histeria conta histórias. [...] em seguida isso nos diz que
a própria histeria é histórica, flutua em função da história social, especificamente ao sabor das mudanças que
afetam o S1, o significante mestre, seu parceiro” (SOLER, 2016, p. 65).
30
Explicitar a caça às bruxas, nomear como o feminicídio ocorreu ao longo da história, e atualmente. No campo
político, por exemplo, a Comissão da Verdade operou desse modo, “hystoricizando”. Tem como produto um saber,
aos moldes de contar, repetir, elaborar. É uma pena que não foi possível dar o giro a mais, necessário para de fato
elaborar, e não repetir.
31
Observação feita no exame de qualificação.
81
ocupar o lugar da verdade, (abaixo do agente como a), esse é o único discurso em que o sujeito
está no lugar do Outro e em que incide a produção de um significante mestre, a partir do
agenciamento do a como furo, de uma lógica não-toda.
Lacan (1972-1973/2009) é categórico ao dizer duas coisas: primeiramente ele vai dizer
que é somente a presença do discurso do analista que permite a estruturação dos demais
discursos. Em seguida, afirma que entre um discurso e outro haverá sempre alguma emergência
do discurso do analista. Para Lacan, os discursos apresentam-se em uma dinâmica, em
movimento, e o discurso do analista aparece sempre na passagem de um discurso a outro. E
produz um efeito importante, em sua dinâmica no laço social – nos movimentos sociais e nas
instituições –, pois impede que as modalidades discursivas se fixem em um ou outro padrão,
evitando a cristalização no laço. Apostamos na presença e na valorização do discurso do analista
para produzir modificações, possibilitando abertura e fluidez aos movimentos sociais.
Se, em O mal-estar na civilização (1930/2010b), Freud vai enfatizar que a fonte de
sofrimento mais penosa é resultante da relação com os outros, tal mal-estar se manterá sempre
presente e em toda a forma de laço, já que, ao se ingressar no universo simbólico da linguagem,
algo sempre ficará de fora. O mal-estar é, então, o mal-estar da linguagem, que não é capaz de
dar conta de todo o Real que comparece e atravessa laços e sujeitos, de tal modo que sempre
haverá um impossível de ‘dar conta’ da comunicação, do mal-estar na relação com o Outro.
Nesse sentido, podemos localizar aí a não-relação sexual, tirando definitivamente o
âmbito da relação entre os sexos, para constatar o impossível da relação com o Outro, da
impossibilidade de a linguagem dar conta dos ‘mistérios’ da vida, o impossível de saber sobre
o sexual e sobre a morte. Em A terceira (1974), Lacan vai aproximar esses dois pontos: o fato
de sermos seres sexuados e como tal relação traz para a cena a morte como impossível, como
castração.
Ao aplicar essas categorias que, em si mesmas, só se estruturam pela existência do
discurso psicanalítico, é preciso prestar atenção à colocação em prova dessa verdade de que há
emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro (LACAN, 1972-
1973/1996, p. 26-27).
O analista trabalha em seu discurso, operando com o sintoma, com o sujeito do
inconsciente, enquanto o Eu constrói formações defensivas que busca a todo custo organizar
82
essa divisão, que é condição do inconsciente. Então, enquanto prática, uma análise interroga as
identidades que fecham e reduzem o dizer a um ‘eu sou isso’. Assim, para a Psicanálise somos
cindidos por definição, por isso, o manejo clínico visa a quebrar essas certezas do Eu.
Tomando o discurso do analista como o discurso do mal-entendido, concluímos que é
somente ao escutar e acolher esse mal-entendido que o ser humano vai se utilizar das demais
formações discursivas. Ou seja, é por causa do fracasso da linguagem em dar conta de todo o
Real que as tentativas de laço vão se instaurar, e é por isso que os demais discursos só podem
ser pensados pela presença do discurso do analista. Porém, por haver a emergência do discurso
do analista, na passagem de um discurso para outro, a cada vez que um discurso qualquer se
instala, na tentativa de produzir laço, produz-se um resto não simbolizável, que fracassa a
qualquer tentativa de simbolização. Esse resto – o fracasso do discurso – faz emergir o discurso
do analista, antes mesmo que se tente responder ao apelo do Real com outro discurso.
O discurso do analista é, então, capaz de colocar na posição de comando o que é a
própria fratura de tal discurso, ou seja, o Real – outro nome do objeto a –, e temos o que há de
subversivo nesse discurso: assumir o impossível.
Na práxis psicanalítica, o sintoma é um conceito amplamente trabalhado e que intervém
na prática clínica e política da Psicanálise, sendo, além disso, intrinsecamente ligado ao laço
social. O sintoma é a verdade que faz desordem, é a oposição frente aos discursos de mestria
(LACAN, 1969-1970/1992).
A dominante do discurso só age sustentada por uma verdade, ainda que uma meia-
verdade, que é, então, mola propulsora do discurso, mas que nunca pode ser toda dita (LACAN,
1969-1970/1992). O analista é aquele que ocupa o lugar de vazio, é representado pela fórmula
algébrica que aponta o lugar do analista como a. Agenciar o discurso como objeto a é
apresentar-se como o efeito opaco, como resto da operação da linguagem, indicando que a
Psicanálise ocupa-se do fracasso e do que aparece a partir dele.
Como estamos acompanhando, todos os discursos contêm o objeto a em sua formulação,
mas é somente no discurso do analista que ele será alocado numa posição elevada, de
agenciador. Desse modo, a posição do analista encontra-se no avesso de toda vontade de
dominação, e isso é o que há de mais subversivo nesse discurso, é “não pretender nenhuma
solução” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 66). Como também já foi citado anteriormente, essa é
a única modalidade discursiva que trata o Outro como sujeito barrado, e tratar o Outro como
sujeito é possibilitar que apareça sua singularidade, com seu S1, produto inédito do discurso
nessa modalidade.
Isso posto, sabemos que o sujeito considerado pela Psicanálise é o sujeito do
83
inconsciente e, nesse dispositivo, o que vão aparecer são seus equívocos, seus mal-entendidos,
e é importante que isso emerja e que possa, a partir daí, produzir os significantes singulares de
cada sujeito. Assim, essa inversão de lugares que o discurso do analista produz causa a
emergência de um sujeito inventivo e ativo.
Ao se colocar como furado, privilegiando o que escapa, os equívocos, o analista faz do
S2 um saber-fazer, uma aposta no savoir-faire. Encontramos também no saber, enquanto S2,
sua mola propulsora, já que a suposição de saber - que, em Psicanálise, chamamos de
transferência -, funciona como motor desse discurso. Ainda mais, considerando que, ao se
colocar como objeto, agenciando essa modalidade discursiva, o analista (ou quem ocupa esse
lugar nessa lógica, se quisermos pensar no uso de tal modalidade para além dos consultórios)
não fará uso do saber para praticar mestria sobre o outro. Sendo assim, seu comando só pode
se dar pela transferência, por aquilo que o agente permite que o outro deposite nele, o que, na
transferência, em análise, é o amor transferencial.
O analista, ocupando o lugar de semblante, oferece o suporte necessário para a
transferência acontecer e inclui-se na cadeia significante do sujeito, ao oferecer a sua escuta, o
seu corpo. Esse ato institui uma ordem do bem-dizer. Não visa à produção de sentido, pelo
contrário, esvazia os sentidos já existentes, ao mesmo tempo que opera como enigma, com
cortes e inversões; não alimenta sentidos, pelo contrário, esvazia sentidos para possibilitar e
almejar a construção de um saber original. À medida que algo se modifica, aquilo que era
inicialmente queixa pode se transformar, por isso uma ética do bem-dizer.
Dado que a função do analista não é dominar, embora também se trate de uma relação
de poder, ainda que o analista se subtraia de exercer tal poder em relação ao Outro, o agente se
torna assim “causa de desejo” (LACAN, 1969-1970/1992 p.168), mobilizando o desejo de saber
no Outro, e daí o saber no lugar da verdade, como semi-dizer, dizer dos equívocos, e a produção
de um S1 inédito.
84
Assim:
[...] é o próprio objeto a que vem no lugar do mandamento. É como idêntico
ao objeto a, quer dizer, a isso que se apresenta ao sujeito como a causa do
desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para essa operação
insensata, uma Psicanálise, na medida em que ela envereda pelos rastros do
desejo de saber (LACAN, 1969-1970/1992, p. 99).
Tem algo nessa operação que Lacan indica como duas causas que se enlaçam de algum
modo, nessa lógica: “refiro-me à lógica, chamada de ‘alienação e separação’, da reunião e da
intersecção entre o sujeito e o Outro, na qual se situa uma dupla causação do sujeito”
(GALLANO, 2006, p. 21). Segundo a autora, como resultado, “em um vínculo social,
participam tanto o corpo como falante – o sujeito que fala sem saber e diz mais do que sabe – ,
quanto o corpo como gozante, do qual se recortam e se separam os objetos a (GALLANO,
2006, p. 21-22). É graças a esse ato que visa à separação que o discurso da Psicanálise escreve-
se como avesso.
A direção de uma análise é avessa à dominação, à universalização. O que não garante –
já que não há garantias – que alguns psicanalistas, eventualmente, não sustentem certo lugar
controverso, quando ainda mantêm posições que reafirmam o discurso hegemônico, sobre a
sexualidade feminina como enigma, sobre o falo, o lugar do pai, o Édipo como O mito.
85
32
Depois, em 1973, Lacan modifica a grafia para sinthoma, para evidenciar a diferença desse sintoma marca de
singularidade.
33
Essa expressão foi utilizada por Lacan, na aula de 16 de novembro de 1976, no Seminário inédito chamado
L`insu que sait de l´une-bévue s´aile à moure.
86
“Desde o ato analítico inaugurado por Freud, o que a Psicanálise transforma não é um
discurso. O que ela, eventualmente, transforma é um sujeito” (GALLANO, 2006, p. 17). A
transformação não acontece necessariamente, ela pode aparecer como contingência, só
ocorrendo quando o sujeito deixa cair algo - “o significante mestre, que determina o sujeito sem
que ele saiba, cai no discurso do analítico” (Ibidem, p.19). O sujeito do inconsciente manifesta-
se nos vazios, nos cortes que esburacam a cadeia significante que organiza seu discurso. A
queda desse significante implica o atravessamento de uma posição fixa de gozo, produzindo,
no final de uma análise, a abertura para experiência radical de indeterminação.
Para Soler, o discurso do analista é a saída de uma análise, e isso independe de o ser
falante vir ou não vir a fazer desse discurso um ofício; é a saída, já que é por essa via que se
constrói a identificação do sinthoma. Desse modo, o trabalho em análise leva o sujeito a saber
sobre o seu sinthoma. Esse percurso em direção ao sinthoma permite uma identidade que separa
o sujeito da identificação do “Outro das normas do discurso” (SOLER, 2016 p.47), e isso funda
uma distinção.
Vale ressaltar que, como distinção, não estamos falando de uma diferença pela
diferença, justamente para não cair numa lógica individualista, o que é bem prejudicial ao laço,
advertindo sobre esse empuxo do individualismo/meritocracia colocado como uma máxima
deste estágio do capitalismo, na cultura.
Nesse sentido, há uma aposta em cena, no ato analítico, medindo o valor desse ato não
somente pela sua verdade e irrupção – sempre anormal e sintomática –, pois se inscreve pelos
limites estabelecidos pelo discurso dominante, bem como por suas consequências. O objeto a
contém, em si, algo não calculável e submetido a uma lógica temporal: produz-se uma certeza
antecipada para que não seja tarde demais, ou seja, é uma aposta em confrontar-se com um Real
não calculável, a partir de um saber estabelecido que pode abrir espaço para produções a
posteriori (LACAN, 1967-1968).
Pelo contrário, o giro proposto no discurso do analista é aquele de deixar algo cair. Um
giro discursivo que desmente o lugar de universal e da autoridade como autoritarismo, o
autoritarismo que impõe hierarquia, como acontece nos discursos de mestria. O discurso do
analista, enquanto avesso, produz um giro que promove autoria como autoridade, um autorizar-
se de seus mal-entendidos, uma autoridade sobre os seus equívocos, o que originaria outro modo
de lidar com as assimetrias.
Visando circular o lugar de representante ou de autoridade, em um estilo próximo à
proposta de cartel para o ensino lacaniano. Lacan (1964/2008a), na tentativa de fazer algo
diferente na sua escola, irá propor a lógica do mais-um, posição fundamental para o
87
Um dos debates clássicos existentes em Freud é como ele não fecha a discussão entre
cultura e civilização: “Freud preferiu não distinguir claramente a palavra cultura da palavra
civilização, possibilitando assim diversas interpretações divergentes” (ARÁN, 2006, p. 56), de
tal maneira que se mantém a tensão entre os dois termos. Em 1927, podemos localizar em O
futuro de uma ilusão, como Freud vai tratar a cultura, enquanto certa elevação da condição
humana em relação às outras espécies. Três anos depois, em 1930, em O mal-estar na
Civilização/Cultura, ele mantém essa tensão, de tal maneira que o nome do texto aparece com
diferentes traduções. Há um debate intenso entre autores que inclui as posições políticas como
interferências nessa escolha dos termos:
O principal argumento desses autores é que a própria palavra culture teria sido
influenciada pela construção da noção de Kultur realizada por autores alemães
como Hegel, Marx, Nietzsche e Freud. Além disso, a oposição entre natureza
e cultura proposta por Lévi-Strauss, e incorporada pelas ciências humanas,
teria ampliado de tal forma a noção de culture que esta, de certa forma, teria
incorporado a própria noção de civilisation (ARÁN, 2006, p. 58, grifos
nossos).
De tal modo, pensar a cultura somente como oposição à natureza poderia deixar escapar
a complexidade do conceito, reduzindo-o a uma maneira universal e estrutural. Podemos pensar
a entrada na cultura como um processo, a partir de uma historicidade, que aponta para as
exigências de renunciar a ‘instintos’ individuais, e tal renúncia seria parte do processo
civilizatório que constitui a socialização e a cultura, sustentando a noção de conflito como
primordial para pensar o sujeito. Assim, escolho usar os dois termos e coloco a questão: pode
a Psicanálise não estar influenciada pela cultura da sua época?
34
Em 1964, na Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan anunciou o dispositivo do cartel como um
dos pilares de elaboração e transmissão da Psicanálise, sendo também uma ferramenta para a formação do analista.
O dispositivo sustenta-se por um pequeno grupo formado por, no mínimo, quatro membros e, no máximo, seis,
sendo um deles o Mais-um, ocupando o lugar daquele que sustenta a função de não responder, movimentando as
questões dos sujeitos que participam do cartel, ao mesmo tempo, atento para não encarnar a posição de mestria no
grupo.
88
Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobretudo ou
exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar
histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não (FREUD,
1905[1901] /2016, p. 201).
Desse modo, Freud encontra nas neuroses uma espécie de revolta dessas exigências no
corpo, um “isso não”, o sintoma como metáfora, mas também como resposta, um “isso não” ao
discurso vigente.
Assim, é importante notar que Freud (1933/1996) percebe que tinha algo “peculiar” na
forma como se apresentava a sexualidade das mulheres; ao mesmo tempo, ele sabia que o
enigma – ou, pelo menos, hoje, lendo Freud retroativamente, eu tendo a pensar assim – estava
em torno da sexualidade de qualquer ser falante, no entanto, a alta contingência de mulheres
que procuravam seu consultório fez com que ele enfatizasse a sexualidade feminina como um
enigma, algo que, depois, ele mesmo retiraria, desconectando a feminilidade como única e
exclusiva desse lugar. É justamente porque Freud estava atento a essas questões, mas não falava
disso em tom de denúncia, que Gayle Rubin (1975), como veremos, vai dizer que a Psicanálise
é uma teoria feminista faltosa.
Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016), vai propor que “o
interesse exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação”, não sendo
algo “evidente em si” (p. 35). Digo isso, para ressaltar que a obra freudiana não é estática,
autorizando-se a modificações. Por isso mesmo, é indispensável entender que, quando Freud
fala “inveja ao pênis”, por exemplo, ele está tomado pela lógica patriarcal, essa ideia é um
retrato social da época e cabe aos psicanalistas contemporâneos estarem atentos a isso.
É nesse sentido que Rubin (1975) se autoriza a outros usos e outras elaborações, a partir
da teoria freudiana: ela traça uma linha direta entre as interpretações de Freud e a descrição da
hegemonia de uma época altamente machista e autoritária, com as mulheres imersas com suas
mentes e corpos em um laço altamente opressor, produzindo uma feminilidade para o exercício
do domínio via controle sexual: “Pode-se entender os ensaios de Freud sobre a feminilidade
como descrições de como um grupo é preparado psicologicamente, em tenra idade, para
conviver com a própria opressão” (RUBIN, 1975, p.47).
Retomemos aqui a ideia lacaniana que aproxima Freud de Marx, a partir do
90
entendimento de que ambos não estabelecem uma lógica e, sim, apreendem sobre uma lógica
já determinada, de modo que os sentidos patriarcais estão presentes em diversas passagens da
obra freudiana, eventualmente tolerante com os fundamentos do patriarcado. No entanto, é
importante observar que o psicanalista escuta o sujeito do inconsciente, inserido em um
momento histórico determinado, e, assim, os dizeres do sujeito falante verteram sobre as
questões culturais nas quais ele está inserido. Segundo Humberto Maturana (2009), a cultura é
patriarcal “há cerca de sete ou seis mil anos”35 (MATURANA, 2009, p. 11). Esse autor define
cultura patriarcal como um processo civilizatório que assume a verdade como absoluta, essa
verdade que garante o bom funcionamento das coisas, para que nada saia do giro, seu
agenciamento organiza a vida cotidiana de tal forma que a guerra, a competição e a
hierarquização são valores essenciais.
A sociedade que conhecemos – ou pelo presente ou pela história ‘oficial’ – está
organizada a partir dessa lógica, que, em Psicanálise, chamamos de lógica fálica.
Invariavelmente, a Psicanálise foi concebida nesse berço, então trabalha tais termos,
sentidos e lugares, por isso está impregnada de vocábulos e expressões como significante fálico,
função paterna, ou da divisão sexual destinada e ocupada pelos significantes homem e mulher,
a partir de lugares diferentes, já concebidos anteriormente à descoberta do inconsciente. Nesse
sentido, há questões que aparecem na clínica e trazem notícias da presença do patriarcado no
laço.
A Psicanálise origina-se no final do século XIX, quando Freud, de maneira genial,
constrói e defende a tese sobre processos psíquicos inconscientes, revelando como a
consciência (de si), até então, estava sendo superestimada. Deslocando a razão do centro, a
teoria freudiana vai se tornando cada vez mais sofisticada. A descoberta do inconsciente
inscreve o nome de Freud na história como aquele que provocou um abalo narcísico na
humanidade, justamente por revelar “que o eu não é senhor na sua própria casa” (FREUD,
1916/1996), e, de lá para cá, muito se pôde avançar com a Psicanálise enquanto práxis.
O sentido de destacar o lugar e o momento histórico em que a Psicanálise surge é para
assinalar que sua origem é relativamente recente e surge em uma cultura determinada,
padecendo da ideologia de sua época, embora sua teoria vá se estabelecendo de maneira avessa
a tal ideologia, apontando o mal-estar na cultura, mas não apartada dela.
35
“A Arqueologia nos mostra que a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores
patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos”
(MATURANA, 2009, p.11).
91
Desde o século XVIII, vemos desenhar-se uma nova imagem da mãe, cujos
traços não cessarão de se acentuar durante os dois séculos seguintes. A era das
provas de amor começou. O bebê e a criança transformam-se nos objetos
privilegiados da atenção materna. A mulher aceita sacrificar-se para que seu
filho viva, e viva melhor, junto dela (BADINTER, 1985, p. 92).
36
Digo “ancorado”, pois atualmente têm surgido outras epistemologias que vão considerar a modernidade como
transatlântica, tanto por considerar a importância da independência estadunidense, anunciada em 1776 e
reconhecida em 1783, pela aplicabilidade global da modernidade, tendo sua marca no tráfico de escravos
transatlântico, modificando as relações econômicas europeias, bem como por essa dialética que, na Europa, cria o
sujeito universal, desumanizando e objetificando não-europeus (COLLINS, 1990; FANON, 2008; GALEANO,
2001; MORAGA; ANZALDÚA, 1983; QUIJANO, 2009; SANTOS, 2009).
92
Badinter recorta alguns trechos de Rousseau (1712-1778), para destacar a força dos seus
escritos. Ao se consagrar como um filósofo, teórico político e escritor de sua época,
sedimentando e dirigindo a ideologia dominante, e propondo teorias sobre a natureza feminina,
Rousseau estabelece como verdade que: “A mulher é feita não para si mesma, mas para agradar
ao homem [...] para ser subjugada por ele [...] para lhe ser agradável [...] para ceder e para
suportar até mesmo a sua injustiça” (BADINTER, 1985, p. 242).
Portanto, é um período em que o pai não tem a mesma estima – suposta – de antes, como
autoridade absoluta, quando o poder se estabelecia em torno do um, do pai como soberano, já
que, nesse giro histórico que produz a modernidade, esse pai passa a ter que se submeter à lei
do Estado e à Ciência; no entanto, essa nova configuração do pai passa a exercer uma relação
de poder no interior da família. Desse modo, a Psicanálise surge no início do declínio do
patriarcado, enquanto formando o Um dominante, mas culturalmente, os valores patriarcais se
mantêm.
Popularizou-se chamar de cultura patriarcal a maneira de viver, a partir de
Em todas as máquinas que devem produzir com menos força o mesmo tanto
93
que outras produzem com força maior, é preciso pôr arte. Pode-se, por isso,
admitir de antemão que a previdência da natureza terá colocado mais arte na
organização da parte feminina que na da masculina, porque, não apenas para
juntar os dois na mais estreita união física, mas também, como seres racionais,
para o fim que mais interessa a ela mesma, a saber, a conservação da espécie,
ela dotou o homem de mais força que a mulher e os muniu, além disso, naquela
qualidade (de animais racionais), de inclinações sociais para manter
duradouramente sua comunidade sexual numa união doméstica (KANT, 2009,
p. 198).
Discorrendo, ainda, que “No progresso da civilização, cada uma das partes tem de ser
superior de maneira heterogênea: o homem tem de ser superior à mulher por sua capacidade
física e sua coragem” (KANT, 2009, p. 303), o autor segue afirmando que “[...] feminilidade
são fraquezas” (Ibidem, p. 304) e que as mulheres “[...] apesar de terem um entendimento
saudável (sem deficiências mentais), possuem deficiências (fraquezas) que tornam necessário
que outra pessoa assuma a responsabilidade por elas no que se refere às questões de natureza
civil” (KANT, 2009, p. 106).
Essa esteira de pensamento cria uma dicotomia que ‘cientificamente’ inferioriza a
mulher. O homem é o corajoso, o forte, o racional, enquanto a mulher é delineada como seu
oposto, de tal modo que essa lógica produz um lugar de sujeito para o homem, destinando à
mulher o lugar de objeto, gerando implicações hegemônicas no laço, pautado a partir da divisão
entre os sexos, que cria e impõe papéis de gênero, não sem efeitos nos enlaces sociais.
forma de estar no mundo, então, nesse sentido, não é a respeito de inverter papéis de gênero, o
ideal seria superar o conceito gênero, renunciando a qualquer fórmula que colonize ou oriente-
se de maneira binária.
A Psicanálise nasce no berço da sociedade patriarcal – ainda que um patriarcado em
declínio – e assentada na lógica colonial, na Europa, que formulou e estabeleceu a identidade
do sujeito universal como um indivíduo sem divisão, à sua imagem e semelhança, destinando
ao lugar do Outro/objeto as mulheres e os sujeitos racializados.
Para Quijano (2009), o eurocentrismo não é exclusivamente a perspectiva cognitiva dos
europeus, ou dos capitalistas que exercem a dominância no discurso, mas a perspectiva das
pessoas educadas sob sua hegemonia, que ‘naturalizam’ as experiências nesse padrão de poder:
Esse autor vai argumentar que a racionalidade moderna subjaz à ideia de componentes
estruturais, como se as relações fossem a-históricas, “como se fossem relações definidas
previamente num reino ôntico, a-histórico ou trans-histórico” (Ibidem), assinalando a
impossibilidade de uma única perspectiva de conhecimento dar conta da experiência histórica
como um todo, e apontando, ainda, como “as epistemologias feministas têm sido centrais para
a crítica dos dualismos clássicos da modernidade, sejam natureza/cultura, sujeito/objeto,
humano/não-humano, e da naturalização das hierarquias de classe, sexo e raça” (QUIJANO,
2009, p.48).
Nessa perspectiva, Quijano critica a herança hegeliana sobre o sujeito, critica como as
identidades constituídas nos últimos 500 anos estão situadas em torno das raças - raça como
tendo um caráter “místico-social: religioso, nacional, étnico, racial” (Ibidem, p.103) -, e também
como tal construção serve à dominação de classes. Daí as subjetivações e organizações na
estrutura social ficam à mercê de determinações de condições históricas específicas, implicadas
por três instâncias – trabalho, gênero e raça –, em períodos e em contextos específicos, gerando
classificações sociais e a colonialidade como poder.
A Europa como centro do mundo e a racialização das relações de poder entre novas
identidades sociais e geoculturais são fruto da colonialidade. Assim, “todo fenômeno histórico-
social consiste na expressão de uma relação social ou numa malha de relações sociais”
(QUIJANO, 2009, p.83).
A colonização pode vir por meio das guerras e do enfrentamento dos corpos, mas, sem
dúvida, a sua versão mais sofisticada se dá pela via da Filosofia e da Ciência, produzindo
saberes ideológicos que beneficiam o mestre. Daí um giro do mestre antigo para o mestre
moderno, marcando o momento histórico que faz surgir o indivíduo, e o proletário, como
indivíduo motor do capitalismo: “Lacan chega a isolar a ideia de que o que faz a condição do
indivíduo – ele não diz sujeito –, é de ser um proletário, quer dizer de ‘ser desprovido de tudo’”
(ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 180-181).
A versão moderna da colonização preza pelo indivíduo, por meio de um esquema no
qual o individualismo torna-se um valor no ideário do capitalismo: ele é um dos seus engenhos,
a crença no ‘cada um por si’ deixa velada a verdade da exploração e colonização do proletário.
96
Desde Freud (1921/2011) temos notícias da não separação entre “o ser humano”, a sua
busca para encontrar a satisfação de seus impulsos pulsionais e como isso passa,
invariavelmente, pelas relações com outros seres humanos. “Portanto, a psicologia de massas
trata o individual como membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma instituição,
ou como massa em determinado momento, para um certo fim” (Ibidem, p.15).
Ele deixa inúmeras pistas para pensar essa relação entre o sujeito do inconsciente e o
laço social, ainda que usando outros termos. Como o próprio autor disse na introdução de
Psicologia das Massas, em 1920, os estudos sobre o tema estavam ainda no início, sugerindo
que ainda havia um longo caminho de investigação pela frente, ao mesmo tempo, deixando
pistas preciosas: destaco o funcionamento do indivíduo, que, na massa, está sujeito a uma
consciência moral, carregada de valores, reprimindo “seus impulsos instintivos inconscientes.
[...] Há muito afirmamos que o cerne da chamada consciência moral consiste no ‘medo social’”
(FREUD, 1920/2011, p. 21). Em outras palavras, a massa impõe um lugar hierárquico para o
37
Razão pela qual o trabalho doméstico é chamado assim, para Federici: “O trabalho doméstico é até hoje
considerado por muitas pessoas uma vocação natural das mulheres, tanto que é rotulado como trabalho de mulher”
(2021, p.157). A autora continua: “Por isso, não surpreende que, a partir dos anos 1840, relatórios e mais relatórios
começassem a recomendar que as mulheres casadas tivessem sua jornada de trabalho nas fábricas reduzida, para
lhes permitir realizar suas obrigações domésticas, e que os empregadores se abstivessem de contratar mulheres
grávidas. Por trás da criação da dona de casa da classe trabalhadora e da extensão a ela do tipo de lar/vida familiar
anteriormente reservado à classe média, havia a necessidade de um novo tipo de trabalhador, mais saudável, mais
robusto, mais produtivo e, acima e tudo, mais disciplinado e ‘domesticado’” (FEDERICI, 2021, p.165-166).
97
sujeito, de tal modo que é desse lugar que ele pode emergir. Tem uma mestria posta em cena
na psicologia das massas.
A massa produz uma espécie de contágio que leva o indivíduo a sacrificar facilmente o
seu interesse pessoal em função do interesse social38. Contágio que é efeito de um processo de
sugestionabilidade intrínseca à instauração da massa (FREUD, 1920/2011).
Com Freud (1921/2011), podemos observar o fenômeno da colonização por outra
perspectiva, através das lógicas de grupo que visam à unidade, à homogeneidade e à intolerância
pelas diferenças. O autor aponta a sugestionabilidade, ou contágio, como fatores inconscientes
para a produção dessa univocidade elevada à máxima potência, nos fenômenos de massa.
Além disso, Freud e Gustave Le Bon (1895/1963) vão dizer que o indivíduo isolado
pode ser culto e cortês, mas, numa multidão, pode se tornar bárbaro, recusando sua capacidade
de discernimento, agindo por impulso, chegando à violência e à bestialidade, ainda que coloque
em risco sua autopreservação. O grupo, enquanto massa, sofre o empuxo da unidade e fica
vulnerável, influenciável; seus sentimentos são sempre muito simples e exagerados, e não se
permite espaço para incertezas ou contradições. Na massa, os sentimentos são levados aos
extremos, e o ódio a um inimigo comum, ou o ódio à diferença, faz operar o laço.
Por outro lado, ainda com Freud (1921/1978), o fenômeno de grupo também opera pela
via do amor. Nesse cenário, por amor ao líder/mestre ou ao ideal, como produto dessa operação,
estabelecem-se as identificações, seja por contágio – também conhecido como identificação
histérica, em referência ao exemplo usado por Freud, quando cita o fenômeno das meninas do
internato, que se identificam com a imagem da mulher que perdeu seu amor, sofrendo todas
elas o sofrimento dessa perda –, seja por identificação com o objeto idealizado, via identificação
com o traço e sua incorporação parcial.
Desse modo, temos, por um lado, a exaltação pela unicidade - laçada pelos valores
patriarcais e individualistas que produzem uma bestialização que, por meio do ódio, busca
aniquilar a diferença pelas guerras, exterminando grupos de seres humanos -, ou pela
colonização dos saberes, extinguindo-se saberes e tradições. Historicamente, podemos analisar
a extinção de povos, de línguas, de culturas inteiras, via essa lógica de dominação39.
Sob outra perspectiva, podemos destacar o narcisismo das pequenas diferenças
(FREUD, 1921/2006) como dando notícias sobre o patriarcado, à medida que pressupõe uma
rivalidade entre iguais.
38
Freud não usa a palavra social, e sim coletivo. Mas compreendo que coletivo, atualmente, pode remeter a outros
sentidos e, por isso, neste caso, sugiro social em vez de coletivo ou massa.
39
Como aconteceu com Palmares, por exemplo.
98
Porém, quando essa rivalidade não mais se refere ao semelhante, temos um risco maior
de não mais nos reconhecermos como pertencentes ao mesmo modo de existência. Aqui,
alertamos para o fato de que, no laço social, algo acontece hoje que não se reduz apenas aos
fenômenos de massa/grupo, tais como foram descritos por Le Bon e analisados por Freud
(1895/1963).
O fortalecimento do eu, um valor presente no ideário patriarcal capitalista, faz com que
os registros fragmentados do inconsciente organizem-se em uma aparente unidade, suturando
as partes, amalgamando a fenda da divisão estrutural do sujeito do inconsciente, precipitando
uma ilusão narcísica, logo, imaginária, para se organizar numa aparente unidade. Uma lógica
todo-fálica. Desse modo, podemos pensar tal relação, no laço, como aparelho de gozo, que,
nesse caso, produz uma concentração de gozo que ultrapassa a via apresentada anteriormente
pelo amor ao ideal, ou pelo ódio ao diferente, originando o amoródio, neologismo criado por
Lacan. “O ódio nunca vem sozinho, ele vem acoplado com o amor, como Lacan, seguindo
Freud, apontou, com o termo de hainamoration, enamoródio; ou junto com a paixão da
ignorância, que podemos chamar de ignoródio” (QUINET, 2021, p.118, grifo do autor), para
dizer sobre o que é próprio do narcisismo no registro imaginário.
Quinet (2021), de olho em fenômenos sociais presentes na cultura, acrescenta que,
eventualmente, o amor fica de fora e o que aparece é o ódio, em sua aliança com a ignorância,
ignorância que é uma das paixões do ser, em Lacan. Quinet sintetiza os dois termos, propondo
um novo arranjo, o “ignoródio”, um tipo de paixão que teria a peculiaridade de não fazer laço.
É nesse sentido que a identidade busca totalizar, fazer o um do indivíduo, que é um conceito
instituído a partir do capitalismo: “O ‘indivíduo’, modo pelo qual nos vemos, é uma construção
e um valor da nossa sociedade, com um desenvolvimento privilegiado, a partir do final da Idade
Média” (PACHECO FILHO, 2009, p. 147-148).
O conceito de indivíduo é simetricamente oposto ao sujeito dividido da Psicanálise, já
que, para a Psicanálise, somos cindidos por definição: “O sujeito é dividido, é o significante
que representa o sujeito para outro significante, é o que emerge neste movimento entre a cadeia
significante, sendo assim, um ser de linguagem” (XAVIER, 2013, p. 27). O individualismo
pressupõe certo fechamento diante do próprio semelhante: meu “igual” pode ser meu “rival” é
uma máxima que se impõe; em outras palavras, no individualismo, o semelhante como rival
convoca à competição, e o diferente é visto como inimigo (aniquilável).
Prontamente, essa lógica localiza os homens como aqueles que instituíam a política e os
espaços públicos, aptos a decidirem pelo conjunto de seres humanos, enquanto as mulheres
permaneciam destinadas à vida doméstica. Acontece que, na prática, não é exatamente assim,
99
esse é um ideal imposto e estabelecido por aqueles que ocupam o lugar de dominantes no
discurso, que tinham/têm o poder das armas, ou da caneta, em sintonia com o ditado que diz
que a história é contada pelos vencedores, que impõem e imprimem sua versão dos fatos.
No regime patriarcal, tanto o homem quanto a mulher referem seu desejo ao falo40,
organizam-se a partir das possibilidades imanentes ao gozo fálico. Isso porque a inscrição fálica
é o referencial da lei simbólica na cultura, um organizador, de tal modo que o gozo fálico é
índice de idolatria, para aqueles que estão alienados desse regime – de linguagem e gozo. No
entanto, o ser falante não está todo alienado nessa lógica fálica, ainda assim, essa lógica opera
um enquadramento.
Como pode a Psicanálise pensar sua práxis, que está presente na cultura, cultura que se
organiza a partir da diferença sexual, sem cair nas armadilhas normativas de gênero? A teoria
não tende a reforçar lugares e verdades, quando conserva a mulher no lugar do Outro (sujeito
alterizado)? Se apresento essas ponderações é, por um lado, sabendo que, enquanto práxis, a
Psicanálise prima pela existência da diferença no laço, conduzindo o tratamento analítico
orientado pela singularidade, que não tem relação alguma com as caracterizações
preestabelecidas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, e, por outro lado, porque é
importante estarmos atentos ao nosso tempo.
Assim, a orientação psicanalítica interroga as identidades homem-mulher e, ao mesmo
tempo, podemos localizar em diversos momentos do ensino lacaniano como essas designações
aparecem nas suas falas. Vou destacar aqui apenas um exemplo41: no Seminário 18, de um
discurso que não fosse semblante (1971/2007), Lacan reforça textualmente o binarismo e a
relação da mulher com o lugar de subordinação, em sintonia com o que manda o status quo.
Saliento que, se destaco isso, não é no sentido de dizer que o ensino lacaniano propõe-se a
reforçar identidades, mas incluo essa ponderação justamente para refletir como é difícil não cair
nas armadilhas hegemônicas, mesmo para aqueles que estão advertidos do como opera essa
lógica.
40
O falo como o significante estruturador do campo sexual, “do falo como organizador da sexualidade, mas não
só da sexualidade, como também o liame entre sexualidade, fala e inconsciente” (HARARI, 2006, p. 35).
41
Poderia usar outros exemplos, mas esse não é o objetivo central desta pesquisa.
100
Enfim, acompanhando esse breve histórico sobre como se estabelece o status quo
hegemônico, vimos como o discurso transmite e imprime no âmbito social um modelo de
dogmas, pensamento e costumes, por meio de modelos ideológicos, sendo a ideologia uma
realidade construída e sustentada de tal modo que tem uma aparência de verdade, assim: “a
ideologia se quiserem, mas com uma condição: é que para esse termo, vocês vão incluir até a
própria percepção; a percepção é o modelo da ideologia, é o crivo em relação à realidade”.
(LACAN, 1966-1967, aula de 10 de maio de 1967). Em A ideologia alemã (1845-1846), Marx
e Engels demonstram como as classes dominantes transformam as ideias e interesses
particulares de uma classe em ideias universais como sendo de um povo, imperativo capaz de
estruturar bases econômicas sustentadas nos interesses materiais da classe dominante, gerando
uma dominação social pela via simbólica, calcada “nas únicas racionais, nas únicas
universalmente válidas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 48), que, enquanto fantasia ideológica,
opera realizando uma ilusão.
Dito isso, como escapar das armadilhas ideológicas, invisibilizadas como tal?
Podemos afirmar que uma análise que busca ser subversiva, mira no seu horizonte
desconstruir identidades. Mas e a identificação do analista, há “garantias” de que ela ficará de
fora? Ou se compreenderá como neutra a partir de epistemologias dominantes?
Antes de prosseguir com a reflexão sobre uma Psicanálise que pode ser interseccional,
faz-se necessário compreender a origem desse conceito. Assim, no próximo Capítulo
apresentaremos um breve histórico do feminismo, para dar sentido a maneira como o conceito
de interseccionalidade aparece nos trabalhos de Lélia Gonzalez.
101
42
A partir do advento e ampliação do acesso à internet e às redes sociais.
102
contradição na sua forma de construir pensamentos. A meu ver, é uma forma homóloga à lógica
paraconsistente43, por apresentar alternativas e proposições, cuja conclusão pode ter valores que
admitem a contradição, embora não ultrapassem o binarismo já que ela se organiza pelas
sentenças “verdadeiro” e “falso”, escapando de terminações fechadas. Diferente da lógica
complementar que possibilita pensar para além do binarismo, como buscam algumas vertentes
dos feminismo.
Sabemos que o adequado seria dizer feminismos no plural, se uso o termo, na maioria
das vezes, no singular é porque tendo a destacar o feminismo a que almejamos chegar, em
sintonia com a citação que apresentamos inicialmente com hooks: um feminismo que vise à
mudança na estrutura social. Compreendemos que ser feminista é sustentar uma práxis pautada
na teoria radical contra o capitalismo, o racismo, e o sexismo – ou colonialismo – não
sobrepondo os modos de dominação e sim ressaltando a intersecção inerente a eles. Inclusive,
faz parte do tornar-se feminista problematizar o próprio feminismo. Ao mesmo tempo, ser
feminista é um desafio da prática cotidiana, por isso uma das palavras de ordem do movimento
é: ‘o pessoal é político’. Todo corpo é político.
Nas últimas décadas, os movimentos feministas têm se firmado como referencial
importante para inovação epistemológica e criação de políticas – desde em seu sentido mais
amplo, modificando a ‘relação na pólis’44, bem como, no âmbito das políticas públicas –
principalmente com a força que consolidou a terceira onda do feminismo, articulando discursos
e práticas antagônicas em torno de questões como a diferença, partindo do debate de algumas
vertentes sobre a diferença sexual, mas extrapolando a diferença posta como sexual, para pensar
as diferentes diferenças45.
Há ocasiões em que, para algumas pessoas, o feminismo pode parecer uma ideologia
datada, ou mais própria de uma outra época, já que por vezes o capitalismo apropria-se das lutas
e, por essa via de mercado, tenta vender a ideia de que as desigualdades em torno do sexismo
já estão sendo superadas. Mas não é bem assim, pelo contrário, a cada volta que o feminismo
produz ele permite problematizar o que persiste das violências, desigualdades e das mais
diferentes formas de discriminação.
43
Esse é um conceito criado pelo matemático brasileiro Newton da Costa; entende-se por lógica paraconsistente
um sistema formal que admite contradições, diferente da lógica clássica. Uma mesma premissa pode ser verdadeira
e falsa, admitindo assim paradoxos. É uma lógica usada pela Psicanálise e, quando a aproximo da práxis feminista,
é por entender que tal práxis admite a contradição.
44
Política como lugar dos acordos e desacordos, da mediação da coisa, via palavra. Para Chauí (2002): “Da
assembleia dos guerreiros e da palavra-diálogo, público e igualitário, nasce a pólis e é inventada a política (p.42).
45
Termo usado pelas feministas da terceira onda, para enfatizar a rejeição a qualquer processo que gere hierarquias
a partir das diferenças. Fazer comunidades na própria morada da diferença, o feminino é a morada da diferença.
103
O feminismo pensado em ondas: uma astúcia para transmitir de maneira mais didática
46
Não sem as que vieram antes, por isso uma relação que pode ser assimétrica e horizontal ao mesmo tempo, sem
necessariamente produzir hierarquias.
104
como o feminismo progride, a partir dos seus movimentos. Foram estabelecidas três ondas e,
recentemente, já podemos encontrar na literatura notícias de uma quarta onda, associada aos
movimentos feministas que se organizaram pelas redes sociais via internet, principalmente a
partir de 2011/2013, ocasião em que a facilidade de disseminar informações muito rapidamente
e o crescimento da democratização do acesso à internet47 possibilitaram dar visibilidade para o
protagonismo das mulheres à frente dos mais diversos movimentos de luta contra o capitalismo,
o imperialismo, o racismo, para além das pautas que sempre foram localizadas como específicas
delas. Como vimos acompanhando, o feminismo, mesmo antes de ser denominado dessa
maneira, já era um posicionamento contra a forma opressora que organiza as sociedades
ocidentais48.
Portanto, o acesso à internet, que ainda está longe de contemplar a população de maneira
geral, todavia, é inegável, já auxiliou muito na transmissão do protagonismo dos movimentos.
E, como veremos, as mulheres sempre ocuparam protagonismo político, mas a transmissão de
tal protagonismo era silenciada pelo discurso vigente. A internet, como instrumento de
comunicação, representa um ganho na circulação de ideias e movimentações de mulheres – ou
dos sujeitos feministas, independentemente do gênero/sexo – que podem se conectar e unir suas
lutas mesmo que em territórios distantes, como também fortalece as mobilizações e o alcance
da convocação para ações públicas, expandindo a articulação de atos na relação rede-rua. Desse
modo, desde 2011, “os laços sociais atuais eclodem nas redes virtuais e, ao mesmo tempo e em
situações contingenciais, alcançam praças, ruas [...] em decorrência do mal-estar e sensação de
desencanto que assola os sujeitos e os coloca em ação” (FERREIRA; XAVIER, 2013, p.93).
Ainda sobre aventar notícias a propósito da quarta onda e a força da internet como
instrumento de comunicação, em 2015, um grupo de feministas organizou, via redes sociais, a
campanha #meuprimeiroassédio, pedindo para que as mulheres relatassem o primeiro assédio
sexual que tivessem sofrido: em apenas quatro dias, foram recebidas mais de 82.000 mensagens
com esses relatos. Nesse passo, foram despontando outros protestos e hashtags como
#nenhumaamenos, #meuamigosecreto, #viajosozinha, mobilizando atos nas ruas, para além das
redes sociais da internet.
A professora de Filosofia Carla Rodrigues, no documentário “Primavera das Mulheres”
47
Sabemos que o acesso à internet ainda é insuficiente, se pensarmos na porcentagem da população mundial que
consegue acessar essa tecnologia, mas, por outro lado, não podemos ignorar que essa ferramenta ampliou e muito
a capacidade de diálogo nos diversos movimentos políticos (positivamente ou não: não entraremos nesse debate
das fake news, por exemplo, para não nos desviarmos do nosso objetivo principal).
48
Nos últimos sete mil anos, se considerarmos a pesquisa do Maturana (2009); ou que se intensificou nos últimos
500 anos, como vimos com Quijano e Souza (2009).
105
(2016)49, afirma que a internet é um facilitador para os movimentos feministas, já que promove
a horizontalidade que é inerente aos movimentos feministas. Desse modo, o uso das redes
sociais, nessa relação rede-rua, faz aumentar a visibilidade que desmente determinados
comportamentos naturalizados na cultura, ressaltando e fazendo eco ao lugar de denúncia
sustentado pelos movimentos. Segundo Garcia (2015), um marco importante para o feminismo
foi se apropriar, de certo modo, dos meios de comunicação possíveis; assim, ela vai dizer que
o embrião de “um movimento propriamente de mulheres foi a imprensa alternativa feminina”
(p. 9), entre a metade do século XIX e o início do século XX, porque, além de as mulheres
produzirem seus textos, elas podiam imprimi-los e fazê-los circular. Na ocasião citada pela
antropóloga e socióloga, os meios de comunicação dessa alternativa também se tornaram
propriedade das mulheres. Nessa esteira de pensamento, podemos entender a popularização da
internet como um meio de comunicação horizontal, que promove o ativismo e estreita o contato
das mulheres, via rede, facilitando a identificação com determinados significantes que circulam,
e, por consequência, ampliando o entendimento e a adesão ao movimento.
Um último exemplo que orbita em torno do contexto da quarta onda: mais recentemente,
em 2018, com o #elenão, o movimento ocupou as ruas brasileiras de forma maciça,
posicionando-se também nas redes. Assim, citamos como podemos pensar os movimentos que
fazem furo no discurso vigente, em sua associação, por um lado, com as novas tecnologias da
informação, via as redes sociais da internet, e, por outro lado, na participação avolumada dos
movimentos feministas à frente das manifestações nas ruas nos últimos anos.
Por fim, as redes sociais conectam as pessoas umas às outras a partir de assuntos e
interesses que fazem laços, a rede on-line passou a propiciar novas redes presenciais. A
tecnologia entrelaçada à cultura é um fenômeno que traz novidades. Para Pierre Lévy (1999), o
ciberespaço promove uma cibercultura que engloba práticas, técnicas, atitudes e especificidades
na forma de estabelecer a comunicação. Advertimos que, o aparato tecnológico não cria uma
subjetividade, no entanto, ele aproxima sujeitos enlaçados por uma mesma causa, por
contingências que atravessam e afetam o laço social. Contudo, não é essa a onda que pretendo
desdobrar, mas considero importante deixar registrado que ela cresce e ocupa um lugar cada
vez mais importante no laço.
49
O documentário Primavera das Mulheres (DOCE FÚRIA, 2017) foi produzido pela roteirista Antonia Pellegrino
e pela diretora Isabel Nascimento Silva. Narra o ativismo do movimento feminista mais recentemente, dando voz
a diferentes protagonistas e influenciadoras da internet – youtubers, mulheres trans, brancas, negras.
106
50
Apresentado brevemente na Introdução.
108
como era o momento de as feministas buscarem a liberdade sexual - nessa época, inclusive,
surge o anticoncepcional feminino. Desse modo, a segunda onda ampliou os aspectos que
foram propostos pela primeira onda do feminismo.
Os processos históricos que distinguem cada onda podem ser revisitados e analisados.
Antes de os acontecimentos que dataram o surgimento da primeira onda serem postos, há um
evento anterior, quando, em 185151, Sojourner Truth faz uma intervenção que está em total
acordo com o que será posto como feminismo antirracista.
Sojourner Truth nasceu em 1797, em Swartekill, Nova Iorque, como pessoa
escravizada52, sob o nome de Isabella Van Wagenen, mas escapou com sua filha pequena para
a liberdade, em 1826. Depois de ir ao tribunal para resgatar seu filho, em 1828, ela se tornou a
primeira mulher negra a ganhar um caso como esse contra um homem branco.
A escravidão só foi abolida nacionalmente, em 1865, após a sangrenta guerra entre os
estados do Norte e do Sul do Estados Unidos. Sojourner viveu alguns anos com a família
quaker, recebendo alguma educação formal, e se tornaria uma pregadora pentecostal, uma
ativista abolicionista e uma defensora dos direitos das mulheres.
Em 1843, converteu-se à religião metodista e mudou o nome para Sojourner Truth.
Nesse contexto, ela participava de uma reunião de religiosos em que se discutiam os direitos da
mulher, quando, escutando os apontamentos apresentados por aqueles homens, ela interpela e
indaga: “E Eu não sou uma mulher?’”
Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve
estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do Sul e as
mulheres do Norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos,
muito em breve, ficarão em apuros. Mas em torno de que é toda esta falação?
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa
carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas
51
“Esse discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados
Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos em que se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se
para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens,
porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim,
a primeira mulher fora uma pecadora” (Disponível em: <https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-
sojourner-truth/>. Acesso em: 20 nov. 2021).
52
Mesmo tendo nascido teoricamente livre, em função da Northwest Ordinance, de 1787, que aboliu a escravidão
nos territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio), Sojourner torna-se uma abolicionista e ativista
pela libertação dos escravos, uma vez que a escravidão nos Estados Unidos, só foi abolida, de fato, após a Guerra
da Secessão.
109
53
Traduzido por Osmundo Pinho, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/University of Texas (Austin).
110
Tais ponderações provocam pensar por qual via os discursos são legitimados, inclusive
no interior do feminismo; como sujeitos e movimentos têm ou não a sua importância política
reconhecida; como se institui a dialética do reconhecimento.
Mesmo no Brasil, no período da escravidão, as mulheres negras empreendiam como
quituteiras e utilizavam o dinheiro para comprar a alforria de outras pessoas escravizadas. As
mulheres negras eram lideranças importantes em seus grupos, eram parteiras e curandeiras,
dominavam o conhecimento sobre a terra e sobre as ervas, aplicando saberes de terreiro,
produzindo a manutenção de culturas ancestrais, assim como construindo resistência às formas
de dominação sustentadas pela lógica escravagista.
Ribeiro (2017) lembra-nos que havia muita luta contra a escravidão, diversas
organizações promoveram levantes, há registro de mulheres que praticavam aborto como forma
de luta, para não verem seus filhos nascendo na condição de escravos.
Tereza de Benguela, por exemplo, foi líder quilombola no século XVIII. Aqualtune foi
111
mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares, sendo que, antes de ser raptada
era princesa, filha do rei do Congo, havendo relatos de que liderou, em 1655, dez mil homens,
durante o período de invasão do seu reino, e de que era uma grande estrategista de combate,
iniciando, inclusive, a organização do Estado negro de Palmares. Ainda nesse horizonte,
Dandara dos Palmares é um dos maiores nomes da luta da mulher negra no Brasil: foi uma
guerreira, dominando técnicas de capoeira e comandando cerca de 30 mil aquilombados, ao
lado do seu companheiro Zumbi dos Palmares, opondo-se duramente à Coroa Portuguesa - ao
ser presa, em fevereiro de 1694, ela se suicidou, preferindo a morte a ter que voltar para a
condição de escravizada. Assim, junto a Zumbi,
Seu “crime” foi ter liderado uma luta de vida ou morte por uma sociedade
justa e igualitária, onde negros, índios, brancos e mestiços viveriam do fruto
do seu trabalho livre e seriam respeitados em sua dignidade humana. Essa
sociedade efetivamente democrática existiu em Palmares, que foi o primeiro
Estado livre das Américas e um Estado criado por negros (GONZALEZ, 2020,
p.204).
Nosso silêncio não era mera reação contra as brancas liberacionistas nem gesto
de solidariedade aos patriarcas negros. Era o silêncio do oprimido: aquele
profundo silêncio engendrado da resignação e aceitação perante seu destino.
Não era possível para mulheres negras contemporâneas se juntarem para lutar
pelos direitos das mulheres, porque não víamos “mulheridade” como um
aspecto importante da nossa identidade. A socialização racista e sexista nos
condicionou a desvalorizar nossa condição de mulher e a considerar raça como
único rótulo relevante de identificação (HOOKS, 2020, p.17).
112
Para ela,
Nesse mesmo ano, 1981, Angela Davis recupera a mesma reflexão, também a partir da
fala da Sojourner Truth, para retomar e propor as questões relativas ao que, posteriormente, foi
formalmente chamado de interseccionalidade, aprofundando tais questões em seu Mulheres,
raça e classe (1981/2016), ressaltando como as questões levantadas por Truth não eram uma
excepcionalidade, mas sim propriedades que são “epítomes da condição da mulher negra” como
invisibilizadas, outrificadas, nos diversos momentos históricos que fazem dessa invisibilização
e outrificação uma prática ‘habitual’. Retomaremos essa questão mais adiante, ao destacar a
emergência do feminismo negro, na terceira onda.
3.4 Sojourner Truth: uma outra posição no discurso e o autorizar-se a um novo nome
Em 1843, aos 54 anos, Sojourner Truth muda e assume esse novo nome, que quer dizer
“peregrina da verdade”. Interessante pensar o que representa a mudança de nome e a relação
que tal mudança representa sobre certo deslocamento de posição no laço. Outras feministas,
nesse sentido, também mudaram de nome, em decorrência de mudanças subjetivas e políticas.
Podemos pensar aí uma espécie de giro discursivo que permite e possibilita esse passo de
nomeação. O nome próprio não é uma questão indiferente para a Psicanálise, a função do nome
acha-se envolvida no campo analítico, “mais específica do que qualquer outra, de ali implicar
o sujeito” (LACAN, 1964-1965/2006, p.80). Em um momento tardio de seu ensino, Lacan vai
ampliar a importância da função de nomeação54.
Truth desloca suas questões de identificação e significação e, assim, podemos pensar na
função da letra para o ensino lacaniano. No Seminário 18, De um discurso que não fosse
semblante, a letra ganha o sentido de litoral, é o que faz litoral entre saber e gozo (LACAN,
1971/2009), litoral à medida que mantém certo movimento entre os limites da fronteira do
saber, preservando uma descontinuidade. Ao mesmo tempo, neste circuito que permite a
54
A partir da teoria dos nós e do encontro com Joyce e o Sinthoma.
113
ao que o/a autor/a produz. Desse modo, pretendia salientar a seriedade das ideias, em detrimento
dos nomes dos/as escritores/as.
Dedicaremos um subcapítulo para trabalhar bell hooks, mas, neste momento, é
interessante informar que ela nasceu em 1952, sua carreira como professora teve início em
1976, e a mudança de nome se dá em 1978, na ocasião do lançamento de seu primeiro livro de
poemas. Aos 19 anos, em uma referência direta a Sojourner Truth, começou a escrever E eu
não sou uma mulher?, lançado em 1981, dez anos depois de iniciar seus primeiros rascunhos.
Interessante realçar essa relação entre o momento em que ela se lança como autora, após
modificar o destino que foi reservado para a sua existência – nascida mulher negra em uma
família sem recursos sociais e econômicos, com o pai zelador e a mãe empregada doméstica,
além de seis irmãos –, torna-se professora universitária, após terminar seu doutoramento em
Literatura Inglesa, autoriza-se ao lugar de autoridade sobre os temas que desenvolve e modifica
seu nome. Penso que, com hooks, podemos extrair algo de um giro discursivo capaz de criar
significantes que superam a lógica de mestria, produzindo novos sentidos no laço. Falaremos
mais de sua teoria, adiante.
A segunda onda é marcada por levar o debate mais adiante, incluindo questões de
gênero, no âmbito cultural. Com início no começo dos anos 1960, consolida-se na ebulição que
marca 1968 como um ano incomum na história e, desse modo, em ondas, representou a
continuidade das pautas anteriores, ampliando o debate sobre a vida pública e privada destinada
às mulheres.
Embora O segundo sexo (1949) tenha sido lançado por Simone de Beauvoir quase vinte
anos antes, podemos localizar a íntima relação entre O segundo sexo e a segunda onda. A obra,
que, na ocasião de seu lançamento, tem uma repercussão estrondosa já na primeira semana -
inclusive com o papa proibindo sua leitura, na época -, produziu ventos fortes que agitavam e
inspiravam mulheres. A própria Simone não sabia o quanto seu livro iria revolucionar o cenário
intelectual e político, mas seus escritos consolidaram-se como um clássico, influenciando as
gerações seguintes.
No primeiro volume da obra, ela aborda a concepção de como a natureza feminina é
uma invenção do homem, para, no segundo volume, afirmar que uma mulher não nasce mulher,
torna-se. Em O segundo sexo, demonstra que a mulher não tem um destino biológico, mas que,
pela justificativa da biologia, o homem constrói e impõe qual o papel que ela pode ou não
115
categoria do ser mulher, provocando intenso debate em várias vertentes da onda que surgia55.
Algumas décadas depois, Rebecca Walker (1992) publicaria o ensaio Tornando-se a
terceira onda, consolidando a maneira metafórica de elaborar o feminismo em ondas. A autora
endossou a crítica às narrativas de mulheres de determinadas classes e a forma com que faziam
uso da categoria mulher, já que, em relação a outras mulheres, eram reconhecidas como
privilegiadas, por serem de classe média branca estadunidense ou europeia, com uma realidade
muito diferente da relação política, social e econômica em que se encontravam as da classe
operária, as negras, latinas, indígenas.
É nesse impulso que se levanta o que costumamos chamar de terceira onda, como
estamos acompanhando, não só como uma continuidade, mas também apresentando fendas e
paradigmas, contestando definições essencialistas e criticando os pontos que eram fundados na
experiência das feministas brancas de classe média e classe média-alta.
Tem algo da dimensão micropolítica que aparece na cena, os ruídos na terceira onda
surgem na década de 1980, consolidando-se na década de 1990. Isso nessa perspectiva
cronológica, mas um estudo mais aprofundado permite pensar o quanto a práxis feminista não
é central, muito menos linear, pensar em ondas compreende, então, as descontinuidades, aquilo
que não se dá de maneira linear... ondas vêm e vão, avançam e recuam, quebram e se formam
novamente a partir de um outro lugar, surgindo de outro ponto e, quiçá, dependendo só delas
mesmas, sofrem a ação dos ventos, das tempestades... ou seja, da conjuntura da qual fazem
parte.
E é nessa perspectiva que vou avançando, para chegar às autoras e conceitos que me
interessam notadamente para esta tese e que se encontram na terceira onda; para trabalhar um
feminismo periférico, formado nas margens, para, mais do que contestar como as ondas
anteriores puderam fazer, elaborar um feminismo que segue adiante, que assume um lugar de
autoria – remetendo-se, ao autorizar-se, ao lugar de autoras da própria história – um movimento
que “larga a mão do pai sem perder sua filiação, um soltar a mão e seguir adiante”, como diria
Carla Garcia56.
Na terceira onda, há um imenso protagonismo das feministas negras, chicanas, e das
várias feministas nas periferias do mundo, promovendo não só a politização do cotidiano,
pautado em diferentes contextos sociais, políticos e econômicos, mas ressaltando como se dá a
relação e a intersecção das várias formas de dominação.
55
Na sessão dedicada a hooks, retomarei como ela tece a crítica ao feminismo de Friedan.
56
Em transmissão oral no exame de qualificação.
117
capacidade de trabalho.
A mulher, assim, tornava-se um recurso em si para um homem, já que este tinha direitos
sobre ela. Nessa esteira, mulheres foram compradas, trocadas em casamentos por vantagens
para suas famílias. Lerner vai indicando como se constrói a inferiorizarão de alguns corpos, de
tal modo que se desemboca no regime de escravização das mulheres, ao mesmo tempo em que
se incluem na esteira as questões raciais: “mais tarde elas foram compradas na escravidão, onde
seus serviços sexuais eram parte de seus trabalhos e onde suas crianças eram propriedades do
seu mestre” (LERNER, 1986/2020, p.262).
“Portanto, a escravização das mulheres, combinando ambos, racismo e machismo,
precedeu a formação de classe e das opressões de classe” (Ibidem), o que elucida o que vai ser
construído teoricamente sobre a não separação das formas de exploração, quando falamos de
gênero, raça e classe no capitalismo. Ela acrescenta, ainda, que “classe não é uma construção
separada do gênero, em vez disso, classe é expressa em termos de gênero” (LERNER,
1986/2020, p.262)57.
Como historiadora, a autora busca as origens dessa estrutura de 2.000 anos antes de
Cristo, nas sociedades mesopotâmicas. Naquele tempo, as filhas dos pobres eram vendidas para
a prostituição ou para o casamento, para satisfazer o interesse econômico de suas famílias. A
família da noiva estipulava um valor para a família do noivo pagar. Outra forma de negociação
ocorria quando um pai ou marido contraía uma dívida e não conseguia pagar, podendo
emprestar sua esposa ou crianças para serem escravos dos seus credores. “Essas condições eram
tão firmemente estabelecidas no ano de 1750 a.C., que o código de Hamurábi faz uma melhora
decisiva, [...] limitando os termos de serviços por três anos, quando anteriormente era para a
vida toda” (LERNER, 1986/2020, p.262).
As mulheres escravizadas eram símbolo de status e riqueza dos seus donos, não só pelo
que representavam com seu trabalho braçal, mas incluindo a sua sexualidade como mercadoria;
57
Pensamento que congrega com Butler (1990/2018), Federici (2017), Rubin (1975) e outras pensadoras.
119
[...] exercem uma opressão feroz contra as mulheres. Mas o poder dos homens
nesses grupos não se baseia em seus papéis individuais de pais ou patriarcas,
mas na coletividade masculina adulta, que se materializa em cultos secretos,
em casas de homens, na guerra, numa rede de intercâmbios, conhecimentos
rituais, e várias práticas de iniciação (RUBIN, 1975, p.14).
Gayle Rubin (1975) escreve um texto sobre a economia política do sexo. Ideologia e
Economia são as bases da sociedade e coexistem moebianamente. Por isso, o tráfico de
mulheres é uma forma de sintetizar uma reflexão sobre a subordinação social das mulheres e o
que fica invisibilizado, via poder econômico, nessas relações. Tanto que, até os dias atuais, há
pessoas e lugares que não são capazes sequer de cogitar a possibilidade de uma sociedade
120
sexualmente igualitária, que dirá a abolição do sexo enquanto marcador de uma diferença entre
os seres humanos.
De saída, Rubin recorre a Marx, para mostrar o que ele percebe, em O Capital (1867),
a respeito de como se constitui o fenômeno de subordinação social, falando sobre teoria de
valores. Ela destaca o trecho em que ele vai dizer como um negro só se torna escravo a partir
de determinadas relações, assim como as mercadorias tornam-se capital também a partir de
determinadas relações, se não são só coisas em si: “apartada dessas relações, [a mercadoria] já
não é mais capital, assim como o ouro por si mesmo não é dinheiro e o açúcar tampouco é o
preço do açúcar” (MARX, 1867 apud RUBIN, 1975, p.2).
Ou seja, a relação de atribuição de valor das coisas cria uma outra coisa. Para Marx:
Bem como, acontece com as mulheres. A ideologia sobre qual é o papel da mulher e o
valor atribuído a ela no interior de determinadas relações faz disso uma outra coisa.
Podemos parafrasear: o que é uma mulher do lar? Uma fêmea da espécie. Uma
explicação é tão boa quanto a outra. Ela só́ se transforma numa criada, numa
esposa, numa escrava, numa coelhinha da Playboy, numa prostituta, num
ditafone humano dentro de determinadas relações. Apartada dessas relações,
ela já́ não é a companheira do homem mais do que o ouro é dinheiro... etc. O
que são, então, essas relações pelas quais uma mulher se transforma numa
mulher oprimida? Devemos começar a esmiuçar os sistemas de relações que
tornam a mulher presa dos homens nos trabalhos parcialmente coincidentes
de Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud. A domesticação da mulher, sob
outros nomes, é discutida extensamente na obra dos dois (RUBIN, 1975, p.2).
Só que ela vai dizer que, do ponto de vista crítico, nem Freud nem Lévi-Strauss “veem
as implicações do que estão dizendo” (Ibidem, p.3), que, para ela, são observar e analisar a vida
cotidiana, lembrando sempre que o pessoal é político, porque política é aquilo que acontece na
vida cotidiana, é o que estrutura o funcionamento das coisas. Ela chama de vida social o sistema
sexo/gênero, que se configura em “uma série de arranjos pelos quais uma sociedade transforma
a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nos quais essas necessidades
sexuais transformadas são satisfeitas” (Ibidem, p.4). Gênero é uma categoria a partir de valores
e hierarquias: “Gênero é uma divisão dos sexos imposta socialmente. É um produto das relações
121
Nesse sentido, Federici (2017) contribui para o debate à medida que desenvolve um
esquema interpretativo, para compreender a perseguição às mulheres ao longo da história, e ela
vai chamar de “caça às bruxas” o movimento de combate a qualquer autonomia identificada
nas mulheres, desde a Idade Média até a virada para a modernidade. Com o advento da
modernidade, não acontece a extinção da caça às bruxas, pelo contrário, essa caça ganha nova
roupagem e novas dimensões. Na Idade Média e no seu declínio, eram consideradas bruxas as
mulheres que tinham um saber como curandeiras, parteiras, na alquimia com as ervas, ou as
mulheres que vislumbravam e exerciam certa liberdade. Segundo a autora, “O que ainda não
foi reconhecido é que a caça às bruxas consistiu em um dos acontecimentos mais importantes
do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno”
(FEDERICI, 2017, p.294).
Assim, segundo ela, Marx se faz necessário para pensar um modelo de sociedade
alternativo ao capitalismo, de modo que estudar a gênese do capitalismo é tão importante quanto
pensar sobre a condição das mulheres, nesse atrelamento à construção da classe trabalhadora,
“já que a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher, nesse
122
período, são ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal” (FEDERICI, 2017,
p.30) para imprimir a construção de papéis sexuais na sociedade capitalista. Para a autora,
“gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma
especificação das relações de classe. [...] sob o disfarce de um destino biológico, a história das
mulheres é a história das classes” (FEDERICI, 2017, p.31). Angela Davis (2016) também
compartilha desse pensamento à medida que diferencia o tratamento que é destinado às
mulheres negras e racializadas, em relação ao dirigido às mulheres brancas.
Disciplinar os corpos das mulheres era de suma importância para esse processo de
dominação e, nesse sentido Federici (2017) alinha-se a Foucault, para mostrar como esse
processo tem origem em fundamentos religiosos para fins políticos, apresentando como a
politização da sexualidade foi um instrumento fundamental em tal processo. Ela cita como,
com “o terceiro Concílio de Latrão, em 1179, a Igreja intensificou seus ataques contra a
‘sodomia’, dirigindo-os, simultaneamente, aos homossexuais e ao sexo não procriado” de modo
que “a sexualidade foi completamente politizada” (FEDERICI, 2017, p. 82), produzindo a
relação entre a dominação do corpo das mulheres e como isso se dá atualmente na divisão sexual
do trabalho.
“Marx é outro que concebe a alienação do corpo como um traço distintivo da relação
entre capitalismo e trabalhador” (Ibidem, p.243), a ideologia se faz presente nesta suposta
liberdade do trabalhador como dono do seu corpo e trabalho no capitalismo, há uma alienação
homóloga operando a divisão sexual do trabalho. Assim, a propagação da disciplina aos corpos
do sistema capitalista, aliada à dominação patriarcal, faz surgir um modelo de família que se
torna a instituição mais importante “para a apropriação e para o ocultamento do trabalho das
mulheres” (Ibidem, p.193), tanto no âmbito do trabalho doméstico, já que sem ele o ‘provedor’
da família não teria condições de vender a sua força de trabalho do mesmo modo, quanto
produzindo novo contingente de trabalhadores, a prole, para esse sistema do proletariado.
Inclusive, longe de estar superada, essa é uma pauta atual. Recentemente, na
Argentina58, foi sancionado às mulheres o direito a um salário decorrente de uma aposentadoria,
após anos dedicando-se ao trabalho doméstico. Essa conquista pode provocar um debate
interessante, já que, por um lado, é importante que possam ter uma renda as mulheres que
dedicaram a vida toda ao cuidado da família, é uma política pública importante no campo do
Direito; por outro lado, pensando a estrutura em si, dos lugares em que as coisas se operam,
mais importante do que ter o salário é derrubar a estrutura que atribui às mulheres esse lugar
58
Retomarei esse exemplo em outro momento.
123
como compulsório, por meio de uma forma de dominação. “Foi, por exemplo, por meio do
patriarcado que se estabeleceu que o trabalho doméstico deve ser exercido por mulheres e que
não deve ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho” (LERNER, 1986/2020, p.21).
São formas diferentes de se posicionar diante do mesmo dilema e, pela via da contradição, elas
não são necessariamente excludentes, porque pode haver uma política pública, enquanto não
gira a estrutura. Estrutura que naturaliza o trabalho doméstico às mulheres, atribuindo a isso um
valor de inferioridade e, como consequência, mantendo-as fora da dialética do reconhecimento
enquanto sujeitos no campo social.
Mauss e Lévi-Strauss enfatizam “[...] o caráter de solidariedade da troca de presentes,
as demais finalidades dessa prática apenas reforçam a ideia de que se trata de uma forma
onipresente de comunicação social” (RUBIN, 1975, p.19). Era um modo de organização social,
a troca de presentes e a relação de prestígio político que enlaçava aquela comunidade, selando
a paz e uma organização cultural mínima naquela forma mais primitiva. E assim Lévi-Strauss
cria a teoria da reciprocidade primitiva e
[...] acrescenta a ideia de que os casamentos são uma forma elementar de troca
de presentes, na qual as mulheres são o mais precioso dos presentes. Ele
afirma que o tabu do incesto deve ser entendido como um mecanismo para
garantir que essas trocas se realizem entre famílias e entre grupos. Dado que
a existência dos tabus de incesto é universal, mas o teor de suas proibições
variável, não se pode dizer que sua finalidade seja evitar a ocorrência de
casamentos entre pessoas geneticamente próximas. O que ocorre na verdade
é que o tabu do incesto coloca o objetivo social da exogamia e da aliança
acima dos fatos biológicos de sexo e procriação. O tabu do incesto divide o
universo da escolha sexual em categorias de parceiros sexuais permitidos e
interditos. De forma explícita, proibindo uniões dentro de um grupo, ele impõe
as uniões entre os grupos (RUBIN, 1975, p.20).
Deste modo, dar uma mulher de presente é mais que um gesto de reciprocidade, é
também uma forma de estabelecer parentesco.
Assim, a autora usa a tese sobre as relações de parentesco para demostrar que a opressão
das mulheres encontra-se “no interior de sistemas sociais e não na biologia” (RUBIN, 1975,
p.23). Essa mesma forma de dominação pode ser encontrada em sociedades “civilizadas”59
como ela mesma assinala. Esse é um sistema no qual a mulher não tem direito sobre si, é um
sistema de subordinação.
A Psicanálise como uma práxis que se ocupa da sexualidade, dispõe de “[...] um
59
De maneira crítica, pensando os processos civilizatórios e sua íntima relação com o patriarcado e a colonialidade,
podemos assim compreender a civilização como sinônimo de barbárie (GONZALEZ, 2020; QUIJANO, 2009;
RUFINO, 2018; SANTOS, 2009).
124
conjunto único de conceitos para entender os homens, as mulheres e a sexualidade. É uma teoria
da sexualidade na sociedade humana”, capaz de descrever como os mecanismos da divisão pelo
sexo se impõem. Nesse sentido, Rubin irá afirmar que “A Psicanálise é uma teoria feminista
manquée”60 (RUBIN, 1975, p.33).
Apesar de dizer que; a feminilidade poderia ser assumida como uma passividade diante
do pai, devido à inveja do pênis, Freud não é biologicista, “ele insistia em que toda a sexualidade
do adulto resulta de seu desenvolvimento psíquico e não biológico” (RUBIN, 1975, p.37),
embora, em alguns momentos específicos do ensino freudiano, essa distinção possa provocar
ruídos.
Freud nunca foi tão determinista biológico como muitos o desejariam. Ele
insistia em que toda a sexualidade do adulto resulta de seu desenvolvimento
psíquico e não biológico. Mas seu texto é em geral ambíguo, e os termos que
usa dão margem às interpretações biológicas que se tornaram tão populares na
psicanálise americana. Na França, por outro lado, a tendência na teoria
psicanalítica foi des-biologizar Freud, e considerar a psicanálise mais como
uma teoria da informação do que referente a órgãos. Jacques Lacan, que
defendia essa linha de pensamento, insiste que Freud nunca pretendeu dizer
nada sobre anatomia, e que a teoria de Freud era sobre a linguagem e os
significados culturais impostos à anatomia. O debate sobre o “verdadeiro”
Freud é extremamente interessante, mas não pretendo participar dele aqui.
Pretendo reformular a teoria clássica da feminilidade na terminologia de
Lacan, depois de apresentar algumas das peças do tabuleiro de xadrez
conceitual deste (RUBIN, 1975, p.37).
De fato, uma leitura da Psicanálise atravessada pela crítica feminista permite outras
compreensões. O próprio Lacan, em determinados pontos do seu ensino, segue a esteira do
pensamento freudiano, sem refletir criticamente, um desses pontos é a maneira com que ele
trabalha – e reproduz – Lévi-Strauss, mantendo em seu ensino, sem uma posição crítica, as
afirmações sobre como as estruturas de linguagem que regulam o laço operam e regulam a
sexualidade.
Do mesmo modo, também podemos encontrar eixos teóricos que ele extrai de Freud,
produzindo uma leitura crítica às formulações freudianas: por exemplo, Freud vai dizer que
Édipo é O mito, enquanto Lacan desloca essa importância como determinante, para dizer que
Édipo é um mito. Especialmente no Seminário 5, As Formações do Inconsciente (LACAN,
1957-58/1998), em período identificado por alguns estudiosos como momento de um retorno a
Freud, Lacan coloca a questão do nome do pai como metáfora, metáfora paterna como um
60
O termo manquée em francês é traduzido como falta, ou o que claudica, sendo assim, irei manter o termo
como aparece na citação original, mas quando não forem citações, opto por usar os termos falta e faltoso.
125
operador da lei, ainda distinguindo textualmente o falo como operador, o pênis como
representante do falo, portanto, o falo como um operador da falta. Contudo, também podemos
encontrar nos seminários deslizes que, eventualmente, aludem a certa equivalência ou
aproximação entre falo e pênis.
Rubin verifica que tomar Édipo como O mito acaba fixando lugares de gênero, de tal
modo que: “Quando a criança sai da fase edipiana, sua libido e identidade de gênero já foi
organizada de acordo com as regras da cultura a que está submetida” (RUBIN, 1975, p.39).
Neste sentido, a autora implementa um esforço para mostrar como Psicanálise é uma
teoria feminista faltosa, feminista, porque se dedica a analisar como as sociedades são
organizadas a partir da diferença sexual, mas falta, à medida que identifica essa ocorrência sem
incluir os apontamentos críticos necessários relativos ao tema.
Nesse sentido, o falo é mais que um traço que distingue os sexos: ele é a
encarnação do status masculino, a que os homens acedem, e que implica
determinados direitos – entre os quais o direito a uma mulher. É uma
expressão da transmissão do domínio masculino. Ele é transmitido através das
mulheres e se estabelece entre os homens. Entre as marcas que deixa, estão a
61
Anos depois, quando Lacan estabelece a sua teoria sobre o laço social, ele propõe um passo a mais nas suas
formulações, e passa a falar em nomes do pai (no plural), o pai como um nome – nó borromeano, como nomeação.
126
identidade de gênero e a divisão dos sexos. Mas deixa mais que isso. Deixa
também a “inveja do pênis”, que expressa muito bem o desconforto da mulher
numa cultura fálica (RUBIN, 1975, p.41,42).
Enfim, Rubin apresenta uma tese mostrando como as opressões são criadas a partir da
construção social dos papéis de gênero e que a sexualidade é usada como forma de opressão,
por isso o melhor seria eliminar as sexualidades compulsórias, como forma de gerar uma outra
estrutura social.
127
E justamente porque isso ampara a estrutura social, a obra Tráfico de Mulheres (RUBIN,
1975) constitui-se de notas sobre Economia, sobre aspectos econômicos, tanto no sentido
marxista do termo, quanto no da economia pulsional, ou no que diz respeito ao cálculo de gozo.
Afinada com o marxismo, Rubin identifica a inter-relação entre a superestrutura (como
ideologia para consolidar os interesses da classe dominante) e a infraestrutura (que são as bases
econômicas nas quais se dá a exploração da força de trabalho), examinando como a ideologia
e a dependência econômica podem ser analisadas a partir das relações de parentesco, via
alianças matrimoniais em prol da estrutura econômica. “Em última análise, foi exatamente isso
que Engels tentou fazer em seu esforço para desenvolver uma análise coerente dos diversos
aspectos da vida” (RUBIN, 1975, p.62). Em sua análise Engels engloba “formas de propriedade,
sistemas de ocupação da terra, conversibilidade de riqueza, formas de troca, a tecnologia da
produção de alimentos, formas de comércio” (Ibidem).
Notemos que é nesse sentido que Judith Butler vai trabalhar as questões de gênero, não
como uma parte importante dos Estudos Sociais ou da Filosofia, mas sim considerando como
a construção de gênero é um aspecto crucial na dialética do reconhecimento e, por
consequência, na estruturação social.
Nas palavras de Butler: “Todo o meu trabalho está inscrito em torno de um conjunto de
perguntas hegelianas: ‘qual é a relação entre desejo e reconhecimento e a que se deve que a
constituição do sujeito suponha uma relação radical e constitutiva com a alteridade?’”
(BUTLER, 1999, p. 24), ou seja, as questões de gênero como ponto central para a constituição
do sujeito62.
De tal modo, pensar gênero é pensar política, no sentido amplo do termo, precisamente
por intervir no fazer político como um todo; assim, gênero participa para além desse fazer
(RODRIGUES, 2021), defendendo o pensamento de Judith Butler como pensamento da
filosofia política como um todo, sem restringir sua importância na produção de conhecimentos
das teorias feministas, ou tratando de especificidades. Ora, são políticos os próprios termos que
62
Fanon, em Pele Negra Máscaras Brancas, analisará essa questão hegeliana pela via racial, como Hegel
localizava os pretos nessa relação de reconhecimento, nessa operação “unilateral” (FANON, 2008, p.180-181).
128
fazem a política, não há termo neutro. Logo, gênero aparece como condição para pensar política
e não como um tema adjacente, supostamente menor. Até mesmo porque são políticos os
próprios termos que fazem a política, a linguagem que se usa, o que se diz, como se diz, e o que
se cala.
Sendo assim, Butler se preocupará em revisar a literatura feminista acerca do tornar-se
mulher, conjecturando o gênero não como uma interpretação cultural do sexo, mas como um
processo de construção de corpos; uma alegoria produtora de repetições, reproduzindo a cópia
da cópia, por meio de uma incessante repetição, que não se motiva a partir de um modelo
original, mas da cópia da cópia. Logo, a noção de gênero performativo é a grande contribuição
de Butler, por evidenciar como se dá a existência de atuações sociais performando normas de
gênero a fim de promover imperativos performáticos capazes de instalar a realidade subjetiva
dos sujeitos e seus corpos (BUTLER, 1990/2018).
Pois bem, essa é uma questão política e ética, já que diz respeito à forma e ao lugar das
diferenças no laço social. Diferença como um princípio existencial que marca cada sujeito, as
peculiaridades inerentes à existência de cada ser humano, recusando e superando por completo
a ideia de reduzir a diferença entre os sexos a uma diferença capital da humanidade. Ao final,
visamos a uma diferença que possa ser vista como sustentáculo de polaridades necessárias
dentre as quais a criatividade possa acender de forma uma dialética e peculiar.
3.9 Uma breve passagem por outros aspectos históricos: do caça às bruxas antigo à sua
versão atual
arbitrária, esses corpos como sendo instrumento do diabo63, por essas mulhres estarem ligadas
à magia e ao uso de ervas medicinais. Uma das justificativas para sustentar a perseguição era
associar um desvio sexual feminino, como ponto fraco que facilitaria as ciladas do diabo64.
Podemos compreender que eram consideradas bruxas as mulheres que de algum modo
representavam algum tipo de ameaça identificada pelos ‘poderosos que detinham a
discursividade daquela época”, como podemos acompanhar em Federici (2017), que traça um
paralelo entre a perseguição e guerra às mulheres, durante mais de dois séculos, no final da
Idade Média, como fundamental para a ordem patriarcal no capitalismo contemporâneo.
Com Fuentes (2009), destacamos como, desde 625 a.C., podemos ter notícias de
mulheres que reivindicavam seus direitos - nesse caso, direito à formação intelectual e acesso
à construção de conhecimento -, desde a antiguidade e ao longo da história:
Não foram nem as únicas nem as primeiras: na ilha de Lesbos, a poetisa Safo
nascida em 625 a.C., fundou um centro de formação intelectual para as
mulheres que se rebelavam contra a condição que lhes era outorgada na
Grécia, apropriando-se do que então era uma atividade exclusivamente
masculina, como fazer poesia. Ou então, ao fim da Idade Média as seitas
femininas organizavam-se em torno de inquietações compartilhadas em
relação ao poder dos clérigos e à hierarquia dos sexos, como foi o caso do
movimento das beguinas. Contudo, a fogueira da Inquisição foi o destino de
Marguerite Porete e de milhares de outras mulheres que defendiam a liberdade
de pensamento e do amor a Deus (FUENTES, 2009, p.12).
63
O Martelo das Bruxas é um manual inquisidor, publicado em 1486 por dominicanos. É considerado o manual
mais cruel que orientava sobre a perseguição às mulheres, com a justificativa de caça às bruxas (OSGA, 2018).
64
Não seria ainda esse mesmo argumento que persegue as religiões de matriz africana no Brasil?
130
Pizan é conhecida também pela sua inclusão em Las querelles des femmes, que se
estendeu até o século XVIII e debatia as qualidades da mulher, por meio da formulação
intelectual e de produções literárias e filosóficas.
Em 1622, no tratado Egalité des hommes et des femmes, Marie de Gournay denuncia
que o rebaixamento cultural e intelectual das mulheres em relação aos homens decorre da
exclusão das mulheres dos espaços “oficiais” de elaboração e transmissão do saber. É
importante destacar que, ao longo da história dominante nos últimos séculos, as mulheres
dificilmente ocuparam os espaços tidos como oficiais. No entanto, as historiadoras feministas
mostram o protagonismo das mulheres, ao longo da história, e como isso foi sendo apagado
enquanto transmissão, sendo deixado de fora da difusão que acontece via discurso oficial65.
A Revolução Francesa deu-se entre 1789 e 1799, e seus efeitos impactaram não só a
história da França, o giro que propunha a queda de antigos ideais monárquicos, aristocráticos e
religiosos dava lugar a novos princípios que pregavam liberdade, igualdade e fraternidade,
desdobrando efeitos na civilização ocidental. Mas, ‘no dia seguinte à revolução’, as mulheres
que lutaram na linha de frente junto aos homens, vislumbrando conquistar direitos, foram
excluídas da possibilidade de desfrutar dos ganhos adquiridos nessa revolução, de tal modo que,
no lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não cabiam as mulheres. Vale relembrar que foi
uma revolução burguesa e tais direitos só serviam para o homem burguês, somente ele poderia
ser cidadão. Assim, na nova configuração, as atividades consideradas sublimes e ilustres
continuaram a ser exclusivamente do universo masculino: no campo da Política, do Direito, da
Filosofia, da Medicina, usurpando das mulheres o seu lugar legítimo na construção de saberes
e no fazer político.
Atualmente, temos acesso a literaturas que mostram como, durante os anos da
Revolução Francesa, milhares de mulheres participaram politicamente, reivindicando direitos
que só foram regulamentados para os homens, de modo que a busca por uma sociedade mais
65
Apagamento das histórias e memórias, que foi igualmente operado pelo colonialismo (GONZALES, 2020;
QUIJANO, 2009; SANTOS, 2009).
131
harmônica deu lugar à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (versão original de
1789)66. Interessante observar o que podemos aprender com a arte, já que um dos retratos mais
importantes desse período é do artista Eugène Delacroix, na pintura de 1830, chamada de A
liberdade guiando o povo, na qual ele coloca em primeiro plano o protagonismo das mulheres,
nesse momento de virada política.
Fonte: DELACROIX. Eugène. A liberdade guiando o povo. Óleo sobre tela, 260 x 325 cm
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Liberdade_guiando_o_povo>. Acesso em: 20
jan. 2022).
66
A Assembleia Nacional Constituinte da França Revolucionária aprovou, em 1789, a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, sintetizada em dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários. Pela primeira vez
são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do homem, de forma econômica, visando a abarcar toda
a humanidade, sendo reformulada em 1793. Serviu de inspiração e base para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, promulgada pelas Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
132
lutas, ocupando a linha de frente das trincheiras, não assegurou o ingresso das mulheres à vida
política, muito pelo contrário, já que, em 1793, Olimpe de Gouges foi guilhotinada, para servir
de exemplo, e as mulheres foram proibidas de exercer qualquer atividade na vida pública, seja
no domínio político ou participando nas universidades.
Por isso, é fundamental considerar o protagonismo das mulheres nas lutas, tanto quanto
na produção de conhecimento. É fundamental compreender que houve produção de
conhecimento, insistimos que o silenciamento ocorreu na divulgação e transmissão desse
conhecimento produzido; porém, apesar de embargado e apagado na transmissão, na sua
difusão ‘oficial’ na história, os enfrentamentos e as elaborações das mulheres sempre estiveram
presentes. Logo, as mulheres sempre estiveram à frente nas lutas e na construção do
conhecimento.
Com a antropóloga, cientista política e pesquisadora do feminismo Carla Garcia (2012),
podemos observar essa problemática do apagamento, a partir de outro prisma. Ela apresenta um
outro recorte, explanando, por exemplo, a respeito de como as piratas aventureiras exerciam –
e exercem – esse lugar de desbravadoras, no decurso da história, reposicionando no campo
acadêmico a criação hegemônica e identitária da mulher como sexo frágil.
e “mães”. O que não quer dizer que elas passassem o dia dentro de casa, já
que muitas trabalhavam no campo ou no comércio, quando a maioria não era
suficientemente rica para tanto. Além disso, a qualidade de “esposas de
cidadãos” designava-lhes um lugar a partir do qual compartilhavam das
condições de cidadania, como nos rituais religiosos, nas festas de celebração
de Atenas etc. Contudo, o olhar retrospectivo feminista denuncia esse lugar
como insuficiente e opressor, como se as mulheres tivessem sido vítimas de
um poder masculino que as oprimia. Mas, certamente, foi somente no século
XX que o feminismo como movimento organizado modificou radicalmente a
inserção das mulheres na cultura ocidental, promovendo-lhes uma
emancipação jurídica e política como jamais houve. A mulher tornou-se um
sujeito de direito capaz de exercer sua condição de cidadania, com acesso
praticamente irrestrito ao ensino, ao exercício profissional, social, político etc.
(FUENTES, 2009, p.14).
4.1 Terceira onda: seu início, as pautas que orbitam em torno da diferença e a filiação a
Luce Irigaray
67
Expressão usada pelas feministas da terceira onda.
136
uma diferença que, em momento algum, ambiciona a lógica de dominação. Em certo sentido,
isso me interessa muito como estratégia – ou tática – para pensar o lugar realizável das
diferenças no laço social.
Já, para María Luisa Fermenías (2013), a filiação a Irigaray assinala a importância
política de não se deixar enganar pelas promessas de igualdade. Ainda nessa orientação, fiz
questão de incluir o pensamento de Fina Birulés (2015), que repensa o feminismo da diferença
como um modo de ocupar e fazer política dentro da universidade, ocupando a estrutura para
propor outras formas de pensar o fazer filosófico entre as mulheres e para as mulheres, e como
isso resulta em políticas.
Aqui nasceria outro longo debate, que não vou aprofundar neste momento, mas que
estará presente, nas entrelinhas, ao longo do Capítulo, entre as feministas que, por considerarem
a urgência de modificar determinadas realidades encontradas na vida de várias mulheres, em
todos os cantos do mundo, defendem de maneira pragmática a importância das políticas
públicas para as mulheres, considerando o amplo guarda-chuva que abarca a categoria, para
formular, sob o ponto de vista das mulheres, pensamentos e ações concretas dentro da sociedade
em que vivemos.
Porém, caminhos traçados por outras vertentes da terceira onda vão dizer que essa
“reforma” no sistema será sempre insuficiente, que é necessário modificar toda a estrutura,
repensar a organização social como um todo, defendendo o feminismo como práxis que visa a
modificar todas as formas de relações que resultam em dominação e colonização.
Desse modo, para ilustrar o que poderia haver de polêmico, vou usar, a seguir, dois
exemplos.
Primeiramente, retomando a questão da criação de um salário-mínimo destinado às
mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico: a política pública recém-conquistada na
Argentina. Depois de muita luta dos movimentos, as mulheres que se dedicaram à vida
doméstica e ao cuidado dos filhos passaram a ter o direito a uma aposentadoria, o que é muito
importante, pensando na precariedade que muitas dessas mulheres enfrentam, no aspecto social
e econômico. Então, uma ala do feminismo investe nesse tipo de ação, como medida de proteção
e emancipação, no entanto também podemos analisar o que há de problemático nisso, à medida
que normaliza e naturaliza, via política pública, o trabalho doméstico como função destinada
às mulheres, ao invés de colocar em xeque a estrutura que opera a manutenção de lugares de
gênero.
Então, de maneira pragmática, existe uma urgência social posta em cena, pois a
aposentadoria das mulheres tem uma importância para cada uma delas, inclusive quando pode
137
se tornar um meio para separação dos maridos ou para independência em relação ao pai dos
seus filhos, sendo muitas vezes uma forma de ter um pouco de autonomia financeira para
conseguir a separação das relações que não fazem mais sentido e que se mantinham pela
dependência econômica. Por outro lado, é um salário que fica muito aquém da dedicação de um
cuidado realizado durante toda a vida, além de não questionar a manutenção das mulheres nesse
lugar de cuidado e no ambiente privado.
Em outra situação, pensando na situação brasileira, caberiam inúmeros exemplos de
como as políticas públicas produziram certo suporte ao campo econômico e à criação de direitos
para as mulheres. Vários estudos sobre o Programa Bolsa Família68, por exemplo, mostram a
importância de as mulheres receberem o auxílio: na lei, quem recebe o dinheiro são sempre as
mulheres, gerando ampla importância na micropolítica e para cada uma dessas beneficiárias -
para algumas representou, inclusive, a possibilidade de dar passos importantes na sua
emancipação, além de auxiliar no cuidado da família. A construção e promulgação da lei de
combate à violência contra a mulher69 representa, sem dúvidas, outro grande progresso. Claro
que ainda há muita coisa a se avançar na prática, ou seja, “fora do papel”, mas é inegável a
importância que isso produz no campo social, econômico e dos direitos.
Desse modo, entro neste debate compreendendo a importância do uso da categoria
mulheres – de maneira ampliada – para a construção das políticas públicas, mirando no
desamparo que toca inúmeras mulheres; até por isso, considero essencial incluir as questões
interseccionais como fundamentais para pensar os discursos e o laço social, considerando,
ainda, como a categoria pode conter certa intransigência e como reformar o sistema não muda
as relações de poder.
Assim, voltando para Irigaray e os impasses assumidos por suas herdeiras, presentes na
terceira onda, consideramos o risco que é apostar na diferença sexual e cair nos efeitos de um
certo essencialismo, que, atualmente, significaria um retrocesso para a práxis feminista,
mantendo a heteronormatividade, a monogamia compulsória, e a exclusão dos seres falantes
que não se enquadram na categoria binária. Por outro lado, entendemos a importância da
participação das mulheres na teorização e na prática política, a partir das ponderações
68
Destaco o trabalho de Sabóia (2016), O impacto do programa Bolsa Família sobre a violência contra a mulher:
publicado pelo Instituto de Economia da UFRJ, aponta como o programa federal Bolsa Família reduziu a
mortalidade, por causas externas, de mulheres entre 15 e 59 anos - o estudo dedicou-se a analisar o período de
2000 a 2010.
69
Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Essa Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do Art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil
(BRASIL, 2006).
138
Veamos, si nos dejamos guiar por la filosofía, sobre todo por la de la segunda
mitad del siglo XX, la “diferencia” surge, en algún sentido, como fruto de una
reacción contra la filosofía de Hegel, definiéndosela no ya en términos de
contradicción, lo contrário – dialécticamente hablando – de la identidad, sino
en términos de una diferencia originaria (Descombes, 1979) (FERMENÍAS,
2013, p.17).
À vista disso, insistimos que se trata de incluir uma diferença no âmbito filosófico e
epistemológico. Para Carla Lonzi (1975), questionar a dialética do senhor e do escravo é
repensar a construção do sujeito universal da modernidade, e sua crítica está embasada na
maneira com que Hegel trata o homem como sujeito universal, rechaçando e excluindo as
mulheres da condição de sujeito.
Dessa forma, para a autora, A Fenomenologia do Espírito (1807) “es una fenomenologia
del espíritu patriarcal, la encarnación, en el tiempo, de la divinidad monoteísta. La mujer
aparece como imagen cuyo nivel significante es ser hipótesis de otros” (LONZI, 1975, p.91).
Ou seja, a mulher é pensada como aquela que é diferente do homem, tomando o homem sempre
como referencial, como modelo a ser seguido, e não a partir das suas próprias características e
particularidades, portanto “La Historia es el resultado de las acciones patriarcales” (Ibidem), o
que se desdobra em uma série de efeitos e interpretações, inclusive nos aspectos que suportam
as epistemologias científicas.
Daí a defesa da diferença como uma marca específica, um traço que inclui diferentes
particularidades, e não diferença em relação aos homens, já que essa construção filosófica,
tradicionalmente reconhecida como as bases do pensamento moderno, opera sempre por uma
via binária e dicotômica, naturalizando oposições de sexo/gênero, natureza/cultura,
mente/corpo, implicando problemas políticos à medida que, por exemplo, cria a mulher como
binário do homem: se o homem é o racional, a mulher é emocional; se o homem é responsável
pelos assuntos da pólis, a mulher, nessa ideologia, é destinada ao cuidado da casa e à
maternagem, cabendo a ela as tarefas de cuidado e amor incondicional que, como vimos, foram
140
Por isso mesmo, Beauvoir vai nomear sua obra de O segundo sexo, sustentando o tom
crítico que está presente em toda construção desse escrito que virou um clássico. Assim ela diz:
“A categoria de Outro é tão original quanto a própria consciência” (Ibidem, p.13), apontando
criticamente como o Outro é um traço (ou rastro) da racionalidade e da consciência que, desde
os primórdios, se pensa em pares: bem e mal, sol e lua, dia e noite, Deus e Lúcifer, elucidando
como a binariedade é intrínseca à construção da racionalidade.
Curioso pensar como Lacan (1969-1970/1992) faz uso da dialética hegeliana para
refletir sobre o laço social e estabelecer a relação existente entre o Sujeito e o Outro. Digo
curioso, porque esse ponto da teoria lacaniana é apresentado no final dos anos 1960, quase vinte
anos depois do posicionamento crítico sustentado por Beauvoir. Quando citei, há pouco, a
asserção de que “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”, a autora estava tecendo uma
crítica ao pensamento de Levinas, a frase destacada é dele, e ela parte disso que ele diz, para
criticar a complementariedade colocada em cena, e para dizer que Levinas sabe que a mulher
‘é consciência de si’, “Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de
homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é
141
um mistério” (BEAUVOIR, 2019, p.13), é um mistério para o homem, que a todo momento
reafirma a condição de seus privilégios, nessa trama. Lacan, de certo modo, quando trabalha a
partir desses lugares, do sujeito e do Outro, deixa de fora a crítica colocada na cena por
Beauvoir, que já estava desde Levinas sobre a não complementariedade. Trago dois aspectos
críticos a partir desse ponto:
1) a manutenção desses lugares que o pensamento epistemológico estabelece. Já que,
como Beauvoir argumenta: “Nenhum sujeito se define imediata e espontaneamente como o
inessencial; não é o Outro que se definindo como Outro define o Um: ele é posto como Outro
pelo Um definindo-se como Um” (Ibidem, p.14);
2) o feminino nesse lugar de mistério, como se a consciência de si fosse uma questão
para o feminino e não uma característica do ser falante, já que a Psicanálise trabalha justamente
com o sujeito do inconsciente, de tal modo que a completa “consciência de si” pode ser uma
crença, mas, a partir da Psicanálise, nunca uma possibilidade concreta.
Gianesi e Mountian (2020) trabalham justamente essa questão, no artigo Psicanálise e
feminismo: algumas reflexões sobre a mulher enquanto Outro, demonstrando como a
Psicanálise também se orientou por questões epistemológicas embasadas por conceitos
patriarcais. O que não é sem efeitos nos desdobramentos do pensamento psicanalítico.
Desse modo, o horizonte psicanalítico não visa, necessariamente, a questões de gênero
mas, quando constrói suas teses, por intermédio de pensadores tão carregados de binarismo,
pode produzir ruídos que interferem na elaboração sobre o sujeito do inconsciente.
Não por isso, mas nesse sentido, Beauvoir cita um trecho da Filosofia da Natureza, em
Hegel, para ilustrar como ele se calca em papéis de gênero como verdades trans-históricas,
estimando como a existência de dois sexos materializa diferenças, nessa conexão em que um é
pensado em oposição ao outro. Assim, se um é ativo, o outro será passivo e, naturalmente, a
passividade competirá à fêmea. Ela cita Hegel: “O homem é, assim, em consequência dessa
diferenciação, o princípio ativo, enquanto a mulher é o princípio passivo porque permanece
dentro da sua unidade não desenvolvida” (HEGEL, s.d., apud BEAUVOIR, 2019, p.37).
Dito isso, reconhecemos que denunciar a lógica hegemônica e sua epistemologia
moderna não modifica as coordenadas que produzem opressão e que, desse modo, sustentar
uma epistemologia da diferença não resulta na mudança capaz de produzir um outro enlace nos
sujeitos, no campo social, mas é um passo importante nessa construção para um giro ‘além’.
Dessa maneira, localizo a importância dos confrontamentos epistemológicos e filosóficos que
as teóricas da diferença produziram; identifico, por essa via, um caminho importante, uma
histerização capaz de produzir avanços históricos no campo do pensamento e, como sabemos,
142
Nesse sentido, acrescento a ideia sobre autoridade, apresentada por Luisa Muraro, que
se dedica a pensar a valoração das diferenças, incluindo aí potência política.
Ela participou de um experimento educativo chamado Escola Antiautoritária, e tal
experiência resultou na escrita de um de seus livros, Sobre la autoridad feminina (1992), no
qual ela se propõe a refletir sobre o processo educativo, visando a resguardar a assimetria
inerente às relações. Para ela, é necessário pensar as relações que não são – e não visam a ser –
exatamente entre pares iguais, tomando a disparidade como resposta, a partir de um lugar de
autoria, subvertendo o termo autoridade - muito presente, na cultura hegemônica, no sentido
de autoritarismo, de hierarquização -, propondo que há assimetrias no laço, que uma mulher
mais velha, por exemplo, tem uma certa autoridade advinda da sua experiência, em relação às
mais jovens, assim como as mais jovens oferecem também suas qualidades, seu vigor, mas o
importante é que as diferenças existentes visem à autoridade e que não resultem em relações de
poder. Logo, tem-se autoridade como confiança, deslocando-se a autoridade para o campo da
autoria, do que tem de particular que autoriza aquela mulher a um lugar de autoria, promovida
pela sua experiência, sustentando uma assimetria sem ser pela via do apagamento da diferença
nem de uma hierarquia que produza poder, obediência, violência; desse modo, autoridade
incidida de autoria70.
70
Nesse sentido, podemos encontrar no livro A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os
discursos ocidentais de gênero, uma aproximação interessante com o respeito à ancestralidade, na cultura iorubá.
Nela, antes da colonização pelo Ocidente, as categorias homens e mulheres eram inexistentes, e a reverência pelos
‘antigos’ era altamente valorizada, não como hierarquia, mas como autoridade do saber ancestral (OYĚWÙMÍ,
2021). Retomaremos essa ideia no Capítulo dedicado a Lélia Gonzalez.
143
Assim, Muraro, parte do escrito O que é authority, de Hannah Arendt (1987), para
positivar a noção de autoridade, para além da chave conservadora que limita autoridade a
autoritarismo. Ela se propõe a repensar política, sua tese acompanha o pensamento do
feminismo da diferença, apoiado na diferença sexual, como forma de repensar a subjetividade
segundo uma ontologia da diferença, colocando como ponto central a liberdade feminina e as
práticas que constroem essa liberdade. Liberdade enquanto ato. Trabalhando a tensão existente
entre autoridade, poder, de uma forma distinta de modo como é pensado hegemonicamente.
Muraro propõe repensar a liberdade via política. Para ela, o pensamento é uma ação
necessária, logo, é ato, é política.
Assim, se, por um lado, oriento-me partindo do feminismo como política que supera a
diferença sexual e coloca-se como práxis que visa a acabar com a lógica que faz das diferenças,
sejam elas quais forem, uma forma de opressão, por outro lado, reconheço a importância desse
feminismo que repensa a subjetividade segundo uma ontologia da diferença, tomando como
ponto central a liberdade e suas práticas.
Muraro, assim como outras feministas dessa vertente, discorre e escreve sobre as
mulheres numa outra perspectiva, produzindo conhecimento no campo científico a partir do
ponto de vista feminista, das mulheres feministas. Essa outra perspectiva concebe uma
epistemologia que se distancia do conhecimento produzido pelos teóricos homens, como vimos
antes, reconstruindo o lugar das mulheres na cultura e no misticismo cristão e propondo uma
autêntica identidade da diferença não em relação aos homens, mas uma identidade que pode
ser inventada e transmitida por mulheres, tanto nesse lugar da construção de conhecimento
acadêmico, como valorizando os saberes transmitidos entre as mulheres, em processos orais,
ou, ainda, de determinados conhecimentos vinculados ou não ao cuidado de si e de outros.
Assim, valorizar a diferença e o exercício da liberdade como prática política alinha-se a
essa vertente do feminismo da diferença, considerando que a prática política se dá em ato, e
isso não é sem o corpo. Valorizar a liberdade e a autoridade, elevando o estatuto do corpo da
mulher e suas potencialidades.
Por isso, pensar a diferença sexual a partir da Luce Irigaray é analisar de maneira crítica
o lugar inventado para o corpo da mulher e a ele destinado, pela hegemonia vigente que, por tal
via, atribui a esse corpo o status de mercadoria, resgatando como são negócios de homens todos
os sistemas de trocas organizados pelas sociedades patriarcais e todas as modalidades de
trabalho produtivo reconhecidos e valorizados nelas. E, muito importante, denunciando o papel
dos homens nesse constructo que reserva à mulher o lugar de propriedade de um homem, até
mesmo no fato de que, quando um homem compra uma mulher, é ao pai dela ou ao irmão que
144
ele “paga”, e não à mãe, ou seja, eles passam sempre de um homem a outro homem, de um
grupo de homens a outro grupo de homens (IRIGARAY, 2017).
Irigaray, herdeira de Beauvoir, assim como Rubin (1975), vai denunciar esse “mercado
de mulheres” (IRIGARAY, 2017, p. 192), destacando o valor de produto do corpo feminino
como relacionado ao trabalho do homem, seja o pai da noiva, seja o marido, ou as novas
configurações criadas para manter esse status quo, a ideia de que a mulher é “naturalmente”
dominada e moldada pela cultura masculina. Por isso, suas sucessoras ou as vertentes feministas
que partiram das elaborações de Irigaray irão construir e defender uma cultura feminina escrita
por mulheres.
Em meio a todos os aspectos que emergem dessa reacomodação e apropriação do corpo
pelas próprias mulheres, sobressai o questionamento em relação a seu modo estático e fechado.
Nesse sentido, para Irigaray, a corporeidade feminina instaura uma ruptura na lógica patriarcal,
por ampliar e pluralizar contornos, de tal modo que ela produz uma quebra na presunção de
enumerar tudo, nessa tentativa de transformar tudo em unidade.
Daí ocupar a linguagem, produzindo conhecimentos que não busquem o fechamento, de
modo a fazer da écriture féminine, a escrita de autoria feminina, uma subversão do corpo
imaginado e teorizado pelo patriarcado. Assumindo, assim, a premissa de que a experiência de
gênero determina a compreensão do mundo, à medida que enquadra subjetividades e corpos e,
por consequência, modifica a relação com tudo que nos cerca, pelo posicionamento que atinge
de maneira diferente cada sujeito. Daí a importância de construir e fazer circular produções
literárias que não estão alienadas do discurso de mestria, mestria que se orienta sustentando o
masculino como universal e a mulher como Outro, para, finalmente, evidenciar as
peculiaridades que marcam a autoria feminina.
É desse modo que Hélène Cixous (1976), em seu artigo Le rire de la Méduse, reivindica
e revaloriza o corpo feminino, por parte das mulheres, via uma escrita que subverte as amarras
do discurso dominante patriarcal.
Destarte, destacamos essa orientação que desorganiza e esvazia a consistência do
funcionamento masculino, que tem seu desenvolvimento sedimentado na linguagem, daí essa
tentativa de ruptura que propõe a autoridade das mulheres sobre si mesmas. Uma outra
corporeidade feminina, herança produzida por Irigaray (IRIGARAY, 2017, p. 39-40).
Analisando, assim, como a trama das relações políticas são meras fachadas – ou, como
costumamos dizer na Psicanálise, meros semblantes – limitando a questão de quem manda sobre
quem; de quem pode produzir conhecimento; de quem fala e quem é falado. Estigmatizando e
reduzindo as possibilidades de lugares nas relações sociais.
145
4.4 Repensar o feminismo com Fina Birulés: liberdade, diferença e fazer político
para compreender que houve, sim, produção de conhecimento, o silenciamento está localizado
na não transmissão dele, e não na falta de tal produção, nos vários campos do saber.
Vou incluir aqui um chiste que dá corpo a esse silenciamento da transmissão e não à
ausência de protagonismo. Na anedota (sem autoria), Joana D’arc diz: “bora fazer coisas de
mulheres, tipo salvar a França dos ingleses”; Maria Quitéria responde: “ou lutar contra os
portugueses pela independência”; eis que Marie Curie fala: “Peraí, deixa só eu guardar meu
Nobel de Física e Química...”; e Cleópatra: “Governar o Egito, e ‘pegar’ César”. Por fim, Anita
Garibaldi diz: “Lutar na revolução Farroupilha, na Batalha dos Curitibanos e na Itália também
conta?”.
Historicizar o protagonismo das mulheres daria todo um trabalho à parte, por isso recorri
a essa anedota para exemplificar como e onde se localiza o apagamento do protagonismo das
mulheres na história. Tal apagamento andou de mãos dadas com o lugar de interiorização das
mulheres na modernidade.
Assim, Birulés busca corrigir uma injustiça histórica, propondo, em ato, a produção de
uma filosofia feminina. A entrada por essa via é interessante porque permite pensar certos
conceitos com outros sentidos, para pegar e usar outras maneiras de utilizar conceitos
acadêmicos sem ser pela via do universal masculino.
Insisto, não pretendo defender um modelo de visão feminina, ou a categoria mulheres
como identidade universalizante, muito menos reforçar posições binárias. Como veremos, o
feminismo a que pretendo chegar, até o final deste Capítulo não tem relação alguma com
reforçar identidades, ambicionando a diferença como trampolim para uma saída coletiva rumo
à lógica não-toda.
Pois bem, para acompanhar o pensamento da filósofa catalã Fina Birulés, é
necessário, de saída, compreender que a forma como ela pensa as diferenças se dá a partir de
assimetrias que não visam a hierarquias, e essa é também a ideia central que trago aqui. Nesse
sentido, as diferenças não cabem em relação a alguma coisa, e, sim, falamos de uma diferença
que pode ser pensada como íntima ou inerente, abarcando certa singularidade, para que não caia
em uma redução que transforme a diferença em identidade dentro do arcabouço da identidade
de gênero. Só assim é possível construir uma margem de liberdade para as mulheres. Como
notaremos a seguir, ela descreve liberdade como singularidade.
Claro que se faz necessário manter os avanços no campo dos direitos, uma vez que não
há liberdade dos corpos e ações, sem esse respaldo e reconhecimento social, mas há uma
distinção naquilo que essa autora chama de liberdade, que não passa somente pelo “direito de
ir e vir”, ou por uma equivalência na qual as mulheres possam ter a mesma liberdade dos
147
homens, mas, sim, por uma diferença que é de outra ordem, por isso ela vai entrelaçando
liberdade e singularidade.
Já não temos mais um feminismo que pensa só nas mulheres, mas um feminismo que
luta pela diferença. Uma diferença que não seja hierarquizada, que não permita estabelecer
parâmetros de comparação entre dois ou mais. Não se trata de criar oposição ou relação entre o
diferente e o mesmo, mas trata-se do encontro de diferentes diferenças.
Um dos grandes panos de fundo dessa discussão é a crítica ao binarismo que, instaurado
pelo patriarcado, divide o mundo em dois: um dominador – o masculino, e um dominado – o
feminino. Ou um ativo e outro passivo, um forte e outro frágil. A crítica a esse binarismo, o
qual é fundante na história ocidental, vai originar um efeito dominó em outros binarismos
totalitários do Ocidente, como natureza/cultura; verdadeiro/falso; razão/sensibilidade.
A própria diferença entre os sexos foi tecida por essa via, assim como o binarismo entre
natureza e cultura:
Fina Birulés dialoga com diversas pensadoras e inspira-se em Virginia Woolf, para
lançar o pensar político via feminismo, em uma perspectiva de entreato, esse espaço de fronteira
entre ação e pensamento, da reflexão que não é sem ação: pensar é fazer.
E isso que a autora trabalha, para mim, parece muito estar em ressonância com a
Psicanálise e a noção de ato analítico.
Desse modo, ao longo dos seus textos, ela conduz o leitor a um dentro-e-fora da tradição
filosófica:
[...] la palabra entreactos, que encabeza estas líneas de presentación, indica los
intervalos de tiempo durante los cuales queda interrumpida la ejecución de un
espectáculo o los momentos de pausa entre dos actos de una representación
teatral. Los entreactos son aquellos tiempos en que parece que no pasa nada
esencial, pero es en ellos donde no se recita un texto ya preparado, que
encontramos posiblemente la verdadera historia (BIRULÉS, 2015, p.11-12).
termos igualdade, no singular, e diferença, no plural, havendo sempre uma associação entre
esses dois termos. Ela vai desconstruindo isso e mostrando que o fazer política passa por outros
sentidos, ao mesmo tempo em que denuncia o binarismo epistemológico que marca todo o
campo científico. A partir do seu percurso filosófico, sinaliza que o contrário de igualdade é
desigualdade, e o contrário de diferença é identidade, portanto é preciso ter essas noções para
avançar e entender o porquê de ela problematizar essa questão por meio da liberdade, pois
liberdade tem relação com a capacidade de diferenciar-se, de singularizar-se.
Para isso, faz-se necessário questionar o suposto universal que produz o pensamento
dualista, binário, que tem por consequência a exclusão das diferenças, tentando a qualquer custo
deixar de fora as singularidades que não são compreendidas pela tradição fálica, patriarcal e
hegemônica.
Desde o surgimento da modernidade, há algo sobre as mulheres que fica sempre em um
certo campo nebuloso, não compreensivo. Especialmente porque as elaborações científicas
escritas sobre as mulheres foram feitas por homens, a partir de seus referenciais.
Por isso, quando falamos de atentados contra a liberdade feminina ou de o controle dos
corpos das mulheres, não se trata necessariamente de discriminação ou desigualdade; sabemos
que, no âmbito civil, a conquista por direitos é fundamental, mas não é suficiente para assegurar
a liberdade. Ainda mais considerando-se que aquilo que circula nas civilizações privilegia o
masculino, fazendo do homem uma espécie de universal, o que não é sem consequências no
laço social e, nesse sentido, é importante que as lutas feministas possam questionar esse
particular do homem que se impõe como um universal, que se supõe ou se pretende neutro,
como se aí já não houvesse uma identidade, só porque esta não é nomeada enquanto tal.
Acostumamo-nos a pensar que liberdade para as mulheres poderia ser o mesmo que
poder se igualar aos homens, poder ocupar os mesmos espaços dessas relações que já estão pré-
estabelecidas, incluindo, assim, as mulheres nesse “universal”, mas não é isso. Por isso mesmo,
149
das mulheres heterossexuais, das mulheres bissexuais ou das lésbicas, das mulheres trans, das
mulheres que querem ser mães e das que não querem ser, devem-se considerar as diferenças
sociais e econômicas, diferenças causadas pela racialização ou etnias, diferenças geográficas
que impõem dificuldades ou permitem privilégios, e assim por diante.
Acrescento não se tratar somente de diferenças mensuráveis, embora tais diferenças
também sejam fundamentais para os avanços no campo social.
Caracterizando-se que reconhecer e acolher as diferenças não visa a excluir, por
exemplo, os direitos à igualdade política - como salários iguais, quando a função é a mesma -,
e ao acesso a uma educação de qualidade, ou o direito de ir e vir, sem que, para isso, a sociedade
queira normatizar e controlar os corpos e a sexualidade das mulheres. Ou seja, não se trata de
renunciar às conquistas por direitos, pelo contrário, é avançar um passo a mais, é um mais-além
das conquistas por direitos civis; de modo que assegurar as conquistas por direitos é basilar para
que a liberdade feminina possa ser instituída: igualdade de direitos sem excluir as diferentes
diferenças.
Como propôs a revolucionária Rosa Luxemburgo (s.d.), que vai dizer, ao apostar em
uma revolução internacional de classes: “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo
um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?” e também
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
De tal modo, pensar as diferenças no campo político é presentificar conflitos e
desacordos. Birulés empresta do filósofo francês Jacques Rancière o termo desacordo, já que
sempre haverá um conflito de entendimento entre quem propõe algo e o seu interlocutor. Ainda
que se utilizem as mesmas palavras, haverá um desacordo sobre a significação – e acrescento,
que dirá sobre o significante –, então não é algo que se explica mais uma vez e estará resolvido,
não caberia buscar o último entendimento das coisas mas, sim, sustentar o desentendimento
como possibilidade, ou os limites do conhecimento: já que esse conflito faz parte do engodo,
ele se manterá presente, o desacordo insiste.
As mulheres continuam carecendo de políticas públicas, de acessos e serviços, e a autora
denuncia que não se trata de um não-saber dos homens a respeito da precariedade da vida das
mulheres, de todas as suas carências: exploração dos corpos, sobrecarga dos serviços
domésticos, da violência machista exercida de várias formas. Birulés afirma que, pelo contrário,
eles, os homens, em geral, são bem conscientes e fazem o que é necessário para manter seus
privilégios. Por isso, não há possibilidade de pensar as mudanças sem ser pela via do conflito.
es interrumpido por “la institución de una parte de los que no tienen parte.”
La politica no nace como propuesta de organización, sino como la apertura de
un litigio sobre cada reparto y su ordenación (BIRULÉS, 2015, p.22).
a segurança delas. E até no campo discursivo, essa violência se sustenta, ainda que haja leis que
supostamente deveriam assegurar o contrário.
Trazendo tal questão para a realidade brasileira, podemos observar que, desde 2006, foi
sancionada a Lei Maria da Penha71, depois de muita luta dos movimentos, e, ainda assim, o
número de agressões a mulheres e de feminicídios não diminuiu, pelo contrário. Há inúmeros
relatos e matérias de jornal que mostram que, ainda que haja a lei, em muitos casos, há uma
distorção em relação à sua aplicação, como, por exemplo, na situação em que delegados ou
juízes indagam sobre o que a mulher teria feito para provocar a violência, ou sobre a roupa que
ela usava no ato em que ocorre a violência, como se isso pudesse justificar a agressão ou
tipificá-la como crime de menor importância. Para a juíza Adriana Mello, a Lei do Feminicídio
(Lei 13.104/15), implementada somente em 2015, pela primeira presidenta eleita no Brasil,
tipifica o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o Art. 1º da
Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Tal lei
apoia a discussão e o combate à violência: “Se o feminicídio não existisse como categoria
analítica, não se conseguiriam coletar dados, implementar políticas públicas. Nomear o
fenômeno dá corpo, torna-o visível, concreto” (MEDEIROS, 2017), discorre a magistrada,
fazendo um paralelo com o crime do estupro coletivo, que ainda não é entendido como uma
categoria: “O estupro coletivo está no imaginário da população, está nos jornais, mas não existe
como categoria analítica judicial”72 (Ibidem).
Mesmo já com a Lei do Feminicídio, em outubro de 2020, a primeira turma do Supremo
Tribunal Federal (STF) absolveu um homem que tentou matar a ex-mulher a facadas sob
alegação de “legítima defesa da honra”. Ele já havia sido julgado, em 2017, e absolvido por
unanimidade, segundo o seu advogado na época:
Ela era a mulher dele e estava fazendo sacanagem com ele. Não tinha
71
No ano de 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte do seu marido Marco
Antonio Heredia Viveros. Primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia. Como resultado dessa
agressão, Maria da Penha ficou paraplégica, devido a lesões irreversíveis na terceira e quartas vértebras torácicas,
laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda – constam-se ainda outras complicações
físicas e traumas psicológicos. O caso foi levado à Justiça inúmeras vezes, mantendo-se a cada vez a impunidade,
foi então que, em 2001, e após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001) − silenciando diante das
denúncias −, o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica
praticada contra as mulheres brasileiras. Assim, em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sancionou a Lei n. 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006).
72
Para a juíza, as mulheres ainda enfrentam dificuldades ao tentar denunciar as agressões que sofrem. “Se não
denunciam, sofrem a violência sem o amparo do Estado. Se denunciam, vivem sob a ameaça de represália. Mesmo
quando vão às delegacias, as mulheres são desencorajadas a denunciar. Perguntam: ‘Você quer mesmo fazer a
denúncia?’. E ela ressalta que a Lei Maria da Penha possibilita combater as violências, criar ações de prevenção
via educação e fazer circular o assunto na pólis, possibilitando compreender e falar sobre essa problemática
(MEDEIROS, 2017).
153
necessidade de [ele] fazer isso. Mas fez, o que é que vai fazer? Mas ela fez um
curativo no hospital e foi embora para casa. É uma história entre marido e
mulher. Aleguei legítima defesa da honra. O sujeito confia na pessoa e ela sai
para fazer uma coisa… Ele ficou aborrecido, se sentiu desonrado
(MEDEIROS, 2017).
Embora o Tribunal de Justiça mineiro, logo em seguida, tenha anulado a absolvição por
entender como descabido o argumento de defesa da honra, o STF determinou que a decisão dos
jurados não pode ser contestada, validando, no final das contas, que a culpa da violência foi da
própria vítima.
Ou seja, por mais que haja uma Constituição e todo um aparato jurídico que institua as
leis, isso não assegura minimamente o direito das mulheres de andarem nas ruas sem se
preocuparem em ser atingidas por algo que viole seu corpo, só pelo fato de serem mulheres.
Então, pensar e construir liberdade é algo complexo e extenso, porque diz respeito à liberdade
de produção de teoria, de pensamento, de trabalho, de autonomia, de um outro modo de fazer
político, mas também diz respeito a esse lugar primordial de como é tratado o corpo da mulher.
É sua vulnerabilidade, nesse modelo de sociedade que supõe o masculino como universal;
vulnerabilidade frente às diversas violências, principalmente violência sexual, física e
patrimonial. Por isso, nesse caso exemplificado, a relevância da tipificação do feminicídio, que
não é o mesmo que homicídio, já que é um crime que se dá pela condição de ser mulher.
O avanço das lutas feministas aponta para a condução de alguma coisa “que va más allá
de esta concepción estrecha que solo considera políticas las relaciones traducibles al modelo de
relación de igualdad” (BIRULÉS, 2015, p.29). Pois bem, levantar essa questão não anula a
importância de uma emancipação política, tampouco deixa de lado a importância de lutar e
conquistar uma equiparação de direitos civis, uma remuneração ‘menos injusta’ por seus
trabalhos etc., porém questionar essa concepção estreita do conceito de igualdade é uma forma
de manter presente na discussão o lugar das diferenças, “Y recordar la fragilidade de las
conquistas de la igualdad no significa desentenderse, sino ser capaces de vérnoslas con la
liberdad, con la possibilidade de decir la diferencia sin que con este gesto se genere violência o
desigualdade” (BIRULÉS, 2015, p.28).
Assim, podemos pensar que a disparidade ou a discordância mantêm-se presentes no
laço, mas de um outro modo: continua presente a limitação da liberdade, mas não condicionada
pela diferença entre os sexos, e sim porque a limitação da liberdade ou as vulnerabilidades são
inerentes a qualquer ser falante. “La pérdida y el dolor son elementos que nos constituyen”, e
ainda, segundo a autora, “necessitamos otro linguaje, ya que no solo estamos constituídos por
154
las relaciones con los otros, sino también desposeídos por ellas” (BIRULÉS, 2015, p.32).
Em diálogo com a Judith Butler, na sua obra Vida Precária, ela aponta que todo corpo
é mortal, de tal modo que podemos lutar pelo direito ao nosso corpo, mas estes mesmos corpos
pelos quais lutamos nunca serão eternamente nossos: “O corpo tem, de modo invariável, uma
dimensão pública: constituído como fenômeno social na esfera pública, meu corpo não é meu”
(BUTLER, 2019, p.26).
Nesse sentido é interessante notar como Butler analisa tais questões em torno da
violência no campo social e como isso atinge os corpos. Para ela, aquele que aplica a violência
e a dominação deve ser responsabilizado por isso, ao mesmo tempo há algo no ‘discurso’ que
produz as condições que permitem os vários tipos de violências no campo público (mas não
só):
Acrescento, neste momento, a citação acima justamente para acompanhar Butler nesta
reflexão sobre o quanto os indivíduos devem ser responsabilizados, mas, ao mesmo tempo, o
quanto se faz necessário incluir na análise reflexões sobre como e em quais condições originam-
se cada ato e cada individuo, de tal modo que ela destaca a importância de pensar que modelo
de mundo origina tais indivíduos, que permite fazer da violência um método de domesticação
e dominação dos corpos, um mundo que neutraliza e naturaliza certas violências, quando são
direcionadas a corpos determinados, e como a discursividade sustenta essa lógica, esse mundo.
Daí a máxima: todo corpo é sempre político. E, como disse Birulés, necessitamos de
outra linguagem, que constitua outros laços, outras relações, outras formas de incluir o corpo,
que não sejam condicionadas pela diferença entre os sexos, ou pela racialização de alguns
corpos; edificando-se o corpo e a liberdade na esfera pública por meio de um laço, insisto, que
não faça das diferenças desigualdades, sejam elas quais diferenças forem.
E esse contexto que inclui a esfera pública vai elucidando como a liberdade política vai
além da política de Estado que, no máximo, pode avançar no que diz respeito à igualdade de
155
direitos, mas isso - como vimos no exemplo da Lei do Feminicídio ou no caso, em 2020, de
absolvição sob alegação de defesa da honra -, nem de longe garante a liberdade dos corpos e a
liberdade política, que dirá uma margem de liberdade que permita a presença de algo singular,
de uma singularidade fora do registro fálico, portanto: “podemos empezar a percibir que la
liberdad no se confunde con la igualdad; lo cual es lo miesmo que recordar que la possibilidad
de una vida pública compartida no es idêntica a una ciudadanía homogénea” (BIRULÉS, 2015,
p.34).
Assim, fazer política é justamente sustentar a tensão entre as diferenças, suportando
divergências e contingências, que permitem relações plurais; certa pluralidade permite uma
distinção, de modo que possibilita um lugar para as singularidades, no espaço público, e essa
construção política abre espaço para as reflexões sobre o feminismo, na esfera pública: “ya que
aquí la comunidad no se constituye sobre la base de una identidade previa compartida y estable
– la de las mujeres” (BIRULÉS, 2015, p.34-35). O que a teoria feminista produz, enquanto
avanço, é nesse sentido de sustentar as distinções, as pluralidades existentes, por isso uma
paridade matemática não dá conta da produção do feminismo da diferença, e daí esse alerta
sobre não confundir igualdade com homogeneidade.
Então, ser mulher e ter uma margem de liberdade não pode ser entendido como sendo o
mesmo do que ser tratada como um homem73, ou reconhecida como sendo homogênea ao
discurso dominante. Nessa perspectiva do feminismo da diferença apresentado por Birulés, é
fundamental sustentar as tensões, os desacordos, a alteridade, o que se articula perfeitamente
com pensar giros discursivos e novas ordenações que permitam as assimetrias no laço, como
vimos anteriormente.
Dito isso, falar de subjetividade feminina e liberdade é considerar a liberdade de ação,
ter controle sobre o próprio corpo,
73
Ser tratada como homem, ou seja, como aquele que tem alguém do outro sexo para resolver coisas da vida
doméstica, enquanto ele cuida daquilo que é demandado na vida pública.
156
Assim, é importante valorizar a potência que é incluir teses, filosofias e orientações que
fazem da diferença um contraponto ao pensamento hegemônico e oxigenam os conceitos e
pensamentos presentes no mundo. Como vimos, as autoras que partem do projeto de Irigaray
para uma construção ativa da diferença sexual contribuíram fazendo furo na produção teórica
de verdades sobre o mundo e a mulher, a partir do ponto de vista masculino. Se a Filosofia é
um discurso, um discurso de mestria, recusado às mulheres, autoras como Irigaray, Birulés e
Muraro afrontam essa recusa, ocupando esse lugar filosófico, roubando suas armas para utilizá-
las de outras maneiras, atribuindo outros significados. E insistindo na categoria mulher, para
produzir outros entendimentos e um conhecimento a partir do ponto de vista das mulheres, um
olhar que não se pretende universalizante, mas incluindo a feminilidade como enviesando a
teoria. Assim, grande parte desse esforço que vem desde O segundo sexo (BEAUVOIR, 2019)
tem sido no sentido de uma crítica à universalidade e à neutralidade da produção do
conhecimento, gerando frutos importantes no campo epistemológico, que só foram possíveis
furando a tradição filosófica, não só para furar o lugar de mestria contido em tal tradição, mas
para ir adiante, ocupá-lo e produzir novos pensamentos e sentidos.
Seria essa uma tentativa de usar as ferramentas do mestre que construíram o patriarcado,
para derrubar a casa do mestre? Tomar a diferença e produzir a partir dela é, inevitavelmente,
cair em outro simulacro de identidade que reforça a divisão sexual?
Acredito que não. É usar do que podemos extrair das diferenças para fazer disso um
trampolim para alcançar outros lugares, outras discursividades que incluem as diferenças sem
se orientar pela divisão de sexo/gênero criada como artifício de dominação. Por isso a escolha
de incluir Butler no diálogo com essas pensadoras, para refletir sobre as diferenças em
consonância com a possibilidade de superação de sexo/gênero como balizador do laço.
Se, por um lado, é importante “entrar na casa do mestre” e bagunçar suas ferramentas,
olhar as fragilidades dessa estrutura discursiva para, então, causar abalos, como possibilita o
discurso histérico como dispositivo fundamental para mudanças históricas, por outro lado,
Audre Lorde (2019) já anunciou que as ferramentas do mestre não destruirão essa lógica.
Assim, precisamos aprender a fazer das nossas diferenças a nossa força, insistindo de maneira
positiva nas diferenças como uma espécie de vantagem, ou nunca desmantelaremos a casa-
grande.
podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas
nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína. E esse fato só é uma
ameaça àquelas mulheres que ainda definem a casa-grande como sua única
fonte de suporte (LORDE, 2019, p.137).
Por essa via, ela visa às diferenças como possibilidades de estabelecer comunidades que
não são centradas na pura identidade ou no apagamento das diferenças, portanto entendo que aí
reside um passo a mais, um caminho mais próximo ao que nós, da Psicanálise, conhecemos
como política do não-todo: “Como mulheres, fomos ensinadas a ignorar nossas diferenças, ou
vê-las como causa de desunião e desconfiança, em vez de encará-las como potências de
mudança. Sem a comunidade, não há libertação” (LORDE, 2019, p.137); em outras palavras, a
comunidade não implica descartar as diferenças.
Destacarei, a seguir, como bell hooks (1984/2020) constrói seu pensamento e se
posiciona afinada à política do não-todo, ao indicar a apropriação da fala e de outras formas de
construir política, superando o discurso histérico, produzindo aquilo que é possível via discurso
do analista, com a produção de um novo significante mestre que não está submetido à lógica de
mestria. Assim como localizo em Gonzalez (2020) a mesma operação, que toma o artifício do
discurso da histérica como passagem – ao passo que faz avançar sua militância, inclui a crítica
decolonial e outros saberes como os que abrem novos horizontes no campo político –, mas a
autora faz uso desse discurso somente como passagem, girando para o discurso do analista, a
fim de produzir um novo significante, com outros efeitos e sentidos.
Como citado ao longo dos ensaios, o pensamento contemporâneo vem questionando o
conceito de homem universal, que historicamente é fruto da modernidade e pensado a partir de
um universal masculino, branco, hétero e, preferencialmente, europeu. Essa discussão está cada
vez mais presente na academia, seja através das feministas da diferença, do feminismo negro,
interseccional, das teorias decoloniais ou pós-coloniais, mas será que é possível pensar na
universalização da diferença? Ou, no final das contas, por essa via, a cada nova diferença
apareceria uma nova identidade para fazer conjunto? Acabaria sempre se tornando um novo
particular?
Por fim, o conceito da diferença não pode ser reduzido a um nome, já que essa seria
uma operação que sempre indicaria uma nova identidade, um novo fechamento. Então, repensar
e teorizar sobre a diferença, na teoria feminista, é uma tarefa laboriosa, já que o pensamento
vigente não suporta a diferença como tal, e o tempo todo tenta capturá-la e transformá-la em
uma nova identidade, em um novo conjunto, para apreender a diferença sempre em relação a
alguma coisa; esse é o mecanismo que a cultura dominante opera para, no final, homogeneizar
158
qualquer diferença. A diferença apresentada nesta tese é de outra ordem: uma diferença que
aponta para fora de um universal, que não se permite redução, fechamentos ou universalizações.
E é assim que ela precisa ser sustentada enquanto práxis, para a abertura de novos caminhos.
feministas que não se enquadram em uma onda específica, ou em somente uma pauta, podendo
atravessar as ondas e posicionar-se politicamente de maneira ampla.
Esse é o caso de Angela Davis, que, desde os anos 1960, apresenta-se como comunista
e feminista militante do movimento negro; nos 1970 alcançou notoriedade mundial, entrando
para a lista dos dez mais procurados do FBI e vendo, em 18 de agosto de 1970, seu julgamento
durar 18 meses e arrastar multidões, nos EUA e outras partes do mundo, com manifestações
transmitidas ao vivo, já naquela época, pela televisão. Ao final desse processo, depois de muita
luta e resistência, ela foi inocentada (LIBERTEM, 2014). Davis atuou no Partido Comunista,
militou no Panteras Negras, defendia os direitos das mulheres, posicionava-se radicalmente
contra a discriminação racial e social.
Desse modo, ela é comunista e abolicionista e, por isso mesmo, não acredita na reforma
prisional, por saber que o sistema prisional atual é extensão das antigas senzalas, localizando o
modo operante do sistema escravocrata contemporâneo, enquanto um complexo industrial de
prisões, no qual homens e mulheres pretos e pardos são jogados (DAVIS, 1981/2016).
Angela Davis torna-se uma referência importante, tanto pelos seus aportes intelectuais,
como pela sua militância. Em 1981, ela publica Mulheres, raça e classe, reunindo treze ensaios
160
que fundamentam as origens das lutas feministas e antirracistas com base no materialismo
histórico, no método dialético, influenciada pela Escola de Frankfurt e por uma ampla pesquisa
sobre os sujeitos escravizados, a que se somaram sua prática política e sua experiência
acadêmica74.
Davis estabelece um importante panorama histórico e crítico das imbricações entre a
luta anticapitalista, a luta feminista, a luta antirracista e a luta antiescravagista, passando pelos
dilemas contemporâneos da condição feminina. Com isso, evidencia, por exemplo, como o mito
da mulher feminina e frágil foi construído apenas para operar a exploração da mulher branca,
já que a mulher negra era uma espécie de animal de carga cujo poder físico não destoava nem
um pouco do de qualquer homem negro. Além disso, a mulher negra era tratada como
reprodutora, como uma parideira, renovando, assim, a força de trabalho para o sistema
escravista sem, entretanto, merecer nenhum tipo de descanso, nem mesmo durante a gravidez,
evidenciando que o trabalho externo sempre foi – e é - uma realidade na vida das mulheres
negras (DAVIS, 1981/2016).
De todo modo, esse aspecto da mulher como provedora de mão de obra vai além da
mulher negra, pois essa sempre foi, também, a realidade das imigrantes, e compreendemos que
a mulher como reprodutora estendia-se igualmente às mulheres brancas, como parideiras que
deviam reproduzir para garantir a linhagem do senhor ou do seu marido.
A feminista marxista Silvia Federici, endossa tais questões, ao formalizar sua tese sobre
o movimento de libertação das mulheres e todo processo de dominação sofrido por elas. Sua
obra Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação privada (2004/2017) denuncia como se
realizou “o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados – que trabalham
nas cozinhas, nos campos, nas plantações, cuja exploração foi naturalizada, creditada a uma
inferioridade natural” (FEDERICI, 2004/2017, p.13). Calibã e a Bruxa desmistifica a natureza
democrática da sociedade capitalista, apontando o paralelo entre as caças às bruxas de
antigamente e como isso se mantém na atualidade.
Outra feminista que apontou para novas contradições e novas polêmicas intrínsecas ao
feminismo dos anos 1980 foi Audre Lorde, que, em 1984, publicou Sister Outsider, anunciando,
já no título, uma provocação e denunciando a posição complexa de ser uma irmã do movimento
e, ao mesmo tempo, uma estranha. Sister Outsider são escritos, ensaios e palestras em que
74
Na Universidade de Brandeis, Davis foi aluna de Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo alemão da Escola de
Frankfurt, refugiado nos Estados Unidos desde a década de 1930, em razão de sua origem judaica. Marcuse era
um intelectual muito admirado pela esquerda universitária estadunidense, nos anos de 1960, tendo, inclusive,
participado ativamente dos protestos estudantis que surgiram na França e ecoaram no mundo todo, em maio de
1968.
161
Audre Lorde apresenta-se como mulher negra, lésbica, mãe, vivendo uma relação inter-racial e
trazendo para a cena toda a complexidade de carregar essas várias identidades desqualificantes,
vindas do sujeito dominante do discurso hegemônico, ao relatar como a sua experiência diária
lhe forçava a se deparar com o machismo, sexismo, racismo, classismo, enfrentando questões
que o feminismo branco não considerava, nas suas discussões e construções. Por isso mesmo,
Lorde diz que mulheres como ela não podiam se dar ao luxo de escolher lutar contra um único
tipo de opressão, já que as combinações e sobreposições impostas são inseparáveis. Desse
modo, para as pensadoras da interseccionalidade, não faz sentido pensar as opressões de gênero,
raça e classe, separadamente, na sociedade capitalista. Lorde vai dizer:
Certamente existem diferenças muito reais entre nós, com relação à raça, idade
e sexo. No entanto, não são essas diferenças que estão nos separando. É, antes,
nossa recusa em reconhecê-las e analisar as distorções que resultam de as
confundirmos e aos efeitos dessas distorções sobre comportamentos e
expectativas humanas. Racismo, a crença na superioridade inerente a uma raça
sobre todas as outras, e, portanto, o direito à dominância. Machismo, a crença
na superioridade inerente a um sexo sobre o outro, e, portanto, dominância.
Etarismo. Heterossexismo. Elitismo. Classismo (LORDE, 2019, p.142).
posições no laço social. No âmbito da língua, esse saber produz mudanças, mudanças que, por
sua vez, produzem deslocamentos políticos. Por exemplo, era – e ainda é – muito comum
encontrar diversas literaturas referindo-se ao povo africano como povo escravo; hoje, depois de
pequenos avanços, não é mais entendido e aceito usar o termo escravos dessa maneira: para
dizer de fenômenos históricos de opressão de um povo contra o outro se diz escravizado,
deslocando a fixidez do termo que provocava uma redução cheia de efeitos sociais. Outro
exemplo que acompanha esse mesmo sentido é reduzir o continente africano como sendo uno,
quando, na verdade, abarca diversos povos, diferentes características e formas de organização,
várias línguas, bem como inclui as mais diversificadas formas de cultura. A serviço da
“desumanização”, operada na modernidade, são produzidos e reduzidos uma homogeneização
e um apagamento dos saberes de vários povos, a fim de justificar a barbárie, ou melhor, de não
reconhecer a barbárie praticada em nome “da civilização”.
Como vimos, o atrelamento entre gênero, raça e classe, já estava sendo analisado e
trabalhado por diversas mãos, mas foi em 1987 que a acadêmica, advogada e ativista Kimberlé
Crenshaw finalmente formalizou e introduziu conceitualmente a noção de interseccionalidade.
Ela disserta sobre o conceito de interseccionalidade, no Fórum Legal da Universidade de
Chicago, explanando como acontece a intersecção entre as formas de exclusão e opressão.
Intersecção é um termo matemático, usado quando algo pertence a dois ou mais
conjuntos ao mesmo tempo. Não é do campo da união, no qual a soma forma outra coisa; a
intersecção não é da ordem do ou – ou é uma coisa ou é outra coisa – e sim da ordem de como
as coisas relacionam-se, em dois ou mais campos distintos, que coexistem e se interseccionam.
Esse conceito matemático torna-se fundamental para pensar a condição das mulheres e toda a
problemática construída pelo feminismo nas periferias do mundo. Assim, faz-se necessário
debater a questão das mulheres negras e também como gênero, raça e classe relacionam-se,
agravando as condições exploradoras e exploratórias dessas mulheres. É um conceito para
trabalhar as questões referentes às mulheres negras no laço social, incluindo também as
mulheres indígenas, as imigrantes, bem como outras situações e/ou múltiplas exclusões
destinadas às mulheres, nos discursos, de maneira meticulosa.
163
Grada Kilomba tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe. Nascida em Lisboa, é
pesquisadora, escritora, estudiosa de Psicologia e Psicanálise, e comunga com as leitoras de
Fanon e hooks. A partir desses autores e da sua experiência pessoal, escreve Memórias da
Plantação: episódios de racismo diário (2018), resultado de sua tese de doutorado, em Berlim,
durante cujo processo articulou sua experiência de intelectual negra e os diversos
atravessamentos que permeiam sua experiência na sociedade, na condição de mulher
racializada. Nesse livro, Kilomba apresenta de que forma a combinação de duas palavras -
plantação e memória - descrevem o racismo cotidiano, ao qual o negro é sempre subordinado,
colocado no lugar de objeto e não de sujeito. Como estudante negra em Berlim, sentia na pele
o que Fanon chamou de “a experiência vivida do negro”: enquanto a experiência de Fanon, em
solo francês, remetia a um “Mamãe, olha um preto, estou com medo” (FANON, 2008, p.105),
na experiência dela isso aparecia de maneira um pouco diferente mas recorrente, tanto pela
dificuldade imposta pela universidade, no início de seus estudos – de modo diferente de como
acontecia com seus colegas brancos –, quanto pela maneira como era deslegitimada, ao circular
na universidade, sendo tratada e ‘confundida’ como se estivesse ali para servir, como se esse
fosse o único lugar possível para uma mulher negra, em uma universidade europeia; ou, mesmo,
quando tinha o seu conhecimento invalidado, o tempo todo, por professores e colegas que
diminuíam o valor das suas contribuições, como se aquilo que ela poderia produzir enquanto
conhecimento só poderia aparecer se relativizado como uma experiência pessoal, supondo aí
uma diferença com os demais que produziam a partir de uma suposta neutralidade. Nesse
sentido, ela recorre a Spivak (1995), em Pode o subalterno falar?75, para construir como se
opera a manutenção de quem pode ou não falar, de quais saberes são reconhecidos e legitimados
ou quais são parciais e infantilizados.
Ao argumentar que a subalterna não pode falar, ela não está se referindo ao
ato de falar em si; não significa que nós não conseguimos articular a fala ou
que não podemos falar em nosso próprio nome. A teórica, em vez disso,
refere-se à dificuldade de falar dentro do regime repressivo do colonialismo e
do racismo (KILOMBA, 2019, p.47).
75
Retomarei esse texto de Spivak no próximo Capítulo.
164
política, pois hooks desvela lugares e nomeia aquilo que o discurso recalca e naturaliza. Assim,
é preciso ocupar a fala e modificar as relações no discurso, nesse discurso que se constitui sem
palavras, mas que, nem por isso, prescinde delas.
Para que não haja mal-entendido, o conceito de hooks sobre ocupar a fala, é diferente
da ideia defendida por Djamila Ribeiro (2017), que propõe pensar o lugar de fala.
Para Djamila (2017), há historicamente sujeitos que são invisibilizados. Ao trazer o
debate para o contexto brasileiro, ela dialoga com Collins, ao encorajar a visibilidade aos
sujeitos que são apagados, excluídos da condição de quem tem algo a dizer. Desse modo, lugar
de fala é considerar todas as vivências como importantes, já que há um crivo que separa quem
pode dizer sobre o quê, e como isso é validado no campo social: por exemplo, é diferente escutar
o que tem a dizer sobre a experiência ribeirinha quem vive desse modo ou quem estuda isso de
seus gabinetes. O lugar de fala visa a validar que pessoas que não são reconhecidas como
produtoras de saber possam participar e posicionar-se, inclusive, sobre o que diz respeito às
suas vivências.
Considerando que, dependendo de quem fala, o que é dito tem valor de saber, como se
se tratasse de uma verdade neutra, enquanto para outras pessoas, quando não são as esperadas
nessa lógica que identifica quem pode falar, aquilo que dizem é colocado como tendo menos
valor: “fulana está falando a partir da vivência dela, como se essa vivência advinda da
localização social de fulana, se mostrasse insuficiente” (RIBEIRO, 2017, p.67). Desse modo, a
autora vai tratar o lugar de fala como um tema que trabalha o preconceito social de quem está
autorizado ou não, de quem tem o direito de falar, valorizando o que tem de peculiar em cada
experiência, “é justamente tentar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual
fulano faz parte e quais são as experiências que essa pessoa compartilha ainda como grupo”
(Ibidem). Portanto, ela parte da Sociologia, para debater e refletir criticamente os destinos dados
à localização social e ao lugar de participação dos cidadãos. Para ela:
4.8 Da margem ao centro: bell hooks e o feminismo como um outro modo estrutural de
pensar política
uma transição do subalterno, pelos afetamentos produzidos nessa posição que modifica a ordem
das coisas. A fala é o ponto central, hooks sabe que são os discursos os responsáveis por
implantar hierarquias, então essa “ocupação” que ela propõe não é sobre ‘um lugar de fala’ a
partir dos espaços que possibilitam participação, como vimos brevemente com Ribeiro (2017),
mas ocupar a fala é questionar e desconsiderar a ordem vigente, é subverter as imposições e a
lógica do discurso dominante. Mais do que validar processos de representação, que fazem das
inclusões das bandeiras dos movimentos meras fachadas, vendendo a ideia de democratização
dos espaços, ocupar a fala é não entrar nessa armadilha, é não legitimar a regra posta, essa regra
que criou as condições para a exclusão de corpos em detrimento de outros.
Assim, segundo hooks (1989), ocupar a fala é deslocar lugares e possibilitar novos
imaginários.
Entre as mulheres e os homens, o sexismo expressa-se, frequentemente, na forma de
domínio masculino, o que leva à discriminação, exploração e opressão. E essa lógica constrói-
se de tal modo que, se o oprimido não se percebe nessa condição, ele aspira a estar do outro
lado dessa mesma relação, sem questionar a opressão em si. Como alertou Paulo Freire (1992),
“quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor”, e isso não
é sem efeitos nas relações entre as mulheres.
O sexismo é um artifício que leva as mulheres a sentirem-se ameaçadas umas pelas
outras, criando uma atmosfera de competição. O sexismo nos ensina o ódio para com as
mulheres, um sentimento presente no discurso hegemônico, quer seja de maneira consciente ou
não. O que, por consequência, cria ruídos e conflitos nas relações entre as mulheres.
Embora o sexismo trate as mulheres como objetos sexuais dos homens, ele também se
manifesta quando as mulheres que já se libertaram desse papel desdenham daquelas que ainda
não o fizeram. Ou, ainda, pode aparecer na relação entre aquelas que conquistaram carreira e
independência financeira, em detrimento daquelas que se encontram em uma situação
considerada inferior. Daí a complexidade das relações de opressão e a necessidade de pensar o
feminismo não como uma saída para algumas mulheres e, sim, como uma forma radical de
pensar o laço social. Assim:
Muitas feministas radicais têm agora consciência de que nem o feminismo que
se concentra na mulher como um ser humano autônomo digno de liberdade
pessoal nem o feminismo que se concentra em adquirir igualdade de
oportunidade para com o homem podem livrar a sociedade do sexismo e do
domínio masculino (HOOKS, 1984, p.20).
como a política se faz no dia a dia, como é um fazer em ato, que constrói e que organiza a vida
cotidiana -, o corpo da mulher e suas características biológicas determinam seu lugar na
sociedade. Mas esse não é o único determinante, e cada mulher sentirá tal dominação de
maneira diferente, dependendo do país em que ela vive, dos aspectos culturais e religiosos de
onde nasceu, assim como dependerá da sua posição econômica e outras tantas variáveis que
irão se sobrepor, nas diversas formas de opressão vigentes.
Desse modo:
Ressaltar essas características e diferenças é jogar luz nas mulheres que não estavam em
lugar de destaque no início do movimento feminista.
Não interessa essa posição que segrega; para hooks o feminismo não se pretende
separatista, algo assim não seria bom nem para a construção de um outro modelo de sociedade,
bem como teria por consequência menos adesão das próprias mulheres que não compartilham
dessa radicalidade; o feminismo não pretende fazer dos homens inimigos, pelo contrário, é
170
preciso que o maior número de homens comungue dessa perspectiva política que abole qualquer
forma de dominação.
Assinalamos: ser feminista não é uma identidade a ser alcançada, pelo contrário,
feminismo é um posicionamento político que não carece de ser confundido com um lugar de
identidade ou estilo de vida; “É um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e
opressão” (HOOKS, 2018, p. 13). Logo, é incompatível com o sistema capitalista e, por isso
mesmo, deve-se estar atento às armadilhas e cooptações do capitalismo, que tenta a todo custo
transformar tudo em mercadoria.
hooks traz para o debate Jeanne Gross, que apresenta um exemplo da cooptação, em seu
ensaio Feminist Ethics from a Marxist Perspective, publicado em 1977:
Tal citação aponta para um paradoxo prático: como considerar as particularidades das
mulheres enquanto a mudança estrutural não acontece?
Por tudo que foi apresentado até aqui, é notório como a pobreza tornou-se uma questão
feminina, principalmente das mulheres negras. As mulheres, a partir do feminismo, criam
estratégias de solidariedade entre si. Assim, atender mulheres em situação de vulnerabilidade,
oferecer proteção quando estão em situação de violências ou prestar assistência social não é a
política do movimento feminista, mas sim algo que se estabelece de forma estratégica no
interior da luta feminista. E é importante que isso não se confunda com saídas individuais de
algumas mulheres.
Nesse sentido, é diferente de almejar uma condição de privilégio, em detrimento de
outras mulheres ou homens: solidariedade como um conceito que possibilita um laço de ajuda
mútua entre as mulheres é uma coisa, pensar saídas e conquistas individuais, ou melhor,
alternativas para um grupo privilegiado de mulheres é outra coisa e, nessa segunda alternativa,
o feminismo, como posição e construção política, perde-se. Diante disso, solidariedade, para
hooks, interessa mais do que sororidade.
171
A solidariedade pode se dar de diversas maneiras, de forma prática, como citado acima,
ou, na visão própria do movimento:
Logo: “As mulheres não precisam erradicar as diferenças para sentirem solidariedade.
Não precisamos de partilhar uma opressão comum para lutar igualmente pelo fim da opressão”
(HOOKS, 1984, p. 52). Não é preciso inventar inimigos em comum nem tomar os homens como
conjunto, para criar uma polarização; é preciso, sim, compartilhar riquezas e expectativas,
desejar e construir outra sociedade possível, que inclua as diferentes experiências e formas de
existência. “Podemos ser irmãs unidas por interesses e crenças, unidas pela nossa valorização
da diversidade, unidas na nossa luta pelo fim da opressão sexista, unidas pela solidariedade
política” (Ibidem, p. 52).
À vista disso, Gonzalez, em 1988, vai dizer:
direta para a classe dominante. Nesse sentido, essa colega constatou, como mulher branca e
privilegiada, que, quanto mais próximo se está do “coração do monstro”, mas difícil sair dessa
alienação (HOOKS, 1984, p.11). E isso não é sem efeitos, no debate acadêmico e na forma de
fazer e escutar as críticas ou outros pontos de vista que não compartilham da mesma tradição
acadêmica. Sendo assim,
Hooks aponta que, nessas situações, é como se, por intermédio da hostilidade, quisessem
dizer a ela que ali não era o seu lugar, mas que, se quisesse ficar, não era para se indispor, as
críticas não seriam bem aceitas e seriam sentidas e analisadas como um ataque. Falavam de sua
suposta agressividade, e esse reforço e esforço para colar o estereótipo racista da mulher negra
como aquela que é forte, agressiva, acaba servindo para um discurso de dominação e de não
reconhecimento desse outro como semelhante, permitindo às mulheres brancas privilegiadas
perpetuar em relação às mulheres negras a mesma lógica de dominação dos homens brancos.
Essa é a grande crítica ao feminismo da igualdade, um feminismo que se orienta pela
tentativa de igualdade aos homens, sem criticar a lógica que uniformiza os sujeitos, buscando
o apagamento das diferenças, caminhando no sentido do capitalismo, adequando-se
completamente ao sistema. É o “modelo” de feminismo que desembocou no feminismo liberal.
Como já citado, Betty Friedan, em 1963, em seu livro A mística feminina, abre caminhos
para tal movimento feminista, tornando famosa a expressão “o problema que não tem nome”,
que era a sua forma de contar como sofria um grupo específico de mulheres que eram brancas,
economicamente privilegiadas, casadas, com formação acadêmica, mas frustradas por serem
donas de casa, elas queriam mais da vida... gostariam de ter uma carreira e serem realizadas
profissionalmente, com os mesmos direitos dos homens brancos.
Não que não fosse legítimo desejar os mesmos direitos dos seus companheiros, a
questão é que, desse modo, para esse fim, o feminismo passa a ser cúmplice de seu algoz,
porque não questiona a estrutura que cria a opressão, apenas permite que um pequeno grupo de
174
mulheres também possa gozar de um lugar privilegiado dessa estrutura. Acontece que. para
essas mulheres chegarem ao “poder”, automaticamente serão as opressoras de outras mulheres
que não possuem os mesmos privilégios.
É um feminismo que, de certo modo, encastela o sistema que o aprisiona, operando a
conservação dessa lógica, daí toda a problemática intrínseca no feminismo da igualdade. Não
era essa a intenção de Friedan, mas foi isso que seu livro provocou em outras mulheres que não
se enquadravam nessa ‘categoria’ identificada no livro. Por outro lado, após a publicação,
Friedan se reconhece feminista, depois do sucesso que seu livro alcançou. Inicialmente, ela
almejava apenas compartilhar como as mulheres donas de casa nos subúrbios estadunidenses
estavam cansadas de terem negada uma vida que pudesse ser interessante e que não se resumisse
a cuidar das funções domésticas e dos filhos.
Para Davis,
Por isso Davis, em Mulheres, Raça e Classe (2016), vai evidenciar o que restou como
legado dessa condição para os parâmetros que moldam, no laço, as condições das mulheres não
brancas. Por isso, durante os anos 1970, é renovado o debate sobre a escravidão, para jogar luz
nessa discussão, criticando a “crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que enfatiza
o papel das mulheres como mães, protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para seus
maridos; as mulheres negras eram praticamente anomalias” (DAVIS, 1981/2016, p.17-18).
Segundo a autora, sete em cada oito pessoas escravizadas trabalhavam na lavoura, não
importando se eram homens ou mulheres. E, conquanto a abolição do tráfico da mão de obra
escrava começasse a ser ameaçada, o corpo das mulheres passava a ter uma importância ainda
maior nessa dominação, cobiçando-se sua fertilidade como função para ampliar a propriedade
dos senhores, que tomavam seus filhos como produtos para o trabalho, o que não possibilitava
a essas mulheres um tratamento diferente.
Nesse enlaçamento discursivo, a exaltação da maternidade que se popularizava no
século XIX não se estendia para todas as mulheres: “Na verdade, aos olhos de seus
175
proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a
ampliação da força de trabalho escrava” (DAVIS, 1981/2016, p. 19). E, como reprodutoras,
não mães, “suas crianças poderiam ser vendidas e enviadas para longe, como bezerros
separados de vacas” (Ibidem, p.19-20), de tal modo que o tribunal da Carolina do Sul chegou a
decidir que “crianças escravas estão no mesmo nível de outros animais”76.
Assim, nos relatos das pessoas que passaram pelo sistema de escravização ao qual Davis
teve acesso, ela pode notar como era exigido o mesmo desempenho no arado,
independentemente de gênero ou da condição de gravidez das mulheres.
76
Davis traz essa citação de Barbara Werthimer, do livro We Were: The Story of Working Women in America (s.d.,
p. 109).
77
“Trocando em miúdos, os dados dizem o seguinte: nas ocupações de nível superior, as mulheres ganham, em
média, 35% a menos que seus colegas homens, mas as negras ganham 48% a menos do que as brancas. Nas
ocupações de nível médio as mulheres ganham 46% a menos do que os homens, enquanto as negras recebem 14%
a menos do que as brancas” (GONZALEZ, 2020, p.194).
176
trabalho, no Brasil, Gonzalez destaca que “No setor de serviços, encontramos o ‘lugar natural’
da mulher negra que trabalha nas cidades: o emprego doméstico” (Ibidem, p. 194), enfatizando
que os efeitos causados pelo sexismo nas relações de trabalho são ainda maiores nas atividades
do campo, “quase sempre elas trabalham na agricultura ajudando o marido, sem receber
qualquer remuneração” (Ibidem). Sem contar as desigualdades existentes no campo dos direitos
trabalhistas: apesar da Proposta de Emenda Constitucional, sancionada somente em 2015, sobre
os direitos das empregadas domésticas - em sua imensa maioria mulheres negras -, na prática,
pouca coisa mudou e tais condições perpetuam até os dias atuais78.
Exatamente por conhecer essas questões que atravessam a história e os corpos das
mulheres negras é que bell hooks teceu duras críticas ao livro A mística feminina, de Friedan,
destacando, propositalmente, uma definição da Rita Mae Brown sobre a importância de classe
para esse debate, já que é importante deixar evidente que classe é como a sociedade se organiza,
como se dão os lugares e as relações.
A classe é muito mais do que a definição dada por Marx da relação com os
meios de produção. A classe envolve o nosso comportamento, o que
consideramos os princípios básicos da vida. A nossa experiência (determinada
pela nossa classe) corrobora estes princípios: como somos ensinados a
comportar-nos, o que se espera de nós mesmos e de outros, o nosso conceito
de futuro, como entendemos os problemas e os resolvemos, como pensamos,
sentimos, agimos. São esses padrões de comportamento que as mulheres da
classe média se recusam a reconhecer, apesar de estarem perfeitamente
dispostas a aceitar as classes em termos marxistas, um belo truque que lhes
permite efetivamente não ter de lidar com o comportamento de classes nem
ter de mudar esse comportamento em si mesmas. São estes padrões de
comportamento que têm de ser reconhecidos, compreendidos e alterados
(BROWN, 1974 apud HOOKS, 1984, p.3).
78
Na tentativa de avançar no campo dos direitos, em abril de 2015, a então presidenta da República Dilma Rousseff
(PT) assinou a Emenda Constitucional que ampliava os direitos trabalhistas das empregadas domésticas. O
projeto tramitava desde abril de 2013 no Congresso Nacional. “De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra
por Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,3 milhões de brasileiras
trabalham em atividades domésticas. Do total, apenas 1,5 milhão está registrada com carteira assinada e 2,5
milhões atuam como diarista, sem vínculo empregatício. Porém, se a formalização do trabalho doméstico está
prevista na PEC, dentro dos lares não foi acatado pelos contratantes. “Nem todos os patrões respeitam a lei, tanto
que a informalidade é muito alta no trabalho doméstico. Temos apenas 32% de trabalhadoras domésticas com
carteira assinada. Também tem a questão da jornada de trabalho, que os patrões falam que a lei da casa deles eles
que fazem, então eles não mudam o horário de trabalho”, acusa Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional
das Trabalhadoras Domésticas (CARVALHO, 2019).
177
não acontece de forma igual para as mulheres, por isso mesmo, questões de classe, raça,
religião, sexualidade e gênero irão determinar “em que medida o sexismo será uma força
opressora na vida de cada mulher” (HOOKS, 1984, p.2). O sexismo é um sistema de domínio,
mas não de maneira igual para todas as mulheres: ele “nunca determinou de forma absoluta o
destino de todas as mulheres nesta sociedade” (HOOKS, 1984, p.4), a linha entre opressor e
oprimido pode estar atravessada por outros determinantes. Então, partiremos da ideia da
possibilidade de escolhas como determinando a diferença entre opressor e oprimido, de tal
modo que “ser oprimido significa a ausência de escolhas” (Ibidem, grifos da autora.). Logo, a
captura dos sujeitos, via opressão, vai depender do lugar de privilégio em que cada pessoa está,
o que produz uma leitura sobre esse domínio completamente diferente, dependendo das
posições no discurso. A aliança entre racismo, capitalismo e patriarcado pode produzir torções
de realidades que são coexistentes e dependentes, desse modo:
Por essa via, o capitalismo, que é plástico e adapta qualquer coisa que possa transformar
em mercadoria, cooptou algumas feministas de vanguarda burguesa, justificando a crítica de
que “A diferença entre os sexos não é se se tem ou não um pênis, é se se faz ou não parte de
uma economia fálica masculina” (FOUQUE, s.d. apud HOOKS, 1984, p.6), marcando assim
um ponto de basta: dentre tantos caminhos que separam o feminismo da igualdade, esse que se
alia ao capitalismo e que não questiona a continuidade dessa lógica é diferente do feminismo
que questiona a lógica em si, interrogando as epistemologias hegemônicas, propondo outros
pontos de partida.
Sem dúvida, essa complexidade que entrelaça e intersecciona mais de uma condição de
dominação como ponto de exploração de algumas mulheres faz com que Davis proponha o
feminismo e o abolicionismo como teorias e práticas do século XXI. Em conferência pública,
na Universidade de Chicago, em maio de 2013, ela vai pontuar como,
Advertimos, mais uma vez, que não se trata de fazer uso do multiculturalismo como
forma de dar conta dessa questão. Como diria a crítica de Laclau (1996), não se trata de cair
num grande guarda-chuva que tenta criar uma identidade a partir das diferenças, já que essa
ideia cairia no conceito de diferença em relação a outra coisa, por vezes reforçando o binarismo
179
Para concluir, esse percurso mostra como as condições impostas criam subordinação e
dominação, realizadas via discursos, e retomo brevemente a importância que hooks destina à
linguagem, bem como a apropriação dela para subverter, produzir outra coisa. Portanto,
[...] nomear tem a ver com empoderamento — além de ser também uma fonte
de tremendo prazer. [...] É uma forma de reconhecer a força vital em todo
objeto. Frequentemente, os nomes que dou às coisas e às pessoas estão
relacionados com o meu passado. São maneiras de preservar e honrar aspectos
daquele passado. Falar sobre reconhecimento ancestral, dentro das tradições
africanas, é uma maneira de falar sobre como aprendemos com os povos que
podemos nunca ter conhecido, mas que vivem em nós novamente (HOOKS,
2019, p. 36).
e culturas que também são operados via linguagem, como apagamento de qualquer traço de
humanidade que impossibilite deslocar esses seres esvaziados de seus traços do lugar de
objetificação, nessa lógica na qual somente um pode ser sujeito, condenando o outro à posição
objetificada. Daí a importância de se apropriar da língua e brincar com ela, fazendo do saber
que está do lado do ‘outro/escravo’, um savoir-faire, deixando cair o lugar do mestre.
Assim, ocupar a fala é se apropriar das construções de novas narrativas, que resgatam
símbolos de culturas que foram destruídas pela modernidade:
Nas tradições afroindígenas não percebem o ser humano como cindido, e sim
como resultado da interdependência entre todas as coisas. A corporeidade,
para esses saberes, [...] envolve dimensões afetivas, intelectuais, sociais e
espirituais do ser humano (SIMAS, 2022, p.43).
Assim ocupar a fala é algo que se faz com o corpo, é um ato, é resgatar saberes, é
recuperar aquilo que a língua mostra, a corporeidade em cena, como modo de inventar novos
sentidos; é se apropriar do que se tem, para operar um saber-fazer. Para hooks, a cultura negra,
quando compreende o seu valor, muda as posições no jogo, altera lugares e valoriza aquilo que
a hegemonia vilipendia. Simas (2022) localiza o modo como isso também é possível na cultura,
quando, por exemplo, o hip-hop reafirma os traços, apagados socialmente, advindos da cultura
negra.
Finalizo, então, este Capítulo com um exemplo de como a língua e seu uso, a partir de
outras concordâncias, aparecem para reforçar elementos de identidade, uma incorporação das
línguas que foram apagadas, como uso desse recurso – não por não ter escolaridade – mas
fazendo uso de elementos que fazem parte da sua identidade, como marca de resistência. Estilo
e apropriação da subversão à dominação, como movimento emancipatório. Um outro modo de
inverter lugares. Assim, quando Criolo canta:
Cença aqui patrão, aqui é a lei do cão, quem sorri por aqui, quer ver tu cair
É, é... justo é Deus, o homem não, ouse me julgá, tente a sorte fi (CRIOLO,
2010).
Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação incorreta das
palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua como um local
de resistência. [...] uma maneira que rompeu o uso e o significado padrões, de
tal modo que o povo branco poderia frequentemente não entender a fala
negra... (HOOKS, 2008, p.860).
Estaria aí a potência do giro discursivo, operado por Gonzalez (2020), quando resgata
os valores apagados pelo colonialismo, orientando-se a partir de outras epistemologias fora das
rédeas da modernidade, para, fazendo política em ato, ocupar o lugar de mulher negra no
contexto brasileiro, para daí, incluindo uma apropriação possível dos saberes apagados de sua
ancestralidade, em acordo com a epistemologia psicanalítica dos discursos e sua experiência de
análise, propor aquilo que produziria o pretuguês?
182
79
Em uma época em que ainda era tabu ser jogador de futebol negro no Brasil.
183
Acontece que justamente por ser quase a caçula de uma família grande, sua diferença
de idade comparada aos irmãos mais velhos era distante e, por isso, pôde contar com a ajuda
dos seus irmãos, em especial do seu irmão Jaime, que a incentivava a estudar. Somado a esse
apoio, há outro fato que contribui para o seu acesso a uma boa escolarização. Explico: quando
ela nasceu, sua mãe foi ama de leite de uma criança recém-nascida de uma família italiana, cuja
mãe havia morrido no parto, assim, nas palavras de Gonzalez, “[...] essa menina que havia
nascido na mesma época que eu. Nós fizemos amizade e, quando ela foi para o colégio, os pais
dessa minha amiguinha se ofereceram para pagar a escola para mim” (GONZALEZ, 2020, p.
319).
Quando chegou ao Rio de Janeiro, foi estudar no Colégio Dom Pedro II, fundado em
1837 e, segundo a professora e historiadora Flávia Rios (2010), uma das escolas mais antigas e
tradicionais da cidade do Rio. Frequentou, assim, um colégio bastante elitizado - ainda que
escola pública -, que formava a elite do pensamento, na década de 1950, ocasião em que o Rio
de Janeiro ainda era a capital do Brasil.
Assim, teve acesso a uma boa educação desde a pré-escola, ainda em Minas Gerais, e
depois no ensino primário e secundário, em um dos principais colégios do país. Aqui vale uma
breve observação: como seria o dia a dia da Lélia Gonzalez, criança e adolescente, nesses
espaços, considerando que, provavelmente, fosse a única ou quase única criança negra em um
colégio de ensino público, mas altamente elitizado, no Rio de Janeiro daquela época?
Certa vez, em uma entrevista em que contava um pouco da sua infância e de como o
racismo aparecia naquela época, ela vai dizer: “A única saída que eu encontrei para superar esse
problema foi ser a primeira aluna da sala. É aquela história, ela é pretinha mas é inteligente”
(GONZALEZ, 2020, p. 319). No entanto, ser a primeira da sala, não a poupou de ter que
trabalhar durante um período quando nova, segundo ela mesma disse: “[...] quando criança, eu
fui babá de filhinho de madame, você sabe que a criança negra começa a trabalhar muito cedo”
(Ibidem). Ela conta que, nessa ocasião, um diretor do clube Flamengo queria que ela fosse
empregada da casa, juntamente com o trabalho de babá, e que ela teve que brigar muito para
que isso não acontecesse.
Seguiu sendo muito estudiosa, iniciou a vida acadêmica em 1958, cursou Antropologia
184
(GONZALEZ, 2020, p.20), falas que ilustram como se instala, na prática, o embranquecimento
e a transmissão de tal ideologia.
Há muitas diferenças entre como se constitui o racismo no Brasil e em outros lugares
do mundo, Gonzalez sabe disso e, por isso mesmo, torna-se umas das principais autoras que
criticam a falsa ideia de democracia racial no Brasil, mas, antes de incluir uma análise de
Gonzalez sobre a tal democracia racial, vale pensar incluir o que hooks tem a dizer sobre o
ensino nas escolas e a construção de uma ideologia racista e colonialista:
[...] fiquei muito feliz quando você (Lázaro Ramos) falou sobre Educação.
Vou contar uma história que marcou a minha vida, as freiras contavam a
seguinte história: que Jesus – eu demorei muito para aceitar o tal de Jesus -,
que Deus, criou um lago, rio e se banhar na água abençoada daquele maldito
rio... Aí, as pessoas que são brancas é porque eram trabalhadoras e
inteligentes, e chegaram nesse rio, tomaram banho e ficaram brancos. Nós,
como negros, somos preguiçosos. E não é verdade. Esse país só vive hoje
porque meus antepassados deram toda a condição. Então, nós, como negros
preguiçosos, chegamos no final dos banhos e no rio só tinha lama. E é por isso
80
Diva Guimarães virou celebridade em Paraty, ofuscando até os escritores convidados da Flip, após dar
um emocionante depoimento sobre racismo, na mesa que uniu o ator Lázaro Ramos e a jornalista Joana Gorjão
Henriques, para discutir o tema (BRANDÃO, 2017).
186
que só nossas palmas das mãos claras e a sola dos pés claros. Nós só
conseguimos tocar isso. Isso ela explicava [as freiras] e isso não é verdade, se
não teríamos sobrevivido, eu sou uma sobrevivente pela Educação (FLIP,
2017).
Trago esse depoimento para delinear como era o ensino no Brasil, naquela época, e
como esses tipos de fala estavam presentes nas escolas, tanto quanto em outros aparelhos
ideológicos do Estado. Para Gonzalez,
casamento, mas sim que se tratava de uma “concubinagem”81. Quando souberam que, de fato,
os dois estavam oficialmente casados, os familiares dele passaram a exercer assédio moral
contra ambos, proferindo ofensas e pressões das mais diversas formas para o casal. O que Lélia
e seus amigos contam é que o marido não suportou “todo o processo de discriminação da família
dele” (GONZALEZ, 2020, p.287) e, por fim, ele se suicidou. Eles ficaram juntos até o momento
da sua trágica morte. E, em homenagem ao marido, ela resolve manter o sobrenome.
Contudo, a partir desse acontecimento traumático, Gonzalez percebe todo o seu
processo de alienação ao discurso dominante, todo embranquecimento pelo qual ela tinha
passado, percebendo a necessidade de superação dessa ideologia. Nas palavras de Gonzalez:
O sujeito negro torna-se, então, tela de projeção daquilo que o sujeito branco
teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ou o ladrão violenta/o, a/o
bandida/o indolente e maliciosa/o. Tais aspectos desonrosos cuja intensidade
causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como
um meio de escapar dos mesmos.
Em termos psicanalíticos, isso permite que os sentimentos positivos em relação
81
“[...] porque mulher negra não se casa legalmente com homem branco; é uma mistura de concubinato com
sacanagem, em última instância” (GONZALEZ, 2020, p.287).
188
Por isso, Fanon destaca que o que é frequentemente chamado de “alma negra é uma
construção do homem branco” (FANON, 2008, p.39), ou seja, não é da negritude que se trata,
e sim da fantasia do branco, “porque o negro se situa de modo tão característico diante da
linguagem europeia” (Ibidem, p.40), pois no “racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e
violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente ter82” (Ibidem,
p.39).
O que nos faz lembrar do samba Identidade, de Jorge Aragão (1992), para exemplificar
os resquícios da ideologia escravocrata atualizados no presente - o elevador em prédios, por
exemplo, marcando os acessos e os lugares diferentes, para aqueles considerados sujeitos e para
os assujeitados, subordinados -, ao mesmo tempo, o samba aparece como uma resposta, por
meio da arte, a esse processo colonial de embranquecimento:
Elevador é quase um templo, Exemplo pra minar teu sono/ Sai desse
compromisso/ Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai/ Quem cede
a vez não quer vitória/ Somos herança da memória/ Temos a cor da noite ‘Filhos
de todo açoite / Fato real da nossa história/ Se preto de alma branca, pra você/
É o exemplo da dignidade/ Não nos ajuda, só nos faz sofrer / Nem resgata nossa
identidade / Elevador é quase um templo / Exemplo pra minar teu sonho/ Sai
desse compromisso / Não vai no de serviço / Se o social tem dono, não vai
(ARAGÃO, 1992).
Nesse sentido, conversando Kilomba e Fanon com o samba de Jorge Aragão, Gonzalez
vai afirmar que:
82
No dia 20 de setembro de 2019, uma criança de 8 anos, chamada Ágatha Félix foi morta com um tiro nas costas
por policiais na cidade do Rio de Janeiro. O avô da criança, em um vídeo que circulou na internet, dizia que ela
era uma criança que estudava Inglês, fazia ballet, símbolos da cultura branca, ressaltando os valores atribuídos à
cultura branca, em uma tentativa de reconhecimento. Em 2018, o garoto Marcos Vinícius também foi morto pela
polícia e, segundo relato da sua mãe, a trabalhadora doméstica Bruna Silva, o filho, que ficou lúcido durante um
tempo mesmo baleado, “Ele disse: ‘Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Foi o blindado,
mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?’”, recorda Bruna. Ela ainda acrescenta: “Dizem que minha
comunidade é violenta. Mas a minha comunidade não é violenta, ela é muito boa. É a operação que, quando vai
lá, vai com muita truculência” (BETIM, 2018). Incluo esses dois casos, para exemplificar como o discurso do
colonizador se presentifica; dois exemplos trágicos que ilustram a ideologia do embranquecimento no Brasil.
189
restitui uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa
verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui.
[...] Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala
através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é
sacar esse jogo aí das duas, também chamado dialética. E, no que se refere à
gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser
esquecida, tirada de cena (GONZALEZ, 2020, p.78-79).
Desse modo, ela segue na direção de resgatar sua memória e construir uma outra
consciência, fora da ideologia que edifica o embranquecimento. Depois da morte do seu marido,
aproxima-se cada vez mais dos espaços de construção da cultura negra, incluindo as
agremiações de escolas de samba, identificando e valorizando os saberes presentes nesses
espaços, sem deixar de olhar para as contradições. Ela também se engaja em movimentos
sociais, bem como propõe e promove debates filosóficos sobre a pauta racial, em sua casa.
Enquanto isso, o Brasil sofria o golpe militar. Assim, neste período crítico, a cultura brasileira
passa a despertar cada vez mais o interesse intelectual de Gonzalez, especialmente o que diz
respeito às questões que envolvem gênero e raça e, por consequência, desenvolve sua
participação no campo político.
Ainda sobre sua vida acadêmica, depois desses vários episódios em que compreende
como o racismo cotidiano marcou sua vida, Gonzalez modifica os rumos das suas pesquisas na
academia, trazendo para dentro da universidade os estudos relacionados a gênero e à raça, o
que, posteriormente, possibilitou que assumisse a coordenação de um Núcleo de Pesquisa em
Gênero e Etnia, na PUC-RJ, e, mais tardiamente, um ano antes do seu falecimento (em 1994),
ela se tornou chefe do Departamento de Sociologia e Política, também na PUC-RJ.
Entre esse momento em que Gonzalez se dá conta do processo ideológico pelo qual ela
estava capturada, até essa outra passagem como chefe do departamento de uma universidade
amplamente reconhecida, passaram-se quase trinta anos: essa observação presentifica o longo
caminho que foi atravessado para que Lélia ocupasse um outro lugar.
No início, foi fundamental reconhecer o lugar destinado às mulheres colonizadas na
lógica discursiva que estrutura as relações sociais; desse modo, Gonzalez passa a se perguntar
qual o lugar da mulher negra na cultura brasileira, e encontra nessa interrogação caminhos que
apontam para a objetificação e a inferiorização das mulheres negras no discurso brasileiro: é
como Outro que a mulher é colocada, aquela que deve servir ao sujeito que estabelece e a
190
discursividade que organiza os lugares em que cada um/uma pode ou não ocupar; desse modo,
o lugar destinado às mulheres negras é um lugar designado à subordinação e ao silenciamento.
O retrato da “Escrava Anastácia” é uma das imagens mais emblemáticas da função do
apagamento e do silenciamento do povo negro, em território brasileiro. Há diversos relatos
sobre a mulher retratada nessa obra.
Sem história oficial, alguns dizem que Anastácia era filha de uma família real
Kimbundo, nascida na Angola, sequestrada e levada para a Bahia e
escravizada por uma família portuguesa. [...] Outros alegam que ela foi uma
princesa Nagô/Yorubá antes de ser capturada por europeus traficantes de
pessoas e trazida ao Brasil na condição de escravizada. Seu nome africano é
desconhecido. As razões dadas para esse castigo variam: alguns relatam seu
ativismo político no auxílio de fugas (KILOMBA, 2019, p.35).
83
O retrato de Anastácia foi feito por um francês de 27 anos, chamado Jacques Arago, que se juntou a uma
“expedição científica” pelo Brasil, como desenhista, entre dezembro de 1817 e janeiro de 1818. Há outros desenhos
de máscaras cobrindo o rosto inteiro de escravizadas/os, somente com dois furos para os olhos; estas eram usadas
para prevenir o ato de comer terra, uma prática entre escravizadas/os africanas/os, para cometer suicídio. Na
segunda metade do século XX, a figura de Anastácia começou a se tornar símbolo da brutalidade da escravidão e
seu contínuo legado do racismo. Ela se tornou uma figura política e religiosa importante em torno do mundo
africano e afrodiaspórico, representando a resistência histórica desses povos. A primeira veneração de larga escala
foi em 1967, quando o curador do Museu do Negro do Rio de Janeiro erigiu uma exposição para honrar o 80º
aniversário da abolição da escravização no Brasil. Anastácia também é comumente vista como uma santa dos
Pretos Velhos, diretamente relacionada ao Orixá Oxalá ou Obatalá - orixá da paz, da serenidade e da sabedoria - e
objeto de devoção no Candomblé e na Umbanda (HANDLER; HAYES, 2009 apud KILOMBA, 2019, p.36).
191
Podemos pensar que o silenciamento imposto contra Anastácia aparece como condição
para o funcionamento da lógica colonizadora: se ela foi princesa ou não, nunca saberemos, no
entanto, podemos deduzir, pela máscara que impõe o silenciamento e impede o acesso à própria
boca, que esta mulher representaria uma ameaça ao bom funcionamento do sistema
escravocrata. Afinal, seu ativismo político, em ato, organizava a luta, ocupava a linguagem,
fazendo circular os signos que ela carregava da/na sua língua, livre do atravessamento colonial,
atrapalhando, assim, o bom funcionamento da mestria colonizadora.
Não é curioso que o dito imaginário popular aponte que Anastácia recebeu esse castigo
porque era muito bonita, por isso, chamou a atenção do senhor, mas como ela era insubordinada
levou tal castigo. Ora, ora, essa não é a versão original do colonizador? Criando esse estereótipo
que destina as mulheres negras a um lugar servil e sexualizado? E não como uma figura capaz
de se organizar politicamente?
Na versão hegemônica, as mulheres, principalmente as racializadas, estão fora da
condição de serem sujeitos, assim, estão destinadas a ocupar o lugar do Outro; é para isso que
serve a subalternização e o silenciamento, para que elas não possam ocupar outros lugares, já
que ocupar tais lugares, de agenciamento na lógica discursiva, alteraria toda estrutura.
Para Lélia Gonzalez (2020), quando falamos em mulheres negras no Brasil, “trata-se
das noções de mulata, doméstica e mãe preta” (p.76). “Que a mulher negra, ao exercer a
profissão de mulata, por eles inventada, é apresentada como “produto de exportação” (p.181).
Diante do exposto, Gonzalez lança a seguinte questão:
Cumé que a gente fica? [...] Como a mulher negra é situada no seu discurso?
[...] Falamos da mulata, ainda que de passagem, não mais como uma noção de
carácter étnico, mas com uma profissão. [...] por que o negro é isso que a
lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós sabemos)
domesticar? (GONZALEZ, 1981/2020, p. 75-77).
Isso aponta para a importância de compreender um pouco mais como esses processos
de domesticação, silenciamento e subordinação são operados, desse modo, gostaríamos de
acompanhar como Spivak (1985/2014) trabalha essa questão.
Gayatri Spivak é uma mulher indiana, pensadora crítica e autora de um dos principais
192
lugar ainda mais espinhoso, mais periférico, por incluir toda a problemática que é operada pelas
questões de gênero no discurso hegemônico, que invalida a história, memória e o lugar das
mulheres nas periferias do mundo, nessa condição imposta pelo processo colonial. Desse modo,
a autora destaca e trabalha o duplo deslocamento que o sistema hegemônico opera. Vale situar
que, ao escrever esse texto, ela contextualiza um termo muito usado na década de 1980, que
classificava e separava o mundo em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, e é nesse contexto
que desenvolve as diversas questões que orientam e marcam o lugar do subalternizado na
cultura vigente.
Pode o subalterno falar? O que a elite deve fazer para estar atenta à construção
contínua do subalterno? A questão da “mulher” parece ser a mais problemática
nesse contexto. Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher, está
envolvida de três maneiras. Se, no entanto, essa formulação é deslocada do
contexto do Primeiro Mundo para o contexto pós-colonial (que não é idêntico
ao do Terceiro Mundo), a condição de ser “negra” ou “de cor” perde o
significado persuasivo.
[...] Devemos acolher também toda recuperação de informação em áreas
silenciadas, como está ocorrendo na antropologia, na ciência política, na
história e na sociologia. No entanto, a pressuposição e a construção de uma
consciência ou de um sujeito sustentam tal trabalho e irá, a longo prazo, se
unir ao trabalho de constituição do sujeito imperialista, mesclando a violência
epistêmica com o avanço do conhecimento e da civilização. E a mulher
subalterna continuará tão muda como sempre esteve (SPIVAK, 1985/2014,
p.110-112).
atravessa os sujeitos de maneira geral, mas saber que nenhum sujeito que está presente no laço
escapa, e que as mulheres e os sujeitos racializados são os que mais sofrem seus efeitos não
exclui considerar as particularidades de como isso se opera, de como o discurso instaura essa
lógica, criando especificidades mais nocivas para uns do que para outros.
Todos somos atravessados pelo racismo e sexismo estrutural, afinal ele se inscreve pela
cultura, entretanto o lugar que cada um ocupa no discurso nunca será o mesmo, tudo vai
depender do lugar ao qual será destinado na discursividade que monta a lógica de
reconhecimento, no discurso de mestria, o sujeito – suposto – universal será a medida para
chancelar quem pode ou não ser sujeito e quem ocupará o lugar do Outro.
Enfim, depois dessa pequena reflexão sobre Pode o subalterno falar?, destacando as
mulheres periféricas como aquelas que são historicamente subalternizadas, nosso objetivo é ir
adiante, tomando a ideologia crítica como uma estratégia para a construção de uma outra
consciência, bem como de um outro lugar para tais sujeitos na estrutura social.
Como investigamos, os estudos sociais acadêmicos são eurocentrados, por isso o acesso
a pensadoras como Lélia Gonzalez é negligenciado, a hegemonia opera uma espécie de morte
epistêmica, para apagar a intelectualidade negra, precisamente para perpetuar o modo como a
história é contada, operando a manutenção da hegemonia dominante; de outro modo intelectuais
como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e tantos outros poderiam modificar como a
história brasileira é contada84. Como se disse, rotineiramente e não à toa, pensadoras como
84
Por exemplo, o Dia da Consciência Negra não tinha esse nome e era comemorado em maio, na data em que a
princesa Isabel assina a Lei Áurea, como se esse ato fosse o que de fato mudou as coordenadas do processo de
escravização. Essa é a forma com que ainda é contada a história em diversas escolas, quando, na verdade, foi um
processo de luta, e a classe dominante, naquele período, fez o que pode para manter o regime, e só quando essa
prática se tornou inviável é que a lei foi assinada, sendo que o Brasil foi um dos últimos países a, oficialmente,
abolir a escravidão. Porém, a partir do momento em que pesquisadores que não fazem parte da classe dominante
passam a pesquisar a história, outras narrativas passam a circular. Por isso, lá na década de 1970, os intelectuais
negros resgatam a história de Zumbi e, anos depois, modifica-se o mês da Consciência Negra, em função da
simbologia de Zumbi dos Palmares. A data de 20 de novembro passa a ser celebrada, ainda nos anos 1970, pelos
movimentos, e é somente em 2011 que “É instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser
195
Gonzalez não têm apoio editorial85 nem circulação de suas obras, como acontece com outros
nomes. Essa é uma estratégia da ideologia colonial, conforme disseram Boaventura de Sousa
Santos (2009) e Aníbal Quijano (2009). Por isso, embora Gonzalez seja umas das principais
sociólogas da cultura brasileira, reconhecida internacionalmente, suas obras circularam pouco
nas academias brasileiras, nas últimas décadas.
Neste momento, gostaria de destacar uma fala da professora, filósofa socialista e ativista
do feminismo negro e interseccional, Angela Davis. Na ocasião em que esteve no Brasil, para
participar do seminário Democracia em colapso?86, ela se dizia surpresa com o tanto de pessoas
que foram escutá-la, no auditório do Sesc Pinheiros; estava impressionada porque o teatro que
comporta 1010 lugares estava completamente ocupado e havia a transmissão simultânea para
mais centenas de pessoas que ficaram do lado de fora, acompanhando a transmissão via telão.
No evento, ao ser questionada sobre a condição das mulheres negras, Angela Davis diz que não
entendia por que dirigiam essa questão para ela no Brasil, nas palavras dela: “Por que vocês
precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do
que vocês comigo” (DAVIS, 2019)87.
Figura 12 – Lélia Gonzalez e Angela Davis, em 1984.
comemorado no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares”. É o que diz a Lei
12.519, de 10 de novembro de 2011, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff. Um dos poucos feriados
nacionais que não tem origem católica.
85
Aproveito para destacar como os textos de Lélia Gonzalez só foram publicados por uma editora com ampla
circulação somente em 2020, até então seus textos circulavam com muita dificuldade, apenas entre os movimentos.
86
Evento que reuniu diversos pensadores e pensadoras em São Paulo, organizado pela Boitempo, em parceria com
o Sesc São Paulo, entre os dias 15 e 19 de outubro de 2019.
87
Resumiu Angela Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019, num indicativo
de que os brasileiros precisam reconhecer mais a sua própria pensadora, uma das pioneiras nas discussões sobre a
relação entre gênero, classe e raça no mundo.
196
5.6 Uma contingência trágica: o encontro com a Psicanálise e a abertura para novos
sentidos
A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel
198
Por consequência, esse novo olhar para a sua mãe lhe permitiu pensar e compreender o
povo brasileiro.
Daí em diante, Lélia Gonzalez passa a se aproximar e frequentar cada vez mais os
movimentos políticos, especialmente o movimento feminista – das mulheres negras –, e os
espaços promotores da cultura negra, tradições e memórias.
A importância das matrizes africanas é entendida como outra chave para pensar a
cultura. Sobre o candomblé ela vai dizer que “Não é misticismo, é outro código cultural,
misticismo é uma coisa do ocidente. O candomblé é uma coisa muito mais ecológica, você faz
comida, você faz oferenda, você vai pra floresta. Minha religiosidade está muito mais
africanizada do que ocidentalizada” (GONZALEZ, 2020, p.323).
Na condição de pensadora que valorizava o conhecimento da cultura negra, ela criou,
em 1976, o primeiro curso de Cultura Negra no Brasil, na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage (EAV) (BARRETOS, 2005). Para Lélia Gonzalez, o conceito de cultura deveria ser
pensado de maneira ampla e plural, visando à conscientização política. Nesse sentido, o curso
de Cultura Negra apresentava como os elementos da cultura africana poderiam auxiliar no
entendimento da formação histórica da cultura brasileira.
Os ensinamentos da cultura africana não criam uma dicotomia entre mente e corpo, entre
homem e mulher, inclusive a pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí vai dizer que é “o
199
colonizador que diferenciava os corpos masculinos e femininos e agia de acordo com tal
distinção”, uma vez que não existe gênero na cultura Oyó-Iorubá (OYĚWÙMÍ, 2021, p.21; p.
186). Uma outra crítica que podemos encontrar na autora nigeriana apresenta as diferenças
ancestrais em relação à cultura ocidental; uma dessas formas diferentes de estabelecer a cultura
se dá através do apagamento do corpo como forma de valorização da racionalidade na cultura
ocidental, um código cultural completamente diferente do candomblé, como dissemos há pouco
com Gonzalez. Ao contrário dessa organização dicotômica,
Ainda sobre as heranças culturais transmitidas pelos saberes africanos, Rufino (2019)
vai dizer que
Tudo isso para dizer que Gonzalez incorpora ao currículo oferecido pelo curso de
Cultura Negra, no Parque Laje, aulas práticas de dança afro-brasileira, capoeira e o
conhecimento das religiões de matriz africana, ampliando de maneira vasta as formas de pensar
a cultura, incorporando outras epistemologias, epistemologias de encruzilhada (RUFINO,
2019), visando à descolonização do pensamento.
Lélia Gonzalez não hierarquizava ações políticas e culturais. Segundo ela, ambas eram
relevantes para a transformação social. Em sua trajetória são abundantes as experiências e
colaborações com grupos culturais, artísticos e intelectuais. Em meados dos anos 1970, ela
colaborou com o Grêmio Recreativo de Arte Negra e com a Escola de Samba Quilombo, ao
lado do mestre Candeia88, e integrou o conselho consultivo da Diretoria do Departamento
Feminino do Granes Quilombo. Mais tarde, assessorou o cineasta Cacá Diegues em seu filme
88
O Granes Quilombo foi criado em 8 de dezembro de 1975 por Candeia e compositores como Nei Lopes e Wilson
Moreira. Eles não aceitavam o gigantismo das escolas de samba tradicionais, nas quais os sambistas estavam
perdendo a voz para pessoas estranhas ao meio (A PENSADORA É, 2020).
200
Todo esse encontro com a sua negritude junto às suas construções em análise
contribuíram para que Gonzalez promovesse encontros e debates sobre os mais diversos temas,
oferecendo sua casa como ponto de encontro. Essas reuniões ocorreram, inicialmente, com
amigos e lideranças dos movimentos, lembrando que, nesse período, o Brasil estava em plena
ditadura militar e qualquer reunião política configurava crime. Januário Garcia, amigo de Lélia
Gonzalez, narra as experiências nessas reuniões. Em entrevista para Barreto, ele vai dizer:
Flávia Rios (2021) destaca algumas das principais referências intelectuais de Gonzalez:
Simone de Beauvoir, Heleieth Safioti, W.E.B. Du Bois, Rose Marie Muraro, Beth Millan, MD.
Magno, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Albert Memmi, Frantz Fanon,
Carlos Hasenbalg, Alice Walker, Abdias do Nascimento, Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Também encontramos nos textos de Gonzalez referências a Marx e a Althusser.
De certo modo, esses e essas pensadores e pensadoras influenciaram na práxis política
de Lélia Gonzalez. Ela é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado contra
Discriminação e o Racismo (MNUCDR), entre 1978 e 1982, atualmente Movimento Negro
Unificado (MNU), marcando presença no ato público de fundação do MNU, realizado nas
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978, no contexto da ditadura
militar no Brasil.
89
Entrevista realizada com Januário Garcia, em 03 de julho de 2004.
201
Figura 14 - Benedita da Silva, então vereadora do Rio, e Lélia Gonzalez, em viagem a Nairóbi
(Quênia), em 1985.
Por ser uma liderança cada vez mais conhecida, sua visibilidade lhe rendeu a inclusão
de seu nome nos fichários do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS), órgão de
repressão criado pela ditadura militar: ela foi fichada mais de uma vez, sob a acusação de
recrutamento de adeptos à doutrina marxista e por seus apontamentos críticos sobre o mito da
democracia racial, somada, ainda, à sua práxis feminista e à participação junto ao movimento
203
negro, o que caracterizava enfrentamento ao sistema ditatorial que assolava o país durante o
período da ditadura militar brasileira (1964-1985), lembrando que, nesse período, estava
proibida qualquer organização por parte da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional,
(1967), artigo 39, parágrafo VI, determinava que era crime: “Incitar publicamente ao ódio ou à
discriminação racial”, de tal modo que denunciar o racismo era ir contra essa lei, portanto, expor
o mito da democracia racial representaria uma ameaça à ordem social.
Portanto, estava à frente das lutas pela democracia no país, mas alertando que não se
tratava de um processo de redemocratização e, sim, de instaurar uma democracia, já que: “para
nós negros, para nós índios, para nós mulheres, jamais houve democracia neste país. Então não
me venham me falar de redemocratização, porque para nós nunca houve democracia”
(GONZALEZ, 2020, p.237).
As experiências citadas até aqui foram fundamentais para a tomada de decisões sobre
os caminhos em que Gonzalez direcionaria suas pesquisas, bem como condicionaram suas
decisões sobre a forma como participaria politicamente.
Gonzalez participou da formação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, fazendo parte
do seu Diretório Nacional (GONZALEZ, 2020, p.373). Nessa ocasião, aproximou-se da
também militante e mulher negra Benedita da Silva. Gonzalez estava cada vez mais organizada
politicamente.
Em 1982, candidatou-se a deputada federal pela primeira vez, alcançando uma votação
expressiva, mas insuficiente para garantir a vaga na Câmara dos Deputados, faltaram apenas
oito votos para ser eleita, assim, naquela ocasião, tornou-se a primeira suplente e assessora de
Benedita da Silva, que garantira a sua eleição.
205
90
Como apresentado no Capítulo sobre a terceira onda do feminismo, o conceito interseccionalidade foi cunhado
somente em 1987, pela acadêmica, advogada e ativista Kimberlé Crenshaw.
206
Dito isso, Gonzalez vai afirmar que o único candidato realmente comprometido com as
questões raciais naquele pleito era Leonel Brizola e, justamente por isso, Brizola havia
conquistado ampla votação de pessoas negras no Rio de Janeiro: “Na campanha de 1982 para
o governo do estado do Rio de Janeiro, Brizola foi o único candidato que falava da questão
racial com tranquilidade, olhando-a nos olhos, e falando dela não como uma coisa dramática”
(GONZALEZ, 2020, p.236).
Assim, por compreender que o Partido dos Trabalhadores não entendia as questões
ideológicas que atravessam o racismo, reduzindo o entendimento das questões raciais
unicamente a consequências econômicas, ou seja, pensando exclusivamente as consequências
apresentadas pelo racismo e não suas causas, ela muda de partido e se filia ao PDT, que, na
época, tinha Abdias do Nascimento, Darcy Ribeiro, além do já citado Leonel Brizola. Em 1986,
candidata-se novamente, agora como deputada estadual, e, mais uma vez, alcança votação
expressiva, mas insuficiente para ser eleita, tornando-se novamente suplente na Câmara dos
Deputados. Mesmo sem o cargo de deputada, participa ativamente dos diversos espaços
políticos institucionais, despontando como figura importante em comissões para a construção
do processo democrático brasileiro.
Com a companheira Benedita da Silva, participa de diversas reuniões e comissões na
criação do que, posteriormente, estabeleceu a Constituição da República Federativa do Brasil
(1988). Em reunião da subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes [na
207
91
Retomaremos essa questão em breve, quando articularmos essa experiência e os giros discursivos em Lélia
Gonzalez.
208
92
“[...] é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o T pelo D para, aí sim, nomear o
nosso país com todas as letras: América Ladina (cuja neurose cultural tem no racismo o seu sintoma por
excelência) (GONZALEZ, 2020, p.151, grifos da autora).
209
daquele território. Vale lembrar que vem da Martinica um dos maiores pensadores sobre a
resistência e a luta referente às pautas raciais, Franz Fanon, que foi uma referência teórica para
Gonzalez. Assim como ela, Fanon era um intelectual importante e um militante ferrenho no
combate pela libertação. Para Fanon, a libertação não deveria ser apenas uma luta nacional, era
preciso libertar a humanidade do racismo cotidiano; em sua construção teórica, demonstrou que
o processo colonial estava intimamente ligado ao racismo cotidiano, assim afirmando que é
preciso descolonizar as mentes tanto quanto os corpos e os países (FAUSTINO, 2018).
Gonzalez também esteve no continente africano, em diversos momentos, aprofundando
seu conhecimento sobre os saberes produzidos pelas várias culturas presentes naquele
continente, estabelecendo várias pontes, intercâmbios culturais, ideários críticos, bem como
trocas de produção teórica e atuação política, articulando intercâmbios interamericanos e trocas
continentais.
Ela tinha uma posição crítica em relação ao pensamento eurocentrado, entretanto não
deixava de lado referências importantes do continente europeu - como já mencionado, Gonzalez
inspirou-se na leitura de O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, que por sua vez era
amiga de Fanon, sendo possível encontrar na produção intelectual de ambos os autores pontos
em comum sobre a outrificação do negro, em Pele negra, máscaras brancas (1952/2008) para
Fanon, e da outrificação das mulheres para Beauvoir: as entrelinhas de ambos os textos mostram
que havia uma troca intelectual importante entre os dois.
Lélia Gonzalez também se aproximava da teoria marxiana, somando às questões de
gênero e raça a leitura sobre a luta de classes proposta por Marx, bem como encontrou em Lacan
instrumentos para uma leitura epistemológica que inclui as questões referentes à vida psíquica
e à dimensão inconsciente como chaves para pensar os temas sociais e políticos que constituem
os laços sociais, mostrando-se uma referência que extrapolou o território nacional.
A maior parte das suas publicações datam do período de 1970 a 1990, quase duas
décadas de dedicação ao estudo sobre a cultura brasileira, bem como sobre as questões
referentes às mulheres negras; pesquisadora sobre o Brasil, sem estar dissociada dos debates do
movimento negro internacional (BARRETO, 2018).
Nesse sentido, por mais genial que antropóloga, historiadora, teórica da Psicanálise
fosse, isso não impediria que o discurso vigente a colocasse em lugar de subalternidade, por
isso o não reconhecimento dos seus saberes? Ou será que tal apagamento epistemológico
instaura-se justamente para impossibilitar qualquer chance de giro, de alteração na estrutura
vigente?
210
Para bell hooks, a passagem de objeto para sujeito é o que marca uma passagem política
(KILOMBA, 2019, p.28).
É daí que surge a categoria de “Amefricanidade. Exatamente porque ela nos permite
ultrapassar limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas
para melhor entendimento dessa parte do mundo onde ela se manifesta” (GONZALEZ, 2020,
p.151).
O segundo conceito-chave em sua obra é o racismo enquanto uma sintomática da cultura
brasileira que permitiu a invenção de um novo significante, o pretuguês - que, novamente, não
se trata somente de um conceito teórico, mas de uma práxis, já que podemos incluir aí a
dimensão de ato e a produção de saber-fazer com isso.
Esse segundo ponto desenvolveremos meticulosamente, já que a tese sobre uma virada
discursiva operada por Gonzalez pode ser encontrada a partir dessa construção que a autora
promove – tanto pela maneira com que apresenta suas questões e teses, como na forma em que
promove alterações na lógica discursiva, ocupando o lugar de agente no discurso.
Finalmente, podemos retomar a questão trabalhada por Gonzalez sobre como a mulher
negra é situada no discurso (GONZALEZ, 1984/2020).
Inicio com uma epígrafe de Gonzalez, que, como ela mesma indica: “diz muito além do
que ela conta” (1981/2020):
até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto na mesa. Mas
a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega
prá cá, chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais
discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com
a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá responder uma
pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a
reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava
armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá
bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir
discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com
razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a
gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já́ se
viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na
maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve
uma hora que não deu prá aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e
mal-educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de
um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a
festa acabou em briga...
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se
não tivesse dado com a língua nos dentes... Agora tá queimada entre os
brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se
comportar? Não é à toa que eles vivem dizendo que ‘preto quando não caga
na entrada, caga na saída’... (GONZALEZ, 1981/2020, p.75-76).
A longa epígrafe revela muito do que foi trabalhado até este momento da tese.
Destacamos: os lugares de quem pode falar e quem só pode ser falado e o racismo transvestido
de cordialidade, que convida para sentar-se junto à mesa, mas na hora do vamos ver, os
dominantes não querem se movimentar nem sair do lugar, para abrir espaço para os supostos
convidados se acomodarem, destinando esses outros a se sentarem atrás deles. Esse, afinal, é o
jeitinho brasileiro de disfarçar o racismo, gerando um duplo aspecto: por um lado, o processo
de identificação com o dominado, em busca de um reconhecimento que não se efetua; por outro,
tem algo que escapa, a neguinha que arma uma quizumba, o criolo que não se subordina,
fazendo aparecer a raiva dos brancos...
Com Fanon (2008), ela pôde pensar os aspectos identificatórios que produzem as
máscaras brancas, a identificação do dominado em busca de reconhecimento. Acontece que tem
certas peculiaridades no contexto brasileiro que produziram o mito da democracia brasileira
como uma ideologia amplamente aceita. Daí Gonzalez se pergunta: “Quais foram os processos
que teriam determinado sua construção? O que é que ela oculta, para além do que mostra?
Como a mulher negra é situada no seu discurso?” (GONZALEZ, 2020, p. 76). Em seguida,
responde: “O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo
212
fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós, o racismo se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira (GONZALEZ, 2020, p. 76, grifos da autora).
Os termos grifados pela autora, não são termos quaisquer, estão aí justamente para
apresentar como Gonzalez trabalha as questões apresentadas, a partir da teoria dos discursos do
ensino lacaniano.
Todas as questões políticas e pessoais apresentadas até aqui têm papel de mostrar as
construções que possibilitaram a Gonzalez formular o que há de sintomático na cultura, ao
mesmo tempo que geraram movimentos que teceram caminhos para mudanças naquilo que
aparece como problemática. Assim, Gonzalez modifica seus conceitos e suas posições, à
medida que é afetada por tudo aquilo que a cerca: “O fato é que, enquanto mulheres negras,
sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e
repetição dos modelos que nos eram oferecidos”, localizando que sempre havia um “resto que
desafia as explicações” (GONZALEZ, 2020, p.77). Então, ao se preocupar com o resto que fica
de fora, ela recorre à epistemologia da Psicanálise, que se interessa e se ocupa justamente disso
que fica de fora, isso que aparece como avesso. O processo analítico revela aquilo que o seu
avesso esconde.
Vale refletir que, no ano em que apresenta esse texto, ela já estava em análise há quase
vinte anos e que, durante esse período, apropriou-se da Psicanálise tanto no aspecto que inclui
suas construções em análise, como também se dedicando a pesquisar e estudar os conceitos
psicanalíticos. Assim, cita Miller, em sua Teoria da Alíngua (1976), para justificar a escolha
pelo suporte epistemológico que só foi possível com a descoberta freudiana, e também a
retomada lacaniana que possibilitou outros sentidos para abordar a linguagem e a língua.
Destarte, concomitantemente ao seu processo de análise, ela movimenta sua militância
em direção ao seu tornar-se mulher negra, através da ‘histerização discursiva’. Um uso do
discurso da histérica como estratégia para confrontar o discurso hegemônico; mas ela não para
por aí, vai adiante, toma o suporte epistemológico que dá lugar ao resto, justamente para inverter
lugares.
Se os negros estão “na lata do lixo da sociedade brasileira” (GONZALEZ, 2020, p.77),
que determina a lógica da dominação, via Psicanálise ela se propõe a ocupar esse lugar,
“assumimos a nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” (Ibidem, p.78). A
presente tese defende que, desse modo, ela faz semblante de objeto a, operando um giro no
sentido do discurso do analista, agenciando, como a, a modalidade discursiva capaz de produzir
um novo significante mestre. É esse o ponto a que pretendo chegar, ao final deste Capítulo.
213
Como trabalhamos no primeiro e no segundo Capítulos desta tese, antes de ser possível
ocupar o lugar de analista é necessário uma passagem pelo discurso da histérica; sendo assim,
antes de avançar até o ponto proposto para pensar quais os efeitos que Gonzalez provoca, ao
fazer semblante de objeto a, resultando na produção de um significante mestre novo - o
pretuguês -, daremos um giro no discurso da histérica, para articular como Gonzalez, via ação
política, construir um saber que lhe permite ocupar um lugar próprio na sociedade.
É com Fanon que Lélia Gonzalez vai pensar que a desalienação do negro está
diretamente ligada à tomada de consciência, consciência sobre o lugar em que o discurso o
coloca e de como esse lugar construído na cultura, via estrutura discursiva, sedimentado na
racialização e sexualização, produz lugares marcados por determinantes que condicionam
aspectos socioeconômicos, produz gozo em ambas as posições. Uma alienação generalizada,
não só do lado da pessoa que é racializada e sexualizada, como uma leitura desavisada pode
presumir: há uma alienação do/a negro/a na cena, mas devemos considerar que não é menos
alienado o homem branco que se acredita universal. O humano civilizado por excelência.
Lélia promove uma maneira de romper o silenciamento e desvela a verdades
imperativas, produtoras de dominação, inicialmente colocando o sintoma no lugar de agente,
versando posições e falas que invertem lugares, a partir desse desvelamento; assim, o
significante/significado negro, historicamente usado para destinar sentidos ruins,
desqualificantes, fora das coordenadas de um reconhecimento.
Ao se interrogar sobre sua divisão subjetiva e seu caminhar, construindo, via práxis
política, Gonzalez pôde construir uma outra narrativa sobre as marcas que fizeram parte da sua
história; assim, seus estudos, sua análise pessoal, convivências que remetem à sua
ancestralidade resultaram na apropriação dos valores culturais vindos do continente africano,
bem como em um certo saber fazer produzido pelos descendentes de africanos/as nascidos/as
no Brasil, de tal modo que essa palavra – negro – pôde e pode produzir novos sentidos, daí o
tornar-se negro como uma construção que permite saídas à lógica alienante posta pelo
colonizador. Ao mesmo tempo, Gonzalez era altamente crítica aos movimentos, como vimos
na epígrafe, mas, sem perder seu senso crítico, ela sustenta uma aposta na possibilidade de
modificação de lugares, assim como no reconhecimento dos saberes que foram historicamente
silenciados e apagados.
Em suas construções, vai consolidar que o modelo do negro brasileiro não estava nem
214
na África nem nos Estados Unidos, mas em sua própria experiência histórica, local, nas
resistências políticas, culturais, na lembrança do Quilombo dos Palmares. A autora não negava
a importância da África para nós, brasileiros, considerando as produções genuinamente
brasileiras a partir de elementos herdados do continente africano, é desse modo que ela se
apropria da macumba, do candomblé, do samba como produtores de saber sobre o cotidiano. É
aí que está o caminho possível para a construção de uma identidade brasileira, que possa driblar
a colonialidade, para daí, sim, ser possível que aquilo que cada sujeito tem de mais singular
possa aparecer.
Por isso, pensar a sintomática na cultura, valorizando o sintoma. Já que, nesse contexto
do discurso da histérica, “o sintoma é o que desvela, é o que aparece fazendo, por um lado,
oposição ao significante dominante. [...] se refere à relação entre mais-gozar e a renúncia ao
gozo, outra situação em que o sujeito se encontra alienado” (ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 164).
É que, além dos tipos de sintomas, há as formas de sintomas. Essas formas do sintoma impõem-
se a nosso exame, desde que saímos das concepções estreitamente psicológicas ou médicas do
sintoma. É notável que, a exemplo de Freud, Lacan não tenha jamais cedido à facilidade de
reduzir o sintoma a seus valores estritamente psicológicos. Acrescentaremos que não somente
ele não cede a essa tentação, mas que produz os elementos de doutrina que permitem
desvincular o sintoma das aderências médicas que se conservaram no próprio corpus freudiano.
Nessa perspectiva, é a teoria do discurso, como fundamento do laço social, que permite a
articulação do sintoma ao cultural e ao social (ASKOFARÉ, 2011, p.10).
Askofaré (1989/1997) inicia sua análise da categoria de sintoma social, advertindo a
não separação entre a realidade e o conceito de sintoma social, isso porque, como já vimos, a
ideologia, ou realidade de um momento histórico, não está separada do sintoma que tal período
histórico produz.
E, na contramão de uma ideologia racista que apresenta o povo negro como
acomodado, passivo ante sua escravização, Lélia apresenta as variações das formas
de resistência. Para sobreviver às dores e humilhações da escravidão, o povo
negro, além dos constantes levantes, lutas e fugas para os quilombos, também
construiu uma “resistência passiva”, como demonstram as figuras da “Mãe Preta”
e do “Pai João”. Nessa resistência, Lélia Gonzalez, apoiada pela teoria lacaniana
da linguagem como fator de humanização e subjetivação, desloca o objeto passivo
para a condição de sujeito dotado de um saber (GONZALEZ, 2020).
Sob perspectivas inovadoras, a autora produziu uma interpretação para a cultura
brasileira, rompendo a dicotomia colonizador versus colonizado, conferindo, assim, certo
215
O sintoma é o que não se adapta, por isso seu estatuto político. O sintoma
enquanto induzido e determinado pelo social, em relação ao outro, se constitui
enquanto resposta, uma objeção do sujeito à ou às figuras de dominação. O
sintoma é sempre correlato de um comando, de um é preciso, do lado do
Outro, e de um não consigo do lado do sujeito. Ora, a greve não teria o menor
sentido se a mestria determinada pela nomeação arbitrária não tivesse
acontecido.
Entendo que a individualização promovida historicamente na passagem do
feudalismo para o capitalismo, que produz o proletário, é o próprio sintoma
social.
Reafirmo, é porque existem os imperativos colocados pelo discurso do mestre
na sociedade que o sintoma responde em sua dimensão social. O que não quer
dizer que esta imposição seja um sintoma social. O sintoma não é uma
solução, ele é a verdade que escreve o mal-estar, é o seu gozo e a sua denúncia.
É uma maneira de fazer oposição, ressaltando que é uma oposição derivada
da mesma fonte do seu avesso (XAVIER, 2013, p.116).
À sua maneira, Lélia Gonzalez dá lugar ao sintoma, do mesmo modo como escuta outras
217
manifestações do inconsciente que emergem no laço social. Ela evidencia, por exemplo, o
equívoco presente na crença em qualquer neutralidade, em espaços públicos ou acadêmicos, e
faz da própria linguagem um instrumento valioso na sua transmissão. Nesse sentido, emerge a
dimensão do ato em direção ao giro que leva ao sinthoma, ou seja, como marca de singularidade,
posição intimamente ligada ao lugar de autoria, suas transmissões e seus efeitos a partir da
circulação de outros significantes mestres, com outros enunciados e enunciações, outros giros
e lugares.
O sujeito político, tal como os seres falantes nos consultórios, conta suas narrativas não
a partir do vazio, mas da história, em contato direto com o passado, que pode ser e é sempre
reinscrito, e só assim é possível compreender o presente e pensar em possibilidades e
potencialidades para o futuro. Já não será o mesmo mestre, talvez se produzam deslizes e outro
significante mestre, “pois as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande” (LORDE,
2019, p.137). No entanto, é daí que se pode, aos poucos, e em movimento, chegar a qualquer
espécie de ‘separação’ ou ‘emancipação’.
Gonzalez apresenta essa tese a partir do Seminário17. Em certo sentido, Racismo e
sexismo na cultura brasileira (2020) é um texto que destaca o lugar da mulher negra como
aquela que transmite a língua; há uma autoria no que Lélia apresenta, ao nomear, ela mesma,
uma discursividade, o pretuguês. Autoria como deslocando o sintoma do lugar de queixa, do
isso não frente aos discursos de mestria, para a partir daí, produzir o giro do sintoma enquanto
marca de singularidade, intimamente ligado à posição de autora.
Dito isso, essa passagem necessária pelo discurso da histérica. Ou seja, pensar no lugar
destinado à mulher negra no Brasil, longe de ser uma leitura que leva ao identitarismo, é,
justamente, compreender como o feminismo negro de Gonzalez não é identitário, pois longe de
pretender a construção de uma unidade, expõe como a branquitude é um identitarismo que opera
de maneira velada, colonizando tudo aquilo que aparece como diferente, impondo-se como
identidade dominante e supostamente neutra93.
Desse modo, o que Gonzalez opera, ao ocupar a linguagem, é exatamente o avesso ao
identitarismo, situando como o racismo estrutural atribui posições distintas, nas relações de
poder no laço, produzindo, assim, uma estratégia para acolher aqueles que são reduzidos a um
silenciamento determinado pela subalternização inerente aos discursos de mestria.
A Psicanálise serve, então, como suporte para que seu feminismo siga adiante, não mais
93
Estamos cientes: identidade e identitarismo não são conceitos psicanalíticos, mas compreendemos que acarretam
questões que atravessam a clínica, especialmente a práxis psicanalítica brasileira.
218
preocupado em contestar, mas sim seguir, em ato, produzindo algo novo, inédito. E esse inédito
não é sem efeitos, quando pode ser transmitido, alterando a relação das coisas.
Na práxis do analista, o divã é um lugar apropriado para desconstruir essas reduções
destinadas a alguns corpos, para daí, sim, escutar o que aparece de mais singular em cada ser
falante. É dessa maneira que leio Gonzalez e endosso que estar atenta/o a tais reflexões é um
movimento importante para oxigenar e fazer avançar a própria Psicanálise.
Digo isso para delinear que, quando Gonzalez se pergunta sobre o lugar da mulher negra
no discurso, ela se apoia na epistemologia psicanalítica, mas sem deixar de lado sua práxis, que
é ampla e diversa; ela assume a Psicanálise lacaniana, sem reduzir seu arcabouço teórico a
Lacan. Tem algo da Antropologia aí, da leitura de autores de origem africana, do seu
posicionamento político, do saber-fazer que a vivência como mulher negra lhe possibilitou. E
mesmo incluindo todos esses outros elementos há algo de incontornável sobre “a centralidade
da perspectiva freudiana (e lacaniana, para Gonzalez)” (AMBRA, 2021).
Se o amor é lindo
220
E a flor é bela
E a natureza sempre sorrindo
Vivo no mundo pra aprender
E nada sei pra ensinar
Só o que eu sei
Que eu sei fazer
É te querer, te sublimar
E te deixar em paz (DA VILA, 1975).
94
Dediquei os dois primeiros Capítulos justamente para explicar como essas construções e relações são
estruturadas via linguagem, incluindo os elementos que ultrapassam a língua, determinando lugares e circuitos,
justamente para pensarmos formas de interferir nesses circuitos determinados; é assim que vou lendo os
posicionamentos de Lélia Gonzalez, operando certo curto-circuito, pela forma como ela ocupa a linguagem.
222
Ela inicia sua interlocução a partir de “duas vozes que, embora ressoando
diferentemente, apontam para o pensamento lacaniano” (GONZALEZ, 2020, p.337). Primeiro,
dialoga com o professor e diretor do Instituto de Comunicação e Artes, na pós-graduação da
Universidade Federal Fluminense – UFRJ, Sérgio Mendonça, elogiando a maneira com que o
professor citado aprofunda seu pensamento “em face do discurso de Lacan [...] aponta para uma
ótica estruturante de exclusão do sujeito” (GONZALEZ, 2020, p.338). Para Gonzalez, há algo
da “Palavra Social e sua eficácia enquanto expressão do ponto de vista da comunidade da
normalidade e da clareza, isto é, da Lei e da Ordem” (Ibidem). Assim, a autora acompanha e
estabelece os passos para pensar o enlace operado pelos discursos, a eficácia de certo
dispositivo que instaura a lei, que estrutura as relações; tal estruturação se dá via significação,
“significação enquanto língua e enquanto linguagem: esta última conduzindo à problemática do
inconsciente” (Ibidem), incluindo os processos de:
Para ela, o modo como Lacan trabalha elucida os processos que estruturam as relações.
Ao comentar sobre o curso de Mendonça, Gonzalez vai dizer que ele estava:
Ela extrai do texto de Mendonça como a lógica que organiza a estrutura fica escondida,
passando pelo nível inconsciente. Incluí aqui um trecho da citação que Gonzalez apresenta do
texto dele:
A nós interessa, nessa citação, a maneira como Gonzalez estava intrigada com os
mecanismos que engendravam as relações a partir de uma lógica própria, visando à
transformação de lugares, destacando que, para isso, era necessário incluir o que manca, o que
escapa, aquilo que “não repõe o sentido latente” (MENDONÇA, s.d. apud GONZALEZ, 2020,
p.341), tal qual acontece em associações livres. Por isso mesmo, a teoria de Lévi-Strauss não
dá conta de explicar o lugar reivindicado pelo sujeito na estrutura, à medida que deixa de fora
essa outra cena que presentifica o inconsciente, enquanto a hipótese lacaniana inclui a
emergência do sujeito, ou seja, um sujeito que aparece e evanesce, que falta, e que, justamente
por isso, pelos equívocos que emergem, é que algo pode ser modificado nas coordenadas
discursivas. Vale destacar que, para Gonzalez, os discursos apresentam algo sobre o modo como
se configura a cultura, e a partir daí ela traça e propõe uma solução ou um modo de tentar
produzir uma resposta sobre o que existe de particular na cultura brasileira. Por isso, inclusive,
é que ela vai trabalhar o que emerge como sintomático, como uma marca. Traçando um paralelo
entre o sintoma que aparece na clínica com o sintoma que pode ser lido no campo social.
Gonzalez propõe um diagnóstico de cunho social (AMBRA, 2021). Sua análise é sobre
a cultura brasileira, ou seja, é uma questão que inclui o branco tanto como o negro, identificando
lugares na estrutura discursiva de tal modo que permite pensar a cultura brasileira próximo ao
que o Lacan fez, quando falou que só há um sintoma social, o proletário, e ali ele não estava
psicanalisando o capitalismo, mas destacando o que marca e particulariza a sociedade
capitalista. O proletário “presentifica o que não pode ser dito do que falha nesse discurso”
(ALBERTI, 2011, p. 303).
O racismo e o sexismo são marcas da cultura brasileira; são, segundo Gonzalez (2020),
aqueles que na cultura brasileira exercem o lugar do dominante para a manutenção do racismo;
Mas atenta ao que escapa como sintomático, ela vai concluir que:
No fundo, no fundo, a gente sabe que de nada adianta essa ginástica toda que
eles fazem: está fadada ao fracasso. Mas nem por isso vamos ficar passivamente
224
Ela escreve algo que possibilita pensar a sociedade brasileira atravessada pelo discurso
do analista, bem como autoriza revisitar e (re)pensar a Psicanálise atravessada pela cultura
brasileira. Gonzalez está interessada em como os significantes, mesmo sem perder suas
características significantes, fundamentais à Psicanálise, embora significantes, não deixam de
estar carregados de significados. Lélia demonstra em sua práxis como ocupar outro lugar na
lógica discursiva. Visando a produzir uma identidade inédita, produzindo significantes mestres
avessos à lógica dominante. Fora da “ótica estruturante de exclusão do sujeito” (GONZALEZ,
2020, p.338).
O segundo interlocutor que ela apresenta em seu artigo é MD Magno, para mostrar um
outro ponto de desconstrução da linearidade nos discursos. A forma como Magno exemplifica
essa quebra capaz de transgredir e criar novas significações é através da poesia, ou melhor, do
efeito poético e suas ressonâncias. Nesse sentido, o que a poesia transmite é muito diferente da
rigidez científica, permitindo um outro lugar.
Como apresentado no Capítulo sobre o laço social e suas quatro modalidades
discursivas, os discursos de mestria comportam certa rigidez, para que suas coordenadas não se
modifiquem, enquanto o discurso do analista é aquele que dá lugar aos equívocos, a outros
sentidos possíveis.
Acompanhando Magno, Gonzalez (2020) aponta a proposição do Dichter: “Dichter é
todo traço desse sujeito da denúncia [...] não se trata de nenhuma categoria meramente
gramatical, ou verbal, mas categoria de discurso, [...] inconscientemente despontada, restando
inconsciente mais uma vez” (MAGNO, s.d. apud GONZALEZ, 2020, p.346). Nesse passo, ela
avança, acompanhando Magno para dizer que o Dichter aponta para o não-senso que aparece
no discurso: “é como signo não arbitrário que se põe: como sintoma? O sintoma é o Dichter por
excelência” (Ibidem). Portanto, para Gonzalez, o Dichter
[...] permite ao poeta fundar o signo a partir do sintoma, assim como pelo
processo de subversão mediante o qual o poeta se colocaria como destruidor
do signo a fim de que se desse a vigência da linguagem originária, o autor,
concluindo, reafirma a necessidade de categorização da entidade indicadora
de sentido que denuncia o afastamento entre enunciado e enunciação e que se
encontra no sujeito enquanto singularidade. [...] o percurso do significante em
seus efeitos enquanto posição do sujeito na deriva (GONZALEZ, 2020, p.347,
grifo nosso).
Portanto, os passos que Gonzalez indica, por meio da sua leitura com Magno, conduzem
225
a pensar a função poética e sua relação com o sintoma, de tal maneira que, quando ela se refere
ao sintoma, nessa citação acima, relacionando-o a um lugar de autoria – um autorizar-se, uma
autoria que remete ao novo – enquanto marca da singularidade, é ao Sinthoma com h que ela
está se referindo, embora na sua grafia isso não apareça, mas comparece na forma como
relaciona o sintoma à autoria e singularidade: isso que, por escapar das coordenadas discursivas,
pode se transformar em um saber-fazer, produzindo um significante inédito, capaz de modificar
sentidos; é disso que está falando. Não à toa, na interlocução com Magno, ela localiza como
essa autoria resulta em um estilo “de um trabalho na linguagem” (GONZALEZ, 2020, p.347,
grifo da autora), localizando como “Joyce e Rosa” marcam sua singularidade na linguagem.
Assim, já em 1975, em À proposito de Lacan, Gonzalez localiza a função poética em
James Joyce, o que, para nós, sinaliza como ela se ocupa a pensar o sintoma, até o ponto que a
leva a trabalhar o sintoma na cultura brasileira alguns anos depois, em 1984, desse modo; esse
trabalhar o sintoma que identifico nas obras e falas de Lélia Gonzalez aparece como
consequência tanto das suas construções em análise, já que, afinal, um processo analítico visa
à modificação do sintoma, bem como do fato de tomar esse conceito para interpretar a cultura
brasileira, o que, como articulado nesse texto, é compreender as modificações conceituais que
o sintoma apresenta.
universitários se ocupem de mim por trezentos anos” (LACAN, 1975-1976/ 2007, p.17).
O laço social é o lugar no qual se presentifica o fazer político, assim, quando, a partir
dos ditos de Gonzalez, trago para a tese a operação de autoria realizada por Joyce, não o faço
pensando em estruturas ou diagnósticos, o que me interessa é justamente a relação com o laço
social. Por isso, destaco trechos do início do seminário O Sinthoma (LACAN, 1975-1976/ 2007,
p.17), a fim de enfatizar Joyce e o que aparece da sua relação de reconhecimento no campo
político:
Desse modo Lacan localiza a seiva herética de Joyce, a heresia “é realmente o que
especifica o herético. É preciso escolher a via por onde tomar a verdade” (LACAN, 1975-
1976/2007, p. 16). Joyce nasceu em Dublin, era feniano, ou seja, participava de um partido
político pró-separação da Irlanda, de combatentes irlandeses antibritânicos, tinha um pai com a
vida afundada no alcoolismo; para Lacan, era um “pobre diabo” (Ibidem, p.15-16).
Joyce era um irlandês, e até então a Irlanda era colônia da Inglaterra, ele “nasce, cresce,
escreve e morre como um sujeito colonial” (MATOZINHO, 2021). Segundo a psicanalista
Christina Matozinho, essas marcas políticas, do lugar ao qual Joyce era destinado nos discursos,
estão presentes ao longo da sua obra, de modo que estava “longe de ser uma obra de um
intelectual europeu elitista distante das questões da sua época”, o que não é sem consequências
para sua escrita: “Ora, toda essa subversão que se opera a partir de Joyce na Psicanálise
certamente traz consigo as marcas políticas desnudas por Joyce” (MATOZINHO, 2021).
Deslocando o olhar para a lógica de poder e as relações sintomáticas que advêm daí,
assim, segundo a autora, “é pela mão de Joyce que Lacan desloca a clínica da órbita do Nome-
do-Pai edípico, na medida em que o significante da falta do Outro se apresenta”
(MATOZINHO, 2021). Forjando um além do Édipo, “fazendo mesmo que Lacan nos diga que
o sinthoma de Joyce constitui-se apesar do pai, um pai colonial” (Ibidem). Deslocando, dessa
maneira, o Nome-do-Pai edípico como só mais uma possibilidade de nomeação, dentre tantas
outras, possibilitando, assim, outros tipos de amarração. Daí sua autoria e o ato de escrever
como possibilidade, passando por um isso não que o sintoma produz como marca e que, no
caso do Joyce, para Lacan (1975-76/2007), passa a ser sinthoma, porque traz esse irredutível e
228
singular. Sinthoma, justamente por propiciar esse saber-fazer, esse escabelo que lhe permite
alcançar um outro lugar.
A maneira como Joyce brinca com a língua, inventando, torcendo e destorcendo as
palavras, demonstra o que podemos extrair de valor sintomático da sua escrita: “Sabemos que
a questão da língua é decisiva no processo colonial, já que uma das consequências da conquista
imperial é o controle gradual da ordem simbólica pela linguagem imperial hegemônica, o
império do sentido” (MATOZINHO, 2021). Joyce opera, assim, uma insubmissão ao
simbólico, contrariando a lógica dominante, deslocando sentido, autorizando-se a uma escrita,
a uma autoria, fazendo da sua obra sua própria “salvação” de um lugar comum. Por isso Lacan
toma Joyce como uma forma de estudar, debruçar-se e conceber o sinthoma, com h, esse passo
a mais no conceito de sintoma, tão trabalhado ao longo do seu ensino. “O que Joyce nos aponta
é que a condição do exílio é estrutural, apesar de se atualizar de formas diferentes ao longo da
história” (Ibidem), e mais:
É por essa via que penso a autoria de Gonzalez e a potência de sua escrita, a forma
como ela situa o que há de sintomático na cultura brasileira. Ao falar do lugar destinado no
discurso vigente às mulheres negras, ela opera uma denúncia via discurso da histérica, aos
passos da sua construção como militante política; assim, dá-se a histerização discursiva, através
de todo seu percurso, em ato, no tornar-se negra, essa construção de saber que sua práxis produz
implica em modificações de lugares para a própria Lélia Gonzalez. Nessa passagem pelo
discurso da histérica, denuncia e diz isso não ao mestre: na variação do mestre antigo, pela
maneira que ela passa a ocupar e circular por lugares, contestando as armadilhas herdadas pela
cultura que não superou a lógica escravocrata, e reproduzindo isso até os dias atuais,
preservando as modalidades possíveis de mucama – da mulata e empregada doméstica, do
elevador de serviço, por exemplo, como uma forma de presentificar diferentes entradas95. Bem
como, ao passo que pôde histerizar para construir saber sobre como “os aparelhos ideológicos
95
Como cantada na composição de Jorge Aragão, apresentada anteriormente.
229
do Estado, [...] servem para a manutenção das relações de produção existentes, desenvolvem
com eficácia a veiculação e o reforço das práticas de descriminação”(GONZALEZ, 2020, p.39),
ela realiza esse enfrentamento ao discurso universal – que é universalizante – dentro dos
espaços acadêmicos, para, finalmente, avançar, a partir do discurso da histérica, para não mais
fazer oposição ou denúncia, mas sim arriscar-se a uma autoria que presentifica algo novo.
No texto Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), a autora aponta como,
em suas construções, foi modificando seu entendimento sobre a mulata, em comparação a um
outro texto apresentado em 1979, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Dito isso, em Racismo
e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), autoriza-se a ocupar um outro lugar, não se trata
mais de tomar o lugar de agente que presentifica o isso não ao mestre, para, finalmente, afirmar:
“assumimos aqui é o ato de falar com todas as implicações [...] assumimos nossa própria fala.
Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ, 2020, p.77-78); desse modo, Gonzalez
não está mais no lugar de confrontamento com o mestre, ela toma para si o lugar de quem
agencia o laço no discurso do analista e, assim, enquanto semblante de objeto a, visa a modificar
as coordenadas discursivas.
Portanto, ao se colocar como lixo, é a função de objeto a que aparece na cena: “O a
parece cair para dentro do circuito que traça a relação muito singular entre o sujeito e o objeto.
[...] Ao mesmo tempo em que o objeto se situa atrás do desejo como aquilo que o causa, ele
também se caracteriza como objeto resto, lixo ou rebotalho” (SANTOS; VIEIRA, 2019, p.18).
Agenciando o discurso do analista, “O objeto a é o que permite arejar um pouquinho a função
do mais-de-gozar” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 189). O semblante de objeto a, no lugar de
dominante, presentifica o rechaço à mestria, torna presente a falta, a castração, é um discurso
que materializa o impossível e, ao se deparar com isso, é possível deixar cair o significante-
mestre que determina a lógica de mestria. Lembrando que a função agenciada nessa modalidade
discursiva, diferente de todas as outras, não visa à dominação, e é exatamente por isso que algo
da assimetria pode ser preservada, através do encontro com os equívocos, com o que falta, uma
lógica orientada pelo não-todo, possibilitando que um significante inédito possa ser produzido.
Em função disso, por preservar a assimetria, em vez de tomá-la como sinônimo de hierarquia,
é que podemos compreender que essa modalidade discursiva sustenta a política do não-todo,
para a produção de um novo saber. Como vimos no Capítulo 1, o discurso do analista é o único
em que a inversão de lugares faz com que o sujeito96 não ocupe o lugar de agente, e sim o lugar
96
Entendendo que, em cada modalidade discursiva, os conceitos e sentidos modificam-se, então, assim como o S1
que aparece como produto do discurso do analista não é o mesmo S1 que agencia o discurso do mestre; aqui,
quando falamos em sujeito, não equivale ao $ que agencia o discurso da histérica.
230
do Outro.
A mestria que constrói a cultura brasileira apoia-se naqueles que hegemonicamente são
reconhecidos como os que sabem e podem dizer sobre o Brasil. Nesse sentido, Gonzalez faz
semblante de objeto a, deslocando certa dominância discursiva. Assim, a autora desloca lugares,
ao acular o lugar de quem pode dizer sobre a cultura brasileira, ao demonstrar em seu ato de
fala como e para que/quem se constrói e se mantém o mito da democracia racial, presentes na
obra de Caio Prado Jr. e Gilberto Freire, (enquanto operando via discurso da histérica ela
histeriza o discurso pela via política e acadêmica); enquanto nesse outro lugar, no lugar de
semblante de objeto a, via discurso do analista, Gonzalez faz cair aquilo que sustenta a
dominância, colocando essas teorias como cindindas, seu ato de fala ocupa o lugar de
dominância discursiva, e desse modo desloca essa ideologia que ocupava o agenciamento
discursivo para o lugar do Outro. Daí é esse mito da democracia racial que ocupa o lugar de
sujeito barrado, tendo que se haver com a sua divisão.
Enquanto os discursos de mestria, no contexto brasileiro, impõem a língua europeia
como oficial, apagando sistematicamente as línguas dos povos originários, tal como foi feito
com os sujeitos sequestrados do continente africano, para prevalecer a língua portuguesa e sua
origem latina, Lélia desloca essa mestria do lugar de dominância, fazendo aparecer os
equívocos existentes em tal afirmativa. Ora, ao afirmar o lugar da ‘mãe preta’, que tem a sua
importância apagada na história, apagada da condição de transmissão da língua e de seus
saberes, Gonzalez destaca que “através da ‘mãe preta’, a verdade surge da equivocação”
(GONZALEZ, 2020, p. 87, grifos da autora), apontando que a língua que se fala no Brasil é o
pretuguês.
Embora a palavra pretuguês não tenha sido uma invenção da Lélia Gonzalez, já que esse
termo inicialmente foi criado de maneira pejorativa, para se referir aos povos do contimente
africano que foram colonizados por portugueses, Gonzalez eleva a palavra ao statuto de
significante, articulando sua importância e seu uso na língua e na formação da cultura brasileira.
Neste sentido o pretuguês é produção do seu trabalho à medida que, seu ato de fala
ocupa o lugar de semblante como objeto a, agenciando o discurso do analista e “falando numa
boa” (GONZALEZ, 2020) sobre o racismo e o sexismo na cultura brasileira como meio-dizer
a verdade da história que não foi escrita, evidenciando a fenda existente no mito da democracia
racial.
231
FONTE: LACAN, J. (1972). Du discours psychanalystique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra,
1984. p. 32.
Ao ocupar o lugar de objeto a, o lixo vai falar e numa boa, através do seu ato de fala,
Lélia interpela o colonizador e seu mito, mostrando que ele, o colonizador, é não-todo europeu,
como se crê, de tal modo que o que fica recalcado, o racismo e o sexismo, emerge como
pretuguês.
A maneira como Gonzalez articulou os discursos, ocupando um lugar na linguagem,
opera giros, via produção de um estilo próprio, uma autoria como produto, um trabalho na
linguagem, igualmente como fez Joyce. Sua autoria possibilita a invenção de um novo
significante, o pretuguês, um significante inédito, que nomeia algo presente no laço e, ao ser
produzido como S1, ele pode alterar os sentidos.
É engraçado como eles gozam da gente quando a gente diz que é Framengo.
Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente
ignoram que a presença desse R no lugar do L nada mais é que a marca
linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. Afinal, quem é o
ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que
corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa “você” em “cê”, o “está’’
em “tá” e por aí afora. Não sacam que estão falando pretuguês. E por falar em
pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura
brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo, que por sua vez, e
justamente com o ambundo, provém de um tronco linguístico banto que
“casualmente” se chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca
bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido
e é coisa. De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o
discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo
brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado etc. e tal.
97
Lélia Gonzalez, em ato, fazendo semblante de objeto a.
232
Como vimos no final do Capítulo anterior, bell hooks também é uma autora que propõe
usar a linguagem como possibilidade para seguir adiante. Além das críticas ao patriarcado
colonial, o que ambas as feministas – hooks e Gonzalez – operam é a invenção de um sinthoma,
forjando, assim, algo singular – a autoria de um novo significante como um produto dessa
invenção. Diferente do que acontece no discurso da histérica, no qual a dominância discursiva
realiza uma contestação dirigida ao Outro, um enfrentamento ao pai como símbolo da
autoridade na modernidade, o que ambas as autoras produzem é um passo a mais, é levar o
sintoma que diz isso não a um passo adiante, para soltar a mão do pai – da cultura – sem se
desfiliar desse pai.
98
Em transmissão oral, no exame de qualificação realizado no dia 17/12/2021.
233
MOMENTO DE CONCLUIR
Como é difícil colocar o ponto final, este tema me faz pensar várias outras articulações,
e desdobramentos, mas chegou o momento de concluir. Assim, gostaria de compartilhar
algumas últimas notas sobre conteúdos já presentes ao longo desta tese.
Primeiro, gostaria de relembrar que é fundamental estar atento/a à subjetividade de
nossa época, essa é uma valiosa recomendação lacaniana, e acrescento: estar atento/a ao nosso
território, para pensar o fazer psicanalítico no Brasil, e neste momento histórico. Considero e
me questiono sobre quais as práxis que podem fazer frente ao avanço do discurso colonizador
capitalista, ou às imposições hegemônicas que se impõem, considerando os enquadramentos
culturais e as determinações discursivas, bem como ser cautelosos sobre sua relação com
aparecimento de sintomas, nos sujeitos e na cultura, sabendo que o inconsciente é político e que
o sujeito da Psicanálise não é redutível às determinações históricas, contudo, paradoxalmente,
não está separado dos contextos históricos aos quais pertence.
Lacan, durante todo o seu ensino, trabalhou os conceitos-base para a clínica
psicanalítica, mas sem deixar de lado os atravessamentos políticos – dentro e fora do nosso
campo, passando pela sua excomunhão e por toda a questão política, na condução da Psicanálise
herdada por Freud, até as influências de Maio de 68, como trabalhado na presente tese.
Escolhi trabalhar as questões relativas ao laço social, pois possibilitam pensar, com
Lacan, a verdade como um semidizer; a epistemologia psicanalítica permite-nos escutar os
equívocos, o que escapa, escutar o dizer que fica por trás do que é dito e, não só isso, ela autoriza
extrapolar os sentidos postos e constatar que não há a verdade – universal. Inclusive, acrescento
aqui o quanto é importante olhar para isso na contemporaneidade, precisamente acolhendo
tantas outras construções teóricas a que temos acesso atualmente, em especial, o pensamento
feminista e a forma como suas autoras partem de outros pontos de partida para a compreensão
da cultura; destaco igualmente a importante presença das epistemologias do Sul.
Nesse encontro entre a epistemologia psicanalítica e a práxis feminista interseccional,
afirmamos que é inegável como o significante, que constitui a cultura, está impregnado de
significados, logo, gênero e raça não são irrelevantes na constituição dos sujeitos, por todos os
atravessamentos impostos no laço social. Ainda mais considerando como as questões de
234
gênero/sexo (machismo) e de raça (racismo) são estruturais. Além disso as pesquisas sobre os
feminismos, modificaram a maneira como eu passei a compreender o ensino lacaniano,
interferindo especialmente na minha leitura da teoria sobre o laço social e os discursos.
Por isso Lélia Gonzalez presentificou-se como uma das pensadoras-chave para a
construção desta tese, já que promove o encontro entre o feminismo interseccional, a
epistemologia da Psicanálise e a cultura brasileira.
Foi assim que surgiu a possibilidade de pensar encruzilhadas, como um ponto de
encontro no qual duas coisas que se topam e se escutam podem dar um passo a mais. O que
possibilitou traçar, politicamente, certas alianças estratégicas. Dito isso, tendo a apostar na
possibilidade de uma psicanálise que pode ser interseccional, comungando com o que pensa a
psicanalista Ana Paula Gianesi.
Enquanto teoria e prática não disjuntas, uma psicanálise que não problematize
as questões que a interseccionalidade aponta e as denúncias de opressão que a
mesma traz consigo corre o risco de acumpliciamento com o próprio sistema
de dominação. Mais ainda, um corpo teórico que não seja capaz de se rever,
que não permita furo e que não se deixe modificar por aquilo que lhe bate à
porta acaba repetindo e reproduzindo o pior (GIANESI, 2022).
sejam, ao final desse processo, militantes ou cidadãos/cidadãs. Quando digo estar atento/a
inclusive na poltrona, é visando a não cair na armadilha da neutralidade, do somos todos/as
iguais, porque nem tudo é fantasia, existem realidades mais difíceis do que outras.
Por isso, finalizo destacando a importância de pensar a Psicanálise atualmente, no
Brasil, considerando o pensamento e a atuação da Lélia Gonzalez, em especial quando ela
escreve, em 1984, Racismo e sexismo na cultura brasileira. Afinal, de lá para cá o que
realmente mudou na forma de descrever a subjetividade das mulheres negras? O que mudou na
sintomática presente na cultura brasileira?
Uma questão que permanecerá em aberto, mas, para oxigenar formas de analisar essa
questão, compartilho um último discurso.
Para finalizar, gostaria, assim, de incluir trechos do último discurso realizado por
Marielle Franco, no dia 08 de março 2018. Na ocasião, Marielle Franco discursava na tribuna
da Câmara dos Vereadores do estado do Rio de Janeiro, ocupando essa tribuna na condição de
vereadora eleita em seu primeiro mandato, depois de uma expressiva votação. Na ocasião, ela
foi interrompida diversas vezes por parlamentares e assessores que não reconheciam que ali era
o seu lugar. Infelizmente, poucos dias depois, no dia 14 de março de 2018, foi brutalmente
assassinada, sendo que, até a presente data, o crime não foi solucionado, e diversos movimentos
sociais seguem perguntando: quem matou Marielle Franco? E quem mandou mandar?
Neste dia 8 de março, ocupando uma das apenas sete cadeiras aqui do
Parlamento Municipal, precisamos sempre nos perguntar: o que é ser mulher?
O que cada uma de nós já deixou de fazer ou fez com algum nível de
dificuldade pela identidade de gênero, pelo fato de ser mulher? A pergunta
não é retórica, ela é objetiva, é para refletirmos no dia a dia, no passo a passo
de todas as mulheres, no conjunto da maioria da população, como se costuma
falar, que infelizmente é subrepresentada.
... um século da luta das mulheres indígenas por demarcação; da luta das irmãs
mulheres negras, que vieram antes de nós, que resistiram a tamanho absurdo
que foi o período da escravidão; da luta pelo fim de toda forma de opressão,
que se reflete no racismo, na misoginia, na luta contra o patriarcado. Assim,
seguimos lutando.
237
[...] Rosa Luxemburgo, que era coxa. A história conta que ela figurava ali
com 1,50m de altura, ia para a linha de frente do front da luta política do seu
momento na história. [...] Como diria a Rosa, aniversariante do dia 5, nós,
mulheres, na nossa diversidade e resistência, lutamos por um mundo no qual
sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.
mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das
minhas. Por isso, nós vamos juntas, lutando contra toda forma de opressão”.
239
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é feminismo? São Paulo: Ed. Abril Cultural e
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