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Karla Rampim Xavier

A tese de Karla Rampim Xavier analisa os laços sociais através das quatro modalidades discursivas de Lacan, destacando a importância do discurso da histérica e do analista na construção de saberes que desafiam a hegemonia. A pesquisa conecta essas teorias com a práxis feminista interseccional, utilizando Lélia Gonzalez como referência para explorar como as experiências de mulheres negras podem transformar discursos e significados sociais. O trabalho propõe que a intersecção entre gênero, raça e classe é crucial para entender e combater as opressões no contexto brasileiro.

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Lauren Santana
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Karla Rampim Xavier

A tese de Karla Rampim Xavier analisa os laços sociais através das quatro modalidades discursivas de Lacan, destacando a importância do discurso da histérica e do analista na construção de saberes que desafiam a hegemonia. A pesquisa conecta essas teorias com a práxis feminista interseccional, utilizando Lélia Gonzalez como referência para explorar como as experiências de mulheres negras podem transformar discursos e significados sociais. O trabalho propõe que a intersecção entre gênero, raça e classe é crucial para entender e combater as opressões no contexto brasileiro.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

KARLA RAMPIM XAVIER

OS DISCURSOS EM LACAN E A PRÁXIS FEMINISTA:


LÉLIA GONZALEZ PARA SEGUIR ADIANTE

SÃO PAULO
2022
KARLA RAMPIM XAVIER

OS DISCURSOS EM LACAN E A PRÁXIS FEMINISTA:


LÉLIA GONZALEZ PARA SEGUIR ADIANTE

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutora em Psicologia Social, sob a
orientação do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho.

SÃO PAULO
2022
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos
KARLA RAMPIM XAVIER

OS DISCURSOS EM LACAN E A PRÁXIS FEMINISTA:


LÉLIA GONZALEZ PARA SEGUIR ADIANTE

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor(a) em Psicologia Social, sob a
orientação do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
AGRADECIMENTO CAPES

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela


bolsa concedida, sem a qual não seria possível a realização desta pesquisa.
Processo nº. 88887.364397/2019-00

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) - nº. 88887.364397/2019-00.
AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Raul Pacheco Filho, pelo Núcleo Psicanálise e Sociedade, um espaço
tão importante para a minha formação: agradeço por sustentar, de maneira pioneira, o debate
entre Psicanálise e Política, privilegiando a temática do laço social... e pelas festas e saraus.
À Ana Paula Gianesi, por todas as valiosas contribuições, no exame de qualificação,
pela maneira carinhosa com que leu e devolveu meu texto, e pela transmissão de uma
Psicanálise que pode avançar.
À Carla Garcia, por todas as contribuições, no meu exame de qualificação, por me
ensinar tanto sobre a práxis feminista e sobre as coisas da vida: uma sobe e puxa a outra! E
agradeço, especialmente, ao café, que me transmitiu tanto sobre autoria.
Ao Pedro Ambra, por ter aceitado o convite para a banca e por sustentar uma Psicanálise
que se autoriza a circular. Ao Fábio Franco, pelo interesse em debater e trocar sobre o laço
social, a política, os feminismos, a música, Maria Bethânia, e as encruzilhadas.
À Patrícia, pela parceria, por todos os debates ‘incendiários’ e férteis, pela forma
entusiasmada com que debatemos sobre Psicanálise e política, na banca e na vida.
Ao Gui, pelo bom humor, pela doçura e por me lembrar que há horas em que é
importante tirar o pé do acelerador.
À minha amiga Andreia, companheira de consultório, agradeço os cafés, as aventuras e
as palestrinhas.
Ao lua vai: à querida Thaís, aos conselhos, às mandingas, pela leitura e pelas
observações sobre os feminismos e por insistir no fato de que não cabe tudo em uma tese. À
Roberta, minha parceira nessa empreitada de querer derrubar o patriarcado, agradeço as trocas
que contribuíram muito para a construção desta tese, pelas conversas na escada, pelos carnavais
e tudo mais.
Por falar em escada, agradeço por toda troca com os amigos que fiz, ao longo desses
anos no Núcleo - desde aqueles que acabaram de chegar, como Lucas e Gustavo, aos mais
antigos que prosseguiram presentes nesta reta final, como Gabriel, que estava no ato de
fundação dos debates na escada, e Neto, que participou comigo do seu ato de dissolução, com
testemunho do Leo. Agradeço, nominalmente, aos amigos que contribuíram de forma ainda
mais direta, com conversas sobre os vários temas que permeiam esta tese: Gabriel e Milton
Neto, como citei acima, Augusto, Thainá, Carol, Paulo, Michele, Aline. À Luisa, que
compartilhou comigo momentos-chave para compreender um discurso específico. Mas também
a todes colegas que participaram de maneira indireta desta construção. À companheira Renata,
por dividir comigo o significante Rampim e seus efeitos.
Aos meus amigos de virada de ciclo e Ano Novo: Thaís, Roberta, Fábio, Delano, Arthur,
Niki, Natália e Mari. Obrigada pelos portais, por cantarem e dançarem comigo, pisando na
grama molhada ao som de Não mexe comigo, que eu não ando só, na voz da Maria Bethânia.
Aproveito a deixa de Carta de Amor, para agradecer às minhas musas inspiradoras,
especialmente Maria Bethânia, Elza Soares, Dilma Rousseff e Lélia Gonzalez.
Às professoras do programa de Psicologia Social. Aos colegas do Fórum do Campo
Lacaniano, pelas trocas e transmissões tão valiosas para a minha formação de analista. À Yliah,
pelas trocas de figurinhas na reta final. Ao Leonardo e ao Niki, pelas traduções.
Ao companheiro Eric, pelos gestos, shows, viagens, músicas, banquetes e por me
oferecer sua maneira pragmática de levar a vida, sem perder a ternura.
Agradeço à minha mãe Isabel, por me ensinar sobre teimosia e sobre o saber-fazer que
sustenta a vida cotidiana.
Ao meu pai, Carlos, por me dar seu nome, só incluindo uma diferença. Pelo meu lado
destemida, fanfarrona e bem-humorada, sem perder a seriedade: heranças fundamentais para a
construção do meu feminismo. E por todos os sambas e o gosto pela música. Já que está difícil
escrever em memória, vou deixar uma música: Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar,
a beleza de ser um eterno aprendiz, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso
não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita! (GONZAGUINHA).
Dedico esta tese a todas que vieram antes de mim
e àquelas que ainda estão por vir!
UM OLHO ABERTO

(Mariá Portugal)
Para Elza Soares

Ora, cara, não me venha


com esse papo sobre a natureza
Cada um inventa a natureza
que melhor lhe caia
Uma natureza que é a sua cara
Uma natureza cuspida e escarrada
Onde existe o dito natural
e o animal perfeito mora
Onde a verdade é garimpada
até não sobrar nada

Da sede, do sexo
O peixe, o índio
O rio concreto
Invadindo os edifícios
O nome, o muro
Circuito fechado
Um olho aberto
Pra você dormir tranquilo
RESUMO

XAVIER, Karla Rampim. O laço social e a práxis feminista: Lélia Gonzalez para seguir
adiante. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022.

Lacan propõe pensar os laços sociais a partir de quatro modalidades discursivas que estruturam
as relações sociais de maneiras distintas; desse modo, são quatro discursos que conduz a forma
como os laços são estruturados. No discurso do mestre, o dominante é a lei; no discurso
universitário, é um saber sem sujeito que opera a dominância, e ambas as modalidades são
discursos de mestria. Já o discurso da histérica pretende fazer frente a essa lógica de mestria
que os outros dois discursos determinam: tal modalidade discursiva, ao confrontar o mestre,
produz uma construção de saber que pode ser pensada tanto nos aspectos clínicos, por ser
condição para um ser falante entrar em análise, interrogando-se sobre sua divisão, a fim de
produzir saber, como pode servir para compreender questões políticas, confrontando o discurso
hegemônico, podendo, eventualmente, modificar os rumos da história, mas, ainda assim, sem
romper com as coordenadas de mestria. Por fim, o discurso do analista é responsável por dar
lugar aos equívocos, para que algo da lógica de mestria possa cair: é a única modalidade
discursiva que não converte as assimetrias a uma lógica hierarquizante e, desse modo, pode
produzir algo novo, fora das coordenadas anteriormente estabelecidas. O feminismo surge
como uma posição política de questionamento e enfrentamento à lógica hegemônica e, ao longo
da história, foi se modificando, até alcançar o que conhecemos hoje como feminismo
interseccional, ou seja, um feminismo que mantém, no seu horizonte, construir possibilidades,
para acabar com as diversas formas de opressão e, por isso mesmo, considera a intersecção
entre gênero, raça e classe, como estruturando as dominações e exclusões operadas no laço
social. Dito isso, a presente tese versa sobre a interpretação do laço social, a partir do ensino
lacaniano, e seu intercruzamento com a práxis feminista interseccional para, acompanhando
Lélia Gonzalez, indicar como ela, por meio da sua clínica, opera um giro de modalidades
discursivas. Inicialmente capturada nas armadilhas discursivas impostas pelos discursos de
mestria, Lélia efetua uma histerização discursiva que lhe permite a construção de um saber
sobre tornar-se mulher negra, lançando luz sobre como os discursos estruturam a cultura
brasileira - trata-se de um giro em direção ao discurso do analista, o que faz cair as mestrias
hegemônicas, possibilitando a ocupação de outro lugar no laço, um lugar capaz de sustentar as
assimetrias e produzir um novo significante mestre, capaz de inaugurar novos sentidos, o
pretuguês.

Palavras-chave: Feminismo. Feminismo interseccional. Discursos. Laço social. Lacan. Lélia


Gonzalez.
RESUMEN

XAVIER, Karla Rampim. El vínculo social en Lacan y la praxis feminista: Lélia González
para avanzar. Tesis (Doctorado em Psicologia Social) – Programa de Estudos de Posgrado em
Psicologia Social, Pontifícia Universidad Catolica de São Paulo, São Paulo, 2022.

Lacan propone pensar los vínculos sociales a partir de cuatro modalidades discursivas que
estructuran las relaciones sociales de diferentes maneras, así, existen cuatro discursos que
transmiten la forma en que se estructuran los vínculos. En el discurso del amo lo dominante es
la ley, en el discurso universitario es el saber sin sujeto el que opera el dominio, ambas
modalidades son discursos de dominio. El discurso de la histérica, en cambio, pretende
enfrentarse a esta lógica de dominio que determinan los otros dos discursos. Esta modalidad
discursiva, al confrontarse con el amo, produce una construcción de conocimiento que puede
pensarse tanto en aspectos clínicos, como condición para que un ser parlante entre en análisis,
interrogándose sobre su división para producir conocimiento; así como puede servir para
entender cuestiones políticas, confrontando el discurso hegemónico, pudiendo, eventualmente,
cambiar el curso de la historia, pero, aun así, sin romper con las coordenadas de dominio. El
discurso del analista, en cambio, es responsable de dar lugar a malentendidos, para que algo de
la lógica del dominio pueda caer. Es la única modalidad discursiva que no convierte las
asimetrías en una lógica jerárquica, y así puede producir algo nuevo, fuera de las coordenadas
previamente establecidas. El feminismo surge como una posición política de cuestionamiento
y confrontación de la lógica hegemónica, a lo largo de la historia se ha ido modificando, hasta
llegar a lo que hoy conocemos como feminismo interseccional, es decir, un feminismo que
mantiene en su horizonte construir posibilidades para acabar con las diversas formas de
opresión, por ello considera la intersección entre género, raza y clase, como estructurantes de
las dominaciones y exclusiones operadas en el lazo social.
Dicho esto, la presente tesis aborda el vínculo social desde la enseñanza lacaniana en la
encrucijada con la praxis feminista interseccional para, siguiendo a Lélia González, indicar
cómo ella, a través de su praxis, torna las modalidades discursivas, inicialmente capturadas en
las trampas discursivas impuestas por los discursos de dominio, pasando por la histerización
discursiva que le permite construir un saber sobre el devenir negro y sobre cómo los discursos
estructuran la cultura brasileña, para dar un paso más allá y virar hacia el discurso del analista,
abandonando los dominios hegemónicos, ocupando otro lugar en el vínculo, un lugar capaz de
sostener asimetrías y producir un nuevo significante maestro capaz de inaugurar nuevos
significados, el pretugês.

Palabras-llave: Feminismo. Feminismo interseccional. Discursos. Vínculo social. Lacan. Lélia


Gonzalez.
RÉSUMÉ

RAMPIM, Karla. Le lien social chez Lacan et la praxis féministe: Lélia Gonzalez pour
avancer. Thèse de Doctorat, Programme d´Études Supérieures en Psychologie Sociale.
Pontificale Université Catholique de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2020.

Lacan propose de penser les liens sociaux à partir de quatre modalités discursives qui structurent
les relations sociales de manière différente, ainsi, il y a quatre discours qui transmettent sur la
façon dont les liens sont structurés. Dans le discours du maître la dominante est la loi, dans le
discours universitaire c'est une connaissance sans sujet qui opère la domination - les deux
modalités sont des discours de maîtrise. Le discours hystérique, quant à lui, entend se confronter
à cette logique de maîtrise que les deux autres discours déterminent. Cette modalité discursive,
lorsqu'elle se confronte au maître, produit une construction de la connaissance qui peut être
pensée à la fois sous des aspects cliniques - car c'est une condition pour qu'un locuteur entre
dans l'analyse - en s'interrogeant sur sa division pour produire des connaissances, ainsi qu'il
peut servir à comprendre les enjeux politiques, en se confrontant au discours hégémonique et
en pouvant, éventuellement, modifier les directions de l'histoire, mais toujours sans rompre avec
les coordonnées de la maîtrise. En revenche, le discours de l'analyste est responsable de laisser
place à des idées fausses pour que quelque chose de la logique de la maîtrise puisse tomber -
c'est la seule modalité discursive qui ne convertit pas les asymétries en logique hiérarchique et,
de cette manière, peut produire quelque chose de nouveau, en dehors des coordonnées
précédemment établies. Le féminisme apparaît comme une position politique de
questionnement et de confrontation de la logique hégémonique qui, au cours de l'histoire, a
changé jusqu'à atteindre ce que nous connaissons aujourd'hui comme le féminisme
intersectionnel, c'est-à-dire un féminisme qui continue à son horizon de construire des
possibilités pour mettre fin aux diverses formes d'oppression et qui, pour cette raison même,
considère l'intersection entre le genre, la race et la classe, comme structurant les dominations et
les exclusions opérées dans le lien social. Cela dit, la présente thèse traite de l'interprétation du
lien social à partir de l'enseignement lacanien et de son métissage avec la praxis féministe
intersectionnelle pour, en accompagnant Lelia Gonzalez, indiquer comment elle, à travers sa
clinique, opère un virage de modalités discursives. D'abord prise dans les pièges discursifs
imposés par les discours de maîtrise, Lelia effectue une hystérisation discursive qui lui permet
de construire une connaissance sur le fait de devenir une femme noire, éclairant comment les
discours structurent la culture brésilienne - c'est un virage vers le discours de l'analyste, qui fait
tomber les maîtres hégémoniques, permettant l'occupation d'un autre lieu dans la boucle, un
lieu capable de soutenir les asymétries et de produire un nouveau signifiant maître capable
d'inaugurer de nouvelles significations, le « pretuguês ».

Mots-clès: Féminisme. Féminisme intersectionnelle. Discours. Lien social. Lacan. Lelia


Gonzalez.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Matema do discurso do mestre ........................................................................... 38


Figura 2 – Matema do discurso do mestre ........................................................................... 51
Figura 3 – O lugar dos matemas dos discursos .................................................................... 52
Figura 4 – Os matemas dos discursos em Lacan.................................................................. 52
Figura 5 – Discurso de “o avesso da Psicanálise ................................................................. 65
Figura 6 – O discurso do analista ......................................................................................... 84
Figura 7 – Marcha das mulheres .......................................................................................... 106
Figura 8 – Retrato de Sojourner Truth ................................................................................. 109
Figura 9 – A liberdade guiando o povo................................................................................ 131
Figura 10 – Manifestação pública pela soltura de Angela Davis, em Boston, EUA ........... 159
Figura 11 – Retrato de Anastácia ......................................................................................... 190
Figura 12 – Lélia Gonzalez e Angela Davis, em 1984 ........................................................ 195
Figura 13 – Lélia discursando em ato público, na Cinelândia, Rio de Janeiro, 1983 .......... 201
Figura 14 – Benedita da Silva, então vereadora do Rio, e Lélia Gonzalez em viagem a Nairóbi
(Quênia), em 1985 ................................................................................................................. 202
Figura 15 – Ação do Nzinga, no Morro do Andaraí, Rio de Janeiro, 1988 ......................... 202
Figura 16 – Campanha política de Lélia Gonzalez .............................................................. 205
Figura 17 – Matema do discurso do analista........................................................................ 231
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 15

REFLEXÕES METODOLÓGICAS ................................................................................. 18

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 22
A práxis feminista e a cultura........................................................................................ 27

1 O LAÇO SOCIAL E OS QUATRO DISCURSOS ....................................................... 36


1.1 Ensaio sobre os discursos como laço social ............................................................ 36
1.2 A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala .................................... 38
1.3 Modelos e matemas; circuitos e artifícios para a escrita do ensino lacaniano .... 39
1.4 Lacan com Marx ....................................................................................................... 42
1.5 Freud e Marx: a autoridade que inaugura novos campos ................................... 47
1.6 Quatro discursos ....................................................................................................... 49
1.7 Escrevendo os matemas ........................................................................................... 51
1.8 O objeto a e a sua função ......................................................................................... 56
1.9 Laço social e os índices identitários da linguagem ................................................ 58
1.10 Discurso do mestre ................................................................................................. 62
1.11 Discurso universitário ............................................................................................ 64

2 DISCURSO DA HISTÉRICA ......................................................................................... 67


2.1 1968 e seus acontecimentos históricos..................................................................... 73
2.2 De volta a Lacan e os revolucionários..................................................................... 76
2.3 A histerização discursiva ......................................................................................... 78
2.4 Discurso do analista .................................................................................................. 81
2.5 O discurso instaura a cultura .................................................................................. 87
2.6 O surgimento da Psicanálise: em qual período? Em qual contexto? E em qual
território? ....................................................................................................................... 88
2.7 O patriarcado e a burguesia europeia .................................................................... 91
2.8 Colonização e os processos civilizatórios em Psicologia das massas .................... 96
2.9 Psicanálise e interseccionalidade ............................................................................. 100

3 FEMINISMOS: SUA PRÁXIS, AVANÇOS HISTÓRICOS E CRIAÇÃO DE NOVAS


EPISTEMOLOGIAS ......................................................................................................... 101
3.1 Um movimento construído em ondas ..................................................................... 101
3.2 O surgimento do feminismo em ondas.................................................................... 103
3.3 Antes da denominação do feminismo e suas ondas: a militância de Sojourner Truth, e as
protagonistas brasileiras que organizaram e lutaram contra o regime escravagista ...... 108
3.4 Sojourner Truth: uma outra posição no discurso e o autorizar-se a um novo nome ... 112
3.5 De volta à segunda onda........................................................................................... 114
3.6 A criação do patriarcado ......................................................................................... 117
3.7 Gayle Rubin: estruturação social e notas sobre Economia .................................. 119
3.8 Rubin com Butler: a libertação da camisa de força de sexo / gênero .................. 125
3.9 Uma breve passagem por outros aspectos históricos: do caça às bruxas à sua versão
atual ................................................................................................................................. 128

4 TERCEIRA ONDA E O FEMINISMO INTERSECCIONAL. .................................. 134


4.1 Terceira onda: seu início, as pautas que orbitam em torno da diferença e a filiação
a Luce Irigaray ............................................................................................................... 134
4.2 A terceira onda e a visada do feminismo da diferença.......................................... 138
4.3 Luisa Muraro e a subversão da autoridade – do autorizar-se à autoria ............ 142
4.4 Repensar o feminismo com Fina Birulés: liberdade, diferença e fazer político . 145
4.5 Da diferença sexual ao desenvolvimento das diferentes diferenças ..................... 156
4.6 A interseccionalidade e a terceira onda: outra volta, outros movimentos dentro do
movimento ...................................................................................................................... 158
4.7 Grada Kilomba e o arado para ocupar o lugar de saber ...................................... 163
4.8 Da margem ao centro: bell hooks e o feminismo como um outro modo estrutural de
pensar política ................................................................................................................. 166
4.9 Hooks e a experiência acadêmica ............................................................................ 172

5 LÉLIA GONZALEZ PARA SEGUIR ADIANTE ........................................................ 182


5.1 Biografia: uma história pessoal que informa sobre o Brasil................................. 182
5.2 O ensino no Brasil e o processo de embranquecimento ideológico ...................... 184
5.3 A mulata e o mito da democracia racial ................................................................. 189
5.4 Pode o subalterno falar? A função do silenciamento engessando a estrutura social . 191
5.5 A ideologia crítica versus o apagamento epistêmico como função discursiva ..... 194
5.6 Uma contingência trágica: o encontro com a Psicanálise e a abertura para novos
sentidos ............................................................................................................................ 197
5.7 A incorporação dos saberes ancestrais ................................................................... 198
5.8 Tornar-se negra: uma luta constante ..................................................................... 200
5.9 Participação política: a abertura para novas sentidos e a dimensão do ato ....... 203
5.10 A defesa da democracia, via participação política eleitoral ............................... 204
5.11 Lélia Gonzalez: uma intérprete da cultura brasileira......................................... 207
5.12 Linguagem e discurso: racismo e sexismo na cultura brasileira ........................ 210
5.13 Discurso da histérica: historicizar, como processo de desalienação .................. 213
5.14 Significantes e outros sentidos: salve a mulatada brasileira .............................. 218
5.15 O uso da Psicanálise para pensar a política – a propósito de Lacan ................. 221
5.16 Do sintoma ao sinthoma ......................................................................................... 225
5.17 Ocupar o lugar de objeto a: o lixo vai falar e numa boa ..................................... 228

MOMENTO DE CONCLUIR ........................................................................................... 233

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 239


15

APRESENTAÇÃO

A presente tese tem como objetivo específico mostrar como a práxis feminista pode
prescindir da lógica de mestria que emoldura as relações no campo social.
De maneira geral, apresento aqui algumas questões às quais me dedico há um tempo,
indagações que advêm do meu trabalho como analista, minha posição política dentro e fora do
campo psicanalítico, que é atravessada pelo feminismo. Inquietações e posicionamentos que
nascem da minha práxis.
Como pensar uma análise que possa considerar questões interseccionais, sem que isso
altere as coordenadas do dispositivo analítico? Para começar a conversa, é importante pensar
que gênero, raça e classe não necessariamente reivindicam identidades; inclusive, dependendo
do prisma utilizado para analisar tais questões, podemos entender justamente o contrário: tais
categorias são anteriores ao aparecimento dos movimentos e não categorias criadas pelos
movimentos.
No interior do discurso do/a analista, é notável considerar não só a relevância dessas
questões, mas também o fato de que, certamente, estar atento/a a elas enriquece o trabalho do/a
analista. Não digo no sentido de orientar a escuta com ideias preconcebidas sobre os sujeitos
que procuram os consultórios para iniciar suas análises; muito menos para reforçar
identificações ou direcionar a análise para uma prática militante: devemos estar atentos/as por
se tratar de questões que atravessam os sujeitos, especialmente no Brasil.
Sendo assim, é bom para os/as analistas estarem advertidos/as das incidências de tais
questões e como esses assuntos estão enraizados socialmente, já que pensar e se posicionar
dessa forma é compreender como o/a psicanalista deve estar atento/a ao seu tempo – e ao
território que ocupa. Por essa via, estar atento/a é considerar como esses processos tocam cada
sujeito, dependendo do lugar social em que tais sujeitos são colocados. Ao contrário de reforçar
identidades, essa preocupação tem por consequência esvaziar a identidade preexistente advinda
do discurso hegemônico, que criou quem pode ser sujeito e quem deve ocupar o lugar do outro
no laço, que, como sabemos, é um processo de identificação que se dá de maneira velada e,
quando não se reconhece assim, aponta o outro como identitário, sem se perceber na trama
discursiva. Assim, advertido sobre as questões interseccionais, o/a analista pode escutar cada
ser falante considerando o ‘real’ (violência, segregação, dominação) presente no laço, ao
mesmo tempo em que tonifica o lugar das diferenças no campo social.
A Psicanálise, na cultura, aponta para a fenda que insiste, apesar da lógica
homogeneizante de um laço excludente que tenta de todas as formas suturar essa fenda. Assim,
16

compreendo que um/uma analista não é (nem precisa ser) necessariamente militante, mas em
sua práxis não deixa de fazer política.
Como veremos, a presente tese é uma pesquisa acadêmica e, também, é um testemunho
da minha experiência: como mulher, feminista, psicanalista e tantas outras coisas. É uma
pesquisa teórica, mas não sem incluir a minha práxis política e clínica, e as implicações atuais
do que é estar atenta a esse momento histórico, especialmente na sociedade brasileira.
Não pretendo apresentar nenhum caso clínico, mas, sem dúvida, este trabalho está
atravessado pela minha escuta clínica, por cada ser falante que escuto, bem como está pautado
nos meus dez anos de experiência nas políticas públicas e na minha participação política em
movimentos sociais1. Nesse sentido, acompanho Mohanty (1997) e Kilomba (2019): não existe
academia apolítica, nem ciência (ou tese acadêmica) que seja neutra.
Para a professora Margareth Rago, em se tratando da teorização do conhecimento
feminino, “a reflexão filosófica foi posterior à prática teórica”, ou seja, é a posteriori que
acontece “uma incorporação das questões feministas em diferentes campos da produção do
conhecimento científico, de fora para dentro, como, por exemplo, na psicanálise ou no campo
marxista” (RAGO, 1998, p. 8).
Por fim, estou advertida de que a política da Psicanálise é diferente do fazer político no
campo social; no entanto, é fato que o psicanalista não está fora do campo social, da cultura a
que pertence.
E, embora o objetivo desta tese não seja rever conceitos psicanalíticos, compreendo que
esse olhar crítico a acompanha. Afinal, essa não seria uma maneira de estarmos atentos/as ao
nosso tempo, sem enfraquecer a importância e o vigor da Psicanálise, mas, pelo contrário,
atualizando-a para fazê-la avançar?
Outra ressalva importante é a de que, quando uso o termo feminismo, estou ciente de
que não é um movimento único, muito menos coeso em si, mas são movimentos feministas, no

1
Participações em diversas conferências e movimentos: diferentes edições do Fórum Social Mundial, encontro
Jovens Políticos pela América Latina, participação em conferências de políticas públicas (de saúde, juventude,
política para as mulheres e movimento negro). Esses eventos me possibilitaram trocas, pensar e vislumbrar: um
outro mundo é possível. Tenho a sensação de que essas vivências me trazem certa ‘mandinga’, na leitura, na
interpretação de textos e na minha escrita, um saber fazer e pensar política para além de elaborações e
compreensões racionais, entendendo mandinga como um modo de incluir o corpo na escrita da tese: “A mandinga
é a sapiência do corpo, é o saber que é lançado ao mundo a partir dos princípios e potências corporais. A mandinga
está expressa também na fala, já que não há separação entre o que é dito verbalmente ou não verbalmente. Tudo
que é textualizado nas mais amplas possibilidades de linguagens parte de uma experiência de saber que transita
pelo corpo enquanto agente coletivo e individualizado que é” (RUFINO, 2019, p.59). Incluo essas questões na
Introdução e na Metodologia, porque tenho a sensação de que essas experiências, na práxis pública, interferem na
interpretação do que vou extraindo nas entrelinhas, em alguns textos, especialmente na maneira como interpreto
Lélia Gonzalez.
17

plural, múltiplos e, muitas vezes, distintos entre si, abarcando contradições que são próprias ao
movimento. Quando trago o termo no singular, é considerando o feminismo interseccional, ou
seja, como práxis que, ao final, visa a acabar com qualquer forma de opressão e dominação,
seja essa opressão sexista, racista ou classista.
18

REFLEXÕES METODOLÓGICAS

A Epistemologia e a Metodologia delimitam um campo, têm a função de situar as bases


da pesquisa e as considerações e estilo de quem ocupa o lugar de autoria de um trabalho. Assim,
explicitar tais questões é parte importante de um trabalho acadêmico.
O método científico é, precisamente, a definição e a forma com que os critérios
escolhidos serão trabalhados, é a estratégia para delimitação e articulação do tema. Nesse
sentido, localizamos que partimos da Psicanálise, especificamente de um núcleo que se dedica
a pesquisas que articulam Psicanálise e sociedade, e isso se dá de maneira moebiana, já que
estão presentes como objeto de pesquisa as questões políticas tanto no laço social, na sociedade,
quanto a política inerente ao campo psicanalítico.
Outra informação que incluo, por mais que possa parecer ingênua, é situar que o núcleo
referido está localizado no Brasil. Digo isso para ressaltar o contexto social e político no qual
estamos imersos/as, uma conjuntura que tem como herança os processos de colonização e seus
valores, atualizados para o contexto atual, ou seja, posições que promovem o machismo,
racismo, segregação e ódio às diferenças, ao mesmo tempo em que, oficialmente, incluem “o
mito da democracia racial [...] o que ele oculta? Para além do que mostra?” (GONZÁLEZ,
2020, p.76). Pensar a pesquisa no contexto brasileiro produz quais imaginários? E, para a
Psicanálise, será que esse contexto opera modificações na pesquisa? E na práxis? Freud
inaugura esse método de pesquisa em que o pesquisador não se furta de seus posicionamentos;
Rosa (2004) destaca que ele é o primeiro a se arriscar nesse método que analisa a Psicanálise
extramuros, em extensão.
Acrescento que, em uma leitura atenta aos textos freudianos que são identificados como
sociais, os contextos históricos e sociais não ficam de fora. Bem como os contextos e as
conjunturas políticas também marcam o ensino lacaniano. Assim: “O método psicanalítico vai
do fenômeno ao conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta
psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria,
prática e pesquisa” (ROSA, 2004, p. 341).
A interpretação dos fenômenos se dá na interação, e não a priori. Assim, entendemos
que a escuta de uma análise é transgressora, em relação aos fundamentos que organizam a
sociedade, e que uma pesquisa psicanalítica sobre o laço social também pode conter um valor
transgressor. Dito isso, oriento-me de maneira semelhante a Lélia González sobre a escolha
metodológica e epistemológica na qual sustentarei este trabalho.
González tem uma admirável formação acadêmica, mas não se fecha na hermenêutica
19

academicista. Ela amplia seus horizontes de conhecimento, incluindo pensadores e pensadoras


que estão fora do circuito acadêmico, bem como, em um determinado momento da sua vida,
soma aos conhecimentos legitimados pelo discurso vigente outros saberes que escapam a essa
norma estabelecida e reconhecida pelo status quo, apropriando-se cada vez mais dos ‘saberes
ancestrais’ transmitidos pelas religiões de matriz africana e, por isso mesmo, permitindo-se
mesclar a linguagem formal ao modo coloquial de se expressar.
Ao mesmo tempo, seu encontro com a Psicanálise e com a descoberta freudiana de uma
outra abordagem da linguagem e da língua - que ganhou novos sentidos quando tal descoberta
foi retomada por Lacan - faz com que ela se aproxime cada vez mais da Psicanálise, por
intermédio da sua experiência em análise, bem como inclua as teorias psicanalíticas nas suas
formulações e no seu posicionamento como autora. Assim, ela vai dizer que: “Nosso suporte
epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja, da Psicanálise” (GONZALEZ, 2020,
p. 77), de tal modo que faço da epistemologia da Psicanálise a espinha dorsal também deste
trabalho, considerando como “a análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou, ainda:
a análise desencadeia o que a lógica domestica”. (MILLER, 1974 apud GONZALEZ, 2020, p.
77), já que, ao longo do trabalho, esses lugares que a Psicanálise presentifica estão presentes de
modo crítico. Mas, como Gonzalez, somo as epistemologias feministas e as críticas à
colonialidade que reposicionam determinantes filosóficos que enclausuram e colonizam o
pensamento, a partir da modernidade, deslocando o lugar ardiloso do suposto sujeito universal,
destronando tal sujeito de seus privilégios epistêmicos, bem como permitindo outras chaves de
leitura no encontro com a epistemologia psicanalítica. Lélia Gonzalez transitou pelos
movimentos sociais, especialmente pelo movimento negro, pela Psicanálise e pela política,
assim como, a partir do seu processo analítico, foi em busca do “candomblé, macumba”
(GONZALEZ, 2020, p. 287), edificando, a partir desses pilares, as fontes para construção de
saberes, “Lançou mão da Psicanálise ao candomblé2 para explicar a cultura brasileira” (EL
PAÍS, 2020).
Estou advertida dos limites que podem aparecer no caminho. Não pretendo uma
sobreposição ou uma harmonia que apague as diferenças – entre a Psicanálise e a práxis
feminista interseccional; compreendemos, inclusive, que essa harmonia é da ordem do
impossível. Mas, vou me autorizar, a partir de Lélia Gonzalez, a usar as frestas, e a modificar
alguns lugares. Assim, busquei formas de traçar pontos de intersecção na escrita deste trabalho
e, desse modo, em vários momentos me vi em uma encruzilhada!

2
Em certo sentido, a Psicanálise e o candomblé têm algo em comum. Ambos apreciam o mistério, sabem sobre os
limites do simbólico.
20

Em Pedagogia das encruzilhadas, Rufino (2019, p. 73) vai dizer que: “Os saberes em
encruzilhadas são saberes de ginga, de fresta, de síncope, são mandingas baixadas e imantadas
no corpo, manifestações do ser/saber inapreensíveis pela lógica totalitária”. Assim,
encruzilhada não diz respeito ao ponto limite entre dois caminhos, mas pode ser pensada como
um ponto de encantamento, no qual caminhos paralelos encontram-se e influenciam-se.
Segundo o historiador Luiz Antônio Simas (2020), a encruzilhada é um terreiro pluriversal, de
disponibilidade para o inesperado; é destino de permanência só viável na alteridade. Inclusive,
ela é considerada, em diversas culturas, como encontro entre caminhos, como o lugar em que
acontece o mágico, o extraordinário, ou seja, é menos um lugar de um impasse que fecha
caminhos e mais um lugar de encontro e possibilidades para o surgimento do novo.

[...] a encruzilhada é absolutamente fascinante para diversas civilizações, para


diversas culturas; nós temos um imaginário, uma espécie de senso comum de
que as encruzilhadas estão ligadas apenas aos saberes afro-brasileiros;
diversos povos veem o cruzamento de caminhos como o lugar do
extraordinário e, mais do que isso, ao contrário do que muita gente pensa, a
encruzilhada não é o lugar da dúvida, a encruzilhada é o lugar do encontro, é
o lugar do fluxo... de alteridade (SIMAS, 2020).

E é dessa maneira que eu vou tecendo a tese, tangenciando feminismos e Psicanálise,


colocando para trabalhar minha experiência como pesquisadora e psicanalista, sem renunciar a
meu lado feminista e militante.
Nesse sentido, acompanho a ideia de que: “Toda a experiência social produz e reproduz
conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a
noção de ideia, reflectida ou não, sobre condições do que conta como conhecimento válido”
(SANTOS, 2009, p. 9). Não há criação de conhecimento sem os sujeitos que produzem tal
conhecimento, “diferentes tipos de relações podem dar origem a diferentes epistemologias”
(Ibidem).
Por fim, ainda sobre a Metodologia, a posteriori percebi que, em cada parte do texto, a
forma de escrever foi acontecendo de maneira diferente, com a primeira parte, sobre a
Psicanálise e o eixo teórico dos discursos, carregada de ‘lacanês’, com termos e matemas
próprios da escrita lacaniana. Como veremos, a maneira como trabalho a teoria dos discursos
caracteriza um uso metodológico, para além de teórico-conceitual. Ainda que houvesse uma
tentativa de trabalhar tais termos para a compreensão desses conceitos de maneira mais ampla,
as especificidades que balizam os textos em Psicanálise estão muito presentes, é um Capítulo
marcado por giros e retornos, foi a maneira possível para desdobrar conceitos e passagens que
21

avaliei importantes para a compreensão dos laços sociais atualmente.


Já os Capítulos sobre os feminismos apresentam outra linguagem e outra forma
metodológica e de escrita: isso foi acontecendo em ondas, porque, por um lado, há a tentativa
de organizar e apresentar os feminismos de maneira fluida e linear, mas o pensamento feminista
não se constrói assim, por isso, em alguns momentos, avanço pontuando certos marcos
históricos e, depois, retrocedo e retomo outros conceitos-chave, a fim de demonstrar a
complexidade e os paradoxos presentes nas epistemologias, elaborações e avanços que a práxis
feminista pode construir.
Por último, no Capítulo dedicado a Lélia Gonzalez, existe algo do estilo da Lélia que
aparece na escrita, como, por exemplo, a possibilidade de reunir termos e contornos de
diferentes áreas do pensamento, incluindo-me um pouco mais no texto, e a forma com que ela
vai se posicionando, em diversos momentos, nas suas falas e artigos, colocando-se em terceira
pessoa, na discussão de alguns temas. Em Apêndice: A propósito de Lacan (2020), é perceptível
como ela desenvolve o pensamento lacaniano, em especial, o seminário O Avesso da
Psicanálise, do autor, destacando:

[...] a questão da função da linguagem, é importante apontar para o fato de que


a linguagem de primeiro grau, dadas as suas características, enfatiza o papel
do código ao colocá-lo como substituto do sujeito enquanto significante, isto
é, enquanto lugar e função fundamental para a significação (GONZALEZ,
2020, p.340).

Evidencio essa passagem, pois Gonzalez faz uso do lacanês em alguns momentos, mas
não deixa de lado o uso de termos populares, miscigenando vários saberes sem ficar capturada
pelo lacanês; pelo contrário, ela faz questão de sustentar certa informalidade na sua transmissão
– seja nos discursos, nas entrevistas ou em artigos. Segundo Januário Garcia34, ela usava a
mesma forma de se comunicar, independentemente de falar em conferências ou espaços
universitários, com interlocutores considerados intelectuais, ou de estar em ambientes entre
amigos ou nos movimentos nos quais circulava – como marca linguística da Amefricanidade.
Lélia movimenta esse lugar e, por consequência, altera a função da linguagem, ocupando de
outra forma, de uma maneira própria, o “lugar e função fundamental para a significação”, de
tal modo que, marcando essa posição, opera modificações via linguagem, subvertendo a
estrutura.

3
Essa referência pode ser encontrada no documentário Amefricanidade, disponível no Youtube
(AMEFRICANIDADE, 2020).
4
Fotógrafo do movimento negro desde 1974, foi por intermédio do movimento que ele e Lélia Gonzalez tornaram-
se amigos, em 1981, quando, a convite dele, ela concedeu uma entrevista para a Cultne (A PENSADORA É, 2020).
22

INTRODUÇÃO

Chegamos, enfim, ao nível do discurso do analista.


Naturalmente, ninguém assinalou – é muito curioso
que o que ele produz nada mais seja do que o
discurso do mestre, já que S1 é o que vem no lugar da
produção. [...] talvez seja o discurso do analista, se
fizermos esses três quartos de giro, que possa surgir
um outro estilo de significante-mestre (LACAN, 1969-
1970/1992, p.187).

Esta pesquisa pretende tomar como ponto de partida a teoria dos discursos, para pensar
a práxis feminista como laço social, mais especificamente, como a práxis feminista pode ocupar
o lugar de agente no discurso do/a analista, produzindo significantes inéditos e fazendo circular
novos significantes mestres (S1) na cadeia discursiva, possibilitando, portanto, a invenção de
novos sentidos no laço social.
Explico: a teoria dos discursos, em Lacan, é um instrumento para pensar e compreender
o laço social e a política, a partir da Psicanálise, como disse Lacan, na última aula do seminário,
prepara e antecede a formulação e a apresentação dos quatro discursos - “das funções da
Psicanálise no registro político” (LACAN, 1968-69/2008, p.387), à medida que “o inconsciente
é a política!” (LACAN, 1966-67, p. 236).
Política é um termo amplo, que originalmente se refere “à vida na polis, às instâncias de
poder estabelecidas cuja função era a de governar a vida na cidade” (CHECCHIA, 2011, p. 69)
ou seja, a política é a mediação das relações de poder.
A constituição do sujeito do inconsciente se dá na entrada da linguagem, na relação com
os significantes vindos do Outro; por sua vez, o discurso do Outro é a ideologia “dominante
que marca a época, o lugar, e determina subjetividades, preconceitos, hábitos de agir, falar e
pensar herdados como ‘naturais’ e que são bem mais inconscientes do que supomos” (QUINET,
2021, p. 15).
Segundo Marx, ideologia são os mecanismos operados por uma classe dominante, para
que os interesses de uma parte da sociedade pareçam, de maneira ‘inconsciente’, o interesse ‘do
todo’ da sociedade. Assim, a ideologia é o pensamento hegemônico ou, dito de outro modo, são
os interesses que se iniciam na base econômica, visando aos interesses materiais da classe
dominante, os quais, por sua vez, se expressam em ideias dominantes, consequentemente, em
dominação e, sendo assim, convertem-se, nas “únicas racionais, nas únicas universalmente
válidas” (MARX; ENGELS, 2007, p.48).
Assim, os discursos como laço social marcam e destacam essa relevância política
23

moderna na organização social tanto quanto na constituição do sujeito do inconsciente. Por isso,
assumimos essa chave de leitura, para pensar os sujeitos e o modo como se constroem suas
posições e giros nesse laço, incluindo as dimensões ideológicas e econômicas – incluindo a
economia de gozo de cada ser falante – e ressaltando os discursos como laços sociais para
pensar a práxis feminista, enquanto ocupando o lugar de sujeito político, para pensar essa práxis
em relação aos aparelhos discursivos como aparato para conjecturar a cultura e o modo como
se dão as relações pertinentes e inerentes ao laço social, de tal forma que cada modalidade opera
de maneira diferente, em cada modalidade discursiva.
Inicialmente, pretendíamos destacar o discurso da histérica como aquele que produz
modificações no campo social, seguindo os vestígios deixados por Lacan sobre a potência dessa
modalidade discursiva, quando afirmou que o discurso da histérica foi o que permitiu a
passagem histórica decisiva, “dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou. Que é
existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de sintoma”
(LACAN, 1969-70/1992, p.214).
No encontro com os conceitos marxianos, Lacan modifica o estatuto do sintoma. Nas
primeiras passagens do ensino em que inclui as referências dos conceitos de Marx, ele vai dizer:
“[...] sintoma, quer dizer a significância das discordâncias entre o real e aquilo pelo que ele se
dá, a ideologia, se quiserem, mas com uma condição: é que, para esse termo, vocês vão incluir
até a própria percepção; a percepção é o modelo da ideologia, é o crivo em relação à realidade”
(LACAN, 1966-67, aula de 10 de maio de 1967). Nesse contexto, o que movimenta a história
são as contradições, os conflitos. Marx é aquele que nomeia o surgimento de um novo
protagonista na história - o proletário – bem como o surgimento da luta de classes, como
marcadores da passagem do feudalismo para o capitalismo (XAVIER, 2013).

O que Marx faz aparecer, se encararmos os acontecimentos históricos ou as


produções ideológicas como sintomas, é, portanto, que não há ardil da Razão
ou, então, que, se ardis há, trata-se de ardis dos ideólogos e eles não são esses
‘ardis senão disfarçados’: racionalização, não é racionalidade ou razão!
(ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 173).

O sintoma manifesta-se a partir do inconsciente, todo sujeito cindido define-se por um


sintoma, e considerar essa cisão é a política da Psicanálise. Assim, inicialmente, pretendíamos
articular o sintoma ao discurso histérico, como um operador que possibilita mudanças históricas
e sociais, quando o sujeito dividido, ao ocupar o lugar do agente nessa modalidade discursiva,
rompe a regularidade posta pelos discursos de mestria, causando desordem, à medida que faz
frente aos significantes que vêm do Outro. Desse modo, a práxis feminista, em certo sentido,
24

opera a partir desse lugar de contestação à ideologia vigente e, dessa maneira, pode produzir
avanços históricos.
Acontece que é importante reconhecer essa potência de fazer desordem, e sua força
contestatória; todavia essa modalidade discursiva, apesar de possibilitar giros, não renuncia à
referência ao mestre, ela modifica, faz girar, mas não faz cair a ideologia vigente. Sendo assim,
compreendemos o seu valor no campo histórico, mas identificamos o seu limite, naquilo que
diz respeito a uma mudança estrutural que possa deixar cair a relação com a mestria posta, já
que fazer frente ao mestre também é manter-se referenciado por ele.
Dessa forma, valorizaremos tal modalidade, à medida que podemos dispor do discurso
da histérica, para fazer a passagem para outro elemento, que é o discurso do/a psicanalista
(LACAN, 1969-70/1992, p. 193). Portanto, nosso argumento é de que o primeiro movimento
‘necessário’ é o da histerização do discurso, já que é o discurso da histérica que permite a
passagem para o discurso do/a analista. Na práxis analítica, essa é uma posição a ser alcançada
na entrada em análise, isto é, o processo de ‘histerização discursiva’.
Desse modo, reconhecemos no discurso da histérica sua força crítica, o dizer “isso não”
a qualquer tentativa de captura proposta pelos discursos de mestria, suas coordenadas puderam
produzir “o retorno da verdade nas falhas do saber”, a partir do momento em que as teorias
críticas denunciam como e o que foi construído e estabelecido como “verdade” até então.
Lembrando que o significante só tem sentido articulado com outro significante, “se afirmarmos
materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia significante”
(LACAN, 1966/1998, p. 235).
Conquanto entendemos que fazer oposição é fundamental na disputa por espaço e que
o discurso histérico tem essa eficácia política, sendo um dispositivo crucial no âmbito político,
já que denuncia a tirania do mestre que faz da diferença uma forma de dominação, histerizar é
indiciar tal dominação.
Histericizar o sintoma altera o estatuto da insatisfação, e daí a importância do feminismo
no campo histórico como operando uma denúncia do que não vai bem. Afinal, como poderiam
as mulheres e os sujeitos racializados estarem ‘satisfeitos’ em uma formatação de laço social
que os destina a um lugar de exclusão, inferioridade e subalternização?
Assim, os movimentos, ao ocuparem essa posição de agente do discurso, no campo da
História, de maneira análoga ao que ocorre no processo de histerização discursiva, fundamental
em um processo analítico, fazem girar certo movimento que interroga o significante mestre,
questionando seu saber e propondo outro tipo de enlace que não visa ao universal. Destarte,
25

localizamos aí uma passagem importante que pode girar para a lógica não-toda, incluindo as
diferenças que podem originar algo inédito, semelhante à produção de S1 do discurso do
analista. Defendemos que essa é a via para desconstruir uma discursividade e realizar algum
tipo de passo adiante que, nesse caso, se dá pela via do desejo.
Desse modo, entendemos e defendemos a importância da construção de uma narrativa
no laço social que permita fazer circular – e escutar – a história, aos moldes do que se produz
em um processo de análise. Evidenciando a importância do discurso da histérica, mas para ir
além dele; por isso se faz necessário um segundo movimento, a passagem ao discurso analítico
como modalidade que abre para o não-todo, para sair do desejo como desejo insatisfeito e, nesse
segundo movimento necessário, alcançar o desejo decidido. Esse segundo movimento, que
opera o giro a partir do discurso histérico, no sentido do discurso do/a analista, é um passo
‘necessário’, por se tratar da única modalidade discursiva que é avessa à lógica de mestria,
senão a práxis feminista não poderia ir além do patriarcado. Esse segundo movimento é
necessário para sair do questionamento e inventar novas formas de estar no laço, de tal modo
que as assimetrias postas não se reduzam a um processo de hierarquização.
Nesse sentido, podemos encontrar em algumas práxis feministas esse giro orientado pela
lógica não-toda. Assim, analisaremos, particularmente, como Lélia Gonzalez faz girar o
discurso, levando esse giro até o ponto em que deixa cair algo, produzindo um significante
mestre inédito, capaz de introduzir novos sentidos, novas formas de estar no laço.
Gonzalez produz e provoca deslocamentos dentro e fora da Psicanálise, primeiro
histericizando, mas não parando por aí, por exemplo, quando em uma intervenção, no contexto
específico do lançamento de um livro - “negócio de livro sobre a gente” (GONZALEZ, 2020,
p. 75) -, ela diz: “nós, negros, estamos na lata do lixo da sociedade” (Ibidem, p. 77). Esse ato
contém um duplo aspecto: por um lado, denuncia o mito da democracia racial no Brasil, por
outro, coloca o lixo da sociedade no lugar de agente, operando com esse semblante no discurso,
colocando-se como resto, como objeto a, modificando toda a discursividade em ato,
desarranjando a mestria imposta.
O feminismo é diverso e se constitui de diferentes correntes; na verdade, o correto é
dizer que são feminismos, porém eu uso o termo no singular por dois motivos:
1) porque estou localizando como o movimento nasce dentro da cultura patriarcal
hegemônica. Feminismos, enquanto teoria, será trabalhado de maneira mais detalhada em
capítulo específico. O principal, neste momento, é entender que ele surge reivindicando direitos,
como uma práxis crítica ao status quo, buscando construir saídas para o lugar a que as mulheres
são destinadas, nessa configuração social, quando a práxis feminista pode ocupar o
26

agenciamento que orienta o discurso da histérica, ou seja, o lugar de agente que faz frente a esse
S1 hegemônico opera, desse modo, uma oposição ao mestre;
2) também uso feminismo, no singular, para me referir ao recorte específico do
feminismo que tomo como eixo central, a práxis feminista interseccional de Lélia Gonzalez.
Assim, escutaremos o feminismo como sujeito político no discurso, suas transmissões e
seus efeitos, a partir da circulação de outros significantes mestres, que escapam ao formato de
mestria/dominação, produzindo outros enunciados e enunciações, outros lugares e giros,
visando a uma política orientada pelo não-todo.
Ainda por meio da histerização discursiva, o sujeito político, tal como os seres falantes
nos consultórios, conta suas narrativas, e isso não é a partir do vazio, mas da história, entrando
em contato direto com o passado, que pode ser e é sempre reenscrito. Essa é a via possível para
compreender o presente e pensar em possibilidades e potencialidades para o futuro. De tal
modo, que incluir os giros é considerar que não será mais do mesmo mestre que se trata, talvez
se produzam deslizes e outro significante mestre. No entanto, é daí que se pode, aos poucos, e
em movimento, chegar a qualquer espécie de ‘separação’ ou ‘emancipação’ política.
Neste sentido, Audre Lorde (2019) vai dizer que devemos fazer das diferenças a nossa
força, não para fixar identidades, mas para abrir possibilidades, insistindo que as ferramentas
postas pela mestria vigente não servirão para superar essa lógica, mas podem ajudar a criar
possibilidades, para daí desmantelar a casa do mestre e produzir novos significantes mestres.
Antes disso, com a Psicanálise, sabemos que é preciso e precioso que se recorde, repita e elabore
– para, deste modo, reenscrever o que aconteceu e seguir adiante.
Advertimos que a aproximação da práxis feminista ao discurso da histérica, ocorre
devido ao lugar de contestação que o discurso possibilita e que a práxis movimenta. Por outro
lado, consideramos que, nessa modalidade discursiva, o desejo presente permanece como
desejo insatisfeito.
Como veremos, a práxis feminista que nos interessa realiza a contestação, passa por esse
quarto de giro, mas pretende um passo a mais, capaz de operar o giro discursivo que produza
modificação nas coordenadas discursivas, alterando sua lógica de poder, ou seja, o discurso
do/a analista. Por isso, retomamos a citação que abre esta introdução:

[...] ao nível do discurso do analista. [...] é muito curioso que o que ele produz
nada mais seja do que o discurso do mestre, já que S1 é o que vem no lugar
da produção. [...] talvez seja do discurso do analista, se esses três quartos de
giro, que possa surgir um outro estilo de significante-mestre (LACAN, 1969-
1970/1992, p.187).
27

Por isso, para Garcia (2021), “o que feministas como Lélia Gonzalez, bell hooks, Audre
Lorde propõem vai além de questionar o pai, soltando a mão do pai para ir adiante, produzindo
algo novo, inédito, que modifica a ordem vigente, mas mantém certa filiação”5.
Enfim, a presente tese tem como objetivo mostrar que, se, por um lado, o feminismo
exerce a função de questionar e fazer oposição ao discurso hegemônico, que impõe o masculino
como universal, por outro, pode ir além, dar um passo a mais – e aí cito outras feministas, mas
destaco Lélia Gonzalez e o seu “ir além do pai, sem perder a filiação”. Movendo giros
discursivos que culminaram na criação de novas discursividades. Partindo do uso contra-
hegemônico do pensamento do mestre, para alcançar seu avesso, o avesso do pensamento
hegemônico. Operando o giro necessário para a produção de um S1 inédito.

A práxis feminista e a cultura

O feminismo é histórica e didaticamente nomeado em ondas, com a primeira iniciando-


se no século XIX. Gosto dessa alusão às ondas, que nomeiam os movimentos feministas
justamente porque remetem a movimento, avanços e recuos, a um andamento que é inconstante
e que vai surgindo de lugares diferentes, de maneiras diferentes e que não é indiferente à
conjuntura da qual faz parte. O feminismo que direciona esta tese está localizado na terceira
onda, nos trilhos das diferentes diferenças e na força emancipatória do feminismo negro.
“Dito de maneira simples, feminismo é um movimento para acabar com o sexismo,
exploração sexista e opressão” (HOOKS, 2018, p. 17). Com essa definição, a autora “deixa
implícito que todos os pensamentos e todas as ações sexistas são problemas, independentemente
se são perpetuados por mulheres ou homens. Também é amplo o suficiente para incluir a
compreensão do ‘sexismo institucionalizado e sistêmico’” (Ibidem). Privilegiamos o
movimento feminista negro, por ele incluir a multiplicidade de experiências de tal forma que
ultrapassa a luta sexista, incluindo as intersecções de raça e classe somadas às questões de sexo
e gênero.
Para hooks (2018), as mulheres brancas e não brancas comungam da luta contra o
sexismo, mas é preciso considerar que afetam a vida das mulheres outras formas estruturais de
opressão, que fazem das assimetrias – inerentes a todo laço social – uma forma de hierarquia,
culminando na dominação e opressão de determinados sujeitos.

5
Transmissão oral, na banca de qualificação.
28

Inicialmente, o feminismo surge enquanto sujeito político, para evidenciar o que surge
como sintomático na modernidade.
Sabemos que, desde a modernidade, o estatuto das mulheres na sociedade apresenta uma
contradição no âmbito dos chamados Direitos Universais do Homem e do Cidadão (versão
original 1789)6, já que a promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade” excluía as mulheres
que igualmente estiveram à frente nesse processo revolucionário, mas que foram deixadas de
fora no momento seguinte. Assim, podemos pensar sobre isso que é sintomático na cultura,
quando fixa a mulher no lugar do Outro - “é notável como nessa construção o Outro muitas
vezes aparece como um grupo homogêneo no discurso (mulheres, negros, LGBTQIA+) ...] esse
outro que aparece fetichizado no discurso” (GIANESI; MOUNTIAN, 2017) -, reservando às
mulheres o lugar de submissão na sociedade, operação sustentada por uma ideologia que parte
da divisão sexual como marca inicial da diferença humana, uma ideologia tangenciada pelo
sexual, fundamentando uma discordância entre os sexos. Lembrando que a ideologia é a tática
de tornar certas ideias como verdadeiras e aceitas pela sociedade, sendo elas criadas pela classe
dominante de acordo com seus interesses (MARX, 1993). Como veremos, as questões relativas
ao sexo organizam a cultura como conhecemos.
Assim, a modernidade, situada a partir do advento da Revolução Francesa, inscreve uma
“contradição fundamental” (CEVASCO, 2010, p. 29). A Revolução Francesa e seu lema de
Igualdade, Fraternidade e Liberdade colocam em jogo uma ilusão, em um primeiro aspecto
sobre a igualdade de direito para homens e mulheres, para ambos os gêneros, na medida em que
tomou o homem como universal da humanidade, excluindo as mulheres dessa condição de
sujeito (na política e no campo dos direitos); além disso, consideramos a colonialidade como
produto da modernidade: a humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade
moderna (FANON, 2009; SANTOS, 2009). “A negação de uma parte da humanidade é
sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar
enquanto universal” (SANTOS, 2009, p.31). Santos afirma que essa realidade é tão verdadeira
hoje quanto foi no período colonial.
O capitalismo consolidado na modernidade instaura a ilusão da liberdade do/a
trabalhador/a, que esbarra e desaparece na necessidade da manutenção da própria

6
A Assembleia Nacional Constituinte da França Revolucionária aprovou, em 1789, a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, sintetizada em dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários. Pela primeira vez,
são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do homem, de forma econômica, visando a abarcar toda
a humanidade e sendo reformulada em 1793. Serviu de inspiração e base para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, promulgada pelas Nações Unidas, séculos mais tarde (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1948).
29

sobrevivência, de modo que, para o proletário, vender sua força de trabalho não é
necessariamente uma opção, como é hegemonicamente pregado no sistema capitalista. Essa
ilusão em torno da liberdade no capitalismo é uma criação, uma fantasia; e no âmbito social a
ideologia é uma realidade construída e sustentada pela classe dominante, pelos formadores de
opinião, por meio dos aparelhos ideológicos. Tal ideologia está impregnada de valores sexistas
e racistas, para além da exploração de classes. Marx é responsável por desvelar essa trama, por
mostrar como algo dessa realidade constitui-se, ao mesmo tempo que é velada, definindo como
a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Igualmente, o pensamento feminista e o
movimento negro desvelaram outros aspectos dessa contradição fundamental que emerge na
modernidade.
Assim, se, por um lado, o que aparece na Revolução Francesa é um suposto humanismo
que anuncia liberdade, igualdade e fraternidade, por outro, o que fica recalcado é toda
exploração e expropriação decorrente da colonização7 e exploração realizada pela Europa
contra as Américas e o continente africano. E a outrificação das mulheres, e a outrificação dos
“não europeus”.
Ora, nesse âmbito do que é construído e operado via discurso, como pensar os efeitos
que isso tem nas relações de dominação impostas pelo machismo em relação às mulheres? O
que dizer do colonialismo?
Não vem daí a práxis feminista como resposta, no campo social, subvertendo a
aparência ideológica, na cultura que naturaliza o status quo?
Por isso, o destaque dado à teoria dos discursos, para pensar o laço social atual levando
em conta como a práxis feminista interseccional - que considera gênero, raça e classe - constrói
epistemologias que desmentem “verdades hegemônicas”, tanto pelo valor de contestação, mas
não só, considerando-se também sua importância contra-hegemônica e como, historicamente,
tal práxis abala e movimenta a cultura.
Acompanhando a teoria lacaniana dos discursos, procuro situar as condições
apresentadas para pensar os artifícios que promovem exclusão, segregação e hierarquização,
nos laços e nos desenlaces sociais, via uma leitura psicanalítica, visionando possibilidades de
resistências e mudanças que podem emergir a partir de outras coordenadas, no artifício que
estrutura e organiza as sociedades.
Daí a importância do que podemos escutar e localizar de sintomático no laço social. Se,

7
Diversos autores trabalharam esse tema. Destaco aqui a maneira como Eduardo Galeano, em Veias Abertas da
América Latina, descreve o passo a passo desse processo, de como “A América era um negócio europeu”
(GALEANO, 2001, p. 36).
30

no laço, circulam significantes que impõem certas exigências, o sintoma é justamente uma
oposição às exigências colocadas, desvelando algo inerente ao mal-estar. Por isso, nossa aposta
é a de que, quanto mais o imperativo “recatada e do lar” aparecer, mais o oposto se fará
presente em ato. O sintoma é um posicionamento frente a esse mal-estar, é a resposta que vem
do encontro com o real, é uma resposta, um efeito.
Dito isso, no primeiro Capítulo, pretendemos trabalhar mais diretamente os conceitos
da Psicanálise, sobretudo a relação do sujeito no laço social, os discursos, a função política do
sintoma e seus afetamentos no corpo. Já que, como sabemos: “Um corpo humano é um
acontecimento que ocorre como efeito da entrada de um ser humano no âmbito da linguagem e
suas relações com o simbólico e a cultura” (PACHECO, 2010, p.297). Parto da Psicanálise
como um discurso, abrindo para toda a complexidade do que isso quer dizer, a saber: que ela é
uma prática clínica; que sustenta uma relação política interna ao nosso campo (o campo
lacaniano, o campo do gozo); que, enquanto discurso do analista visa à política do inconsciente,
o sintoma, como marca de singularidade. Mas, ao mesmo tempo, também é discurso, à medida
que ocupa um lugar político na cultura.
A teoria dos discursos é tomada por muitos como uma virada no ensino lacaniano,
acumulando ao campo da linguagem o que Lacan inventou e nomeou como campo do gozo: a
formalização da homologia entre mais-valia e mais-de-gozar possibilita pensar nas dimensões
daquilo que ultrapassa as palavras, uma teoria sobre o laço social, chamada de dos discursos,
que inclui o incalculável, daí a importância dessa homologia que Lacan apresentou. Esse
desenvolvimento mostra-se indispensável para que possamos trabalhar os aspectos que
ultrapassam o discurso “somente” como linguagem. Por isso, é necessário apresentar um pouco
das bases que configuram a teoria dos discursos.
O discurso do mestre é o discurso da dominação por excelência. Já, o discurso do
analista é a modalidade de laço que coloca o outro no lugar de sujeito, o agente presente nesse
discurso encarna o semblante de objeto a, sustentando um saber sobre a falta, para que o outro,
na condição de sujeito, opere a produção de um saber que visa ao avesso do que pretende um
significante universal. No discurso do analista, a política é a do sintoma enquanto marca de
singularidade. O matema que organiza os discursos tem quatro lugares fixos: o do agente, o do
Outro, o da produção e o da verdade. A escrita dos matemas se dá incluindo-se quatro elementos
que circulam por esses lugares: o S1, como significante mestre; o S2, como saber; o sujeito
dividido, que é o sujeito da Psicanálise, e o objeto a.
Acontece que, a cada giro a partir do qual os termos ocupam outros lugares, o
ordenamento discursivo modifica-se. Assim, o S1 agente do discurso do mestre não é o mesmo
31

S1 produto do discurso do analista: esse significante mestre, produzido como inédito, só é


possível quando a engrenagem gira e a assimetria presente em todo discurso não se converte
em mestria.
Entre o discurso do mestre e o discurso do analista, Lacan propõe o discurso
universitário, como uma modalidade moderna do discurso do mestre, chegando a dizer que é o
casamento do discurso do mestre com o capitalismo, é o saber sem sujeito que ocupa o lugar
de dominante, agenciando os outros elementos. É um discurso que produz um sujeito – o sujeito
universal – e que faz com que o significante mestre tenha valor de verdade - este representa um
quarto de giro retroativo ao discurso do mestre.
Já o discurso da histérica é um quarto de giro no sentido horário ao discurso do mestre;
nessa modalidade, é o sujeito dividido que no lugar de agente questiona o mestre. É um discurso
de extrema importância tanto para as questões histórico-políticas, por produzir enfrentamento
ao significante mestre hegemônico, um Isso não!. Aqui aparece algo de sintomático, nessa
relação em que o agente recusa o saber vindo do mestre, mas não deixa de manter o mestre
nesse lugar; o que, em termos políticos, pode significar avanços, modificações, mas, ainda
assim, sempre referenciado a uma lógica de mestria, mesmo que altere para um mestre que
possa ser mais ou menos permissivo, ainda assim a assimetria é posta como hierarquia.
O discurso da histérica é igualmente importante para os analistas. Para que haja uma
análise, aquele que procura um analista precisa se colocar no lugar de agente, interrogando-se
sobre a sua divisão para produzir um saber, que diga sobre a verdade enquanto falha, enquanto
falta. É o discurso que permite o giro para o discurso do analista, e é feito esse de um novo
significante. Em nosso entender, a teoria dos discursos é uma proposta da teoria lacaniana para
pensar questões políticas, ao mesmo tempo em que é um dispositivo valioso para pensar a
clínica. O discurso do analista é o único que preserva a assimetria como tal, sem querer fazer
da diferença motivo para dominação.
No terceiro Capítulo, pretendo trabalhar os estudos feministas e toda as suas
complexidades e possibilidades. Parto da historiadora Gerda Lerner, para enfatizar o paradoxo
entre o papel decisivo das mulheres na criação da sociedade e seu caráter marginal na estrutura
social. Humberto Maturana também se apresenta como fundamental para a compreensão do
surgimento do patriarcado. Seguiremos, então, acompanhando as questões históricas que
fundam o modelo de sociedade ocidental, ancoradas na divisão entre os sexos, estabelecendo a
divisão sexual e o gênero como formas de hierarquização e opressão das diferenças. Para isso,
seguirei Gayle Rubin, que parte da teoria de Freud e de Lévi-Strauss, mas de maneira crítica,
apontando como foi instituído o que entendemos hoje como condição feminina e, ao mesmo
32

tempo, como tal condição está diretamente ligada ao modo como se estruturaram as relações
civilizatórias, inferiorizando as mulheres, a ponto de tratá-las como mercadoria, como ponto
estruturante na organização social e econômica das sociedades ocidentais.
O feminismo se estabelece como um discurso de caráter político, intelectual e filosófico,
que produz teoria e se constrói em ato; é um fazer político, didaticamente trabalhado e
compreendido em ondas, surgindo no século XIX. No ano de 1897, deu-se, no Reino Unido, a
fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino, com o protagonismo de mulheres na
Europa, reivindicando direitos políticos e jurídicos, bem como pleiteando o direito à educação.
Esse momento é reconhecido oficialmente como primeira onda do feminismo. Acontece que,
em 1851, em uma reunião de clérigos, na Convenção dos Direitos das Mulheres, em Ohio, a
abolicionista estadunidense Sojourner Truth toma a palavra para protestar: “E não sou uma
mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos
celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”. Era uma
resposta aos homens que, naquela ocasião, diziam que as mulheres precisam de ajuda até para
entrar em carruagens e atravessar valas. A força do seu discurso ecoa até os dias atuais,
materializando a complexidade do feminismo, portanto se, oficialmente, as sufragistas
inauguram a primeira onda do feminismo, não podemos ignorar que. antes mesmo de esse fato
histórico acontecer, podemos identificar, de maneira retroativa, o protagonismo do feminismo
negro, com o ato de Sojourner Truth.
Incialmente, o movimento feminista surge enquanto práxis política que se escreve
fazendo frente ao discurso hegemônico, aos discursos de mestria que destinam as mulheres ao
lugar de Outro, de outrificado, como apresentou Simone de Beauvoir. A filósofa aprofunda a
análise da condição feminina em todas as suas direções e vai verificar que “é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam
de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como Outro”
(BEAUVOIR, 1949/2019, p.11), crítica altamente relevante que influencia a maneira de se
pensar a condição feminina dali em diante. Seu livro O segundo sexo revelou-se uma obra-
prima, um divisor de águas dentro e fora das teorias feministas. A racionalidade moderna toma
como verdadeira a concepção de um sujeito universal, dotado de razão e de propriedades
universais e identificáveis a todo indivíduo, ou melhor, a todo homem, estabelecendo esse
sujeito universal como uma referência epistêmica para toda tradição da educação moderna,
como um produto das ideias iluministas, concebido como modernidade, sendo que a educação
contemporânea é tributária da modernidade.
Então, quando Beauvoir descreve o lugar em que a mulher é colocada na cultura, no
33

lugar do Outro por mediação de outrem, ela produz uma crítica à modernidade, que concebe
um sujeito universal, idêntico a si mesmo, designando a mulher como Outro, assim, tem o
sujeito homem, e o outro que é a mulher. “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”
(BEAUVOIR, 1949/2019, p.13).
A publicação de O segundo sexo acontece em 1949, revolucionando o cenário
intelectual e político, apontando como “a humanidade é masculina, e o homem define a mulher
não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR,
1949/2019, p.12). Daí a tão conhecida sentença que vai dizer que a mulher precisa tornar-se
mulher.
A segunda onda tem início na década de 1960, influenciada por Beauvoir. Betty Friedan,
em 1963, escreve A Mística feminina, uma publicação importante, mas que só contemplava um
tipo de mulher, a mulher estadunidense branca, de tal modo que a publicação é reconhecida
como um marco da segunda onda e, ao mesmo tempo, muito criticada por mulheres que não se
identificavam com os dilemas apresentados no livro.
À medida que o feminismo avança, ele se constrói como um movimento plural e diverso,
classificado didaticamente em ondas. Ao longo desse terceiro Capítulo, apresento breve
histórico sobre as primeiras ondas do feminismo.
No quarto Capítulo, trabalharemos especificamente a terceira onda do feminismo, a
partir de duas ramificações: primeiro como se deram certas filiações: partindo de Beauvoir e da
filiação de Irigaray, para o surgimento do feminismo da diferença. A partir delas, destaco,
principalmente, o pensamento de Carla Alonsi, Luisa Muraro e Fina Birulés, por representarem
elaborações importantes, que localizam o pensamento das mulheres na academia e na produção
de conhecimento. Mas como minha ideia não é defender a diferença nesse sentido de ressaltar
as mulheres ou um feminismo que inverte as posições reforçando as diferenças existentes, já
que isso seria a manutenção do binarismo de gênero, tomarei emprestados alguns conceitos
disponibilizados por essas autoras, mas pretendendo dar ênfase a outra vertente do feminismo
da terceira onda.
Dentre filiações e rupturas, interessa-me trabalhar as feministas da interseccionalidade,
demonstrando como o feminismo da diferença é um passo importante de elaboração, mas é
necessário um passo a mais, ir além de reivindicar direitos e apontar a castração inerente ao
pensamento universal. A teoria interseccional, mais do que denunciar as formas de mestria que
se pretendem universais, visa a propor outra forma de laço, questionando não só os lugares de
mestria, mas colocando na berlinda a própria forma que sustenta essa lógica. Assim, autoras
como Angela Davis, Audre Lorde, Patricia Hill Colins, bell hooks e Lélia Gonzalez apresentam
34

e definem a diferença como diferença absoluta, próxima do que, em Psicanálise, entendemos


como singularidade, de tal modo que só assim é possível conjecturar um laço que sustente as
assimetrias, sem hierarquizá-las.
Hooks, mais do que criticar, propõe que O feminismo é para todo mundo - título do seu
livro, lançado pela primeira vez no Brasil, em 2015 -, acreditando desde sua juventude que o
feminismo era uma ferramenta de “justiça social” (HOOKS, 2019, p.7) e entendendo o
feminismo como um movimento da margem ao centro, feminismo como um outro modo
estrutural de pensar política, não só como pensamento, mas como práxis. Para a autora: “O
movimento feminista deveria ser de importância primordial para todos os grupos ou indivíduos
que desejam o fim da opressão” (HOOKS, 1984, p.33). Segundo Garcia8, mais do que fazer
oposição ao mestre, o que hooks faz é sustentar um outro modo de estar no laço, em ato, o que,
na Psicanálise, com Lacan, identificamos como desejo decidido.
Assim, reservo ao último Capítulo uma construção sobre o que seria um outro laço
possível, unindo-me a Lélia González e à maneira como ela analisa e faz girar os discursos,
colocando para trabalhar o discurso do analista, a fim de produzir um novo significante mestre,
capaz de ventilar novos sentidos e efeitos orientados por uma política do não-todo. Promovendo
uma espécie de trampolim que possibilita chegar a um outro lugar na/da cultura. Localizamos
nos discursos como forma de laço um ponto estrategicamente importante para operar giros.
Lélia González, pensadora que toma a Psicanálise como ferramenta fundamental,
dentre outras de que dispõe, para pensar a cultura brasileira; intelectual feminista presente na
construção do pensamento acadêmico, circulando por diversas disciplinas na área de humanas;
mestra em Comunicação Social e doutora em Antropologia Política, pesquisando sobre gênero
e raça e tendo ministrado aula na Sociologia e na Filosofia, além de ser figura-chave no
movimento de mulheres e no movimento negro. Uma autora que fala português, ou melhor,
pretuguês, termo que ela cunha para falar das peculiaridades da cultura brasileira, tendo como
pedra angular a teoria dos discursos de Jacques Lacan.
Enfim, vale frisar que o feminismo interseccional não constrói somente uma denúncia
ao universal, mas ocupa-se de conceitos e atos que propiciem uma liberdade visando à
construção de um lugar inédito para os sujeitos, o que me faz pensar em aproximações entre as
diferentes diferenças9, o conceito de liberdade para este feminismo que privilegio na tese e o
conceito de singularidade para a Psicanálise, apresentando aqui como essa diferença pode estar

8
Via transmissão oral na banca de qualificação.
9
Termo usado pelas autoras do feminismo.
35

em diálogo com o que Lacan propõe como não-todo, de tal modo que, primeiramente, passa
pela histerização possível, via discurso histérico, operando uma denúncia ao mestre, para dar
um passo a mais, vislumbrando uma lógica discursiva que, mais do que denunciar o mestre,
possa renunciar a esse mestre. Por isso pensar o discurso do analista, já que, nesse discurso, a
assimetria não visa à dominação. A partir daí, como pensar o feminismo e a possibilidade de
uma saída coletiva?
36

1 O LAÇO SOCIAL E OS QUATRO DISCURSOS

1.1 Ensaio sobre os discursos como laço social

Ele é inteiramente manejável a partir dessa relação


de S1 a S2 que veem ali escrita. Nesse discurso o
sujeito se encontra ligado, com todas as ilusões que
comporta, ao significante-mestre, ao passo que a
inserção no gozo se deve ao saber (LACAN, 1969-
70/1992, p.97).

Este Capítulo é, inicialmente, uma revisão teórica da teoria lacaniana dos discursos, de
como se opera a constituição do sujeito e suas implicações para pensar o laço social, indicando
como as estruturas de linguagem precedem o sujeito e como Lacan, nesse momento teórico,
inclui o campo do gozo e atualiza alguns conceitos - como objeto a e grande Outro -, e as
implicações presentes nesse processo que possibilita o surgimento do sujeito em sua relação no
laço social. É uma estrutura que propõe lugares e funções, e que apresenta uma chave de leitura
para pensar questões políticas. É via articulação significante que se produz a amarração social
possível, sem deixar de fora os tropeços, a dimensão do ‘incalculável’ que permeia as relações.
É uma forma de retomar os processos civilizatórios para analisar o laço social atual e
sua origem, além de incluir críticas pertinentes ao modo de estruturação social.
Em O mal-estar da civilização (1930/2010b), Freud apresenta a relação da cultura com
a produção do mal-estar nos seres humanos. Ele firma a tese de que existe um antagonismo
intransponível entre as exigências da pulsão e as cobranças da civilização. Com Freud,
pensamos cultura, ou civilização, como tudo aquilo que domestica o homem e o separa dos seus
“instintos animais”: na verdade, após a entrada na cultura, pelas vias da linguagem, não se trata
mais de instintos, de tal modo que, a partir da teoria psicanalítica, Freud irá desenvolver o
conceito de pulsão. A civilização exige do sujeito uma renúncia pulsional; desse modo, o mal-
estar na civilização é o mal-estar do laço social. Já nas suas pesquisas iniciais, Freud aponta a
cultura como uma oposição estrutural à vida pulsional, e como isso tem um efeito
“patologizante”.
Assim, desde o início, surge um impasse entre a natureza e a cultura: por um lado, o
recalcamento pulsional é necessário para a instauração da cultura, ao mesmo tempo há algo que
resiste e escapa a esse ordenamento pulsional. Existe, assim, uma relação de determinação
dificilmente contornável entre as condições de possibilidade de instauração da cultura e seus
efeitos patológicos sobre essa mesma cultura.
37

Desse modo, em O mal-estar na civilização (1930/2010b), Freud vai afirmar que o


relacionamento com os outros é a maior causa de sofrimento entre os sujeitos humanos. A
entrada na linguagem impõe os atos de governar e educar e, consequentemente, a exigência de
ser governado e ser educado. Depois que Freud inventou a Psicanálise, podemos nomear mais
dois impossíveis: fazer desejar e analisar.
A partir dessa relação com a linguagem, Lacan vai chamar o laço social de discurso e,
seguindo esse vestígio, nomeia quatro discursos: discurso do mestre, discurso universitário,
discurso histérico e discurso do analista.
Governar corresponde ao discurso do mestre, que inaugura a entrada na linguagem.
Nessa modalidade de laço, o governar domina a relação, ele é o agente que comanda tal
discursividade. Educar estabelece o discurso universitário, que é dominado pelo saber, laço no
qual o agente é representado por S2. Fazer desejar corresponde ao discurso histérico, que é
dominado pelo sujeito da interrogação, simbolizado por S barrado ($). Nesse laço, constatamos
uma interrogação: o sujeito interroga-se sobre o desejo. Por último, analisar é o discurso
inventado por Freud, no início do século XX, e nessa modalidade de laço, “o analista se apaga
como sujeito por ser apenas causa libidinal do processo analítico” (QUINET, 2006, p.17).
Então, com Freud, sabemos que a maior causa de sofrimento para o homem é a relação
com seu semelhante, este é um mal-estar.
Lacan (1969-70/1992), ao estabelecer a teoria dos quatro discursos, construiu algo muito
específico, que é a relação do sujeito e a entrada na linguagem. Ao mesmo tempo, também
estava em jogo naquele momento uma reflexão sobre as questões relativas à sociedade, tais
como o funcionamento e o papel da ciência, do capitalismo, dos movimentos que se
encontravam em certa ebulição no final da década de 1960, especialmente na França.
Para Lacan, discurso é um dispositivo que origina relações fundamentais de movimentos
e lugares, em que “se instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais pode
certamente inscrever-se algo que é bem amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações
efetivas” (LACAN, 1971/2007, p.11). Não são puramente enunciações, mas sim um aparato
que provoca hábitos, relações entre dominados e dominantes, posições que iniciam o próprio
processo de entrada na civilização. Assim, o discurso do mestre é o discurso do inconsciente,
considerado o discurso mais antigo, por ser o discurso que inaugura o laço social. Portanto,
cada discurso é um modo de engendramento de gozo que condiciona “nossa conduta, nossos
atos, eventualmente, se inscrevem no âmbito de certos enunciados primordiais” (LACAN,
1971/2007, p.11).
O autor designa-os enquanto estruturas, que formam e definem o que “chamamos sujeito
38

– em virtude do significante que, no caso, funciona como representando esse sujeito junto a um
outro significante”. Nessa estrutura, o S2 é o signo do campo do grande Outro, da bateria
significante que “integra a rede do que se chama um saber” (LACAN, 1971/2007, p.11).
Saber como ambiguidade, “saber o gozo do Outro” (Ibidem, p. 12) e, para fechar, os
termos a - o objeto a - são aqueles que vão operar a função presente, que determina cada
discurso:

Figura 1 – Matema do discurso do mestre.

Fonte: Lacan (1969-1970/1992, p. 48).

Antes de prosseguir com a revisão e a compreensão dos termos referentes aos discursos,
proponho um retorno ao seminário De um Outro ao outro (1968-69/2008b), que prepara e
orienta o que será proposto como discursos no seminário seguinte, O avesso da Psicanálise
(1969-70/1992).

1.2 A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala

“A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 1968-69/2008b).


Presente no quadro, em 1968, essa é a frase escrita por Lacan, na entrada do seu De um Outro
ao outro (Ibidem), seminário que abre os caminhos para essa compreensão dos discursos como
laço social. Nessa ocasião, como é próprio do ensino lacaniano, Lacan recorre a um vasto
conjunto de referências – internas e externas à Psicanálise – até chegar a propor sua teoria sobre
discursos como laço social: como já era presente em seu estilo de construção e transmissão, ele
recorre aos mais distintos campos do saber e formulações diversas para chegar ao ponto que lhe
interessava para a sua construção, como referências importadas da tradição filosófica, das
Ciências da Religião, da História, do momento político, da Termodinâmica, de conceitos
matemáticos via lógica, agregando, às particularidades do fazer clínico e do que Freud
inaugurou como um novo discurso, o discurso do analista, capaz de produzir modificações no
sujeito e em suas relações na estrutura social.
39

Ciente da complexidade que permeia esse eixo teórico, organizarei o Capítulo da


seguinte maneira: modelos, matemas e a criação dos primeiros artifícios para pensar os
discursos; em seguida, retomo elementos presentes no início dessa elaboração, os passos do que
Lacan indica incialmente, trabalhando a partir da provocação de Foucault, cotejando com
conceitos e categorias da teoria marxiana, para repensar alguns conceitos psicanalíticos.
Passaremos, também, pela dialética do senhor e do escravo, em Hegel, já que esse é um ponto
importante, na concepção e na escrita do discurso do mestre, para Lacan; acrescentando,
finalmente, a relação entre a linguagem e a cultura desde Freud (1930/2010b) para, a partir daí,
apresentar detalhadamente a escrita dos matemas (LACAN, 1969-70/1992), aprofundando as
distinções e as particularidades de cada um dos quatro discursos: sua montagem e suas
produções, distinguindo os que aparecem como impossíveis daqueles que orientam a
impotência.
Do discurso do mestre ao discurso universitário existe uma relação de continuidade,
mas, quando entrarmos no discurso da histérica, proponho uma pausa para incluir
acontecimentos históricos de 1968 e seus efeitos, dentro e fora do ensino lacaniano, apontando
como esse discurso comporta leituras políticas. Também incluo uma leitura sobre a teoria do
sintoma, em Lacan – os três giros e modificações sobre o conceito de sintoma, bem como
destacarei suas duas vertentes: a função do sintoma em cada ser falante e o sintoma social. Essa
elaboração levará a tecer o discurso do analista e pensar de que modo a novidade desse discurso
pode conter um modo diferente dos demais, no que diz respeito à preservação da assimetria,
nesse laço.

1.3 Modelos e matemas; circuitos e artifícios para a escrita do ensino lacaniano

Podemos identificar a maneira pela qual modelos, esquemas, grafos e matemas estão
presentes, ao longo do ensino lacaniano, como uma tentativa de apresentar conceitos,
articulando determinadas relações inerentes aos conceitos. Há uma espécie de sincronicidade
nas relações que organizam o inconsciente. O que quer dizer que há uma lógica própria que
agencia o estado ou a condição de dois ou mais fenômenos ou fatos que ocorrem
simultaneamente, relacionados entre si ou não. Para Eidelsztein (1992), criar os esquemas e
matemas foi a maneira encontrada por Lacan para analisar e transmitir a sincronia - os conceitos
que são postos em jogo e estão dados simultaneamente - e, ao mesmo tempo, transmitir que
qualquer apresentação discursiva implica necessariamente a diacronia. Falando de outro modo,
os esquemas, modelos e grafos, presentes ao longo do ensino, são “una buena vía para seguir
40

y estudiar la articulación entre lo que se caracteriza por estar marcado por una lógica
sincrónica y aquello que lo hace por una lógica diacrónica” (EIDELSZTEIN, 1992, p. 12) e,
ainda, “Todo discurso responde a una estructura fundamental consistente en ser una cadena
de términos, lo que produce como efecto ineludible que los conceptos y sus articulaciones sean
expuestos primero uno, luego el outro, y así sucessivamente” (Ibidem, p. 11).
Para Eidelsztein (1992), por exemplo, o Esquema L tem a estrutura do que, em
matemática, chama-se um grupo, enquanto o Esquema R tem uma estrutura topológica. Ele vai
dizer que Lacan está, desde seus primeiros esquemas, elaborando as consequências de ter
introduzido na Psicanálise a estrutura de seus três registros - o Real, o Simbólico e o Imaginário
– que, tardiamente, Lacan situa pela via topológica do nó nomeado de borromeo. O que para
Freud distribuiu-se em tópica, para Lacan tem uma dimensão topológica: “[...] llamada
segunda, adolece de certa torpeza. Me imagino que era para darse a entender dentro de los
limites de su época.” (LACAN, 1980, apud EIDELSZTEIN, 1992, p. 264-265).
A articulação psicanalítica acerca dos três registros implica o sujeito do inconsciente,
produzindo uma diferenciação em relação ao ensino freudiano e sua proeminência do registro
simbólico. No Seminário 5, As formações do inconsciente (1957-58/1998b), já está presente a
tentativa de Lacan de articular algo do Real em relação ao Simbólico, à medida que propõe o
grafo do desejo, que é um passo a mais, a partir dos seus esquemas anteriores, para pensar
demanda, desejo, e o que transborda: a linguagem.
Desse ponto, gostaria de dar um salto teórico para chegar ao Seminário 16, De um Outro
ao outro (1968-69/2008b), e ao Seminário 17, O Avesso da Psicanálise (1969-70/1992), já que
estão lá os esquemas e matemas que nos interessam para pensar o laço social e a práxis política,
nesta tese.
Retomando, então, a frase escrita no quadro na entrada do Seminário 16: De um Outro
a outro: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 1968-69/2008b,
p. 11), Lacan anunciava o que estaria por vir sobre o campo do gozo, e sua intersecção com o
campo da linguagem. “A essência da teoria psicanalítica é a função do discurso, e é muito
precisamente nisso, que talvez lhes pareça novo ou, pelo menos, paradoxal, que eu digo sem
fala” (LACAN, 1968-69/2008b, p. 14). Nessa ocasião, ele introduz os discursos como laço
social, considerando suas construções e elaborações anteriores, ao mesmo tempo que
movimenta certos conceitos em outras direções.
Nos discursos, Lacan monta sua estrutura e trabalha a intersecção entre o sujeito e o
41

Outro10, incluindo em tal estrutura um ponto de entropia11. Para Lacan, não há uma
metalinguagem que daria a última palavra sobre o sujeito e, ao invés disso, o inconsciente está
estruturado por um vazio, marcado por uma impossibilidade. Portanto Lacan vai situar o sujeito
via relação com o significante, e sem sua posição em relação com o seu gozo.
É em relação à regulação de gozo que aparece a dimensão entrópica, à medida que o
significante introduz uma perda existente na estrutura, produzindo um efeito de gozo. De tal
modo que é a posição do sujeito em relação ao seu gozo que determina o vínculo social, é isso
que resultou na formulação dos discursos como laço social. Se, com Freud, a linguagem regula
a lei, via processo civilizatório, agenciando a renúncia à satisfação pulsional, com a teoria dos
discursos, Lacan funda o campo do gozo e os efeitos da linguagem sobre o real ‘do corpo’,
sobre o gozo.
Assim, para Lacan, o discurso é um dispositivo que origina e regula relações
fundamentais em que “se instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais
pode certamente inscrever-se algo que é bem amplo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 11). Não são
puramente enunciações, mas um aparato que organiza as relações do “Outro ao outro”, ou dos
sujeitos com os seus “semelhantes”.
Cada discurso é um modo de engendramento de gozo que condiciona as posições e os
procedimentos inerentes às relações. Longe de ser pura abstração, as funções, os movimentos,
os sentidos, a dinâmica e os elementos que agenciam o gozo, via aparelhamento significante,
são modos de dizer sobre o que enlaça os corpos em uma sociedade, como se constituem as
relações sociais.
Os discursos resultam da articulação significante que aparelha o gozo “como uma
estrutura necessária” (LACAN, 1969-70/1992, p. 11), sendo o discurso do mestre o que
inaugura a cadeia significante, de tal modo que há uma homologia entre o discurso do mestre e
o discurso do inconsciente, já que ambos contêm os mesmos elementos em sua escrita, no modo
como se escrevem os matemas, por isso o discurso do mestre é considerado o discurso mais
antigo, e o responsável por inaugurar o laço social. Na origem do discurso, está S1, que se dirige
ao campo do Outro, a bateria significante escrita no matema como S2, e é dessa articulação que
emerge o sujeito da Psicanálise.

10
Em 1938, Lacan trabalha o estádio do espelho, buscando entender os primeiros momentos do sujeito humano e
a função da alienação na construção da imagem do seu corpo, na construção do Eu. Assim, o estádio do espelho
aparece como formador da função do Eu (je), e o que advém da sua relação com o Eu (moi), de tal modo que o
estádio do espelho revela a alienação à imagem especular na constituição do Eu, bem como revela seu destino
alienante. O espelho é utilizado como metáfora para, posteriormente, pensar o grande Outro.
11
Retomaremos esse conceito em momento oportuno.
42

É impossível pensar o sujeito da Psicanálise sem levar em conta as questões políticas


constituintes a todo laço social. Assim, pensar os discursos é considerar as questões relativas à
sociedade: conjecturar a passagem do feudalismo para o capitalismo, o funcionamento e o papel
da ciência e a instauração da modernidade, com o surgimento do discurso universitário como
uma variante da lógica de mestria; considerar os movimentos sociais, quando se encontravam
em ebulição, situando o discurso da histérica, e a forma com que esses movimentos
influenciaram na construção desse eixo teórico; bem como a importância do surgimento de um
novo discurso inventado por Freud, o discurso do analista.

1.4 Lacan com Marx

O Seminário 16: De um Outro ao outro começa com uma crítica ao estruturalismo.


Lacan, de início, preocupa-se em ressaltar a importância daquilo que está “fora-de-sentido dos
ditos” (LACAN, 1968-1969/2008b, p. 13), usando o livro bíblico do Gênesis e outros exemplos,
para provocar e abrir questões sobre o valor da verdade na história. Para pensar sobre esse
cálculo que definiria o valor, ele traz Marx, para, de saída, mostrar um impossível, o cálculo
pensado a partir da mais-valia, resultando em um incalculável.
Para Lacan, a mais-valia é o que inaugura o discurso de Marx, é o que o situa no lugar
e na autoria. E, nesse caso, afirma que Marx era estruturalista, à medida que introduz um
procedimento. “Assim como o trabalho não era novo na produção de mercadorias, a renúncia
ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova”
(LACAN, 1969-1970/2008, p.17), ressalta o autor, fazendo referência às funções colocadas em
jogo na dialética hegeliana, da renúncia do escravo em relação ao senhor, que desemboca em
um tipo de relação, de laço social. Distinguir Marx como aquele que inaugura um discurso,
discurso diferente da modalidade do “mestre – senhor” hegeliano, é fazer da mais-valia uma
função, operando um discurso que diz sobre uma estrutura social. A interlocução aqui se dará
de outra forma, o ponto-chave são as questões econômicas, é a função do mais-de-gozar.

Chegado o momento de introduzir o que lhes dará a imagem da unidade da


função teórica, nesse processo, própria ou impropriamente, chamado de
estruturalista, peço que me permitam um curto-circuito.
Recorrerei a Marx, cujo dito tive muita dificuldade de não introduzir mais
cedo, importunado que sou por ele há muito tempo, num campo em que, no
entanto, ele fica perfeitamente em seu lugar. É de um nível homológico
calcado em Marx que partirei para introduzir hoje o lugar em que temos de
situar a função essencial do objeto a (LACAN, 1968-1969/2008b, p. 16).
43

Assim, o termo discurso é usado para distinguir “o que está em questão no discurso
como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos
ocasional [...]”, tratando-se de um “discurso sem palavras” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 11).
Nesse aspecto, é interessante pensar por onde Lacan quis falar sobre o que escapa à fala.
Lembrando mais uma vez que, no quadro, na entrada do seminário, estava escrito: “A essência
da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (Ibidem). Ele nos apresenta mais: “Trata-se da
essência da teoria. A essência da teoria psicanalítica é a função do discurso, e é muito
precisamente nisso, que talvez lhes pareça novo ou, pelo menos, paradoxal, que eu diga sem
fala” (Ibidem, p.14).
Em Além do princípio do prazer (1920/2010c), Freud propõe que os aspectos
econômicos da vida psíquica passavam por uma regulação que mescla prazer e desprazer. Freud
toma exemplos de repetição que ilustram o funcionamento desse entrave, dessa regulação
ambígua. Sobre isso, Lacan discorre:

Por só se inscrever como repetição infinita de si mesmo, o sujeito fica


excluído, muito precisamente, não de uma relação que seja de interior nem de
exterior, mas do que é inicialmente postulado como saber absoluto.
Quero dizer que há aí, na estrutura lógica, algo que esclarece o que a teoria
freudiana implica de fundamental no fato de o sujeito, originalmente, frente
ao que o relaciona com um declínio do gozo, só poder manifestar-se como
repetição, e repetição inconsciente.
Esse, portanto, é um dos limites em torno dos quais se articula o vínculo da
manutenção da referência ao saber absoluto, ao sujeito suposto saber, como o
chamamos na transferência, como índice de necessidade repetitiva que decorre
daí, que é, logicamente, o objeto pequeno a (LACAN, 1968-1969/2008b,
p.72).

Lacan reafirma que, no nosso campo, nenhuma harmonia é possível, ela é inadmissível.
Os ditos produzem efeitos, uma regra do pensamento que se assegura no não pensamento, como
aquilo que pode ser sua causa: é com isso que nos confrontamos ao pensar sobre o inconsciente.
É fora de sentido que “existo como pensamento”, “meu pensamento não é regulável ao meu
bel-prazer” [...] “ele é regulado” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.13), gerando fenômenos à sua
própria lógica. “O ser do pensamento12 é a causa de um pensamento como fora-de-sentido”
(Ibidem), logo “Com efeito, há um processo de falha, e é desse processo que a prática da

12
A ciência é um advento moderno, bem como a sua categoria de sujeito é igualmente moderna. Assim, Lacan
parte de Descartes, que fez da dúvida seu método, inaugurando o Cogito: “Cogito, ergo sum” ou Penso, logo
existo. É nesse sentido do “ser do pensamento” e da inclusão do “fora de sentido” que Lacan formaliza o sujeito
da Psicanálise como marcado pela divisão, por uma falta estruturante, deslocando o sujeito do Penso, logo existo,
para subverter, articulando o “penso onde não sou, sou onde não penso”.
44

estrutura se serve, mas só pode servir-se dele [...]” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.13).
É nessa orientação, atento ao que escapa à fala, que Lacan retoma a função da repetição
em Freud, para localizar algo do gozo. O que ocasiona essa dobrada com Marx, para atualizar
o campo psicanalítico, por meio das considerações sobre a economia política em Marx. O
conceito de mais-valia é utilizado para destacar a função do mais-de-gozar no discurso do
analista, algo que está no coração da fórmula dos discursos. O objeto a ocupa uma função
essencial a partir do conceito de mais-valia13, em Marx. É por esse caminho que se dá a
descoberta do mais-de-gozar, conceito homólogo à mais-valia: o mais-de-gozar é uma função
de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso (LACAN, 1968-1969/2008b).
O princípio do prazer é um limite em relação ao gozo. A repetição funda-se em um
retorno ao gozo, em uma busca por representação, por algo que totalize, represente. Na
engrenagem de recuperação impossível do gozo perdido, “O significante, então, articula-se por
representar um sujeito junto a outro significante. É daí que partimos para dar sentido a essa
repetição inaugural, na medida em que ela é repetição que visa ao gozo” (LACAN, 1968-
1969/2008b, p. 49). É a isso que Lacan conecta a função do objeto perdido, chamado objeto a.
Um gozo a mais, não passível de simbolização pela via da significação fálica, tal como a mais-
valia de Marx. Essa matemática do gozo, como estamos vendo, é imperfeitamente realizável,
ou, por outro lado, é perfeitamente irrealizável. Não se trata de um desajuste que pode ser
ajustado ou uma conta sem resto, pelo contrário, sempre haverá uma falta e um excesso de resto.
É nesse descompasso que funciona o cálculo do gozo.
É isso que dá lugar ao objeto a: “[...] o sujeito não pode reunir-se em seu representante
de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto
a. Nada pode ser produzido aí sem que o objeto seja perdido”. Marx decifra que entre o valor
de uso e o valor de troca produz-se e cai a mais-valia, e Lacan elabora “que é ele senão a maior
ou menor facilidade da condução do sujeito em torno desse algo que chamamos de mais-de-
gozar, mas ao qual ele é incapaz de dar nome?” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.21).
O trabalho não é algo novo, mas é Marx, a partir da função do mercado, que o situa em
um lugar diferente, no qual o trabalho em si passa a ser um mercado – mercado de trabalho – e
é isso que permite a Marx mostrar o que é a mais-valia. Assim como o trabalho não é novo, e

13
A mais-valia é a parte do valor do trabalho que não é remunerado, a produção que não volta para o trabalhador.
Essa dimensão é tempo, um tempo que não se recupera. No capitalismo, as mercadorias produzidas pelo trabalho
do proletário passam a ter função de troca, o valor não é pautado pelo valor de uso e sim de troca, e é desse modo
que se gera a valorização do capital. Trata-se da mais-valia, o valor incomputável nas relações entre força de
trabalho e capital – “perdido” – pelo trabalhador, porque este não recebe de maneira justa pelo produto de seu
trabalho. Desta feita, a mais-valia é essa margem que ultrapassa o lucro – a mais-valia ultrapassa precisamente o
lucro, que é representável simbolicamente sob a forma do cálculo (MARX, 2012).
45

sim sua função, a renúncia ao gozo também não é algo novo:

O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz
evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a
essência do discurso analítico. Essa função aparece em decorrência do
discurso, [...] um efeito do próprio discurso (LACAN, 1969-1970/1992, p.
17).

O mercado detém os meios de gozar, implica o sujeito, há um correlato com o Outro, o


objeto a da fantasia – no Outro – coloca o sujeito como causa de si. Lacan vai dizer que o Outro
é aquilo que produz a consistência do sujeito, e sua ingênua confiança de que ele é como eu. O
seu equivalente é o não-gozo, a miséria, o desamparo e a solidão. “Tal é a contrapartida do
objeto a, desse mais-de-gozar que constitui a coerência do sujeito enquanto eu” (Ibidem, p. 25).
Assim, ao tratar desse novo passo teórico, Lacan evidencia a autoridade que confere a
Marx e sua importância em desvendar a questão do que é o objeto do capital. Em Marx14, não
se trata de estabelecer uma lógica e, sim, de apreender uma lógica determinada. Ele pesquisou
sobre a sociedade civil burguesa e a relação com o capital, como o capitalismo surge e se
desenvolve nessa sociedade. Ele faz uma interpretação e uma observação de algo que se
apresenta como fenômeno, não operando uma separação entre sujeito e objeto e, sim,
pesquisando a partir dessa relação.
Lacan interessa-se pelo jovem Marx, é curioso ele afirmar que lê Marx desde sua
experiência na clínica em Sant-Anne, em 1966; é patente que ele está diante da crítica de Marx
a Hegel, mas, aqui, na formulação da teoria dos discursos, é evidente que a obra predominante
é O capital, é a da mais-valia, a dos conceitos de proletário, greve, revolução, valor, produto,
mercadoria, abrangendo as questões históricas, a passagem do feudalismo para o capitalismo.

14
Na teoria marxista, o materialismo histórico pretende a explicação da história das sociedades humanas, em todas
as épocas, por meio dos fatos materiais, essencialmente econômicos e técnicos. A sociedade é comparada a um
edifício cujas fundações, a infraestrutura, seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em
si, a superestrutura, representaria as ideias, costumes, instituições (políticas, religiosas, jurídicas etc.). As relações
sociais são inteiramente interligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens
modificam o seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, modificam todas as relações sociais. A propósito,
Marx escreveu, na obra A miséria da filosofia (1847), na qual estabelece polêmica com Proudhon: “O moinho a
braço vos dará a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial” (MARX,
1847/2001, p. 106). Tal afirmação, defendendo rigoroso determinismo econômico em todas as sociedades
humanas, foi estabelecida por Marx e Engels, no cenário do permanente clima de polêmica que mantiveram com
seus opositores, e foi atenuada com a afirmativa de que existe constante interação e interdependência entre os dois
níveis que compõem a estrutura social: da mesma maneira pela qual a infraestrutura atua sobre a superestrutura,
sobre os reflexos desta, embora, em última instância, sejam os fatores econômicos as condições finalmente
determinantes. As relações sociais do homem são constituídas pelas relações que o homem mantém com a
natureza, onde desenvolve suas práticas, ou seja, o homem constitui-se a partir de seu próprio trabalho, e sua
sociedade constitui-se a partir de suas condições materiais de produção, que dependem de fatores naturais (clima,
biologia, geografia...), ou seja, da relação homem-natureza, assim como da divisão social do trabalho, da sua
cultura.
46

São esses os conceitos que irão assistir a tese sobre o mais-de-gozar como função nos aparelhos
de discurso.
A passagem do feudalismo para o capitalismo foi uma revolução operada pela
burguesia; nesse sentido, a observação lacaniana sobre o “ato revolucionário”15 é algo que
conhecemos mal - não podemos confundir revolução com subversão. A revolução burguesa
introduz na cena histórica, de maneira obscura, a função da mais-valia como peça principal na
engrenagem do capitalismo.
É uma revolução que percorre todo um ciclo, mas que volta ao mesmo lugar, a uma
estrutura de mestria. Para Lacan (1969-1970/1992), a lógica é a mesma sugerida por Hegel com
a dialética do senhor e do escravo, pois a cena histórica desloca-se, mas a estrutura se mantém.
Por isso, a observação sobre ter cautela quando o assunto é revolução. Lacan, inclusive, recorre
a Copérnico para que não haja dúvidas sobre isso. O que Copérnico fez - segundo Lacan - foi
tão somente mudar o centro, trocá-lo da Terra para o Sol, o que não muda em nada nossa
concepção de mundo, que permanece, ainda assim, perfeitamente esférica: “O significado acha
seu centro onde quer que vocês o carreguem” (LACAN, 1972-1973/1996, p. 59).
Dito isso, podemos concluir que considerar Marx é incluir a leitura política no que diz
respeito ao interesse sobre os discursos que estabelecem a cultura.
As relações sociais, a política, são como os sujeitos, emergem para depois evanescerem.
O laço social é estruturalmente descontínuo e desarmônico, em ambos os casos a satisfação não
é plena, de forma que é geradora de um resto irrecuperável.

[...] se acrescentarmos a isso a constatação de que, no interesse de Freud pela


Kultur e, notadamente, a interrogação sobre a origem e o sentido da
Civilização assim como seus efeitos sobre a pulsão e sua satisfação, prevalece
o exame da ‘realidade social’ dos fatos sociais, estamos no direito de presumir
que apenas o encontro da obra de Marx por Lacan tornou possível a
emergência da noção de sintoma social e permitiu lhe dar o estatuto no campo
freudiano (ASKOFARÉ, 1997, p. 163).

Com o campo do gozo e a função do mais-de-gozar, o ensino lacaniano adquire novo


vigor, opera-se um deslocamento na perspectiva teórica, o Real ganha importância em relação
ao Simbólico e ao Imaginário, passo teórico que produz efeitos nos conceitos psicanalíticos.

15
Referência ao “ato revolucionário” dos estudantes, em maio de 1968, que veremos adiante.
47

1.5 Freud e Marx: a autoridade que inaugura novos campos

Lacan estava atento ao seu tempo, aos barulhos nas ruas, aos burburinhos nos cafés, ao
que diziam as outras vertentes psicanalíticas, às conferências de colegas da academia. A
formulação da teoria dos discursos da Lacan tem como referência, também, a conferência O
que é o autor? (1969/2001), na qual Michel Foucault discute o que é o autor, separando Freud
e Marx dos demais autores das Ciências Humanas. Nessa ocasião, Foucault situa a Psicanálise
como mais uma discursividade:

[...] acredito que a instauração de uma discursividade é heterogênea às


transformações ulteriores. Desenvolver um tipo de discursividade como a
Psicanálise, tal como ela foi instaurada por Freud, não é conferir-lhe uma
generalidade formal que ela não teria admitido no ponto de partida, é
simplesmente lhe abrir um certo número de possibilidades, tentar isolar no ato
instaurador um número eventual restrito de proposições ou de enunciados, aos
quais unicamente se reconhece valor fundador e em relação aos quais tais
conceitos ou teoria admitidos por Freud poderão ser considerados como
derivados, secundários, acessórios (FOUCAULT, 1969/2001, p. 287).

Lacan estava presente na referida conferência e, nessa ocasião, como estamos


acompanhando, ele profere uma larga aproximação entre Freud e Marx. E participa da discussão
suscitada por Foucault:

Recebi o convite muito tarde. Lendo-o, notei, no último parágrafo, o “retorno


a”. Retorna-se talvez a muitas coisas, mas, enfim, o retorno a Freud é alguma
coisa que eu tomei como uma espécie de bandeira, em um certo campo, e aí eu
só posso lhe agradecer; você̂ correspondeu inteiramente à minha expectativa.
A propósito de Freud, evocando especialmente o que significa o “retorno a”,
tudo o que você̂ disse me parece, pelo menos do ponto de vista em que eu pude
nele contribuir, perfeitamente pertinente.
Em segundo lugar, gostaria de enfatizar que, estruturalismo ou não, não me
parece de forma alguma que se trate, no campo vagamente determinado por
essa etiqueta, da negação do sujeito. Trata-se da dependência do sujeito, o que
é completamente diferente e, muito particularmente, no nível do retorno a
Freud, da dependência do sujeito em relação a alguma coisa verdadeiramente
elementar, e que tentamos isolar com o termo “significante”.
Em terceiro lugar - limitarei a isso minha intervenção -, não considero o que
seja de forma alguma legítimo ter escrito que as estruturas não descem para a
rua, porque se há alguma coisa que os acontecimentos de maio demonstram é
precisamente a descida para a rua das estruturas. O fato de que ela seja escrita
no próprio lugar em que se opera essa descida para a rua nada mais prova que,
simplesmente, o que é muito frequente, e mesmo o mais frequente, dentro do
que se chama de ato, que ele se desconhece a si mesmo (FOUCAULT,
1969/2011, p. 297-298).

Essa exposição antecede a formulação lacaniana da teoria dos quatro discursos, que se
48

consolida no seminário seguinte. A formalização não é exclusivamente uma resposta ao


filósofo; ademais, Lacan apresenta o laço social como discurso e a Psicanálise diferenciando-
se dos demais discursos, na contramão dos discursos de mestria. Assim, o discurso da
Psicanálise é uma nova discursividade, campo teórico e político que ultrapassa a função do
autor: “Assim está muito bem, e isto nada tem a ver com o status mais ou menos vacilante da
função do autor” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 36).
A partir disso – mas não só por isso –, Lacan formula o discurso do analista e o distingue
como sendo avesso ao discurso que remete a uma hegemonia original, que ele nomeia de
discurso do mestre. Assim, de imediato, podemos identificar dois modos de laço social: o
discurso do mestre e o do analista.
Logo, “A função-autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação
e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT,
1969/2001, p. 14), e segue:

[...] a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas
regras, e passa, assim, para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou
da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em
uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve
não para de desaparecer (Ibidem, p.7).

Podemos identificar aí uma resposta a Foucault sobre Marx e Freud inaugurando novos
discursos, justamente por ocuparem uma função, a função do autor. Freud, por exemplo,

[...] se lança para explicar o funcionamento do aparelho regulador do


inconsciente, no que ele rege uma economia radical que nos permite apreciar
não apenas todos os nossos comportamentos, mas também nossos
pensamentos. Em franca oposição do que se constitui, tradicionalmente, como
o alicerce dos filósofos, quando se trata de abordar o que ocorre com o bem
do homem, posto que o mundo inteiro está suspenso no sonho do mundo
(LACAN, 1969-1970/1992, p.189).

Sair de um esquema de continuidade, essa é a função do autor. Nesse sentido, é colocado


na cena uma autoria que modifica lugares.
É nesse passo que Lacan propõe matemas, para formalizar os discursos. Assim, ele se
apoia no que há de novo no discurso de Marx, para nomear o que se destaca como função no
discurso do analista, o mais-de-gozar. “O que há de novo é existir um discurso que articula essa
renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a
essência do discurso analítico” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 17). A partir daí, ele tece um
49

minucioso trabalho articulando autores, conceitos e sentidos para, ao final, apresentar o discurso
do analista como uma estrutura discursiva, topologicamente organizada.
De tal modo, vou entendendo que chamamos de discursos um dispositivo pensado para
compreender o laço social de forma estrutural, aparelhando o gozo de maneira distinta, a cada
discursividade. Este é responsável por agenciar as relações que enlaçam os seres falantes, cada
aparelho de linguagem reserva posições capazes de produzir funções diferentes, logo, produtos
diferentes. É um modo de pensar o que tem de ‘estrutural’ no sujeito e suas modificações, a
partir de quatro modelos estabelecidos como laço social.
Considerando o preâmbulo sobre os esquemas, a entrada com Marx e o diálogo com
Foucault, não considero as estruturas arranjos definitivos e trans-históricos. Interessa-me partir
desse instrumento, para pensar as relações que constituem o ser falante que conhecemos, a partir
desse dispositivo do lacaniano: como cada forma discursiva interfere de maneira distinta no
funcionamento das coisas, como se estabelecem as relações e como cada uma dessas relações
geram produtos distintos. Enfim, os discursos são formas de submissão de gozo, um
aparelhamento, um ordenador de gozo; logo, os discursos operam pela via do poder. Há uma
relação de poder entre os discursos e sua dimensão política, porque, no fundo, os discursos
dizem respeito ao exercício das relações de poder (CHECCHIA, 2015).

1.6 Quatro discursos

Partindo da tradição filosófica europeia, Lacan (1969-70/1992) vai tomar a dialética do


senhor e do escravo para, com Hegel, formalizar o discurso do mestre como ponto de partida
para conjecturar as relações, como modo inaugural para os demais discursos. Se o discurso do
mestre é a lógica de mestria por excelência, os semblantes estão colocados de tal modo que o
significante mestre ocupa o lugar de agente.
Diferente do discurso universitário, que é também um discurso de mestria,
paradoxalmente: igual, mas diferente. Nessa modalidade, é o saber que ocupa o lugar de
dominante, um saber sem sujeito é a novidade do discurso do universitário, como fruto do que
aparece de novo na modernidade e na sua forma de produzir ciência, sustentando certa função
universalista como forma de dominação; portanto, é a partir da gestão e produção de um saber
sem sujeito e da mais-valia na estrutura econômica.
O terceiro discurso, nessa escrita lacaniana, é o discurso da histérica, o agente é o sujeito
dividido havendo-se com o que está em jogo diante dessa divisão. Não é um discurso de mestria,
no entanto, ao mesmo tempo, o sujeito que emerge nessa lógica discursiva dirige-se a um
50

significante mestre, a um mestre, mesmo que seja para renunciar a ele. O discurso da histérica
é um dispositivo interessante para pensar política, já que podemos pensar os movimentos sociais
no lugar de agente, movimentando as estruturas, realizando avanços históricos e operando a
circulação de significantes de mestria diferentes, produtores de novos sentidos menos
universalizantes.
Lacan (1969-1970/1992), por exemplo, localiza o método socrático como agente, nesse
laço. O semblante que ocupa o lugar de agente segue endereçando e abrindo novas questões, ao
mesmo tempo em que mantém “salvo” o lugar reservado ao mestre, mesmo que seja para dizer
que esse mestre é castrado. É interessante pensar uma aproximação com Sócrates, no que se
refere aos efeitos do endereçamento de questões, já que colocadas, por um lado, nesse lugar de
passagem, como acontece em uma análise, por outro lado, o problema é que o circuito
promovido por esse enlace, por vezes modifica, mas não rompe relação com a lógica de mestria.
Historicamente, podemos, inclusive, identificar o contrário: as vezes em que a partir do discurso
da histérica algo vacila e o giro retorna para o discurso do mestre, ao invés de avançar no sentido
do discurso do analista. Quando isso acontece, observamos uma maior rigidez ou autoritarismo
que aparece no retorno ao mestre16. De todo modo, esse giro, quando operado de maneira
coletiva, possibilita a mudança de acontecimentos no campo da história, como veremos.
Quanto ao discurso da histérica, foi este que permitiu a passagem decisiva, dando seu
sentido ao que Marx historicamente articulou, que é, a saber, existirem acontecimentos
históricos que só podem ser julgados em termos de sintomas. Não se viu aonde isso chegaria,
até o dia em que se dispôs do discurso da histérica para fazer a passagem com uma outra coisa,
que é o discurso do psicanalista (LACAN, 1969-1970/1992, p.193).
Daí o quarto discurso proposto por Lacan, o do analista, como um discurso que autoriza
um enlace às avessas ao discurso de mestria, capaz de produzir um outro enlace que preserve a
assimetria. Por fim, destacamos a função de Freud como autor, como criador de um dispositivo
que produz um novo laço, inaugurando um novo campo.

16
Olhando retroativamente, podemos perceber tal efeito, o giro que convoca um mestre nos acontecimentos
conhecidos como junho de 2013.
51

1.7 Escrevendo os matemas

São quatro lugares que, partindo de quarto de voltas, produzem quatro discursos. A
constituição do sujeito emerge entre S1 no lugar agente e S2 como campo do outro, quando S1
se dirige a S2. Os outros dois lugares que completam o discurso localizam-se abaixo da barra:
embaixo do agente está o lugar da verdade, que, nessa discursividade inaugural, é ocupado pelo
sujeito dividido, barrado; embaixo do Outro, é o lugar da produção e, nele, nessa modalidade,
localiza-se o objeto a.

Figura 2 – Matema do discurso do mestre.

Fonte: Lacan (1969-1970/1992, p. 48).

O sujeito da Psicanálise é um sujeito que emerge entre dois significantes, da maneira


como está inscrito no patamar superior do discurso do mestre, tomando o discurso como uma
organização coletiva de gestão do gozo.
Quatro discursos, como formas de ordenamento do gozo, a saber: discurso do mestre,
discurso universitário, discurso histérico e discurso do analista. Essa formalização atribui quatro
lugares como posições permanentes na estrutura dos discursos, quais sejam: o lugar do agente,
do Outro, da verdade e da produção. Sendo que o agente e o Outro ocupam o patamar de cima
na estrutura e se relacionam entre si, isto é, o agente direciona-se no sentido do Outro. A
verdade, localizada abaixo do agente, encontra-se separada pela barreira do recalque.
Igualmente, a produção encontra-se na parte inferior da barra do Outro. O agente é quem
domina a produção discursiva, dominando o laço social. Nessa montagem, o agente dirige-se
ao campo do Outro. O princípio de todo discurso envolve uma articulação entre o campo do
sujeito e o campo do Outro, como mostra esquema encontrado no Seminário 17:
52

Figura 3 – O lugar dos matemas dos discursos.

Campo do Sujeito Campo do Outro

Fonte: Lacan (1969-1970/1992, p. 48).

Portanto, nessa lógica, o discurso do mestre é o que funda o sujeito e a sociedade, já que
permite e promove a entrada na linguagem, inaugurando a civilização.
O deslocamento no sentido horário é chamado por Lacan (1969-1970/1992) de
regressão, uma vez que desvela o que emerge sob a barra do recalque. Esse deslocamento se dá
por um giro de ¼ de volta. Com os discursos, é formalizado o modo de ação do que é dominante,
como efeito do enunciado em cada discurso, sendo assim: S1, o significante mestre, no Discurso
do Mestre; $, o sujeito dividido, no Discurso da Histérica; S2, o saber, no Discurso da
Universidade, e a, o mais-de-gozar, no Discurso do Analista. Desse modo, no Discurso do
Mestre, domina a lei da estrutura; no Discurso do Universitário, o saber; no Discurso Histérico,
o sintoma; no Discurso do Analista a, o mais-de-gozar.

Figura 4 – Os matemas dos discursos em Lacan.

Fonte: Lacan (1969-1970/1992).

O lugar inicial é chamado de lugar do agente, porque está no lugar de dominância, lugar
privilegiado, por determinar a intencionalidade do discurso. Assim,
1. Discurso do Mestre, a dominante é a lei (S1) o ato é governar;
53

2. Discurso da Histérica, a dominante é o sintoma ($), visa fazer desejar;


3. Discurso da Universidade, a dominante é o saber (S2), o ato é educar
4. Discurso do Analista, a dominante é o rechaço à posição do mestre (Objeto a pensado
como causa de desejo), o ato é analisar.

O Outro é o lugar a ser dominado, “aquilo que ele confessa querer dominar, querer
amestrar” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 65). A seta que vai do agente em direção ao Outro
revela o que o dominante pretende tomar para exercício do seu poder, para exercer domínio.
Por isso a tomada inicial de Lacan, para partir da relação do senhor e do escravo como modelo
inaugural, à medida que o mestre - enquanto significante dominante - exerce poder sobre o
escravo que, por sua vez, detém um saber, um saber que não é “dominado” – sabido – por ele.
Uma volta de giro, partindo do discurso do mestre, e temos o discurso da histérica: o
agente está no lugar que, ao mesmo tempo, sustenta e faz furo na ordem do discurso do mestre
– o agente é a própria insatisfação, o agente aparece como um sintoma. O avesso do discurso
do mestre é o discurso do analista, pois o discurso do analista procura escutar a verdade sobre
a falta, a castração sobre a qual o discurso do mestre não quer saber. O discurso do mestre é o
molde da operação de simbolização, é o discurso do inconsciente.

[...] determinado por razões históricas, que essa primeira forma, a que se
enuncia a partir desse significante que representa um sujeito ante outro
significante, tem uma importância toda particular, na medida em que, entre os
quatro discursos, ela se fixará no que iremos enunciar este ano como discurso
do mestre (LACAN, 1969-1970/1992, p. 19).

Essa operação, a simbolização, tem um resto inassimilável, impossível de ser


representado por um significante; o gozo é o que resta como não simbolizável. Desse modo, o
discurso do mestre é aquele que civiliza, que provoca a emergência do sujeito no laço social.
Quando se trata da lógica do discurso, daquilo que os matemas apresentam como
matematizáveis, é fundamental pensar que não estamos falando do conteúdo discursivo e, sim,
da forma, do modo como isso opera. Por isso Lacan vai dizer que a palavra pode ser trocada,
sem abalar o mecanismo da linguagem. O que não quer dizer que a palavra não seja carregada
de efeitos.
A estrutura conserva-se pela via da linguagem enquanto estrutura, e não da língua
enquanto fala. É justamente por ter a linguagem como instrumento que se constroem relações
para além das enunciações.
O sujeito é efeito, é o que emerge na cadeia significante sucedida do campo do Outro,
54

da bateria significante que não podemos desconsiderar como fazendo parte da rede chamada
saber. Dito isso, podemos afirmar que a posição do sujeito do inconsciente, no laço social, passa
pelo lugar que ele ocupa e está intimamente conexo com a cultura da qual o sujeito faz parte.
Dizer que é uma estrutura que ultrapassa as palavras não quer dizer que as palavras não sejam
sem efeitos, como veremos em outro momento deste texto.
Como exposto, Lacan propõe uma trama entre linguagem, discurso, campo do Outro e
gozo, como estratégia para falar do laço social, assim reforçando, mais uma vez, a não separação
entre a psicanálise do sujeito do inconsciente e o social. Dito de outro modo, “o sujeito carrega
as marcas do social e não há sujeito fora do social” (IZCOVICH, 2016, p. 8), e essa concepção
é anunciada desde Freud:

[...] na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado


enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia
individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado,
mas inteiramente justificado (FREUD, 1921/2006, p.14).

Uma breve reflexão: seria justamente porque o sujeito carrega as marcas do social, como
lembrou Izcovich, que podemos repensar quais as marcas do social em cada tempo, de que
modo elas influenciam os sujeitos na atualidade. Daí a proposta de pensar e acolher a ideia de
interseccionalidade na nossa práxis. Entendemos que é pertinente aos analistas estarem atentos
ao pensamento feminista, antirracista e anticolonial, bem como considerar as questões sociais.
Dito isso, é a partir da entrada na linguagem que o ser humano constitui-se como
humano, cada ser falante irá se formar por meio do cuidado e do desejo que lhe é oferecido. É
a partir de um laço entre quem oferta o cuidado e o bebê que necessita de cuidados que algo
acontece, instaurando-se, assim, um enlaçamento e, ao mesmo tempo, uma perda, um laço que,
de saída, inscreve um furo, um furo que diz sobre a falta17 estrutural produzida simultaneamente
à entrada na linguagem. Um dos seus nomes é castração.
Segundo Lacan, “não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e
se define por um discurso” (1972-73/2009, p. 37). São essas coordenadas que moldam as
pulsões, as relações passam por uma construção cultural, uma operação significante, que
permite que as coisas se estabeleçam na cultura de determinada maneira, de tal modo que isso
tenha uma aparência que vela essa operação, não deixando claras as origens desses efeitos

17
Falta já que a entrada no simbólico, na linguagem, faz com que algo fique de fora, algo que não é da ordem do
simbolizável, aquilo que diz respeito ao inconsciente, ao sexual, outro argumento importante que aparece ao longo
da tese, mas que irei aprofundar na articulação entre as partes 1 e 2 do trabalho.
55

pulsionais na cadeia significante. O que nos lembra a pertinência do conceito de ideologia e


como esta circula pelas brechas do que não é nem precisa ser dito.
Tem um circuito discursivo que marca a relação dos sujeitos com as coisas, por exemplo,
que constrói, sustenta e reforça o lugar das mulheres na cultura. E o sistema discursivo é tão
sofisticado que todas as nuances possíveis provocam desdobramentos, passando pelo lugar da
mulher no laço, que não é o mesmo que da mulher trans, da mulher negra, mulher negra e de
determinada classe social, e assim suscetivelmente – por isso o significante só pode ser lido
articulado a outro significante, é isso que possibilita o surgimento da cultura e todos os seus
giros e desdobramentos.
A análise, quando sustenta esse conflito, possibilita ao sujeito construir um caminho em
que ele possa se organizar, esvaziando as identificações vindas do campo do Outro, orientando,
assim, na direção do tratamento para uma construção singular, para que, ao final, cada ser
falante possa identificar a sua marca de singularidade, o seu sintoma, ou sinthoma, para marcar
a distinção proposta por Lacan, anos depois.
É pela via do sintoma que se opera a Psicanálise. Inicialmente, sintoma queixa, sintoma
insatisfeito, para, na circulação e giros que possibilitam o alcance do discurso do analista, esse
sinthoma possa ser outro. Mas, antes de avançarmos para o discurso do analista, vale uma volta
a mais, na retomada de alguns termos, para pensar como essa estrutura organiza e diz sobre o
social.
Então, inicialmente, temos o discurso do mestre como aquele que produz a entrada na
cultura.
Os discursos em apreço nada mais são do que a articulação significante, o
aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que
eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem as palavras, que
vêm, em seguida, alojar-se nelas (LACAN, 1970-1971, p. 177).

Antes de continuar discorrendo sobre os matemas que escrevem os quatro discursos,


apresentarei alguns conceitos fundamentais para a compreensão dessa escrita em matemas, que
Jacques Lacan propõe.
56

1.8 O objeto a e a sua função

Retomando brevemente o Seminário 10: A Angústia (1962-63/2005), podemos entender


que Lacan vai recuperando conceitos importantes apresentados por Freud, para incluir
modificações: por exemplo, é a partir da Coisa freudiana que ele propõe o objeto a como função.

Se o desejo existe e sustenta o homem em sua existência de homem, é na


medida em que a relação (S punção a) é acessível por algum desvio, em que
certos artifícios nos dão acesso à relação imaginária construída pela fantasia.
Mas isso de maneira alguma é possível de maneira efetiva. O que o homem
tem diante de si nunca é senão a imagem virtual, i’(a) [...] o a, suporte do
desejo da fantasia, não é visível naquilo que constitui para o homem a imagem
de seu desejo (LACAN, 1962-1963/2005, p. 51).

De maneira moebiana, esse mesmo a é objeto de desejo e objeto da “imagem da falta”,


ou o objeto que presentifica a falta. Desse modo, ele propõe que o afeto da angústia sinaliza o
Real, de tal modo que o objeto a tem função de resto, resto insurgente da linguagem sobre o
corpo do sujeito, designando “um lugar de opacidade”, bem como representa a função da causa.
Dessa maneira, “cada vez que falamos de causa, há sempre algo de anticonceitual, de
indefinido. [...] Em suma, só existe causa para o que manca” (LACAN, 1964/2008, p. 28-29).
Portanto, “o inconsciente nos mostra a hiância” (LACAN, 1964/2008, p.30), e

Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não


reconhecer aqui [...] que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, o
carretel, é ali que devemos designar o sujeito. A este objeto daremos
ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a minúsculo (LACAN,
1964/2008, p.66-67).

Como objeto símbolo da falta, em resumo,

Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que


primeiro chamei a função do corte, e que se articula, agora, no
desenvolvimento de meu discurso, como função topológica da borda. A
relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de hiância
(LACAN, 1964/2008a, p. 202).

Ainda no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/2008a),


Lacan vai dizer que é por aí que poderiam estar “[...] as relações entre os seres no real [...] da
função do sujeito definido como efeito do significante” (p. 202-203). De tal modo que: “os
processos devem, certamente, ser articulados como circulares entre o sujeito e o Outro [...] Este
57

processo é circular, mas, por sua natureza, sem reciprocidade. Por ser circular, é dissimétrico”
(p. 203).
Portanto, desde o Seminário 11, quando acontece sua ‘excomunhão’, fruto da
divergência com os pós-freudianos, Lacan autoriza-se a novas formulações, apresentando
elaborações e formalizações que sedimentam os discursos como aparelho de linguagem que
estrutura o campo do gozo, do sujeito como “uma resposta do real da repetição significante de
gozo” (QUINET, 2006, p.32). É nesse contexto que o objeto a é definido como mais-de-gozar,
pois, de maneira entrópica, “organiza toda a dialética da frustração” (LACAN, 1969-
1970/1992, p. 18).
Comecei destacando, nesses trechos anteriores, a formulação dos discursos, que é o eixo
teórico que apresentarei, para recuperar como algo da lógica que irá ser estabelecida somente
nos seminários De um Outro ao outro (1968-1969/2008b) e O avesso da Psicanálise (1969-
1970/1992), mas já estava presente anteriormente, ao mesmo tempo que passam (qual o sujeito
desse verbo?) por modificações que resultam em um novo campo, o campo lacaniano como
campo do gozo.
O objeto a ocupa uma função capital, a partir do conceito de mais-valia em Marx. É por
esse caminho que se dá a descoberta do mais-de-gozar, conceito homólogo à mais-valia. “O
mais-de-gozar é uma função de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar
ao objeto a” (LACAN, 1968-1969/2008b, p. 19).
O deslocamento teórico do conceito de sintoma segue e acompanha as formulações em
torno da noção de objeto a. Inicialmente o objeto a encontrava-se no âmbito do Imaginário, em
referência ao desejo e ao Outro/Autre, cuja sigla é a. Lacan introduz o objeto a, desse modo, no
Seminário De um Outro a outro: “Este outro, o pequeno, com seu tom de notoriedade, era o
que designamos nesse nível, que é de álgebra, de estrutura significante, como objeto a”
(LACAN, 1969-1970/1992, p. 12).
Na cadeia significante, o significante intervém e articula-se com outros significantes, e
é na emergência dessas articulações que surge o sujeito barrado, dividido. “Enfim, nós sempre
acentuamos que desse trajeto surge alguma coisa definida como uma perda. É isto o que designa
a letra que se lê como sendo o objeto a” (LACAN, 1969-1970/1992, p.13). O objeto
originalmente perdido e por onde extraímos uma função, encontra-se diretamente ligado ao
discurso freudiano “sobre o sentido específico da repetição no ser falante” (Ibidem). Segundo
Lacan: “a repetição tem uma certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite – e que se
chama gozo” (Ibidem).
Pois bem, a repetição não é aquilo que começa, termina e recomeça, mas sim algo com
58

que lidamos na exploração do inconsciente, é uma “[...] denotação precisa de um traço que eu
extraí para vocês do texto de Freud como idêntico ao traço unário, ao pequeno bastão, ao
elemento da escrita, um traço na medida em que comemora uma irrupção de gozo” (LACAN,
1969-1970/1992, p. 81).
O objeto a é também o supereu:

O supereu é exatamente o que comecei a enunciar quando lhes disse que a


vida, a vida provisória que se aposta contra uma chance de vida eterna, é o a,
mas isso só vale a pena se o A não estiver barrado, ou seja, se ele for tudo ao
mesmo tempo (LACAN, 1969-1970/1992, p. 104).

No discurso do mestre, a produção é fechada, a verdade é que o sujeito é dividido, mas


o que o mestre quer saber é de uma produção de um todo. E, nessa lógica, o a tem função de
supereu, de um empuxo para um trabalho que, na busca de uma saciedade, produz um mais-
além, produz o mais-de-gozar.
A entropia, conceito da Termodinâmica que trata de energia, cabe muito bem aqui: é na
medida em que algo é supostamente perdido que se produz uma repetição que resulta em perda.
É um terreno arenoso tentar delimitar a fronteira entre onde se ganha e onde se perde energia,
no processo de entropia, o que também se dá no gozo e na relação entre produção e perda.
Nota-se que, quando abrimos caminho para compreender o campo do gozo, pela via dos
discursos, não estamos renunciando ao significante. Nesse momento teórico, o que se dá é uma
amarração entre o conteúdo trabalhado pela via do linguístico e o campo do gozo:

Quando o significante se introduz como aparelho de gozo, não temos que ficar
surpresos ao ver aparecer uma coisa que tem relação com a entropia, posto
que se definiu precisamente a entropia, quando se começou a sobrepor esse
aparelho de significantes à sonda física (LACAN, 1969-1970/1992, p. 50).

1.9 Laço social e os índices identitários da linguagem

A relação entre política, discurso e linguagem é intrínseca. O sujeito da Psicanálise é o


sujeito da linguagem, “a linguagem é condição do inconsciente” (LACAN, 1969-1970/1992, p.
42), é o sujeito do discurso, “o significante, então, se articula por representar o sujeito junto a
outro significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição que visa ao gozo”
(Ibidem, p. 49). Assim, “O saber está em certo nível, dominado, articulado por necessidades
puramente formais, necessidades da escrita, o que culmina em nossos dias em um certo tipo de
59

lógica” (Ibidem, p. 49-50).


Para além da Psicanálise, as identificações estão presentes o tempo todo, como
organizadores, na cultura, nomeados com substantivos: mulher ou homem, intelectual ou
operário, mãe, estudante, psicanalista, fazendo com que a palavra produza certa substância à
coisa. Organizando, assim, a vida psíquica e social, dinâmica e relacional, o campo social, como
veremos, aparelha-se a partir dessas coordenadas; tais esferas sociais, individuais e coletivas,
se estabelecem a partir de coordenadas identificatórias.

Este tema não vem da Psicanálise, mas da época, certamente, ainda que a
Psicanálise tenha o que dizer sobre. Ela se insere em uma questão mais ampla:
qual é a relação que há entre as identidades dos indivíduos e o laço social? Na
realidade, eu disse, no laço social, cada um é sempre já identificado pelo
Outro, isto é, sempre fixado sobre índices identitários (SOLER, 2018, p. 30).

A linguagem é a essência e a existência da experiência acumulada durante a história dos


povos, tal linguagem constitui os sujeitos, seja no campo do que é dito ou da transmissão pela
linguagem daquilo que não precisa nem ser dito.
Por exemplo, quando um bebê nasce, ele é imerso na linguagem, seu choro é
interpretado e, desse modo, ele vai sendo concebido enquanto sujeito. O recém-nascido
necessita de diversos cuidados, precisa ser alimentado, trocado, protegido, mas é essencial que
ele seja falado para se tornar um sujeito humano. A sociedade só pode ser instituída por meio
da linguagem. Valores, pactos, símbolos: é a palavra e o uso que se faz dela que produzem o
estatuto de civilizado, já que é pelo dizer e. depois, pela escrita que cada ser falante estabelece
e transmite conhecimento e cultura. Assim sendo, a forma com que cada palavra vinda do
campo do Outro afeta o bebê é o que vai prover emoções e marcas que aquele sujeitinho levará
consigo durante a vida18.
Portanto, podemos entender que o laço é a articulação entre o campo do sujeito e o
campo do Outro, de tal modo que, para a Psicanálise, há uma sobreposição entre o social e o
campo do Outro. Assim, podemos constatar a relação intrínseca entre política, discurso e
linguagem. O sujeito da Psicanálise é o sujeito da linguagem, “a linguagem é condição do
inconsciente” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 42). Nas formulações sobre o sujeito, Lacan inclui

18
Sendo uma pesquisa que se propõe a conversar com o feminismo, aponto uma breve problematização sobre os
efeitos do fenômeno que se criou, a partir da revelação do sexo do bebê, como o chá revelação, festas gigantescas
e toda a expetativa que se cria em torno dessa revelação, antes mesmo de o bebê vir ao mundo, atribuindo, assim,
desde antes do nascimento, em um ato público, posições que avigoram o imperativo dos papéis de gênero, na
cultura, a partir da construção da diferença sexual na cultura. Essa problemática será aprofundada no Capítulo
seguinte.
60

o campo do gozo como engendrado pela linguagem, assim o aforisma lacaniano sobre o sujeito
vai dizer que “o significante, então, se articula por representar o sujeito junto a outro
significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição que visa ao gozo” (Ibidem,
p.49).
Lacan nomeia a repetição como um saber que está presente desde a origem,
formalizando a repetição articulada ao conceito de entropia, vinculando o objeto a ao gozo,
formando assim uma estrutura. “O saber está em certo nível, dominado, articulado por
necessidades puramente formais, necessidades da escrita, o que culmina em nossos dias em um
certo tipo de lógica” (LACAN, 1969-1970/1992, p.49-50).
Não é linguagem ou gozo, mas é o ordenamento que a linguagem opera no campo do
gozo que constitui o sujeito e o laço. O discurso sendo a entrada na linguagem, como “instituinte
da colonização do real pelo simbólico, deixando um resto de gozo (a), equivale à civilização e
seu mal-estar, o qual retorna através do que é excluído” (QUINET, 2021, p. 85), ou seja,
discurso é a maneira com que se aparelha a estrutura.
Desta feita, a formalização dos discursos ou do laço social incorre na definição do
campo do gozo. O campo do gozo traz alterações teóricas que se tornam cada vez mais
importantes e constantes no ensino lacaniano. O campo do gozo é estruturado pela linguagem,
que constitui a civilização, determinada por uma renúncia pulsional imposta ao sujeito. Desse
modo, a entrada no laço é um enquadramento da pulsão, como vimos com Freud ou, nos termos
lacanianos, a entrada no laço resulta em perda de gozo, entropia: “só a dimensão da entropia dá
corpo ao seguinte – há um mais-de-gozar a recuperar. [...] tal saber é meio de gozo. E quando
ele trabalha, repito, o que produz é entropia” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 52-53).
Ainda que a Psicanálise opere no campo do gozo, ou seja, do discurso sem palavras, é
inegável que as palavras estão presentes o tempo todo. Embora seja do significante que se trata,
aqui vale uma ressalva importante sobre o peso do significado, de como este impregna o
significante, produzindo efeitos de gozo.

Isso pouco tem a ver com a sua fala, com sua palavra, isso tem a ver com a
estrutura que se aparelha. O ser humano, que, sem dúvida, é assim chamado
porque nada mais é que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar,
digo, se apalavrar com esse aparelho (LACAN, 1969-1970/1992, p. 53).

Um parêntese: a maneira com que cada sujeito é apalavrado não é sem consequências,
se será possível ocupar o lugar de sujeito ou se já está estruturalmente destinado ao lugar de
objeto via machismo e racismo estrutural (FANON, 2008; KILOMBA, 2019), não podemos
61

desviar os olhos, já que isso perpassa as estruturas.


Assim, ainda que o psicanalista trabalhe com o sujeito do significante, e não o sujeito
das palavras, não é sem o efeito das palavras que cada discurso pode ser assegurado em sua
lógica estrutural, ou seja, onde está cada elemento e em qual posição. A palavra aparece como
aquilo que possui função na cultura, enlaçando-se ao campo social. Pensar em campo social,
não é pensar o social como um todo, como universal e unívoco.

A psicanálise lacaniana parte sempre do laço social, que não equivale à


sociedade, uma vez que esta é pensada como fragmentada ou pluralizada em
diversos laços sociais; fragmentos que não constituem um todo. O próprio
conceito de laço social esfacela o Um da sociedade, pluralizando-a, nos diz
Miller, em quem encontramos a seguinte referência ao ultimíssimo Lacan
(1977): ‘A neurose depende das relações sociais’ (LACAN, 1977 apud
HARARI, 2008, p. 3).

A realidade social tem a linguagem como seu fundamento, “é a rotina do laço social que
faz com que o significado possa deter algum sentido” (HARARI, 2008, p. 4).
Ainda que a teoria dos discursos trabalhe podendo prescindir das palavras, é inegável
que o significado sobrecarrega o significante. Insisto que as palavras não são sem efeitos e,
neste sentido, por exemplo, sabemos que homem e mulher são posições significantes no
discurso, no que tange ao interior do nosso campo. No entanto, não são só dois significantes,
pois é inegável que são termos carregados de história. Acompanhando Harari:

Marzano (2007) reconhece que o impacto da cultura e da sociedade sobre


nossa forma de forjar desejos e expressar emoções não pode ser apenas
produto de uma construção, pois o fato de reconhecer a possibilidade de
construir um corpo a partir de técnicas sociais e culturais não quer dizer que o
corpo se reduza a uma construção cultural e social (HARARI, 2008, p. 105).

O sujeito é efeito, é o que emerge na cadeia significante advinda do campo do Outro,


da bateria significante que não podemos desconsiderar como fazendo parte da rede chamada
saber. Dito isso, podemos afirmar que a posição do sujeito do inconsciente, no laço social, passa
pelo lugar que ele ocupa nessa lógica discursiva e está regulada pela cultura vigente na qual o
sujeito é inserido.

Daí a teoria dos discursos como via para pensar o social, já que as relações
sociais são constituídas formando um laço, que se monta por estrutura, pelo
estofo da linguagem. Laço social como discursos que aparelham o gozo, ‘na
medida em que o processo civilizatório, para permitir o estabelecimento das
relações entre as pessoas, implica a renúncia da tendência pulsional em tratar
62

o outro como um objeto a ser consumido: sexual e fatalmente’ (QUINET,


2006, p. 14).

A cultura exige uma renúncia, sendo assim, todo laço é um emolduramento pulsional, é
a delimitação de um determinado ordenamento, produzindo sempre que algo fica de fora da
cadeia significante, neste sentido há sempre uma perda de gozo.
Toda relação se estabelece a partir de um determinado discurso, a partir de determinados
lugares e vetores impostos e previamente determinados. Assim,

[...] trata-se de investigar não só a relação do sujeito e suas estratégias para


lidar com o desejo e o gozo do Outro, mas também se e como ele se insere nos
discursos, sua relação com a mestria (ou autoridade), com o saber, com o outro
do laço social, com o mais-de-gozar, ou seja, os objetos pulsionais excluídos
da civilização, e sua posição com respeito ao gozo (QUINET, 2006, p. 14).

A relação no interior do laço é sempre assimétrica. Ao teorizar os quatro discursos,


Lacan está formalizando algo que ele já estava elaborando desde os seminários anteriores, desde
o Seminário 15, O Ato Analítico (1967-1968) – lembrando que ato não é um termo qualquer no
que diz respeito à política –; todavia é no seminário 16, De um Outro ao outro (1968-
1969/2008b), que os conceitos começam a ser articulados de maneira incisiva, e ele trabalha a
relação do sujeito e a entrada na linguagem. Nessa ocasião, analisa e formaliza o campo do
gozo e podemos entender que o que estava em jogo, naquele momento, era uma reflexão sobre
as questões relativas à sociedade.

1.10 Discurso do Mestre

O discurso do mestre é aquele que coletiviza a realidade no laço social, ele representa o
sujeito para outro significante. S1/$ – S2, “essa matriz que, por ser uma necessidade da estrutura
de linguagem, o significante mestre não pode desaparecer” (SOLER, 2010, p. 255). Ele é o
próprio inconsciente, e esse modelo é aplicado em diferentes níveis, “aplica-se ao laço social
que o discurso do mestre é coletivizante: digamos à realidade” (Ibidem).
Entendendo a realidade como uma chave para compreender o mundo, o “conjunto do
discurso” (SOLER, 2010, p. 255) sustenta a lógica patriarcal como universal e, por
consequência, por sustentá-la assim, ela passa a ser universal, desencadeando a estrutura da
linguagem, com ou sem palavras, pois sabemos que o gozo é engendrado pela estrutura
discursiva, e recordando que “as ilusões que [ele] comporta [devem-se] ao significante-mestre,
63

ao passo que [a] inserção no gozo se deve ao saber” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 97). A
realidade é a fantasia como cada um consegue ler o que aparece na cena social, a realidade diz
sempre sobre a realidade psíquica, mas que, na cadeia discursiva social, ganha outro valor, valor
de verdade.
Colette Soler, em seu seminário Os nomes da identidade, vai afirmar que o discurso é
um “espelho identitário do qual ele – o indivíduo - não pode sair e que é constituído por uma
constelação de significante” (SOLER, 2018, p. 30), produzindo, assim, índices que advêm do
discurso - tais como gênero, idade, sexo, família, origem, história, nacionalidade -,
corroborando uma “identidade social”, pois se referem àquilo que circula no laço.
Desse modo, podemos notar que “neste contexto, o indivíduo está sempre já
identificado, é dividido entre anseios contrários. Ele aspira, certamente, a uma identidade, mas
que não é uma identidade qualquer” (SOLER, 2018, p. 31). Essa valorização implica duas
pretensões contraditórias, que tencionam os indivíduos no laço. Entendo que, ao usar o termo
indivíduo e não sujeito, Soler pretende destacar os fechamentos que os espelhos identitários
podem produzir. Certa sutura que o discurso de mestria – em especial no circuito capitalista19 –
pode determinar.
Logo, a civilização é produto do discurso, com os seus giros e engendramentos, com a
montagem que estrutura o laço social. “[...] uma estrutura necessária” (LACAN, 1970, p.11).
Por se tratar das relações fundamentais que se sustentam da linguagem, ainda que subsista sem
palavras, vai além das enunciações efetivas. Para Lacan, há enunciados primordiais que
transmitem nossas condutas, costumes, atos e pensamentos. Ele dirá que “o pensamento não é
uma categoria. Quase diria que é um afeto” (Ibidem, p. 160).
Portanto, “a linguagem é a condição do inconsciente” (LACAN, 1970, p. 42) e o sujeito
da Psicanálise emerge dessa estrutura. É nessa direção que iremos acompanhar a orientação do
ensino lacaniano. Por um lado, olhando para o que se transmite e, por outro, para o que escapa
na cultura, o que aparece e o que fica recalcado, como algo que opera “nesse nível de estrutura
significante” (Ibidem, p.12) e mais além dela20.
Desse modo, o ponto de partida é o significante mestre – e seus efeitos – que circula e
estabelece a cultura. O discurso do mestre é o que inaugura essa lógica, o mundo que

19
Não pretendo incluir o discurso capitalista e toda a discussão sobre ele ser ou não um quinto discurso, ou se é a
versão desenlaçada do discurso do mestre, por isso digo circuito, para enfatizar como a circulação nessa
modalidade se dá de um outro modo e não efetiva um laço, daí o indivíduo e a forma individualista – a não
circulação.
20
Parte intimamente ligada ao texto da Lélia sobre o que fica recalcado na cultura brasileira (GONZALEZ,
1984/2020).
64

conhecemos inscreve-se a partir dele, é o ponto inicial para os demais giros e desdobramentos.
Por isso, o laço como um sistema estruturado, via linguagem e, mais além dela, posicionando
os sujeitos de maneira diferente, com implicações econômicas e sociais desiguais.

1.11 Discurso Universitário

Enquanto o discurso do mestre é aquele que coloniza e está marcado pela


impossibilidade presente entre S1 e S2, há algo que ‘esclarece’ por regressão. O discurso
universitário curiosamente acontece dando a volta em sentido anti-horário, e o saber passa a
ocupar o lugar do agente, lugar que condiciona os demais elementos, tanto em suas posições
como em seus sentidos. Embora o matema se escreva dando um quarto de volta para trás, este
discurso, agora, representa um progresso em relação ao discurso do mestre.
Um laço a partir de um saber sem sujeito, algo que vai como um redemoinho, fazendo
trabalhar a coisa em si, por isso mesmo também conhecido como o discurso da burocracia. E é
essa lógica discursiva que tem como produto o sujeito universal21, como produto da
modernidade, estabelecendo uma linha de cogitação sobre o que é o sujeito, linha
hermeneuticamente traçada por saberes mais ou menos pertencentes a uma mesma tradição, e
assim, apesar das pequenas divergências, puderam produzir uma linha de sucessão, por isso o
significante mestre, S1, ocupa o lugar da verdade sobre o sujeito; por isso mesmo ele é discurso
de mestria, uma outra modalidade de colonização.
O universitário é também um discurso de mestria, mas de um outro modo: enquanto no
discurso do mestre uma impossibilidade apresenta-se no patamar superior, no discurso da
universidade a impotência escreve-se na parte inferior dessa modalidade discursiva, daí a
impotência presente em alcançar a verdade. Como podemos verificar no matema abaixo.

21
Que resultou no termo indivíduo, o sujeito sem divisão.
65

Figura 5 – Discurso de “o avesso da Psicanálise”

Fonte: Lacan (1969-1970/1992).

Todo discurso coloca algo em movimento, “no caso do discurso universitário, esse
agenciamento é efetuado pelo saber que, por isso, está no lugar do agente, já que no discurso
universitário, é o saber que move todo o edifício das relações que nele se fazem” (ALBERTI,
2009, p. 119).
Como dito em outro momento, o saber para a Psicanálise diz respeito ao lugar do Outro,
uma inscrição no inconsciente. Lacan disse em uma das suas conferências – O saber do
psicanalista (1971-1972) – que todo saber registra-se a partir de um não saber, já que o não
saber é imensamente maior do que o saber. Vale marcar que o não saber não é simplesmente
aquilo que não sabemos, como o que foge à consciência, ou como se houvesse possibilidade de
saber, mas trata-se justamente de uma impossibilidade de um todo saber. Algo que está
colocado como impossível, e que diz respeito à própria relação do sujeito com o registro do
Real, tem algo que escapa sempre à possibilidade de simbolização, isso marca a existência de
um furo da linguagem.
A burocracia localizada no discurso universitário solicita o saber, por isso, os títulos
acadêmicos validam como verdadeiro o agente do discurso. Independentemente do trabalho
apresentado, os títulos validam o lugar. “Se existe um discurso, dentre os quatro estabelecidos
por Lacan, que joga fora o sujeito, esse é o discurso universitário. Ele produz e joga fora o
sujeito” (ALBERTI, 2009, p. 120). A autora completa, afirmando que “quando no discurso
66

universitário, o saber se conta em títulos acadêmicos, pouco importando se esses títulos


efetivamente condizem com algum estofo de sujeito” (Ibidem), estes servem perfeitamente às
demandas do capital. Lacan denuncia essa aliança como um mercado do saber22.
Para Lacan, a Ciência excluiu o homem por necessidade (ALBERTI, 2009, p.121) e, em
certo momento, até os psicanalistas não estavam advertidos dessa trama, numa clara crítica aos
psicanalistas que defendiam o fortalecimento do Eu, na IPA - International Psychoanalytical
Association.

[...] é preciso observar que houve época em que os psicanalistas pensaram


poder sustentar a Psicanálise com uma sociedade cujo modelo era o do
discurso universitário: um analista necessariamente tinha que ter o título
burocratizado de uma instituição psicanalítica para exercer-se como analista
– era o então chamado psicanalista didata (ALBERTI, 2009, p. 124).

Lacan posicionou-se criticamente às tentativas de burocratização e adaptação da


Psicanálise propostas pelos pós-freudianos da IPA, indicando, então, um retorno a Freud e
sustentando que a didática da Psicanálise consiste no desejo do analista (LACAN, 1964/2001).
Assim, fica claro que não é só na universidade que encontramos o discurso universitário.
Logo, quando Lacan propõe um retorno a Freud, “reinstaura uma nova discursividade que fora
esquecida, na medida em que a descoberta de Freud foi reapropriada por um discurso de
psicologia a serviço da tecnocracia” (ALBERTI, 2009, p. 124).
O discurso universitário é paradoxal, já que é um movimento subversor com um quarto
de giro a partir do discurso do mestre. No entanto, a Psicanálise só foi possível a partir dessa
subversão, já que só temos notícias de sua criação, com Freud, passando por esse processo que
a lógica universitária possibilitou, com o advento da Ciência e da modernidade. Segundo
Alberti (2009), a instalação do discurso universitário, no fim da Idade Média, é o que possibilita
a figura do autor, conforme aponta Foucault (1969/2001), pois é necessário o corte
epistemológico provocado pela ciência moderna e o contexto de circulação dos discursos. Em
resumo: isso quer dizer que o discurso universitário é o próprio discurso da modernidade.

22
Inclusive a crise na França, em 1968, e a maneira como essa crise instalou-se nas universidades, ratificando o
lugar de saber como mercadoria, na contagem de créditos, foi um dos estopins para toda a movimentação que
aconteceu em Paris, com os estudantes tomando as ruas.
67

2 DISCURSO DA HISTÉRICA

Lacan (1969-1970/1992) vai chamar de discurso da histérica aquele em que o agente


opera uma denúncia ao discurso de mestria hegemônica, afinal, é esse discurso da histérica que
vai denunciar que o pai da lógica fálica é o pai castrado.
O discurso da histérica se dá a partir de um quarto de giro, no sentido horário do discurso
do mestre. Na posição de agente, nesse discurso, tem-se o sujeito barrado, suscitado pela falta
(a), que se dirige ao significante mestre (S1), para que ele produza um saber (S2), em função
do desejo de saber do sujeito dividido ($).
A Ciência pode circular entre dois discursos, a saber: o universitário em que, como
vimos, o saber (simbolizado por S2) ocupa o lugar de agente, propõe um saber sem sujeito; e o
discurso histérico, quando questiona, interroga, buscando sustentar o não sabido em jogo na
linguagem. Assim, no discurso histérico, a Ciência não propõe um saber que se pretende
absoluto, mas, ao contrário, constrói-se interrogando e de forma dialética.
Nesse sentido, o discurso da histérica denuncia a totalidade imposta pelos discursos de
mestria que sustentam certo absolutismo. “Então há outro discurso além do universitário, além
do discurso do mestre, além do discurso do psicanalista, que pode ser colocado em
funcionamento na universidade” (ALBERTI, 2009, p. 127) ou na modernidade, apontando para
o que não é sabido, para as falhas da tecnocracia universitária. Vale lembrar que, nesse discurso,
o da histérica, é o sujeito dividido que ocupa a posição de agente.
Pensando nos esquemas que escrevem os discursos, Lacan equivale, no discurso da
histérica, o agente ao sujeito dividido como decifração, articulando o desejo de saber, que se
faz valer em determinada lógica discursiva. E o saber está no lugar de gozo/perda, já que é
saber sobre o que se perde, sobre a produção de uma perda.
Como estamos acompanhando, os discursos operam a partir de quatro elementos, mas,
em cada giro discursivo, com uma conceituação diferente e, assim, o S1 difere em cada
modalidade discursiva. Logo, a relação com o mestre não é sobre o saber do mestre antigo do
discurso do amo, muito menos o mestre advindo da modernidade que se instaura no surgimento
do discurso universitário; no discurso da histérica trata-se de saber sobre a relação sexual que é
posta em jogo. Daí se produz algo que se perde, “o que está em jogo no saber sexual se apresenta
como inteiramente estranho ao sujeito” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98)
Quinet (2006) também destaca o ‘avizinhamento’ entre o discurso universitário e o
discurso da histérica:
68

[...] o discurso da ciência se assemelha mais, por sua estrutura de produção


de saber, ao discurso histérico. Histeria, aqui, não se refere à neurose do
mesmo nome, mas a uma forma de relacionamento humano em que um
provoca no outro o desejo e a criação de um saber.
[...] A ciência também pode entrar na categoria de discurso como
enquadramento de gozo, na medida em que tem por finalidade a conquista do
real, ou seja, a colonização do real pelos aparelhos simbólicos que as fórmulas
matemáticas representam (QUINET, 2006, p. 19-20).

Semelhante ao discurso universitário, o discurso da histérica é igualmente marcado por


uma impotência no patamar inferior, a partir do discurso do mestre, avançando um quarto de
giro, em sentido horário. Nele o sujeito dividido não é produto nem verdade, ele é agente que
endereça interrogações ao campo do Outro, contestando o saber que vem desse lugar, o que
acaba produzindo saber por essa via do desejo, desejo de saber. É nesse sentido que podemos
pensar a homologia que há entre o sujeito como agente, nessa modalidade discursiva, e o
sintoma, tomando, nessa aproximação, o conceito de sintoma, localizado nesse período do
ensino, que vai dizer que o sintoma “se articula por representar o retorno da verdade como tal
na falha de um saber” (LACAN, 1966/1998a, p. 243).
A verdade como falha do saber não é falha da representação, mas referência a uma
verdade que ‘perturba a bela ordem’. Uma verdade sintomática que faz desordem, que atrapalha
o andamento das coisas, assim como faz o sujeito dividido, quando incarna o lugar do agente,
sendo assim, “o sintoma tinha o ar impreciso de representar alguma irrupção da verdade. A
rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira do que ela é feita” (Ibidem, p. 235). Essa
verdade “constitui uma irrupção de não-sentido na ordem da significação, resumindo, o que é
imixão da verdade na cadeia do saber” (ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 167).
Na escrita dos matemas, não são lugares que se alteram, o que mudam são os elementos
que passam por eles e, ao ocuparem diferentes posições, alcançam outras formas de
dominâncias e outras produções, a partir de uma posição diferente em relação ao saber e
sentidos diferentes. Digo isso para destacar que a verdade está localizada na parte inferior da
barra; em qualquer discurso, o recalcamento da verdade é um acerto das defesas do eu, na
missão de deixar de fora, de maneira velada, qualquer indício de falha. Essa falha é verdade, ou
melhor, a verdade diz da falha, da falta23: “Esse motivo de escândalo que só é admitido quando
se renuncia à completude do sujeito: a castração, para chamá-la por seu nome” (LACAN,
1966/1998a, p. 232). Então, o sujeito dividido, como agente, comporta em si certa rebeldia que
não se aliena completamente a esse significante mestre que se apresenta como saber. Entendo

23
A verdade sobre a relação sexual (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98).
69

que está aí a importância desse discurso, que, no campo político, vai provocando fissuras,
produzindo enfrentamentos aos saberes hegemônicos.
Ainda de olho nessa homologia, cito Lacan: “quanto ao discurso da histérica, foi este
que permitiu a passagem decisiva, dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou.
Que é, a saber, existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de
sintoma” (LACAN, 1966/1998a, p. 214).
Tanto para pensar o que aparece como tragédia, quanto para analisar o que se apresenta
como farsa, em termos de história, será que o que separa tragédia e farsa não tem relação com
a produção de um saber sobre o gozo, no discurso do mestre ou nos discursos de mestria?
Colocando a questão de um outro modo: ao deslocar significante mestre do lugar do agente que
coloniza e domina, ou desarticulá-lo do lugar e da sua relação com a verdade, não podemos
reconhecer como farsa aquilo que, a princípio, fazia semblante de tragédia?
Isso pode ser um prisma para rever diferentes momentos sociais, em que a colonização
produzida, via discurso, determinou subalternização do Outro como “destino”. Historicamente,
podemos analisar como se procedeu à tentativa de civilizar os povos que vivem de maneira
diferente do dito sujeito universal, como se construiu um saber sobre o homem de que esse
sujeito precisa ser “idêntico à sua própria imagem”, para ser reconhecido como sujeito; um
processo que cria para esse sujeito uma identidade que é recalcada como identidade, como
aquilo que diz de um particular. Tal negação identifica que algo da identidade está no outro, e
não nele, assim, esse sujeito dito universal, presente nos discursos de mestria, quando não
encontra no Outro o reflexo de si mesmo, não reconhece o Outro como sujeito. São inúmeros
os exemplos que a história oferece e cito alguns: como foram tratados os povos originários, que,
justamente por não se deixarem colonizar, foram massacrados, ou como foram tratados
historicamente os diversos povos do continente africano, raptados, explorados e racializados,
ou o lugar destinado às mulheres na civilização patriarcal.
Os discursos de mestria foram, originalmente, pensados a partir da dialética do senhor
e do escravo da teoria hegeliana. Lacan parte daí, para encontrar os elementos que fazem da
relação assimétrica entre os sujeitos uma hierarquização prenhe de consequências para o laço
social.
Ressalto, assim, o valor político do discurso da histérica (e do sintoma) no laço social,
já que “o discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, dado que o
saber vem ali do lugar do gozo” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 98), e tal revelação, ao
evidenciar que o mestre é castrado, cria uma fissura no saber de tal modo que pode produzir
giro discursivo.
70

Os discursos de mestria, em especial o discurso universitário, por meio das suas


coordenadas dominatórias, operam um processo de colonização. “A colonização acarreta o
destroçamento dos seres subordinados a esse regime, os colonizados, mas também a
bestialização do operador, o colonizador” (RUFINO, 2019, p. 11). Portanto, analisar
determinados feitos históricos permite identificar como grandes tragédias na humanidade foram
consagradas e sustentadas por meio de uma farsa. E é o discurso da histérica que permite olhar
para isso de maneira crítica, à medida que interroga e confronta o saber como universal e sem
furos. É nessa perspectiva que, de maneira crítica, acompanhamos a seguinte afirmação: “Sobre
a colonização não se ergue civilização, mas sim barbárie” (Ibidem).
Enfatizei questões políticas, todavia o discurso da histérica ocupa lugar sine qua non
para o que acontece na clínica, por se tratar da modalidade discursiva que possibilita o giro para
o discurso do analista.
Antes de prosseguir, quero assinalar uma indagação a respeito da forma como Lacan
nomeia esse discurso. Poderia se chamar discurso da histeria, mas ele opta por nomear como
discurso da histérica e parece que ele justifica chamá-lo assim porque, segundo ele: “Demos-
lhes agora o gênero sexual sob o qual esse sujeito se encarna mais frequentemente” (LACAN,
1969-1970/1992, p. 98). Pois bem, no campo social, é muito frequente essa cola entre o gênero
feminino e a histeria, desde os primórdios, quando a palavra histeria derivou do termo grego
que designava o útero, daí a importância de problematizar as consequências dessa cola, já que
estamos, justamente, trabalhando os efeitos dos discursos como aparelhamento de gozo via
linguagem. Uma estrutura precede as palavras, mas, ainda assim, não está apartada das palavras
e seus efeitos. Dito isso, parece-me mais interessante e produtivo parar de nutrir esse paralelo
que vincula o sexo feminino como aquele que “encarna mais frequentemente” o lugar de agente
do discurso. Essa “maior incidência” não seria justamente fruto do discurso e, por isso mesmo,
menos fixa do que pode parecer?
O psicanalista, quando não se coloca de maneira crítica, pode encarar com normalidade
tal afirmação e, por consequência, reforçar lugares como fixos, estigmatizando papéis, atuando
assim de maneira contrária às bases do pensamento psicanalítico, consentindo com caricaturas
de gênero. Ao mesmo tempo, entendemos a Psicanálise enquanto práxis viva, por isso mesmo
a importância de rever determinadas afirmações24.

24
Entendemos que é fundamental rever pontos problemáticos presentes na epsitemologia psicanalítica revendo
alguns pontos que podem reforçar a dominação heteronormativa e patriarcal, visando fazer avançar a Psicanálise,
adequando-a à atualidade deste tempo.
71

Dito isso, quando penso a práxis feminista no lugar de agente do discurso da histérica,
tem relação com a sua determinação de denunciar qualquer saber que se proponha universal.
O sujeito dividido, no lugar de agente, dirige-se ao mestre, demandando decifração. Ao
propor um laço nomeado como histérico, o que está em pauta não são os sintomas histéricos e,
sim, o endereçamento do saber a um outro. É fazer da histeria, no laço, um endereçamento
particular de gozo, um ordenamento diferente em relação ao desejo. Por isso, Lacan vai escolher
Sócrates para exemplificar esse discurso, justamente porque o filósofo não personificava
respostas, mas como produtor de giros, movimentava a roda do desejo por saber.
O desejo de saber é o que origina a Psicanálise, desejo de saber sobre o sintoma que
aflige o sujeito, é isso que leva um ser falante a procurar uma análise, saindo do discurso do
mestre para se interrogar sobre sua divisão. É graças à histerização discursiva como regra
fundamental a todo tratamento que Freud descobre o inconsciente e inventa a Psicanálise, a
‘histerização do discurso’ instituída pelo analista, na experiência analítica. “É a histerização do
discurso que faz surgir um sujeito com o Outro, ou seja, a ‘histerização’ do discurso se refere a
um sujeito com o Outro significante” (GALLANO, 2006, p. 15); em uma análise, o sujeito
precisa passar por esse lugar.
Além disso, ao introduzir a noção de um discurso da histérica como uma modalidade de
laço social, cuja posição dominante é ocupada por $, “o sujeito exibe as marcas do significante
em seu próprio corpo sob a forma de sintomas” (CASTRO, 2009, p.2). Um mecanismo que
localiza o desejo como desejo de saber. Nesse matema, o saber ocupa o lugar da produção.
Lacan complementa, ainda, que a histérica “quer um mestre sobre o qual ela reine e ele
não governe” (1969-1970/1992, p.136). Acontece que, desse modo, o discurso da histérica
interroga os discursos de mestria, mas não deixa de estar referenciado ao mestre.
No parágrafo seguinte ao que acabo de citar, Lacan retoma Freud retirando o
sexo/gênero desse estereótipo que relaciona a mulher a essa modalidade discursiva, dizendo:
“Ela é a histérica, mas isto não especifica forçosamente um sexo. Desde o momento em que
fizer a pergunta – O que quer fulano?, vocês entram na função do desejo e fazem o significante-
mestre sair” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 136).
Ouso dizer que essas últimas falas podem ser ponderadas de várias formas, digo isso
considerando o calor do momento, da conjuntura política presente nas ruas naquela ocasião, já
que essa aula acontece no dia 19 de abril de 1970 e, em 13 de maio de 1970, ocorre a famosa
Conversas nos degraus do Panteão (1969-1970/1992), na qual Lacan refere-se aos
revolucionários.
As datas são relevantes, pensando-se que o retrato do discurso da histérica que vem
72

nesse período remete às manifestações e, no entanto, na ocasião dessas duas aulas, o cenário
político parisiense já era outro. O panorama político continha a derrota dos movimentos das
classes trabalhadora e estudantil. Se, em um primeiro momento, os estudantes manifestaram-se
pelo excedente de alunos e, como as universidades não acompanharam esse aumento, de modo
a aceitarem todos, era um movimento contra a reforma universitária, bem como exigiam a
renúncia do presidente Charles de Gaulle, considerado um conservador, e incitavam a
convocação de eleições gerais; ao mesmo tempo, os trabalhadores protagonizaram uma greve
geral de proporções alarmantes: mais de nove milhões de trabalhadores protagonizaram a greve
por melhores condições de trabalho. Acuado, de Gaulle concedeu o abono e convocou novas
eleições, que ocorreram em 23 e 30 de junho do mesmo ano. Os partidos de esquerda, então
considerados parcialmente responsáveis pela referida crise, sofreram uma derrota esmagadora,
em benefício da maioria cessante, que, no entanto, experimentara graves dificuldades de vitória
nas eleições anteriores. Assim, de Gaulle fez o seu sucessor, e os movimentos sofreram uma
derrota importante, atualizando e, de certa maneira, reforçando a volta “ao mestre”.
Dito isso, será que, nesse a posteriori, os movimentos já não estavam gendrados
novamente no discurso universitário? Pela forma com que, no momento seguinte, acomodaram-
se na estrutura? Ou será que as manifestações esvaneceram e perderam seu vigor tão
rapidamente ao ponto de não conseguirem transpor o “é proibido proibir” do lugar de
contestação para a proposição de novos significantes? Será que esses significantes, enquanto
palavras de ordem, foram insuficientes para implicar uma coletividade e, por isso, o giro levou
à repetição e à volta, no sentido de um retrocesso, em comparação com a expectativa criada
pelo movimento, em maio de 68? E mais, como essa derrota dos movimentos influenciaram a
leitura política de Lacan naquele momento?
Antes de prosseguir com a discussão sobre o discurso da histérica, vale retomar alguns
acontecimentos históricos que influenciaram o andamento dos conceitos, e já adianto que não
é à toa que Lacan, entre 1968 e 1970, vai associar a greve ao discurso da histérica e, nesse
contexto, aponta a greve como um sintoma social: “Na greve, a verdade coletiva do trabalho se
manifesta” e, ainda, “quando a verdade coletiva sai, sabemos que todo o discurso pode cair
fora” (LACAN, 1968-1969/2008b, p.41-42). A greve entra como uma verdade coletiva, já que
é ela que possibilita a relação entre sujeitos, ou seja, a entrada do proletário no laço social. Até
então, influenciado por Marx, ele valorizava a greve, ressaltando, no Seminário 16, que é ela
que vai reunir o trabalhador no laço, defendendo que, na greve, a verdade coletiva manifesta-
se.
Acontece que, anos depois, em 1974, influenciado pelos rumos da história, no seu
73

“disco-urso” de Roma, A Terceira, Lacan dirá que só há um sintoma social, o proletário, e ainda
ironiza os anseios revolucionários de Marx:

[...] cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso
com que fazer laço social, em outras palavras, semblante. Foi ao que Marx
remediou, remediou de uma maneira incrível. Dito e feito. O que ele emitiu
implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua
exatamente como antes (LACAN, 1974, p.9).

Enfim, já que citamos os estudantes, chamados de revolucionários por Lacan, vale


retomar determinados acontecimentos políticos que marcaram esse ano, em diversos lugares do
mundo.

2.1 1968 e seus acontecimentos históricos

Não podemos deixar passar despercebidos os acontecimentos históricos daquele período


e a data na qual Lacan lança a provocação aos estudantes. A referência é maio de 1968. Data
que marca o período de grande agitação popular, em várias partes do mundo, um ano-chave na
história: havia uma disputa ideológica colocada entre duas superpotências, EUA e URSS,
marcada pela frequente tensão militar, conflitos políticos e o antagonismo entre países
capitalistas e comunistas.
Em abril de 1968, nos Estados Unidos, o ativista político e ganhador do Nobel da Paz,
Martin Luther King, é brutalmente assassinado por um segregacionista branco, desencadeando
uma onda de protestos nas grandes cidades estadunidenses, reforçando a importância em tirar
do papel as leis que já estavam assinadas desde 1964 sobre a proibição à segregação e à
discriminação racial, culminando no Ato dos Direitos Civis, de 1968.
Nesse mesmo ano, na Europa, acontece a Primavera de Praga, disparada pelo líder do
governo tcheco, Alexander Dubcek, que propõe reformas no sistema comunista soviético,
fazendo circular a ideia de um “socialismo com uma face humana” (HIGA, s.d.), proposta que
inclui a integração ao mercado capitalista mundial, significantes que contrariavam a potência
comunista. Por consequência, a Rússia e os países aliados pelo Pacto de Varsóvia, em uma
semana esmagam as tropas que compunham a Primavera de Praga. Episódio que contribui para
o distanciamento entre os países comunistas da Europa ocidental e Moscou e dificulta a abertura
democrática no Leste europeu.
Na China, Mao Tsé-Tung promove uma mobilização gigantesca entre os jovens,
contando com 11 milhões de pessoas, a fim de mudar os rumos da política que ele havia
74

implantado, a chamada Grande Revolução Cultural Proletária. Mao queria um giro que
abandonasse os “quatro velhos”: pensamentos, cultura, costumes e hábitos (BEZERRA, s.d.).
Mas, como vimos, provocar o giro discursivo também pode levar a um retorno, ao invés de a
um avanço; assim aconteceu e, em outubro de 1968, Mao ordena de maneira ditatorial a
perseguição daqueles que questionassem o novo regime.
Já, no Chile, há uma crescente onda de protestos contra o governo do presidente Gustavo
Diaz Ordaz, conhecido por seu autoritarismo e por perseguir movimentos sociais que ele
considerasse uma ameaça comunista. E, às vésperas da realização dos Jogos Olímpicos, na
Cidade do México, manifestantes reúnem-se na Plaza de las Tres Culturas, em resposta às
manobras das Forças Armadas, na Universidade Autônoma de Nuevo León, buscando reprimir
o movimento. Acontece que nesse dia, 02 de outubro de 1968, a polícia abre fogo contra os
estudantes e trabalhadores que aderiram aos protestos. O número de mortos na ocasião é
desconhecido, mas os dados oficiais registram 36 mortos. Depois desse feito, as lideranças dos
movimentos foram criminalizadas e exiladas.
No Brasil, estávamos submetidos ao regime militar, instalado no país com o golpe
militar de 1964, a ditadura avançava e seu regime endurecia cada vez mais. Em março de 1968,
um tenente da Polícia Militar mata um estudante, durante uma invasão policial em restaurante
estudantil25, enquanto alunos protestavam contra o aumento dos preços e a má qualidade das
refeições do estabelecimento. Tamanha violência gerou uma grande reação e, em 26 de junho,
ocorre a Marcha dos Cem Mil. O governo proíbe tal passeata mas, pela magnitude do ato, o
maior contra a ditadura militar, até então, é obrigado a recuar nesse dia. As manifestações
continuam e o uso da violência policial também, até que, em 13 de dezembro de 1968, é
promulgado o AI-5 (Ato Institucional número 5), sancionando de vez a arbitrariedade, a
violência e a censura como regra e marcando o início dos anos de chumbo no país.
Por fim, na França, acontece o Maio de 1968. Vanier (2021, p. 1) vai dizer que é
perigoso declarar alguma coisa sobre maio de 68: “O acontecimento se esmigalha sob os
comentários. Assistimos hoje a uma verdadeira querela das interpretações”. Da greve geral mais
importante que a França conheceu no século XX, agitando o país em vários níveis, o que se
depreendia, no campo social, era uma enorme insatisfação:

O contexto é o fim da guerra da Argélia, “operação policial” que dividiu


profundamente o país, sem esquecer os restos da colaboração durante a
Segunda Guerra Mundial. Seus efeitos – não tratados simbolicamente –

25
O Restaurante Central dos Estudantes (Rio de Janeiro), conhecido como Calabouço, foi o palco do primeiro
homicídio de um estudante pela ditadura militar, o estudante secundarista Edson Luís (OTAVIO, 2008).
75

continuam a agir no país. Há os ecos da Guerra do Vietnã, do qual se deve


lembrar que se trata de uma antiga colônia francesa tornada independente
somente alguns anos mais tarde. É também o início de dificuldades
econômicas, logo após aquilo que se acordou chamar de “trinta Gloriosos”:
início do desemprego dos jovens, baixa de salários reais, aumento maciço da
juventude estudantil ligado ao número de crianças nascidas no pós-guerra
imediato, massificação da urbanização e desenvolvimento de uma
contracultura internacional implicando a juventude como “força político-
nacional (Le Goff). Esse novo afluxo de estudantes levou à criação de novas
universidades como a de Nanterre, ao lado da maior favela da região
parisiense.
A França é uma sociedade patriarcal bastante estanque: as mulheres só tiveram
o direito de votar em 1945. Um pouco antes de 68, em 1965, elas obtiveram o
direito de trabalhar sem a permissão do marido e de ter conta em banco; a
pílula foi legalizada em 1967 (VANIER, 2021, p. 1-2).

Já havia uma agitação instalada, por um lado, pelos estudantes; por outro, pela classe
trabalhadora. Acontece que, no campo discursivo, são os semblantes que dão as cartas e, como
já advertiu Marx, “primeiro, como tragédia, depois, como farsa”26; mais uma vez o
autoritarismo policial contra os estudantes desencadeia o acontecimento Maio de 1968, a partir
da greve geral que se inicia no dia 08 de maio daquele ano e vai seguindo, numa crescente,
entre os estudantes. A população, em choque por testemunhar a violência contra os estudantes,
solidariza-se e adere ao movimento, até que, no dia 13 de maio, “a greve geral é desencadeada
em toda a França, uma manifestação gigantesca acontece em Paris, um milhão de pessoas sai
às ruas em protesto” (VARNIER, 2021, p. 2).
Ao final, depois de muita violência e desgaste, os sindicatos negociam um acordo que
resultou na conquista de 30% de aumento salarial e do salário-mínimo, e o chamamento de
novas eleições. Eleições em que Charles de Gaulle conquistou a manutenção do poder, elegendo
o seu sucessor. No campo universitário, a derrota representa a ocorrência da reforma que
transforma o conhecimento em unidade de valor, como “mercado do saber”, do qual Lacan era
crítico:

Quanto mais ignóbil – não disse obsceno, não se trata disso há bastante tempo
– melhor será. Isto esclarece verdadeiramente a reforma recente da
Universidade, por exemplo. Todos, unidades de valor, créditos – tendo na
algibeira de vocês o bastão da cultura, marechal à beça, mais medalhas, como
nos concursos de animais, que vão etiquetá-los com o que se ousa chamar de
mestria. Formidável, terão disso em profusão (LACAN, 1969-1970/1992, p.
194).

26
A célebre frase de Karl Marx, na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852).
76

2.2 De volta a Lacan e os revolucionários

Depois desse pequeno desvio histórico, podemos voltar para Lacan e a provocação aos
estudantes. Maio de 1968 traz na cultura uma marca simbólica, que, imageticamente, remete ao
auge das manifestações, na primavera! Não à toa, a capa do Seminário 17: O Avesso da
Psicanálise, é uma foto de Dany le Rouge - Daniel Cohn-Bendit - encarando com ar de riso um
policial, marcando a impotência da autoridade policial em reprimir o movimento nas ruas.
Assim, as imagens que marcam as memórias do que foi o Maio de 68 passam por essas
fotografias do movimento em ato, e não desse momento seguinte, que representa o
enfraquecimento do movimento e o giro que faz voltar o recalcado, instalando o discurso
universitário, culminando na manutenção da direita autoritária ocupando o Estado e na
burocratização do ensino.
Por isso, no ano seguinte aos acontecimentos, entre final de 1969 e 1970, ao ser
contestado, Lacan vai dizer que o que os estudantes, aos quais ele chamou de revolucionários27,
queriam era um novo mestre, e assim a experiência mostrou. Desse modo, parece-me que é
mais uma fala acalorada pela proximidade dos acontecimentos e pela forma com que o discurso
girou em retroação. Tanto o discurso da histérica como o discurso universitário não são
marcados por um impossível, mas sim por uma impotência.
Nesse caso, os significantes mestres colocados na cena não apontaram para o
impossível, como opera o discurso da histérica, quando gira no sentido do discurso do analista.
Ao invés de apostar em algo inédito, o movimento - por essa via da impotência, como se
virássemos a direção dos olhares na capa do livro -, ao aderir às regras do mestre, tendeu à
repetição e validou a provocação lacaniana: “eles aspiravam por um novo mestre” (LACAN,
1969-1970/1992, p. 196).
Em uma discussão apresentada em artigo sobre Psicanálise e movimentos sociais,
Patrícia Ferreira analisa junho de 2013, sob a ótica da noção de histeria, analisando como se
opera aí a modalidade discursiva possível para pensar coletividade e movimentos sociais, a qual
se origina a partir da “existência de ao menos dois desdobramentos diferentes que se originam
do mesmo tipo clínico: ‘histeria coletiva’ e ‘discurso da histérica” (FERREIRA, 2018, p. 67).
De tal modo que:

27
Ao passo que Lacan vai ironizar as aspirações revolucionárias, ao mesmo tempo, os movimentos aos quais ele
se dirigiu não reivindicavam tomar o poder, assim, não são propriamente os estudantes que estavam preocupados
com um ataque a fim de tomarem o poder (TOURAINE, 2008).
77

O matema do discurso da histeria aproximando a ideia desenvolvida na teoria


freudiana de que o sintoma histérico é o retorno do recalcado – sintoma esse
que se constitui a partir de significantes-mestres, desse mestre que é
interrogado pelo sujeito (FERREIRA, 2018, p. 75).

Assim, para a autora, histeria coletiva é importante, por enlaçar os sujeitos a partir da
identificação apresentada por Freud (1921/2011), quando apresenta a referência das moças no
internato; assim, é fundamental que essas identificações aconteçam orbitando em torno de
significantes que organizem os sujeitos coletivamente. No entanto, quando as identificações
não se efetivam em torno de significantes que possibilitem aberturas na lógica hegemônica, só
‘histeria coletiva’ acaba sendo insuficiente e, desse modo, a ‘histerização discursiva’ pode ser
vã, tendendo a cair na repetição, como sugere Lacan aos revolucionários. Por outro lado,
também pode seguir pela via do discurso da histérica e pela possibilidade de produzir saber a
partir dessa lógica coletiva, fazendo circular um novo significante mestre, que seja outro, “já
não será o mesmo mestre e é daí que se pode, aos poucos e em movimento, chegar a qualquer
espécie de ‘separação ou ‘emancipação’. Antes disso, sabemos: é preciso e precioso que se
recorde, repita e elabore” (FERREIRA, 2018, p. 87).
Portanto, acompanhando Ferreira (2018) notamos que como retorno do recalcado, o
discurso da histérica tem essa vacilação que possibilita um giro que volta um quarto ao invés
de avançar, a depender do que será produzido como saber nessa relação com o S1. Mas vale
advertir que todo discurso, assim como todo sujeito, pode estar refém dessa vacilação.
No campo político, Gallano e Cevasco (2014) compartilham dessa aposta em pensar
saídas coletivas no campo político. Ambas acompanharam o Movimiento 15-M, na Espanha, e
a efervescência que tomava as ruas, no clamor por mudanças sociais, em maio de 2011.
Exaltando que subjetividade e lógica coletiva é uma articulação, e articulando Lacan para
pensar chaves de mudanças sociais, não há possibilidade de transformação social sem
transformar as subjetividades que passam pelas experiências coletivas. E, para explicar melhor
o que Lacan quer dizer com lógica coletiva, podemos pensar no sofismo dos três prisioneiros.
Eu tendo a pensar que muitos aspectos puderam avançar e outros significantes mestres
passaram a circular, embora os movimentos disparados em maio de 1968 tenham sofrido uma
derrota no que eles tinham de mais central, fazendo avançar a gestão sem sujeito (com a reforma
universitária e a manutenção e endurecimento da direita no poder, em vários lugares no mundo),
pelas periferias da estrutura, ou melhor, na emergência de outras estruturas simultâneas e
paralelas.
Inúmeros movimentos sociais criam corpo e se fortalecem, no final da década de 1960,
78

destacadamente o movimento feminista, o movimento gay e o movimento negro. Muitas pautas


puderam ser construídas e conquistadas, com reinvindicações que demandavam novas
condições, por meio de enfrentamentos ao status quo, avançando no campo dos direitos, o que
é bem importante. Por outro lado, o discurso da histérica contém em si a limitação de estar
referenciado ao mestre. Encontramos, nessa afirmação, o limite dessa modalidade discursiva, a
saber, a referência insiste em buscar um mestre.
Em conversa com os estudantes, Lacan reforçará essa ideia sobre querer um novo
mestre, por isso destaco a limitação desse discurso que interroga, faz greve, mas não sai das
coordenadas presentes nos discursos de mestria: contestando, por vezes produzindo avanços,
mas, ainda assim, incapaz de pensar fora da lógica fálica.

2.3 A histerização discursiva

No processo analítico, faz-se necessária a histerização do sujeito, independentemente da


sua modalidade clínica, diferenciando-se esse conceito, que tem uma lógica própria e que não
se resume a um tipo de patologia ou sintoma.
É justamente por isso que, em O avesso da Psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992),
aparece esse privilégio do discurso da histérica, que situa, no lugar de semblante, algo do desejo,
e esse semblante conduz a fazer desejar. Para Soler, “o desejo insatisfeito se distingue como
uma estratégia de absolutização do desejo” ou, dizendo de outro modo, é “o desejo de desejo”.
Porém, aqui deixamos uma advertência: “todo laço supõe um desejo, mas nem todo desejo faz
laço” (SOLER, 2016, p. 55). Estamos articulando especificamente o desejo de saber. Por isso,
a estratégia teórica de tomar o exemplo de Sócrates e sua relação com o fazer desejar, resultando
nessa relação paradigmática com o discurso da histérica. Por se tratar de uma posição, um
semblante, que faz desejar: ocupe-se de seu desejo, daquilo que falta ao seu desejo, não de seu
gozo (SOLER, 2016). Um desejo que produz saber.
Algo importante, quando nos interrogamos sobre o que faz laço, é pensar o lugar do
desejo histérico. De tal modo que, para iniciar uma análise, a histerização discursiva é condição,
fazendo-se necessária justamente por sua relação com o desejo de saber. Tal como Sócrates, o
analista empresta seu corpo, mas de forma subtraída: empresta não do lugar que ele é, e sim a
partir do lugar que ele ocupa, prestando-se ao lugar de objeto, semblante de objeto a para o
Outro.
Esses lugares não se modificam e produzem uma perda de saber, mas não sem a
subtração do corpo. Dessa forma, Soler (2016) assinala Sócrates no lugar de agente, produzindo
79

um S1 não do sexo, mas sim da política, e esse ponto nos interessa, para pensarmos os
movimentos sociais que se propõem a fazer furo nos discursos de uma mestria universal. O
mestre da histérica é castrado, ele é privado desse lugar de todo, que como ‘todo’ é um lugar
somente suposto. No entanto, ele domina a posição de mais-de-gozar, e é justamente pela
exclusão do gozo fálico – como todo – que esse mais-de-gozar é possível. Por isso, por esse
prisma, a modalidade histérica como discurso “revela a relação do mestre com o gozo”
(SOLER, 2016, p. 74). Não é só a perda que se dá pela castração, mas é esse artifício de
tamponar a perda que Lacan nomeou de mais-de-gozar, a partir do conceito de mais-valia em
Marx:

Quanto ao discurso da histérica, foi este que permitiu a passagem decisiva,


dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou, que é, a saber,
existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de
sintomas. Não se viu aonde isso chegaria, até o dia em que se dispôs do
discurso da histérica para fazer a passagem com uma outra coisa, que é o
discurso do psicanalista (LACAN, 1969-1970/1992, p. 214).

Portanto, é o discurso da histérica que permite a passagem para o discurso do analista,


a ‘histerização discursiva’ é essa posição fundamental na entrada em análise.
Entendemos e defendemos a importância da construção de uma narrativa no laço social,
que permite fazer circular – e escutar – a história, aos moldes do que se faz em um processo de
análise, evidenciando a importância do discurso histérico na história e na política, para além da
sua função no interior do campo analítico, para refletir como essa passagem pode acontecer
apontando para o não-todo, ao invés de parar no pai, no questionamento ao mestre.
E é com a teoria dos discursos que podemos notar o lugar do sintoma no laço social. Se,
no laço, circulam significantes que impõem certas exigências, o sintoma é justamente uma
oposição às exigências colocadas, desvelando algo inerente ao mal-estar. Por isso, nossa aposta
é de que quanto mais o imperativo “bela, recatada e do lar”28 aparecer, mais o oposto se fará
presente em ato. Sintoma é um posicionamento frente a esse mal-estar, é a resposta que vem do
encontro com o Real, é sempre uma resposta, um efeito.
Como vimos, a constituição do sujeito se dá no plano social, o sintoma também é uma
formulação que diz respeito ao corpo social, já que é em direção ao Outro que o sintoma se
endereça. Segundo Lacan, o sintoma “faz, à sua maneira, uma espécie de greve” (LACAN,

28
Frase pronunciada, em abril de 2016, pelo então vice-presidente Michel Temer (MDB), apresentando Marcela
Temer, sua esposa – e “quase primeira-dama”, nas palavras da publicação. Bela, recatada e do lar era o título da
reportagem da revista Veja, que, na ocasião, pretendia com essa matéria defender um modelo de mulher a ser
seguido (LINHARES, 2016).
80

1969-1970/1992, p. 98). A greve é uma denúncia coletiva, o sintoma, no discurso da histérica,


ocupa o lugar de agente, paralisa e fura o saber do mestre.
Ao se ocupar a posição de sujeito do discurso, de maneira similar ao que ocorre no
processo de histerização discursiva, fundamental em um processo analítico, o que se tem é um
movimento que interroga o significante mestre, questionando seu saber, sua verdade. Muitas
vertentes do feminismo alcançaram esse lugar, produzindo outras epistemologias, mudanças no
campo dos direitos, assim como podemos identificar na práxis feminista a possibilidade de ir
além do pai, saindo desse lugar que contesta a mestria, retirando-se da orientação que marca
uma impotência, que limita essa lógica, para ir em direção ao impossível, como permite o
discurso do analista.
Portanto, há uma primeira aposta que se dá via histerização discursiva, possibilitando o
giro, a passagem, para o discurso do analista como aquele que sustenta a política do não-todo,
a abertura para a produção de um novo saber. No modo como vejo um diálogo com a práxis
feminista, pode haver aí um cruzamento entre esse desejo insatisfeito, inerente ao discurso da
histérica, e a práxis feminista como resposta, dando notícias sobre a insatisfação em relação ao
discurso dominante, que, historicamente, inferioriza as mulheres nesse discurso patriarcal
corrente. É importante que essa insatisfação seja escutada e que circule, produzindo novas
elaborações.
Todavia, essa modalidade discursiva é marcada pela impotência, logo é um discurso
importante para fazer avançar, mas conserva limites sobre uma mudança efetiva na estrutura
social. Por isso, as saídas possíveis, passam pela hystorização29 discursiva30, mas o objetivo é
ir além, interessando o passo a mais, saindo do desejo insatisfeito a partir da produção de saber
que leva ao desejo decidido, e à possibilidade de novos significantes mestres; para, portanto,
“[...] passarmos da insatisfação (que pode ser pura demanda) a um desejo decidido que porta
um saber (furado) sobre uma verdade não-toda, passarmos para as singularidades próprias às
diversas identificações aos sintomas (da variedade dos sintomas), enfim, para a aposta no não-
todo” (GIANESI, 2021)31.
Neste ponto limite, recorremos ao ordenamento discursivo no qual o saber passa a

29
Termo usado por Lacan e retomado por Colette Soler (2006), em O que faz laço?, “hystóricas, é como Lacan se
refere às histéricas. Isso nos diz duas coisas. Primeiro, a histeria conta histórias. [...] em seguida isso nos diz que
a própria histeria é histórica, flutua em função da história social, especificamente ao sabor das mudanças que
afetam o S1, o significante mestre, seu parceiro” (SOLER, 2016, p. 65).
30
Explicitar a caça às bruxas, nomear como o feminicídio ocorreu ao longo da história, e atualmente. No campo
político, por exemplo, a Comissão da Verdade operou desse modo, “hystoricizando”. Tem como produto um saber,
aos moldes de contar, repetir, elaborar. É uma pena que não foi possível dar o giro a mais, necessário para de fato
elaborar, e não repetir.
31
Observação feita no exame de qualificação.
81

ocupar o lugar da verdade, (abaixo do agente como a), esse é o único discurso em que o sujeito
está no lugar do Outro e em que incide a produção de um significante mestre, a partir do
agenciamento do a como furo, de uma lógica não-toda.

2.4 Discurso do analista

Lacan (1972-1973/2009) é categórico ao dizer duas coisas: primeiramente ele vai dizer
que é somente a presença do discurso do analista que permite a estruturação dos demais
discursos. Em seguida, afirma que entre um discurso e outro haverá sempre alguma emergência
do discurso do analista. Para Lacan, os discursos apresentam-se em uma dinâmica, em
movimento, e o discurso do analista aparece sempre na passagem de um discurso a outro. E
produz um efeito importante, em sua dinâmica no laço social – nos movimentos sociais e nas
instituições –, pois impede que as modalidades discursivas se fixem em um ou outro padrão,
evitando a cristalização no laço. Apostamos na presença e na valorização do discurso do analista
para produzir modificações, possibilitando abertura e fluidez aos movimentos sociais.
Se, em O mal-estar na civilização (1930/2010b), Freud vai enfatizar que a fonte de
sofrimento mais penosa é resultante da relação com os outros, tal mal-estar se manterá sempre
presente e em toda a forma de laço, já que, ao se ingressar no universo simbólico da linguagem,
algo sempre ficará de fora. O mal-estar é, então, o mal-estar da linguagem, que não é capaz de
dar conta de todo o Real que comparece e atravessa laços e sujeitos, de tal modo que sempre
haverá um impossível de ‘dar conta’ da comunicação, do mal-estar na relação com o Outro.
Nesse sentido, podemos localizar aí a não-relação sexual, tirando definitivamente o
âmbito da relação entre os sexos, para constatar o impossível da relação com o Outro, da
impossibilidade de a linguagem dar conta dos ‘mistérios’ da vida, o impossível de saber sobre
o sexual e sobre a morte. Em A terceira (1974), Lacan vai aproximar esses dois pontos: o fato
de sermos seres sexuados e como tal relação traz para a cena a morte como impossível, como
castração.
Ao aplicar essas categorias que, em si mesmas, só se estruturam pela existência do
discurso psicanalítico, é preciso prestar atenção à colocação em prova dessa verdade de que há
emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro (LACAN, 1972-
1973/1996, p. 26-27).
O analista trabalha em seu discurso, operando com o sintoma, com o sujeito do
inconsciente, enquanto o Eu constrói formações defensivas que busca a todo custo organizar
82

essa divisão, que é condição do inconsciente. Então, enquanto prática, uma análise interroga as
identidades que fecham e reduzem o dizer a um ‘eu sou isso’. Assim, para a Psicanálise somos
cindidos por definição, por isso, o manejo clínico visa a quebrar essas certezas do Eu.
Tomando o discurso do analista como o discurso do mal-entendido, concluímos que é
somente ao escutar e acolher esse mal-entendido que o ser humano vai se utilizar das demais
formações discursivas. Ou seja, é por causa do fracasso da linguagem em dar conta de todo o
Real que as tentativas de laço vão se instaurar, e é por isso que os demais discursos só podem
ser pensados pela presença do discurso do analista. Porém, por haver a emergência do discurso
do analista, na passagem de um discurso para outro, a cada vez que um discurso qualquer se
instala, na tentativa de produzir laço, produz-se um resto não simbolizável, que fracassa a
qualquer tentativa de simbolização. Esse resto – o fracasso do discurso – faz emergir o discurso
do analista, antes mesmo que se tente responder ao apelo do Real com outro discurso.
O discurso do analista é, então, capaz de colocar na posição de comando o que é a
própria fratura de tal discurso, ou seja, o Real – outro nome do objeto a –, e temos o que há de
subversivo nesse discurso: assumir o impossível.
Na práxis psicanalítica, o sintoma é um conceito amplamente trabalhado e que intervém
na prática clínica e política da Psicanálise, sendo, além disso, intrinsecamente ligado ao laço
social. O sintoma é a verdade que faz desordem, é a oposição frente aos discursos de mestria
(LACAN, 1969-1970/1992).
A dominante do discurso só age sustentada por uma verdade, ainda que uma meia-
verdade, que é, então, mola propulsora do discurso, mas que nunca pode ser toda dita (LACAN,
1969-1970/1992). O analista é aquele que ocupa o lugar de vazio, é representado pela fórmula
algébrica que aponta o lugar do analista como a. Agenciar o discurso como objeto a é
apresentar-se como o efeito opaco, como resto da operação da linguagem, indicando que a
Psicanálise ocupa-se do fracasso e do que aparece a partir dele.
Como estamos acompanhando, todos os discursos contêm o objeto a em sua formulação,
mas é somente no discurso do analista que ele será alocado numa posição elevada, de
agenciador. Desse modo, a posição do analista encontra-se no avesso de toda vontade de
dominação, e isso é o que há de mais subversivo nesse discurso, é “não pretender nenhuma
solução” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 66). Como também já foi citado anteriormente, essa é
a única modalidade discursiva que trata o Outro como sujeito barrado, e tratar o Outro como
sujeito é possibilitar que apareça sua singularidade, com seu S1, produto inédito do discurso
nessa modalidade.
Isso posto, sabemos que o sujeito considerado pela Psicanálise é o sujeito do
83

inconsciente e, nesse dispositivo, o que vão aparecer são seus equívocos, seus mal-entendidos,
e é importante que isso emerja e que possa, a partir daí, produzir os significantes singulares de
cada sujeito. Assim, essa inversão de lugares que o discurso do analista produz causa a
emergência de um sujeito inventivo e ativo.
Ao se colocar como furado, privilegiando o que escapa, os equívocos, o analista faz do
S2 um saber-fazer, uma aposta no savoir-faire. Encontramos também no saber, enquanto S2,
sua mola propulsora, já que a suposição de saber - que, em Psicanálise, chamamos de
transferência -, funciona como motor desse discurso. Ainda mais, considerando que, ao se
colocar como objeto, agenciando essa modalidade discursiva, o analista (ou quem ocupa esse
lugar nessa lógica, se quisermos pensar no uso de tal modalidade para além dos consultórios)
não fará uso do saber para praticar mestria sobre o outro. Sendo assim, seu comando só pode
se dar pela transferência, por aquilo que o agente permite que o outro deposite nele, o que, na
transferência, em análise, é o amor transferencial.
O analista, ocupando o lugar de semblante, oferece o suporte necessário para a
transferência acontecer e inclui-se na cadeia significante do sujeito, ao oferecer a sua escuta, o
seu corpo. Esse ato institui uma ordem do bem-dizer. Não visa à produção de sentido, pelo
contrário, esvazia os sentidos já existentes, ao mesmo tempo que opera como enigma, com
cortes e inversões; não alimenta sentidos, pelo contrário, esvazia sentidos para possibilitar e
almejar a construção de um saber original. À medida que algo se modifica, aquilo que era
inicialmente queixa pode se transformar, por isso uma ética do bem-dizer.
Dado que a função do analista não é dominar, embora também se trate de uma relação
de poder, ainda que o analista se subtraia de exercer tal poder em relação ao Outro, o agente se
torna assim “causa de desejo” (LACAN, 1969-1970/1992 p.168), mobilizando o desejo de saber
no Outro, e daí o saber no lugar da verdade, como semi-dizer, dizer dos equívocos, e a produção
de um S1 inédito.
84

Figura 6 – O discurso do analista.

Fonte: Lacan (1969-1970/1992).

Assim:
[...] é o próprio objeto a que vem no lugar do mandamento. É como idêntico
ao objeto a, quer dizer, a isso que se apresenta ao sujeito como a causa do
desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para essa operação
insensata, uma Psicanálise, na medida em que ela envereda pelos rastros do
desejo de saber (LACAN, 1969-1970/1992, p. 99).

Esse discurso demonstra claramente a impossibilidade do ato de governar: “ao se fazer


de objeto causa do desejo, o psicanalista lança o sujeito na sua divisão, demonstrando-lhe isto:
que o inconsciente não se deixa dominar” (BISPO; SOUZA, 2013, p. 641).
A ética do analista, em seu ato, convoca o sujeito como Outro, ao

[...] tratar o Outro como um sujeito dividido, cindido pelo significante e


separado de seu gozo. Essa ética, porém, não se restringe à prática com seus
pacientes no consultório, pois a própria ética o leva a dar provas de seu desejo
de analista, em razão da posição que escolheu ocupar em relação a seus
congêneres (GALLANO, 2006, p. 19).

Tem algo nessa operação que Lacan indica como duas causas que se enlaçam de algum
modo, nessa lógica: “refiro-me à lógica, chamada de ‘alienação e separação’, da reunião e da
intersecção entre o sujeito e o Outro, na qual se situa uma dupla causação do sujeito”
(GALLANO, 2006, p. 21). Segundo a autora, como resultado, “em um vínculo social,
participam tanto o corpo como falante – o sujeito que fala sem saber e diz mais do que sabe – ,
quanto o corpo como gozante, do qual se recortam e se separam os objetos a (GALLANO,
2006, p. 21-22). É graças a esse ato que visa à separação que o discurso da Psicanálise escreve-
se como avesso.
A direção de uma análise é avessa à dominação, à universalização. O que não garante –
já que não há garantias – que alguns psicanalistas, eventualmente, não sustentem certo lugar
controverso, quando ainda mantêm posições que reafirmam o discurso hegemônico, sobre a
sexualidade feminina como enigma, sobre o falo, o lugar do pai, o Édipo como O mito.
85

A Psicanálise é avessa ao discurso do mestre; diferentemente do indivíduo construído


pelos discursos de mestria, o sujeito da Psicanálise é dividido. Uma análise não quer eliminar
essa divisão, não é uma ortopedia do sujeito, ela se sustenta na direção oposta à unicidade, à
fixidez de uma identidade, por ser avessa aos valores patriarcais. Assim, enquanto o patriarcado
busca a universalização, a práxis psicanalítica busca aquilo que tem de mais singular em cada
sujeito e, como final de análise, podemos reconhecer a identificação do sintoma32, que, segundo
Lacan (1976)33, é identificar o que há de menos universal em cada um, o que há de mais singular
em cada ser falante.
A singularidade é o que há de mais íntimo e único, uma particularidade do ser falante
que, ao estabelecer a diferença, instaura a possibilidade de existência a partir de um saber-fazer
que lhe é próprio. Considerando a diferença mais do que se costuma pensar, não é, porém, o
diferente de, não é uma diferença que pode ser comparável ou mensurável, trata-se da marca de
uma diferença absoluta.
Assim, voltando ao desejo de saber, há algo no laço que sempre vai ser falho, a
comunicação nunca se dará por inteiro, por isso o uso da fantasia e o encontro com o equívoco
como marcador de um limite. É nesse sentido que podemos identificar o enigma sobre o sexual,
ou a não relação sexual, como é apresentada no Seminário 20, Mais, ainda (1972-1973/2009);
se há inconsciente, sempre haverá o equívoco. E é nesse sentido, também, a falta como
impossível, como não relação.
Para Lacan, a identificação ao sintoma é esse passo além das fronteiras do limite da
castração. A partir do discurso do analista, podemos pensar o sintoma como uma marca de
singularidade, aquilo que escapa aos enquadramentos presentes nos laços sociais de mestria.
Ressaltamos que não estamos falando, agora, do sintoma como ele aparece,
inicialmente, agenciando o discurso da histérica, o sintoma que, inicialmente, aparece como
queixa, porque há uma passagem necessária para o sentido do sintoma como marca de
singularidade: giros, voltas, construções em análise, produzindo um outro estatuto para o
sintoma. Usar o sintoma queixa até gastar, esgarçando, puxando daqui, girando dali, e é como
efeito no giro discursivo que esse sintoma incide em um savoir-faire, deixando de ser queixa
para ser a maneira com que cada ser falante pode se virar com o que tem, inventando aí uma
certa vantagem em relação à sua posição frente ao laço.

32
Depois, em 1973, Lacan modifica a grafia para sinthoma, para evidenciar a diferença desse sintoma marca de
singularidade.
33
Essa expressão foi utilizada por Lacan, na aula de 16 de novembro de 1976, no Seminário inédito chamado
L`insu que sait de l´une-bévue s´aile à moure.
86

“Desde o ato analítico inaugurado por Freud, o que a Psicanálise transforma não é um
discurso. O que ela, eventualmente, transforma é um sujeito” (GALLANO, 2006, p. 17). A
transformação não acontece necessariamente, ela pode aparecer como contingência, só
ocorrendo quando o sujeito deixa cair algo - “o significante mestre, que determina o sujeito sem
que ele saiba, cai no discurso do analítico” (Ibidem, p.19). O sujeito do inconsciente manifesta-
se nos vazios, nos cortes que esburacam a cadeia significante que organiza seu discurso. A
queda desse significante implica o atravessamento de uma posição fixa de gozo, produzindo,
no final de uma análise, a abertura para experiência radical de indeterminação.
Para Soler, o discurso do analista é a saída de uma análise, e isso independe de o ser
falante vir ou não vir a fazer desse discurso um ofício; é a saída, já que é por essa via que se
constrói a identificação do sinthoma. Desse modo, o trabalho em análise leva o sujeito a saber
sobre o seu sinthoma. Esse percurso em direção ao sinthoma permite uma identidade que separa
o sujeito da identificação do “Outro das normas do discurso” (SOLER, 2016 p.47), e isso funda
uma distinção.
Vale ressaltar que, como distinção, não estamos falando de uma diferença pela
diferença, justamente para não cair numa lógica individualista, o que é bem prejudicial ao laço,
advertindo sobre esse empuxo do individualismo/meritocracia colocado como uma máxima
deste estágio do capitalismo, na cultura.
Nesse sentido, há uma aposta em cena, no ato analítico, medindo o valor desse ato não
somente pela sua verdade e irrupção – sempre anormal e sintomática –, pois se inscreve pelos
limites estabelecidos pelo discurso dominante, bem como por suas consequências. O objeto a
contém, em si, algo não calculável e submetido a uma lógica temporal: produz-se uma certeza
antecipada para que não seja tarde demais, ou seja, é uma aposta em confrontar-se com um Real
não calculável, a partir de um saber estabelecido que pode abrir espaço para produções a
posteriori (LACAN, 1967-1968).
Pelo contrário, o giro proposto no discurso do analista é aquele de deixar algo cair. Um
giro discursivo que desmente o lugar de universal e da autoridade como autoritarismo, o
autoritarismo que impõe hierarquia, como acontece nos discursos de mestria. O discurso do
analista, enquanto avesso, produz um giro que promove autoria como autoridade, um autorizar-
se de seus mal-entendidos, uma autoridade sobre os seus equívocos, o que originaria outro modo
de lidar com as assimetrias.
Visando circular o lugar de representante ou de autoridade, em um estilo próximo à
proposta de cartel para o ensino lacaniano. Lacan (1964/2008a), na tentativa de fazer algo
diferente na sua escola, irá propor a lógica do mais-um, posição fundamental para o
87

funcionamento de um cartel34, como um lugar lógico que sustenta as indagações ao invés de


respondê-las.

2.5 O discurso instaura a cultura

Um dos debates clássicos existentes em Freud é como ele não fecha a discussão entre
cultura e civilização: “Freud preferiu não distinguir claramente a palavra cultura da palavra
civilização, possibilitando assim diversas interpretações divergentes” (ARÁN, 2006, p. 56), de
tal maneira que se mantém a tensão entre os dois termos. Em 1927, podemos localizar em O
futuro de uma ilusão, como Freud vai tratar a cultura, enquanto certa elevação da condição
humana em relação às outras espécies. Três anos depois, em 1930, em O mal-estar na
Civilização/Cultura, ele mantém essa tensão, de tal maneira que o nome do texto aparece com
diferentes traduções. Há um debate intenso entre autores que inclui as posições políticas como
interferências nessa escolha dos termos:

O principal argumento desses autores é que a própria palavra culture teria sido
influenciada pela construção da noção de Kultur realizada por autores alemães
como Hegel, Marx, Nietzsche e Freud. Além disso, a oposição entre natureza
e cultura proposta por Lévi-Strauss, e incorporada pelas ciências humanas,
teria ampliado de tal forma a noção de culture que esta, de certa forma, teria
incorporado a própria noção de civilisation (ARÁN, 2006, p. 58, grifos
nossos).

De tal modo, pensar a cultura somente como oposição à natureza poderia deixar escapar
a complexidade do conceito, reduzindo-o a uma maneira universal e estrutural. Podemos pensar
a entrada na cultura como um processo, a partir de uma historicidade, que aponta para as
exigências de renunciar a ‘instintos’ individuais, e tal renúncia seria parte do processo
civilizatório que constitui a socialização e a cultura, sustentando a noção de conflito como
primordial para pensar o sujeito. Assim, escolho usar os dois termos e coloco a questão: pode
a Psicanálise não estar influenciada pela cultura da sua época?

34
Em 1964, na Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan anunciou o dispositivo do cartel como um
dos pilares de elaboração e transmissão da Psicanálise, sendo também uma ferramenta para a formação do analista.
O dispositivo sustenta-se por um pequeno grupo formado por, no mínimo, quatro membros e, no máximo, seis,
sendo um deles o Mais-um, ocupando o lugar daquele que sustenta a função de não responder, movimentando as
questões dos sujeitos que participam do cartel, ao mesmo tempo, atento para não encarnar a posição de mestria no
grupo.
88

2.6 O surgimento da Psicanálise: em qual período? Em qual contexto? E em qual


território?

Freud teve uma experiência inicial na clínica de Jean-Martin Charcot, dedicando-se a


pensar a histeria como uma psiconeurose de conversão, ou seja, um conflito psíquico que se
manifesta no corpo. Para ele, essa psiconeurose manifesta-se em homens e mulheres, mas é
observável que sua maior incidência se dá nas mulheres, pelo menos foi assim que se apresentou
na clínica freudiana - em Estudos sobre histeria (BREUER; FREUD, 1893-1895/2016), todos
os casos são de pacientes mulheres.
Escutar essas mulheres fez Freud perguntar-se sobre o porquê de alguém recusar o que
desejava. Ou o porquê de algumas pessoas terem uma sensação de desprazer, na ocasião da
excitação sexual. E como esse desprazer vira outra coisa no corpo, produzindo sintomas
somáticos ou não.

Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobretudo ou
exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar
histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não (FREUD,
1905[1901] /2016, p. 201).

Localizar a incidência entre as neuroses e a sexualidade, naquele momento, está


vinculado às dimensões sociais e políticas. Freud diagnosticou de modo paradoxal a moral
sexual da sua época. Constatando os efeitos dessa moral repressora na realidade psíquica e
social das mulheres, que tinham, por consequência, adoecimentos atrelados às exigências
matrimoniais, maternidade, recusa de uma vida intelectual, recusa ao exercício da sexualidade,
uma espécie de “Feminismo Espontâneo da Histeria”, como Emilce dio Bleichmar (1985/1988)
nomeou em seu livro. Para a autora, haveria um feminismo espontâneo na histeria, uma
manifestação que emerge, marcando que:

A histeria fica, assim, situada no centro de um conflito básico de caráter


narcisista, que impulsiona a mulher a uma espécie de feminismo espontâneo,
pois o que tenta é equiparar ou inverter a valorização de seu gênero, não o
comportamento sexual. Cada vez que se sinta humilhada, apelará à sua única
arma na luta narcisista, o controle do desejo e de seu gozo para, desta maneira,
inverter os termos. Ela será́ o amo, assumindo um desejo de desejo
insatisfeito. Em sua reivindicação não pode deixar de permanecer prisioneira
dos paradigmas e sistemas de representação masculina, e seu feminismo
espontâneo e aberrante ocorrerá no mesmo terreno em que ficou circunscrita
e definida: o sexo (BLEICHMAR, 1988, p. 26).
89

Desse modo, Freud encontra nas neuroses uma espécie de revolta dessas exigências no
corpo, um “isso não”, o sintoma como metáfora, mas também como resposta, um “isso não” ao
discurso vigente.

Além disso, o ato de Freud – a invenção da prática psicanalítica – não resultou


da sua inclinação ‘cientificista’. Foi, antes, uma resposta do sujeito histérico
que revelou a Freud, inesperadamente, o inconsciente e a verdade como causa
material. Dito de outro modo, a causa material da substância significante
relacionada ao sujeito foi a histérica. Lacan, nesses termos, teria estabelecido
uma relação entre o desejo do cientista, ou seja, o sujeito no discurso
científico, e o sujeito histérico. Do sujeito, e não o da ciência. A histérica, com
seus sintomas, esclarece a incidência do significante no sujeito, abordado
como metáfora em sua abertura ao inconsciente (GALLANO, 2006, p.16).

Assim, é importante notar que Freud (1933/1996) percebe que tinha algo “peculiar” na
forma como se apresentava a sexualidade das mulheres; ao mesmo tempo, ele sabia que o
enigma – ou, pelo menos, hoje, lendo Freud retroativamente, eu tendo a pensar assim – estava
em torno da sexualidade de qualquer ser falante, no entanto, a alta contingência de mulheres
que procuravam seu consultório fez com que ele enfatizasse a sexualidade feminina como um
enigma, algo que, depois, ele mesmo retiraria, desconectando a feminilidade como única e
exclusiva desse lugar. É justamente porque Freud estava atento a essas questões, mas não falava
disso em tom de denúncia, que Gayle Rubin (1975), como veremos, vai dizer que a Psicanálise
é uma teoria feminista faltosa.
Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016), vai propor que “o
interesse exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação”, não sendo
algo “evidente em si” (p. 35). Digo isso, para ressaltar que a obra freudiana não é estática,
autorizando-se a modificações. Por isso mesmo, é indispensável entender que, quando Freud
fala “inveja ao pênis”, por exemplo, ele está tomado pela lógica patriarcal, essa ideia é um
retrato social da época e cabe aos psicanalistas contemporâneos estarem atentos a isso.
É nesse sentido que Rubin (1975) se autoriza a outros usos e outras elaborações, a partir
da teoria freudiana: ela traça uma linha direta entre as interpretações de Freud e a descrição da
hegemonia de uma época altamente machista e autoritária, com as mulheres imersas com suas
mentes e corpos em um laço altamente opressor, produzindo uma feminilidade para o exercício
do domínio via controle sexual: “Pode-se entender os ensaios de Freud sobre a feminilidade
como descrições de como um grupo é preparado psicologicamente, em tenra idade, para
conviver com a própria opressão” (RUBIN, 1975, p.47).
Retomemos aqui a ideia lacaniana que aproxima Freud de Marx, a partir do
90

entendimento de que ambos não estabelecem uma lógica e, sim, apreendem sobre uma lógica
já determinada, de modo que os sentidos patriarcais estão presentes em diversas passagens da
obra freudiana, eventualmente tolerante com os fundamentos do patriarcado. No entanto, é
importante observar que o psicanalista escuta o sujeito do inconsciente, inserido em um
momento histórico determinado, e, assim, os dizeres do sujeito falante verteram sobre as
questões culturais nas quais ele está inserido. Segundo Humberto Maturana (2009), a cultura é
patriarcal “há cerca de sete ou seis mil anos”35 (MATURANA, 2009, p. 11). Esse autor define
cultura patriarcal como um processo civilizatório que assume a verdade como absoluta, essa
verdade que garante o bom funcionamento das coisas, para que nada saia do giro, seu
agenciamento organiza a vida cotidiana de tal forma que a guerra, a competição e a
hierarquização são valores essenciais.
A sociedade que conhecemos – ou pelo presente ou pela história ‘oficial’ – está
organizada a partir dessa lógica, que, em Psicanálise, chamamos de lógica fálica.
Invariavelmente, a Psicanálise foi concebida nesse berço, então trabalha tais termos,
sentidos e lugares, por isso está impregnada de vocábulos e expressões como significante fálico,
função paterna, ou da divisão sexual destinada e ocupada pelos significantes homem e mulher,
a partir de lugares diferentes, já concebidos anteriormente à descoberta do inconsciente. Nesse
sentido, há questões que aparecem na clínica e trazem notícias da presença do patriarcado no
laço.
A Psicanálise origina-se no final do século XIX, quando Freud, de maneira genial,
constrói e defende a tese sobre processos psíquicos inconscientes, revelando como a
consciência (de si), até então, estava sendo superestimada. Deslocando a razão do centro, a
teoria freudiana vai se tornando cada vez mais sofisticada. A descoberta do inconsciente
inscreve o nome de Freud na história como aquele que provocou um abalo narcísico na
humanidade, justamente por revelar “que o eu não é senhor na sua própria casa” (FREUD,
1916/1996), e, de lá para cá, muito se pôde avançar com a Psicanálise enquanto práxis.
O sentido de destacar o lugar e o momento histórico em que a Psicanálise surge é para
assinalar que sua origem é relativamente recente e surge em uma cultura determinada,
padecendo da ideologia de sua época, embora sua teoria vá se estabelecendo de maneira avessa
a tal ideologia, apontando o mal-estar na cultura, mas não apartada dela.

35
“A Arqueologia nos mostra que a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores
patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos”
(MATURANA, 2009, p.11).
91

2.7 O patriarcado e a burguesia europeia

O pressuposto vitoriano nem de longe é o auge do patriarcado, apogeu descrito por


Freud em Totem e Tabu (1913a/1996) e em Moisés e o monoteísmo (1939/1996). Pelo contrário,
representa o início de seu declínio, ao mesmo tempo em que existia um grande esforço para
atualizar o poder patriarcal em uma nova versão que acompanhava o advento da modernidade,
realçando o pai da família burguesa como o seu representante.
Freud fundamentou suas teses partindo de um pai da horda primeva, com uma virilidade
que lhe garantia a dominação plena, de gozo pleno. Acontece que esse pai que tudo podia está
morto, e essa virilidade ideal só existe mesmo nesse lugar de ideal. A modernidade é fundada
em valores universalistas, constituindo “a figura paterna como distante, onipotente e violenta”
(AMBRA, 2015, p. 138). Ambra retoma Forth, para ressaltar que a leitura de Freud sobre a
civilização é aplicável ao sujeito moderno e, nesse contexto, formula-se a masculinidade do
homem moderno, girando em torno de um ideal de virilidade supostamente perdido.
Tal virilidade é colocada em cena para inscrever uma função. Em termos lacanianos,
podemos pensar no poder absoluto do mestre, como primevo, e como se atualiza algo em sua
passagem (do discurso do Mestre antigo) para o discurso Universitário, giro que incide em um
novo formato moral e espiritual, ancorado no século XVI, na Europa36, com o protestantismo e
as grandes descobertas científicas, culminando no racionalismo e no positivismo,
consequentemente, no avanço do sistema capitalista. Destarte, a modernidade atualiza o
formato e o sentido da família como burguesa, confinando e reduzindo as mulheres ao ambiente
doméstico, atualizando a função da maternidade de tal modo que ditava o que deveria ser o
comportamento da mãe e sua relação com a prole, via um amor que deveria ser incondicional.
Assim:

Desde o século XVIII, vemos desenhar-se uma nova imagem da mãe, cujos
traços não cessarão de se acentuar durante os dois séculos seguintes. A era das
provas de amor começou. O bebê e a criança transformam-se nos objetos
privilegiados da atenção materna. A mulher aceita sacrificar-se para que seu
filho viva, e viva melhor, junto dela (BADINTER, 1985, p. 92).

36
Digo “ancorado”, pois atualmente têm surgido outras epistemologias que vão considerar a modernidade como
transatlântica, tanto por considerar a importância da independência estadunidense, anunciada em 1776 e
reconhecida em 1783, pela aplicabilidade global da modernidade, tendo sua marca no tráfico de escravos
transatlântico, modificando as relações econômicas europeias, bem como por essa dialética que, na Europa, cria o
sujeito universal, desumanizando e objetificando não-europeus (COLLINS, 1990; FANON, 2008; GALEANO,
2001; MORAGA; ANZALDÚA, 1983; QUIJANO, 2009; SANTOS, 2009).
92

Badinter recorta alguns trechos de Rousseau (1712-1778), para destacar a força dos seus
escritos. Ao se consagrar como um filósofo, teórico político e escritor de sua época,
sedimentando e dirigindo a ideologia dominante, e propondo teorias sobre a natureza feminina,
Rousseau estabelece como verdade que: “A mulher é feita não para si mesma, mas para agradar
ao homem [...] para ser subjugada por ele [...] para lhe ser agradável [...] para ceder e para
suportar até mesmo a sua injustiça” (BADINTER, 1985, p. 242).
Portanto, é um período em que o pai não tem a mesma estima – suposta – de antes, como
autoridade absoluta, quando o poder se estabelecia em torno do um, do pai como soberano, já
que, nesse giro histórico que produz a modernidade, esse pai passa a ter que se submeter à lei
do Estado e à Ciência; no entanto, essa nova configuração do pai passa a exercer uma relação
de poder no interior da família. Desse modo, a Psicanálise surge no início do declínio do
patriarcado, enquanto formando o Um dominante, mas culturalmente, os valores patriarcais se
mantêm.
Popularizou-se chamar de cultura patriarcal a maneira de viver, a partir de

[...] uma rede fechada de conversações. Esta se caracteriza pelas coordenações


de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de
coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a
autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e
a justificação racional do controle e da dominação dos outros, por meio da
apropriação da verdade (MATURANA, 2009, p. 5).

Imposição da razão e dominação da verdade são formas de colonização, a sociedade


patriarcal não admite a incerteza, a contradição, os paradoxos e, contra isso, faz uso da força de
diversas maneiras, e a linguagem é uma dessas formas, destinando as coisas e tratando delas
por oposição, de maneira binária. Nesse processo, a mulher é o binário do homem – inclusive,
no Velho Testamento, a inferioridade da mulher, nessa lógica binária, aparecia à medida em
que ela era criada a partir de um pedaço do homem, da sua costela. Na modernidade, o homem
institui um conhecimento sobre o humano que preserva para si o lugar de sujeito e, ainda
pautado na binariedade e na divisão sexual como condição radical, destina à mulher um lugar
inferior, como pudemos ver nos trechos destacados de Rousseau, assim como em Kant (1724 -
1804), em Antropologia de um ponto de vista pragmático (2009), que vai dizer que a mulher é
naturalmente inapta, de tal modo que deveria ocupar-se somente dos cuidados do homem e da
família:

Em todas as máquinas que devem produzir com menos força o mesmo tanto
93

que outras produzem com força maior, é preciso pôr arte. Pode-se, por isso,
admitir de antemão que a previdência da natureza terá colocado mais arte na
organização da parte feminina que na da masculina, porque, não apenas para
juntar os dois na mais estreita união física, mas também, como seres racionais,
para o fim que mais interessa a ela mesma, a saber, a conservação da espécie,
ela dotou o homem de mais força que a mulher e os muniu, além disso, naquela
qualidade (de animais racionais), de inclinações sociais para manter
duradouramente sua comunidade sexual numa união doméstica (KANT, 2009,
p. 198).

Discorrendo, ainda, que “No progresso da civilização, cada uma das partes tem de ser
superior de maneira heterogênea: o homem tem de ser superior à mulher por sua capacidade
física e sua coragem” (KANT, 2009, p. 303), o autor segue afirmando que “[...] feminilidade
são fraquezas” (Ibidem, p. 304) e que as mulheres “[...] apesar de terem um entendimento
saudável (sem deficiências mentais), possuem deficiências (fraquezas) que tornam necessário
que outra pessoa assuma a responsabilidade por elas no que se refere às questões de natureza
civil” (KANT, 2009, p. 106).
Essa esteira de pensamento cria uma dicotomia que ‘cientificamente’ inferioriza a
mulher. O homem é o corajoso, o forte, o racional, enquanto a mulher é delineada como seu
oposto, de tal modo que essa lógica produz um lugar de sujeito para o homem, destinando à
mulher o lugar de objeto, gerando implicações hegemônicas no laço, pautado a partir da divisão
entre os sexos, que cria e impõe papéis de gênero, não sem efeitos nos enlaces sociais.

Assim, em nossa cultura patriarcal falamos de lutar contra a pobreza e o abuso,


quando queremos corrigir o que chamamos de injustiças sociais; ou de
combater a contaminação, quando falamos de limpar o meio ambiente; ou de
enfrentar a agressão da natureza, quando nos encontramos diante de um
fenômeno natural que constitui para nós um desastre; enfim, vivemos como
se todos os nossos atos requeressem o uso da força, e como se cada ocasião
para agir fosse um desafio.
[...] Em nossa cultura patriarcal, estamos sempre prontos a tratar os desacordos
como disputas ou lutas. Vemos os argumentos como armas, e descrevemos
uma relação harmônica como pacífica, ou seja, como uma ausência de guerra
– como se a guerra fosse a atividade humana mais fundamental
(MATURANA, 2009, p. 5-6).

Assim, o discurso do mestre, historicamente reconhecido como patriarcal, persiste,


estima a unicidade, a unidade, petrificando-se em arranjos fechados que comprometem o lugar
da diferença.
Mais do que uma forma de opressão de gênero, é uma estrutura que engendra regimes
de gozo. Abrange a opressão de gênero, mas é, sobretudo, um laço que faz das assimetrias
hierarquias. Vale frisar que sua superação diz sobre ultrapassar uma lógica que enquadra uma
94

forma de estar no mundo, então, nesse sentido, não é a respeito de inverter papéis de gênero, o
ideal seria superar o conceito gênero, renunciando a qualquer fórmula que colonize ou oriente-
se de maneira binária.
A Psicanálise nasce no berço da sociedade patriarcal – ainda que um patriarcado em
declínio – e assentada na lógica colonial, na Europa, que formulou e estabeleceu a identidade
do sujeito universal como um indivíduo sem divisão, à sua imagem e semelhança, destinando
ao lugar do Outro/objeto as mulheres e os sujeitos racializados.
Para Quijano (2009), o eurocentrismo não é exclusivamente a perspectiva cognitiva dos
europeus, ou dos capitalistas que exercem a dominância no discurso, mas a perspectiva das
pessoas educadas sob sua hegemonia, que ‘naturalizam’ as experiências nesse padrão de poder:

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão


mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação
racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão
de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e
subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e
mundializa-se a partir da América (QUIJANO, 2009, p. 73).

Portanto, a colonialidade, segundo o autor, é consequência do colonialismo, o


colonialismo é a forma de dominação implementada para exploração, expropriação e
apagamento de determinados povos. Já a colonialidade é a ideologia que sustenta essa prática
que se mostrou fundamental para a emergência do poder capitalista, “configurando como um
novo universo de relações intersubjetivas de uma dominação sob hegemonia eurocentrada. Esse
específico universo é o que será depois denominado como a modernidade” (Ibidem, p. 74). E
mais, “Em pouco tempo, com a América (Latina), o capitalismo torna-se mundial,
eurocentrado, e a colonialidade e modernidade instalam-se associadas como eixos constitutivos
do seu específico padrão de poder, até hoje” (Ibidem, p.73-74). A modernidade é uma
concepção de humanidade que instaura uma racionalidade que diferencia a população mundial
“entre superiores e inferiores, racionais e irracionais, primitivos e civilizados, tradicionais e
modernos” (Ibidem, p.75). O colonialismo continuou sob a forma de colonialidade de poder e
de saber.
Assim, esse sistema de dominação:

[...] pressupõe uma estrutura configurada por elementos historicamente


homogêneos, não obstante a diversidade de formas e caracteres, que guardam
entre si relações contínuas e consistentes – seja pelas suas ‘funções’, seja pelas
suas cadeias de determinações – lineares e unidirecionais, no tempo e no
espaço. Toda estrutura societal é, nessa perspectiva, organizada e sistêmica,
95

mecânica. E essa é, exatamente, a opção preferencial do eurocentrismo na


produção do conhecimento histórico. Nessa opção, algo chamado ‘sociedade’,
enquanto uma articulação de múltiplas existências sociais numa única
estrutura, ou não é possível ou não tem lugar na realidade, [...] ou, se existe,
só pode ser sistêmico ou orgânico” (QUIJANO, 2009, p. 78).

Esse autor vai argumentar que a racionalidade moderna subjaz à ideia de componentes
estruturais, como se as relações fossem a-históricas, “como se fossem relações definidas
previamente num reino ôntico, a-histórico ou trans-histórico” (Ibidem), assinalando a
impossibilidade de uma única perspectiva de conhecimento dar conta da experiência histórica
como um todo, e apontando, ainda, como “as epistemologias feministas têm sido centrais para
a crítica dos dualismos clássicos da modernidade, sejam natureza/cultura, sujeito/objeto,
humano/não-humano, e da naturalização das hierarquias de classe, sexo e raça” (QUIJANO,
2009, p.48).
Nessa perspectiva, Quijano critica a herança hegeliana sobre o sujeito, critica como as
identidades constituídas nos últimos 500 anos estão situadas em torno das raças - raça como
tendo um caráter “místico-social: religioso, nacional, étnico, racial” (Ibidem, p.103) -, e também
como tal construção serve à dominação de classes. Daí as subjetivações e organizações na
estrutura social ficam à mercê de determinações de condições históricas específicas, implicadas
por três instâncias – trabalho, gênero e raça –, em períodos e em contextos específicos, gerando
classificações sociais e a colonialidade como poder.
A Europa como centro do mundo e a racialização das relações de poder entre novas
identidades sociais e geoculturais são fruto da colonialidade. Assim, “todo fenômeno histórico-
social consiste na expressão de uma relação social ou numa malha de relações sociais”
(QUIJANO, 2009, p.83).
A colonização pode vir por meio das guerras e do enfrentamento dos corpos, mas, sem
dúvida, a sua versão mais sofisticada se dá pela via da Filosofia e da Ciência, produzindo
saberes ideológicos que beneficiam o mestre. Daí um giro do mestre antigo para o mestre
moderno, marcando o momento histórico que faz surgir o indivíduo, e o proletário, como
indivíduo motor do capitalismo: “Lacan chega a isolar a ideia de que o que faz a condição do
indivíduo – ele não diz sujeito –, é de ser um proletário, quer dizer de ‘ser desprovido de tudo’”
(ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 180-181).
A versão moderna da colonização preza pelo indivíduo, por meio de um esquema no
qual o individualismo torna-se um valor no ideário do capitalismo: ele é um dos seus engenhos,
a crença no ‘cada um por si’ deixa velada a verdade da exploração e colonização do proletário.
96

A partir da domesticação37 colonial, o corpo é investido de arado, definindo-se


determinados corpos como talhados para o trabalho. O corpo feminino, dependendo dos
atravessamentos raciais, é estabelecido como aquele reservado tanto para o trabalho braçal
como para a reprodução. O legado da escravidão, como diria Davis (1981/2016), estabelece os
parâmetros para uma “nova” condição: “O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida
das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos de escravidão.
[...] O sistema escravista definia o povo negro como propriedade” (DAVIS, 1981/2016, p.17).
Assim, apesar de os sujeitos partirem do mesmo regime de gozo, isso ocorre de maneira
diferente para cada ser falante, de tal modo que as condições impostas pela modernidade, com
o racismo, sexismo e classismo, modificam radicalmente a maneira como cada um será ou não
será reconhecido como sujeito, ou designado como Outro, no laço social que faz da inscrição
fálica “uma moeda de reconhecimento” na estrutura simbólica.

2.8 Colonização e os processos civilizatórios em psicologia das massas

Desde Freud (1921/2011) temos notícias da não separação entre “o ser humano”, a sua
busca para encontrar a satisfação de seus impulsos pulsionais e como isso passa,
invariavelmente, pelas relações com outros seres humanos. “Portanto, a psicologia de massas
trata o individual como membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma instituição,
ou como massa em determinado momento, para um certo fim” (Ibidem, p.15).
Ele deixa inúmeras pistas para pensar essa relação entre o sujeito do inconsciente e o
laço social, ainda que usando outros termos. Como o próprio autor disse na introdução de
Psicologia das Massas, em 1920, os estudos sobre o tema estavam ainda no início, sugerindo
que ainda havia um longo caminho de investigação pela frente, ao mesmo tempo, deixando
pistas preciosas: destaco o funcionamento do indivíduo, que, na massa, está sujeito a uma
consciência moral, carregada de valores, reprimindo “seus impulsos instintivos inconscientes.
[...] Há muito afirmamos que o cerne da chamada consciência moral consiste no ‘medo social’”
(FREUD, 1920/2011, p. 21). Em outras palavras, a massa impõe um lugar hierárquico para o

37
Razão pela qual o trabalho doméstico é chamado assim, para Federici: “O trabalho doméstico é até hoje
considerado por muitas pessoas uma vocação natural das mulheres, tanto que é rotulado como trabalho de mulher”
(2021, p.157). A autora continua: “Por isso, não surpreende que, a partir dos anos 1840, relatórios e mais relatórios
começassem a recomendar que as mulheres casadas tivessem sua jornada de trabalho nas fábricas reduzida, para
lhes permitir realizar suas obrigações domésticas, e que os empregadores se abstivessem de contratar mulheres
grávidas. Por trás da criação da dona de casa da classe trabalhadora e da extensão a ela do tipo de lar/vida familiar
anteriormente reservado à classe média, havia a necessidade de um novo tipo de trabalhador, mais saudável, mais
robusto, mais produtivo e, acima e tudo, mais disciplinado e ‘domesticado’” (FEDERICI, 2021, p.165-166).
97

sujeito, de tal modo que é desse lugar que ele pode emergir. Tem uma mestria posta em cena
na psicologia das massas.
A massa produz uma espécie de contágio que leva o indivíduo a sacrificar facilmente o
seu interesse pessoal em função do interesse social38. Contágio que é efeito de um processo de
sugestionabilidade intrínseca à instauração da massa (FREUD, 1920/2011).
Com Freud (1921/2011), podemos observar o fenômeno da colonização por outra
perspectiva, através das lógicas de grupo que visam à unidade, à homogeneidade e à intolerância
pelas diferenças. O autor aponta a sugestionabilidade, ou contágio, como fatores inconscientes
para a produção dessa univocidade elevada à máxima potência, nos fenômenos de massa.
Além disso, Freud e Gustave Le Bon (1895/1963) vão dizer que o indivíduo isolado
pode ser culto e cortês, mas, numa multidão, pode se tornar bárbaro, recusando sua capacidade
de discernimento, agindo por impulso, chegando à violência e à bestialidade, ainda que coloque
em risco sua autopreservação. O grupo, enquanto massa, sofre o empuxo da unidade e fica
vulnerável, influenciável; seus sentimentos são sempre muito simples e exagerados, e não se
permite espaço para incertezas ou contradições. Na massa, os sentimentos são levados aos
extremos, e o ódio a um inimigo comum, ou o ódio à diferença, faz operar o laço.
Por outro lado, ainda com Freud (1921/1978), o fenômeno de grupo também opera pela
via do amor. Nesse cenário, por amor ao líder/mestre ou ao ideal, como produto dessa operação,
estabelecem-se as identificações, seja por contágio – também conhecido como identificação
histérica, em referência ao exemplo usado por Freud, quando cita o fenômeno das meninas do
internato, que se identificam com a imagem da mulher que perdeu seu amor, sofrendo todas
elas o sofrimento dessa perda –, seja por identificação com o objeto idealizado, via identificação
com o traço e sua incorporação parcial.
Desse modo, temos, por um lado, a exaltação pela unicidade - laçada pelos valores
patriarcais e individualistas que produzem uma bestialização que, por meio do ódio, busca
aniquilar a diferença pelas guerras, exterminando grupos de seres humanos -, ou pela
colonização dos saberes, extinguindo-se saberes e tradições. Historicamente, podemos analisar
a extinção de povos, de línguas, de culturas inteiras, via essa lógica de dominação39.
Sob outra perspectiva, podemos destacar o narcisismo das pequenas diferenças
(FREUD, 1921/2006) como dando notícias sobre o patriarcado, à medida que pressupõe uma
rivalidade entre iguais.

38
Freud não usa a palavra social, e sim coletivo. Mas compreendo que coletivo, atualmente, pode remeter a outros
sentidos e, por isso, neste caso, sugiro social em vez de coletivo ou massa.
39
Como aconteceu com Palmares, por exemplo.
98

Porém, quando essa rivalidade não mais se refere ao semelhante, temos um risco maior
de não mais nos reconhecermos como pertencentes ao mesmo modo de existência. Aqui,
alertamos para o fato de que, no laço social, algo acontece hoje que não se reduz apenas aos
fenômenos de massa/grupo, tais como foram descritos por Le Bon e analisados por Freud
(1895/1963).
O fortalecimento do eu, um valor presente no ideário patriarcal capitalista, faz com que
os registros fragmentados do inconsciente organizem-se em uma aparente unidade, suturando
as partes, amalgamando a fenda da divisão estrutural do sujeito do inconsciente, precipitando
uma ilusão narcísica, logo, imaginária, para se organizar numa aparente unidade. Uma lógica
todo-fálica. Desse modo, podemos pensar tal relação, no laço, como aparelho de gozo, que,
nesse caso, produz uma concentração de gozo que ultrapassa a via apresentada anteriormente
pelo amor ao ideal, ou pelo ódio ao diferente, originando o amoródio, neologismo criado por
Lacan. “O ódio nunca vem sozinho, ele vem acoplado com o amor, como Lacan, seguindo
Freud, apontou, com o termo de hainamoration, enamoródio; ou junto com a paixão da
ignorância, que podemos chamar de ignoródio” (QUINET, 2021, p.118, grifo do autor), para
dizer sobre o que é próprio do narcisismo no registro imaginário.
Quinet (2021), de olho em fenômenos sociais presentes na cultura, acrescenta que,
eventualmente, o amor fica de fora e o que aparece é o ódio, em sua aliança com a ignorância,
ignorância que é uma das paixões do ser, em Lacan. Quinet sintetiza os dois termos, propondo
um novo arranjo, o “ignoródio”, um tipo de paixão que teria a peculiaridade de não fazer laço.
É nesse sentido que a identidade busca totalizar, fazer o um do indivíduo, que é um conceito
instituído a partir do capitalismo: “O ‘indivíduo’, modo pelo qual nos vemos, é uma construção
e um valor da nossa sociedade, com um desenvolvimento privilegiado, a partir do final da Idade
Média” (PACHECO FILHO, 2009, p. 147-148).
O conceito de indivíduo é simetricamente oposto ao sujeito dividido da Psicanálise, já
que, para a Psicanálise, somos cindidos por definição: “O sujeito é dividido, é o significante
que representa o sujeito para outro significante, é o que emerge neste movimento entre a cadeia
significante, sendo assim, um ser de linguagem” (XAVIER, 2013, p. 27). O individualismo
pressupõe certo fechamento diante do próprio semelhante: meu “igual” pode ser meu “rival” é
uma máxima que se impõe; em outras palavras, no individualismo, o semelhante como rival
convoca à competição, e o diferente é visto como inimigo (aniquilável).
Prontamente, essa lógica localiza os homens como aqueles que instituíam a política e os
espaços públicos, aptos a decidirem pelo conjunto de seres humanos, enquanto as mulheres
permaneciam destinadas à vida doméstica. Acontece que, na prática, não é exatamente assim,
99

esse é um ideal imposto e estabelecido por aqueles que ocupam o lugar de dominantes no
discurso, que tinham/têm o poder das armas, ou da caneta, em sintonia com o ditado que diz
que a história é contada pelos vencedores, que impõem e imprimem sua versão dos fatos.
No regime patriarcal, tanto o homem quanto a mulher referem seu desejo ao falo40,
organizam-se a partir das possibilidades imanentes ao gozo fálico. Isso porque a inscrição fálica
é o referencial da lei simbólica na cultura, um organizador, de tal modo que o gozo fálico é
índice de idolatria, para aqueles que estão alienados desse regime – de linguagem e gozo. No
entanto, o ser falante não está todo alienado nessa lógica fálica, ainda assim, essa lógica opera
um enquadramento.
Como pode a Psicanálise pensar sua práxis, que está presente na cultura, cultura que se
organiza a partir da diferença sexual, sem cair nas armadilhas normativas de gênero? A teoria
não tende a reforçar lugares e verdades, quando conserva a mulher no lugar do Outro (sujeito
alterizado)? Se apresento essas ponderações é, por um lado, sabendo que, enquanto práxis, a
Psicanálise prima pela existência da diferença no laço, conduzindo o tratamento analítico
orientado pela singularidade, que não tem relação alguma com as caracterizações
preestabelecidas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, e, por outro lado, porque é
importante estarmos atentos ao nosso tempo.
Assim, a orientação psicanalítica interroga as identidades homem-mulher e, ao mesmo
tempo, podemos localizar em diversos momentos do ensino lacaniano como essas designações
aparecem nas suas falas. Vou destacar aqui apenas um exemplo41: no Seminário 18, de um
discurso que não fosse semblante (1971/2007), Lacan reforça textualmente o binarismo e a
relação da mulher com o lugar de subordinação, em sintonia com o que manda o status quo.
Saliento que, se destaco isso, não é no sentido de dizer que o ensino lacaniano propõe-se a
reforçar identidades, mas incluo essa ponderação justamente para refletir como é difícil não cair
nas armadilhas hegemônicas, mesmo para aqueles que estão advertidos do como opera essa
lógica.

40
O falo como o significante estruturador do campo sexual, “do falo como organizador da sexualidade, mas não
só da sexualidade, como também o liame entre sexualidade, fala e inconsciente” (HARARI, 2006, p. 35).
41
Poderia usar outros exemplos, mas esse não é o objetivo central desta pesquisa.
100

2.9 Psicanálise e interseccionalidade

Enfim, acompanhando esse breve histórico sobre como se estabelece o status quo
hegemônico, vimos como o discurso transmite e imprime no âmbito social um modelo de
dogmas, pensamento e costumes, por meio de modelos ideológicos, sendo a ideologia uma
realidade construída e sustentada de tal modo que tem uma aparência de verdade, assim: “a
ideologia se quiserem, mas com uma condição: é que para esse termo, vocês vão incluir até a
própria percepção; a percepção é o modelo da ideologia, é o crivo em relação à realidade”.
(LACAN, 1966-1967, aula de 10 de maio de 1967). Em A ideologia alemã (1845-1846), Marx
e Engels demonstram como as classes dominantes transformam as ideias e interesses
particulares de uma classe em ideias universais como sendo de um povo, imperativo capaz de
estruturar bases econômicas sustentadas nos interesses materiais da classe dominante, gerando
uma dominação social pela via simbólica, calcada “nas únicas racionais, nas únicas
universalmente válidas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 48), que, enquanto fantasia ideológica,
opera realizando uma ilusão.
Dito isso, como escapar das armadilhas ideológicas, invisibilizadas como tal?
Podemos afirmar que uma análise que busca ser subversiva, mira no seu horizonte
desconstruir identidades. Mas e a identificação do analista, há “garantias” de que ela ficará de
fora? Ou se compreenderá como neutra a partir de epistemologias dominantes?
Antes de prosseguir com a reflexão sobre uma Psicanálise que pode ser interseccional,
faz-se necessário compreender a origem desse conceito. Assim, no próximo Capítulo
apresentaremos um breve histórico do feminismo, para dar sentido a maneira como o conceito
de interseccionalidade aparece nos trabalhos de Lélia Gonzalez.
101

3 FEMINISMOS: SUA PRÁXIS, AVANÇOS HISTÓRICOS E A CRIAÇÃO DE


NOVAS EPISTEMOLOGIAS

3.1 Um movimento construído em ondas

[...] quando emprego a palavra “mulher” ou


“feminino” não me refiro evidentemente a nenhum
arquétipo, a nenhuma essência imutável; após a
maior parte das minhas afirmações cabe
subentender: “no estado atual da educação e dos
costumes”. Não se trata aqui de enunciar verdades
eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o
qual se desenvolve toda a existência feminina
singular (BEAUVOIR, 1949/2019, p.7).

E o feminino não cessa de não se inscrever na


linguagem, mas insiste como um real em relação ao
qual as mulheres estão mais afetadas (FUENTES,
2009, p.22).

Quanto mais eu estudo o feminismo, mais tenho dificuldade de explicá-lo em poucas


palavras, tamanha a complexidade de pensar a teoria e a prática feminista em suas diversas
camadas e sobreposições. É uma teoria em movimento, que constrói pensamentos e
epistemologias, mas é também ato, movimento que se faz com o corpo. Congrego com a síntese
proposta por hooks: “o feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, exploração
sexista e opressão” (HOOKS, 2018, p.13), qualquer forma de opressão, seja de classe, gênero
ou raça.
O feminismo estabeleceu-se em movimentos, avanços e recuos, e é didaticamente
teorizado em ondas, formando-se de maneira dialética. O feminismo é uma práxis política que
possibilitou transformações culturais, de diversas maneiras e em diferentes campos do
pensamento e camadas sociais, e, nas últimas décadas, ocupou cada vez mais as redes42 e as
ruas, bem como os espaços acadêmicos.
A colonização atravessa tudo o que encontra no caminho - “corações e mentes” -, e o
pensamento acadêmico, nesse sentido, é desde sempre colonizado, por isso acredita e aposta no
sujeito universal. As epistemologias feministas que nos interessam constroem-se na contramão
dessa lógica, acolhendo seus paradoxos e, em certo sentido, escapam à lógica clássica de
construir lugares, posições e pensamentos. Assim, o feminismo também transforma a cultura
ao passo que propõe e sustenta novas epistemologias, que acatam a ambiguidade, incluindo a

42
A partir do advento e ampliação do acesso à internet e às redes sociais.
102

contradição na sua forma de construir pensamentos. A meu ver, é uma forma homóloga à lógica
paraconsistente43, por apresentar alternativas e proposições, cuja conclusão pode ter valores que
admitem a contradição, embora não ultrapassem o binarismo já que ela se organiza pelas
sentenças “verdadeiro” e “falso”, escapando de terminações fechadas. Diferente da lógica
complementar que possibilita pensar para além do binarismo, como buscam algumas vertentes
dos feminismo.
Sabemos que o adequado seria dizer feminismos no plural, se uso o termo, na maioria
das vezes, no singular é porque tendo a destacar o feminismo a que almejamos chegar, em
sintonia com a citação que apresentamos inicialmente com hooks: um feminismo que vise à
mudança na estrutura social. Compreendemos que ser feminista é sustentar uma práxis pautada
na teoria radical contra o capitalismo, o racismo, e o sexismo – ou colonialismo – não
sobrepondo os modos de dominação e sim ressaltando a intersecção inerente a eles. Inclusive,
faz parte do tornar-se feminista problematizar o próprio feminismo. Ao mesmo tempo, ser
feminista é um desafio da prática cotidiana, por isso uma das palavras de ordem do movimento
é: ‘o pessoal é político’. Todo corpo é político.
Nas últimas décadas, os movimentos feministas têm se firmado como referencial
importante para inovação epistemológica e criação de políticas – desde em seu sentido mais
amplo, modificando a ‘relação na pólis’44, bem como, no âmbito das políticas públicas –
principalmente com a força que consolidou a terceira onda do feminismo, articulando discursos
e práticas antagônicas em torno de questões como a diferença, partindo do debate de algumas
vertentes sobre a diferença sexual, mas extrapolando a diferença posta como sexual, para pensar
as diferentes diferenças45.
Há ocasiões em que, para algumas pessoas, o feminismo pode parecer uma ideologia
datada, ou mais própria de uma outra época, já que por vezes o capitalismo apropria-se das lutas
e, por essa via de mercado, tenta vender a ideia de que as desigualdades em torno do sexismo
já estão sendo superadas. Mas não é bem assim, pelo contrário, a cada volta que o feminismo
produz ele permite problematizar o que persiste das violências, desigualdades e das mais
diferentes formas de discriminação.

43
Esse é um conceito criado pelo matemático brasileiro Newton da Costa; entende-se por lógica paraconsistente
um sistema formal que admite contradições, diferente da lógica clássica. Uma mesma premissa pode ser verdadeira
e falsa, admitindo assim paradoxos. É uma lógica usada pela Psicanálise e, quando a aproximo da práxis feminista,
é por entender que tal práxis admite a contradição.
44
Política como lugar dos acordos e desacordos, da mediação da coisa, via palavra. Para Chauí (2002): “Da
assembleia dos guerreiros e da palavra-diálogo, público e igualitário, nasce a pólis e é inventada a política (p.42).
45
Termo usado pelas feministas da terceira onda, para enfatizar a rejeição a qualquer processo que gere hierarquias
a partir das diferenças. Fazer comunidades na própria morada da diferença, o feminino é a morada da diferença.
103

Insistir e ampliar a pauta feminista é considerar as armadilhas contemporâneas do


capitalismo, responsável por invisibilizar as complexas rearticulações do patriarcado em que as
variações de gênero não rompem com as assimetrias, pelo contrário, adquirem certas sutilezas
e reconfiguram-se com outros sistemas de dominação, como o racismo e o heterossexismo
(GIL, 2014). Por isso, embora trabalhando predominantemente a articulação com o feminismo,
as questões e as críticas sobre colonialidade também estão presentes nesta tese.
A autora e psicanalista Silvia López Gil, em Notas desde los feminismos para pensar la
política (2014), adverte sobre essa reconfiguração, preocupada com os desafios do feminismo
ao se fixar a pautas identitárias, reduzindo as possibilidades de singularidade dos sujeitos.
Acontece que, entre as questões sobre sexo e gênero, essa articulação que ela destaca como
atual, vinculada com outras formas de dominação, não é uma prerrogativa atual, na verdade,
por estar presente há, pelo menos, 500 anos. Por isso mesmo, o feminismo com o qual comungo
é uma práxis que se propõe a superar as várias formas de dominação e colonização, não
necessariamente para romper as assimetrias inerentes às relações, mas para romper com a lógica
que reduz e converte as assimetrias em dominação ou hierarquizações.
Porém, concordo com a autora citada, ao refletir que o feminismo, neste contexto atual,
nos brinda com a construção de aportes e dilemas filosóficos que não são – nem nunca foram –
somente respostas teóricas, mas, neste momento, atualiza as lutas políticas e põe em marcha
novas lideranças46 na cena pública, colocando em ato o reconhecimento de diferenças que não
cabem em posições polarizadas, ou em um identitarismo denominado por aqueles que dominam
as posições de poder hegemônico. O que, historicamente, o feminismo pode produzir a partir
de dilemas filosóficos e da construção de novas epistemologias é justamente o contrário, é o
modo como o discurso neutraliza algumas identidades, para menosprezar e estereotipar outras,
“daquele que é visto nomeado como Outro” que, nessa estrutura, não é reconhecido como
sujeito, bem como, não tem o reconhecimento validado dos seus processos de produção de
conhecimento e protagonismo político nas principais pautas presentes nas últimas décadas.
Assim, ao passo que pude avançar na pesquisa, o(s) feminismo(s)
despontou/despotaram como um oceano, de tão diverso(s), complexo(s) e profundo(s).

3.2 O surgimento do feminismo em ondas

O feminismo pensado em ondas: uma astúcia para transmitir de maneira mais didática

46
Não sem as que vieram antes, por isso uma relação que pode ser assimétrica e horizontal ao mesmo tempo, sem
necessariamente produzir hierarquias.
104

como o feminismo progride, a partir dos seus movimentos. Foram estabelecidas três ondas e,
recentemente, já podemos encontrar na literatura notícias de uma quarta onda, associada aos
movimentos feministas que se organizaram pelas redes sociais via internet, principalmente a
partir de 2011/2013, ocasião em que a facilidade de disseminar informações muito rapidamente
e o crescimento da democratização do acesso à internet47 possibilitaram dar visibilidade para o
protagonismo das mulheres à frente dos mais diversos movimentos de luta contra o capitalismo,
o imperialismo, o racismo, para além das pautas que sempre foram localizadas como específicas
delas. Como vimos acompanhando, o feminismo, mesmo antes de ser denominado dessa
maneira, já era um posicionamento contra a forma opressora que organiza as sociedades
ocidentais48.
Portanto, o acesso à internet, que ainda está longe de contemplar a população de maneira
geral, todavia, é inegável, já auxiliou muito na transmissão do protagonismo dos movimentos.
E, como veremos, as mulheres sempre ocuparam protagonismo político, mas a transmissão de
tal protagonismo era silenciada pelo discurso vigente. A internet, como instrumento de
comunicação, representa um ganho na circulação de ideias e movimentações de mulheres – ou
dos sujeitos feministas, independentemente do gênero/sexo – que podem se conectar e unir suas
lutas mesmo que em territórios distantes, como também fortalece as mobilizações e o alcance
da convocação para ações públicas, expandindo a articulação de atos na relação rede-rua. Desse
modo, desde 2011, “os laços sociais atuais eclodem nas redes virtuais e, ao mesmo tempo e em
situações contingenciais, alcançam praças, ruas [...] em decorrência do mal-estar e sensação de
desencanto que assola os sujeitos e os coloca em ação” (FERREIRA; XAVIER, 2013, p.93).
Ainda sobre aventar notícias a propósito da quarta onda e a força da internet como
instrumento de comunicação, em 2015, um grupo de feministas organizou, via redes sociais, a
campanha #meuprimeiroassédio, pedindo para que as mulheres relatassem o primeiro assédio
sexual que tivessem sofrido: em apenas quatro dias, foram recebidas mais de 82.000 mensagens
com esses relatos. Nesse passo, foram despontando outros protestos e hashtags como
#nenhumaamenos, #meuamigosecreto, #viajosozinha, mobilizando atos nas ruas, para além das
redes sociais da internet.
A professora de Filosofia Carla Rodrigues, no documentário “Primavera das Mulheres”

47
Sabemos que o acesso à internet ainda é insuficiente, se pensarmos na porcentagem da população mundial que
consegue acessar essa tecnologia, mas, por outro lado, não podemos ignorar que essa ferramenta ampliou e muito
a capacidade de diálogo nos diversos movimentos políticos (positivamente ou não: não entraremos nesse debate
das fake news, por exemplo, para não nos desviarmos do nosso objetivo principal).
48
Nos últimos sete mil anos, se considerarmos a pesquisa do Maturana (2009); ou que se intensificou nos últimos
500 anos, como vimos com Quijano e Souza (2009).
105

(2016)49, afirma que a internet é um facilitador para os movimentos feministas, já que promove
a horizontalidade que é inerente aos movimentos feministas. Desse modo, o uso das redes
sociais, nessa relação rede-rua, faz aumentar a visibilidade que desmente determinados
comportamentos naturalizados na cultura, ressaltando e fazendo eco ao lugar de denúncia
sustentado pelos movimentos. Segundo Garcia (2015), um marco importante para o feminismo
foi se apropriar, de certo modo, dos meios de comunicação possíveis; assim, ela vai dizer que
o embrião de “um movimento propriamente de mulheres foi a imprensa alternativa feminina”
(p. 9), entre a metade do século XIX e o início do século XX, porque, além de as mulheres
produzirem seus textos, elas podiam imprimi-los e fazê-los circular. Na ocasião citada pela
antropóloga e socióloga, os meios de comunicação dessa alternativa também se tornaram
propriedade das mulheres. Nessa esteira de pensamento, podemos entender a popularização da
internet como um meio de comunicação horizontal, que promove o ativismo e estreita o contato
das mulheres, via rede, facilitando a identificação com determinados significantes que circulam,
e, por consequência, ampliando o entendimento e a adesão ao movimento.
Um último exemplo que orbita em torno do contexto da quarta onda: mais recentemente,
em 2018, com o #elenão, o movimento ocupou as ruas brasileiras de forma maciça,
posicionando-se também nas redes. Assim, citamos como podemos pensar os movimentos que
fazem furo no discurso vigente, em sua associação, por um lado, com as novas tecnologias da
informação, via as redes sociais da internet, e, por outro lado, na participação avolumada dos
movimentos feministas à frente das manifestações nas ruas nos últimos anos.
Por fim, as redes sociais conectam as pessoas umas às outras a partir de assuntos e
interesses que fazem laços, a rede on-line passou a propiciar novas redes presenciais. A
tecnologia entrelaçada à cultura é um fenômeno que traz novidades. Para Pierre Lévy (1999), o
ciberespaço promove uma cibercultura que engloba práticas, técnicas, atitudes e especificidades
na forma de estabelecer a comunicação. Advertimos que, o aparato tecnológico não cria uma
subjetividade, no entanto, ele aproxima sujeitos enlaçados por uma mesma causa, por
contingências que atravessam e afetam o laço social. Contudo, não é essa a onda que pretendo
desdobrar, mas considero importante deixar registrado que ela cresce e ocupa um lugar cada
vez mais importante no laço.

49
O documentário Primavera das Mulheres (DOCE FÚRIA, 2017) foi produzido pela roteirista Antonia Pellegrino
e pela diretora Isabel Nascimento Silva. Narra o ativismo do movimento feminista mais recentemente, dando voz
a diferentes protagonistas e influenciadoras da internet – youtubers, mulheres trans, brancas, negras.
106

Figura 7 – Marcha das mulheres.

Fonte: Arquivo Marcha das Mulheres (2014).

Cada onda pode abarcar acontecimentos que ocorreram de maneira simultânea, em


lugares diferentes - alguns estabelecendo relação entre os movimentos; outros traçando
indagações, irrupções. Nenhuma onda formou-se a partir de uma única perspectiva, o
surgimento de novas ondas emerge como marcadores e não como determinantes fixos e
inalteráveis. Assim, essa didática das ondas serve para pensar mudanças e padrões, representa
giros que estabelecem superações dos paradigmas anteriores, ou o surgimento de novos anseios
e preocupações. Inclusive, no interior de cada onda do feminismo podemos analisar como
aparecem paradoxos e diferentes vertentes.
Em 1968, Martha Weinman formaliza essa forma de pensar em ondas, ao publicar no
jornal New York Times um artigo chamado A segunda onda do feminismo, no qual ressaltou a
luta de milhares de mulheres pelo direito ao voto e por igualdade, na virada do século XIX para
o século XX, marcando aí o estabelecimento da primeira onda do feminismo, ao mesmo tempo
em que, no mesmo artigo, anunciava que outra onda havia se formado.
Nesse contexto, a primeira onda do feminismo surgiu após as revoluções burguesas, na
Europa do século XIX. Naquela ocasião, as mulheres, mesmo participando das lutas por
conquistas de direitos, são excluídas no que diz respeito às leis e à participação política, são
deixadas de fora do sistema de igualdade, promulgado na Declaração dos Direitos do Homem
107

e do Cidadão50. Diante dessa exclusão, surgem os primeiros movimentos de mulheres, na


história moderna, exigindo os direitos conquistados na Revolução Francesa (ALVES;
PITANGUY, 1985).
Todavia já há relatos de mulheres, no século XVI, que questionavam o lugar em que
eram colocadas na sociedade, assim como rejeitavam o pensamento vigente que considerava as
mulheres intelectualmente inferiores aos homens: intitulado Querelle de Femmes, foi o
primeiro movimento de que se tem notícia na história ocidental a questionar a hierarquia dos
homens em relação às mulheres (FUENTES, 2009; GARCIA, 2011).
Na Inglaterra e na França, o movimento sufragista envolveu três gerações de lutas, até
obter o direito das mulheres ao voto, o que só ocorreu nas primeiras décadas do século XX. A
primeira onda, então, estava preocupada com a instalação de direitos iguais entre homens e
mulheres, buscando romper padrões históricos. No início, ocorreu principalmente nos Estados
Unidos e, na Europa, na Inglaterra e França. No continente europeu, o movimento de mulheres
que lutava por direitos políticos, na Inglaterra, é denominado como o movimento sufragista. No
final do século XIX, elas reivindicavam igualdade política e jurídica, mais especificamente, o
direito ao voto e, por ocasião das manifestações, inúmeras sufragistas foram presas. Mas, em
1918, veio a confirmação de que a luta não havia sido em vão, e as mulheres com mais de 30
anos e com alguma propriedade puderam votar, conquistando, assim, direito ao voto e direitos
relacionados à propriedade privada.
No Brasil, o direito ao voto só foi conquistado pelas mulheres no Código Eleitoral de
1934. Antes disso, em 1932, o Código Eleitoral Provisório previa o direito apenas às mulheres
casadas que tivessem a permissão do marido ou às viúvas e solteiras com renda própria. No
Brasil, em 1945, elas votaram para a Presidência da República, pela primeira vez; no ano
seguinte, o voto tornou-se obrigatório também para as mulheres (BLAY, 2017).
Na década de 1960, surge um segundo momento do feminismo questionando a
naturalização dos papéis sociais de gênero e apontando como eles são uma construção social e
cultural – da cultura machista –, no cenário de um processo histórico que inferiorizava as
mulheres, gerando violência, discriminação, cultura do estupro, diferença salarial, problemas
que, de um modo geral, são enfrentados até os dias atuais, variando de acordo com cada cultura.
A segunda onda, anunciada em 1968, buscava a ampliação dos direitos na esfera pública
e na vida privada. Já que as mulheres tinham o direito ao trabalho, mas continuavam ganhando
menos, a desigualdade de gênero marcava um lugar de discriminação a ser combatido, assim

50
Apresentado brevemente na Introdução.
108

como era o momento de as feministas buscarem a liberdade sexual - nessa época, inclusive,
surge o anticoncepcional feminino. Desse modo, a segunda onda ampliou os aspectos que
foram propostos pela primeira onda do feminismo.

3.3 Antes da denominação do feminismo e suas ondas: a militância de Sojourner Truth e


as protagonistas brasileiras que organizaram e lutaram contra o regime escravagista.

Os processos históricos que distinguem cada onda podem ser revisitados e analisados.
Antes de os acontecimentos que dataram o surgimento da primeira onda serem postos, há um
evento anterior, quando, em 185151, Sojourner Truth faz uma intervenção que está em total
acordo com o que será posto como feminismo antirracista.
Sojourner Truth nasceu em 1797, em Swartekill, Nova Iorque, como pessoa
escravizada52, sob o nome de Isabella Van Wagenen, mas escapou com sua filha pequena para
a liberdade, em 1826. Depois de ir ao tribunal para resgatar seu filho, em 1828, ela se tornou a
primeira mulher negra a ganhar um caso como esse contra um homem branco.
A escravidão só foi abolida nacionalmente, em 1865, após a sangrenta guerra entre os
estados do Norte e do Sul do Estados Unidos. Sojourner viveu alguns anos com a família
quaker, recebendo alguma educação formal, e se tornaria uma pregadora pentecostal, uma
ativista abolicionista e uma defensora dos direitos das mulheres.
Em 1843, converteu-se à religião metodista e mudou o nome para Sojourner Truth.
Nesse contexto, ela participava de uma reunião de religiosos em que se discutiam os direitos da
mulher, quando, escutando os apontamentos apresentados por aqueles homens, ela interpela e
indaga: “E Eu não sou uma mulher?’”

Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve
estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do Sul e as
mulheres do Norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos,
muito em breve, ficarão em apuros. Mas em torno de que é toda esta falação?
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa
carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas

51
“Esse discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados
Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos em que se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se
para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens,
porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim,
a primeira mulher fora uma pecadora” (Disponível em: <https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-
sojourner-truth/>. Acesso em: 20 nov. 2021).
52
Mesmo tendo nascido teoricamente livre, em função da Northwest Ordinance, de 1787, que aboliu a escravidão
nos territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio), Sojourner torna-se uma abolicionista e ativista
pela libertação dos escravos, uma vez que a escravidão nos Estados Unidos, só foi abolida, de fato, após a Guerra
da Secessão.
109

devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir


numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não
sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu
plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E
não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem
– quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou
uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos.
Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E
não sou uma mulher? E daí eles falam sobre aquela coisa que tem na cabeça,
como é mesmo que chamam? (uma pessoa da plateia murmura: “intelecto”).
É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os direitos das mulheres
ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem pela metade e
se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte não
completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que
as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não
era mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio?
De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele.
Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha,
virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas,
conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima!
E agora elas estão pedindo para fazer isso. É melhor que os homens não se
metam.
Obrigado por me ouvir e, agora, a velha Sojourner não tem muito mais coisas
para dizer (TRUTH, 1851 apud PINHO, 2014)53.

Figura 8 – Retrato de Sojourner Truth.

Fonte: Pinho (2014).

À sua maneira ela desvelava os sentidos e os significados atribuídos às mulheres e a


forma como eram construídos seus direitos como mulheres brancas, a partir do ponto de vista
masculino, excluindo as mulheres não brancas do campo dos direitos pensados para aquela

53
Traduzido por Osmundo Pinho, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/University of Texas (Austin).
110

época. Em 1871, em Boston, ela participa da Segunda Convenção Anual da Associação


Americana de Sufrágio Feminino e, em um breve discurso, argumenta que os direitos das
mulheres eram essenciais, não apenas para seu próprio bem-estar, mas “para o benefício de toda
a criação, não apenas das mulheres, mas de todos os homens na face da Terra, pois elas são as
suas mães” (BAKER, 2002, p.52).
Para Ribeiro (2017), o discurso de Truth, ainda no século XIX, já evidenciava como
eram tratadas as mulheres negras, imersas em uma narrativa que as tratava como mera
mercadoria, ao mesmo tempo em que tais mulheres lutavam pela libertação de todo um povo
escravizado. O negro do ‘feminismo negro’ inscrevia na história uma multiplicidade de
experiências, ainda que articulasse uma posição particular de sujeito feminista. Além disso, ao
trazer para o primeiro plano uma ampla gama de experiências diaspóricas, em sua
especificidade tanto local quanto global, o feminismo negro representava a vida negra em toda
sua plenitude, criatividade e complexidade. E esse discurso, que hoje é amplamente conhecido
nos movimentos, já evidenciava que

[...] um grande dilema que o feminismo hegemônico viria enfrentar: a


universalização da categoria mulher. Esse debate de se perceberem as várias
possibilidades de ser mulher, ou seja, de o feminismo abdicar da estrutura
universal, ao se falar de mulheres, e levar em conta as outras intersecções,
como raça, orientação sexual, identidade de gênero, foi atribuído mais
fortemente à terceira onda do feminismo, sendo Judith Butler um dos grandes
nomes (RIBEIRO, 2017, p.21).

Tais ponderações provocam pensar por qual via os discursos são legitimados, inclusive
no interior do feminismo; como sujeitos e movimentos têm ou não a sua importância política
reconhecida; como se institui a dialética do reconhecimento.
Mesmo no Brasil, no período da escravidão, as mulheres negras empreendiam como
quituteiras e utilizavam o dinheiro para comprar a alforria de outras pessoas escravizadas. As
mulheres negras eram lideranças importantes em seus grupos, eram parteiras e curandeiras,
dominavam o conhecimento sobre a terra e sobre as ervas, aplicando saberes de terreiro,
produzindo a manutenção de culturas ancestrais, assim como construindo resistência às formas
de dominação sustentadas pela lógica escravagista.
Ribeiro (2017) lembra-nos que havia muita luta contra a escravidão, diversas
organizações promoveram levantes, há registro de mulheres que praticavam aborto como forma
de luta, para não verem seus filhos nascendo na condição de escravos.
Tereza de Benguela, por exemplo, foi líder quilombola no século XVIII. Aqualtune foi
111

mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares, sendo que, antes de ser raptada
era princesa, filha do rei do Congo, havendo relatos de que liderou, em 1655, dez mil homens,
durante o período de invasão do seu reino, e de que era uma grande estrategista de combate,
iniciando, inclusive, a organização do Estado negro de Palmares. Ainda nesse horizonte,
Dandara dos Palmares é um dos maiores nomes da luta da mulher negra no Brasil: foi uma
guerreira, dominando técnicas de capoeira e comandando cerca de 30 mil aquilombados, ao
lado do seu companheiro Zumbi dos Palmares, opondo-se duramente à Coroa Portuguesa - ao
ser presa, em fevereiro de 1694, ela se suicidou, preferindo a morte a ter que voltar para a
condição de escravizada. Assim, junto a Zumbi,

Seu “crime” foi ter liderado uma luta de vida ou morte por uma sociedade
justa e igualitária, onde negros, índios, brancos e mestiços viveriam do fruto
do seu trabalho livre e seriam respeitados em sua dignidade humana. Essa
sociedade efetivamente democrática existiu em Palmares, que foi o primeiro
Estado livre das Américas e um Estado criado por negros (GONZALEZ, 2020,
p.204).

Nessa leitura retroativa, podemos notar como a complexidade que abarca a


interseccionalidade, formulada somente na terceira onda, já estava presente na cena em vários
movimentos de resistência liderada por mulheres, seja nos Estados Unidos da América, seja em
território brasileiro. Por isso, como vimos, Ribeiro (2017) vai afirmar que o feminismo negro
não é novidade da terceira onda se considerarmos a potência do discurso de Sojourner Truth e
toda a militância da qual temos notícias, em relação às lutas das mulheres, desde os tempos de
escravidão no Brasil. Logo, as questões raciais, retomadas pelas feministas negras, sempre
estiveram na cena, ainda que apagadas do discurso legitimado como oficial.
Nesse sentido, hooks torna-se protagonista na produção científica do feminismo negro,
quando, em 1981, ela publica: Eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo, a partir
da questão pautada por Truth, séculos antes. Ela retoma Truth e vai escrever, de maneira crítica,
sobre a dificuldade das mulheres não brancas de se adequarem ao feminismo, da maneira como
ele estava posto:

Nosso silêncio não era mera reação contra as brancas liberacionistas nem gesto
de solidariedade aos patriarcas negros. Era o silêncio do oprimido: aquele
profundo silêncio engendrado da resignação e aceitação perante seu destino.
Não era possível para mulheres negras contemporâneas se juntarem para lutar
pelos direitos das mulheres, porque não víamos “mulheridade” como um
aspecto importante da nossa identidade. A socialização racista e sexista nos
condicionou a desvalorizar nossa condição de mulher e a considerar raça como
único rótulo relevante de identificação (HOOKS, 2020, p.17).
112

Para ela,

As mulheres negras foram colocadas entre a cruz e a espada; apoiar o sufrágio


das mulheres brancas ativistas que revelaram publicamente seu racismo, mas
apoiar apenas o sufrágio dos homens negros era endossar uma ordem
patriarcal que não daria a elas qualquer voz política. As mulheres negras
ativistas mais radicais exigiram que aos homens negros e a todas as mulheres
fosse dado o direito ao voto. Sojourner Truth foi a mulher negra mais direta
ao falar sobre a questão (HOOKS, 2020, p. 21).

Nesse mesmo ano, 1981, Angela Davis recupera a mesma reflexão, também a partir da
fala da Sojourner Truth, para retomar e propor as questões relativas ao que, posteriormente, foi
formalmente chamado de interseccionalidade, aprofundando tais questões em seu Mulheres,
raça e classe (1981/2016), ressaltando como as questões levantadas por Truth não eram uma
excepcionalidade, mas sim propriedades que são “epítomes da condição da mulher negra” como
invisibilizadas, outrificadas, nos diversos momentos históricos que fazem dessa invisibilização
e outrificação uma prática ‘habitual’. Retomaremos essa questão mais adiante, ao destacar a
emergência do feminismo negro, na terceira onda.

3.4 Sojourner Truth: uma outra posição no discurso e o autorizar-se a um novo nome

Em 1843, aos 54 anos, Sojourner Truth muda e assume esse novo nome, que quer dizer
“peregrina da verdade”. Interessante pensar o que representa a mudança de nome e a relação
que tal mudança representa sobre certo deslocamento de posição no laço. Outras feministas,
nesse sentido, também mudaram de nome, em decorrência de mudanças subjetivas e políticas.
Podemos pensar aí uma espécie de giro discursivo que permite e possibilita esse passo de
nomeação. O nome próprio não é uma questão indiferente para a Psicanálise, a função do nome
acha-se envolvida no campo analítico, “mais específica do que qualquer outra, de ali implicar
o sujeito” (LACAN, 1964-1965/2006, p.80). Em um momento tardio de seu ensino, Lacan vai
ampliar a importância da função de nomeação54.
Truth desloca suas questões de identificação e significação e, assim, podemos pensar na
função da letra para o ensino lacaniano. No Seminário 18, De um discurso que não fosse
semblante, a letra ganha o sentido de litoral, é o que faz litoral entre saber e gozo (LACAN,
1971/2009), litoral à medida que mantém certo movimento entre os limites da fronteira do
saber, preservando uma descontinuidade. Ao mesmo tempo, neste circuito que permite a

54
A partir da teoria dos nós e do encontro com Joyce e o Sinthoma.
113

produção de saber, opera-se uma amarração possível e um outro modo de se apresentar no


enlace social. De olho no ponto a que pretendemos chegar com esta tese, podemos pensar que
há nesta relação entre saber e gozo, o giro que possibilita um novo significante mestre como
nomeação? Já que a nomeação, no último ensino de Lacan (1974-75) apareceria como
amarração original entre os três registros?
No Seminário 22: RSI (1974-1975) e no Seminário 23: O Sinthoma (1975-76/2007), já
podemos encontrar efeitos dessa nomeação, há algo do sintoma que pode ser dessa mesma
ordem, que pode amarrar os registros, elevando a nomeação ao traço, como incomum, original.
Não se trata do que conhecemos como traço originário, mas do como se dão suas modificações
possíveis por meio de giros discursivos. Vale observar que outras feministas, após levantarem
outros posicionamentos na ordem discursiva, também mudaram seus nomes.
bell hooks é uma feminista que defende modificações na estrutura social via ocupação
da fala; ela compreende a relevância do discurso como operador de condições e lugares
impostos na estrutura social, e é desse modo que ela se constitui como feminista. Para hooks,
não basta contestar o sistema que estrutura as coisas como são, é necessário ir além da
contestação e ocupar a discursividade, propondo outras formas e modelos para o enlace social,
visando a alterar a estrutura como um todo, e não apenas almejando mudança de lugares e
posições: “Na verdade, dentro do patriarcado capitalista com a supremacia branca, toda cultura
atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma vida da mente, e torna o domínio
intelectual um lugar interdito” (HOOKS, 1995, p.468). Daí sua máxima sobre ocupar a fala e
agenciar de outro modo a lógica discursiva que não diz só sobre as palavras, mas sobre os
corpos. Em Intelectuais negras (1995), ela subverte esse interdito, produzindo pensamentos e
memória cultural, sabendo que essa é a forma de transmitir valores e tradições como ferramenta
para uma outra estrutura social possível.
Em outras palavras, para a autora não basta contestar o sistema, ou o pai, enquanto
símbolo – o patriarcado supremacista branco – mas, sim, seguir em frente, transpondo esse pai.
Se essa tradição da qual ela é crítica sustenta a transmissão e a nomeação pela via
paterna, já que é o sobrenome/nome do pai que nomeia os sujeitos, no modelo social que
conhecemos, ao sustentar em ato suas elaborações sobre ocupar novas identidades, a autora
que, originalmente, recebeu o nome de Gloria Jean Watkins (seu pai chamava-se Veodis
Watkins), ao defender que era preciso lutar para criar uma autoidentidade, opera uma invenção
que possibilita a tomada de um outro nome para si, inspirada na sua bisavó materna, da qual
toma, então, emprestado o Bell Blair Hooks. Além disso, nessa orientação crítica, ela opta pela
grafia totalmente minúscula, como uma forma de subverter a importância do nome em relação
114

ao que o/a autor/a produz. Desse modo, pretendia salientar a seriedade das ideias, em detrimento
dos nomes dos/as escritores/as.
Dedicaremos um subcapítulo para trabalhar bell hooks, mas, neste momento, é
interessante informar que ela nasceu em 1952, sua carreira como professora teve início em
1976, e a mudança de nome se dá em 1978, na ocasião do lançamento de seu primeiro livro de
poemas. Aos 19 anos, em uma referência direta a Sojourner Truth, começou a escrever E eu
não sou uma mulher?, lançado em 1981, dez anos depois de iniciar seus primeiros rascunhos.
Interessante realçar essa relação entre o momento em que ela se lança como autora, após
modificar o destino que foi reservado para a sua existência – nascida mulher negra em uma
família sem recursos sociais e econômicos, com o pai zelador e a mãe empregada doméstica,
além de seis irmãos –, torna-se professora universitária, após terminar seu doutoramento em
Literatura Inglesa, autoriza-se ao lugar de autoridade sobre os temas que desenvolve e modifica
seu nome. Penso que, com hooks, podemos extrair algo de um giro discursivo capaz de criar
significantes que superam a lógica de mestria, produzindo novos sentidos no laço. Falaremos
mais de sua teoria, adiante.

3.5 De volta à segunda onda

A segunda onda é marcada por levar o debate mais adiante, incluindo questões de
gênero, no âmbito cultural. Com início no começo dos anos 1960, consolida-se na ebulição que
marca 1968 como um ano incomum na história e, desse modo, em ondas, representou a
continuidade das pautas anteriores, ampliando o debate sobre a vida pública e privada destinada
às mulheres.
Embora O segundo sexo (1949) tenha sido lançado por Simone de Beauvoir quase vinte
anos antes, podemos localizar a íntima relação entre O segundo sexo e a segunda onda. A obra,
que, na ocasião de seu lançamento, tem uma repercussão estrondosa já na primeira semana -
inclusive com o papa proibindo sua leitura, na época -, produziu ventos fortes que agitavam e
inspiravam mulheres. A própria Simone não sabia o quanto seu livro iria revolucionar o cenário
intelectual e político, mas seus escritos consolidaram-se como um clássico, influenciando as
gerações seguintes.
No primeiro volume da obra, ela aborda a concepção de como a natureza feminina é
uma invenção do homem, para, no segundo volume, afirmar que uma mulher não nasce mulher,
torna-se. Em O segundo sexo, demonstra que a mulher não tem um destino biológico, mas que,
pela justificativa da biologia, o homem constrói e impõe qual o papel que ela pode ou não
115

exercer na sociedade: de submissão, de não valorização intelectual, de uma não autoria da


própria vida, destinada apenas às tarefas do lar.
Tem algo que estoura em 1968 que sobrepujava questões referentes à revolução sexual,
especialmente – mas não só – na França, lembrando que a invasão ao alojamento feminino foi
um dos estopins do movimento estudantil da época, que desembocou em inúmeros
desdobramentos, como já apontado em subcapítulo específico sobre maio de 1968. Se cito 1968
também neste momento, é para destacar como os ventos desse período histórico provocaram
ondas em vários lugares do mundo: por exemplo, nos Estados Unidos da América já emergiam
movimentos estudantis pautados na luta dos negros por Direitos Civis; pela justiça social e
econômica; contra a guerra do Vietnã, para a qual se convocavam de maneira compulsória
jovens e estudantes; tudo isso acarretando posicionamentos das mulheres, nesse local e
momento históricos.
No período das guerras mundiais, as mulheres assumiram posições de trabalho até então
consideradas como posições masculinas mas, em cada pós-guerra, diante da necessidade de os
homens assumirem novamente ‘seus postos’, elas foram uma vez mais empurradas para o
âmbito doméstico. Nesse sentido, a denúncia operada por Beauvoir alcançava novo fôlego,
atualizando a forma como os homens definiam a inferioridade das mulheres, indiciando a
serventia dessa lógica discursiva que confinava as mulheres a um modo de dominação.
Dessa maneira, há dois acontecimentos que marcam a segunda onda, nos Estados
Unidos: a inclusão da palavra sexo, na Ata de Direitos Civis, em 1964, visando a proibir
discriminações e pleiteando igualdade de direitos entre homens e mulheres, principalmente em
torno da descriminação do trabalho.
Com lançamento em 1963, A mística Feminina, de Betty Friedan, pleiteia outras
possibilidades para as mulheres norte-americanas, que eram reduzidas a cuidar dos filhos, da
casa e dos maridos. Na onda do que Beauvoir dizia, Friedan fala sobre como a ideia de
inferioridade depositava nas mulheres um modelo restrito de existência. Sem ter ideia da
dimensão que seu livro alcançaria, ela suscitou a identificação e o endossamento de milhares
de mulheres de classe média branca, que podiam, assim, nomear sua insatisfação em relação à
redução de suas vidas ao lar, denunciando o duplo aprisionamento que acontecia na vida privada
e a relação de exclusão da vida pública daquelas que se encontravam nesse recorte social.
O livro foi altamente elogiado e, ao mesmo tempo, alvo de duras críticas das mulheres
que não se identificavam com esse lugar de donas de casa, que não se enquadravam nessa
116

categoria do ser mulher, provocando intenso debate em várias vertentes da onda que surgia55.
Algumas décadas depois, Rebecca Walker (1992) publicaria o ensaio Tornando-se a
terceira onda, consolidando a maneira metafórica de elaborar o feminismo em ondas. A autora
endossou a crítica às narrativas de mulheres de determinadas classes e a forma com que faziam
uso da categoria mulher, já que, em relação a outras mulheres, eram reconhecidas como
privilegiadas, por serem de classe média branca estadunidense ou europeia, com uma realidade
muito diferente da relação política, social e econômica em que se encontravam as da classe
operária, as negras, latinas, indígenas.
É nesse impulso que se levanta o que costumamos chamar de terceira onda, como
estamos acompanhando, não só como uma continuidade, mas também apresentando fendas e
paradigmas, contestando definições essencialistas e criticando os pontos que eram fundados na
experiência das feministas brancas de classe média e classe média-alta.
Tem algo da dimensão micropolítica que aparece na cena, os ruídos na terceira onda
surgem na década de 1980, consolidando-se na década de 1990. Isso nessa perspectiva
cronológica, mas um estudo mais aprofundado permite pensar o quanto a práxis feminista não
é central, muito menos linear, pensar em ondas compreende, então, as descontinuidades, aquilo
que não se dá de maneira linear... ondas vêm e vão, avançam e recuam, quebram e se formam
novamente a partir de um outro lugar, surgindo de outro ponto e, quiçá, dependendo só delas
mesmas, sofrem a ação dos ventos, das tempestades... ou seja, da conjuntura da qual fazem
parte.
E é nessa perspectiva que vou avançando, para chegar às autoras e conceitos que me
interessam notadamente para esta tese e que se encontram na terceira onda; para trabalhar um
feminismo periférico, formado nas margens, para, mais do que contestar como as ondas
anteriores puderam fazer, elaborar um feminismo que segue adiante, que assume um lugar de
autoria – remetendo-se, ao autorizar-se, ao lugar de autoras da própria história – um movimento
que “larga a mão do pai sem perder sua filiação, um soltar a mão e seguir adiante”, como diria
Carla Garcia56.
Na terceira onda, há um imenso protagonismo das feministas negras, chicanas, e das
várias feministas nas periferias do mundo, promovendo não só a politização do cotidiano,
pautado em diferentes contextos sociais, políticos e econômicos, mas ressaltando como se dá a
relação e a intersecção das várias formas de dominação.

55
Na sessão dedicada a hooks, retomarei como ela tece a crítica ao feminismo de Friedan.
56
Em transmissão oral no exame de qualificação.
117

Em resumo, a interseccionalidade é compreendida como uma teoria sistêmica que


abarca e interconecta: gênero, sexualidade, raça, etnia, classe, dentre outras categorias,
ilustrando como se constroem as hierarquizações que colonizam a partir das diferenças.
Enquanto a colonialidade e a lógica patriarcal fazem das assimetrias formas de dominação, e a
partir daí, estabelecem as estruturas sociais – infraestrutura/superestrutura –, as feministas
interseccionais pretendem operar, via discurso, a manobra que faz dessas assimetrias uma forma
de estar presente no discurso, sem que isso estabeleça dominação, sustentando as mais
diferentes diferenças possíveis, resguardando o lugar de autoria, sem que isso seja reduzido ao
autoritarismo.
Mas, antes de nos debruçarmos na terceira onda, é importante contextualizar um pouco
mais sobre como socialmente as mulheres foram parar nesse lugar que os feminismos das
primeiras ondas denunciam.

3.6 A criação do patriarcado

Gerda Lerner, escritora, historiadora e professora emérita de História, na Universidade


de Wisconsin-Madison, propõe uma teoria de classes, ao refazer o percurso evolutivo que
aponta como foram instituídas e impostas as diferenças sociais entre homens e mulheres. Em A
criação do patriarcado (1986/2020), ela retoma as principais ideias, narrativas, costumes e
símbolos que representam o patriarcado.
Segundo a autora, “o patriarcado é uma criação histórica formada por homens e
mulheres em um processo que durou cerca de 2500 anos para ser completado” (LERNER,
1986/2020, p.261) e teve seu início nas culturas da antiguidade, no Oriente Médio e no
Mediterrâneo.
Inicialmente, surgiu como um estado arcaico, tendo a família como forma de
organização, ao produzir e afirmar suas regras e valores, ditando o que será e o que não será
aceito como comportamento, costumes e papéis sociais. Por essa lente, foram formadas as leis
e a lógica daquele laço, “[...] eles, além disso, e muito importante, foram expressos em
metáforas, que se tornaram parte da construção cultural e do sistema explicativo”
(LERNER,1986/2020, p.261).
No processo da criação da civilização ocidental, a sexualidade da mulher foi
transformada em mercadoria, o que, segundo essa via epistemológica, significa dizer que a
sexualidade fazia existir um duplo lugar de exploração: consistia na capacidade sexual e
reprodutiva da mulher, além de ela em si ser considerada um recurso produtivo, pela sua
118

capacidade de trabalho.

[...] o desenvolvimento da agricultura no período neolítico abrigou a “troca de


mulheres” entre tribos, não apenas para evitar o incessante estado de guerra
através da aliança por casamentos, mas também pois uma sociedade com mais
mulheres poderia produzir mais crianças. Em contraste à necessidade
econômica das sociedades caçadoras/coletoras, a agricultura poderia usar o
trabalho de crianças para aumentar a produção e acumular excedentes
(LERNER, 1986/2020, p.261).

A mulher, assim, tornava-se um recurso em si para um homem, já que este tinha direitos
sobre ela. Nessa esteira, mulheres foram compradas, trocadas em casamentos por vantagens
para suas famílias. Lerner vai indicando como se constrói a inferiorizarão de alguns corpos, de
tal modo que se desemboca no regime de escravização das mulheres, ao mesmo tempo em que
se incluem na esteira as questões raciais: “mais tarde elas foram compradas na escravidão, onde
seus serviços sexuais eram parte de seus trabalhos e onde suas crianças eram propriedades do
seu mestre” (LERNER, 1986/2020, p.262).
“Portanto, a escravização das mulheres, combinando ambos, racismo e machismo,
precedeu a formação de classe e das opressões de classe” (Ibidem), o que elucida o que vai ser
construído teoricamente sobre a não separação das formas de exploração, quando falamos de
gênero, raça e classe no capitalismo. Ela acrescenta, ainda, que “classe não é uma construção
separada do gênero, em vez disso, classe é expressa em termos de gênero” (LERNER,
1986/2020, p.262)57.
Como historiadora, a autora busca as origens dessa estrutura de 2.000 anos antes de
Cristo, nas sociedades mesopotâmicas. Naquele tempo, as filhas dos pobres eram vendidas para
a prostituição ou para o casamento, para satisfazer o interesse econômico de suas famílias. A
família da noiva estipulava um valor para a família do noivo pagar. Outra forma de negociação
ocorria quando um pai ou marido contraía uma dívida e não conseguia pagar, podendo
emprestar sua esposa ou crianças para serem escravos dos seus credores. “Essas condições eram
tão firmemente estabelecidas no ano de 1750 a.C., que o código de Hamurábi faz uma melhora
decisiva, [...] limitando os termos de serviços por três anos, quando anteriormente era para a
vida toda” (LERNER, 1986/2020, p.262).
As mulheres escravizadas eram símbolo de status e riqueza dos seus donos, não só pelo
que representavam com seu trabalho braçal, mas incluindo a sua sexualidade como mercadoria;

57
Pensamento que congrega com Butler (1990/2018), Federici (2017), Rubin (1975) e outras pensadoras.
119

elas eram como coisas.

[...] desde o início da escravidão, a dominância de classe tomou formas


diferentes entre homens e mulheres: homens eram primariamente explorados
como trabalhadores, mulheres foram sempre exploradas como trabalhadoras,
como provedoras de serviços sexuais, bem como reprodutoras. Os registros
históricos de todas as sociedades escravizadas oferecem evidências para essa
generalização. A exploração sexual das mulheres de classes mais baixas por
homens das classes mais altas pode ser mostrada na antiguidade, no
feudalismo, nas casas burguesas dos séculos XIX e XX na Europa, nas
complexas relações entre sexo e raça entre mulheres de países colonizados e
os homens colonizadores (LERNER, 1986/2020, p. 264).

Em resumo: “para mulheres a exploração sexual é a própria marca da sua exploração de


classe” (LERNER,1986/2020, p.264).

3.7 Gayle Rubin: estruturação social e notas sobre Economia

Para a antropóloga, ativista e formuladora política Gayle Rubin,

O patriarcado é uma forma específica de dominação masculina, e o uso do


termo deveria se restringir aos nômades de comunidades pastoris como as do
Velho Testamento, onde se originou o termo, ou a grupos como aqueles.
Abraão era um Patriarca – um ancião cujo poder absoluto sobre mulheres,
crianças, rebanhos e subordinados era um aspecto da instituição da
paternidade, tal como definida no grupo social em que ele vivia (RUBIN,
1975, p.14).

Ela o distinguiu de outras formas de dominação masculina que se estabelecem de outro


modo, como na Nova Guiné, por exemplo, onde os homens

[...] exercem uma opressão feroz contra as mulheres. Mas o poder dos homens
nesses grupos não se baseia em seus papéis individuais de pais ou patriarcas,
mas na coletividade masculina adulta, que se materializa em cultos secretos,
em casas de homens, na guerra, numa rede de intercâmbios, conhecimentos
rituais, e várias práticas de iniciação (RUBIN, 1975, p.14).

Gayle Rubin (1975) escreve um texto sobre a economia política do sexo. Ideologia e
Economia são as bases da sociedade e coexistem moebianamente. Por isso, o tráfico de
mulheres é uma forma de sintetizar uma reflexão sobre a subordinação social das mulheres e o
que fica invisibilizado, via poder econômico, nessas relações. Tanto que, até os dias atuais, há
pessoas e lugares que não são capazes sequer de cogitar a possibilidade de uma sociedade
120

sexualmente igualitária, que dirá a abolição do sexo enquanto marcador de uma diferença entre
os seres humanos.
De saída, Rubin recorre a Marx, para mostrar o que ele percebe, em O Capital (1867),
a respeito de como se constitui o fenômeno de subordinação social, falando sobre teoria de
valores. Ela destaca o trecho em que ele vai dizer como um negro só se torna escravo a partir
de determinadas relações, assim como as mercadorias tornam-se capital também a partir de
determinadas relações, se não são só coisas em si: “apartada dessas relações, [a mercadoria] já
não é mais capital, assim como o ouro por si mesmo não é dinheiro e o açúcar tampouco é o
preço do açúcar” (MARX, 1867 apud RUBIN, 1975, p.2).
Ou seja, a relação de atribuição de valor das coisas cria uma outra coisa. Para Marx:

O termo valor representa um poder de compra e tem certa magnitude. O valor


é real, que neste caso quer dizer simbólico, por estar calcado em si no
imaginário das pessoas. O valor não é uma realidade material e sim uma
realidade social. É a crença social no valor que faz desta ficção uma realidade
(XAVIER, 2013, p. 59-60).

Bem como, acontece com as mulheres. A ideologia sobre qual é o papel da mulher e o
valor atribuído a ela no interior de determinadas relações faz disso uma outra coisa.

Podemos parafrasear: o que é uma mulher do lar? Uma fêmea da espécie. Uma
explicação é tão boa quanto a outra. Ela só́ se transforma numa criada, numa
esposa, numa escrava, numa coelhinha da Playboy, numa prostituta, num
ditafone humano dentro de determinadas relações. Apartada dessas relações,
ela já́ não é a companheira do homem mais do que o ouro é dinheiro... etc. O
que são, então, essas relações pelas quais uma mulher se transforma numa
mulher oprimida? Devemos começar a esmiuçar os sistemas de relações que
tornam a mulher presa dos homens nos trabalhos parcialmente coincidentes
de Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud. A domesticação da mulher, sob
outros nomes, é discutida extensamente na obra dos dois (RUBIN, 1975, p.2).

Só que ela vai dizer que, do ponto de vista crítico, nem Freud nem Lévi-Strauss “veem
as implicações do que estão dizendo” (Ibidem, p.3), que, para ela, são observar e analisar a vida
cotidiana, lembrando sempre que o pessoal é político, porque política é aquilo que acontece na
vida cotidiana, é o que estrutura o funcionamento das coisas. Ela chama de vida social o sistema
sexo/gênero, que se configura em “uma série de arranjos pelos quais uma sociedade transforma
a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nos quais essas necessidades
sexuais transformadas são satisfeitas” (Ibidem, p.4). Gênero é uma categoria a partir de valores
e hierarquias: “Gênero é uma divisão dos sexos imposta socialmente. É um produto das relações
121

sociais de sexualidade” (Ibidem, p.27).


E, sendo a sexualidade um produto tão precioso para a manutenção da dominação, ela
deve ser muito bem controlada, é isso que observam e destacam Strauss e Freud, e também
como isso provoca profundas diferenças na experiência social, a interdeterminação entre sexo
e gênero. O que é ser homem, o que se espera de um homem, e o que é esperado das mulheres,
de acordo com o valor-mercadoria que lhes é atribuído: mãe, criada, esposa, coelhinha da
Playboy (RUBIN, 1975) ou mãe preta, mulata, doméstica (GONZALEZ, 1984/2020).
Existe algo, na ordem dos discursos, que apalavra o sujeito a um lugar determinado na
estrutura, contudo há igualmente uma mais-valia, um mais-de-gozar que não é contabilizado
nessa lógica, que não entra na conta oficial. Marx não leva em consideração as questões de
gênero somente no sentido de considerar a mulher como mão de obra mais barata, mercado de
reserva, mas desconsidera nessa lógica algo essencial que ganha fôlego no capitalismo: o valor
do trabalho doméstico e a criação da prole.

O trabalho doméstico, portanto, é um elemento crucial no processo de


reprodução do trabalhador, de quem se tira a mais-valia. Dado que em geral
cabe às mulheres fazer o trabalho doméstico, já se observou que é através da
reprodução da força de trabalho que as mulheres se inserem no circuito da
mais-valia, que é condição sine qua non do capitalismo (GONZALEZ,
1984/2020, p.7, grifo da autora).

Nesse sentido, Federici (2017) contribui para o debate à medida que desenvolve um
esquema interpretativo, para compreender a perseguição às mulheres ao longo da história, e ela
vai chamar de “caça às bruxas” o movimento de combate a qualquer autonomia identificada
nas mulheres, desde a Idade Média até a virada para a modernidade. Com o advento da
modernidade, não acontece a extinção da caça às bruxas, pelo contrário, essa caça ganha nova
roupagem e novas dimensões. Na Idade Média e no seu declínio, eram consideradas bruxas as
mulheres que tinham um saber como curandeiras, parteiras, na alquimia com as ervas, ou as
mulheres que vislumbravam e exerciam certa liberdade. Segundo a autora, “O que ainda não
foi reconhecido é que a caça às bruxas consistiu em um dos acontecimentos mais importantes
do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno”
(FEDERICI, 2017, p.294).
Assim, segundo ela, Marx se faz necessário para pensar um modelo de sociedade
alternativo ao capitalismo, de modo que estudar a gênese do capitalismo é tão importante quanto
pensar sobre a condição das mulheres, nesse atrelamento à construção da classe trabalhadora,
“já que a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher, nesse
122

período, são ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal” (FEDERICI, 2017,
p.30) para imprimir a construção de papéis sexuais na sociedade capitalista. Para a autora,
“gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma
especificação das relações de classe. [...] sob o disfarce de um destino biológico, a história das
mulheres é a história das classes” (FEDERICI, 2017, p.31). Angela Davis (2016) também
compartilha desse pensamento à medida que diferencia o tratamento que é destinado às
mulheres negras e racializadas, em relação ao dirigido às mulheres brancas.
Disciplinar os corpos das mulheres era de suma importância para esse processo de
dominação e, nesse sentido Federici (2017) alinha-se a Foucault, para mostrar como esse
processo tem origem em fundamentos religiosos para fins políticos, apresentando como a
politização da sexualidade foi um instrumento fundamental em tal processo. Ela cita como,
com “o terceiro Concílio de Latrão, em 1179, a Igreja intensificou seus ataques contra a
‘sodomia’, dirigindo-os, simultaneamente, aos homossexuais e ao sexo não procriado” de modo
que “a sexualidade foi completamente politizada” (FEDERICI, 2017, p. 82), produzindo a
relação entre a dominação do corpo das mulheres e como isso se dá atualmente na divisão sexual
do trabalho.
“Marx é outro que concebe a alienação do corpo como um traço distintivo da relação
entre capitalismo e trabalhador” (Ibidem, p.243), a ideologia se faz presente nesta suposta
liberdade do trabalhador como dono do seu corpo e trabalho no capitalismo, há uma alienação
homóloga operando a divisão sexual do trabalho. Assim, a propagação da disciplina aos corpos
do sistema capitalista, aliada à dominação patriarcal, faz surgir um modelo de família que se
torna a instituição mais importante “para a apropriação e para o ocultamento do trabalho das
mulheres” (Ibidem, p.193), tanto no âmbito do trabalho doméstico, já que sem ele o ‘provedor’
da família não teria condições de vender a sua força de trabalho do mesmo modo, quanto
produzindo novo contingente de trabalhadores, a prole, para esse sistema do proletariado.
Inclusive, longe de estar superada, essa é uma pauta atual. Recentemente, na
Argentina58, foi sancionado às mulheres o direito a um salário decorrente de uma aposentadoria,
após anos dedicando-se ao trabalho doméstico. Essa conquista pode provocar um debate
interessante, já que, por um lado, é importante que possam ter uma renda as mulheres que
dedicaram a vida toda ao cuidado da família, é uma política pública importante no campo do
Direito; por outro lado, pensando a estrutura em si, dos lugares em que as coisas se operam,
mais importante do que ter o salário é derrubar a estrutura que atribui às mulheres esse lugar

58
Retomarei esse exemplo em outro momento.
123

como compulsório, por meio de uma forma de dominação. “Foi, por exemplo, por meio do
patriarcado que se estabeleceu que o trabalho doméstico deve ser exercido por mulheres e que
não deve ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho” (LERNER, 1986/2020, p.21).
São formas diferentes de se posicionar diante do mesmo dilema e, pela via da contradição, elas
não são necessariamente excludentes, porque pode haver uma política pública, enquanto não
gira a estrutura. Estrutura que naturaliza o trabalho doméstico às mulheres, atribuindo a isso um
valor de inferioridade e, como consequência, mantendo-as fora da dialética do reconhecimento
enquanto sujeitos no campo social.
Mauss e Lévi-Strauss enfatizam “[...] o caráter de solidariedade da troca de presentes,
as demais finalidades dessa prática apenas reforçam a ideia de que se trata de uma forma
onipresente de comunicação social” (RUBIN, 1975, p.19). Era um modo de organização social,
a troca de presentes e a relação de prestígio político que enlaçava aquela comunidade, selando
a paz e uma organização cultural mínima naquela forma mais primitiva. E assim Lévi-Strauss
cria a teoria da reciprocidade primitiva e

[...] acrescenta a ideia de que os casamentos são uma forma elementar de troca
de presentes, na qual as mulheres são o mais precioso dos presentes. Ele
afirma que o tabu do incesto deve ser entendido como um mecanismo para
garantir que essas trocas se realizem entre famílias e entre grupos. Dado que
a existência dos tabus de incesto é universal, mas o teor de suas proibições
variável, não se pode dizer que sua finalidade seja evitar a ocorrência de
casamentos entre pessoas geneticamente próximas. O que ocorre na verdade
é que o tabu do incesto coloca o objetivo social da exogamia e da aliança
acima dos fatos biológicos de sexo e procriação. O tabu do incesto divide o
universo da escolha sexual em categorias de parceiros sexuais permitidos e
interditos. De forma explícita, proibindo uniões dentro de um grupo, ele impõe
as uniões entre os grupos (RUBIN, 1975, p.20).

Deste modo, dar uma mulher de presente é mais que um gesto de reciprocidade, é
também uma forma de estabelecer parentesco.
Assim, a autora usa a tese sobre as relações de parentesco para demostrar que a opressão
das mulheres encontra-se “no interior de sistemas sociais e não na biologia” (RUBIN, 1975,
p.23). Essa mesma forma de dominação pode ser encontrada em sociedades “civilizadas”59
como ela mesma assinala. Esse é um sistema no qual a mulher não tem direito sobre si, é um
sistema de subordinação.
A Psicanálise como uma práxis que se ocupa da sexualidade, dispõe de “[...] um

59
De maneira crítica, pensando os processos civilizatórios e sua íntima relação com o patriarcado e a colonialidade,
podemos assim compreender a civilização como sinônimo de barbárie (GONZALEZ, 2020; QUIJANO, 2009;
RUFINO, 2018; SANTOS, 2009).
124

conjunto único de conceitos para entender os homens, as mulheres e a sexualidade. É uma teoria
da sexualidade na sociedade humana”, capaz de descrever como os mecanismos da divisão pelo
sexo se impõem. Nesse sentido, Rubin irá afirmar que “A Psicanálise é uma teoria feminista
manquée”60 (RUBIN, 1975, p.33).
Apesar de dizer que; a feminilidade poderia ser assumida como uma passividade diante
do pai, devido à inveja do pênis, Freud não é biologicista, “ele insistia em que toda a sexualidade
do adulto resulta de seu desenvolvimento psíquico e não biológico” (RUBIN, 1975, p.37),
embora, em alguns momentos específicos do ensino freudiano, essa distinção possa provocar
ruídos.

Freud nunca foi tão determinista biológico como muitos o desejariam. Ele
insistia em que toda a sexualidade do adulto resulta de seu desenvolvimento
psíquico e não biológico. Mas seu texto é em geral ambíguo, e os termos que
usa dão margem às interpretações biológicas que se tornaram tão populares na
psicanálise americana. Na França, por outro lado, a tendência na teoria
psicanalítica foi des-biologizar Freud, e considerar a psicanálise mais como
uma teoria da informação do que referente a órgãos. Jacques Lacan, que
defendia essa linha de pensamento, insiste que Freud nunca pretendeu dizer
nada sobre anatomia, e que a teoria de Freud era sobre a linguagem e os
significados culturais impostos à anatomia. O debate sobre o “verdadeiro”
Freud é extremamente interessante, mas não pretendo participar dele aqui.
Pretendo reformular a teoria clássica da feminilidade na terminologia de
Lacan, depois de apresentar algumas das peças do tabuleiro de xadrez
conceitual deste (RUBIN, 1975, p.37).

De fato, uma leitura da Psicanálise atravessada pela crítica feminista permite outras
compreensões. O próprio Lacan, em determinados pontos do seu ensino, segue a esteira do
pensamento freudiano, sem refletir criticamente, um desses pontos é a maneira com que ele
trabalha – e reproduz – Lévi-Strauss, mantendo em seu ensino, sem uma posição crítica, as
afirmações sobre como as estruturas de linguagem que regulam o laço operam e regulam a
sexualidade.
Do mesmo modo, também podemos encontrar eixos teóricos que ele extrai de Freud,
produzindo uma leitura crítica às formulações freudianas: por exemplo, Freud vai dizer que
Édipo é O mito, enquanto Lacan desloca essa importância como determinante, para dizer que
Édipo é um mito. Especialmente no Seminário 5, As Formações do Inconsciente (LACAN,
1957-58/1998), em período identificado por alguns estudiosos como momento de um retorno a
Freud, Lacan coloca a questão do nome do pai como metáfora, metáfora paterna como um

60
O termo manquée em francês é traduzido como falta, ou o que claudica, sendo assim, irei manter o termo
como aparece na citação original, mas quando não forem citações, opto por usar os termos falta e faltoso.
125

operador da lei, ainda distinguindo textualmente o falo como operador, o pênis como
representante do falo, portanto, o falo como um operador da falta. Contudo, também podemos
encontrar nos seminários deslizes que, eventualmente, aludem a certa equivalência ou
aproximação entre falo e pênis.

Por exemplo, Lacan faz uma distinção entre a “função do pai” e um


determinado pai61 que encarna essa função. Da mesma forma, ele faz uma
distinção radical entre o pênis e o “falo” entre o órgão e a informação. O falo
é uma série de significados que se atribuem ao pênis. A diferenciação entre
falo e pênis na terminologia da teoria psicanalítica francesa atual ressalta a
ideia de que o pênis não poderia desempenhar, nem desempenha, o papel que
lhe é atribuído na terminologia clássica do complexo de castração (RUBIN,
1975, p.49).

Rubin verifica que tomar Édipo como O mito acaba fixando lugares de gênero, de tal
modo que: “Quando a criança sai da fase edipiana, sua libido e identidade de gênero já foi
organizada de acordo com as regras da cultura a que está submetida” (RUBIN, 1975, p.39).
Neste sentido, a autora implementa um esforço para mostrar como Psicanálise é uma
teoria feminista faltosa, feminista, porque se dedica a analisar como as sociedades são
organizadas a partir da diferença sexual, mas falta, à medida que identifica essa ocorrência sem
incluir os apontamentos críticos necessários relativos ao tema.

3.8 Rubin com Butler: e a libertação da camisa de força de sexo/gênero

À vista disso, e consolidando as críticas apresentadas por Rubin, Butler, em Problemas


de Gênero (1990/2018), acrescenta que a lei simbólica seria marcada pela regência das relações
de parentesco heterossexuais tidas como ideais. Há tanto uma imposição do que é ser homem,
quanto uma imposição sobre o que é ser mulher e, igualmente, uma compulsoriedade sobre a
heteronormatividade. Nessa cultura, a significância fálica insiste como balizador, um
condensador de valores:

Nesse sentido, o falo é mais que um traço que distingue os sexos: ele é a
encarnação do status masculino, a que os homens acedem, e que implica
determinados direitos – entre os quais o direito a uma mulher. É uma
expressão da transmissão do domínio masculino. Ele é transmitido através das
mulheres e se estabelece entre os homens. Entre as marcas que deixa, estão a

61
Anos depois, quando Lacan estabelece a sua teoria sobre o laço social, ele propõe um passo a mais nas suas
formulações, e passa a falar em nomes do pai (no plural), o pai como um nome – nó borromeano, como nomeação.
126

identidade de gênero e a divisão dos sexos. Mas deixa mais que isso. Deixa
também a “inveja do pênis”, que expressa muito bem o desconforto da mulher
numa cultura fálica (RUBIN, 1975, p.41,42).

Assim, os valores impregnados na cultura, operam como marcadores simbólicos que


organizam a fase edipiana, corroborando com a hierarquização imposta no campo social.
“Muitos elementos da crise edipiana têm que ser modificados para que essa fase não tenha
efeitos tão desastrosos sobre a mulher. A fase edipiana cria uma contradição na menina,
impondo-lhe exigências contraditórias” (RUBIN, 1975, p.49).
Por isso, mais do que reivindicar igualdade no campo sexual, Rubin visa a uma práxis
política entre os sexos, sem que isso represente o domínio de um sexo sobre o outro.
“Finalmente, uma completa revolução iria libertar não apenas as mulheres. Iria libertar formas
de expressão sexual, e iria libertar a personalidade humana da camisa-de-força do gênero”
(RUBIN, 1975, p.50).
Nessa rota, Butler, propõe um passo a mais, adere a essa aposta que aponta para os
caminhos fora do binarismo e da heterossexualidade como compulsória. Reafirmando que sair
dessa lógica só seria possível extinguindo o sexo como operador de diferenças, ela critica
duramente a interdependência entre sexo e gênero, afirmando que um não existe sem o outro,
interrogando as teorias que defendem o gênero como uma aquisição tardia, formulando que não
há uma anterioridade da divisão sexual, em relação ao gênero, de modo que não é o sexo que
apareceria como causa do gênero, mas sim a divisão entre os sexos é que surge a posteriori ao
gênero, justamente, como efeito performativo das práticas de repetição que operam a
manutenção da dominação (BUTLER, 2018).
Rubin inspira-se na teoria marxista, para pensar mecanismos de libertação que visem a
uma mudança social de fato:

Na visão de Marx, o movimento operário iria fazer mais do que livrar os


trabalhadores da exploração. Ele tem o potencial para mudar a sociedade, para
libertar a humanidade, para criar uma sociedade sem classes. Talvez o
movimento feminista tenha a tarefa de efetuar o mesmo tipo de mudança
social em relação a um sistema do qual Marx teve apenas uma percepção
imperfeita (RUBIN, 1975, p.55).

Enfim, Rubin apresenta uma tese mostrando como as opressões são criadas a partir da
construção social dos papéis de gênero e que a sexualidade é usada como forma de opressão,
por isso o melhor seria eliminar as sexualidades compulsórias, como forma de gerar uma outra
estrutura social.
127

Pessoalmente, acho que o movimento feminista deve almejar mais do que a


eliminação da opressão das mulheres. Deve sonhar em eliminar as
sexualidades obrigatórias e os papéis sociais. Sonho que acho mais fascinante
é o de uma sociedade andrógina e sem gênero (embora não sem sexo), na qual
a anatomia sexual de uma pessoa seja irrelevante para o que ela é, para o que
ela faz e para a definição de com quem ela faz amor (RUBIN, 1975, p.55).

E justamente porque isso ampara a estrutura social, a obra Tráfico de Mulheres (RUBIN,
1975) constitui-se de notas sobre Economia, sobre aspectos econômicos, tanto no sentido
marxista do termo, quanto no da economia pulsional, ou no que diz respeito ao cálculo de gozo.
Afinada com o marxismo, Rubin identifica a inter-relação entre a superestrutura (como
ideologia para consolidar os interesses da classe dominante) e a infraestrutura (que são as bases
econômicas nas quais se dá a exploração da força de trabalho), examinando como a ideologia
e a dependência econômica podem ser analisadas a partir das relações de parentesco, via
alianças matrimoniais em prol da estrutura econômica. “Em última análise, foi exatamente isso
que Engels tentou fazer em seu esforço para desenvolver uma análise coerente dos diversos
aspectos da vida” (RUBIN, 1975, p.62). Em sua análise Engels engloba “formas de propriedade,
sistemas de ocupação da terra, conversibilidade de riqueza, formas de troca, a tecnologia da
produção de alimentos, formas de comércio” (Ibidem).
Notemos que é nesse sentido que Judith Butler vai trabalhar as questões de gênero, não
como uma parte importante dos Estudos Sociais ou da Filosofia, mas sim considerando como
a construção de gênero é um aspecto crucial na dialética do reconhecimento e, por
consequência, na estruturação social.
Nas palavras de Butler: “Todo o meu trabalho está inscrito em torno de um conjunto de
perguntas hegelianas: ‘qual é a relação entre desejo e reconhecimento e a que se deve que a
constituição do sujeito suponha uma relação radical e constitutiva com a alteridade?’”
(BUTLER, 1999, p. 24), ou seja, as questões de gênero como ponto central para a constituição
do sujeito62.
De tal modo, pensar gênero é pensar política, no sentido amplo do termo, precisamente
por intervir no fazer político como um todo; assim, gênero participa para além desse fazer
(RODRIGUES, 2021), defendendo o pensamento de Judith Butler como pensamento da
filosofia política como um todo, sem restringir sua importância na produção de conhecimentos
das teorias feministas, ou tratando de especificidades. Ora, são políticos os próprios termos que

62
Fanon, em Pele Negra Máscaras Brancas, analisará essa questão hegeliana pela via racial, como Hegel
localizava os pretos nessa relação de reconhecimento, nessa operação “unilateral” (FANON, 2008, p.180-181).
128

fazem a política, não há termo neutro. Logo, gênero aparece como condição para pensar política
e não como um tema adjacente, supostamente menor. Até mesmo porque são políticos os
próprios termos que fazem a política, a linguagem que se usa, o que se diz, como se diz, e o que
se cala.
Sendo assim, Butler se preocupará em revisar a literatura feminista acerca do tornar-se
mulher, conjecturando o gênero não como uma interpretação cultural do sexo, mas como um
processo de construção de corpos; uma alegoria produtora de repetições, reproduzindo a cópia
da cópia, por meio de uma incessante repetição, que não se motiva a partir de um modelo
original, mas da cópia da cópia. Logo, a noção de gênero performativo é a grande contribuição
de Butler, por evidenciar como se dá a existência de atuações sociais performando normas de
gênero a fim de promover imperativos performáticos capazes de instalar a realidade subjetiva
dos sujeitos e seus corpos (BUTLER, 1990/2018).
Pois bem, essa é uma questão política e ética, já que diz respeito à forma e ao lugar das
diferenças no laço social. Diferença como um princípio existencial que marca cada sujeito, as
peculiaridades inerentes à existência de cada ser humano, recusando e superando por completo
a ideia de reduzir a diferença entre os sexos a uma diferença capital da humanidade. Ao final,
visamos a uma diferença que possa ser vista como sustentáculo de polaridades necessárias
dentre as quais a criatividade possa acender de forma uma dialética e peculiar.

3.9 Uma breve passagem por outros aspectos históricos: do caça às bruxas antigo à sua
versão atual

Como vimos, existe uma certa impossibilidade de precisar e distinguir qual é o


acontecimento histórico exato que inaugura o questionamento sobre a condição das mulheres
na sociedade; não obstante, cada vez mais podemos investigar e analisar como os
enfrentamentos e as indagações aconteceram a partir do que foi provocado pelo discurso
hegemônico de cada época.
Podemos retomar diversos pontos ao longo da história, por exemplo, o surgimento da
“caça às bruxas” como uma forma de perseguição religiosa e social, cujo período clássico foi
iniciado no século XV, atingindo seu apogeu nos séculos XVI a XVIII. O conceito de “bruxa”
era amplo, classificando a mulher não-toda submetida às normas da sua época, ou seja, eram
chamadas de bruxas as hereges, as contestadoras, as curandeiras e benzedeiras. Eram alvos das
autoridades, que supunham aí um exercício de poder que era proibido, condenando, de maneira
129

arbitrária, esses corpos como sendo instrumento do diabo63, por essas mulhres estarem ligadas
à magia e ao uso de ervas medicinais. Uma das justificativas para sustentar a perseguição era
associar um desvio sexual feminino, como ponto fraco que facilitaria as ciladas do diabo64.
Podemos compreender que eram consideradas bruxas as mulheres que de algum modo
representavam algum tipo de ameaça identificada pelos ‘poderosos que detinham a
discursividade daquela época”, como podemos acompanhar em Federici (2017), que traça um
paralelo entre a perseguição e guerra às mulheres, durante mais de dois séculos, no final da
Idade Média, como fundamental para a ordem patriarcal no capitalismo contemporâneo.
Com Fuentes (2009), destacamos como, desde 625 a.C., podemos ter notícias de
mulheres que reivindicavam seus direitos - nesse caso, direito à formação intelectual e acesso
à construção de conhecimento -, desde a antiguidade e ao longo da história:

Não foram nem as únicas nem as primeiras: na ilha de Lesbos, a poetisa Safo
nascida em 625 a.C., fundou um centro de formação intelectual para as
mulheres que se rebelavam contra a condição que lhes era outorgada na
Grécia, apropriando-se do que então era uma atividade exclusivamente
masculina, como fazer poesia. Ou então, ao fim da Idade Média as seitas
femininas organizavam-se em torno de inquietações compartilhadas em
relação ao poder dos clérigos e à hierarquia dos sexos, como foi o caso do
movimento das beguinas. Contudo, a fogueira da Inquisição foi o destino de
Marguerite Porete e de milhares de outras mulheres que defendiam a liberdade
de pensamento e do amor a Deus (FUENTES, 2009, p.12).

O surgimento de produções literárias escritas por mulheres presentifica e faz circular a


informação sobre a forma como as mulheres sempre se posicionaram ao longo da história,
produzindo conhecimento sobre si, sobre o mundo, sobre a tradição do feminino, dos seus
pensamentos e resistências. De tal modo que, para Garcia (2015, p. 9), o embrião fundamental
de “um movimento propriamente de mulheres foi a imprensa alternativa feminina”, entre a
metade do século XIX e o início do século XX. Isso porque, além de as mulheres produzirem
os textos, produziu-se também certa autonomia, já que os meios de comunicação, nesse caso,
eram propriedade das mulheres, o que lhes dava não só autoridade para escreverem, mas
também emancipação e independência para fazerem circular a literatura e as informações que
eram do interesse delas.
Fuentes aponta diversas manifestações para ilustrar como as mulheres se posicionaram
frente ao lugar em que os homens as descreviam e as tratavam, tanto no campo daquilo que é

63
O Martelo das Bruxas é um manual inquisidor, publicado em 1486 por dominicanos. É considerado o manual
mais cruel que orientava sobre a perseguição às mulheres, com a justificativa de caça às bruxas (OSGA, 2018).
64
Não seria ainda esse mesmo argumento que persegue as religiões de matriz africana no Brasil?
130

particular como na ordem pública.

[...] por exemplo, em 1405, quando a escritora e dama da corte francesa


Christine de Pizan, em La cité des dames, falava da defasagem entre sua
própria experiência como mulher e a imagem das mulheres apresentadas pelos
homens, evocando em uma crônica as mulheres virtuosas e poderosas
(FUENTES, 2009, p.13).

Pizan é conhecida também pela sua inclusão em Las querelles des femmes, que se
estendeu até o século XVIII e debatia as qualidades da mulher, por meio da formulação
intelectual e de produções literárias e filosóficas.
Em 1622, no tratado Egalité des hommes et des femmes, Marie de Gournay denuncia
que o rebaixamento cultural e intelectual das mulheres em relação aos homens decorre da
exclusão das mulheres dos espaços “oficiais” de elaboração e transmissão do saber. É
importante destacar que, ao longo da história dominante nos últimos séculos, as mulheres
dificilmente ocuparam os espaços tidos como oficiais. No entanto, as historiadoras feministas
mostram o protagonismo das mulheres, ao longo da história, e como isso foi sendo apagado
enquanto transmissão, sendo deixado de fora da difusão que acontece via discurso oficial65.
A Revolução Francesa deu-se entre 1789 e 1799, e seus efeitos impactaram não só a
história da França, o giro que propunha a queda de antigos ideais monárquicos, aristocráticos e
religiosos dava lugar a novos princípios que pregavam liberdade, igualdade e fraternidade,
desdobrando efeitos na civilização ocidental. Mas, ‘no dia seguinte à revolução’, as mulheres
que lutaram na linha de frente junto aos homens, vislumbrando conquistar direitos, foram
excluídas da possibilidade de desfrutar dos ganhos adquiridos nessa revolução, de tal modo que,
no lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não cabiam as mulheres. Vale relembrar que foi
uma revolução burguesa e tais direitos só serviam para o homem burguês, somente ele poderia
ser cidadão. Assim, na nova configuração, as atividades consideradas sublimes e ilustres
continuaram a ser exclusivamente do universo masculino: no campo da Política, do Direito, da
Filosofia, da Medicina, usurpando das mulheres o seu lugar legítimo na construção de saberes
e no fazer político.
Atualmente, temos acesso a literaturas que mostram como, durante os anos da
Revolução Francesa, milhares de mulheres participaram politicamente, reivindicando direitos
que só foram regulamentados para os homens, de modo que a busca por uma sociedade mais

65
Apagamento das histórias e memórias, que foi igualmente operado pelo colonialismo (GONZALES, 2020;
QUIJANO, 2009; SANTOS, 2009).
131

harmônica deu lugar à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (versão original de
1789)66. Interessante observar o que podemos aprender com a arte, já que um dos retratos mais
importantes desse período é do artista Eugène Delacroix, na pintura de 1830, chamada de A
liberdade guiando o povo, na qual ele coloca em primeiro plano o protagonismo das mulheres,
nesse momento de virada política.

Figura 9 – A liberdade guiando o povo.

Fonte: DELACROIX. Eugène. A liberdade guiando o povo. Óleo sobre tela, 260 x 325 cm
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Liberdade_guiando_o_povo>. Acesso em: 20
jan. 2022).

Em contraponto ao desfecho, mais ao final da Revolução Francesa, a dramaturga e


revolucionária Olimpe de Gouges, exerce protagonismo incomensurável, ao escrever, em 1791,
A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, incluindo uma versão, para as mulheres, da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No ano seguinte, em 1792, Mary
Wollstonecraft publica um texto que reivindica o acesso à educação para ambos os sexos,
defendendo educação gratuita, garantida pelo Estado para todos.
As reivindicações eram rechaçadas pelos homens. Ocorre que, ainda que as mulheres
estivessem ao lado dos homens durante todo o processo revolucionário, quando elas passam a
reivindicar igualmente os seus direitos, são consideradas inimigas; desse modo, participar das

66
A Assembleia Nacional Constituinte da França Revolucionária aprovou, em 1789, a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, sintetizada em dezessete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários. Pela primeira vez
são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do homem, de forma econômica, visando a abarcar toda
a humanidade, sendo reformulada em 1793. Serviu de inspiração e base para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, promulgada pelas Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
132

lutas, ocupando a linha de frente das trincheiras, não assegurou o ingresso das mulheres à vida
política, muito pelo contrário, já que, em 1793, Olimpe de Gouges foi guilhotinada, para servir
de exemplo, e as mulheres foram proibidas de exercer qualquer atividade na vida pública, seja
no domínio político ou participando nas universidades.
Por isso, é fundamental considerar o protagonismo das mulheres nas lutas, tanto quanto
na produção de conhecimento. É fundamental compreender que houve produção de
conhecimento, insistimos que o silenciamento ocorreu na divulgação e transmissão desse
conhecimento produzido; porém, apesar de embargado e apagado na transmissão, na sua
difusão ‘oficial’ na história, os enfrentamentos e as elaborações das mulheres sempre estiveram
presentes. Logo, as mulheres sempre estiveram à frente nas lutas e na construção do
conhecimento.
Com a antropóloga, cientista política e pesquisadora do feminismo Carla Garcia (2012),
podemos observar essa problemática do apagamento, a partir de outro prisma. Ela apresenta um
outro recorte, explanando, por exemplo, a respeito de como as piratas aventureiras exerciam –
e exercem – esse lugar de desbravadoras, no decurso da história, reposicionando no campo
acadêmico a criação hegemônica e identitária da mulher como sexo frágil.

Quando se trata de ilustrar o espírito de aventura, a história - escrita por


homens - retém nomes como os de Marco Polo, Cristóvão Colombo,
Magalhães. Na sombra fica Egéria, nascida no século IV, no lugar que hoje
chamamos de Galícia, e que escreveu um importante livro de viagens
detalhando seu caminho até a Terra Santa (Cid López, 2010).
Ou Isabel Barreto, navegante espanhola do século XVI, que teve em suas mãos
o comando de uma expedição na conquista da América e obteve o título de
almirante (Sainz de Robles, 1959)
Entretanto, as aventuras têm sido e são domínios tanto dos homens quanto das
mulheres, desde os tempos mais remotos, mesmo que a imensa maioria delas
tenha sido esquecida. A aventura e a guerra têm sido motivo de reflexões e
posicionamentos coletivos ou individuais para as mulheres de todas as épocas
históricas, independentemente do fato de que suas vozes - de protesto ou
beligerantes – fossem ou não escutadas (GARCIA, 2012, p.302).

Esse fenômeno do apagamento do protagonismo das mulheres também pode ser


localizado na antiguidade, mais especificamente no que diz respeito à Grécia antiga que:

Retrata os homens como aqueles que constituíam a assembleia e decidiam por


todos, enquanto as mulheres ficavam confinadas no lar, não é totalmente
exato, embora tenha sido um ideal na grande parte da literatura e arte gregas
– segundo defende a historiadora Marilyn Katz, na História Ilustrada da
Grécia Antiga (CART LEDGE, 1998). As mulheres tinham um lugar na
sociedade, distinto daquele destinado aos homens, a começar como “esposas”
133

e “mães”. O que não quer dizer que elas passassem o dia dentro de casa, já
que muitas trabalhavam no campo ou no comércio, quando a maioria não era
suficientemente rica para tanto. Além disso, a qualidade de “esposas de
cidadãos” designava-lhes um lugar a partir do qual compartilhavam das
condições de cidadania, como nos rituais religiosos, nas festas de celebração
de Atenas etc. Contudo, o olhar retrospectivo feminista denuncia esse lugar
como insuficiente e opressor, como se as mulheres tivessem sido vítimas de
um poder masculino que as oprimia. Mas, certamente, foi somente no século
XX que o feminismo como movimento organizado modificou radicalmente a
inserção das mulheres na cultura ocidental, promovendo-lhes uma
emancipação jurídica e política como jamais houve. A mulher tornou-se um
sujeito de direito capaz de exercer sua condição de cidadania, com acesso
praticamente irrestrito ao ensino, ao exercício profissional, social, político etc.
(FUENTES, 2009, p.14).

A construção do lugar da mulher como inferiorizado foi atualizada e reforçada na


modernidade, “na mesma direção, Kant propôs que a mulher é naturalmente inapta para tornar-
se um agente moral dotado de inteligência”, por isso deveria “se ocupar do cuidado com o
homem e na conservação da família” (FUENTES, 2009, p.16).
Como estamos acompanhando, ocorreu uma grande queima de mulheres no final da
Idade Média, contudo o deslocamento do poder religioso para o poder científico revitalizou as
formas de dominação das mulheres e operou uma “grande queima” do seu papel na história.
134

4 TERCEIRA ONDA E O FEMINISMO INTERSECCIONAL

4.1 Terceira onda: seu início, as pautas que orbitam em torno da diferença e a filiação a
Luce Irigaray

O feminismo da terceira onda visa a desafiar ou evitar aquilo que se vê como as


definições essencialistas sobre o feminino. A terceira onda movimenta-se e produz
ramificações.
Uma dessas ramificações tem o pensamento da Irigaray como expoente, o feminismo
da diferença sexual. Outra é orientada pelas mulheres nas universidades, e o livro Problemas
de gênero (2018), de Judith Butler, torna-se um marco histórico desse novo momento do
feminismo: era uma forma de sair do binarismo de gênero, construindo caminhos para a
emancipação das mulheres, mas não só. Nesse mesmo momento, o feminismo negro e
interseccional também movimentava suas bases.
Desse modo, tal onda representa a ruptura com a ideia de um feminismo que considerava
um Outro universal, “do conjunto das mulheres”, e fica mais evidente que o movimento, agora,
opõe-se às formas de universalização, sejam elas quais forem, sabendo que essa seria a única
maneira de romper com lógicas que validam hierarquizações e as estruturas de poder. Por esse
motivo, destaco a importância do feminismo interseccional, para dar voz e lugar às
especificidades existentes, não para fazer grupos ou consolidar novas paróquias dentro do
movimento, mas justamente por propiciar possibilidades para as singularidades de cada sujeito.
Insisto nisso não para apagar o que tem cada sujeito, seja ele homem ou mulher, ou para
reforçar identidades que levariam a outras hierarquias: o feminismo interseccional desvela algo
que estava dado como natural e universal na estrutura social moderna, questionando os padrões
não só impostos para as mulheres, mas as imposições de padrões como um todo, e a criação de
um sujeito considerado universal, como a imposição de uma identidade de maneira velada, por
isso com aparência de ‘natural e universal’.
Assim, o feminismo interseccional como vertente do feminismo da terceira onda,
ambiciona uma organização social que possa ser morada das diferenças, como diria Audre
Lorde (2019), pautando a importância de olhar e sustentar as diferenças postas socialmente, ao
invés de tentar apagá-las, de tal modo que sustentar esse lugar como possível é vislumbrar um
novo modo de organização para a sociedade.
Mas, antes de analisar o feminismo negro e interseccional, é oportuna uma passagem
pelo feminismo da diferença e como essa vertente possibilitou novos conceitos e abriu portas
135

para a formulação de novas epistemologias. Um passo importante na edificação do movimento.


Assim, iniciaremos com uma breve citação de Irigaray (1985, p. 86): “O feminino só ocorre
dentro dos modelos e leis concebidos por sujeitos masculinos”.
Luce Irigaray apoia-se na diferença sexual, apresentando conexões entre a Filosofia da
diferença e a Psicanálise. Uma tarefa nada fácil analisar como a diferença sexual está a serviço
de uma heteronorma e da criação de discursos que fixam posições na sociedade.
Para a feminista e psicanalista francesa, a noção de diferença sexual é central para a
empreitada feminista: ela afirma que se trata de uma das questões mais relevantes para o
pensamento moderno, como um terreno fértil para pensar ações políticas, bem como para
desconstruir identidades fechadas, considerando, em certo sentido, a diferença entre o que
aparecia na segunda onda e a centralidade das diferenças entre homens e mulheres.
Nesse sentido, a terceira onda ultrapassa a questão da diferença como diferença sexual,
incluindo nesse arcabouço outras diferenças e as intersecções entre gênero, raça, classe,
orientação sexual, etnia, faixa etária, que ocupam grande valor, tanto quanto o gênero.
É importante essa ampliação que se dá na passagem para a terceira onda, desdobrando
e abrindo a categoria mulher: o feminino não está dado, tem que ser construído coletivamente,
e esse giro produz efeitos importantes para o que pode ser pensado, articulado e levantado como
ato, na práxis. Assim, as questões que emergem do confronto produzido nessa virada de onda,
problematizando as questões que orbitam em torno da noção da diferença sexual e de gênero,
alçam a importância de apostar na radicalidade que subverte a categoria, visando a alianças
dentro do próprio movimento, considerando outras realidades sociopolíticas para o
enfrentamento do patriarcado, que é sexista, classista e racista.
É por esse caminho que se dá a filiação de certas feministas a Luce Irigaray, produzindo
a partir dessa ramificação orientada pela batalha pela diferença. A filósofa, ativista e escritora
Luisa Muraro (2010) segue por esse caminho, quando formula e apresenta o conceito de
autoridade por essa via feminista, oferecendo outra ontologia e epistemologia, gerando um
outro sentido para o termo. Assim, ela aparta o sentido de autoridade como autoritarismo, que
resulta em hierarquias, para apresentar o conceito, definindo autoridade como um lugar de
autoria, de autorizar-se, de tal modo que a diferença é justamente o que garante a autoridade
como assimetria no laço entre as mulheres.
Bem ao estilo uma sobe e puxa a outra67, respeitando-se o saber produzido pelas mais
velhas, bem como validando-se o vigor e o frescor que oferecem as mais novas, mantém-se

67
Expressão usada pelas feministas da terceira onda.
136

uma diferença que, em momento algum, ambiciona a lógica de dominação. Em certo sentido,
isso me interessa muito como estratégia – ou tática – para pensar o lugar realizável das
diferenças no laço social.
Já, para María Luisa Fermenías (2013), a filiação a Irigaray assinala a importância
política de não se deixar enganar pelas promessas de igualdade. Ainda nessa orientação, fiz
questão de incluir o pensamento de Fina Birulés (2015), que repensa o feminismo da diferença
como um modo de ocupar e fazer política dentro da universidade, ocupando a estrutura para
propor outras formas de pensar o fazer filosófico entre as mulheres e para as mulheres, e como
isso resulta em políticas.
Aqui nasceria outro longo debate, que não vou aprofundar neste momento, mas que
estará presente, nas entrelinhas, ao longo do Capítulo, entre as feministas que, por considerarem
a urgência de modificar determinadas realidades encontradas na vida de várias mulheres, em
todos os cantos do mundo, defendem de maneira pragmática a importância das políticas
públicas para as mulheres, considerando o amplo guarda-chuva que abarca a categoria, para
formular, sob o ponto de vista das mulheres, pensamentos e ações concretas dentro da sociedade
em que vivemos.
Porém, caminhos traçados por outras vertentes da terceira onda vão dizer que essa
“reforma” no sistema será sempre insuficiente, que é necessário modificar toda a estrutura,
repensar a organização social como um todo, defendendo o feminismo como práxis que visa a
modificar todas as formas de relações que resultam em dominação e colonização.
Desse modo, para ilustrar o que poderia haver de polêmico, vou usar, a seguir, dois
exemplos.
Primeiramente, retomando a questão da criação de um salário-mínimo destinado às
mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico: a política pública recém-conquistada na
Argentina. Depois de muita luta dos movimentos, as mulheres que se dedicaram à vida
doméstica e ao cuidado dos filhos passaram a ter o direito a uma aposentadoria, o que é muito
importante, pensando na precariedade que muitas dessas mulheres enfrentam, no aspecto social
e econômico. Então, uma ala do feminismo investe nesse tipo de ação, como medida de proteção
e emancipação, no entanto também podemos analisar o que há de problemático nisso, à medida
que normaliza e naturaliza, via política pública, o trabalho doméstico como função destinada
às mulheres, ao invés de colocar em xeque a estrutura que opera a manutenção de lugares de
gênero.
Então, de maneira pragmática, existe uma urgência social posta em cena, pois a
aposentadoria das mulheres tem uma importância para cada uma delas, inclusive quando pode
137

se tornar um meio para separação dos maridos ou para independência em relação ao pai dos
seus filhos, sendo muitas vezes uma forma de ter um pouco de autonomia financeira para
conseguir a separação das relações que não fazem mais sentido e que se mantinham pela
dependência econômica. Por outro lado, é um salário que fica muito aquém da dedicação de um
cuidado realizado durante toda a vida, além de não questionar a manutenção das mulheres nesse
lugar de cuidado e no ambiente privado.
Em outra situação, pensando na situação brasileira, caberiam inúmeros exemplos de
como as políticas públicas produziram certo suporte ao campo econômico e à criação de direitos
para as mulheres. Vários estudos sobre o Programa Bolsa Família68, por exemplo, mostram a
importância de as mulheres receberem o auxílio: na lei, quem recebe o dinheiro são sempre as
mulheres, gerando ampla importância na micropolítica e para cada uma dessas beneficiárias -
para algumas representou, inclusive, a possibilidade de dar passos importantes na sua
emancipação, além de auxiliar no cuidado da família. A construção e promulgação da lei de
combate à violência contra a mulher69 representa, sem dúvidas, outro grande progresso. Claro
que ainda há muita coisa a se avançar na prática, ou seja, “fora do papel”, mas é inegável a
importância que isso produz no campo social, econômico e dos direitos.
Desse modo, entro neste debate compreendendo a importância do uso da categoria
mulheres – de maneira ampliada – para a construção das políticas públicas, mirando no
desamparo que toca inúmeras mulheres; até por isso, considero essencial incluir as questões
interseccionais como fundamentais para pensar os discursos e o laço social, considerando,
ainda, como a categoria pode conter certa intransigência e como reformar o sistema não muda
as relações de poder.
Assim, voltando para Irigaray e os impasses assumidos por suas herdeiras, presentes na
terceira onda, consideramos o risco que é apostar na diferença sexual e cair nos efeitos de um
certo essencialismo, que, atualmente, significaria um retrocesso para a práxis feminista,
mantendo a heteronormatividade, a monogamia compulsória, e a exclusão dos seres falantes
que não se enquadram na categoria binária. Por outro lado, entendemos a importância da
participação das mulheres na teorização e na prática política, a partir das ponderações

68
Destaco o trabalho de Sabóia (2016), O impacto do programa Bolsa Família sobre a violência contra a mulher:
publicado pelo Instituto de Economia da UFRJ, aponta como o programa federal Bolsa Família reduziu a
mortalidade, por causas externas, de mulheres entre 15 e 59 anos - o estudo dedicou-se a analisar o período de
2000 a 2010.
69
Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Essa Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do Art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil
(BRASIL, 2006).
138

produzidas em torno da condição feminina.


Como o feminismo não está concluído e “acabado”, tratando-se de uma construção
contínua e coletiva, podemos pensar como Butler apresentou a importância do uso político da
categoria mulher, para analisar criticamente, sem jogar fora tudo que foi construído até então,
balizando a importância da categoria para a criação das formulações que daí decorreram,
destacando como, atualmente, a categoria mostra-se insuficiente para compreender a
problemática posta.
Assim, inicialmente, incluo a importância histórica da radicalidade dessa categoria,
como defendem as filhas de Irigaray, mas me interesso em pensar além e, por isso, incluo e
enfatizo as críticas existentes em outras ramificações da terceira onda, que avança produzindo
outros sentidos, quando questionam o pressuposto inerente à
heterossexualidade e à monogamia compulsória como pano de fundo, para, em seguida, analisar
a potência transgressora destas feministas negras que trabalham esgarçando a categoria, e
questionando a naturalização da diferença sexual como característica universal da humanidade,
tanto quanto se dedicam a modificar as várias dimensões de opressão presentes no laço social,
propondo um passo além, rejeitando a diferença sexual como evidente, como efeito da
naturalização da divisão homens ou mulheres, como sinônimo trans-histórico ou transcultural,
de uma diferença naturalmente herdada, denunciando a construção do discurso social
interessado nessa ideologia binária, patriarcal, colonial e racista.

4.2 A terceira onda e a visada do feminismo da diferença

O feminismo da diferença surge a partir de um desencanto com o que era chamado de


igualdade, já que os fatos terminaram por mostrar as limitações desse conceito, acrescentando
que essa forma de pensar a igualdade não reverteria a estrutura que mantém as inadequações,
“se conforma así lo que se denominó posteriormente ‘feminismo de la diferencia sexual, em
clara oposición al ahora denominado ‘de la igualdad’” (FERMENÍAS, 2013, p.16).
Acompanhando o surgimento do raciocínio das feministas da diferença, é importante
destacar como foi vital repensar as bases interpretativas filosóficas que sustentam seu status
quo, daí que, quando se podem ler de outro modo os fundamentos que sustentam o pensamento
filosófico, é possível construir outras epistemologias sobre o surgimento do sujeito e do laço
social. Nesse sentido, Fermenías tece como pensar ‘as diferentes diferenças’, como uma crítica
importante à dialética hegeliana:
139

Veamos, si nos dejamos guiar por la filosofía, sobre todo por la de la segunda
mitad del siglo XX, la “diferencia” surge, en algún sentido, como fruto de una
reacción contra la filosofía de Hegel, definiéndosela no ya en términos de
contradicción, lo contrário – dialécticamente hablando – de la identidad, sino
en términos de una diferencia originaria (Descombes, 1979) (FERMENÍAS,
2013, p.17).

À vista disso, insistimos que se trata de incluir uma diferença no âmbito filosófico e
epistemológico. Para Carla Lonzi (1975), questionar a dialética do senhor e do escravo é
repensar a construção do sujeito universal da modernidade, e sua crítica está embasada na
maneira com que Hegel trata o homem como sujeito universal, rechaçando e excluindo as
mulheres da condição de sujeito.

Por igualdad de la mujer, se entiende su derecho a participar en la gestión del


poder en la sociedad, por medio del reconocimiento de que aquélla posee la
misma capacidad que el varón. Pero la experiencia femenina más auténtica de
estos años nos ha mostrado el proceso de devaluación global en el que se
encuentra el mundo masculino.
La igualdad entre los sexos es el ropaje con el que se disfraza hoy la
inferioridad de la mujer (LONZI, 1975, p.88).

Dessa forma, para a autora, A Fenomenologia do Espírito (1807) “es una fenomenologia
del espíritu patriarcal, la encarnación, en el tiempo, de la divinidad monoteísta. La mujer
aparece como imagen cuyo nivel significante es ser hipótesis de otros” (LONZI, 1975, p.91).
Ou seja, a mulher é pensada como aquela que é diferente do homem, tomando o homem sempre
como referencial, como modelo a ser seguido, e não a partir das suas próprias características e
particularidades, portanto “La Historia es el resultado de las acciones patriarcales” (Ibidem), o
que se desdobra em uma série de efeitos e interpretações, inclusive nos aspectos que suportam
as epistemologias científicas.
Daí a defesa da diferença como uma marca específica, um traço que inclui diferentes
particularidades, e não diferença em relação aos homens, já que essa construção filosófica,
tradicionalmente reconhecida como as bases do pensamento moderno, opera sempre por uma
via binária e dicotômica, naturalizando oposições de sexo/gênero, natureza/cultura,
mente/corpo, implicando problemas políticos à medida que, por exemplo, cria a mulher como
binário do homem: se o homem é o racional, a mulher é emocional; se o homem é responsável
pelos assuntos da pólis, a mulher, nessa ideologia, é destinada ao cuidado da casa e à
maternagem, cabendo a ela as tarefas de cuidado e amor incondicional que, como vimos, foram
140

estabelecidas na modernidade. Desse modo, o homem é o sujeito universal e, em tal dicotomia


binária, resta à mulher o lugar de complementariedade, de Outro desse sujeito.
Nessa lógica, como pode a mulher ser um sujeito? Por isso a ebulição causada por
Beauvoir, em 1949, por ocasião do lançado O segundo sexo, ao questionar o que é uma mulher,
“Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina?” (BEAUVOIR, 2019,
p.24). Ela questiona as bases da modernidade, bem como os vestígios desse pensamento desde
a antiguidade.

É o que simboliza a história do Gênese, em que Eva aparece como extraída


segundo Bossuet, de um “osso supranumerário” de Adão, A humanidade é
masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela
não é considerada um ser autônomo. “A mulher é o ser relativo...” diz
Michelet. E é por isso que Benda afirma, em Le rapport D’uriel: “O corpo do
homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este
parece destituído de significação se não se evoca o macho... O homem é
pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem.” Ela não é senão o que o
homem decide que seja; daí dizer-se o ‘sexo’ para dizer que ela se apresenta
diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é
absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem,
e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (BEAUVOIR, 2019, p.12-13).

Por isso mesmo, Beauvoir vai nomear sua obra de O segundo sexo, sustentando o tom
crítico que está presente em toda construção desse escrito que virou um clássico. Assim ela diz:
“A categoria de Outro é tão original quanto a própria consciência” (Ibidem, p.13), apontando
criticamente como o Outro é um traço (ou rastro) da racionalidade e da consciência que, desde
os primórdios, se pensa em pares: bem e mal, sol e lua, dia e noite, Deus e Lúcifer, elucidando
como a binariedade é intrínseca à construção da racionalidade.
Curioso pensar como Lacan (1969-1970/1992) faz uso da dialética hegeliana para
refletir sobre o laço social e estabelecer a relação existente entre o Sujeito e o Outro. Digo
curioso, porque esse ponto da teoria lacaniana é apresentado no final dos anos 1960, quase vinte
anos depois do posicionamento crítico sustentado por Beauvoir. Quando citei, há pouco, a
asserção de que “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”, a autora estava tecendo uma
crítica ao pensamento de Levinas, a frase destacada é dele, e ela parte disso que ele diz, para
criticar a complementariedade colocada em cena, e para dizer que Levinas sabe que a mulher
‘é consciência de si’, “Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de
homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é
141

um mistério” (BEAUVOIR, 2019, p.13), é um mistério para o homem, que a todo momento
reafirma a condição de seus privilégios, nessa trama. Lacan, de certo modo, quando trabalha a
partir desses lugares, do sujeito e do Outro, deixa de fora a crítica colocada na cena por
Beauvoir, que já estava desde Levinas sobre a não complementariedade. Trago dois aspectos
críticos a partir desse ponto:
1) a manutenção desses lugares que o pensamento epistemológico estabelece. Já que,
como Beauvoir argumenta: “Nenhum sujeito se define imediata e espontaneamente como o
inessencial; não é o Outro que se definindo como Outro define o Um: ele é posto como Outro
pelo Um definindo-se como Um” (Ibidem, p.14);
2) o feminino nesse lugar de mistério, como se a consciência de si fosse uma questão
para o feminino e não uma característica do ser falante, já que a Psicanálise trabalha justamente
com o sujeito do inconsciente, de tal modo que a completa “consciência de si” pode ser uma
crença, mas, a partir da Psicanálise, nunca uma possibilidade concreta.
Gianesi e Mountian (2020) trabalham justamente essa questão, no artigo Psicanálise e
feminismo: algumas reflexões sobre a mulher enquanto Outro, demonstrando como a
Psicanálise também se orientou por questões epistemológicas embasadas por conceitos
patriarcais. O que não é sem efeitos nos desdobramentos do pensamento psicanalítico.
Desse modo, o horizonte psicanalítico não visa, necessariamente, a questões de gênero
mas, quando constrói suas teses, por intermédio de pensadores tão carregados de binarismo,
pode produzir ruídos que interferem na elaboração sobre o sujeito do inconsciente.
Não por isso, mas nesse sentido, Beauvoir cita um trecho da Filosofia da Natureza, em
Hegel, para ilustrar como ele se calca em papéis de gênero como verdades trans-históricas,
estimando como a existência de dois sexos materializa diferenças, nessa conexão em que um é
pensado em oposição ao outro. Assim, se um é ativo, o outro será passivo e, naturalmente, a
passividade competirá à fêmea. Ela cita Hegel: “O homem é, assim, em consequência dessa
diferenciação, o princípio ativo, enquanto a mulher é o princípio passivo porque permanece
dentro da sua unidade não desenvolvida” (HEGEL, s.d., apud BEAUVOIR, 2019, p.37).
Dito isso, reconhecemos que denunciar a lógica hegemônica e sua epistemologia
moderna não modifica as coordenadas que produzem opressão e que, desse modo, sustentar
uma epistemologia da diferença não resulta na mudança capaz de produzir um outro enlace nos
sujeitos, no campo social, mas é um passo importante nessa construção para um giro ‘além’.
Dessa maneira, localizo a importância dos confrontamentos epistemológicos e filosóficos que
as teóricas da diferença produziram; identifico, por essa via, um caminho importante, uma
histerização capaz de produzir avanços históricos no campo do pensamento e, como sabemos,
142

a histerização e os apontamentos que fazem emergir “a verdade nas falhas do saber”,


funcionando como um trampolim, um caminho para a criação de outro laço, para, daí sim,
conceber um enlace que não tome as diferenças e assimetrias como justificativa para
dominação.

4.3. Luisa Muraro e a subversão da autoridade – do autorizar-se à autoria

Nosotras, pensadoras de finales do siglo XX, sabemos (y este saber es todo o


mucho de lo que ha producido la filosofía de nuestro siglo) que el pensamiento
no es la reproducción de la realidad, sino el mostrarse de la realidad a través
de un sistema históricamente determinado de mediaciones, in primis la
mediación lingüística. No soy yo quien piensa la realidad, para entendernos,
sino que es la realidad (MURARO, 1992, p.61).

Nesse sentido, acrescento a ideia sobre autoridade, apresentada por Luisa Muraro, que
se dedica a pensar a valoração das diferenças, incluindo aí potência política.
Ela participou de um experimento educativo chamado Escola Antiautoritária, e tal
experiência resultou na escrita de um de seus livros, Sobre la autoridad feminina (1992), no
qual ela se propõe a refletir sobre o processo educativo, visando a resguardar a assimetria
inerente às relações. Para ela, é necessário pensar as relações que não são – e não visam a ser –
exatamente entre pares iguais, tomando a disparidade como resposta, a partir de um lugar de
autoria, subvertendo o termo autoridade - muito presente, na cultura hegemônica, no sentido
de autoritarismo, de hierarquização -, propondo que há assimetrias no laço, que uma mulher
mais velha, por exemplo, tem uma certa autoridade advinda da sua experiência, em relação às
mais jovens, assim como as mais jovens oferecem também suas qualidades, seu vigor, mas o
importante é que as diferenças existentes visem à autoridade e que não resultem em relações de
poder. Logo, tem-se autoridade como confiança, deslocando-se a autoridade para o campo da
autoria, do que tem de particular que autoriza aquela mulher a um lugar de autoria, promovida
pela sua experiência, sustentando uma assimetria sem ser pela via do apagamento da diferença
nem de uma hierarquia que produza poder, obediência, violência; desse modo, autoridade
incidida de autoria70.

70
Nesse sentido, podemos encontrar no livro A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os
discursos ocidentais de gênero, uma aproximação interessante com o respeito à ancestralidade, na cultura iorubá.
Nela, antes da colonização pelo Ocidente, as categorias homens e mulheres eram inexistentes, e a reverência pelos
‘antigos’ era altamente valorizada, não como hierarquia, mas como autoridade do saber ancestral (OYĚWÙMÍ,
2021). Retomaremos essa ideia no Capítulo dedicado a Lélia Gonzalez.
143

Assim, Muraro, parte do escrito O que é authority, de Hannah Arendt (1987), para
positivar a noção de autoridade, para além da chave conservadora que limita autoridade a
autoritarismo. Ela se propõe a repensar política, sua tese acompanha o pensamento do
feminismo da diferença, apoiado na diferença sexual, como forma de repensar a subjetividade
segundo uma ontologia da diferença, colocando como ponto central a liberdade feminina e as
práticas que constroem essa liberdade. Liberdade enquanto ato. Trabalhando a tensão existente
entre autoridade, poder, de uma forma distinta de modo como é pensado hegemonicamente.
Muraro propõe repensar a liberdade via política. Para ela, o pensamento é uma ação
necessária, logo, é ato, é política.
Assim, se, por um lado, oriento-me partindo do feminismo como política que supera a
diferença sexual e coloca-se como práxis que visa a acabar com a lógica que faz das diferenças,
sejam elas quais forem, uma forma de opressão, por outro lado, reconheço a importância desse
feminismo que repensa a subjetividade segundo uma ontologia da diferença, tomando como
ponto central a liberdade e suas práticas.
Muraro, assim como outras feministas dessa vertente, discorre e escreve sobre as
mulheres numa outra perspectiva, produzindo conhecimento no campo científico a partir do
ponto de vista feminista, das mulheres feministas. Essa outra perspectiva concebe uma
epistemologia que se distancia do conhecimento produzido pelos teóricos homens, como vimos
antes, reconstruindo o lugar das mulheres na cultura e no misticismo cristão e propondo uma
autêntica identidade da diferença não em relação aos homens, mas uma identidade que pode
ser inventada e transmitida por mulheres, tanto nesse lugar da construção de conhecimento
acadêmico, como valorizando os saberes transmitidos entre as mulheres, em processos orais,
ou, ainda, de determinados conhecimentos vinculados ou não ao cuidado de si e de outros.
Assim, valorizar a diferença e o exercício da liberdade como prática política alinha-se a
essa vertente do feminismo da diferença, considerando que a prática política se dá em ato, e
isso não é sem o corpo. Valorizar a liberdade e a autoridade, elevando o estatuto do corpo da
mulher e suas potencialidades.
Por isso, pensar a diferença sexual a partir da Luce Irigaray é analisar de maneira crítica
o lugar inventado para o corpo da mulher e a ele destinado, pela hegemonia vigente que, por tal
via, atribui a esse corpo o status de mercadoria, resgatando como são negócios de homens todos
os sistemas de trocas organizados pelas sociedades patriarcais e todas as modalidades de
trabalho produtivo reconhecidos e valorizados nelas. E, muito importante, denunciando o papel
dos homens nesse constructo que reserva à mulher o lugar de propriedade de um homem, até
mesmo no fato de que, quando um homem compra uma mulher, é ao pai dela ou ao irmão que
144

ele “paga”, e não à mãe, ou seja, eles passam sempre de um homem a outro homem, de um
grupo de homens a outro grupo de homens (IRIGARAY, 2017).
Irigaray, herdeira de Beauvoir, assim como Rubin (1975), vai denunciar esse “mercado
de mulheres” (IRIGARAY, 2017, p. 192), destacando o valor de produto do corpo feminino
como relacionado ao trabalho do homem, seja o pai da noiva, seja o marido, ou as novas
configurações criadas para manter esse status quo, a ideia de que a mulher é “naturalmente”
dominada e moldada pela cultura masculina. Por isso, suas sucessoras ou as vertentes feministas
que partiram das elaborações de Irigaray irão construir e defender uma cultura feminina escrita
por mulheres.
Em meio a todos os aspectos que emergem dessa reacomodação e apropriação do corpo
pelas próprias mulheres, sobressai o questionamento em relação a seu modo estático e fechado.
Nesse sentido, para Irigaray, a corporeidade feminina instaura uma ruptura na lógica patriarcal,
por ampliar e pluralizar contornos, de tal modo que ela produz uma quebra na presunção de
enumerar tudo, nessa tentativa de transformar tudo em unidade.
Daí ocupar a linguagem, produzindo conhecimentos que não busquem o fechamento, de
modo a fazer da écriture féminine, a escrita de autoria feminina, uma subversão do corpo
imaginado e teorizado pelo patriarcado. Assumindo, assim, a premissa de que a experiência de
gênero determina a compreensão do mundo, à medida que enquadra subjetividades e corpos e,
por consequência, modifica a relação com tudo que nos cerca, pelo posicionamento que atinge
de maneira diferente cada sujeito. Daí a importância de construir e fazer circular produções
literárias que não estão alienadas do discurso de mestria, mestria que se orienta sustentando o
masculino como universal e a mulher como Outro, para, finalmente, evidenciar as
peculiaridades que marcam a autoria feminina.
É desse modo que Hélène Cixous (1976), em seu artigo Le rire de la Méduse, reivindica
e revaloriza o corpo feminino, por parte das mulheres, via uma escrita que subverte as amarras
do discurso dominante patriarcal.
Destarte, destacamos essa orientação que desorganiza e esvazia a consistência do
funcionamento masculino, que tem seu desenvolvimento sedimentado na linguagem, daí essa
tentativa de ruptura que propõe a autoridade das mulheres sobre si mesmas. Uma outra
corporeidade feminina, herança produzida por Irigaray (IRIGARAY, 2017, p. 39-40).
Analisando, assim, como a trama das relações políticas são meras fachadas – ou, como
costumamos dizer na Psicanálise, meros semblantes – limitando a questão de quem manda sobre
quem; de quem pode produzir conhecimento; de quem fala e quem é falado. Estigmatizando e
reduzindo as possibilidades de lugares nas relações sociais.
145

A democracia parte de um certo universal, que se constrói a partir do homem branco,


hétero e cisgênero, que só reconhece como igual aquele que ele vê e compreende como seu
semelhante, numa ‘cola’ identitária. Assim, apontamos a urgência de interrogar outras formas
de laço social, que não promovam essa alienação e redução ao discurso dominante.
Por isso, um passo a mais, buscando uma diferença que não precisa ser entendida como
impasse, limite ou algo a ser apagado, pelo contrário, é pela via da diferença, em seu sentido
mais amplo, que podem surgir atuações distintas diante da complexidade que são as
subjetividades, os povos, e isso permite enxergar caminhos e possibilidades de maneira mais
ampla e sagaz, desembocando em decisões mais igualitárias, sem o apagamento das diferenças.
Ou seja, a paridade e a autoridade são pensadas como diferença, e essa é uma visão não
colonizada. O bem comum só pode ser operado pela diferença entre as pessoas e não como
igualdade que conduz e impõe uma homogeneidade. É assim que Muraro orienta sua tese, a
partir dos estudos feitos com aldeias andinas (MURARO, 1992).
Enfim, a busca é por construir conhecimento que inclua outros protagonismos, que não
seja somente algo pensado pelo homem, não para que as mulheres engendrem conhecimento
visando a criar uma categoria universalizante das mulheres, mas tendendo a modificar as
estruturas em ato, ocupando um outro lugar, capaz de produzir outros saberes.

4.4 Repensar o feminismo com Fina Birulés: liberdade, diferença e fazer político

[...] quizá ese secreto sea el que algunas feministas


han llamado ‘diferencia, y lo que pone en juego esa
diferencia es justamente la posibilidad de
singularizarse, la posibilidad de que haya diversas
formas de feminidade nun espacio común
(BIRULÉS, 2015, p.41).

Birulés, como professora de Filosofia, fundou em 1990, na Universidade de Barcelona,


o seminário Filosofia e Gênero. Sua contribuição para o feminismo estabeleceu-se no campo
acadêmico, ao investigar e resgatar obras de filósofas - até porque, apesar de muitas vezes
tratarem como se fosse consenso a escassez de mulheres no campo do pensamento, na verdade
nem sempre o apagamento aconteceu a ponto de impedir a construção de “saberes”; na verdade,
o silenciamento aconteceu na transmissão desses saberes, no discurso vigente, ao modelo do
discurso universitário, transmitindo-se o saber como agente, ocultando-se sua origem, fazendo
do sujeito um produto, o campo do Outro como objeto mais-de-gozar.
Por isso, pensar sobre a produção de conhecimento construído por mulheres é essencial
146

para compreender que houve, sim, produção de conhecimento, o silenciamento está localizado
na não transmissão dele, e não na falta de tal produção, nos vários campos do saber.
Vou incluir aqui um chiste que dá corpo a esse silenciamento da transmissão e não à
ausência de protagonismo. Na anedota (sem autoria), Joana D’arc diz: “bora fazer coisas de
mulheres, tipo salvar a França dos ingleses”; Maria Quitéria responde: “ou lutar contra os
portugueses pela independência”; eis que Marie Curie fala: “Peraí, deixa só eu guardar meu
Nobel de Física e Química...”; e Cleópatra: “Governar o Egito, e ‘pegar’ César”. Por fim, Anita
Garibaldi diz: “Lutar na revolução Farroupilha, na Batalha dos Curitibanos e na Itália também
conta?”.
Historicizar o protagonismo das mulheres daria todo um trabalho à parte, por isso recorri
a essa anedota para exemplificar como e onde se localiza o apagamento do protagonismo das
mulheres na história. Tal apagamento andou de mãos dadas com o lugar de interiorização das
mulheres na modernidade.
Assim, Birulés busca corrigir uma injustiça histórica, propondo, em ato, a produção de
uma filosofia feminina. A entrada por essa via é interessante porque permite pensar certos
conceitos com outros sentidos, para pegar e usar outras maneiras de utilizar conceitos
acadêmicos sem ser pela via do universal masculino.
Insisto, não pretendo defender um modelo de visão feminina, ou a categoria mulheres
como identidade universalizante, muito menos reforçar posições binárias. Como veremos, o
feminismo a que pretendo chegar, até o final deste Capítulo não tem relação alguma com
reforçar identidades, ambicionando a diferença como trampolim para uma saída coletiva rumo
à lógica não-toda.
Pois bem, para acompanhar o pensamento da filósofa catalã Fina Birulés, é
necessário, de saída, compreender que a forma como ela pensa as diferenças se dá a partir de
assimetrias que não visam a hierarquias, e essa é também a ideia central que trago aqui. Nesse
sentido, as diferenças não cabem em relação a alguma coisa, e, sim, falamos de uma diferença
que pode ser pensada como íntima ou inerente, abarcando certa singularidade, para que não caia
em uma redução que transforme a diferença em identidade dentro do arcabouço da identidade
de gênero. Só assim é possível construir uma margem de liberdade para as mulheres. Como
notaremos a seguir, ela descreve liberdade como singularidade.
Claro que se faz necessário manter os avanços no campo dos direitos, uma vez que não
há liberdade dos corpos e ações, sem esse respaldo e reconhecimento social, mas há uma
distinção naquilo que essa autora chama de liberdade, que não passa somente pelo “direito de
ir e vir”, ou por uma equivalência na qual as mulheres possam ter a mesma liberdade dos
147

homens, mas, sim, por uma diferença que é de outra ordem, por isso ela vai entrelaçando
liberdade e singularidade.
Já não temos mais um feminismo que pensa só nas mulheres, mas um feminismo que
luta pela diferença. Uma diferença que não seja hierarquizada, que não permita estabelecer
parâmetros de comparação entre dois ou mais. Não se trata de criar oposição ou relação entre o
diferente e o mesmo, mas trata-se do encontro de diferentes diferenças.
Um dos grandes panos de fundo dessa discussão é a crítica ao binarismo que, instaurado
pelo patriarcado, divide o mundo em dois: um dominador – o masculino, e um dominado – o
feminino. Ou um ativo e outro passivo, um forte e outro frágil. A crítica a esse binarismo, o
qual é fundante na história ocidental, vai originar um efeito dominó em outros binarismos
totalitários do Ocidente, como natureza/cultura; verdadeiro/falso; razão/sensibilidade.
A própria diferença entre os sexos foi tecida por essa via, assim como o binarismo entre
natureza e cultura:

[...] todo ello nos recuerda que la contraposición natureza-cultura ha dejado


de tener un sentido claro [...] y que tanto el construccionismo social y cultural
como la defensa de una feminilidade o de una masculinidade como atributos
orgânicos o naturales son herramientas deficientes (BIRULÉS, 2015, p.85).

Fina Birulés dialoga com diversas pensadoras e inspira-se em Virginia Woolf, para
lançar o pensar político via feminismo, em uma perspectiva de entreato, esse espaço de fronteira
entre ação e pensamento, da reflexão que não é sem ação: pensar é fazer.
E isso que a autora trabalha, para mim, parece muito estar em ressonância com a
Psicanálise e a noção de ato analítico.
Desse modo, ao longo dos seus textos, ela conduz o leitor a um dentro-e-fora da tradição
filosófica:

[...] la palabra entreactos, que encabeza estas líneas de presentación, indica los
intervalos de tiempo durante los cuales queda interrumpida la ejecución de un
espectáculo o los momentos de pausa entre dos actos de una representación
teatral. Los entreactos son aquellos tiempos en que parece que no pasa nada
esencial, pero es en ellos donde no se recita un texto ya preparado, que
encontramos posiblemente la verdadera historia (BIRULÉS, 2015, p.11-12).

Um ponto em que a autora se debruça a cotejar são os termos relacionados às questões


de gênero: igualdade, desigualdade, identidade, diferença e liberdade. Ela toma como ponto de
partida o fato de que, quando se fala em política feminista e/ou de gênero, usam-se sempre os
148

termos igualdade, no singular, e diferença, no plural, havendo sempre uma associação entre
esses dois termos. Ela vai desconstruindo isso e mostrando que o fazer política passa por outros
sentidos, ao mesmo tempo em que denuncia o binarismo epistemológico que marca todo o
campo científico. A partir do seu percurso filosófico, sinaliza que o contrário de igualdade é
desigualdade, e o contrário de diferença é identidade, portanto é preciso ter essas noções para
avançar e entender o porquê de ela problematizar essa questão por meio da liberdade, pois
liberdade tem relação com a capacidade de diferenciar-se, de singularizar-se.
Para isso, faz-se necessário questionar o suposto universal que produz o pensamento
dualista, binário, que tem por consequência a exclusão das diferenças, tentando a qualquer custo
deixar de fora as singularidades que não são compreendidas pela tradição fálica, patriarcal e
hegemônica.
Desde o surgimento da modernidade, há algo sobre as mulheres que fica sempre em um
certo campo nebuloso, não compreensivo. Especialmente porque as elaborações científicas
escritas sobre as mulheres foram feitas por homens, a partir de seus referenciais.
Por isso, quando falamos de atentados contra a liberdade feminina ou de o controle dos
corpos das mulheres, não se trata necessariamente de discriminação ou desigualdade; sabemos
que, no âmbito civil, a conquista por direitos é fundamental, mas não é suficiente para assegurar
a liberdade. Ainda mais considerando-se que aquilo que circula nas civilizações privilegia o
masculino, fazendo do homem uma espécie de universal, o que não é sem consequências no
laço social e, nesse sentido, é importante que as lutas feministas possam questionar esse
particular do homem que se impõe como um universal, que se supõe ou se pretende neutro,
como se aí já não houvesse uma identidade, só porque esta não é nomeada enquanto tal.

Se puede considerar que, en buena medida, el poder subversivo y el


significado histórico de las luchas feministas han consistido, entre otras cosas,
en haber puesto el eje en los efectos turbadores de las paradojas. A modo de
ejemplo podemos pensar en los derivados de la proclamación de la
universalidad de los derechos, una proclamación que, a pesar de su enunciado,
durante siglos ha excluido a la mayoría de la humanidad. Otra muestra
poderíamos encontrarla em la crítica de la utilización del concepto de Hombre
que, a pesar de sus pretensiones de neutralidad, tiene única y exclusivamente
las características del masculino. Es decir, se trata de un concepto
paradójicamente abstracto y terriblemente concreto a la vez (BIRULÉS, 2015,
p.18).

Acostumamo-nos a pensar que liberdade para as mulheres poderia ser o mesmo que
poder se igualar aos homens, poder ocupar os mesmos espaços dessas relações que já estão pré-
estabelecidas, incluindo, assim, as mulheres nesse “universal”, mas não é isso. Por isso mesmo,
149

é fundamental a participação na construção do fazer político, para além da igualdade nos


direitos, já que igualdade de direitos não é necessariamente o que assegura a liberdade feminina.
E não assegura a liberdade o fato de “que una de las paradojas del discurso político del
feminismo radica en el hecho de producir la miesma diferencia que aparentemente busca
questionar” (BIRULÉS, 2015, p.18). Em outras palavras, é pensar e construir uma sociedade
na qual essa diferença não seja apagada; é pensar e ocupar essa pauta das mulheres e da política
de um modo que assegure às mulheres o seu “direito” a feminilidades, ou ao que elas quiserem;
é realizar que cada uma possa construir o que é feminilidade, de tal forma que isso não
represente um rebaixamento; é produzir nesse campo político um lugar para o exercício da
liberdade feminina. Nesse sentido consideramos também as mulheres trans, não-binárias ou os
gays que se identifiquem com o traço considerado feminino. Diferentemente de outras
pensadoras que veremos adiante, Birulés considera a diferença entre os sexos, mas acredita que
é possível desatrelar essa diferença das armadilhas de gênero, pretendendo, assim, um lugar
político que não apague a “reclamación política de paridad pretende, de hecho, el uno sin
destruir el dos, la unidad sin eliminar la dualidad de los sexos” (BIRULÉS, 2015, p.19).
Adianto uma questão importante: desse modo, deixaríamos de fora as questões trans?
Como sair do binarismo e da heterossexualidade compulsória?
Para a psicanalista Ritheé Cevasco (2010), usar a expressão discordância entre os sexos
faz-se necessário, à medida que ela considera e enfatiza que há uma discordância que deve ser
acolhida politicamente e não excluída do fazer político. Mas, então, como pensar as diferenças
entre os sujeitos sexuados, e suas discordâncias, sem cair necessariamente no binarismo
homem/mulher? Sabemos que há algo do sexo que é intraduzível, de tal modo que pensar por
essa via é compreender a discordância, escapando das armadilhas binárias estabelecidas pela
cultura.
Ainda segundo Fina Birulés, as feministas da década de 1980 trabalharam muito para
evidenciar que igualdade de direitos é essencial, porém a condição de ter direitos civis não
produz, necessariamente, liberdade feminina em nenhuma esfera. Por consequência, ela aponta
a importância de pensar para além dos direitos, algo que assegure o “direito” ao exercício das
diferenças, constando a dificuldade de pensar um único termo que defina “a mulher”
(BIRULÉS, 2015).
Por isso o paradoxo: qualquer identidade normativa que diga sobre a mulher será
necessariamente excludente, já que desde os anos 1980, as feministas, seja na militância ou na
academia, constroem o feminismo incluindo as diferenças existentes entre os seres falantes,
apreciando todas as diferenças possíveis. As particularidades não podem ser deixadas de fora:
150

das mulheres heterossexuais, das mulheres bissexuais ou das lésbicas, das mulheres trans, das
mulheres que querem ser mães e das que não querem ser, devem-se considerar as diferenças
sociais e econômicas, diferenças causadas pela racialização ou etnias, diferenças geográficas
que impõem dificuldades ou permitem privilégios, e assim por diante.
Acrescento não se tratar somente de diferenças mensuráveis, embora tais diferenças
também sejam fundamentais para os avanços no campo social.
Caracterizando-se que reconhecer e acolher as diferenças não visa a excluir, por
exemplo, os direitos à igualdade política - como salários iguais, quando a função é a mesma -,
e ao acesso a uma educação de qualidade, ou o direito de ir e vir, sem que, para isso, a sociedade
queira normatizar e controlar os corpos e a sexualidade das mulheres. Ou seja, não se trata de
renunciar às conquistas por direitos, pelo contrário, é avançar um passo a mais, é um mais-além
das conquistas por direitos civis; de modo que assegurar as conquistas por direitos é basilar para
que a liberdade feminina possa ser instituída: igualdade de direitos sem excluir as diferentes
diferenças.
Como propôs a revolucionária Rosa Luxemburgo (s.d.), que vai dizer, ao apostar em
uma revolução internacional de classes: “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo
um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?” e também
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
De tal modo, pensar as diferenças no campo político é presentificar conflitos e
desacordos. Birulés empresta do filósofo francês Jacques Rancière o termo desacordo, já que
sempre haverá um conflito de entendimento entre quem propõe algo e o seu interlocutor. Ainda
que se utilizem as mesmas palavras, haverá um desacordo sobre a significação – e acrescento,
que dirá sobre o significante –, então não é algo que se explica mais uma vez e estará resolvido,
não caberia buscar o último entendimento das coisas mas, sim, sustentar o desentendimento
como possibilidade, ou os limites do conhecimento: já que esse conflito faz parte do engodo,
ele se manterá presente, o desacordo insiste.
As mulheres continuam carecendo de políticas públicas, de acessos e serviços, e a autora
denuncia que não se trata de um não-saber dos homens a respeito da precariedade da vida das
mulheres, de todas as suas carências: exploração dos corpos, sobrecarga dos serviços
domésticos, da violência machista exercida de várias formas. Birulés afirma que, pelo contrário,
eles, os homens, em geral, são bem conscientes e fazem o que é necessário para manter seus
privilégios. Por isso, não há possibilidade de pensar as mudanças sem ser pela via do conflito.

Como ha dicho Rancière, la politica existe cuando el ordem de la dominación


151

es interrumpido por “la institución de una parte de los que no tienen parte.”
La politica no nace como propuesta de organización, sino como la apertura de
un litigio sobre cada reparto y su ordenación (BIRULÉS, 2015, p.22).

Evidenciando-se que o modelo de civilização que conhecemos busca eliminar ou reduzir


ao máximo as diferenças, uma cidadania homogênea não está no horizonte das feministas da
diferença, é a equidade que se presentifica como um valor fundamental para o exercício da vida
pública, na contramão das tentativas do silenciamento que é produzido pelo discurso dominante,
que busca rechaçar aquilo que não reconhece como idêntico a si.
Daí a importância dos saberes femininos que as feministas produzem, defendem,
sustentam e fazem circular. Vale ressaltar que, quando falamos de cultura feminina silenciada
isso não diz sobre a não produção de uma cultura feminina, seja ela nas artes em geral, na
música, na literatura, na construção e elaboração de pensamentos científicos e filosóficos, e sim
sobre a não-circulação, historicamente, dessas produções.
Resguardar a diferença no campo político é produzir e sustentar um movimento
imaginativo que inclua os vários saberes, as diferenças, um mundo possível que contemple a
diversidade como riqueza de uma comunidade; a utopia está aí, para que as mulheres que se
destaquem em alguma área não sejam vistas ou tratadas como exceção, mas sim “para sentirse
una misma como portavoz de una comunidad possible y no como una exiliada solitaria de la
comunidad existente” (BIRULÉS, 2015, p.24).
Entendendo que, para a autora, o termo comunidade não trata de um grupo homogêneo,
mas sim de um espaço que possa acolher os conflitos, no qual caibam discordâncias, diversas
narrativas, e no qual , ainda assim, as relações possam ser possíveis. Em certa medida, isso
passa por apostar em novas formas de estar no laço, mas não em uma inversão de papéis ou
equivalências que apaguem as diferenças, ou que as capturem, reduzindo-as a novos grupos de
identidade. Não é disso que se trata.
É preciso apostar em novas formas que ainda não estão postas. “No hay que olvidarlo,
no se puede inaugurar un mundo nuevo sin formas nuevas, sin palavras nuevas” (BIRULÉS,
2015, p.28). Sustentar essas diferenças sem a pressa de já se enquadrar em um novo grupo, em
um círculo de captura de identidades.
Outro argumento importante que Birulés apresenta para amparar sua tese é o de que
igualdade e direitos não asseguram a liberdade, agora especificamente falando em liberdade de
corpos. É só tomar como exemplo os países que avançaram nas questões sobre os direitos civis
mas onde, mesmo assim, a misoginia e a violência persistem, indicando que o ordenamento
jurídico pode tipificar o crime de agressão contra as mulheres e, ainda assim, isso não afiança
152

a segurança delas. E até no campo discursivo, essa violência se sustenta, ainda que haja leis que
supostamente deveriam assegurar o contrário.
Trazendo tal questão para a realidade brasileira, podemos observar que, desde 2006, foi
sancionada a Lei Maria da Penha71, depois de muita luta dos movimentos, e, ainda assim, o
número de agressões a mulheres e de feminicídios não diminuiu, pelo contrário. Há inúmeros
relatos e matérias de jornal que mostram que, ainda que haja a lei, em muitos casos, há uma
distorção em relação à sua aplicação, como, por exemplo, na situação em que delegados ou
juízes indagam sobre o que a mulher teria feito para provocar a violência, ou sobre a roupa que
ela usava no ato em que ocorre a violência, como se isso pudesse justificar a agressão ou
tipificá-la como crime de menor importância. Para a juíza Adriana Mello, a Lei do Feminicídio
(Lei 13.104/15), implementada somente em 2015, pela primeira presidenta eleita no Brasil,
tipifica o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o Art. 1º da
Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Tal lei
apoia a discussão e o combate à violência: “Se o feminicídio não existisse como categoria
analítica, não se conseguiriam coletar dados, implementar políticas públicas. Nomear o
fenômeno dá corpo, torna-o visível, concreto” (MEDEIROS, 2017), discorre a magistrada,
fazendo um paralelo com o crime do estupro coletivo, que ainda não é entendido como uma
categoria: “O estupro coletivo está no imaginário da população, está nos jornais, mas não existe
como categoria analítica judicial”72 (Ibidem).
Mesmo já com a Lei do Feminicídio, em outubro de 2020, a primeira turma do Supremo
Tribunal Federal (STF) absolveu um homem que tentou matar a ex-mulher a facadas sob
alegação de “legítima defesa da honra”. Ele já havia sido julgado, em 2017, e absolvido por
unanimidade, segundo o seu advogado na época:

Ela era a mulher dele e estava fazendo sacanagem com ele. Não tinha

71
No ano de 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte do seu marido Marco
Antonio Heredia Viveros. Primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia. Como resultado dessa
agressão, Maria da Penha ficou paraplégica, devido a lesões irreversíveis na terceira e quartas vértebras torácicas,
laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda – constam-se ainda outras complicações
físicas e traumas psicológicos. O caso foi levado à Justiça inúmeras vezes, mantendo-se a cada vez a impunidade,
foi então que, em 2001, e após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001) − silenciando diante das
denúncias −, o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica
praticada contra as mulheres brasileiras. Assim, em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sancionou a Lei n. 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006).
72
Para a juíza, as mulheres ainda enfrentam dificuldades ao tentar denunciar as agressões que sofrem. “Se não
denunciam, sofrem a violência sem o amparo do Estado. Se denunciam, vivem sob a ameaça de represália. Mesmo
quando vão às delegacias, as mulheres são desencorajadas a denunciar. Perguntam: ‘Você quer mesmo fazer a
denúncia?’. E ela ressalta que a Lei Maria da Penha possibilita combater as violências, criar ações de prevenção
via educação e fazer circular o assunto na pólis, possibilitando compreender e falar sobre essa problemática
(MEDEIROS, 2017).
153

necessidade de [ele] fazer isso. Mas fez, o que é que vai fazer? Mas ela fez um
curativo no hospital e foi embora para casa. É uma história entre marido e
mulher. Aleguei legítima defesa da honra. O sujeito confia na pessoa e ela sai
para fazer uma coisa… Ele ficou aborrecido, se sentiu desonrado
(MEDEIROS, 2017).

Embora o Tribunal de Justiça mineiro, logo em seguida, tenha anulado a absolvição por
entender como descabido o argumento de defesa da honra, o STF determinou que a decisão dos
jurados não pode ser contestada, validando, no final das contas, que a culpa da violência foi da
própria vítima.
Ou seja, por mais que haja uma Constituição e todo um aparato jurídico que institua as
leis, isso não assegura minimamente o direito das mulheres de andarem nas ruas sem se
preocuparem em ser atingidas por algo que viole seu corpo, só pelo fato de serem mulheres.
Então, pensar e construir liberdade é algo complexo e extenso, porque diz respeito à liberdade
de produção de teoria, de pensamento, de trabalho, de autonomia, de um outro modo de fazer
político, mas também diz respeito a esse lugar primordial de como é tratado o corpo da mulher.
É sua vulnerabilidade, nesse modelo de sociedade que supõe o masculino como universal;
vulnerabilidade frente às diversas violências, principalmente violência sexual, física e
patrimonial. Por isso, nesse caso exemplificado, a relevância da tipificação do feminicídio, que
não é o mesmo que homicídio, já que é um crime que se dá pela condição de ser mulher.
O avanço das lutas feministas aponta para a condução de alguma coisa “que va más allá
de esta concepción estrecha que solo considera políticas las relaciones traducibles al modelo de
relación de igualdad” (BIRULÉS, 2015, p.29). Pois bem, levantar essa questão não anula a
importância de uma emancipação política, tampouco deixa de lado a importância de lutar e
conquistar uma equiparação de direitos civis, uma remuneração ‘menos injusta’ por seus
trabalhos etc., porém questionar essa concepção estreita do conceito de igualdade é uma forma
de manter presente na discussão o lugar das diferenças, “Y recordar la fragilidade de las
conquistas de la igualdad no significa desentenderse, sino ser capaces de vérnoslas con la
liberdad, con la possibilidade de decir la diferencia sin que con este gesto se genere violência o
desigualdade” (BIRULÉS, 2015, p.28).
Assim, podemos pensar que a disparidade ou a discordância mantêm-se presentes no
laço, mas de um outro modo: continua presente a limitação da liberdade, mas não condicionada
pela diferença entre os sexos, e sim porque a limitação da liberdade ou as vulnerabilidades são
inerentes a qualquer ser falante. “La pérdida y el dolor son elementos que nos constituyen”, e
ainda, segundo a autora, “necessitamos otro linguaje, ya que no solo estamos constituídos por
154

las relaciones con los otros, sino también desposeídos por ellas” (BIRULÉS, 2015, p.32).
Em diálogo com a Judith Butler, na sua obra Vida Precária, ela aponta que todo corpo
é mortal, de tal modo que podemos lutar pelo direito ao nosso corpo, mas estes mesmos corpos
pelos quais lutamos nunca serão eternamente nossos: “O corpo tem, de modo invariável, uma
dimensão pública: constituído como fenômeno social na esfera pública, meu corpo não é meu”
(BUTLER, 2019, p.26).
Nesse sentido é interessante notar como Butler analisa tais questões em torno da
violência no campo social e como isso atinge os corpos. Para ela, aquele que aplica a violência
e a dominação deve ser responsabilizado por isso, ao mesmo tempo há algo no ‘discurso’ que
produz as condições que permitem os vários tipos de violências no campo público (mas não
só):

[...] precisamos situar a responsabilidade individual à luz de suas condições


coletivas [...] Por outro lado, esses indivíduos são moldados, e estaríamos
cometendo um erro se reduzíssemos suas ações a atos de vontade criados pelos
próprios indivíduos ou a sintomas de uma patologia individual do ‘mal’.
Ambos os discursos do individualismo e do moralismo (entendidos como o
momento em que a moralidade se esgota em atos públicos de denúncia)
presumem que o indivíduo é o primeiro elo em uma corrente acidental que
forma o significado da responsabilidade. Mas tomar os atos criados pelo
indivíduo para o indivíduo como nosso ponto de partida em um raciocínio
moral é precisamente excluir a possibilidade de questionar que tipo de mundo
origina tais indivíduos (BUTLER, 2019, p.36).

Acrescento, neste momento, a citação acima justamente para acompanhar Butler nesta
reflexão sobre o quanto os indivíduos devem ser responsabilizados, mas, ao mesmo tempo, o
quanto se faz necessário incluir na análise reflexões sobre como e em quais condições originam-
se cada ato e cada individuo, de tal modo que ela destaca a importância de pensar que modelo
de mundo origina tais indivíduos, que permite fazer da violência um método de domesticação
e dominação dos corpos, um mundo que neutraliza e naturaliza certas violências, quando são
direcionadas a corpos determinados, e como a discursividade sustenta essa lógica, esse mundo.
Daí a máxima: todo corpo é sempre político. E, como disse Birulés, necessitamos de
outra linguagem, que constitua outros laços, outras relações, outras formas de incluir o corpo,
que não sejam condicionadas pela diferença entre os sexos, ou pela racialização de alguns
corpos; edificando-se o corpo e a liberdade na esfera pública por meio de um laço, insisto, que
não faça das diferenças desigualdades, sejam elas quais diferenças forem.
E esse contexto que inclui a esfera pública vai elucidando como a liberdade política vai
além da política de Estado que, no máximo, pode avançar no que diz respeito à igualdade de
155

direitos, mas isso - como vimos no exemplo da Lei do Feminicídio ou no caso, em 2020, de
absolvição sob alegação de defesa da honra -, nem de longe garante a liberdade dos corpos e a
liberdade política, que dirá uma margem de liberdade que permita a presença de algo singular,
de uma singularidade fora do registro fálico, portanto: “podemos empezar a percibir que la
liberdad no se confunde con la igualdad; lo cual es lo miesmo que recordar que la possibilidad
de una vida pública compartida no es idêntica a una ciudadanía homogénea” (BIRULÉS, 2015,
p.34).
Assim, fazer política é justamente sustentar a tensão entre as diferenças, suportando
divergências e contingências, que permitem relações plurais; certa pluralidade permite uma
distinção, de modo que possibilita um lugar para as singularidades, no espaço público, e essa
construção política abre espaço para as reflexões sobre o feminismo, na esfera pública: “ya que
aquí la comunidad no se constituye sobre la base de una identidade previa compartida y estable
– la de las mujeres” (BIRULÉS, 2015, p.34-35). O que a teoria feminista produz, enquanto
avanço, é nesse sentido de sustentar as distinções, as pluralidades existentes, por isso uma
paridade matemática não dá conta da produção do feminismo da diferença, e daí esse alerta
sobre não confundir igualdade com homogeneidade.
Então, ser mulher e ter uma margem de liberdade não pode ser entendido como sendo o
mesmo do que ser tratada como um homem73, ou reconhecida como sendo homogênea ao
discurso dominante. Nessa perspectiva do feminismo da diferença apresentado por Birulés, é
fundamental sustentar as tensões, os desacordos, a alteridade, o que se articula perfeitamente
com pensar giros discursivos e novas ordenações que permitam as assimetrias no laço, como
vimos anteriormente.
Dito isso, falar de subjetividade feminina e liberdade é considerar a liberdade de ação,
ter controle sobre o próprio corpo,

[...] con nuestros movimentos, reales o simbólicos, y con no dejarnos


encontrar donde nos esperan: en otras palavras, la libertad se traduce en la
posibilidad de distinguirnos, singularizarnos, y de que existan diversas formas
de feminilidade en un espacio común (BIRULÉS, 2015, p. 37).

73
Ser tratada como homem, ou seja, como aquele que tem alguém do outro sexo para resolver coisas da vida
doméstica, enquanto ele cuida daquilo que é demandado na vida pública.
156

4.5 Da diferença sexual ao desenvolvimento das diferentes diferenças

Assim, é importante valorizar a potência que é incluir teses, filosofias e orientações que
fazem da diferença um contraponto ao pensamento hegemônico e oxigenam os conceitos e
pensamentos presentes no mundo. Como vimos, as autoras que partem do projeto de Irigaray
para uma construção ativa da diferença sexual contribuíram fazendo furo na produção teórica
de verdades sobre o mundo e a mulher, a partir do ponto de vista masculino. Se a Filosofia é
um discurso, um discurso de mestria, recusado às mulheres, autoras como Irigaray, Birulés e
Muraro afrontam essa recusa, ocupando esse lugar filosófico, roubando suas armas para utilizá-
las de outras maneiras, atribuindo outros significados. E insistindo na categoria mulher, para
produzir outros entendimentos e um conhecimento a partir do ponto de vista das mulheres, um
olhar que não se pretende universalizante, mas incluindo a feminilidade como enviesando a
teoria. Assim, grande parte desse esforço que vem desde O segundo sexo (BEAUVOIR, 2019)
tem sido no sentido de uma crítica à universalidade e à neutralidade da produção do
conhecimento, gerando frutos importantes no campo epistemológico, que só foram possíveis
furando a tradição filosófica, não só para furar o lugar de mestria contido em tal tradição, mas
para ir adiante, ocupá-lo e produzir novos pensamentos e sentidos.
Seria essa uma tentativa de usar as ferramentas do mestre que construíram o patriarcado,
para derrubar a casa do mestre? Tomar a diferença e produzir a partir dela é, inevitavelmente,
cair em outro simulacro de identidade que reforça a divisão sexual?
Acredito que não. É usar do que podemos extrair das diferenças para fazer disso um
trampolim para alcançar outros lugares, outras discursividades que incluem as diferenças sem
se orientar pela divisão de sexo/gênero criada como artifício de dominação. Por isso a escolha
de incluir Butler no diálogo com essas pensadoras, para refletir sobre as diferenças em
consonância com a possibilidade de superação de sexo/gênero como balizador do laço.
Se, por um lado, é importante “entrar na casa do mestre” e bagunçar suas ferramentas,
olhar as fragilidades dessa estrutura discursiva para, então, causar abalos, como possibilita o
discurso histérico como dispositivo fundamental para mudanças históricas, por outro lado,
Audre Lorde (2019) já anunciou que as ferramentas do mestre não destruirão essa lógica.
Assim, precisamos aprender a fazer das nossas diferenças a nossa força, insistindo de maneira
positiva nas diferenças como uma espécie de vantagem, ou nunca desmantelaremos a casa-
grande.

[...] as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas


157

podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas
nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína. E esse fato só é uma
ameaça àquelas mulheres que ainda definem a casa-grande como sua única
fonte de suporte (LORDE, 2019, p.137).

Por essa via, ela visa às diferenças como possibilidades de estabelecer comunidades que
não são centradas na pura identidade ou no apagamento das diferenças, portanto entendo que aí
reside um passo a mais, um caminho mais próximo ao que nós, da Psicanálise, conhecemos
como política do não-todo: “Como mulheres, fomos ensinadas a ignorar nossas diferenças, ou
vê-las como causa de desunião e desconfiança, em vez de encará-las como potências de
mudança. Sem a comunidade, não há libertação” (LORDE, 2019, p.137); em outras palavras, a
comunidade não implica descartar as diferenças.
Destacarei, a seguir, como bell hooks (1984/2020) constrói seu pensamento e se
posiciona afinada à política do não-todo, ao indicar a apropriação da fala e de outras formas de
construir política, superando o discurso histérico, produzindo aquilo que é possível via discurso
do analista, com a produção de um novo significante mestre que não está submetido à lógica de
mestria. Assim como localizo em Gonzalez (2020) a mesma operação, que toma o artifício do
discurso da histérica como passagem – ao passo que faz avançar sua militância, inclui a crítica
decolonial e outros saberes como os que abrem novos horizontes no campo político –, mas a
autora faz uso desse discurso somente como passagem, girando para o discurso do analista, a
fim de produzir um novo significante, com outros efeitos e sentidos.
Como citado ao longo dos ensaios, o pensamento contemporâneo vem questionando o
conceito de homem universal, que historicamente é fruto da modernidade e pensado a partir de
um universal masculino, branco, hétero e, preferencialmente, europeu. Essa discussão está cada
vez mais presente na academia, seja através das feministas da diferença, do feminismo negro,
interseccional, das teorias decoloniais ou pós-coloniais, mas será que é possível pensar na
universalização da diferença? Ou, no final das contas, por essa via, a cada nova diferença
apareceria uma nova identidade para fazer conjunto? Acabaria sempre se tornando um novo
particular?
Por fim, o conceito da diferença não pode ser reduzido a um nome, já que essa seria
uma operação que sempre indicaria uma nova identidade, um novo fechamento. Então, repensar
e teorizar sobre a diferença, na teoria feminista, é uma tarefa laboriosa, já que o pensamento
vigente não suporta a diferença como tal, e o tempo todo tenta capturá-la e transformá-la em
uma nova identidade, em um novo conjunto, para apreender a diferença sempre em relação a
alguma coisa; esse é o mecanismo que a cultura dominante opera para, no final, homogeneizar
158

qualquer diferença. A diferença apresentada nesta tese é de outra ordem: uma diferença que
aponta para fora de um universal, que não se permite redução, fechamentos ou universalizações.
E é assim que ela precisa ser sustentada enquanto práxis, para a abertura de novos caminhos.

4.6 A interseccionalidade e a terceira onda: outra volta, outros movimentos dentro do


movimento

A heterogeneidade entre as mulheres e o que decorre das especificidades das suas


demandas demonstram as diferenças que foram visibilizadas com os avanços dos movimentos
feministas, especialmente considerando-se a força do feminismo não branco e as questões que
ele evidencia e nomeia como interseccional, incluindo nessa seara o transfeminismo. Essa
virada feminista provocou grande levante na construção de lugares e na articulação de suas
demandas por reconhecimento legal e social, bem como na proposição de novos imaginários
políticos.
O que consolida, para mim, a extrapolação de pensar em ondas como fases consecutivas,
mas, sim, em ondas que se agitam pelo mundo todo, em vários idiomas, de inúmeras formas,
com ou sem palavras. Esse feminismo que é e só pode ser plural; que inclui as diferentes
diferenças, a partir de um outro estatuto para a compreensão das diferenças e de como
determinadas condições são interseccionais.
Há inúmeros textos que trabalham o feminismo da diferença desde os anos 1980, e a
transmissão dessas literaturas circula, ganhando cada vez mais força nos espaços acadêmicos,
bem como na militância e nas políticas públicas. Como observa Hollanda: “Há mais de trinta
anos as questões de interseccionalidade e lugar de fala são um campo de disputa importante”
(2018, p.244). Desse modo, 1981 é um ano significativo para o lançamento de diversas
literaturas sobre os feminismos da terceira onda, já que, nessa ocasião, diferentes autoras
feministas intensificaram as produções que apontavam para a importância da
interseccionalidade, como veremos - por exemplo, Glória Anzaldúa demonstra, então, como a
sororidade universal do feminismo branco emergia às custas da opressão de mulheres negras
(HOLLANDA, 2018).
Surge, assim, essa construção sobre o que é pensar a diferença, com enfoque em uma
perspectiva epistemológica da diferença interseccional, o que impulsionou um giro para a
terceira onda e no interior da terceira onda do feminismo, agitando suas bases.
Opto por privilegiar essa ramificação da terceira onda, mas vale destacar que existem
159

feministas que não se enquadram em uma onda específica, ou em somente uma pauta, podendo
atravessar as ondas e posicionar-se politicamente de maneira ampla.
Esse é o caso de Angela Davis, que, desde os anos 1960, apresenta-se como comunista
e feminista militante do movimento negro; nos 1970 alcançou notoriedade mundial, entrando
para a lista dos dez mais procurados do FBI e vendo, em 18 de agosto de 1970, seu julgamento
durar 18 meses e arrastar multidões, nos EUA e outras partes do mundo, com manifestações
transmitidas ao vivo, já naquela época, pela televisão. Ao final desse processo, depois de muita
luta e resistência, ela foi inocentada (LIBERTEM, 2014). Davis atuou no Partido Comunista,
militou no Panteras Negras, defendia os direitos das mulheres, posicionava-se radicalmente
contra a discriminação racial e social.

Figura 10 – Manifestação pública pela soltura de Angela Davis, em Boston, EUA.

Fonte: Nick DeEolf (1971).

Desse modo, ela é comunista e abolicionista e, por isso mesmo, não acredita na reforma
prisional, por saber que o sistema prisional atual é extensão das antigas senzalas, localizando o
modo operante do sistema escravocrata contemporâneo, enquanto um complexo industrial de
prisões, no qual homens e mulheres pretos e pardos são jogados (DAVIS, 1981/2016).
Angela Davis torna-se uma referência importante, tanto pelos seus aportes intelectuais,
como pela sua militância. Em 1981, ela publica Mulheres, raça e classe, reunindo treze ensaios
160

que fundamentam as origens das lutas feministas e antirracistas com base no materialismo
histórico, no método dialético, influenciada pela Escola de Frankfurt e por uma ampla pesquisa
sobre os sujeitos escravizados, a que se somaram sua prática política e sua experiência
acadêmica74.
Davis estabelece um importante panorama histórico e crítico das imbricações entre a
luta anticapitalista, a luta feminista, a luta antirracista e a luta antiescravagista, passando pelos
dilemas contemporâneos da condição feminina. Com isso, evidencia, por exemplo, como o mito
da mulher feminina e frágil foi construído apenas para operar a exploração da mulher branca,
já que a mulher negra era uma espécie de animal de carga cujo poder físico não destoava nem
um pouco do de qualquer homem negro. Além disso, a mulher negra era tratada como
reprodutora, como uma parideira, renovando, assim, a força de trabalho para o sistema
escravista sem, entretanto, merecer nenhum tipo de descanso, nem mesmo durante a gravidez,
evidenciando que o trabalho externo sempre foi – e é - uma realidade na vida das mulheres
negras (DAVIS, 1981/2016).
De todo modo, esse aspecto da mulher como provedora de mão de obra vai além da
mulher negra, pois essa sempre foi, também, a realidade das imigrantes, e compreendemos que
a mulher como reprodutora estendia-se igualmente às mulheres brancas, como parideiras que
deviam reproduzir para garantir a linhagem do senhor ou do seu marido.
A feminista marxista Silvia Federici, endossa tais questões, ao formalizar sua tese sobre
o movimento de libertação das mulheres e todo processo de dominação sofrido por elas. Sua
obra Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação privada (2004/2017) denuncia como se
realizou “o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados – que trabalham
nas cozinhas, nos campos, nas plantações, cuja exploração foi naturalizada, creditada a uma
inferioridade natural” (FEDERICI, 2004/2017, p.13). Calibã e a Bruxa desmistifica a natureza
democrática da sociedade capitalista, apontando o paralelo entre as caças às bruxas de
antigamente e como isso se mantém na atualidade.
Outra feminista que apontou para novas contradições e novas polêmicas intrínsecas ao
feminismo dos anos 1980 foi Audre Lorde, que, em 1984, publicou Sister Outsider, anunciando,
já no título, uma provocação e denunciando a posição complexa de ser uma irmã do movimento
e, ao mesmo tempo, uma estranha. Sister Outsider são escritos, ensaios e palestras em que

74
Na Universidade de Brandeis, Davis foi aluna de Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo alemão da Escola de
Frankfurt, refugiado nos Estados Unidos desde a década de 1930, em razão de sua origem judaica. Marcuse era
um intelectual muito admirado pela esquerda universitária estadunidense, nos anos de 1960, tendo, inclusive,
participado ativamente dos protestos estudantis que surgiram na França e ecoaram no mundo todo, em maio de
1968.
161

Audre Lorde apresenta-se como mulher negra, lésbica, mãe, vivendo uma relação inter-racial e
trazendo para a cena toda a complexidade de carregar essas várias identidades desqualificantes,
vindas do sujeito dominante do discurso hegemônico, ao relatar como a sua experiência diária
lhe forçava a se deparar com o machismo, sexismo, racismo, classismo, enfrentando questões
que o feminismo branco não considerava, nas suas discussões e construções. Por isso mesmo,
Lorde diz que mulheres como ela não podiam se dar ao luxo de escolher lutar contra um único
tipo de opressão, já que as combinações e sobreposições impostas são inseparáveis. Desse
modo, para as pensadoras da interseccionalidade, não faz sentido pensar as opressões de gênero,
raça e classe, separadamente, na sociedade capitalista. Lorde vai dizer:

Certamente existem diferenças muito reais entre nós, com relação à raça, idade
e sexo. No entanto, não são essas diferenças que estão nos separando. É, antes,
nossa recusa em reconhecê-las e analisar as distorções que resultam de as
confundirmos e aos efeitos dessas distorções sobre comportamentos e
expectativas humanas. Racismo, a crença na superioridade inerente a uma raça
sobre todas as outras, e, portanto, o direito à dominância. Machismo, a crença
na superioridade inerente a um sexo sobre o outro, e, portanto, dominância.
Etarismo. Heterossexismo. Elitismo. Classismo (LORDE, 2019, p.142).

Ainda, nesse preciso levantamento sobre as feministas que, ao longo da história,


contribuíram muito para o enfrentamento do discurso hegemônico, a partir desse período, vale
incluir o nome da Patrícia Hill Collins, pois é ela que aprofunda o debate sobre a não separação
entre gênero, raça e classe. Em diálogo com outras pensadoras do feminismo negro,
principalmente Angela Davis, Audre Lorde e Alice Walker, essa autora vai mostrar como as
mulheres negras ocupam posições marginalizadas, devido à natureza conexa das opressões.
Para ela, é fundamental pensar como essas conexões estão articuladas e, identificando que há
algo na relação de poder que inclui o saber, ela vai dizer que é fundamental às mulheres negras
pensarem, produzirem e transmitirem suas teorias sobre o mundo e sobre si, difundindo sua
visão de mundo do “ponto de vista de e para mulheres negras” (COLIINS, 2016, p.101).

Quando mulheres negras definem a si próprias, claramente rejeitam a


suposição irrefletida de que aqueles que estão em posições de se arrogarem a
autoridade de descreverem e analisarem a realidade têm o direito de estarem
nessas posições. Independentemente do conteúdo de fato das autodefinições
de mulheres negras, o ato de insistir na autodefinição dessas mulheres valida
o poder de mulheres negras enquanto sujeitos humanos (COLIINS, 2016,
p.104).

Definir a si própria é um lugar de intelectualidade, é deslocar os significados que fixam


162

posições no laço social. No âmbito da língua, esse saber produz mudanças, mudanças que, por
sua vez, produzem deslocamentos políticos. Por exemplo, era – e ainda é – muito comum
encontrar diversas literaturas referindo-se ao povo africano como povo escravo; hoje, depois de
pequenos avanços, não é mais entendido e aceito usar o termo escravos dessa maneira: para
dizer de fenômenos históricos de opressão de um povo contra o outro se diz escravizado,
deslocando a fixidez do termo que provocava uma redução cheia de efeitos sociais. Outro
exemplo que acompanha esse mesmo sentido é reduzir o continente africano como sendo uno,
quando, na verdade, abarca diversos povos, diferentes características e formas de organização,
várias línguas, bem como inclui as mais diversificadas formas de cultura. A serviço da
“desumanização”, operada na modernidade, são produzidos e reduzidos uma homogeneização
e um apagamento dos saberes de vários povos, a fim de justificar a barbárie, ou melhor, de não
reconhecer a barbárie praticada em nome “da civilização”.
Como vimos, o atrelamento entre gênero, raça e classe, já estava sendo analisado e
trabalhado por diversas mãos, mas foi em 1987 que a acadêmica, advogada e ativista Kimberlé
Crenshaw finalmente formalizou e introduziu conceitualmente a noção de interseccionalidade.
Ela disserta sobre o conceito de interseccionalidade, no Fórum Legal da Universidade de
Chicago, explanando como acontece a intersecção entre as formas de exclusão e opressão.
Intersecção é um termo matemático, usado quando algo pertence a dois ou mais
conjuntos ao mesmo tempo. Não é do campo da união, no qual a soma forma outra coisa; a
intersecção não é da ordem do ou – ou é uma coisa ou é outra coisa – e sim da ordem de como
as coisas relacionam-se, em dois ou mais campos distintos, que coexistem e se interseccionam.
Esse conceito matemático torna-se fundamental para pensar a condição das mulheres e toda a
problemática construída pelo feminismo nas periferias do mundo. Assim, faz-se necessário
debater a questão das mulheres negras e também como gênero, raça e classe relacionam-se,
agravando as condições exploradoras e exploratórias dessas mulheres. É um conceito para
trabalhar as questões referentes às mulheres negras no laço social, incluindo também as
mulheres indígenas, as imigrantes, bem como outras situações e/ou múltiplas exclusões
destinadas às mulheres, nos discursos, de maneira meticulosa.
163

4.7 Grada Kilomba e o arado para ocupar o lugar de saber

Grada Kilomba tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe. Nascida em Lisboa, é
pesquisadora, escritora, estudiosa de Psicologia e Psicanálise, e comunga com as leitoras de
Fanon e hooks. A partir desses autores e da sua experiência pessoal, escreve Memórias da
Plantação: episódios de racismo diário (2018), resultado de sua tese de doutorado, em Berlim,
durante cujo processo articulou sua experiência de intelectual negra e os diversos
atravessamentos que permeiam sua experiência na sociedade, na condição de mulher
racializada. Nesse livro, Kilomba apresenta de que forma a combinação de duas palavras -
plantação e memória - descrevem o racismo cotidiano, ao qual o negro é sempre subordinado,
colocado no lugar de objeto e não de sujeito. Como estudante negra em Berlim, sentia na pele
o que Fanon chamou de “a experiência vivida do negro”: enquanto a experiência de Fanon, em
solo francês, remetia a um “Mamãe, olha um preto, estou com medo” (FANON, 2008, p.105),
na experiência dela isso aparecia de maneira um pouco diferente mas recorrente, tanto pela
dificuldade imposta pela universidade, no início de seus estudos – de modo diferente de como
acontecia com seus colegas brancos –, quanto pela maneira como era deslegitimada, ao circular
na universidade, sendo tratada e ‘confundida’ como se estivesse ali para servir, como se esse
fosse o único lugar possível para uma mulher negra, em uma universidade europeia; ou, mesmo,
quando tinha o seu conhecimento invalidado, o tempo todo, por professores e colegas que
diminuíam o valor das suas contribuições, como se aquilo que ela poderia produzir enquanto
conhecimento só poderia aparecer se relativizado como uma experiência pessoal, supondo aí
uma diferença com os demais que produziam a partir de uma suposta neutralidade. Nesse
sentido, ela recorre a Spivak (1995), em Pode o subalterno falar?75, para construir como se
opera a manutenção de quem pode ou não falar, de quais saberes são reconhecidos e legitimados
ou quais são parciais e infantilizados.

Ao argumentar que a subalterna não pode falar, ela não está se referindo ao
ato de falar em si; não significa que nós não conseguimos articular a fala ou
que não podemos falar em nosso próprio nome. A teórica, em vez disso,
refere-se à dificuldade de falar dentro do regime repressivo do colonialismo e
do racismo (KILOMBA, 2019, p.47).

Trata-se de uma “subalternidade silenciosa”, implicada na “alegação colonial de que


grupos subalternos são menos humanos do que seus opressores e são, por isso, menos capazes

75
Retomarei esse texto de Spivak no próximo Capítulo.
164

de falar em seus próprios nomes (Ibidem, p.48).


Em sua tese, a autora constrói argumentos teóricos e a eles recorre, para denunciar o
mito da neutralidade na construção de conhecimento: “Quando acadêmicas/os brancas/os
afirmam ter um discurso neutro e objetivo, não estão reconhecendo o fato de que elas e eles
também escrevem de um lugar específico” (Ibidem, p.58), ou seja, esse lugar não é neutro, mas
invisibilizado como tal, por se tratar de um discurso dominante.
Uma sociedade que vive na negação ou, até mesmo, na glorificação da história colonial
não permite que novas linguagens sejam criadas. Por isso, esse caminho traçado por algumas
feministas que, com a sua obra, constroem pensamentos emancipatórios, modificam, cada uma
à sua maneira, o colonialismo na história do presente: alterando-se a rigidez posta em formato
de estruturas de poder, produzindo-se mudança na posição discursiva, assim “as muitas
identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento”
(KILOMBA, 2019, p.12-13).
Tal como para bell hooks, Kilomba (2019) comunga que a passagem de objeto para
sujeito é o que marca uma passagem política, uma apropriação do discurso em ato, com o corpo.
Para hooks, a linguagem precisa ser ocupada; ela formula que a fala é um lugar, algo que
podemos pensar a partir dos discursos. Ocupar a fala é produzir conhecimento e fazer emergir
verdades nas falhas do saber hegemônico, na mesma medida que, enquanto discurso, é tomar
um outro lugar para si, provocando modificações nas relações gendradas no laço. Por isso,
compreendemos como o feminismo apresentado por bell hooks está nesse passo a mais, um
para além do discurso que opera uma denúncia, porque, ao propor outro formato de laço, à
medida em que, falando – como ato -, produz conhecimento e sentido, é ela que ocupa o lugar
de agente, produzindo um saber que não está referenciado nos discursos de mestria. Nesse
passo, para Kilomba, faz-se necessário descolonizar o Eu, visto que o colonialismo cotidiano
“contém uma imprevisibilidade que leva a efeitos prejudiciais” (KILOMBA, 2019, p. 214-215),
considerando-se como a imersão nesse dispositivo discursivo afeta o aparato psíquico, que é
incapaz de “descarregar tais excitações, porque elas são desproporcionais em relação à
capacidade de organização psicológica, seja no caso de um único evento, seja do acúmulo de
eventos violentos” (Ibidem, p. 215).
Ela endossa que o trauma raramente é discutido dentro do conceito racial e que as
disciplinas da Psicologia e da Psicanálise negligenciaram o tema, sem reconhecer a influência
das forças sociais e históricas, apontando a negação como mecanismo de defesa do ego, em
uma operação de dupla negação.
Desse modo, Kilomba identifica em hooks os vestígios do que marca uma passagem
165

política, pois hooks desvela lugares e nomeia aquilo que o discurso recalca e naturaliza. Assim,
é preciso ocupar a fala e modificar as relações no discurso, nesse discurso que se constitui sem
palavras, mas que, nem por isso, prescinde delas.
Para que não haja mal-entendido, o conceito de hooks sobre ocupar a fala, é diferente
da ideia defendida por Djamila Ribeiro (2017), que propõe pensar o lugar de fala.
Para Djamila (2017), há historicamente sujeitos que são invisibilizados. Ao trazer o
debate para o contexto brasileiro, ela dialoga com Collins, ao encorajar a visibilidade aos
sujeitos que são apagados, excluídos da condição de quem tem algo a dizer. Desse modo, lugar
de fala é considerar todas as vivências como importantes, já que há um crivo que separa quem
pode dizer sobre o quê, e como isso é validado no campo social: por exemplo, é diferente escutar
o que tem a dizer sobre a experiência ribeirinha quem vive desse modo ou quem estuda isso de
seus gabinetes. O lugar de fala visa a validar que pessoas que não são reconhecidas como
produtoras de saber possam participar e posicionar-se, inclusive, sobre o que diz respeito às
suas vivências.
Considerando que, dependendo de quem fala, o que é dito tem valor de saber, como se
se tratasse de uma verdade neutra, enquanto para outras pessoas, quando não são as esperadas
nessa lógica que identifica quem pode falar, aquilo que dizem é colocado como tendo menos
valor: “fulana está falando a partir da vivência dela, como se essa vivência advinda da
localização social de fulana, se mostrasse insuficiente” (RIBEIRO, 2017, p.67). Desse modo, a
autora vai tratar o lugar de fala como um tema que trabalha o preconceito social de quem está
autorizado ou não, de quem tem o direito de falar, valorizando o que tem de peculiar em cada
experiência, “é justamente tentar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual
fulano faz parte e quais são as experiências que essa pessoa compartilha ainda como grupo”
(Ibidem). Portanto, ela parte da Sociologia, para debater e refletir criticamente os destinos dados
à localização social e ao lugar de participação dos cidadãos. Para ela:

O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em


termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir
desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares
de grupos subalternizados (RIBEIRO, 2017, p.86).
166

4.8 Da margem ao centro: bell hooks e o feminismo como um outro modo estrutural de
pensar política

O movimento feminista deveria ser de importância


primordial para todos os grupos ou indivíduos que
desejam o fim da opressão (HOOKS, 1984, p.33).

Nesse momento, aprofundaremos o pensamento complexo e pluriversal de hooks, que


se posiciona de maneira anticapitalista, antipatriarcal, antissexista, propondo formas de
organizar uma sociedade emancipada, que supere a exclusão e a desigualdades impostas
socialmente e economicamente. Seu pensamento é fundamental, pois oferece ferramentas para
pensar e intervir no nosso tempo.
bell hooks foi uma feminista negra que, nascida no sul dos Estados Unidos, em 1952,
considera o movimento feminista visionário e se dedica a essa luta desde muito jovem. bell
hooks não é o seu nome de batismo, mas adotou esse pseudônimo em homenagem à avó
materna, preferindo escrevê-lo com letras minúsculas, com o objetivo de deslocar o foco para
suas ideias, no lugar de destacar a figura autoral.
É uma autora que desenvolveu estudos sobre as relações sociais de opressão, articulando
gênero, raça e classe, de maneira interseccional. hooks trabalha as questões sobre
interseccionalidade e tem como ponto de partida a experiência dos fatos que viveu, na condição
de mulher negra, mas também com base em outras experiências de mulheres e homens negros,
tomando o feminismo como uma prática comprometida em mudar o sistema patriarcal e sua
forma de dominação. Ela avalia que é fundamental conhecer a própria história, não apenas
aquela contada nos livros, mas sobretudo a que é transmitida em casa, pelos “antigos”, e nas
trocas de saberes considerados populares. hooks era leitora de Paulo Freire, de modo que
podemos encontrar em suas ideias aquilo que Freire propôs com sua pedagogia do oprimido.
Assim, a autora constrói um processo de recuperação para um devir sobre a subjetividade
ancorada em um outro lugar, distinto da narrativa dominante.
Em seu livro Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra, publicado em
1989, erguer a voz aparece como um ato, incluindo o duplo lugar, ou seja, a fala que supõe uma
escuta: não é um falar só por falar, trata-se de fazer do ato da fala uma transição de objeto para
o lugar de sujeito, uma fala que liberta, que interfere na estrutura e em suas posições. É a fala
como um lugar que pode instaurar modificações em lugares que não são fixos, embora o
discurso dominante entreponha-se, imprimindo a ideia de posições discursivas que seriam
inalteráveis. Assim, esse duplo aspecto que ocupar a fala produz – falar e escutar – possibilitaria
167

uma transição do subalterno, pelos afetamentos produzidos nessa posição que modifica a ordem
das coisas. A fala é o ponto central, hooks sabe que são os discursos os responsáveis por
implantar hierarquias, então essa “ocupação” que ela propõe não é sobre ‘um lugar de fala’ a
partir dos espaços que possibilitam participação, como vimos brevemente com Ribeiro (2017),
mas ocupar a fala é questionar e desconsiderar a ordem vigente, é subverter as imposições e a
lógica do discurso dominante. Mais do que validar processos de representação, que fazem das
inclusões das bandeiras dos movimentos meras fachadas, vendendo a ideia de democratização
dos espaços, ocupar a fala é não entrar nessa armadilha, é não legitimar a regra posta, essa regra
que criou as condições para a exclusão de corpos em detrimento de outros.
Assim, segundo hooks (1989), ocupar a fala é deslocar lugares e possibilitar novos
imaginários.
Entre as mulheres e os homens, o sexismo expressa-se, frequentemente, na forma de
domínio masculino, o que leva à discriminação, exploração e opressão. E essa lógica constrói-
se de tal modo que, se o oprimido não se percebe nessa condição, ele aspira a estar do outro
lado dessa mesma relação, sem questionar a opressão em si. Como alertou Paulo Freire (1992),
“quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor”, e isso não
é sem efeitos nas relações entre as mulheres.
O sexismo é um artifício que leva as mulheres a sentirem-se ameaçadas umas pelas
outras, criando uma atmosfera de competição. O sexismo nos ensina o ódio para com as
mulheres, um sentimento presente no discurso hegemônico, quer seja de maneira consciente ou
não. O que, por consequência, cria ruídos e conflitos nas relações entre as mulheres.
Embora o sexismo trate as mulheres como objetos sexuais dos homens, ele também se
manifesta quando as mulheres que já se libertaram desse papel desdenham daquelas que ainda
não o fizeram. Ou, ainda, pode aparecer na relação entre aquelas que conquistaram carreira e
independência financeira, em detrimento daquelas que se encontram em uma situação
considerada inferior. Daí a complexidade das relações de opressão e a necessidade de pensar o
feminismo não como uma saída para algumas mulheres e, sim, como uma forma radical de
pensar o laço social. Assim:

Muitas feministas radicais têm agora consciência de que nem o feminismo que
se concentra na mulher como um ser humano autônomo digno de liberdade
pessoal nem o feminismo que se concentra em adquirir igualdade de
oportunidade para com o homem podem livrar a sociedade do sexismo e do
domínio masculino (HOOKS, 1984, p.20).

Por isso, para hooks, o feminismo é um movimento necessariamente radical, e que


168

necessita de coerência entre a teoria e a prática, compreendendo o feminismo como pensamento


e luta, ou seja, como uma práxis. E, como toda a práxis, é feito de contradições, avanços e
anacronismos.
Desse modo, ela não ignora a forma como o feminismo surge com mulheres
privilegiadas – em comparação a outras mulheres –, que passaram a reivindicar o direito ao
voto ou a possibilidade de construir uma carreira profissional para além do serviço doméstico.
Na contramão da leitura que indica sobre o movimento feminista, para ela, trata-se da
necessidade de uma mudança na estrutura social existente e não de uma adaptação para a
entrada das mulheres. Um feminismo que vise à mudança social. Sendo assim, o reformismo
não é suficiente para alcançar uma igualdade de gênero, bem como não é possível superar o
sexismo, sem pautar o classismo e o racismo, especialmente quando tais aspectos encontram-
se em sobreposição.
Por isso, é fundamental pensar a partir da categoria analítica da interseccionalidade,
como aparece anteriormente nesta tese, já que tal categoria possibilita avançar a práxis e
construir a luta com mais lucidez.
Kimberlé Crenshaw, uma americana defensora dos direitos civis, é quem oficialmente
cunha o termo interseccionalidade, partindo do ponto de vista das mulheres negras para avançar
no debate, entendendo que são elas, as mulheres negras, que estão na base da estrutura social,
de tal forma que, utilizando a interseccionalidade como categoria analítica, Crenshaw permite
a compreensão de como as especificidades levam à marginalidade de mulheres negras, nos
discursos sobre direitos: “Interseccionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com
grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos” (CRENSHAW, 1989/2002, p. 4).
Logo, “Têm-se as mulheres negras como ponto de partida e a problemática posta é que as
‘concepções dominantes de discriminação nos condiciona a pensar em subordinação como
desvantagem que se alonga em um único eixo categórico’” (Ibidem, p. 139).
O feminismo pretende acabar com a opressão sexista, de tal maneira que é uma luta que
visa a extirpar a ideologia de domínio que se dissemina na cultura ocidental, em vários níveis;
ao mesmo tempo, é um compromisso de reorganização da sociedade, para que o desejo e o
desenvolvimento de cada pessoa sobressaiam, em sua singularidade, sobre o pensamento de
dominação hegemônica e das amarras culturais e econômicas.
Por isso mesmo, a práxis feminista não deve deixar de lado a problemática e as
encruzilhadas impostas por raça e classe, já que estas determinam lugares e posições da e na
vida cotidiana.
Dessa forma, então, mesmo com o “pessoal é político” - slogan que convida a pensar
169

como a política se faz no dia a dia, como é um fazer em ato, que constrói e que organiza a vida
cotidiana -, o corpo da mulher e suas características biológicas determinam seu lugar na
sociedade. Mas esse não é o único determinante, e cada mulher sentirá tal dominação de
maneira diferente, dependendo do país em que ela vive, dos aspectos culturais e religiosos de
onde nasceu, assim como dependerá da sua posição econômica e outras tantas variáveis que
irão se sobrepor, nas diversas formas de opressão vigentes.
Desse modo:

Ao ser definido desta maneira, é pouco provável que as mulheres adiram ao


movimento feminista apenas por serem biologicamente iguais. Um
compromisso com o feminismo, definido dessa forma, exigiria que cada
participante individual adquirisse uma consciência política crítica baseada em
ideias e crenças (HOOKS, 1984, p. 20).

Ressaltar essas características e diferenças é jogar luz nas mulheres que não estavam em
lugar de destaque no início do movimento feminista.

Ao definirmos o feminismo dessa maneira, chamando a atenção para a


diversidade de realidades sociais e políticas das mulheres, centralizamos as
experiências de todas as mulheres, sobretudo aquelas cujas condições sociais
não têm sido tema de obras, de estudos ou de mudança por parte dos
movimentos políticos. Assim que deixarmos de nos focar na opinião simplista
‘os homens são o inimigo’, seremos obrigadas a examinar o sistema de
domínio e o papel que temos na sua preservação e perpetuação (HOOKS,
1984, p. 21).

Então, feminismo “não é privilegiar mulheres relativamente aos homens” (Ibidem,


p.21), não se trata de uma mudança somente na vida das mulheres, muito menos de uma forma
de vida que não inclua os homens:

Mais importante ainda, o feminismo não é um estilo de vida, nem uma


identidade ou um cargo pré-fabricado no qual se possa entrar. Ao tentar
desviar a energia do movimento feminista que visa a mudar a sociedade,
muitas mulheres concentram-se no desenvolvimento de uma contracultura, de
um mundo centrado na mulher, dentro do qual as participantes têm pouco
contato com homens (HOOKS, 1984, p. 21-22).

Não interessa essa posição que segrega; para hooks o feminismo não se pretende
separatista, algo assim não seria bom nem para a construção de um outro modelo de sociedade,
bem como teria por consequência menos adesão das próprias mulheres que não compartilham
dessa radicalidade; o feminismo não pretende fazer dos homens inimigos, pelo contrário, é
170

preciso que o maior número de homens comungue dessa perspectiva política que abole qualquer
forma de dominação.
Assinalamos: ser feminista não é uma identidade a ser alcançada, pelo contrário,
feminismo é um posicionamento político que não carece de ser confundido com um lugar de
identidade ou estilo de vida; “É um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e
opressão” (HOOKS, 2018, p. 13). Logo, é incompatível com o sistema capitalista e, por isso
mesmo, deve-se estar atento às armadilhas e cooptações do capitalismo, que tenta a todo custo
transformar tudo em mercadoria.
hooks traz para o debate Jeanne Gross, que apresenta um exemplo da cooptação, em seu
ensaio Feminist Ethics from a Marxist Perspective, publicado em 1977:

Se nós, mulheres, queremos mudança em todos os aspectos da nossa vida,


temos de reconhecer que o capitalismo é unicamente capaz de cooptar
mudanças fragmentadas... O capitalismo é capaz de pegar as nossas mudanças
visionárias e de utilizá-las contra nós. Por exemplo, muitas mulheres casadas
divorciaram-se após reconhecerem a opressão na sua família. São atiradas
para o mercado de trabalho, sem preparação nem proteção. Para muitas
mulheres, isto significou um lugar nas fileiras de máquinas de escrever. As
empresas estão, agora, a reconhecer a capacidade de exploração das mulheres
divorciadas. A rotatividade num destes empregos é incrivelmente elevada. ‘Se
ela se queixar, pode ser substituída’ (GROSS, 1977 apud HOOKS, 1984,
p.18).

Tal citação aponta para um paradoxo prático: como considerar as particularidades das
mulheres enquanto a mudança estrutural não acontece?
Por tudo que foi apresentado até aqui, é notório como a pobreza tornou-se uma questão
feminina, principalmente das mulheres negras. As mulheres, a partir do feminismo, criam
estratégias de solidariedade entre si. Assim, atender mulheres em situação de vulnerabilidade,
oferecer proteção quando estão em situação de violências ou prestar assistência social não é a
política do movimento feminista, mas sim algo que se estabelece de forma estratégica no
interior da luta feminista. E é importante que isso não se confunda com saídas individuais de
algumas mulheres.
Nesse sentido, é diferente de almejar uma condição de privilégio, em detrimento de
outras mulheres ou homens: solidariedade como um conceito que possibilita um laço de ajuda
mútua entre as mulheres é uma coisa, pensar saídas e conquistas individuais, ou melhor,
alternativas para um grupo privilegiado de mulheres é outra coisa e, nessa segunda alternativa,
o feminismo, como posição e construção política, perde-se. Diante disso, solidariedade, para
hooks, interessa mais do que sororidade.
171

O movimento feminista, assim como outros movimentos radicais na nossa sociedade,


padece, quando as preocupações e as prioridades individuais são a única razão que levam à
participação. Quando demonstramos nossa preocupação pelo coletivo, fortalecemos a nossa
solidariedade.

‘Solidariedade’ foi uma palavra raramente utilizada no movimento feminista


contemporâneo. Foi dado mais destaque à ideia de ‘apoio’. ‘Apoio’ significa
manter ou defender uma posição que se acredita estar certa. Também pode
significar um pilar ou uma base para uma estrutura frágil. Este último
significado teve uma maior importância nos círculos feministas (HOOKS,
1984, p.50).

A solidariedade pode se dar de diversas maneiras, de forma prática, como citado acima,
ou, na visão própria do movimento:

Quando nós, as mulheres, lutamos ativamente de forma verdadeiramente


solidária para compreender as nossas diferenças, para mudar as perspectivas
desencaminhadas e distorcidas, criamos a base para a experiência da
solidariedade política. Solidariedade não é o mesmo que apoio. Para que
possamos experienciar a solidariedade, temos de ter uma comunidade de
interesses, crenças partilhadas e objetivos em torno dos quais nos possamos
unir e construir a Sororidade. O apoio pode ser ocasional. Pode ser dado e, do
mesmo modo, retirado. A solidariedade requer um compromisso constante e
contínuo. Se queremos crescer, é necessário que haja diversidade, desacordo
e diferença, no movimento feminista (HOOKS, 1984, p.52).

Logo: “As mulheres não precisam erradicar as diferenças para sentirem solidariedade.
Não precisamos de partilhar uma opressão comum para lutar igualmente pelo fim da opressão”
(HOOKS, 1984, p. 52). Não é preciso inventar inimigos em comum nem tomar os homens como
conjunto, para criar uma polarização; é preciso, sim, compartilhar riquezas e expectativas,
desejar e construir outra sociedade possível, que inclua as diferentes experiências e formas de
existência. “Podemos ser irmãs unidas por interesses e crenças, unidas pela nossa valorização
da diversidade, unidas na nossa luta pelo fim da opressão sexista, unidas pela solidariedade
política” (Ibidem, p. 52).
À vista disso, Gonzalez, em 1988, vai dizer:

Quando nos reportamos às amefricanas da chamada América Latina, e do


Brasil em particular, nossa percepção descobre uma grande resistência ao
feminismo. É como se ele fosse algo muito estranho para elas. Herdeiras de
uma outra cultura ancestral, cuja dinâmica histórica revela a diferença pelo
viés das desigualdades raciais, elas, de certa forma, sabem mais de
mulheridade do que de feminidade, de mulherismo do que de feminismo. Sem
172

contar que sabem mais de solidariedade do que de competição, de coletivismo


do que individualismo (GONZALES, 1988/2020, p. 269, grifos da autora).

Ela evidencia, no trecho, a relação com saberes ancestrais e a importância de considerá-


los nos modos atuais de organização social, um saber que considera a assimetria em relação aos
“antigos” e a outros valores que enlaçam os sujeitos de outro modo. A reflexão pautada nas
religiões de matriz africana, que não contemplam a lógica binária, faz com que ressaltar a
mulher não desemboque em um binarismo produzido pela diferença sexual e oriundo da cultura
moderna. A forma polarizada de ver a sociedade não combina com essa outra maneira de fazer
política, já que o binarismo e a polarização servem ao sistema de dominação.
Inclusive, para hooks (2019), o feminismo opõe-se radicalmente à lógica dualista, seja
ela qual for. Para ela, por exemplo, não cabe questionar o que é mais relevante, se o racismo ou
o sexismo, já que ambas as opressões não competem uma com a outra, mas se sobrepõem, e
quando se encontram em sobreposição, essa hierarquia entre elas não faz o menor sentido. A
autora aponta, ainda, para outro problema dessa lógica binária, que classifica uma coisa a partir
da outra: a maior parte das pessoas é levada a pensar em termos de oposição em vez de
compatibilidade. Acontece que a raiz da cultura é pautada na oposição, na dualidade, na disputa.
E é por essa via que se constitui a visão do “sujeito universal”, na Ciência.

4.9 hooks e a experiência acadêmica

bell hooks, em 1981, participa de um seminário de teoria feminista e, na ocasião, faz


uma crítica a certa lista de livros, dizendo “me foi entregue uma lista de livros para ler, escritos
por mulheres e homens brancos e um homem negro, contudo nenhum escrito por uma mulher
negra, indígena americana, latina ou asiática ou, mesmo, sobre alguma destas” (HOOKS, 1981,
p.10). Pontuar esse lapso provocou um atrito com feministas academicistas brancas, que
ficaram indignadas com o comentário, ao mesmo tempo dizendo que a indignação e a
hostilidade partiam de hooks.
Tardiamente, uma das colegas presentes no seminário escreveu uma carta aberta,
dizendo sobre seu arrependimento: a jovem relatou que, depois de pensar um pouco, entendeu
o porquê de haver se sentido atacada, contando como entender aquela crítica poderia ferir de
certo modo o seu amor-próprio, mas que, ao mesmo tempo, o entendimento daquela crítica a
fez pensar que, depois de muito tempo estudando e tendo acesso à visão do mundo de Platão,
ficava mais difícil cogitar uma visão de mundo diferente daquela, que só é possível de maneira
173

direta para a classe dominante. Nesse sentido, essa colega constatou, como mulher branca e
privilegiada, que, quanto mais próximo se está do “coração do monstro”, mas difícil sair dessa
alienação (HOOKS, 1984, p.11). E isso não é sem efeitos, no debate acadêmico e na forma de
fazer e escutar as críticas ou outros pontos de vista que não compartilham da mesma tradição
acadêmica. Sendo assim,

Muitas vezes, em situações em que as feministas brancas atacavam


agressivamente as mulheres negras individualmente, consideravam-se elas
próprias as vítimas do ataque. Durante um debate aceso com outra estudante
branca, num grupo de mulheres racialmente diverso que organizei, ela disse-
me que tinha ouvido falar sobre a forma como eu tinha ‘arrasado’ as pessoas
do seminário de teoria feminista e que ela tinha medo de ser ‘arrasada’
também. Recordei-lhe que eu era uma pessoa a falar para um grupo grande de
pessoas indignadas e agressivas; dificilmente teria sido eu a dominar a
situação. Fui eu que saí da aula em lágrimas e não as pessoas que eu
supostamente teria ‘arrasado’ (HOOKS, 1984, p. 11).

Hooks aponta que, nessas situações, é como se, por intermédio da hostilidade, quisessem
dizer a ela que ali não era o seu lugar, mas que, se quisesse ficar, não era para se indispor, as
críticas não seriam bem aceitas e seriam sentidas e analisadas como um ataque. Falavam de sua
suposta agressividade, e esse reforço e esforço para colar o estereótipo racista da mulher negra
como aquela que é forte, agressiva, acaba servindo para um discurso de dominação e de não
reconhecimento desse outro como semelhante, permitindo às mulheres brancas privilegiadas
perpetuar em relação às mulheres negras a mesma lógica de dominação dos homens brancos.
Essa é a grande crítica ao feminismo da igualdade, um feminismo que se orienta pela
tentativa de igualdade aos homens, sem criticar a lógica que uniformiza os sujeitos, buscando
o apagamento das diferenças, caminhando no sentido do capitalismo, adequando-se
completamente ao sistema. É o “modelo” de feminismo que desembocou no feminismo liberal.
Como já citado, Betty Friedan, em 1963, em seu livro A mística feminina, abre caminhos
para tal movimento feminista, tornando famosa a expressão “o problema que não tem nome”,
que era a sua forma de contar como sofria um grupo específico de mulheres que eram brancas,
economicamente privilegiadas, casadas, com formação acadêmica, mas frustradas por serem
donas de casa, elas queriam mais da vida... gostariam de ter uma carreira e serem realizadas
profissionalmente, com os mesmos direitos dos homens brancos.
Não que não fosse legítimo desejar os mesmos direitos dos seus companheiros, a
questão é que, desse modo, para esse fim, o feminismo passa a ser cúmplice de seu algoz,
porque não questiona a estrutura que cria a opressão, apenas permite que um pequeno grupo de
174

mulheres também possa gozar de um lugar privilegiado dessa estrutura. Acontece que. para
essas mulheres chegarem ao “poder”, automaticamente serão as opressoras de outras mulheres
que não possuem os mesmos privilégios.
É um feminismo que, de certo modo, encastela o sistema que o aprisiona, operando a
conservação dessa lógica, daí toda a problemática intrínseca no feminismo da igualdade. Não
era essa a intenção de Friedan, mas foi isso que seu livro provocou em outras mulheres que não
se enquadravam nessa ‘categoria’ identificada no livro. Por outro lado, após a publicação,
Friedan se reconhece feminista, depois do sucesso que seu livro alcançou. Inicialmente, ela
almejava apenas compartilhar como as mulheres donas de casa nos subúrbios estadunidenses
estavam cansadas de terem negada uma vida que pudesse ser interessante e que não se resumisse
a cuidar das funções domésticas e dos filhos.
Para Davis,

[...] proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de


casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje
na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os
primeiros anos de escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os
outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. [...] Já
que as mulheres eram vistas, não menos do que os homens, como unidades de
trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam ser
desprovidas de gênero (DAVIS, 1981/2016, p. 17).

Por isso Davis, em Mulheres, Raça e Classe (2016), vai evidenciar o que restou como
legado dessa condição para os parâmetros que moldam, no laço, as condições das mulheres não
brancas. Por isso, durante os anos 1970, é renovado o debate sobre a escravidão, para jogar luz
nessa discussão, criticando a “crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que enfatiza
o papel das mulheres como mães, protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para seus
maridos; as mulheres negras eram praticamente anomalias” (DAVIS, 1981/2016, p.17-18).
Segundo a autora, sete em cada oito pessoas escravizadas trabalhavam na lavoura, não
importando se eram homens ou mulheres. E, conquanto a abolição do tráfico da mão de obra
escrava começasse a ser ameaçada, o corpo das mulheres passava a ter uma importância ainda
maior nessa dominação, cobiçando-se sua fertilidade como função para ampliar a propriedade
dos senhores, que tomavam seus filhos como produtos para o trabalho, o que não possibilitava
a essas mulheres um tratamento diferente.
Nesse enlaçamento discursivo, a exaltação da maternidade que se popularizava no
século XIX não se estendia para todas as mulheres: “Na verdade, aos olhos de seus
175

proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a
ampliação da força de trabalho escrava” (DAVIS, 1981/2016, p. 19). E, como reprodutoras,
não mães, “suas crianças poderiam ser vendidas e enviadas para longe, como bezerros
separados de vacas” (Ibidem, p.19-20), de tal modo que o tribunal da Carolina do Sul chegou a
decidir que “crianças escravas estão no mesmo nível de outros animais”76.
Assim, nos relatos das pessoas que passaram pelo sistema de escravização ao qual Davis
teve acesso, ela pode notar como era exigido o mesmo desempenho no arado,
independentemente de gênero ou da condição de gravidez das mulheres.

As mulheres grávidas não apenas eram obrigadas a realizar o trabalho agrícola


usual, como também estavam sujeitas a chicotadas que trabalhadoras e
trabalhadores recebiam, se deixassem de cumprir a cota diária ou se
protestassem com “insolência” contra o tratamento recebido (DAVIS, 2016,
p.22).

Assim, as mulheres negras não eram consideradas mulheres no sentido corrente do


termo, recaindo nelas, ainda, a punição via estupro, como exercício de dominação, de castigo
ou como forma de desmantelar qualquer forma de laço entre os escravizados. Assim como não
cabia às mulheres negras a possibilidade de serem vistas como frágeis, nem na maternidade
nem no puerpério, os homens negros não poderiam aspirar à função de “chefes de família”.
Afinal, homens, mulheres e crianças, nessas condições, eram igualmente objetificados.
O contexto brasileiro endossa essa condição que atravessa o tempo e ultrapassa
fronteiras, de tal modo que “O longo processo de marginalização do povo negro, imposto pelas
práticas discriminatórias de uma sociedade marcada pelo autoritarismo, relegou-nos à condição
de setor mais oprimido e explorado da população brasileira” (GONZALEZ, 2020, p. 191). Em
1976, Gonzalez analisa os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que
noticia e atualiza o longo processo de marginalização do povo negro no Brasil, destacando as
práticas discriminatórias sofridas pelas mulheres negras, em condições de desvantagem
discrepante tanto em relação aos homens negros quanto em relação às mulheres brancas; a
pesquisa oferece informações que mostram “diferenças de rendimento médio entre os sexos e
raças”77 (Ibidem, p. 193). Mapeando os efeitos do racismo e do sexismo nas relações de

76
Davis traz essa citação de Barbara Werthimer, do livro We Were: The Story of Working Women in America (s.d.,
p. 109).
77
“Trocando em miúdos, os dados dizem o seguinte: nas ocupações de nível superior, as mulheres ganham, em
média, 35% a menos que seus colegas homens, mas as negras ganham 48% a menos do que as brancas. Nas
ocupações de nível médio as mulheres ganham 46% a menos do que os homens, enquanto as negras recebem 14%
a menos do que as brancas” (GONZALEZ, 2020, p.194).
176

trabalho, no Brasil, Gonzalez destaca que “No setor de serviços, encontramos o ‘lugar natural’
da mulher negra que trabalha nas cidades: o emprego doméstico” (Ibidem, p. 194), enfatizando
que os efeitos causados pelo sexismo nas relações de trabalho são ainda maiores nas atividades
do campo, “quase sempre elas trabalham na agricultura ajudando o marido, sem receber
qualquer remuneração” (Ibidem). Sem contar as desigualdades existentes no campo dos direitos
trabalhistas: apesar da Proposta de Emenda Constitucional, sancionada somente em 2015, sobre
os direitos das empregadas domésticas - em sua imensa maioria mulheres negras -, na prática,
pouca coisa mudou e tais condições perpetuam até os dias atuais78.
Exatamente por conhecer essas questões que atravessam a história e os corpos das
mulheres negras é que bell hooks teceu duras críticas ao livro A mística feminina, de Friedan,
destacando, propositalmente, uma definição da Rita Mae Brown sobre a importância de classe
para esse debate, já que é importante deixar evidente que classe é como a sociedade se organiza,
como se dão os lugares e as relações.

A classe é muito mais do que a definição dada por Marx da relação com os
meios de produção. A classe envolve o nosso comportamento, o que
consideramos os princípios básicos da vida. A nossa experiência (determinada
pela nossa classe) corrobora estes princípios: como somos ensinados a
comportar-nos, o que se espera de nós mesmos e de outros, o nosso conceito
de futuro, como entendemos os problemas e os resolvemos, como pensamos,
sentimos, agimos. São esses padrões de comportamento que as mulheres da
classe média se recusam a reconhecer, apesar de estarem perfeitamente
dispostas a aceitar as classes em termos marxistas, um belo truque que lhes
permite efetivamente não ter de lidar com o comportamento de classes nem
ter de mudar esse comportamento em si mesmas. São estes padrões de
comportamento que têm de ser reconhecidos, compreendidos e alterados
(BROWN, 1974 apud HOOKS, 1984, p.3).

Sendo assim, é fundamental partir da afirmação de que “todas as mulheres são


oprimidas”, já que o sexismo atravessa a cultura hegemônica nos últimos milênios, porém isso

78
Na tentativa de avançar no campo dos direitos, em abril de 2015, a então presidenta da República Dilma Rousseff
(PT) assinou a Emenda Constitucional que ampliava os direitos trabalhistas das empregadas domésticas. O
projeto tramitava desde abril de 2013 no Congresso Nacional. “De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra
por Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,3 milhões de brasileiras
trabalham em atividades domésticas. Do total, apenas 1,5 milhão está registrada com carteira assinada e 2,5
milhões atuam como diarista, sem vínculo empregatício. Porém, se a formalização do trabalho doméstico está
prevista na PEC, dentro dos lares não foi acatado pelos contratantes. “Nem todos os patrões respeitam a lei, tanto
que a informalidade é muito alta no trabalho doméstico. Temos apenas 32% de trabalhadoras domésticas com
carteira assinada. Também tem a questão da jornada de trabalho, que os patrões falam que a lei da casa deles eles
que fazem, então eles não mudam o horário de trabalho”, acusa Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional
das Trabalhadoras Domésticas (CARVALHO, 2019).
177

não acontece de forma igual para as mulheres, por isso mesmo, questões de classe, raça,
religião, sexualidade e gênero irão determinar “em que medida o sexismo será uma força
opressora na vida de cada mulher” (HOOKS, 1984, p.2). O sexismo é um sistema de domínio,
mas não de maneira igual para todas as mulheres: ele “nunca determinou de forma absoluta o
destino de todas as mulheres nesta sociedade” (HOOKS, 1984, p.4), a linha entre opressor e
oprimido pode estar atravessada por outros determinantes. Então, partiremos da ideia da
possibilidade de escolhas como determinando a diferença entre opressor e oprimido, de tal
modo que “ser oprimido significa a ausência de escolhas” (Ibidem, grifos da autora.). Logo, a
captura dos sujeitos, via opressão, vai depender do lugar de privilégio em que cada pessoa está,
o que produz uma leitura sobre esse domínio completamente diferente, dependendo das
posições no discurso. A aliança entre racismo, capitalismo e patriarcado pode produzir torções
de realidades que são coexistentes e dependentes, desse modo:

Dentro do capitalismo, o patriarcado está estruturado de forma a que o


sexismo limite o comportamento das mulheres em alguns domínios, mesmo
que não haja limitações noutras áreas. A ausência de restrições severas leva a
que muitas mulheres ignorem as áreas em que são exploradas ou
discriminadas; pode até levá-las a imaginar que nenhuma mulher é oprimida
(HOOKS, 1984, p.4).

Por essa via, o capitalismo, que é plástico e adapta qualquer coisa que possa transformar
em mercadoria, cooptou algumas feministas de vanguarda burguesa, justificando a crítica de
que “A diferença entre os sexos não é se se tem ou não um pênis, é se se faz ou não parte de
uma economia fálica masculina” (FOUQUE, s.d. apud HOOKS, 1984, p.6), marcando assim
um ponto de basta: dentre tantos caminhos que separam o feminismo da igualdade, esse que se
alia ao capitalismo e que não questiona a continuidade dessa lógica é diferente do feminismo
que questiona a lógica em si, interrogando as epistemologias hegemônicas, propondo outros
pontos de partida.
Sem dúvida, essa complexidade que entrelaça e intersecciona mais de uma condição de
dominação como ponto de exploração de algumas mulheres faz com que Davis proponha o
feminismo e o abolicionismo como teorias e práticas do século XXI. Em conferência pública,
na Universidade de Chicago, em maio de 2013, ela vai pontuar como,

Em alguns sentidos, a luta de direito das mulheres foi ideologicamente


definida como uma luta pelos direitos das mulheres brancas de classe média,
expulsando mulheres pobres e da classe trabalhadora, expulsando mulheres
negras e latinas e de outras minorias étnicas do campo do discurso coberto
178

pela categoria mulher (DAVIS, 2018, p. 92).

De modo que a universalização da categoria mulher é tão problemática quanto a


categoria de sujeito universal.
Davis vai ressaltar que repensar essas categorias é tirar do plano individual questões que
estruturam o pensamento; assim, repensar tais categorias é importante “Não apenas para abarcar
pessoas africanas, indígenas e outras de origem não europeia, mas também para que pudessem
ser aplicadas a grupos e comunidades, não apenas a indivíduos” (DAVIS, 2018, p.92).
Diante disso, Davis vai retomar como, na Terceira Conferência Mundial sobre a Mulher,
em 1985, em Nairóbi, Quênia, o lema “os direitos das mulheres são direitos humanos” era uma
tentativa de expandir a categoria de mulheres para abarcar as não brancas. Acontece que “O
que nós não percebemos na época foi que teríamos de reescrever toda a categoria, não
simplesmente incorporar mais mulheres em uma categoria inalterada do que significa mulher”
(DAVIS, 2018, p. 93). Da mesma forma, rever a categoria enquanto tal era uma oportunidade
de repensar determinadas conformidades de gênero que apareciam como imperativos,
abarcando também as mulheres lésbicas e trans.
Por isso, outros feminismos puderam surgir, já que de nada adianta a mulher branca
denunciar sua condição oprimida no sexismo, se o preço é oprimir outras mulheres em
decorrência do racismo ou do classismo.
O feminismo interseccional constrói-se e movimenta-se da margem para o centro,
tratando a marginalidade como um lugar estratégico, exatamente por se encontrar menos
contaminado por amarras cognitivas, em outras palavras, aprisionado pela visão de mundo
dominante, pretendendo, assim, abranger uma forma de fazer política “inédita”, mais libertária.
Para hooks:

As mulheres negras, sem um ‘outro’ institucionalizado a quem discriminar,


explorar ou oprimir, passaram, muitas vezes, por experiências que desafiam
diretamente a estrutura social classista, sexista e racista predominante e a sua
ideologia concomitante. Esta experiência pode moldar de tal forma a nossa
consciência que a visão que temos do mundo difere da daqueles que tiveram
algum tipo de privilégio (por mais relativo que possa ser dentro do sistema
existente) (HOOKS, 1984, p.12).

Advertimos, mais uma vez, que não se trata de fazer uso do multiculturalismo como
forma de dar conta dessa questão. Como diria a crítica de Laclau (1996), não se trata de cair
num grande guarda-chuva que tenta criar uma identidade a partir das diferenças, já que essa
ideia cairia no conceito de diferença em relação a outra coisa, por vezes reforçando o binarismo
179

ou o enquadramento de ideias e pessoas em categorias, ou caixinhas. Para hooks, é uma


diferença incomensurável, incomparável, diferença que abre para o que há de mais singular
com cada sujeito, e não o diferente da comparação que individualiza, fechando possibilidades
de sentido.
Pensando em diferentes formas de ligar, com as possibilidades de sentidos e pensando
no que podemos aprender com as feministas sobre as diferenças, incluí nesse debate Luisa
Muraro (1992), já que, ao inverter o sentido corrente de autoridade, ela se ancora na diferença
e traz a autoridade para perto do que podemos entender sobre singularidade, para perto dessa
autoria possível e imensurável que brota do que cada um tem de diferente, da sua diferença
como marca singular, que nada tem de relação, comparação, ou identificações que fazem um
grupo. Com isso, entendemos que o feminismo da diferença pode ir – e vai – além da diferença
sexual, como está presente na práxis de Davis, hooks, Lorde, Gonzalez e Butler. Vai em busca
de uma teoria como prática libertadora. São saberes construídos na práxis, acrescentando-se,
ainda, a subversão operada por Muraro no termo autoridade, sobre a autoria possível, quando
se modificam as posições discursivas.

Na própria construção desse erguer a voz, [...] é a explicação para meu


incômodo, minha relutância. Tem a ver com revelar o pessoal. Tem a ver com
escrita — com o que significa dizer as coisas no papel. Tem a ver com punição
— com todos aqueles anos da infância em diante, quando me machucaram por
eu dizer verdades, por falar do ultrajante, falar do meu jeito chocante,
indomável e sagaz, ou com ‘temos que ir tão fundo assim?”, como às vezes
questionam os amigos (HOOKS, 2019, p. 24).

Para concluir, esse percurso mostra como as condições impostas criam subordinação e
dominação, realizadas via discursos, e retomo brevemente a importância que hooks destina à
linguagem, bem como a apropriação dela para subverter, produzir outra coisa. Portanto,

[...] nomear tem a ver com empoderamento — além de ser também uma fonte
de tremendo prazer. [...] É uma forma de reconhecer a força vital em todo
objeto. Frequentemente, os nomes que dou às coisas e às pessoas estão
relacionados com o meu passado. São maneiras de preservar e honrar aspectos
daquele passado. Falar sobre reconhecimento ancestral, dentro das tradições
africanas, é uma maneira de falar sobre como aprendemos com os povos que
podemos nunca ter conhecido, mas que vivem em nós novamente (HOOKS,
2019, p. 36).

Reflexão essencial, tanto nos aspectos apontados sobre os lugares e as hierarquizações


que os discursos, via linguagem, produzem, como na relação com a língua, a língua imposta
pelo dominador - e, por consequência, com o apagamento de outras línguas, dialetos, expressões
180

e culturas que também são operados via linguagem, como apagamento de qualquer traço de
humanidade que impossibilite deslocar esses seres esvaziados de seus traços do lugar de
objetificação, nessa lógica na qual somente um pode ser sujeito, condenando o outro à posição
objetificada. Daí a importância de se apropriar da língua e brincar com ela, fazendo do saber
que está do lado do ‘outro/escravo’, um savoir-faire, deixando cair o lugar do mestre.

Elas me chocam, despertando-me para uma consciência da ligação entre


línguas e dominação. Inicialmente, eu resisto à ideia da ‘língua do opressor’,
certa de que esse construto tem o potencial para desempoderar aquelas e
aqueles entre nós que apenas começaram a aprender a falar, que apenas
começaram a aprender a reivindicar a língua como um lugar onde nós fazemos
de nós mesmos sujeitos (HOOKS, 2008, p.857).

Assim, ocupar a fala é se apropriar das construções de novas narrativas, que resgatam
símbolos de culturas que foram destruídas pela modernidade:

Nas tradições afroindígenas não percebem o ser humano como cindido, e sim
como resultado da interdependência entre todas as coisas. A corporeidade,
para esses saberes, [...] envolve dimensões afetivas, intelectuais, sociais e
espirituais do ser humano (SIMAS, 2022, p.43).

Assim ocupar a fala é algo que se faz com o corpo, é um ato, é resgatar saberes, é
recuperar aquilo que a língua mostra, a corporeidade em cena, como modo de inventar novos
sentidos; é se apropriar do que se tem, para operar um saber-fazer. Para hooks, a cultura negra,
quando compreende o seu valor, muda as posições no jogo, altera lugares e valoriza aquilo que
a hegemonia vilipendia. Simas (2022) localiza o modo como isso também é possível na cultura,
quando, por exemplo, o hip-hop reafirma os traços, apagados socialmente, advindos da cultura
negra.
Finalizo, então, este Capítulo com um exemplo de como a língua e seu uso, a partir de
outras concordâncias, aparecem para reforçar elementos de identidade, uma incorporação das
línguas que foram apagadas, como uso desse recurso – não por não ter escolaridade – mas
fazendo uso de elementos que fazem parte da sua identidade, como marca de resistência. Estilo
e apropriação da subversão à dominação, como movimento emancipatório. Um outro modo de
inverter lugares. Assim, quando Criolo canta:

Mandei falá, pra não arrastá, não botaram fé, subirusdoistiozin


O baguio é loco, o sol tá de rachá, vários de campana aqui na do campin
Má quem quer pretá, má quem qué branca, todo azulê requer seu rejuntin
Pleno domingão, flango ou macalão, se o negócio é bão, cê fica é chineizin
181

Cença aqui patrão, aqui é a lei do cão, quem sorri por aqui, quer ver tu cair
É, é... justo é Deus, o homem não, ouse me julgá, tente a sorte fi (CRIOLO,
2010).

Criolo incorpora ao português os traços e sonoridades das línguas africanas, ocupando


um lugar de sujeito no discurso – e como reconhecimento vindo da cultura –, movimentando
os discursos e seus lugares, bem como produzindo novos sentidos. “Nós fazemos das nossas
palavras uma fala contra-hegemônica, liberando-nos nós mesmos na linguagem” (HOOKS,
2008, p.864). E, mais:

Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação incorreta das
palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua como um local
de resistência. [...] uma maneira que rompeu o uso e o significado padrões, de
tal modo que o povo branco poderia frequentemente não entender a fala
negra... (HOOKS, 2008, p.860).

Estaria aí a potência do giro discursivo, operado por Gonzalez (2020), quando resgata
os valores apagados pelo colonialismo, orientando-se a partir de outras epistemologias fora das
rédeas da modernidade, para, fazendo política em ato, ocupar o lugar de mulher negra no
contexto brasileiro, para daí, incluindo uma apropriação possível dos saberes apagados de sua
ancestralidade, em acordo com a epistemologia psicanalítica dos discursos e sua experiência de
análise, propor aquilo que produziria o pretuguês?
182

5 LÉLIA GONZALEZ PARA SEGUIR ADIANTE

Tem uma coisa que, às vezes, eu afirmo e é muito


enquadrado nesse caso: mulher a gente não nasce,
a gente se torna (GONZALEZ, 1986/2020, p. 317).

A perspectiva é a de que a gente abra alguns


caminhos e a gente tem que ter aí a consciência da
nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa,
vem e passa no sentido de passar mesmo e passa
também a nossa experiência para quem está
chegando. Aí é que me parece que os africanos
podem ensinar muito (GONZALEZ, 2020, p. 333).

5.1 Biografia: uma história pessoal que informa sobre o Brasil

Lélia Gonzalez nasceu em uma família da classe trabalhadora, no dia 01 de fevereiro de


1935, em Minas Gerais. Foi praticamente a caçula, sendo a penúltima a nascer, em uma família
de dezoito filhos. Seu pai, Accacio Joaquim, era um homem negro, operário ferroviário, e sua
mãe, Urcinda Serafim de Almeira, era uma mulher indígena que, além de cuidar da casa e dos
filhos, trabalhou como empregada doméstica e foi ama de leite no período em que concebeu
Lélia. O pai, Accacio, morreu quando ela ainda era criança (RATTS; RIOS, 2010;
GONZALEZ, 2020).
Um dos seus irmãos foi o jogador de futebol, Jaime de Almeida79, que, por se destacar
no esporte, foi convidado, em 1941, para sair do Atlético Mineiro e ir jogar no Flamengo, time
do Rio de Janeiro. Essa passagem é importante porque, graças a esse irmão, a família muda-se
para a cidade do Rio de Janeiro.
É importante contextualizar algumas informações, para que certas minúcias não passem
despercebidas. Destaco como Lélia vinha de uma família muito pobre da classe trabalhadora e,
como é factível nesse contexto social, os filhos começavam a trabalhar muito cedo, para
completar a renda da família, acarretando um ciclo que, comumente, atrelava a baixa
escolaridade ao trabalho precário ou/e de baixa remuneração. Desse modo, o “esquema
ideológico internalizado pela família era este: estudava-se até a escola primária e, depois, todo
mundo ia à batalha, em termos de trabalho para ajudar a sustentar o resto da família”
(GONZALEZ, 2020, p.286).

A naturalização do lugar social do negro e da negra nessa lógica discursiva os

79
Em uma época em que ainda era tabu ser jogador de futebol negro no Brasil.
183

inscreve, no imaginário e nas relações sociais, sob o signo da inferioridade,


inclusive apagando qualquer traço intelectual, para manter seu destino social
de servir e justificar o seu alijamento do mercado formal de trabalho, do estudo
e da participação na formação social do Brasil (ROSA, SANTOS,
BINKOWSKI, 2019).

Acontece que justamente por ser quase a caçula de uma família grande, sua diferença
de idade comparada aos irmãos mais velhos era distante e, por isso, pôde contar com a ajuda
dos seus irmãos, em especial do seu irmão Jaime, que a incentivava a estudar. Somado a esse
apoio, há outro fato que contribui para o seu acesso a uma boa escolarização. Explico: quando
ela nasceu, sua mãe foi ama de leite de uma criança recém-nascida de uma família italiana, cuja
mãe havia morrido no parto, assim, nas palavras de Gonzalez, “[...] essa menina que havia
nascido na mesma época que eu. Nós fizemos amizade e, quando ela foi para o colégio, os pais
dessa minha amiguinha se ofereceram para pagar a escola para mim” (GONZALEZ, 2020, p.
319).
Quando chegou ao Rio de Janeiro, foi estudar no Colégio Dom Pedro II, fundado em
1837 e, segundo a professora e historiadora Flávia Rios (2010), uma das escolas mais antigas e
tradicionais da cidade do Rio. Frequentou, assim, um colégio bastante elitizado - ainda que
escola pública -, que formava a elite do pensamento, na década de 1950, ocasião em que o Rio
de Janeiro ainda era a capital do Brasil.
Assim, teve acesso a uma boa educação desde a pré-escola, ainda em Minas Gerais, e
depois no ensino primário e secundário, em um dos principais colégios do país. Aqui vale uma
breve observação: como seria o dia a dia da Lélia Gonzalez, criança e adolescente, nesses
espaços, considerando que, provavelmente, fosse a única ou quase única criança negra em um
colégio de ensino público, mas altamente elitizado, no Rio de Janeiro daquela época?
Certa vez, em uma entrevista em que contava um pouco da sua infância e de como o
racismo aparecia naquela época, ela vai dizer: “A única saída que eu encontrei para superar esse
problema foi ser a primeira aluna da sala. É aquela história, ela é pretinha mas é inteligente”
(GONZALEZ, 2020, p. 319). No entanto, ser a primeira da sala, não a poupou de ter que
trabalhar durante um período quando nova, segundo ela mesma disse: “[...] quando criança, eu
fui babá de filhinho de madame, você sabe que a criança negra começa a trabalhar muito cedo”
(Ibidem). Ela conta que, nessa ocasião, um diretor do clube Flamengo queria que ela fosse
empregada da casa, juntamente com o trabalho de babá, e que ela teve que brigar muito para
que isso não acontecesse.
Seguiu sendo muito estudiosa, iniciou a vida acadêmica em 1958, cursou Antropologia
184

e Filosofia, na graduação, e Comunicação e Antropologia, na pós-graduação (GONZALEZ,


2020, p.319).

5.2 O ensino no Brasil e o processo de embranquecimento ideológico

Para a historiadora Raquel Barreto, os dados educacionais constituem um dado muito


singular, na trajetória de Lélia. Segundo Barreto (2005), Gonzalez estudou na Universidade do
Estado da Guanabara, atual UERJ, e fez bacharelado e licenciaturas em duas áreas, uma em
Filosofia e outra em História e Geografia, que na época eram um curso unificado. Ainda
segundo a historiadora, ser uma mulher muito estudiosa era uma marca que distinguia Lélia
Gonzalez pelos espaços em que transitava: era uma mulher que defendia a importância do
conhecimento e foi se tornando uma pesquisadora em diversas áreas (AMEFRICANIDADE,
2020).
Gonzalez “fez mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Política. Atuou
como professora em escolas de nível médio, faculdades e universidades” (GONÇALVES,
2019).
Assim, academicamente falando, recebeu uma educação eurocentrada. Em entrevista
para Patrulhas ideológicas, Gonzalez (1986) vai dizer: “passei por aquele processo que eu
chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque, à medida que eu
aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra”
(GONZALEZ, 2020, p.286).
Esse processo de rejeição da condição negra relatado por Gonzalez é semelhante ao
processo de embranquecimento descrito por Fanon (2008), em Pele Negra, Máscaras Brancas,
em que o autor apresenta como se constrói o processo de embranquecimento, à medida que o
branco é tomado como “modelo de identidade” (FANON, 2008, p.19), em uma sociedade
ocidental com forte herança escravagista, de tal modo que, ideologicamente, a sociedade
relaciona ser bem tratado com “ser tratado como branco” (FANON, 2008, p.21).
Esse mecanismo de reconhecimento é impulsionado quanto mais alto for o status social
ou o nível de escolaridade, e maiores as chances dessa ascensão social que, sem consciência de
si, converte em embranquecimento. O casamento inter-racial era o ápice desse modo de
reconhecimento. Vale lembrar que, em diversas falas ou entrevistas, Gonzalez relatou como os
negros e os indígenas eram descritos nas aulas de História, tanto no colégio quanto nas
universidades: “o negro era servil e o índio indolente! Logo eu, filha de pai negro e mãe índia!”
185

(GONZALEZ, 2020, p.20), falas que ilustram como se instala, na prática, o embranquecimento
e a transmissão de tal ideologia.
Há muitas diferenças entre como se constitui o racismo no Brasil e em outros lugares
do mundo, Gonzalez sabe disso e, por isso mesmo, torna-se umas das principais autoras que
criticam a falsa ideia de democracia racial no Brasil, mas, antes de incluir uma análise de
Gonzalez sobre a tal democracia racial, vale pensar incluir o que hooks tem a dizer sobre o
ensino nas escolas e a construção de uma ideologia racista e colonialista:

Nenhum livro de história usado em escolas públicas nos informou sobre o


imperialismo racial. Em vez disso, deram-nos uma noção romântica do “novo
mundo”, [...] Ensinaram-nos que Colombo descobriu a América; que “índios”
eram “escalpeladores”, assassinos de mulheres e crianças inocentes; que
crianças negras eram escravizadas devido à maldição bíblica de Cam, segundo
a qual Deus, “ele mesmo”, decretou que seriam lenhadoras, lavradoras e
responsáveis por carregar a água. Ninguém falava sobre a África como o berço
da civilização, sobre as pessoas africanas e as asiáticas que vieram para a
América antes de Colombo. Ninguém mencionou os assassinatos em massa
de nativos como genocídio, ou os estupros de mulheres nativas ou africanas
como terrorismo. Ninguém discutia a escravidão como alicerce para o
crescimento do capitalismo. Ninguém descreveu a reprodução forçada de
mulheres brancas para aumentar a população branca como opressão sexista.
[...] Instituições de ensino superior nada fizeram para desenvolver nosso
limitado conhecimento sobre racismo como ideologia política (HOOKS,
2020, p. 194).

Diva Guimarães80, mulher negra, professora e contemporânea de Gonzalez, em um


depoimento na Festa Literária Internacional de Paraty, no RJ (FLIP), compartilhou uma fala
que diz muito sobre a educação no Brasil, durante a infância e a juventude de Gonzalez,
dialogando com o que encontramos nas entrevistas de Lélia. Guimarães, em sua intervenção
emocionada e emocionante, vai dizer:

[...] fiquei muito feliz quando você (Lázaro Ramos) falou sobre Educação.
Vou contar uma história que marcou a minha vida, as freiras contavam a
seguinte história: que Jesus – eu demorei muito para aceitar o tal de Jesus -,
que Deus, criou um lago, rio e se banhar na água abençoada daquele maldito
rio... Aí, as pessoas que são brancas é porque eram trabalhadoras e
inteligentes, e chegaram nesse rio, tomaram banho e ficaram brancos. Nós,
como negros, somos preguiçosos. E não é verdade. Esse país só vive hoje
porque meus antepassados deram toda a condição. Então, nós, como negros
preguiçosos, chegamos no final dos banhos e no rio só tinha lama. E é por isso

80
Diva Guimarães virou celebridade em Paraty, ofuscando até os escritores convidados da Flip, após dar
um emocionante depoimento sobre racismo, na mesa que uniu o ator Lázaro Ramos e a jornalista Joana Gorjão
Henriques, para discutir o tema (BRANDÃO, 2017).
186

que só nossas palmas das mãos claras e a sola dos pés claros. Nós só
conseguimos tocar isso. Isso ela explicava [as freiras] e isso não é verdade, se
não teríamos sobrevivido, eu sou uma sobrevivente pela Educação (FLIP,
2017).

Trago esse depoimento para delinear como era o ensino no Brasil, naquela época, e
como esses tipos de fala estavam presentes nas escolas, tanto quanto em outros aparelhos
ideológicos do Estado. Para Gonzalez,

Enquanto isso, o negro, continua marginalizado nas favelas, alagados,


conjuntos ‘habitacionais’, invasões etc. Continua sendo discriminado na
admissão aos empregos, racialmente perseguido no trabalho e sofrendo a
sistemática repressão da polícia, que prende como vadio (desemprego, no caso
do negro, é sinônimo de vadiagem, sabia?) e torturado para confessar crimes
que não praticou (por falar em anistia...). Enquanto isso, as crianças negras
que vão à escola sofrem o estigma do pecado de serem negras, pois o discurso
pedagógico as submete a diferentes maneiras de se envergonharem de si
mesmas. Você sabia que a maioria das crianças consideradas desajustadas,
com problemas psicológicos e/ou psiquiátricos na rede escolar oficial são
negras? (GONZALEZ, 2020, p.182).

Assim, Gonzalez percebe que, na faculdade, já estava “perfeitamente embranquecida,


dentro do sistema” (GONZALEZ, 2020, p.286).
Dois anos depois, em 1964, ela se casa com um homem branco e de origem europeia -
lembrando que Lélia nasce como Lélia de Almeida e torna-se Gonzalez, quando se casa com o
espanhol Luiz Carlos Gonzalez, amigo da época da faculdade (BARRETO, 2005, p.19). E foi
somente depois de uma tragédia que marcou o seu casamento que ela se deu conta de que era
uma mulher negra e, a partir daí: “todo um processo de internalização de um discurso
‘democrático racial’ veio à tona, e foi um contato direto com uma realidade muito dura”
(GONZALEZ, 2020, p.286).
Em um momento inicial, quando Lélia Gonzalez começa a namorar seu colega da
faculdade, isso não lhe trouxe nenhum transtorno, nem para ela nem para seu companheiro.
Acontece que a relação foi se firmando e eles resolveram casar-se; na ocasião, Luiz Carlos
Gonzalez estava afastado da família e, pouco depois do casamento, quando ele se reaproxima
da família, começam a aparecer os problemas. Eles se casaram oficialmente, de papel passado.
Ocorre que, assim como não era comum uma mulher negra frequentar os espaços reservados
para o exercício da intelectualidade, naquele período, tampouco era comum que homens
brancos se casassem ‘oficialmente’ com mulheres negras – e vice-versa –, assim, em um
primeiro momento, a família de Luiz Carlos achou que a relação não fosse de fato um
187

casamento, mas sim que se tratava de uma “concubinagem”81. Quando souberam que, de fato,
os dois estavam oficialmente casados, os familiares dele passaram a exercer assédio moral
contra ambos, proferindo ofensas e pressões das mais diversas formas para o casal. O que Lélia
e seus amigos contam é que o marido não suportou “todo o processo de discriminação da família
dele” (GONZALEZ, 2020, p.287) e, por fim, ele se suicidou. Eles ficaram juntos até o momento
da sua trágica morte. E, em homenagem ao marido, ela resolve manter o sobrenome.
Contudo, a partir desse acontecimento traumático, Gonzalez percebe todo o seu
processo de alienação ao discurso dominante, todo embranquecimento pelo qual ela tinha
passado, percebendo a necessidade de superação dessa ideologia. Nas palavras de Gonzalez:

Aí a gente cai diretamente na questão do eurocentrismo; se percebe que a


sociedade brasileira como um todo é uma sociedade culturalmente alienada,
culturalmente colonizada, na medida em que todos os valores de um
pensamento, de uma arte, enfim, de tudo que vem da Europa, do mundo
ocidental, é o grande barato.
E é por aí que dá pra gente entender, inclusive, a impostação do próprio
discurso da esquerda, que é um discurso que se articula dentro dos valores de
uma civilização ocidental; ora, o nosso propósito, o nosso objetivo – o que é
uma dureza – é exatamente tentar subverter a ordem desse discurso, no sentido
do povo mesmo (GONZALEZ, 2020, p.291).

As experiências cotidianas do racismo tendem a ser ainda mais difíceis e violentas, no


contexto do mito da democracia racial presente na cultura brasileira.
Grada Kilomba descreve os episódios de racismo cotidiano, fora do contexto brasileiro,
“indicando o doloroso impacto corporal e a perda característica de um colapso traumático”
(KILOMBA, 2019, p.39), provocando um apagamento de determinadas marcar identitárias,
valorizando somente os aspectos da cultura racializada. “Tal separação é definida como um
trauma clássico, uma vez que priva o indivíduo da sua própria conexão com a sociedade
inconscientemente pensada como branca” (Ibidem). Ainda que as “máscaras brancas”
apareçam, os corpos negros seguem em estado de “Outridade na relação com o sujeito branco”
(Ibidem, p.40).

O sujeito negro torna-se, então, tela de projeção daquilo que o sujeito branco
teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ou o ladrão violenta/o, a/o
bandida/o indolente e maliciosa/o. Tais aspectos desonrosos cuja intensidade
causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como
um meio de escapar dos mesmos.
Em termos psicanalíticos, isso permite que os sentimentos positivos em relação

81
“[...] porque mulher negra não se casa legalmente com homem branco; é uma mistura de concubinato com
sacanagem, em última instância” (GONZALEZ, 2020, p.287).
188

a si mesma/mesmo permaneçam intactos – branquitude como a parte “boa” do


ego – enquanto as manifestações da parte “má” são projetadas para o exterior e
vistas como objetos externos “ruins”. No mundo conceitual branco, o sujeito
negro é identificado como o objeto “ruim”, incorporando os aspectos que a
sociedade branca tem reprimido e transformando em tabu, isto é, agressividade
e sexualidade” (KILOMBA, 2019, p. 37, grifos da autora).

Por isso, Fanon destaca que o que é frequentemente chamado de “alma negra é uma
construção do homem branco” (FANON, 2008, p.39), ou seja, não é da negritude que se trata,
e sim da fantasia do branco, “porque o negro se situa de modo tão característico diante da
linguagem europeia” (Ibidem, p.40), pois no “racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e
violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente ter82” (Ibidem,
p.39).
O que nos faz lembrar do samba Identidade, de Jorge Aragão (1992), para exemplificar
os resquícios da ideologia escravocrata atualizados no presente - o elevador em prédios, por
exemplo, marcando os acessos e os lugares diferentes, para aqueles considerados sujeitos e para
os assujeitados, subordinados -, ao mesmo tempo, o samba aparece como uma resposta, por
meio da arte, a esse processo colonial de embranquecimento:

Elevador é quase um templo, Exemplo pra minar teu sono/ Sai desse
compromisso/ Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai/ Quem cede
a vez não quer vitória/ Somos herança da memória/ Temos a cor da noite ‘Filhos
de todo açoite / Fato real da nossa história/ Se preto de alma branca, pra você/
É o exemplo da dignidade/ Não nos ajuda, só nos faz sofrer / Nem resgata nossa
identidade / Elevador é quase um templo / Exemplo pra minar teu sonho/ Sai
desse compromisso / Não vai no de serviço / Se o social tem dono, não vai
(ARAGÃO, 1992).

Nesse sentido, conversando Kilomba e Fanon com o samba de Jorge Aragão, Gonzalez
vai afirmar que:

Como consciência, a gente entende o lugar do desconhecimento, do


encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. Já a memória, a
gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrição que

82
No dia 20 de setembro de 2019, uma criança de 8 anos, chamada Ágatha Félix foi morta com um tiro nas costas
por policiais na cidade do Rio de Janeiro. O avô da criança, em um vídeo que circulou na internet, dizia que ela
era uma criança que estudava Inglês, fazia ballet, símbolos da cultura branca, ressaltando os valores atribuídos à
cultura branca, em uma tentativa de reconhecimento. Em 2018, o garoto Marcos Vinícius também foi morto pela
polícia e, segundo relato da sua mãe, a trabalhadora doméstica Bruna Silva, o filho, que ficou lúcido durante um
tempo mesmo baleado, “Ele disse: ‘Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Foi o blindado,
mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?’”, recorda Bruna. Ela ainda acrescenta: “Dizem que minha
comunidade é violenta. Mas a minha comunidade não é violenta, ela é muito boa. É a operação que, quando vai
lá, vai com muita truculência” (BETIM, 2018). Incluo esses dois casos, para exemplificar como o discurso do
colonizador se presentifica; dois exemplos trágicos que ilustram a ideologia do embranquecimento no Brasil.
189

restitui uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa
verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui.
[...] Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala
através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é
sacar esse jogo aí das duas, também chamado dialética. E, no que se refere à
gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser
esquecida, tirada de cena (GONZALEZ, 2020, p.78-79).

Desse modo, ela segue na direção de resgatar sua memória e construir uma outra
consciência, fora da ideologia que edifica o embranquecimento. Depois da morte do seu marido,
aproxima-se cada vez mais dos espaços de construção da cultura negra, incluindo as
agremiações de escolas de samba, identificando e valorizando os saberes presentes nesses
espaços, sem deixar de olhar para as contradições. Ela também se engaja em movimentos
sociais, bem como propõe e promove debates filosóficos sobre a pauta racial, em sua casa.
Enquanto isso, o Brasil sofria o golpe militar. Assim, neste período crítico, a cultura brasileira
passa a despertar cada vez mais o interesse intelectual de Gonzalez, especialmente o que diz
respeito às questões que envolvem gênero e raça e, por consequência, desenvolve sua
participação no campo político.
Ainda sobre sua vida acadêmica, depois desses vários episódios em que compreende
como o racismo cotidiano marcou sua vida, Gonzalez modifica os rumos das suas pesquisas na
academia, trazendo para dentro da universidade os estudos relacionados a gênero e à raça, o
que, posteriormente, possibilitou que assumisse a coordenação de um Núcleo de Pesquisa em
Gênero e Etnia, na PUC-RJ, e, mais tardiamente, um ano antes do seu falecimento (em 1994),
ela se tornou chefe do Departamento de Sociologia e Política, também na PUC-RJ.

5.3 A mulata e o mito da democracia racial

Entre esse momento em que Gonzalez se dá conta do processo ideológico pelo qual ela
estava capturada, até essa outra passagem como chefe do departamento de uma universidade
amplamente reconhecida, passaram-se quase trinta anos: essa observação presentifica o longo
caminho que foi atravessado para que Lélia ocupasse um outro lugar.
No início, foi fundamental reconhecer o lugar destinado às mulheres colonizadas na
lógica discursiva que estrutura as relações sociais; desse modo, Gonzalez passa a se perguntar
qual o lugar da mulher negra na cultura brasileira, e encontra nessa interrogação caminhos que
apontam para a objetificação e a inferiorização das mulheres negras no discurso brasileiro: é
como Outro que a mulher é colocada, aquela que deve servir ao sujeito que estabelece e a
190

discursividade que organiza os lugares em que cada um/uma pode ou não ocupar; desse modo,
o lugar destinado às mulheres negras é um lugar designado à subordinação e ao silenciamento.
O retrato da “Escrava Anastácia” é uma das imagens mais emblemáticas da função do
apagamento e do silenciamento do povo negro, em território brasileiro. Há diversos relatos
sobre a mulher retratada nessa obra.

Figura 11 – Retrato de Anastácia83.

Fonte: Wikipedia (Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_Anastacia> . Acesso


em: 15 mar. 2022).

Sem história oficial, alguns dizem que Anastácia era filha de uma família real
Kimbundo, nascida na Angola, sequestrada e levada para a Bahia e
escravizada por uma família portuguesa. [...] Outros alegam que ela foi uma
princesa Nagô/Yorubá antes de ser capturada por europeus traficantes de
pessoas e trazida ao Brasil na condição de escravizada. Seu nome africano é
desconhecido. As razões dadas para esse castigo variam: alguns relatam seu
ativismo político no auxílio de fugas (KILOMBA, 2019, p.35).

83
O retrato de Anastácia foi feito por um francês de 27 anos, chamado Jacques Arago, que se juntou a uma
“expedição científica” pelo Brasil, como desenhista, entre dezembro de 1817 e janeiro de 1818. Há outros desenhos
de máscaras cobrindo o rosto inteiro de escravizadas/os, somente com dois furos para os olhos; estas eram usadas
para prevenir o ato de comer terra, uma prática entre escravizadas/os africanas/os, para cometer suicídio. Na
segunda metade do século XX, a figura de Anastácia começou a se tornar símbolo da brutalidade da escravidão e
seu contínuo legado do racismo. Ela se tornou uma figura política e religiosa importante em torno do mundo
africano e afrodiaspórico, representando a resistência histórica desses povos. A primeira veneração de larga escala
foi em 1967, quando o curador do Museu do Negro do Rio de Janeiro erigiu uma exposição para honrar o 80º
aniversário da abolição da escravização no Brasil. Anastácia também é comumente vista como uma santa dos
Pretos Velhos, diretamente relacionada ao Orixá Oxalá ou Obatalá - orixá da paz, da serenidade e da sabedoria - e
objeto de devoção no Candomblé e na Umbanda (HANDLER; HAYES, 2009 apud KILOMBA, 2019, p.36).
191

Podemos pensar que o silenciamento imposto contra Anastácia aparece como condição
para o funcionamento da lógica colonizadora: se ela foi princesa ou não, nunca saberemos, no
entanto, podemos deduzir, pela máscara que impõe o silenciamento e impede o acesso à própria
boca, que esta mulher representaria uma ameaça ao bom funcionamento do sistema
escravocrata. Afinal, seu ativismo político, em ato, organizava a luta, ocupava a linguagem,
fazendo circular os signos que ela carregava da/na sua língua, livre do atravessamento colonial,
atrapalhando, assim, o bom funcionamento da mestria colonizadora.
Não é curioso que o dito imaginário popular aponte que Anastácia recebeu esse castigo
porque era muito bonita, por isso, chamou a atenção do senhor, mas como ela era insubordinada
levou tal castigo. Ora, ora, essa não é a versão original do colonizador? Criando esse estereótipo
que destina as mulheres negras a um lugar servil e sexualizado? E não como uma figura capaz
de se organizar politicamente?
Na versão hegemônica, as mulheres, principalmente as racializadas, estão fora da
condição de serem sujeitos, assim, estão destinadas a ocupar o lugar do Outro; é para isso que
serve a subalternização e o silenciamento, para que elas não possam ocupar outros lugares, já
que ocupar tais lugares, de agenciamento na lógica discursiva, alteraria toda estrutura.
Para Lélia Gonzalez (2020), quando falamos em mulheres negras no Brasil, “trata-se
das noções de mulata, doméstica e mãe preta” (p.76). “Que a mulher negra, ao exercer a
profissão de mulata, por eles inventada, é apresentada como “produto de exportação” (p.181).
Diante do exposto, Gonzalez lança a seguinte questão:

Cumé que a gente fica? [...] Como a mulher negra é situada no seu discurso?
[...] Falamos da mulata, ainda que de passagem, não mais como uma noção de
carácter étnico, mas com uma profissão. [...] por que o negro é isso que a
lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós sabemos)
domesticar? (GONZALEZ, 1981/2020, p. 75-77).

Isso aponta para a importância de compreender um pouco mais como esses processos
de domesticação, silenciamento e subordinação são operados, desse modo, gostaríamos de
acompanhar como Spivak (1985/2014) trabalha essa questão.

5.4 Pode o subalterno falar? A função do silenciamento engessando a estrutura social

Gayatri Spivak é uma mulher indiana, pensadora crítica e autora de um dos principais
192

textos pós-coloniais - Pode o subalterno falar? (1985) -, escrito contemporâneo à interrogação


de Gonzalez: “Como a mulher negra é situada no seu discurso?” (1981/2020, p.76).
Em seu artigo, Spivak (1985) apresenta uma das suas preocupações centrais sobre como
desafiar o discurso hegemônico e os efeitos que as crenças dele produzem. A autora parte de
uma crítica que direciona aos intelectuais ocidentais, especialmente a Deleuze e Foucault,
propondo reflexões sobre a “prática discursiva do intelectual pós-colonial e também de uma
autocrítica ao grupo de estudos subalternos” (SPIVAK, 1985, p.12). O grupo de estudos de que
ela também participava partia da formulação de Gramsci do subalterno como uma categoria
despossuída do poder e, seguindo essa esteira de pensamento, a autora traça um retorno a Marx,
para contextualizar como, inicialmente, foi atribuída tal subalternização ao proletariado, ou
seja, àquele cuja voz não pode ser escutada, e como, por essa via, foi traçada tal construção que
cria um “modelo de dissimulação social” (Ibidem, p.45), de tal modo que sobre “‘o verdadeiro’
grupo subalterno, cuja identidade é a sua diferença, pode-se afirmar que não há nenhum sujeito
subalterno irrepresentável que possa saber e falar sobre si mesmo” (Ibidem, p.76-77). Acontece
que, para Spivak, o sujeito subalterno não se reduz a uma categoria monolítica e indiferenciada,
então ela retoma esse significado e o de como são “as camadas mais baixas da sociedade
constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e
legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”
(SPIVAK, 1985, p.14); à medida em que esses sujeitos subalternizados são teorizados e
descritos como outros pelos intelectuais, resulta em reforçar ainda mais tal problemática, já que
isso mantém o subalterno nesse lugar de outro, de objeto do conhecimento dos intelectuais.
Para ela, denunciar tal questão – sobre o processo de outrificação presente na lógica discursiva
– seria um ato de resistência.
Interessante como ela caracteriza a posição discursiva, apontando como o subalterno
não ocupa o lugar de agenciamento no discurso, portanto, não pode falar. O subalterno e o
colonizado são sempre falados por intermediações daqueles que creem ter um poder dizer,
assim, para ela, a tarefa do/a intelectual pós-colonial é modificar essas coordenadas, de modo
que ela propõe produzir uma diferença entre falar do sujeito como objeto e falar das condições
de subalternização e criação de espaços e mecanismos para que esses sujeitos possam ser
escutados. Advertindo que essas pessoas historicamente subalternizadas sempre falaram, a
questão não é essa, mas sim do como a hegemonia não valida o que é dito por esses subalternos,
outrificados.
Nesse sentido, Spivak visa a explicitar que não há uma homogeneidade inerente a essa
categoria, destacando como a mulher subalterna tem ainda mais dificuldade, destinada a um
193

lugar ainda mais espinhoso, mais periférico, por incluir toda a problemática que é operada pelas
questões de gênero no discurso hegemônico, que invalida a história, memória e o lugar das
mulheres nas periferias do mundo, nessa condição imposta pelo processo colonial. Desse modo,
a autora destaca e trabalha o duplo deslocamento que o sistema hegemônico opera. Vale situar
que, ao escrever esse texto, ela contextualiza um termo muito usado na década de 1980, que
classificava e separava o mundo em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, e é nesse contexto
que desenvolve as diversas questões que orientam e marcam o lugar do subalternizado na
cultura vigente.

Pode o subalterno falar? O que a elite deve fazer para estar atenta à construção
contínua do subalterno? A questão da “mulher” parece ser a mais problemática
nesse contexto. Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher, está
envolvida de três maneiras. Se, no entanto, essa formulação é deslocada do
contexto do Primeiro Mundo para o contexto pós-colonial (que não é idêntico
ao do Terceiro Mundo), a condição de ser “negra” ou “de cor” perde o
significado persuasivo.
[...] Devemos acolher também toda recuperação de informação em áreas
silenciadas, como está ocorrendo na antropologia, na ciência política, na
história e na sociologia. No entanto, a pressuposição e a construção de uma
consciência ou de um sujeito sustentam tal trabalho e irá, a longo prazo, se
unir ao trabalho de constituição do sujeito imperialista, mesclando a violência
epistêmica com o avanço do conhecimento e da civilização. E a mulher
subalterna continuará tão muda como sempre esteve (SPIVAK, 1985/2014,
p.110-112).

No último parágrafo do livro mencionado, a autora indica o papel que a mulher


intelectual tem diante dessa situação, a fim de modificar tal destino inventado e imposto para
as mulheres.
Acompanhamos, ao longo do Capítulo anterior, como as feministas da terceira onda
situam o lugar da mulher negra no discurso, sobretudo, como hooks, Lorde, e Davis analisam a
forma como a estrutura social inferioriza as mulheres negras, ao longo dos últimos séculos/anos.
Spivak também se ocupa em analisar o laço social, mas a partir de um outro lugar, articulando
quem é autorizado ou não a falar, a agenciar a lógica discursiva que organiza a estrutura; nesse
sentido, traceja o lugar de subalternização no laço, como o lugar ocupado por aqueles que não
podem falar, e, não por acaso, o lugar destinado à subalternização está reservado para as
mulheres de países colonizados.
Incluindo a tese de Spivak, podemos analisar como as hierarquizações, por intermédio
do processo de colonização, se fazem presentes desde a modernidade, tendo o racismo e o
sexismo como fundamentais na estrutura capitalista, por todo o mundo moderno, e isso
194

atravessa os sujeitos de maneira geral, mas saber que nenhum sujeito que está presente no laço
escapa, e que as mulheres e os sujeitos racializados são os que mais sofrem seus efeitos não
exclui considerar as particularidades de como isso se opera, de como o discurso instaura essa
lógica, criando especificidades mais nocivas para uns do que para outros.
Todos somos atravessados pelo racismo e sexismo estrutural, afinal ele se inscreve pela
cultura, entretanto o lugar que cada um ocupa no discurso nunca será o mesmo, tudo vai
depender do lugar ao qual será destinado na discursividade que monta a lógica de
reconhecimento, no discurso de mestria, o sujeito – suposto – universal será a medida para
chancelar quem pode ou não ser sujeito e quem ocupará o lugar do Outro.
Enfim, depois dessa pequena reflexão sobre Pode o subalterno falar?, destacando as
mulheres periféricas como aquelas que são historicamente subalternizadas, nosso objetivo é ir
adiante, tomando a ideologia crítica como uma estratégia para a construção de uma outra
consciência, bem como de um outro lugar para tais sujeitos na estrutura social.

5.5 Ideologia crítica versus o apagamento epistêmico enquanto função discursiva

Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou


uma epistemologia que eliminou da reflexão
epistemológica o contexto cultural e político da
produção e reprodução do conhecimento? Quais
foram as consequências de uma tal
descontextualização? Haverá epistemologias
alternativas? (SANTOS, 2009, p.10).

Como investigamos, os estudos sociais acadêmicos são eurocentrados, por isso o acesso
a pensadoras como Lélia Gonzalez é negligenciado, a hegemonia opera uma espécie de morte
epistêmica, para apagar a intelectualidade negra, precisamente para perpetuar o modo como a
história é contada, operando a manutenção da hegemonia dominante; de outro modo intelectuais
como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e tantos outros poderiam modificar como a
história brasileira é contada84. Como se disse, rotineiramente e não à toa, pensadoras como

84
Por exemplo, o Dia da Consciência Negra não tinha esse nome e era comemorado em maio, na data em que a
princesa Isabel assina a Lei Áurea, como se esse ato fosse o que de fato mudou as coordenadas do processo de
escravização. Essa é a forma com que ainda é contada a história em diversas escolas, quando, na verdade, foi um
processo de luta, e a classe dominante, naquele período, fez o que pode para manter o regime, e só quando essa
prática se tornou inviável é que a lei foi assinada, sendo que o Brasil foi um dos últimos países a, oficialmente,
abolir a escravidão. Porém, a partir do momento em que pesquisadores que não fazem parte da classe dominante
passam a pesquisar a história, outras narrativas passam a circular. Por isso, lá na década de 1970, os intelectuais
negros resgatam a história de Zumbi e, anos depois, modifica-se o mês da Consciência Negra, em função da
simbologia de Zumbi dos Palmares. A data de 20 de novembro passa a ser celebrada, ainda nos anos 1970, pelos
movimentos, e é somente em 2011 que “É instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser
195

Gonzalez não têm apoio editorial85 nem circulação de suas obras, como acontece com outros
nomes. Essa é uma estratégia da ideologia colonial, conforme disseram Boaventura de Sousa
Santos (2009) e Aníbal Quijano (2009). Por isso, embora Gonzalez seja umas das principais
sociólogas da cultura brasileira, reconhecida internacionalmente, suas obras circularam pouco
nas academias brasileiras, nas últimas décadas.
Neste momento, gostaria de destacar uma fala da professora, filósofa socialista e ativista
do feminismo negro e interseccional, Angela Davis. Na ocasião em que esteve no Brasil, para
participar do seminário Democracia em colapso?86, ela se dizia surpresa com o tanto de pessoas
que foram escutá-la, no auditório do Sesc Pinheiros; estava impressionada porque o teatro que
comporta 1010 lugares estava completamente ocupado e havia a transmissão simultânea para
mais centenas de pessoas que ficaram do lado de fora, acompanhando a transmissão via telão.
No evento, ao ser questionada sobre a condição das mulheres negras, Angela Davis diz que não
entendia por que dirigiam essa questão para ela no Brasil, nas palavras dela: “Por que vocês
precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do
que vocês comigo” (DAVIS, 2019)87.
Figura 12 – Lélia Gonzalez e Angela Davis, em 1984.

Fonte: Acervo Lélia Gonzalez (1984).

comemorado no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares”. É o que diz a Lei
12.519, de 10 de novembro de 2011, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff. Um dos poucos feriados
nacionais que não tem origem católica.
85
Aproveito para destacar como os textos de Lélia Gonzalez só foram publicados por uma editora com ampla
circulação somente em 2020, até então seus textos circulavam com muita dificuldade, apenas entre os movimentos.
86
Evento que reuniu diversos pensadores e pensadoras em São Paulo, organizado pela Boitempo, em parceria com
o Sesc São Paulo, entre os dias 15 e 19 de outubro de 2019.
87
Resumiu Angela Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019, num indicativo
de que os brasileiros precisam reconhecer mais a sua própria pensadora, uma das pioneiras nas discussões sobre a
relação entre gênero, classe e raça no mundo.
196

Desse modo, insisto em ressaltar as qualidades intelectuais de Gonzalez, que circulavam


dentro e fora do circuito acadêmico, bem como dentro e fora do Brasil, como apontou Angela
Davis. Portanto, podemos nos perguntar: por que Lélia Gonzalez não é uma das principais
referências teóricas nas universidades brasileiras? Por que ficou negligenciada, durante as
últimas décadas, nas universidades brasileiras? O que Angela Davis assinala, compartilhando
sua surpresa em relação ao apagamento de Lélia Gonzalez nos circuitos intelectuais brasileiros,
representaria a síndrome de colonizado que atravessa a cultura tupiniquim? Ou faria parte do
que a própria Lélia Gonzalez apontou como fruto do sexismo e racismo que organizam e
estruturam cultura brasileira? O que isso esconde e o que isso presentifica seria justamente a
“sintomática que caracteriza a neurose brasileira” (GONZALEZ, 2020, p.76).
E mais, é importante pensar como a própria Lélia Gonzalez, na construção da sua práxis,
lidava com essas contradições, ao passo que, ao construir um saber sobre as armadilhas
colocadas no seu caminho nos espaços de poder, ela assumiu um estilo próprio de transmissão,
seja nos espaços acadêmicos ou fora deles, sem se adequar a um modelo pré-estabelecido,
subvertendo a norma culta da língua portuguesa e as convenções formais que enquadram o lugar
de quem pode ou não pode ser reconhecido como intelectual, em tal circuito discursivo (o
campo acadêmico). Do mesmo modo, seguia ocupando lugares e se apropriando da linguagem
à sua maneira, assim não se encaixava no lugar que o discurso lhe destinava, pelo contrário,
usava a linguagem para desestabilizar esse ordenamento, fazendo uso da língua “‘da negada
para a negada’, em um texto acadêmico considerado ‘sério’” (BARRETO, 2005, p.13), tanto
quanto nas suas interlocuções e intervenções, nos diversos campos políticos em que circulava.
Gonzalez atua com a língua e, dessa maneira, contribui na linguagem, através da forma
como ela constrói sua estratégia narrativa, transportando textos acadêmicos, que costumam ser
engessados pela norma culta. A práxis de Gonzalez leva para o cogito as coisas do habitual,
tomando o cotidiano como um lugar estratégico para girar a linguagem coloquial. Linguagem
essa que é a marca da africanização do português no Brasil. Linguajar popular, salpicado de
expressões acadêmicas.
Enfim, Lélia Gonzalez fundamentou uma práxis que pode ser reconhecida como
costurando elucidações que permeiam diversas áreas do conhecimento, congregando um vasto
número de intelectuais de diferentes posicionamentos e culturas distintas, continuamente atenta
ao modo como as várias epistemologias e repertórios poderiam contribuir para pensar a
complexidade da cultura brasileira.
197

5.6 Uma contingência trágica: o encontro com a Psicanálise e a abertura para novos
sentidos

Depois da experiência traumática citada anteriormente, que resultou na morte do seu


companheiro, Luiz Carlos Gonzalez, acarretando a sua desconstrução da consciência ideológica
do embranquecimento, Gonzalez avança para construir respostas para tornar-se uma mulher
negra. “Eu parti para a minha negritude, pra minha condição de negra. Eu comecei a verificar
que a grande ilusão da ideologia do branqueamento é o negro pensar que é diferente dos outros
negros, você cria uma cortina ilusória” (GONZALEZ, 2020, p.322). Nesse momento, ela inicia
seu primeiro processo de análise.

Eu comecei fazendo análise com o Carlos Byington, que é junguiano. Eu


comecei a frequentar candomblé. Meu lance com a psicanálise foi muito
interessante, a psicanálise me chamou a atenção sobre meus próprios
mecanismos de racionalização de esquecimento, de recalcamento etc. Foi
inclusive a psicanálise que me ajudou nesse processo de descobrimento da
minha negritude (GONZALEZ, 2020, p.322).

Concomitantemente à entrada em análise, ela busca sua ancestralidade (re)construindo


sua história, é aí que acontece o encontro com o candomblé e o resgate dos saberes africanos,
bem como incide um reencontro com a história da sua mãe, Urcinda, e de todos os saberes que
até então ela não reconhecia, resgatando sua ancestralidade, para essa construção em análise
que a levou a tornar-se uma mulher negra.
Tornar-se uma mulher negra era uma dupla construção, algo que ela descreve trazendo
a referência de Simone de Beauvoir (1949/2019), faz-se necessário uma construção para
tornar-se mulher, e outra para tornar-se negra. “Simone de Beauvoir, quando esta afirma que a
gente não nasce mulher, mas se torna (costumo retomar essa linha de pensamento no sentido da
questão racial: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc., mas se tornar negra é
uma conquista)” (GONZALEZ, 2020, p.269). De tal modo que tornar-se mulher negra é um
ato. “Mulher a gente não nasce, a gente se torna. Tornar-se mulher é uma conquista muito
dolorosa, muito sofrida, mas é muito compensadora numa série de aspectos” (GONZALEZ,
2020, p.317). Tornar-se mulher negra é um trabalho psíquico “é subverter um lugar imposto no
laço discursivo” (ROSA; SANTOS; BINKOWSKI, 2019).
Portanto, para Gonzalez:

A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel
198

e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade


que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta,
acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua
negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos
etc. (LÉLIA GONZALES, s.d.).

Assim, a experiência passa por um saber-se negro, modificando e recriando


possibilidades para uma experiência – tão massacrada, apagada e silenciada – enquanto
reconhecer o saber-fazer a partir do resgate de valores apagados pelo discurso hegemônico.
Portanto, para ela, foi fundamental revisitar suas origens ao longo desse processo.

Busquei as minhas raízes, e passei a perceber, por exemplo, o papel


importantíssimo que a minha mãe teve na minha formação. Embora índia e
analfabeta, ela tinha uma sacação assim incrível a respeito da realidade em
que nós vivíamos e, sobretudo, em termos de realidade política (GONZALEZ,
2020, p.287).

Por consequência, esse novo olhar para a sua mãe lhe permitiu pensar e compreender o
povo brasileiro.
Daí em diante, Lélia Gonzalez passa a se aproximar e frequentar cada vez mais os
movimentos políticos, especialmente o movimento feminista – das mulheres negras –, e os
espaços promotores da cultura negra, tradições e memórias.

5.7 A incorporação dos saberes ancestrais

A importância das matrizes africanas é entendida como outra chave para pensar a
cultura. Sobre o candomblé ela vai dizer que “Não é misticismo, é outro código cultural,
misticismo é uma coisa do ocidente. O candomblé é uma coisa muito mais ecológica, você faz
comida, você faz oferenda, você vai pra floresta. Minha religiosidade está muito mais
africanizada do que ocidentalizada” (GONZALEZ, 2020, p.323).
Na condição de pensadora que valorizava o conhecimento da cultura negra, ela criou,
em 1976, o primeiro curso de Cultura Negra no Brasil, na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage (EAV) (BARRETOS, 2005). Para Lélia Gonzalez, o conceito de cultura deveria ser
pensado de maneira ampla e plural, visando à conscientização política. Nesse sentido, o curso
de Cultura Negra apresentava como os elementos da cultura africana poderiam auxiliar no
entendimento da formação histórica da cultura brasileira.
Os ensinamentos da cultura africana não criam uma dicotomia entre mente e corpo, entre
homem e mulher, inclusive a pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí vai dizer que é “o
199

colonizador que diferenciava os corpos masculinos e femininos e agia de acordo com tal
distinção”, uma vez que não existe gênero na cultura Oyó-Iorubá (OYĚWÙMÍ, 2021, p.21; p.
186). Uma outra crítica que podemos encontrar na autora nigeriana apresenta as diferenças
ancestrais em relação à cultura ocidental; uma dessas formas diferentes de estabelecer a cultura
se dá através do apagamento do corpo como forma de valorização da racionalidade na cultura
ocidental, um código cultural completamente diferente do candomblé, como dissemos há pouco
com Gonzalez. Ao contrário dessa organização dicotômica,

as tradições afroindígenas não percebem o ser humano como cindido e sim


como resultado da interdependência entre todas as coisas. A corporeidade,
para estes saberes, não engloba só a motricidade (entendida como corpo e
movimento) mas também envolve dimensões afetivas, intelectuais, sociais e
espirituais do ser humano (SIMAS, 2022, p.43).

Ainda sobre as heranças culturais transmitidas pelos saberes africanos, Rufino (2019)
vai dizer que

A palavra e o corpo nunca se desassociaram, são fundamentadas no mesmo


princípio que é Exu. O corpo (campo produtor de discursos verbais e não
verbais), assente em outras formas de racionalidade, como destacado nas
sabedorias transladadas pelo Atlântico, é dotado de uma inteligência integral.
A sapiência do corpo é o que chamo de mandinga, inteligibilidades próprias
de um amplo complexo de saberes que se codificam e se expressam a partir
do que conceituo como incorporação (RUFINO, 1987/2019, p. 58-59).

Tudo isso para dizer que Gonzalez incorpora ao currículo oferecido pelo curso de
Cultura Negra, no Parque Laje, aulas práticas de dança afro-brasileira, capoeira e o
conhecimento das religiões de matriz africana, ampliando de maneira vasta as formas de pensar
a cultura, incorporando outras epistemologias, epistemologias de encruzilhada (RUFINO,
2019), visando à descolonização do pensamento.
Lélia Gonzalez não hierarquizava ações políticas e culturais. Segundo ela, ambas eram
relevantes para a transformação social. Em sua trajetória são abundantes as experiências e
colaborações com grupos culturais, artísticos e intelectuais. Em meados dos anos 1970, ela
colaborou com o Grêmio Recreativo de Arte Negra e com a Escola de Samba Quilombo, ao
lado do mestre Candeia88, e integrou o conselho consultivo da Diretoria do Departamento
Feminino do Granes Quilombo. Mais tarde, assessorou o cineasta Cacá Diegues em seu filme

88
O Granes Quilombo foi criado em 8 de dezembro de 1975 por Candeia e compositores como Nei Lopes e Wilson
Moreira. Eles não aceitavam o gigantismo das escolas de samba tradicionais, nas quais os sambistas estavam
perdendo a voz para pessoas estranhas ao meio (A PENSADORA É, 2020).
200

Quilombo (1984). Lélia pertenceu a um terreiro de Candomblé no Rio de Janeiro e festejou o


fortalecimento dos blocos afros e afoxés, em Salvador, na Bahia. Esteve na inauguração do
Olodum, no dia 25 de abril de 1979, em Salvador. Afinal, para Lélia Gonzalez, a linguagem
cultural precisava ser subvertida, já que o sexismo e o racismo eram as marcas profundas da
cultura de dominação brasileira e latino-americana (RIOS, 2020; ADJUNIOR, 2020).

5.8 Tornar-se negra: uma luta constante

Todo esse encontro com a sua negritude junto às suas construções em análise
contribuíram para que Gonzalez promovesse encontros e debates sobre os mais diversos temas,
oferecendo sua casa como ponto de encontro. Essas reuniões ocorreram, inicialmente, com
amigos e lideranças dos movimentos, lembrando que, nesse período, o Brasil estava em plena
ditadura militar e qualquer reunião política configurava crime. Januário Garcia, amigo de Lélia
Gonzalez, narra as experiências nessas reuniões. Em entrevista para Barreto, ele vai dizer:

Naquela época, eu fazia parte de um grupo de pessoas que produziam cinema.


Nós frequentávamos muito o Cine Paissandu. Era a época dos ciclos de
Godard, Bergmann, Fellini, Buñuel. Era a época do existencialismo. Na
ocasião, eu era fotógrafo de cinema e frequentava as reuniões na casa de Lélia,
porque estava interessado nas discussões sobre intelectuais, como Simone de
Beauvoir, Althusser e Sartre, entre outros89 (BARRETO, 2005, p.23).

Flávia Rios (2021) destaca algumas das principais referências intelectuais de Gonzalez:
Simone de Beauvoir, Heleieth Safioti, W.E.B. Du Bois, Rose Marie Muraro, Beth Millan, MD.
Magno, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Albert Memmi, Frantz Fanon,
Carlos Hasenbalg, Alice Walker, Abdias do Nascimento, Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Também encontramos nos textos de Gonzalez referências a Marx e a Althusser.
De certo modo, esses e essas pensadores e pensadoras influenciaram na práxis política
de Lélia Gonzalez. Ela é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado contra
Discriminação e o Racismo (MNUCDR), entre 1978 e 1982, atualmente Movimento Negro
Unificado (MNU), marcando presença no ato público de fundação do MNU, realizado nas
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978, no contexto da ditadura
militar no Brasil.

89
Entrevista realizada com Januário Garcia, em 03 de julho de 2004.
201

Em 1978, eu fui à Bahia dar um curso sobre os noventa anos da abolição, e


posteriormente esse grupo se tornou o núcleo do MNU. Quando eu voltei,
entrei para a Convergência Socialista, que era um movimento político que
possuía preocupações com o negro. Durou pouco essa permanência na
Convergência, em junho de 1978 eu estava nas ruas com o Movimento Negro
Unificado. O MNU foi extraordinário, ele teve um papel importante de
mobilização do negro, eu fui fundadora desse movimento, fiz todo o processo
de criação, fiz parte da Comissão Executiva Nacional até 1982 (GONZALEZ,
2020, p.322).

Figura 13 - Lélia discursando em ato público, na Cinelândia, Rio de Janeiro, 1983.

Fonte: Foto de Januário Garcia (1983).

Lélia também ajudou a fundar o Grupo Nzinga, um coletivo de mulheres negras


(GONZALEZ, 2020; ALMEIDA; MOURA, 2019, p.28). O coletivo se estruturava com um
trabalho político baseado nos campos de atuação das suas militantes, as quais eram ligadas às
associações de moradores, um movimento muito expressivo na época. O nome Nzinga era uma
homenagem a uma rainha de África que se tornou conhecida por lutar contra os colonizadores.
Além disso, Lélia integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), de 1985 a
1989. Também em 1985, “participa com Benedita da Silva, então vereadora eleita do Rio de
Janeiro, da Conferência de Nairóbi, no Quênia” (GONZALEZ, 2020, p.374).
202

Figura 14 - Benedita da Silva, então vereadora do Rio, e Lélia Gonzalez, em viagem a Nairóbi
(Quênia), em 1985.

Fonte: Acervo Lélia Gonzalez (1985).

Figura 15 - Ação do Nzinga no Morro do Andaraí, Rio de Janeiro, 1988.

Fonte: Acervo Lélia Gonzalez, Projeto Memória (1988).

Por ser uma liderança cada vez mais conhecida, sua visibilidade lhe rendeu a inclusão
de seu nome nos fichários do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS), órgão de
repressão criado pela ditadura militar: ela foi fichada mais de uma vez, sob a acusação de
recrutamento de adeptos à doutrina marxista e por seus apontamentos críticos sobre o mito da
democracia racial, somada, ainda, à sua práxis feminista e à participação junto ao movimento
203

negro, o que caracterizava enfrentamento ao sistema ditatorial que assolava o país durante o
período da ditadura militar brasileira (1964-1985), lembrando que, nesse período, estava
proibida qualquer organização por parte da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional,
(1967), artigo 39, parágrafo VI, determinava que era crime: “Incitar publicamente ao ódio ou à
discriminação racial”, de tal modo que denunciar o racismo era ir contra essa lei, portanto, expor
o mito da democracia racial representaria uma ameaça à ordem social.

5.9 Participação política: a abertura para novas sentidos e a dimensão do ato

Para o amigo e fotógrafo do Movimento Negro durante mais de 20 anos, Januário


Garcia, “ela quebrou o paradigma da sociedade brasileira que dizia que, no Brasil, não havia
racismo porque o negro sabia qual era o seu lugar, ela resolveu sair do lugar”
(AMEFRICANIDADE, 2020).
Nesse sentido, como estamos acompanhando, Gonzalez inventa outros lugares para si.
Seus estudos e participações em atos levavam-na a um processo intenso de politização,
congregando esses saberes às suas análises sobre o papel da ideologia e as várias formas
possíveis para compreender a cultura brasileira, no contexto problemático – social, econômico
e político – em que se encontrava o Brasil. Daí, ela se aproximar cada vez mais da luta pela
democratização, entendendo que não seria possível haver democracia, se o processo de
democratização não abarcasse a superação da ideologia que sustenta o racismo e o sexismo, nos
aspectos da construção de uma teoria sobre a cultura brasileira, que incluíssem os aspectos
historicamente “denegados” (GONZALEZ, 2020, p. 151), jogando luz nas perspectivas e
elementos culturais que foram apagados por aqueles que construíam as teorias sobre o Brasil,
via discurso vigente.
Assim, como intelectual, teceu duras críticas à forma como Gilberto Freyre naturalizou
o que veio a ser popularizado como uma espécie de democracia racial no Brasil. Para a autora,
a ideologia da cordialidade apresentada por Freire representa o que ela nomeou de “neurose
cultural” (GONZALEZ, 2020, p.76), demonstrando como a exaltada miscigenação foi resultado
da violência do estupro da mulher negra.
Além disso, Gonzalez apontou os problemas contidos na lógica patriarcal, em A
formação do Brasil contemporâneo, escrito por Caio Prado Jr. Para ela não havia democracia
racial no país, já que não havia democracia, de maneira geral. Ou seja, era impossível consentir
que houvesse democracia racial como defendiam alguns pensadores na época.
204

Portanto, estava à frente das lutas pela democracia no país, mas alertando que não se
tratava de um processo de redemocratização e, sim, de instaurar uma democracia, já que: “para
nós negros, para nós índios, para nós mulheres, jamais houve democracia neste país. Então não
me venham me falar de redemocratização, porque para nós nunca houve democracia”
(GONZALEZ, 2020, p.237).

5.10 A defesa da democracia via participação política eleitoral

Lélia é a precursora, no Brasil, de todas as


mulheres negras que se identificam com os
princípios filosóficos e políticos de eliminação de
opressão sofrida e das desigualdades daí
decorrentes e de promoção da nossa autonomia. Já
no final dos anos 1970, Lélia, articulando questões
ligadas à opressão de gênero, raça e classe,
alertava sobre a interseccionalidade (sem usar a
expressão) das violências sofridas por nós. Fazia
isso, enquanto Patricia Hill Collins escrevia
reflexões que viriam a substantivar o trabalho de
ativistas e pesquisadoras negras no Brasil e na
América Latina (SILVA, 2018, p. 253-254).

As experiências citadas até aqui foram fundamentais para a tomada de decisões sobre
os caminhos em que Gonzalez direcionaria suas pesquisas, bem como condicionaram suas
decisões sobre a forma como participaria politicamente.
Gonzalez participou da formação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, fazendo parte
do seu Diretório Nacional (GONZALEZ, 2020, p.373). Nessa ocasião, aproximou-se da
também militante e mulher negra Benedita da Silva. Gonzalez estava cada vez mais organizada
politicamente.
Em 1982, candidatou-se a deputada federal pela primeira vez, alcançando uma votação
expressiva, mas insuficiente para garantir a vaga na Câmara dos Deputados, faltaram apenas
oito votos para ser eleita, assim, naquela ocasião, tornou-se a primeira suplente e assessora de
Benedita da Silva, que garantira a sua eleição.
205

Figura 16 – Campanha política de Lélia Gonzalez.

Fonte: Foto de Januário Garcia, acervo Januário Garcia (1982).

Na ocasião de sua candidatura pelo Partido dos Trabalhadores, Gonzalez concedeu


diversas entrevistas defendendo sua maneira crítica de pensar as políticas como um todo,
renunciando a enquadramentos identitários de maneira pioneira. Em entrevista ao jornal
Mulherio, ela é questionada sobre o slogan “mulher vota em mulher” (GONZALEZ, 2020,
p.300) e, naquela ocasião, já adverte o quanto isso é uma baboseira: para ela, os negros não
necessariamente precisam votar em negros e as mulheres votar em mulheres, mas sim em
candidatos que defendam nas instâncias de poder a inclusão de pautas que proponham políticas
pensando nas questões raciais, assim como não basta ser mulher para pautar a condição das
mulheres na sociedade, de modo que o fundamental era defender candidaturas de pessoas
feministas e antirracistas. De maneira muito lúcida, frisava que o que está em jogo no campo
político é o posicionamento ideológico e não o gênero ou a cor da pele.
No início da década de 1980, ainda não circulava o conceito de interseccionalidade90,
mas, à sua maneira, era isso que ela defendia na sua práxis política. Sem a ideologia
interseccional, não se muda o jogo posto pela classe dominante, já que a cultura busca
invisibilizar o colonialismo, mascarando as relações entre dominados e dominantes, de tal modo
que mulheres e negros podem perpetuar sua condição no laço, se não estiverem cientes e
conscientes do funcionamento de tal ideologia, da ideologia colonial. Como diria Paulo Freire,
na sua Pedagogia do Oprimido (1992): “Quando a educação não é libertadora, o sonho do

90
Como apresentado no Capítulo sobre a terceira onda do feminismo, o conceito interseccionalidade foi cunhado
somente em 1987, pela acadêmica, advogada e ativista Kimberlé Crenshaw.
206

oprimido é ser o opressor”, já que “a pedagogia dominante é a pedagogia das classes


dominantes”. Assim, sem a consciência de classe, o sonho do dominado é ser o dominador.
Sem refletir e produzir conhecimento e reconhecimento do saber popular, é impossível
sair dessas coordenadas de dominação, ressaltando algo que o pensamento feminista e
antirracista já promovia sobre a importância de ocupar a fala na produção do conhecimento,
como vimos a partir de diversas autoras, como hooks, Lorde e Kilomba, no Capítulo anterior.
Nesse sentido, no ano seguinte, em 1983, Gonzalez tece duras críticas ao Partido dos
Trabalhadores. Em artigo dirigido ao partido, chamado Racismo por omissão, ela aponta:

[...] o ato falho com relação ao negro que marcou a apresentação do PT me


pareceu de extrema gravidade não só porque alguns dos oradores que ali
estiveram possuem nítida ascendência negra, mas porque se falou de um
sonho; um sonho que se pretende igualitário, democrático etc., mas exclusivo
e excludente. Um sonho europeizantemente europeu. E isso é muito grave,
companheiros. Afinal, a questão do racismo está intimamente ligada à suposta
superioridade cultural (GONZALEZ, 2020, p.221).

Dito isso, Gonzalez vai afirmar que o único candidato realmente comprometido com as
questões raciais naquele pleito era Leonel Brizola e, justamente por isso, Brizola havia
conquistado ampla votação de pessoas negras no Rio de Janeiro: “Na campanha de 1982 para
o governo do estado do Rio de Janeiro, Brizola foi o único candidato que falava da questão
racial com tranquilidade, olhando-a nos olhos, e falando dela não como uma coisa dramática”
(GONZALEZ, 2020, p.236).
Assim, por compreender que o Partido dos Trabalhadores não entendia as questões
ideológicas que atravessam o racismo, reduzindo o entendimento das questões raciais
unicamente a consequências econômicas, ou seja, pensando exclusivamente as consequências
apresentadas pelo racismo e não suas causas, ela muda de partido e se filia ao PDT, que, na
época, tinha Abdias do Nascimento, Darcy Ribeiro, além do já citado Leonel Brizola. Em 1986,
candidata-se novamente, agora como deputada estadual, e, mais uma vez, alcança votação
expressiva, mas insuficiente para ser eleita, tornando-se novamente suplente na Câmara dos
Deputados. Mesmo sem o cargo de deputada, participa ativamente dos diversos espaços
políticos institucionais, despontando como figura importante em comissões para a construção
do processo democrático brasileiro.
Com a companheira Benedita da Silva, participa de diversas reuniões e comissões na
criação do que, posteriormente, estabeleceu a Constituição da República Federativa do Brasil
(1988). Em reunião da subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes [na
207

linguagem atual, pessoas com deficiência] e Minorias, realizada em 28 de abril de 1987, no


Senado Federal, a deputada Benedita da Silva disse: “temos entre nós, hoje, como expositora
da temática ‘O negro e a sua situação’, uma das mais brilhantes antropólogas que os negros
puderam conhecer na história da sociedade brasileira, que é Lélia Gonzalez” (GONZALEZ,
2020, p.244). E Gonzalez orientou a condução dessa pauta, a fim de incluir como,
historicamente, as ideologias dominantes sustentavam a lógica de exclusão e a manutenção das
hierarquias na sociedade brasileira. Enfim, há inúmeras intervenções, durante seu percurso
como liderança política. Ela também, foi indicada e participou do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, “e envolveu-se em vários protestos e mobilizações de
rua que denunciavam as desigualdades raciais e de gênero” (RIOS, 2021, p.33).
Em 1988, ano da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, que
institui um estado democrático brasileiro após décadas de ditadura, acontece o I Encontro
Nacional de Mulheres Negras; nessa ocasião, Gonzalez aponta para a importância da
organização da mulher negra no processo de transformação social, tecendo duras críticas ao
sectarismo que marcava a participação errônea de um feminismo que se entendia como radical
mas que apresentava uma “postura ideológica equivocada, assumida pela Comissão Executiva
do Encontro” (GONZALEZ, 2020, p.267).
Em 1975, é criado o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), do qual ela
participou ativamente. Enfim, todos esses espaços de construção política e de pesquisa,
suscitaram a produção de conhecimento que Lélia Gonzalez construiu durante mais de duas
décadas, na qual se incluem suas vivências pessoais, desde ter tido uma mãe que foi ama de
leite, as dificuldades iniciais para estudar, em detrimento da conjuntura hegemônica que a
empurrava para os trabalhos domésticos, bem como seu processo de embranquecimento e o
passo adiante de tornar-se mulher e negra. Esses elementos são fundamentais para compreender
Lélia Gonzalez como uma intérprete da cultura brasileira. Destaco que, como se trata de uma
construção que inclui as experiências de corpo - como apresentado nos primeiros Capítulos
desta tese -, os discursos ultrapassam as palavras, é uma experiência de corpo91.

5.11 Lélia Gonzalez: uma intérprete da cultura brasileira

Gonzalez é uma intérprete negra do Brasil, elegeu a cultura como um espaço


privilegiado para pensar a identidade de um povo, do povo do qual ela fazia parte,

91
Retomaremos essa questão em breve, quando articularmos essa experiência e os giros discursivos em Lélia
Gonzalez.
208

encruzilhando saberes de diversos campos epistemológicos. Embasava suas construções


teóricas a partir da sua extensa e admirável vida acadêmica, fundamentando seus conceitos
sobre ideologia com Marx e Althusser e, ao mesmo tempo, incluindo os saberes ancestrais, que
são avessos à pedagogia dominante, além dos conhecimentos advindos da sua práxis política, e
encontrava na teoria psicanalítica elementos para pensar o sujeito e o laço social, para ir adiante
nas suas construções e práxis.
É nessa confluência de saberes que propõe duas teses fundamentais para pensar o Brasil:
(1) o conceito de Amefricanidade, a partir da interlocução com os psicanalistas MD Magno e
Betty Milan; (2) o racismo como sintoma da cultura brasileira e o pretuguês como um
significante novo.
Iniciaremos apresentando a Amefricanidade, como conceito cunhado por Lélia
Gonzalez (2020). Mais do que uma elaboração teórica, apresenta-se como um projeto político
de resistência decolonial, cujo vigor encontra-se em um olhar e um reverberar das vozes de
mulheres negras, agitando as fronteiras da América Ladina92. Gonzalez grifa a necessidade de
questionar a colonialidade do poder que opera dentro do continente sul-americano. A
Amefricanidade, enquanto estratégia política, internacionaliza as lutas interseccionais, além de
acender certa aproximação entre as raízes ameríndias e africanas que foram inferiorizadas –
subalternizadas – para pautar a colonização europeia enquanto descobrimento da América.
Para Gonzalez, o trabalho de conscientização é uma condição necessária. Desse modo,
é fundamental fazer circular a palavra. Girar, deixar cair a fixidez, promover rodas de conversa,
nas quais vozes marginalizadas poderão ocupar espaço, a fim de bem-dizer as suas histórias,
possibilitar um lugar em que suas histórias possam ser valorizadas.
Gonzalez, em suas análises e pesquisas, dedica-se a pensar o lugar da mulher negra no
Brasil, no entanto, ela intuía que era necessário também incluir nas suas reflexões a condição
das mulheres em países considerados a periferia do mundo. Orientada por uma posição crítica
à colonização, Gonzalez estabelece importantes diálogos com mulheres da América Ladina,
Caribe e do continente africano, participando de diversos eventos internacionais que tocavam
essa temática: “do Caribe e dos Estados Unidos vêm as ideias panafricanistas” (GONZALEZ,
2020, p.13), o que possibilitou expandir seu pensamento sobre o colonialismo, bem como
pensar formas inventivas de resistência – ou subversão – a essa lógica.
Nesse horizonte, em 1990, visitou a Martinica e conheceu de perto a cultura e as lutas

92
“[...] é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o T pelo D para, aí sim, nomear o
nosso país com todas as letras: América Ladina (cuja neurose cultural tem no racismo o seu sintoma por
excelência) (GONZALEZ, 2020, p.151, grifos da autora).
209

daquele território. Vale lembrar que vem da Martinica um dos maiores pensadores sobre a
resistência e a luta referente às pautas raciais, Franz Fanon, que foi uma referência teórica para
Gonzalez. Assim como ela, Fanon era um intelectual importante e um militante ferrenho no
combate pela libertação. Para Fanon, a libertação não deveria ser apenas uma luta nacional, era
preciso libertar a humanidade do racismo cotidiano; em sua construção teórica, demonstrou que
o processo colonial estava intimamente ligado ao racismo cotidiano, assim afirmando que é
preciso descolonizar as mentes tanto quanto os corpos e os países (FAUSTINO, 2018).
Gonzalez também esteve no continente africano, em diversos momentos, aprofundando
seu conhecimento sobre os saberes produzidos pelas várias culturas presentes naquele
continente, estabelecendo várias pontes, intercâmbios culturais, ideários críticos, bem como
trocas de produção teórica e atuação política, articulando intercâmbios interamericanos e trocas
continentais.
Ela tinha uma posição crítica em relação ao pensamento eurocentrado, entretanto não
deixava de lado referências importantes do continente europeu - como já mencionado, Gonzalez
inspirou-se na leitura de O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, que por sua vez era
amiga de Fanon, sendo possível encontrar na produção intelectual de ambos os autores pontos
em comum sobre a outrificação do negro, em Pele negra, máscaras brancas (1952/2008) para
Fanon, e da outrificação das mulheres para Beauvoir: as entrelinhas de ambos os textos mostram
que havia uma troca intelectual importante entre os dois.
Lélia Gonzalez também se aproximava da teoria marxiana, somando às questões de
gênero e raça a leitura sobre a luta de classes proposta por Marx, bem como encontrou em Lacan
instrumentos para uma leitura epistemológica que inclui as questões referentes à vida psíquica
e à dimensão inconsciente como chaves para pensar os temas sociais e políticos que constituem
os laços sociais, mostrando-se uma referência que extrapolou o território nacional.
A maior parte das suas publicações datam do período de 1970 a 1990, quase duas
décadas de dedicação ao estudo sobre a cultura brasileira, bem como sobre as questões
referentes às mulheres negras; pesquisadora sobre o Brasil, sem estar dissociada dos debates do
movimento negro internacional (BARRETO, 2018).
Nesse sentido, por mais genial que antropóloga, historiadora, teórica da Psicanálise
fosse, isso não impediria que o discurso vigente a colocasse em lugar de subalternidade, por
isso o não reconhecimento dos seus saberes? Ou será que tal apagamento epistemológico
instaura-se justamente para impossibilitar qualquer chance de giro, de alteração na estrutura
vigente?
210

Pois uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da


história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas. Só quando
se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades
marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de
conhecimento (KILOMBA, 2019, p. 12-13).

Para bell hooks, a passagem de objeto para sujeito é o que marca uma passagem política
(KILOMBA, 2019, p.28).
É daí que surge a categoria de “Amefricanidade. Exatamente porque ela nos permite
ultrapassar limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas
para melhor entendimento dessa parte do mundo onde ela se manifesta” (GONZALEZ, 2020,
p.151).
O segundo conceito-chave em sua obra é o racismo enquanto uma sintomática da cultura
brasileira que permitiu a invenção de um novo significante, o pretuguês - que, novamente, não
se trata somente de um conceito teórico, mas de uma práxis, já que podemos incluir aí a
dimensão de ato e a produção de saber-fazer com isso.
Esse segundo ponto desenvolveremos meticulosamente, já que a tese sobre uma virada
discursiva operada por Gonzalez pode ser encontrada a partir dessa construção que a autora
promove – tanto pela maneira com que apresenta suas questões e teses, como na forma em que
promove alterações na lógica discursiva, ocupando o lugar de agente no discurso.
Finalmente, podemos retomar a questão trabalhada por Gonzalez sobre como a mulher
negra é situada no discurso (GONZALEZ, 1984/2020).

5.12 Linguagem e discurso: racismo e sexismo na cultura brasileira

Inicio com uma epígrafe de Gonzalez, que, como ela mesma indica: “diz muito além do
que ela conta” (1981/2020):

Cumé que a gente fica?


Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa
deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a
gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até
prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo
que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina,
educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi
sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar
junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras
e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinado um monte de
coisa pro criouléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco
211

até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto na mesa. Mas
a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega
prá cá, chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais
discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com
a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá responder uma
pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a
reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava
armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá
bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir
discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com
razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a
gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já́ se
viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na
maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve
uma hora que não deu prá aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e
mal-educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de
um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a
festa acabou em briga...
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se
não tivesse dado com a língua nos dentes... Agora tá queimada entre os
brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se
comportar? Não é à toa que eles vivem dizendo que ‘preto quando não caga
na entrada, caga na saída’... (GONZALEZ, 1981/2020, p.75-76).

A longa epígrafe revela muito do que foi trabalhado até este momento da tese.
Destacamos: os lugares de quem pode falar e quem só pode ser falado e o racismo transvestido
de cordialidade, que convida para sentar-se junto à mesa, mas na hora do vamos ver, os
dominantes não querem se movimentar nem sair do lugar, para abrir espaço para os supostos
convidados se acomodarem, destinando esses outros a se sentarem atrás deles. Esse, afinal, é o
jeitinho brasileiro de disfarçar o racismo, gerando um duplo aspecto: por um lado, o processo
de identificação com o dominado, em busca de um reconhecimento que não se efetua; por outro,
tem algo que escapa, a neguinha que arma uma quizumba, o criolo que não se subordina,
fazendo aparecer a raiva dos brancos...
Com Fanon (2008), ela pôde pensar os aspectos identificatórios que produzem as
máscaras brancas, a identificação do dominado em busca de reconhecimento. Acontece que tem
certas peculiaridades no contexto brasileiro que produziram o mito da democracia brasileira
como uma ideologia amplamente aceita. Daí Gonzalez se pergunta: “Quais foram os processos
que teriam determinado sua construção? O que é que ela oculta, para além do que mostra?
Como a mulher negra é situada no seu discurso?” (GONZALEZ, 2020, p. 76). Em seguida,
responde: “O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo
212

fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós, o racismo se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira (GONZALEZ, 2020, p. 76, grifos da autora).
Os termos grifados pela autora, não são termos quaisquer, estão aí justamente para
apresentar como Gonzalez trabalha as questões apresentadas, a partir da teoria dos discursos do
ensino lacaniano.
Todas as questões políticas e pessoais apresentadas até aqui têm papel de mostrar as
construções que possibilitaram a Gonzalez formular o que há de sintomático na cultura, ao
mesmo tempo que geraram movimentos que teceram caminhos para mudanças naquilo que
aparece como problemática. Assim, Gonzalez modifica seus conceitos e suas posições, à
medida que é afetada por tudo aquilo que a cerca: “O fato é que, enquanto mulheres negras,
sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e
repetição dos modelos que nos eram oferecidos”, localizando que sempre havia um “resto que
desafia as explicações” (GONZALEZ, 2020, p.77). Então, ao se preocupar com o resto que fica
de fora, ela recorre à epistemologia da Psicanálise, que se interessa e se ocupa justamente disso
que fica de fora, isso que aparece como avesso. O processo analítico revela aquilo que o seu
avesso esconde.
Vale refletir que, no ano em que apresenta esse texto, ela já estava em análise há quase
vinte anos e que, durante esse período, apropriou-se da Psicanálise tanto no aspecto que inclui
suas construções em análise, como também se dedicando a pesquisar e estudar os conceitos
psicanalíticos. Assim, cita Miller, em sua Teoria da Alíngua (1976), para justificar a escolha
pelo suporte epistemológico que só foi possível com a descoberta freudiana, e também a
retomada lacaniana que possibilitou outros sentidos para abordar a linguagem e a língua.
Destarte, concomitantemente ao seu processo de análise, ela movimenta sua militância
em direção ao seu tornar-se mulher negra, através da ‘histerização discursiva’. Um uso do
discurso da histérica como estratégia para confrontar o discurso hegemônico; mas ela não para
por aí, vai adiante, toma o suporte epistemológico que dá lugar ao resto, justamente para inverter
lugares.
Se os negros estão “na lata do lixo da sociedade brasileira” (GONZALEZ, 2020, p.77),
que determina a lógica da dominação, via Psicanálise ela se propõe a ocupar esse lugar,
“assumimos a nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” (Ibidem, p.78). A
presente tese defende que, desse modo, ela faz semblante de objeto a, operando um giro no
sentido do discurso do analista, agenciando, como a, a modalidade discursiva capaz de produzir
um novo significante mestre. É esse o ponto a que pretendo chegar, ao final deste Capítulo.
213

Como trabalhamos no primeiro e no segundo Capítulos desta tese, antes de ser possível
ocupar o lugar de analista é necessário uma passagem pelo discurso da histérica; sendo assim,
antes de avançar até o ponto proposto para pensar quais os efeitos que Gonzalez provoca, ao
fazer semblante de objeto a, resultando na produção de um significante mestre novo - o
pretuguês -, daremos um giro no discurso da histérica, para articular como Gonzalez, via ação
política, construir um saber que lhe permite ocupar um lugar próprio na sociedade.

5.13 Discurso da histérica: historicizar como processo de desalienação

É com Fanon que Lélia Gonzalez vai pensar que a desalienação do negro está
diretamente ligada à tomada de consciência, consciência sobre o lugar em que o discurso o
coloca e de como esse lugar construído na cultura, via estrutura discursiva, sedimentado na
racialização e sexualização, produz lugares marcados por determinantes que condicionam
aspectos socioeconômicos, produz gozo em ambas as posições. Uma alienação generalizada,
não só do lado da pessoa que é racializada e sexualizada, como uma leitura desavisada pode
presumir: há uma alienação do/a negro/a na cena, mas devemos considerar que não é menos
alienado o homem branco que se acredita universal. O humano civilizado por excelência.
Lélia promove uma maneira de romper o silenciamento e desvela a verdades
imperativas, produtoras de dominação, inicialmente colocando o sintoma no lugar de agente,
versando posições e falas que invertem lugares, a partir desse desvelamento; assim, o
significante/significado negro, historicamente usado para destinar sentidos ruins,
desqualificantes, fora das coordenadas de um reconhecimento.
Ao se interrogar sobre sua divisão subjetiva e seu caminhar, construindo, via práxis
política, Gonzalez pôde construir uma outra narrativa sobre as marcas que fizeram parte da sua
história; assim, seus estudos, sua análise pessoal, convivências que remetem à sua
ancestralidade resultaram na apropriação dos valores culturais vindos do continente africano,
bem como em um certo saber fazer produzido pelos descendentes de africanos/as nascidos/as
no Brasil, de tal modo que essa palavra – negro – pôde e pode produzir novos sentidos, daí o
tornar-se negro como uma construção que permite saídas à lógica alienante posta pelo
colonizador. Ao mesmo tempo, Gonzalez era altamente crítica aos movimentos, como vimos
na epígrafe, mas, sem perder seu senso crítico, ela sustenta uma aposta na possibilidade de
modificação de lugares, assim como no reconhecimento dos saberes que foram historicamente
silenciados e apagados.
Em suas construções, vai consolidar que o modelo do negro brasileiro não estava nem
214

na África nem nos Estados Unidos, mas em sua própria experiência histórica, local, nas
resistências políticas, culturais, na lembrança do Quilombo dos Palmares. A autora não negava
a importância da África para nós, brasileiros, considerando as produções genuinamente
brasileiras a partir de elementos herdados do continente africano, é desse modo que ela se
apropria da macumba, do candomblé, do samba como produtores de saber sobre o cotidiano. É
aí que está o caminho possível para a construção de uma identidade brasileira, que possa driblar
a colonialidade, para daí, sim, ser possível que aquilo que cada sujeito tem de mais singular
possa aparecer.
Por isso, pensar a sintomática na cultura, valorizando o sintoma. Já que, nesse contexto
do discurso da histérica, “o sintoma é o que desvela, é o que aparece fazendo, por um lado,
oposição ao significante dominante. [...] se refere à relação entre mais-gozar e a renúncia ao
gozo, outra situação em que o sujeito se encontra alienado” (ASKOFARÉ, 1989/1997, p. 164).
É que, além dos tipos de sintomas, há as formas de sintomas. Essas formas do sintoma impõem-
se a nosso exame, desde que saímos das concepções estreitamente psicológicas ou médicas do
sintoma. É notável que, a exemplo de Freud, Lacan não tenha jamais cedido à facilidade de
reduzir o sintoma a seus valores estritamente psicológicos. Acrescentaremos que não somente
ele não cede a essa tentação, mas que produz os elementos de doutrina que permitem
desvincular o sintoma das aderências médicas que se conservaram no próprio corpus freudiano.
Nessa perspectiva, é a teoria do discurso, como fundamento do laço social, que permite a
articulação do sintoma ao cultural e ao social (ASKOFARÉ, 2011, p.10).
Askofaré (1989/1997) inicia sua análise da categoria de sintoma social, advertindo a
não separação entre a realidade e o conceito de sintoma social, isso porque, como já vimos, a
ideologia, ou realidade de um momento histórico, não está separada do sintoma que tal período
histórico produz.
E, na contramão de uma ideologia racista que apresenta o povo negro como
acomodado, passivo ante sua escravização, Lélia apresenta as variações das formas
de resistência. Para sobreviver às dores e humilhações da escravidão, o povo
negro, além dos constantes levantes, lutas e fugas para os quilombos, também
construiu uma “resistência passiva”, como demonstram as figuras da “Mãe Preta”
e do “Pai João”. Nessa resistência, Lélia Gonzalez, apoiada pela teoria lacaniana
da linguagem como fator de humanização e subjetivação, desloca o objeto passivo
para a condição de sujeito dotado de um saber (GONZALEZ, 2020).
Sob perspectivas inovadoras, a autora produziu uma interpretação para a cultura
brasileira, rompendo a dicotomia colonizador versus colonizado, conferindo, assim, certo
215

protagonismo ao colonizado, na transmissão de valores civilizatórios para nossa formação


cultural. Ela vai dizer que:

[...] a mulata foi criada pela ideologia de embranquecimento. Nós sempre


somos vistas como corpos: ou como um corpo que trabalha, que é burro de
carga, que trabalha e ganha pouco, ou como um corpo explorado sexualmente,
que é o caso da mulata, símbolo dessa ideologia. Quantas empregadas
domésticas não sofrem investidas de seus patrões e etc. (GONZALEZ, 2020,
p. 308).

Gonzalez relaciona os lugares designados para a empregada doméstica e a mulata com


aquela “[...] que no passado foi chamada de mucama. Temos vários depoimentos de empregadas
e outras mulheres negras de diversificadas funções sociais que relatam as investidas que sofrem
de patrões ou superiores de trabalho” (GONZALEZ, 2020, p. 308).
Ao mesmo tempo, localiza ao lado das ditas mulatas um saber-fazer, uma transmissão
sobre a cultura, a língua, os modos como os hábitos e costumes são transmitidos no Brasil, seja
pela mãe preta, que ocupava/ocupa o lugar de ama de leite e cuidadora nas famílias negras e
brancas – como foi o caso da sua própria mãe – ou como acontece na supervalorização das
mulatas, no período do Carnaval, para, na Quarta-feira de Cinzas, serem despossuídas desse
reconhecimento que dura poucos dias.
Assim, pensando em termos de discursos, ocupar o lugar de agente na politização, ou
histerizar para construir um saber, presentifica a possibilidade de ocupar um lugar em que se
tornar mulher negra, apropriada do seu saber, opera um giro, e pode, assim, modificar não
somente seu lugar mas, ao ocupar outro lugar, ter efeitos no campo do Outro, modificando,
assim, as coordenadas discursivas.
Dessa forma, para além de mudanças pessoais no âmbito social, tal estratégia modifica
a forma de construir saberes, de fazer circular as elaborações construídas, a fim de alterar a
estrutura como um todo. Por isso, quando Lélia olha para a mãe mais tardiamente, pode
reconhecer o saber de que não se dava conta até então, esse saber-fazer que só se constitui em
ato, motivo pelo qual, na dialética hegeliana, o saber estar do lado do escravo e não do senhor,
porque quem sabe sobre a vida, ou a política, é quem trabalha. Assim, o senhor não sobrevive
sem o escravo, mas não reconhece isso porque o que custaria reconhecer essa dependência?
Por isso, apropriar-se e construir saberes via linguagem extrapola os ditos e os dizeres,
incluindo nessa trama o campo do gozo, o corpo, em ato, ocupando lugares e modificando
sentidos. É nesse sentido que a história de vida da Lélia lhe capacita um outro modo de extrair
saber ocupando a linguagem.
216

Estando advertida sobre os efeitos ideológico do colonialismo na linguagem, sua práxis


acadêmica e política faz frente a esse sistema, sua oposição a essa lógica comparece como ato,
marcando seu inconformismo com as injustiças presentes na estrutura social. Por meio da sua
militância, ela produz um enfrentamento ao discurso hegemônico que visa a domesticar o ser,
mirando quebrar o espelho que reflete/captura/projeta o narcisismo europeu, como disse,
originalmente, Fanon (2008). A descolonização é uma práxis, significa assim, fazer frente às
epistemologias hegemônicas, evidenciando suas inconsistências, fissurando supostas verdades,
e é desse modo que Gonzalez posiciona-se, em ato, subvertendo o lugar que foi destinado a ela
nesse circuito discursivo, bem como operando uma descolonização por meio da lógica, como
apresenta suas ideias e textos, para além do conteúdo presente em seus dizeres e escritos.
Assim, é notável como um dos principais impactos que a leitura da Lélia Gonzalez
provoca é gerado justamente pela não neutralidade dos seus dizeres, pela forma como ela
trabalha com os equívocos, com o conteúdo recalcado na sociedade, evidenciando o que emerge
como sintoma na cultura brasileira. Assentir a epistemologia psicanalítica como suporte é
compreender que “[...] para Lacan, é o sintoma propriamente dito que se torna ao mesmo tempo
condição do social e o modo particular de inscrição do sujeito no discurso, ou seja, no laço
social” (VANIER, 2002, p.12).
Desse modo, como apresentado no Capítulo 2, a histerização discursiva permite uma
modificação no estatuto do sintoma, do que há de particular de cada sujeito na inscrição no laço
social. Quando ocupa o lugar de agente na aparelhagem engendrada no discurso da histérica, o
sintoma pode ser escutado de outro modo:

O sintoma é o que não se adapta, por isso seu estatuto político. O sintoma
enquanto induzido e determinado pelo social, em relação ao outro, se constitui
enquanto resposta, uma objeção do sujeito à ou às figuras de dominação. O
sintoma é sempre correlato de um comando, de um é preciso, do lado do
Outro, e de um não consigo do lado do sujeito. Ora, a greve não teria o menor
sentido se a mestria determinada pela nomeação arbitrária não tivesse
acontecido.
Entendo que a individualização promovida historicamente na passagem do
feudalismo para o capitalismo, que produz o proletário, é o próprio sintoma
social.
Reafirmo, é porque existem os imperativos colocados pelo discurso do mestre
na sociedade que o sintoma responde em sua dimensão social. O que não quer
dizer que esta imposição seja um sintoma social. O sintoma não é uma
solução, ele é a verdade que escreve o mal-estar, é o seu gozo e a sua denúncia.
É uma maneira de fazer oposição, ressaltando que é uma oposição derivada
da mesma fonte do seu avesso (XAVIER, 2013, p.116).

À sua maneira, Lélia Gonzalez dá lugar ao sintoma, do mesmo modo como escuta outras
217

manifestações do inconsciente que emergem no laço social. Ela evidencia, por exemplo, o
equívoco presente na crença em qualquer neutralidade, em espaços públicos ou acadêmicos, e
faz da própria linguagem um instrumento valioso na sua transmissão. Nesse sentido, emerge a
dimensão do ato em direção ao giro que leva ao sinthoma, ou seja, como marca de singularidade,
posição intimamente ligada ao lugar de autoria, suas transmissões e seus efeitos a partir da
circulação de outros significantes mestres, com outros enunciados e enunciações, outros giros
e lugares.
O sujeito político, tal como os seres falantes nos consultórios, conta suas narrativas não
a partir do vazio, mas da história, em contato direto com o passado, que pode ser e é sempre
reinscrito, e só assim é possível compreender o presente e pensar em possibilidades e
potencialidades para o futuro. Já não será o mesmo mestre, talvez se produzam deslizes e outro
significante mestre, “pois as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande” (LORDE,
2019, p.137). No entanto, é daí que se pode, aos poucos, e em movimento, chegar a qualquer
espécie de ‘separação’ ou ‘emancipação’.
Gonzalez apresenta essa tese a partir do Seminário17. Em certo sentido, Racismo e
sexismo na cultura brasileira (2020) é um texto que destaca o lugar da mulher negra como
aquela que transmite a língua; há uma autoria no que Lélia apresenta, ao nomear, ela mesma,
uma discursividade, o pretuguês. Autoria como deslocando o sintoma do lugar de queixa, do
isso não frente aos discursos de mestria, para a partir daí, produzir o giro do sintoma enquanto
marca de singularidade, intimamente ligado à posição de autora.
Dito isso, essa passagem necessária pelo discurso da histérica. Ou seja, pensar no lugar
destinado à mulher negra no Brasil, longe de ser uma leitura que leva ao identitarismo, é,
justamente, compreender como o feminismo negro de Gonzalez não é identitário, pois longe de
pretender a construção de uma unidade, expõe como a branquitude é um identitarismo que opera
de maneira velada, colonizando tudo aquilo que aparece como diferente, impondo-se como
identidade dominante e supostamente neutra93.
Desse modo, o que Gonzalez opera, ao ocupar a linguagem, é exatamente o avesso ao
identitarismo, situando como o racismo estrutural atribui posições distintas, nas relações de
poder no laço, produzindo, assim, uma estratégia para acolher aqueles que são reduzidos a um
silenciamento determinado pela subalternização inerente aos discursos de mestria.
A Psicanálise serve, então, como suporte para que seu feminismo siga adiante, não mais

93
Estamos cientes: identidade e identitarismo não são conceitos psicanalíticos, mas compreendemos que acarretam
questões que atravessam a clínica, especialmente a práxis psicanalítica brasileira.
218

preocupado em contestar, mas sim seguir, em ato, produzindo algo novo, inédito. E esse inédito
não é sem efeitos, quando pode ser transmitido, alterando a relação das coisas.
Na práxis do analista, o divã é um lugar apropriado para desconstruir essas reduções
destinadas a alguns corpos, para daí, sim, escutar o que aparece de mais singular em cada ser
falante. É dessa maneira que leio Gonzalez e endosso que estar atenta/o a tais reflexões é um
movimento importante para oxigenar e fazer avançar a própria Psicanálise.
Digo isso para delinear que, quando Gonzalez se pergunta sobre o lugar da mulher negra
no discurso, ela se apoia na epistemologia psicanalítica, mas sem deixar de lado sua práxis, que
é ampla e diversa; ela assume a Psicanálise lacaniana, sem reduzir seu arcabouço teórico a
Lacan. Tem algo da Antropologia aí, da leitura de autores de origem africana, do seu
posicionamento político, do saber-fazer que a vivência como mulher negra lhe possibilitou. E
mesmo incluindo todos esses outros elementos há algo de incontornável sobre “a centralidade
da perspectiva freudiana (e lacaniana, para Gonzalez)” (AMBRA, 2021).

5.14 Significantes e outros sentidos: Salve a mulatada brasileira!

Hoje em dia, o termo mulato/mulata tornou-se politicamente incorreto, e com razão, à


medida que carimba uma espécie de estereótipo negativo sobre os descendentes do contimente
africano que nasceram no Brasil, fruto da miscigenação, “enquanto brasileiros não podemos
negar nossa ascendência negra/indígena, isto é, nossa condição de povo de cor” (GONZALEZ,
2020, p.31). O estereótipo é criado à medida que os teóricos brasileiros que se prestam a explicar
a “situação da população de cor, [...] não conseguem escapar às astúcias da razão ocidental.
Aqui e ali podemos constatar em seus discursos os efeitos do neocolonialismo cultural”
(GONZALEZ, 2020, p.31). Assim, “a repentina passagem do regime servil para o trabalho livre
fez do ‘bom escravo um mau cidadão’” (GONZALEZ, 2020, p.32); no caso das mulheres, isso
é ainda pior, por incluir conotações sexuais e de dominação. Como aprofundaremos na
discussão sobre o racismo e o sexismo na cultura brasileira, com Gonzalez.
Trago esse termo, agora, acompanhando o que Gonzalez apresenta com a língua
informal, mas também para observar essa relação entre o apagamento epistêmico pela via
formal, enquanto há algo da produção de saber que escapa aos aparelhos oficiais responsáveis
pela transmissão de conhecimento. Não à toa, Lélia Gonzalez considera os espaços de cultura
como sendo igualmente importantes para a produção da construção de saber sobre o Brasil;
nesse sentido, um dos espaços que ela frequenta são as escolas de samba, ratificando a
produção, os saberes e o cunho político inerentes a essa modalidade cultural. Assim, aquilo
219

que o discurso vigente busca apagar/silenciar, os sambas revelam.


Poderia escolher diversos sambas ou sambas-enredo para ilustrar como acontece essa
transmissão sobre determinados saberes pelas frestas, nas fronteiras dos discursos de mestria.
Escolho o samba de Martinho da Vila, Salve a mulatada brasileira (1975), que delineia um
outro modo de apagamento dos elementos do pensamento ou da arte produzida por mulatos/as
no Brasil, demonstrando como, em algumas situações em que não era possível apagar
determinados saberes, o que se produzia era o apagamento da sua origem – origem que vinha
do pretuguês. Na canção, Martinho da Vila destaca o processo de branqueamento cometido
com Machado de Assis e com o artista barroco que alcançou notoriedade internacional, Antônio
Francisco Lisboa, conhecido popularmente como Aleijadinho.
Vamos ao samba para ilustrar que o subalterno pode falar, desde que não modifique as
coordenadas discursivas:

Vanina, se quer saber


Eu vou te dizer
Minha bisavó era purinha
Bem limpinha, de Angola
O meu bisavô também purinho
Bem limpinho, de Moçambique

Eu não sou branquinho, nem pretinho


A minha dona é a Russinha
E tenho cinco mulatinhos
Salve! Salve!

Salve a mulatada brasileira!


Salve a mulatada brasileira, salve! Salve!
Salve a mulatada brasileira!

José do Patrocínio, Aleijadinho


Machado de Assis que também era mulatinho
Salve a mulatada brasileira!

Je ne sais pas parler français


Também não falo português
Meu idioma é o brasileiro
E ninguém entende nada, nada
E ninguém entende nada

Eu só não entendo, gente brigando


Se odiando depois do amor
É tão estranho, Vanina
Este pavor que a vida traz
Gente com medo de Jesus
E adorando satanás

Se o amor é lindo
220

E a flor é bela
E a natureza sempre sorrindo
Vivo no mundo pra aprender
E nada sei pra ensinar
Só o que eu sei
Que eu sei fazer
É te querer, te sublimar
E te deixar em paz (DA VILA, 1975).

Assim, podemos notar a sintomática relação de subalternização enraizada na cultura,


atrelando o sexismo e o racismo como questões estruturais. Visando a fixar e determinar lugares
nos discursos, dentre aqueles que podem ou não ser reconhecidos como autores ou artistas, e a
que preço. Desse modo, falar de racialização é pensar em termos estruturais, ou seja, existe algo
que é independente do racismo intencional, assim como o machismo e o sexismo são
construções que ideologicamente designam a misoginia e a hierarquização de lugares sociais.
E, quando digo que é independente da intencionalidade calculada de sujeitos racistas ou
sexistas, não é no sentido de equivaler quem exerce tais discriminações de maneira intencional
ou não, mas para ressaltar que há algo que precisa ser modificado na própria estrutura, na forma
como as relações se constituem de saída, via discursos.
Esse apagamento que resulta na subalternização é resultado de uma função discursiva –
imposta pelos discursos de mestria – que instaura uma lógica na qual o senhor (discurso
dominante) apropria-se do saber do escravo (aquele que sabe justamente por que trabalha,
porque inclui o corpo no seu saber-fazer).
Nesse sentido, acompanhando o psicanalista MD Magno (1980), podemos notar como
essa função de apagamento do saber está desde a “dialética do senhor-escravo – porque é a
dialética de nossa fundação, na qual sempre o senhor se apropria do saber do escravo –, a
inseminação, por vias desse saber apropriado, como marca que vai dar em relação com S2”
(MAGNO, 1980/2008, p.24-25). Magno completa que: “Para Hegel, senhor ou mestre é aquele
que não participa do trabalho, enquanto o escravo trabalha. Ao trabalhar, o escravo modifica e
o senhor não percebe. A dialética do senhor e do escravo é esse troca-troca de posições”
(Ibidem, p.25).
É sob essa construção teórica que Gonzalez vai problematizar tais posições discursivas
e como o discurso hegemônico instaura os lugares de quem pode ou não pode produzir saber,
ou melhor, os lugares destinados a quem pode ou não ter o seu saber reconhecido como tal, daí
a importância e a atualidade da questão colocada por Gonzalez (1984/2020), quando apresenta
221

a seguinte questão: como a mulher negra é situada no discurso?94

5.15 O uso da Psicanálise para pensar política – a propósito de Lacan

Como já referido, Lélia Gonzalez aproxima-se da Psicanálise em 1965, quando inicia


seu processo de análise e o que ela chamou de tornar-se uma mulher negra. Vale relembrar
eventos importantes que aconteceram nesse período: em 1966, é fundado o Partido dos Panteras
Negras, na Califórnia, Estados Unidos; em 1968, o líder negro pacifista Martin Luther King é
assassinado no Tennessee, Estados Unidos; em 1969, Heleieth Saffioti publica o famoso livro
A mulher na sociedade de classes (GONZALEZ, 2020, p.372); e os fatos citados anteriormente
sobre os efeitos de 1968 em várias partes do mundo. Tal conjuntura favorece sua tomada de
consciência. A década de 1970 foi importante para o avanço dos movimentos sociais em geral.
Lélia foi membro do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, estava presente desde o ato
de fundação da Escola Lacaniana, no Rio, em 1975, estendendo as reflexões da Psicanálise para
a análise da questão de raça e gênero no Brasil, produzindo assim um dos seus textos mais
conhecidos, Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), com base em um conceito
formulado por MD Magno, “Améfrica ladina” (BARRETO, 2005, p.22). É nesse texto que ela
pontua o lugar destinado às mulheres negras no discurso.
Sem deixar de lado as questões políticas, aproxima-se cada vez mais da Psicanálise,
justamente para pensar sobre a política no laço social. Em 1974, acompanha os seminários de
Antônio Sérgio Mendonça, que oferece o curso Narrativa e Cultura de Massa, no primeiro
semestre, e Semiótica do Discurso, no semestre seguinte; em 1975, ele ministra Análise
semiológica do literário e, no segundo semestre desse ano, Semanálise (Introdução aos
conceitos de Lacan) (GONZALEZ, 2020).
Gonzalez falava francês e tinha Betty Milan como uma ponte que a aproximava do
ensino lacaniano. Certamente, ela teve acesso à teoria dos discursos que havia sido apresentada
poucos anos antes. Em seu texto A propósito de Lacan (1975/2020), fica evidente que sua
maneira de trabalhar os discursos é a partir dos seminários lacanianos já citados: de um outro
ao Outro (1968-69/2008b) e O avesso da Psicanálise (1969-1970/1992). Daí os termos: lugar,
outro, resto, produção, função, lógica, repetição (GONZALEZ, 2020, p.77).

94
Dediquei os dois primeiros Capítulos justamente para explicar como essas construções e relações são
estruturadas via linguagem, incluindo os elementos que ultrapassam a língua, determinando lugares e circuitos,
justamente para pensarmos formas de interferir nesses circuitos determinados; é assim que vou lendo os
posicionamentos de Lélia Gonzalez, operando certo curto-circuito, pela forma como ela ocupa a linguagem.
222

Ela inicia sua interlocução a partir de “duas vozes que, embora ressoando
diferentemente, apontam para o pensamento lacaniano” (GONZALEZ, 2020, p.337). Primeiro,
dialoga com o professor e diretor do Instituto de Comunicação e Artes, na pós-graduação da
Universidade Federal Fluminense – UFRJ, Sérgio Mendonça, elogiando a maneira com que o
professor citado aprofunda seu pensamento “em face do discurso de Lacan [...] aponta para uma
ótica estruturante de exclusão do sujeito” (GONZALEZ, 2020, p.338). Para Gonzalez, há algo
da “Palavra Social e sua eficácia enquanto expressão do ponto de vista da comunidade da
normalidade e da clareza, isto é, da Lei e da Ordem” (Ibidem). Assim, a autora acompanha e
estabelece os passos para pensar o enlace operado pelos discursos, a eficácia de certo
dispositivo que instaura a lei, que estrutura as relações; tal estruturação se dá via significação,
“significação enquanto língua e enquanto linguagem: esta última conduzindo à problemática do
inconsciente” (Ibidem), incluindo os processos de:

[...] condensação e deslocamento, para a significação não linguística. Em


consequência, torna-se necessária a discussão sobre o inconsciente
“estruturado como uma linguagem”, isto é, enquanto dotado de uma estrutura
formal. E a categoria hegeliana figura, tal como é apresentada na
Fenomenologia do espírito, coloca-se como capacitada para explicar, no nível
do sujeito, a linguagem do inconsciente (GONZALEZ, 2020, p.338).

Para ela, o modo como Lacan trabalha elucida os processos que estruturam as relações.
Ao comentar sobre o curso de Mendonça, Gonzalez vai dizer que ele estava:

Retomando a questão da linguagem, é importante apontar para o fato de que a


linguagem de primeiro-grau, dadas as suas características, enfatiza o papel do
código ao colocá-lo como substituto do sujeito enquanto significante, isto é,
enquanto lugar e função fundamental para a significação (GONZALEZ, 2020,
p.340).

Ela extrai do texto de Mendonça como a lógica que organiza a estrutura fica escondida,
passando pelo nível inconsciente. Incluí aqui um trecho da citação que Gonzalez apresenta do
texto dele:

Logo [a] estrutura se passa ao nível do inconsciente [...] essa descrição é


completa do ponto de vista de como o Outro, como língua constituidora da lei,
dá ele mesmo condições de reprodução interiorizada e normativa. Mas não
quer dizer que o inconsciente é o discurso do Outro, não se diz esse
inconsciente está no Outro, como a lógica que o permite articular-se
duplamente como discurso. [...] O latente não é a lógica imanente do objeto
do discurso linguístico, mas a manqué // em nome da qual se elabora a
transformação dos lugares significantes desse marco lógico (MENDONÇA,
223

s.d. apud GONZALEZ, 2020, p.341, grifos da autora).

A nós interessa, nessa citação, a maneira como Gonzalez estava intrigada com os
mecanismos que engendravam as relações a partir de uma lógica própria, visando à
transformação de lugares, destacando que, para isso, era necessário incluir o que manca, o que
escapa, aquilo que “não repõe o sentido latente” (MENDONÇA, s.d. apud GONZALEZ, 2020,
p.341), tal qual acontece em associações livres. Por isso mesmo, a teoria de Lévi-Strauss não
dá conta de explicar o lugar reivindicado pelo sujeito na estrutura, à medida que deixa de fora
essa outra cena que presentifica o inconsciente, enquanto a hipótese lacaniana inclui a
emergência do sujeito, ou seja, um sujeito que aparece e evanesce, que falta, e que, justamente
por isso, pelos equívocos que emergem, é que algo pode ser modificado nas coordenadas
discursivas. Vale destacar que, para Gonzalez, os discursos apresentam algo sobre o modo como
se configura a cultura, e a partir daí ela traça e propõe uma solução ou um modo de tentar
produzir uma resposta sobre o que existe de particular na cultura brasileira. Por isso, inclusive,
é que ela vai trabalhar o que emerge como sintomático, como uma marca. Traçando um paralelo
entre o sintoma que aparece na clínica com o sintoma que pode ser lido no campo social.
Gonzalez propõe um diagnóstico de cunho social (AMBRA, 2021). Sua análise é sobre
a cultura brasileira, ou seja, é uma questão que inclui o branco tanto como o negro, identificando
lugares na estrutura discursiva de tal modo que permite pensar a cultura brasileira próximo ao
que o Lacan fez, quando falou que só há um sintoma social, o proletário, e ali ele não estava
psicanalisando o capitalismo, mas destacando o que marca e particulariza a sociedade
capitalista. O proletário “presentifica o que não pode ser dito do que falha nesse discurso”
(ALBERTI, 2011, p. 303).
O racismo e o sexismo são marcas da cultura brasileira; são, segundo Gonzalez (2020),
aqueles que na cultura brasileira exercem o lugar do dominante para a manutenção do racismo;

Não apercebem o quanto são colonizados ao reproduzirem tantas mentiras sobre


eles e sobre nós. [...] estão enxovalhando sua dignidade de brasileiros. Não se
apercebem de que, na medida em que se consideram tão “brancos” no seu
eurocentrismo (bobeia que na sua árvore genealógica sempre tem um negro ou
um índio que fazem questão de ocultar), estão negando a nossa identidade,
nosso próprio destino e nosso futuro (GONZALEZ, 2020, p.182).

Mas atenta ao que escapa como sintomático, ela vai concluir que:

No fundo, no fundo, a gente sabe que de nada adianta essa ginástica toda que
eles fazem: está fadada ao fracasso. Mas nem por isso vamos ficar passivamente
224

calados assistindo à decadência desse império romano de hoje que é a chamada


civilização ocidental (GONZALEZ, 2020, p.182).

Ela escreve algo que possibilita pensar a sociedade brasileira atravessada pelo discurso
do analista, bem como autoriza revisitar e (re)pensar a Psicanálise atravessada pela cultura
brasileira. Gonzalez está interessada em como os significantes, mesmo sem perder suas
características significantes, fundamentais à Psicanálise, embora significantes, não deixam de
estar carregados de significados. Lélia demonstra em sua práxis como ocupar outro lugar na
lógica discursiva. Visando a produzir uma identidade inédita, produzindo significantes mestres
avessos à lógica dominante. Fora da “ótica estruturante de exclusão do sujeito” (GONZALEZ,
2020, p.338).
O segundo interlocutor que ela apresenta em seu artigo é MD Magno, para mostrar um
outro ponto de desconstrução da linearidade nos discursos. A forma como Magno exemplifica
essa quebra capaz de transgredir e criar novas significações é através da poesia, ou melhor, do
efeito poético e suas ressonâncias. Nesse sentido, o que a poesia transmite é muito diferente da
rigidez científica, permitindo um outro lugar.
Como apresentado no Capítulo sobre o laço social e suas quatro modalidades
discursivas, os discursos de mestria comportam certa rigidez, para que suas coordenadas não se
modifiquem, enquanto o discurso do analista é aquele que dá lugar aos equívocos, a outros
sentidos possíveis.
Acompanhando Magno, Gonzalez (2020) aponta a proposição do Dichter: “Dichter é
todo traço desse sujeito da denúncia [...] não se trata de nenhuma categoria meramente
gramatical, ou verbal, mas categoria de discurso, [...] inconscientemente despontada, restando
inconsciente mais uma vez” (MAGNO, s.d. apud GONZALEZ, 2020, p.346). Nesse passo, ela
avança, acompanhando Magno para dizer que o Dichter aponta para o não-senso que aparece
no discurso: “é como signo não arbitrário que se põe: como sintoma? O sintoma é o Dichter por
excelência” (Ibidem). Portanto, para Gonzalez, o Dichter

[...] permite ao poeta fundar o signo a partir do sintoma, assim como pelo
processo de subversão mediante o qual o poeta se colocaria como destruidor
do signo a fim de que se desse a vigência da linguagem originária, o autor,
concluindo, reafirma a necessidade de categorização da entidade indicadora
de sentido que denuncia o afastamento entre enunciado e enunciação e que se
encontra no sujeito enquanto singularidade. [...] o percurso do significante em
seus efeitos enquanto posição do sujeito na deriva (GONZALEZ, 2020, p.347,
grifo nosso).

Portanto, os passos que Gonzalez indica, por meio da sua leitura com Magno, conduzem
225

a pensar a função poética e sua relação com o sintoma, de tal maneira que, quando ela se refere
ao sintoma, nessa citação acima, relacionando-o a um lugar de autoria – um autorizar-se, uma
autoria que remete ao novo – enquanto marca da singularidade, é ao Sinthoma com h que ela
está se referindo, embora na sua grafia isso não apareça, mas comparece na forma como
relaciona o sintoma à autoria e singularidade: isso que, por escapar das coordenadas discursivas,
pode se transformar em um saber-fazer, produzindo um significante inédito, capaz de modificar
sentidos; é disso que está falando. Não à toa, na interlocução com Magno, ela localiza como
essa autoria resulta em um estilo “de um trabalho na linguagem” (GONZALEZ, 2020, p.347,
grifo da autora), localizando como “Joyce e Rosa” marcam sua singularidade na linguagem.
Assim, já em 1975, em À proposito de Lacan, Gonzalez localiza a função poética em
James Joyce, o que, para nós, sinaliza como ela se ocupa a pensar o sintoma, até o ponto que a
leva a trabalhar o sintoma na cultura brasileira alguns anos depois, em 1984, desse modo; esse
trabalhar o sintoma que identifico nas obras e falas de Lélia Gonzalez aparece como
consequência tanto das suas construções em análise, já que, afinal, um processo analítico visa
à modificação do sintoma, bem como do fato de tomar esse conceito para interpretar a cultura
brasileira, o que, como articulado nesse texto, é compreender as modificações conceituais que
o sintoma apresenta.

5.16 Do sintoma ao sinthoma

O sintoma é uma manifestação do inconsciente que se presentifica no discurso, o


trabalho em análise modifica o estatuto do sintoma, de forma que o sintoma que, inicialmente,
aparece como queixa - uma queixa sobre o Outro -, no processo analítico, quando se instaura a
histerização discursiva, ou seja, quando o ser falante que procura a análise sai dos discursos do
mestre – que podem ser na versão antiga do discurso do amo ou na sua versão moderna, que se
apresenta no discurso universitário – e passa a se interrogar sobre o que tem de seu naquilo de
que esse ser falante se queixa, é o sintoma que ocupa o lugar de agente, opondo-se aos
imperativos que vêm do Outro, um isso não que produz saber... um saber sobre a sua divisão
que pode conduzir o sujeito ao passo seguinte, girando no sentido horário, para ocupar o lugar
de a no agenciamento discursivo que lança ao discurso do analista. “Este sintoma, que não é
símbolo, não constitui uma formação do inconsciente, mas uma suplência, pai que nomeia”
(BASTOS, 2008, p.355).
É somente pelo discurso do analista que o sujeito trabalha, de tal modo que pode
produzir um S1 inédito como produto dessa lógica discursiva, por essa razão, tal construção
226

possibilita o giro do sintoma ao sinthoma.


O sinthoma como marca da singularidade com que um sujeito pode se identificar ao
final de uma análise. O interessante de recorrer a Joyce é justamente porque essa modalidade
discursiva, que é o discurso do analista, pode operar mesmo sem um divã, sem o setting
analítico. De modo que, com Antônio Sérgio Mendonça, Gonzalez destaca os discursos e suas
manifestações inconscientes, privilegiando o equívoco como elemento essencial para o
funcionamento do discurso do analista.
Lacan, no seminário O Sinthoma (1975-76), enfatiza as homofonias como elemento
excepcional na escrita de Joyce, por promover a perda de sentido, as ressonâncias, os
neologismos, as brincadeiras com a língua morta, a língua que é obrigada a ser abandonada pós-
colonização, enfatizando aquilo que falha, o que pode cair, fazendo desaparecer vernáculos,
que ele retoma, remonta, gozando desse lugar, o que faz fronteira entre o legível e o ilegível. O
que é possível amarrar entre o nome e o corpo.
Sinthoma que evoca a grafia antiga, e que com sua homofonia propicia equívocos, o
inconsciente é o lugar que transborda os equívocos. “O que pode ser isso senão o tropeço? O
esquecimento de um nome, a troca de uma palavra, pegar a chave que não serve àquela porta,
perder a hora, esquecer um pequeno papel em cima da mesa e ter que voltar... O inconsciente
não é tanto Unbewusst, mas sim Une-bévue” (RAMOS, 2014, p.121).
Sinthoma é um conceito apresentado em um momento tardio do ensino lacaniano e
representa um giro no ensino e na formulação do sintoma, tanto no sentido político como
clínico, “mexe” com o lugar do pai, na Psicanálise, e dos artifícios que podem forjar uma
nomeação. Se, antes, víamos o nome-do-pai como necessário desde Freud, com Lacan, em
meados do seu ensino, o pai tem o status de metáfora paterna (passando, posteriormente, para
o pai como nomeação). Já com Joyce, Lacan possibilita trabalhar de um outro modo, é um outro
artifício que faz suplência ao nome.
Joyce buscava bancar para si um nome, fazendo, assim, uma versão de pai para si, em
decorrência da falha paterna que sentia. É pela via da escrita que Joyce firma e imortaliza seu
nome como próprio. Culturalmente, a nomeação vem através do nome do pai, mas Joyce
subverte e, por meio da sua produção literária, produz uma versão do pai, uma versão
direcionada ao lugar (simbólico) do pai. Incluindo a importância da dimensão discursiva
presente no laço, para Joyce não bastaria escrever, era fundamental publicar, para que essa
dialética do reconhecimento acontecesse. Assim, é na universidade, com a sua escrita, que ele
goza da sua heresia: “O incrível é que ele o conseguiu, e de um modo fora de série. Isso dura,
e ainda vai durar. Ele o queria, nomeadamente, por trezentos anos. Ele disse – quero que os
227

universitários se ocupem de mim por trezentos anos” (LACAN, 1975-1976/ 2007, p.17).
O laço social é o lugar no qual se presentifica o fazer político, assim, quando, a partir
dos ditos de Gonzalez, trago para a tese a operação de autoria realizada por Joyce, não o faço
pensando em estruturas ou diagnósticos, o que me interessa é justamente a relação com o laço
social. Por isso, destaco trechos do início do seminário O Sinthoma (LACAN, 1975-1976/ 2007,
p.17), a fim de enfatizar Joyce e o que aparece da sua relação de reconhecimento no campo
político:

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o distanciamento de Joyce


quanto à política produz o que chamarei de sint’home rule” (expressão que
significa governo próprio, autonomia) distorcendo ao noroeste um sol
nascente atrás do banco da Irlanda, ‘trata-se assim de um sinthoma que rola, o
sinthoma com rodinhas que Joyce junta com outro’ (LACAN, 1975-
1976/2007, p.15-16).

Desse modo Lacan localiza a seiva herética de Joyce, a heresia “é realmente o que
especifica o herético. É preciso escolher a via por onde tomar a verdade” (LACAN, 1975-
1976/2007, p. 16). Joyce nasceu em Dublin, era feniano, ou seja, participava de um partido
político pró-separação da Irlanda, de combatentes irlandeses antibritânicos, tinha um pai com a
vida afundada no alcoolismo; para Lacan, era um “pobre diabo” (Ibidem, p.15-16).
Joyce era um irlandês, e até então a Irlanda era colônia da Inglaterra, ele “nasce, cresce,
escreve e morre como um sujeito colonial” (MATOZINHO, 2021). Segundo a psicanalista
Christina Matozinho, essas marcas políticas, do lugar ao qual Joyce era destinado nos discursos,
estão presentes ao longo da sua obra, de modo que estava “longe de ser uma obra de um
intelectual europeu elitista distante das questões da sua época”, o que não é sem consequências
para sua escrita: “Ora, toda essa subversão que se opera a partir de Joyce na Psicanálise
certamente traz consigo as marcas políticas desnudas por Joyce” (MATOZINHO, 2021).
Deslocando o olhar para a lógica de poder e as relações sintomáticas que advêm daí,
assim, segundo a autora, “é pela mão de Joyce que Lacan desloca a clínica da órbita do Nome-
do-Pai edípico, na medida em que o significante da falta do Outro se apresenta”
(MATOZINHO, 2021). Forjando um além do Édipo, “fazendo mesmo que Lacan nos diga que
o sinthoma de Joyce constitui-se apesar do pai, um pai colonial” (Ibidem). Deslocando, dessa
maneira, o Nome-do-Pai edípico como só mais uma possibilidade de nomeação, dentre tantas
outras, possibilitando, assim, outros tipos de amarração. Daí sua autoria e o ato de escrever
como possibilidade, passando por um isso não que o sintoma produz como marca e que, no
caso do Joyce, para Lacan (1975-76/2007), passa a ser sinthoma, porque traz esse irredutível e
228

singular. Sinthoma, justamente por propiciar esse saber-fazer, esse escabelo que lhe permite
alcançar um outro lugar.
A maneira como Joyce brinca com a língua, inventando, torcendo e destorcendo as
palavras, demonstra o que podemos extrair de valor sintomático da sua escrita: “Sabemos que
a questão da língua é decisiva no processo colonial, já que uma das consequências da conquista
imperial é o controle gradual da ordem simbólica pela linguagem imperial hegemônica, o
império do sentido” (MATOZINHO, 2021). Joyce opera, assim, uma insubmissão ao
simbólico, contrariando a lógica dominante, deslocando sentido, autorizando-se a uma escrita,
a uma autoria, fazendo da sua obra sua própria “salvação” de um lugar comum. Por isso Lacan
toma Joyce como uma forma de estudar, debruçar-se e conceber o sinthoma, com h, esse passo
a mais no conceito de sintoma, tão trabalhado ao longo do seu ensino. “O que Joyce nos aponta
é que a condição do exílio é estrutural, apesar de se atualizar de formas diferentes ao longo da
história” (Ibidem), e mais:

Assim, a psicanálise tomada pela mão de Joyce nos ensina sobre a


possibilidade herética de fazer frente às determinações significantes de um
Outro e da História, mobilizando para isso as marcas de real da Língua que
afetam o corpo em um gozo sem sentido, a despeito da gramática de
significação do Império (MATOZINHO, 2021).

5.17 Ocupar o lugar de objeto a: o lixo vai falar e numa boa

É por essa via que penso a autoria de Gonzalez e a potência de sua escrita, a forma
como ela situa o que há de sintomático na cultura brasileira. Ao falar do lugar destinado no
discurso vigente às mulheres negras, ela opera uma denúncia via discurso da histérica, aos
passos da sua construção como militante política; assim, dá-se a histerização discursiva, através
de todo seu percurso, em ato, no tornar-se negra, essa construção de saber que sua práxis produz
implica em modificações de lugares para a própria Lélia Gonzalez. Nessa passagem pelo
discurso da histérica, denuncia e diz isso não ao mestre: na variação do mestre antigo, pela
maneira que ela passa a ocupar e circular por lugares, contestando as armadilhas herdadas pela
cultura que não superou a lógica escravocrata, e reproduzindo isso até os dias atuais,
preservando as modalidades possíveis de mucama – da mulata e empregada doméstica, do
elevador de serviço, por exemplo, como uma forma de presentificar diferentes entradas95. Bem
como, ao passo que pôde histerizar para construir saber sobre como “os aparelhos ideológicos

95
Como cantada na composição de Jorge Aragão, apresentada anteriormente.
229

do Estado, [...] servem para a manutenção das relações de produção existentes, desenvolvem
com eficácia a veiculação e o reforço das práticas de descriminação”(GONZALEZ, 2020, p.39),
ela realiza esse enfrentamento ao discurso universal – que é universalizante – dentro dos
espaços acadêmicos, para, finalmente, avançar, a partir do discurso da histérica, para não mais
fazer oposição ou denúncia, mas sim arriscar-se a uma autoria que presentifica algo novo.
No texto Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), a autora aponta como,
em suas construções, foi modificando seu entendimento sobre a mulata, em comparação a um
outro texto apresentado em 1979, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Dito isso, em Racismo
e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), autoriza-se a ocupar um outro lugar, não se trata
mais de tomar o lugar de agente que presentifica o isso não ao mestre, para, finalmente, afirmar:
“assumimos aqui é o ato de falar com todas as implicações [...] assumimos nossa própria fala.
Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ, 2020, p.77-78); desse modo, Gonzalez
não está mais no lugar de confrontamento com o mestre, ela toma para si o lugar de quem
agencia o laço no discurso do analista e, assim, enquanto semblante de objeto a, visa a modificar
as coordenadas discursivas.
Portanto, ao se colocar como lixo, é a função de objeto a que aparece na cena: “O a
parece cair para dentro do circuito que traça a relação muito singular entre o sujeito e o objeto.
[...] Ao mesmo tempo em que o objeto se situa atrás do desejo como aquilo que o causa, ele
também se caracteriza como objeto resto, lixo ou rebotalho” (SANTOS; VIEIRA, 2019, p.18).
Agenciando o discurso do analista, “O objeto a é o que permite arejar um pouquinho a função
do mais-de-gozar” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 189). O semblante de objeto a, no lugar de
dominante, presentifica o rechaço à mestria, torna presente a falta, a castração, é um discurso
que materializa o impossível e, ao se deparar com isso, é possível deixar cair o significante-
mestre que determina a lógica de mestria. Lembrando que a função agenciada nessa modalidade
discursiva, diferente de todas as outras, não visa à dominação, e é exatamente por isso que algo
da assimetria pode ser preservada, através do encontro com os equívocos, com o que falta, uma
lógica orientada pelo não-todo, possibilitando que um significante inédito possa ser produzido.
Em função disso, por preservar a assimetria, em vez de tomá-la como sinônimo de hierarquia,
é que podemos compreender que essa modalidade discursiva sustenta a política do não-todo,
para a produção de um novo saber. Como vimos no Capítulo 1, o discurso do analista é o único
em que a inversão de lugares faz com que o sujeito96 não ocupe o lugar de agente, e sim o lugar

96
Entendendo que, em cada modalidade discursiva, os conceitos e sentidos modificam-se, então, assim como o S1
que aparece como produto do discurso do analista não é o mesmo S1 que agencia o discurso do mestre; aqui,
quando falamos em sujeito, não equivale ao $ que agencia o discurso da histérica.
230

do Outro.
A mestria que constrói a cultura brasileira apoia-se naqueles que hegemonicamente são
reconhecidos como os que sabem e podem dizer sobre o Brasil. Nesse sentido, Gonzalez faz
semblante de objeto a, deslocando certa dominância discursiva. Assim, a autora desloca lugares,
ao acular o lugar de quem pode dizer sobre a cultura brasileira, ao demonstrar em seu ato de
fala como e para que/quem se constrói e se mantém o mito da democracia racial, presentes na
obra de Caio Prado Jr. e Gilberto Freire, (enquanto operando via discurso da histérica ela
histeriza o discurso pela via política e acadêmica); enquanto nesse outro lugar, no lugar de
semblante de objeto a, via discurso do analista, Gonzalez faz cair aquilo que sustenta a
dominância, colocando essas teorias como cindindas, seu ato de fala ocupa o lugar de
dominância discursiva, e desse modo desloca essa ideologia que ocupava o agenciamento
discursivo para o lugar do Outro. Daí é esse mito da democracia racial que ocupa o lugar de
sujeito barrado, tendo que se haver com a sua divisão.
Enquanto os discursos de mestria, no contexto brasileiro, impõem a língua europeia
como oficial, apagando sistematicamente as línguas dos povos originários, tal como foi feito
com os sujeitos sequestrados do continente africano, para prevalecer a língua portuguesa e sua
origem latina, Lélia desloca essa mestria do lugar de dominância, fazendo aparecer os
equívocos existentes em tal afirmativa. Ora, ao afirmar o lugar da ‘mãe preta’, que tem a sua
importância apagada na história, apagada da condição de transmissão da língua e de seus
saberes, Gonzalez destaca que “através da ‘mãe preta’, a verdade surge da equivocação”
(GONZALEZ, 2020, p. 87, grifos da autora), apontando que a língua que se fala no Brasil é o
pretuguês.
Embora a palavra pretuguês não tenha sido uma invenção da Lélia Gonzalez, já que esse
termo inicialmente foi criado de maneira pejorativa, para se referir aos povos do contimente
africano que foram colonizados por portugueses, Gonzalez eleva a palavra ao statuto de
significante, articulando sua importância e seu uso na língua e na formação da cultura brasileira.
Neste sentido o pretuguês é produção do seu trabalho à medida que, seu ato de fala
ocupa o lugar de semblante como objeto a, agenciando o discurso do analista e “falando numa
boa” (GONZALEZ, 2020) sobre o racismo e o sexismo na cultura brasileira como meio-dizer
a verdade da história que não foi escrita, evidenciando a fenda existente no mito da democracia
racial.
231

Figura 17 – Matema do discurso do analista.

FONTE: LACAN, J. (1972). Du discours psychanalystique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra,
1984. p. 32.

o lixo vai falar, e numa boa97 mito da democracia racial


___________________ ___________________
racismo e sexismo Pretuguês

Ao ocupar o lugar de objeto a, o lixo vai falar e numa boa, através do seu ato de fala,
Lélia interpela o colonizador e seu mito, mostrando que ele, o colonizador, é não-todo europeu,
como se crê, de tal modo que o que fica recalcado, o racismo e o sexismo, emerge como
pretuguês.
A maneira como Gonzalez articulou os discursos, ocupando um lugar na linguagem,
opera giros, via produção de um estilo próprio, uma autoria como produto, um trabalho na
linguagem, igualmente como fez Joyce. Sua autoria possibilita a invenção de um novo
significante, o pretuguês, um significante inédito, que nomeia algo presente no laço e, ao ser
produzido como S1, ele pode alterar os sentidos.

É engraçado como eles gozam da gente quando a gente diz que é Framengo.
Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente
ignoram que a presença desse R no lugar do L nada mais é que a marca
linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. Afinal, quem é o
ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que
corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa “você” em “cê”, o “está’’
em “tá” e por aí afora. Não sacam que estão falando pretuguês. E por falar em
pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura
brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo, que por sua vez, e
justamente com o ambundo, provém de um tronco linguístico banto que
“casualmente” se chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca
bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido
e é coisa. De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o
discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo
brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado etc. e tal.

97
Lélia Gonzalez, em ato, fazendo semblante de objeto a.
232

Só que na hora de mostrar o que eles chamam de “coisas nossas”, é um tal de


falar de samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba
e por aí afora (GONZALEZ, 2020, p.90-91).

Como vimos no final do Capítulo anterior, bell hooks também é uma autora que propõe
usar a linguagem como possibilidade para seguir adiante. Além das críticas ao patriarcado
colonial, o que ambas as feministas – hooks e Gonzalez – operam é a invenção de um sinthoma,
forjando, assim, algo singular – a autoria de um novo significante como um produto dessa
invenção. Diferente do que acontece no discurso da histérica, no qual a dominância discursiva
realiza uma contestação dirigida ao Outro, um enfrentamento ao pai como símbolo da
autoridade na modernidade, o que ambas as autoras produzem é um passo a mais, é levar o
sintoma que diz isso não a um passo adiante, para soltar a mão do pai – da cultura – sem se
desfiliar desse pai.

E quando se fala de pai tá se falando da função simbólica por excelência. Já


diz o ditado popular que ‘Filhos de minha filha, meus netos são; filhos do meu
filho, serão ou não”. Função paterna é isso aí. É muito mais questão de assumir
do que ter certeza. Ela não é outra coisa senão a função de ausentificação que
promove a castração. É por aí, graças a Fregue, que a gente pode dizer que,
como zero, ela se caracteriza como a escrita de uma ausência (GONZALEZ,
2020, p. 89).

Segundo Garcia98, é isso que tem de diferente e extraordinariamente rico na práxis


dessas duas feministas negras: a possibilidade de soltar a mão do pai, não para perder a filiação,
mas para seguir adiante.
Afinal, Lélia Gonzalez assume a teoria lacaniana dos discursos, para pensar a cultura
brasileira, especialmente como a teoria dos discursos, podem possibilitar avanços, reorganizar
consciência e memória e a construção de novas formas de revisitar e contar suas marcas, em
especial, a teoria dos discursos via discurso do analista, como um laço social que preserva a
assimetria como tal, privilegiando os equívocos que emergem na língua e na linguagem. Daí
escolher como suporte epistemológico a Psicanálise, para incluir a dimensão inconsciente na
sua análise sobre a cultura brasileira, bem como para ocupar um lugar na linguagem, em ato,
capaz de alterar os sentidos vigentes. E é isso que suporta seu lugar de autoria sobre a cultura
brasileira.

98
Em transmissão oral, no exame de qualificação realizado no dia 17/12/2021.
233

MOMENTO DE CONCLUIR

A Psicanálise é uma experiência viva, pulsante, o próprio Lacan propõe um retorno a


Freud para poder ir adiante.

Como é difícil colocar o ponto final, este tema me faz pensar várias outras articulações,
e desdobramentos, mas chegou o momento de concluir. Assim, gostaria de compartilhar
algumas últimas notas sobre conteúdos já presentes ao longo desta tese.
Primeiro, gostaria de relembrar que é fundamental estar atento/a à subjetividade de
nossa época, essa é uma valiosa recomendação lacaniana, e acrescento: estar atento/a ao nosso
território, para pensar o fazer psicanalítico no Brasil, e neste momento histórico. Considero e
me questiono sobre quais as práxis que podem fazer frente ao avanço do discurso colonizador
capitalista, ou às imposições hegemônicas que se impõem, considerando os enquadramentos
culturais e as determinações discursivas, bem como ser cautelosos sobre sua relação com
aparecimento de sintomas, nos sujeitos e na cultura, sabendo que o inconsciente é político e que
o sujeito da Psicanálise não é redutível às determinações históricas, contudo, paradoxalmente,
não está separado dos contextos históricos aos quais pertence.
Lacan, durante todo o seu ensino, trabalhou os conceitos-base para a clínica
psicanalítica, mas sem deixar de lado os atravessamentos políticos – dentro e fora do nosso
campo, passando pela sua excomunhão e por toda a questão política, na condução da Psicanálise
herdada por Freud, até as influências de Maio de 68, como trabalhado na presente tese.
Escolhi trabalhar as questões relativas ao laço social, pois possibilitam pensar, com
Lacan, a verdade como um semidizer; a epistemologia psicanalítica permite-nos escutar os
equívocos, o que escapa, escutar o dizer que fica por trás do que é dito e, não só isso, ela autoriza
extrapolar os sentidos postos e constatar que não há a verdade – universal. Inclusive, acrescento
aqui o quanto é importante olhar para isso na contemporaneidade, precisamente acolhendo
tantas outras construções teóricas a que temos acesso atualmente, em especial, o pensamento
feminista e a forma como suas autoras partem de outros pontos de partida para a compreensão
da cultura; destaco igualmente a importante presença das epistemologias do Sul.
Nesse encontro entre a epistemologia psicanalítica e a práxis feminista interseccional,
afirmamos que é inegável como o significante, que constitui a cultura, está impregnado de
significados, logo, gênero e raça não são irrelevantes na constituição dos sujeitos, por todos os
atravessamentos impostos no laço social. Ainda mais considerando como as questões de
234

gênero/sexo (machismo) e de raça (racismo) são estruturais. Além disso as pesquisas sobre os
feminismos, modificaram a maneira como eu passei a compreender o ensino lacaniano,
interferindo especialmente na minha leitura da teoria sobre o laço social e os discursos.
Por isso Lélia Gonzalez presentificou-se como uma das pensadoras-chave para a
construção desta tese, já que promove o encontro entre o feminismo interseccional, a
epistemologia da Psicanálise e a cultura brasileira.
Foi assim que surgiu a possibilidade de pensar encruzilhadas, como um ponto de
encontro no qual duas coisas que se topam e se escutam podem dar um passo a mais. O que
possibilitou traçar, politicamente, certas alianças estratégicas. Dito isso, tendo a apostar na
possibilidade de uma psicanálise que pode ser interseccional, comungando com o que pensa a
psicanalista Ana Paula Gianesi.

Enquanto teoria e prática não disjuntas, uma psicanálise que não problematize
as questões que a interseccionalidade aponta e as denúncias de opressão que a
mesma traz consigo corre o risco de acumpliciamento com o próprio sistema
de dominação. Mais ainda, um corpo teórico que não seja capaz de se rever,
que não permita furo e que não se deixe modificar por aquilo que lhe bate à
porta acaba repetindo e reproduzindo o pior (GIANESI, 2022).

As coordenadas que determinam as desigualdades impostas pelo capitalismo são


marcadas por uma interseção entre gêneros, raça e classe. Assim, a “democracia capitalista”
nunca foi – nem nunca será – uma democracia em si, já que não é para todos. Na prática, direitos
e deveres não são iguais para todes, pelo contrário, operam favorecendo ou prejudicando os
sujeitos a partir de certas coordenadas.
Portanto, compreendemos que a análise visa à ruptura de determinadas estruturações,
para ultrapassar a rigidez própria ao Eu. E o discurso da histérica, de um modo, e do analista,
de outro, podem permitir que alguns movimentos sejam operados também no campo social.
O feminismo é ordem de um ato, pode provocar a emergência de novos sujeitos
políticos, que se orientam para produzir rupturas efetivas, em ato, ato que provoca a abertura
para outras coordenadas que não poderiam ser pensadas até então. Lembrando que Lacan,
pouco antes de criar a teoria dos discursos privilegiou o ato à interpretação. Ato como um
conceito clínico. Ao mesmo tempo, esse foi o seminário que antecedeu a entrada em Marx, a
formulação do conceito de mais-de-gozar e as formulações dos quatro discursos.
De modo que encontraremos em Lacan uma prática que privilegia atos performativos
para romper estruturas e produzir realidades até então inexistentes. Assim, uma análise visa à
ruptura de determinadas estruturações, ultrapassa a rigidez própria ao Eu. Nesse sentido, a
235

Psicanálise procura refletir as condições de transformações subjetivas aptas para um


agenciamento que não é completamente coordenado pela estrutura vigente, modificando o
sujeito em suas construções em análise, bem como permitindo ocupar a linguagem para cogitar
modificações estruturais no laço social.
A militância de Gonzalez considera como as várias formas de opressão intrincavam-se,
por isso ela levantava bandeiras pela democracia, liderava resistências sociais, estava à frente
de coletivos e movimentos, do mesmo modo que se expressava por intervenções e textos,
produzindo conhecimento a partir da extensa experiência política que lhe cabia, combinando,
estrategicamente, sua erudição e vasto conhecimento literário, com falas e escritos informais,
que, ao mesmo tempo, englobavam uma subversão na transmissão com seus pares intelectuais,
à medida que fazia circular termos característicos do pretuguês, somados a um linguajar
popular. O ocupar a fala é pegar e usar. Sem pedir licença, sem se enquadrar, e é isso que a
autora faz, não sem o suporte epistemológico da Psicanálise.
A militância é em ato, inclui o corpo e, por consequência, dá suporte para aprender sobre
as coisas do mundo, é também um lugar para construir saber. Desse modo, reafirmo que essa
tese não é sobre Lélia Gonzalez, uma análise sobre sua pessoa, mas sim sobre como podemos
aprender com ela sobre a cultura brasileira, bem como aprender sobre outras formas de tomar
a epistemologia psicanalítica para além dos consultórios.
Desse modo, precisei percorrer alguns caminhos sobre a Psicanálise, sua não separação
dos temas sociais, já que o sujeito é contaminado pelo laço social do qual faz parte, por isso
mesmo o analista deve estar atendo ao seu tempo, à geografia e à sua história; saber que estamos
no Brasil de 2022, interfere no meu psicanalisar...
Nesse contexto, mantenho em aberto a seguinte questão: como a Psicanálise pode
avançar para seguir existindo e resistindo?
É nesse prisma que me parece fundamental olhar para o que a epistemologia
psicanalítica nos ensina, mas não sem olhar também para ‘fora’ dela. Como o feminismo surge
trazendo teses interessantes sobre o mundo, sobre lugares, bem como o movimento negro –
entendendo como negro, no contexto brasileiro, todos os seres falantes marcados pela
colonização, portanto tratados como “menos sujeitos” do que outros. Então, como pensar tudo
isso no contexto brasileiro?
Para que não haja dúvidas, tais questões me interessam inclusive para pensar a clínica,
a partir dessa leitura sobre o laço social, incluindo a interseccionalidade nos consultórios. E isso
não quer dizer direcionar as análises de acordo com o pensamento político do analista, muito
menos buscar fazer com que os sujeitos que procuram os consultórios para iniciar suas análises
236

sejam, ao final desse processo, militantes ou cidadãos/cidadãs. Quando digo estar atento/a
inclusive na poltrona, é visando a não cair na armadilha da neutralidade, do somos todos/as
iguais, porque nem tudo é fantasia, existem realidades mais difíceis do que outras.
Por isso, finalizo destacando a importância de pensar a Psicanálise atualmente, no
Brasil, considerando o pensamento e a atuação da Lélia Gonzalez, em especial quando ela
escreve, em 1984, Racismo e sexismo na cultura brasileira. Afinal, de lá para cá o que
realmente mudou na forma de descrever a subjetividade das mulheres negras? O que mudou na
sintomática presente na cultura brasileira?
Uma questão que permanecerá em aberto, mas, para oxigenar formas de analisar essa
questão, compartilho um último discurso.
Para finalizar, gostaria, assim, de incluir trechos do último discurso realizado por
Marielle Franco, no dia 08 de março 2018. Na ocasião, Marielle Franco discursava na tribuna
da Câmara dos Vereadores do estado do Rio de Janeiro, ocupando essa tribuna na condição de
vereadora eleita em seu primeiro mandato, depois de uma expressiva votação. Na ocasião, ela
foi interrompida diversas vezes por parlamentares e assessores que não reconheciam que ali era
o seu lugar. Infelizmente, poucos dias depois, no dia 14 de março de 2018, foi brutalmente
assassinada, sendo que, até a presente data, o crime não foi solucionado, e diversos movimentos
sociais seguem perguntando: quem matou Marielle Franco? E quem mandou mandar?

Neste dia 8 de março, ocupando uma das apenas sete cadeiras aqui do
Parlamento Municipal, precisamos sempre nos perguntar: o que é ser mulher?
O que cada uma de nós já deixou de fazer ou fez com algum nível de
dificuldade pela identidade de gênero, pelo fato de ser mulher? A pergunta
não é retórica, ela é objetiva, é para refletirmos no dia a dia, no passo a passo
de todas as mulheres, no conjunto da maioria da população, como se costuma
falar, que infelizmente é subrepresentada.

[...] Este 8 de março é um março histórico, um março em que falamos de


flores, lutas e resistências, mas um março que não começa agora e muito
menos é apenas um mês para pautar a centralidade da luta das mulheres. A
luta por uma vida digna, a luta pelos direitos humanos, a luta pelo direito à
vida das mulheres precisa ser lembrada, e não é de hoje, é de séculos, inclusive
com origem em séculos passados, quando nas greves e manifestações,
principalmente as russas, no período pré-revolucionário, mulheres lutaram
com firmeza, lutaram pelos direitos trabalhistas.

... um século da luta das mulheres indígenas por demarcação; da luta das irmãs
mulheres negras, que vieram antes de nós, que resistiram a tamanho absurdo
que foi o período da escravidão; da luta pelo fim de toda forma de opressão,
que se reflete no racismo, na misoginia, na luta contra o patriarcado. Assim,
seguimos lutando.
237

[...] Rosa Luxemburgo, que era coxa. A história conta que ela figurava ali
com 1,50m de altura, ia para a linha de frente do front da luta política do seu
momento na história. [...] Como diria a Rosa, aniversariante do dia 5, nós,
mulheres, na nossa diversidade e resistência, lutamos por um mundo no qual
sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

Inclusive neste momento em que a democracia se coloca frágil, quando se


questiona se vai ter processo eleitoral ou não, quando vemos todos os
escândalos com relação ao Parlamento, falar das mulheres que lutam por outra
forma de fazer política no processo democrático é fundamental. Inclusive em
tempos em que a justificativa da crise, a precarização, a dificuldade da vida
das mulheres são apresentadas, mas tudo com muita dificuldade real.

As mulheres, quando saem às ruas, na manifestação, do 8 de março, daqui a


pouco na Candelária, fazem porque, entre 83 países, o Brasil é o sétimo mais
violento. Volto a repetir, dados da Organização Mundial da Saúde. Esse
quadro segue piorando, aumentando 6,5 % no último ano. Por dia, são 12
mulheres assassinadas no Brasil.

Nesse período, por exemplo, em que a intervenção federal se concretiza na


intervenção militar, eu quero saber como ficam as mães e os familiares das
crianças revistadas. Como ficam as médicas que não podem trabalhar nos
postos de saúde? Como ficam as mulheres que não têm acesso à cidade? Essas
mulheres são muitas. São mulheres negras, lésbicas, trans e camponesas. São
mulheres que constroem esta Cidade onde diversos relatórios, queiram os
senhores ou não, apresentam a centralidade e a força delas, mas apresentam
também os números.

O “The Intercept” publicou o dossiê de lesbocídio. No ano de 2017, houve


uma lésbica assassinada por semana. Lesbocídio é um conceito que as
mulheres lésbicas estão cunhando, assim como nós avançamos no debate com
relação ao homicídio praticado contra mulheres, que se constituiu no
feminicídio. Esses dados mostram a realidade absurda que, sim, vitima a nossa
diversidade.

As mulheres negras, por exemplo, quando passam na rua, ainda ouvem


homens que têm a ousadia de falar do quadril largo, das nádegas grandes, do
corpo, como se a gente estivesse no período de escravidão. Não estamos,
querido! Nós estamos no processo democrático! Vai ter que aturar mulher
negra, trans, lésbica, ocupando a diversidade dos espaços.

[...] O mandato é composto 80% de mulheres, porque a gente entende que o


lema “Uma mulher sobe e puxa a outra” precisa ser concretizado.
Uma escritora de que gosto muito, Chimamanda, fala que isso só vai ser
alterado se as mulheres que estão no espaço de poder de fato trouxerem, derem
o pé, abraçarem, acolherem, construírem com outras mulheres. Se este
Parlamento é formado apenas por 10%, 13% de mulheres, nós somos a
maioria nas ruas. E sendo a maioria nas ruas, somos a força exigindo a
dignidade e o respeito das identidades. Infelizmente, o que está colocado aí
nos vitima ainda mais. [...] Pra encerrar, gostaria de reforçar e dizer das
mulheres negras que são nossas referências. Quero citar Audre Lorde, mulher
negra, lésbica, escritora de origem caribenha, mas dos Estados Unidos.
Feminista e ativista pelos direitos civis. “Eu não sou livre enquanto outra
238

mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das
minhas. Por isso, nós vamos juntas, lutando contra toda forma de opressão”.
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