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Helena Blavatsky - Ísis Sem Véu Vol. 4

O volume IV de 'Ísis Sem Véu' de Helena P. Blavatsky explora a intersecção entre teologia e ciência, abordando temas como jesuitismo, maçonaria, e comparações entre os Vedas e a Bíblia. A autora discute a ocultação de conhecimentos esotéricos e a relação entre diversas tradições religiosas, enfatizando a importância da iniciação e do segredo nas práticas espirituais. O texto também critica a autenticidade de textos sagrados e a falha de missionários em converter adeptos de outras crenças.

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O volume IV de 'Ísis Sem Véu' de Helena P. Blavatsky explora a intersecção entre teologia e ciência, abordando temas como jesuitismo, maçonaria, e comparações entre os Vedas e a Bíblia. A autora discute a ocultação de conhecimentos esotéricos e a relação entre diversas tradições religiosas, enfatizando a importância da iniciação e do segredo nas práticas espirituais. O texto também critica a autenticidade de textos sagrados e a falha de missionários em converter adeptos de outras crenças.

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Helena P.

Blavatsky

ÍSIS SEM VÉU


Uma Chave-Mestra para os
Mistérios da Ciência e da Teologia
Antigas e Modernas

VOLUME IV – TEOLOGIA
UNIVERSALISMO
“Cecy est un livre de bonne Foy.” — Montaigne

A AUTORA DEDICA ESTA OBRA À SOCIEDADE TEOSÓFICA,


QUE FOI FUNDADA EM NOVA YORK, NO ANO DE 1875, A FIM
DE ESTUDAR OS ASSUNTOS NELA ABORDADOS.
Sumário
8 — JESUITISMO E MAÇONARIA
O Zohar e o Rabino Simão
A Ordem dos Jesuítas e a sua relação com algumas ordens maçônicas
Os crimes permitidos aos seus membros
Os princípios do Jesuitismo comparados com os dos moralistas pagãos
A trindade do homem no Livro dos Mortos egípcio
A franco-maçonaria, não mais esotérica
A perseguição dos Templários pela Igreja
O código secreto maçônico
Jeová não é o “Nome Inefável”

9 — OS VEDAS E A BÍBLIA
Quase todos os mitos baseiam-se em alguma grande verdade
A origem do domingo cristão
A antiguidade dos Vedas
A doutrina pitagórica das potencialidades dos números
Os “Dias” da Gênese e os “Dias” de Brahmâ
A queda do homem e o dilúvio nos livros hindus
A antiguidade do Mahâbhârata
Eram os antigos egípcios de raça ariana?
Samuel, Davi e Salomão, personagens míticos
O simbolismo da Arca de Noé
Os Patriarcas, idênticos aos signos do zodíaco
Todas as lendas bíblicas referem-se à história universal

10 — O MITO DO DEMÔNIO
O demônio oficialmente reconhecido pela Igreja
Satã, o esteio do sacerdotalismo
A identidade de Satã com o Tífon egípcio
A sua relação com o culto da serpente
O Livro de Jó e o Livro dos Mortos
O demônio hindu, uma abstração metafísica
Satã e o Príncipe do Inferno no Evangelho de Nicodemo

11 — RESULTADOS COMPARADOS DO BUDISMO E DO CRISTIANISMO


A idade da filosofia não produziu ateus
As lendas dos três Salvadores
A doutrina cristã da Expiação ilógica
Por que os missionários falham ao tentar convencer budistas e bramanistas
Nem Buddha, nem Jesus deixaram relatos escritos
Os grandes mistérios da religião na Bhagavad-Gîtâ
O sentido da regeneração explicado no Satapatha-Brâhmana
Interpretação do sacrifício do sangue
A desmoralização da Índia Britânica pelos missionários cristãos
A Bíblia é menos autêntica do que qualquer outro livro sagrado
Os conhecimentos sobre química exibidos pelos prestidigitadores indianos

12 — CONCLUSÕES E EXEMPLOS
Resumo das proposições fundamentais
A vidência da alma e do espírito
O fenômeno da chamada mão espiritual
A diferença entre médiuns e adeptos
Diálogo entre um embaixador inglês e um Buddha reencarnado
O vôo do corpo astral de um lama relatado pelo Abbé Huc
Escolas de magia nas lamaserias budistas
A raça desconhecida dos Tôdas hindus
O poder da vontade dos faquires e dos yogis
A domesticação de animais selvagens por faquires
A evocação de um espírito vivo por um xamã, testemunhada pela autora
Bruxaria pela respiração de um padre jesuíta
Porque o estudo da magia é quase impraticável na Europa
Conclusão
8
Jesuitismo e maçonaria
“Os filhos cristãos e católicos podem acusar seus pais pelo crime de
heresia, ainda que saibam que por isso os acusados tenham de morrer
na fogueira... E não só podem negar-lhes até o alimento se tratam de
apartá-los da fé católica, mas também podem com toda justiça dar-lhes
morte.” (Preceito Jesuítico.)
F. Esteban Fagundez: Precepta Dacalogi. Lug-dumi, 1640.

“O Sapientíssimo — Que horas são?


“O Respeit. C. S. Guardião — A da alba. A hora em que se rasgou o véu
do templo e as trevas se derramaram pela consternada terra e se eclipsou
a luz e se quebraram os utensílios da Maçonaria e se ocultou a estrela
flamígera e se despedaçou a pedra cúbica e se perdeu a palavra.”
(Do Ritual do 18º (Rosa-cruz), Rito Escocês, Jurisdição Meridional.)

Magna est veritas et praevalebit.

JAH-BUH-LUN.

O Zohar e o Rabino Simão


A maior, dentre as obras cabalísticas dos hebreus — o Zohar, ‫ — זֹ הַ ר‬foi
compilada pelo Rabino Shimon ben Yohai. De acordo com alguns críticos, esse
trabalho foi feito alguns anos antes da era cristã; segundo outros, só após a
destruição do templo. Todavia, ele só foi completado pelo filho de Shimon, o
Rabino Eleazar, e por seu secretário, o Rabino Abba, pois a obra é tão imensa
e os assuntos nela tratados são tão abstrusos, que nem mesmo a vida inteira
desse Rabino, chamado o Príncipe dos cabalistas, seria suficiente para essa
tarefa. Devido ao fato de se saber que ele possuía esse conhecimento, como o
da Merkabah, que lhe assegurou o recebimento da “Palavra”, sua vida foi posta
em perigo e ele teve de fugir para o deserto, onde viveu numa caverna durante
doze anos, cercado por discípulos fiéis, até a sua morte, assinalada por sinais e
maravilhas. [1]
Todavia, embora sua obra seja tão volumosa e contenha os pontos principais da
tradição secreta e oral, ela não abrange tudo. É sabido que esse venerável
cabalista nunca partilhou, por escrito, os pontos mais importantes da sua
doutrina, a não ser oralmente, e, ainda assim, a apenas um número muito
limitado de amigos e discípulos, incluindo-se aí seu próprio filho. Portanto, sem
a iniciação final na Merkabah, o estudo da Cabala será sempre incompleto e a
Merkabah só pode ser ensinada “na escuridão, num lugar deserto e após muitas
provas”. Desde a morte de Shimon ben Yohai, essa doutrina oculta tem sido um
segredo inviolado para o mundo externo. Confiada apenas como um mistério,
era comunicada oralmente ao candidato “cara a cara e lábios no ouvido”.
Esse preceito maçônico — “lábios no ouvido e a palavra em voz baixa” — é uma
herança dos tannaim e dos antigos mistérios pagãos. Seu uso moderno deve-se
certamente à indiscrição de algum cabalista renegado, embora a “palavra” em si
mesma seja apenas um “substituto” para a “palavra perdida” e uma invenção
relativamente moderna, como veremos a seguir. A sentença verdadeira sempre
esteve em poder dos adeptos de vários países dos hemisférios oriental e
ocidental. Apenas um número limitado, dentre os chefes dos Templários e alguns
Rosa-cruzes do século XVII, sempre em relações estreitas com os alquimistas
árabes e os iniciados, podem vangloriar-se de sua posse. Do século VII ao XV,
ninguém na Europa podia dizer que a possuía; e, embora tenham existido
alquimistas antes de Paracelso, ele foi o primeiro a passar pela verdadeira
iniciação, a última cerimônia que conferia ao adepto o poder de se aproximar da
“sarça ardente” sobre o solo sagrado e “fundir o bezerro de ouro no fogo,
transformá-lo em pó e misturá-lo à água”. Na verdade, então, essa água mágica
e a “palavra perdida” ressuscitaram mais de um dos Adoniram, Gedaliah e Hiram
Abiff pré-mosaicos. A palavra verdadeira, atualmente substituída por Mac Benac
e Mah, foi usada muito antes que seu efeito pseudomágico fosse tentado sobre
os “filhos da viúva” dos dois últimos séculos. Quem foi, de fato, o primeiro maçom
ativo de alguma importância? Elias Ashmole, o último rosa-cruz e alquimista.
Admitido ao privilégio da Companhia dos Maçons Ativos, em Londres, em 1646,
morreu em 1692. Àquela época, a Maçonaria não era o que se tornou mais tarde;
não era uma instituição política, nem cristã, mas uma verdadeira organização
secreta, que admitia no seu seio todos os homens ansiosos de obter a dádiva
inestimável da liberdade de consciência e escapar à perseguição clerical. [2] Até
cerca de trinta anos após a sua morte, aquilo que atualmente se chama de
moderna Franco-maçonaria havia sido instituída. Ela nasceu no dia 24 de junho
de 1717, na Taverna da Macieira, na rua Charles, no Covent Garden, em
Londres. Foi então que, como nos relatam as Constitutions de Anderson, as
únicas quatro lojas do sul da Inglaterra elegeram Anthony Sayer como o primeiro
Grão-Mestre dos maçons. Não obstante a sua idade, essa grande loja reivindicou
o reconhecimento de sua supremacia por parte de todo o corpo da fraternidade
espalhada por todo o mundo, como mostra, àqueles que a quiserem ver, a
inscrição latina gravada sobre a lâmina colocada abaixo da pedra angular do
Salão dos Maçons, em Londres. Porém, há mais.
Em La Kabbale, de Franck, o autor, seguindo os “delírios esotéricos” dos
cabalistas, dá-nos, além das suas traduções, os seus comentários. Falando dos
seus predecessores, diz que Shimon Ben Yohai menciona repetidamente o que
os “companheiros” ensinaram nas obras antigas. E o autor cita um “Teba, o
velho, e Hamnuna, o velho”. [3] Mas nada diz sobre o que significam esses dois
“velhos”, nem sobre quem foram, na verdade, pois também ele não sabe.
Na venerável seita dos tannaim, os homens sábios, houve aqueles que
ensinaram, na prática, os segredos e iniciaram alguns discípulos no grande
mistério final. Mas o Mishnah Hagîgâh, segunda seção, diz que o conteúdo da
Merkabah “só deve ser confiado aos sábios anciães”. [4] A Gemara [do Hagîgâh]
é ainda mais dogmática. “Os segredos mais importantes dos mistérios não eram
revelados a todos os sacerdotes. Só os iniciados os recebiam”. [5] E vemos então
que o mesmo grande sigilo prevalecia em toda religião antiga.
Mas, como vemos, nem o Zohar nem qualquer outro tratado cabalístico contém
doutrina puramente judaica. A própria doutrina, sendo um resultado de milênios
de pensamento, é patrimônio comum dos adeptos de todas as nações que viram
o Sol. Não obstante, o Zohar ensina mais ocultismo prático do que qualquer outra
obra sobre esse assunto; não como ele foi traduzido e comentado por vários
críticos, mas com os sinais secretos de suas margens. Esses sinais contêm as
instruções ocultas necessárias às interpretações metafísicas e aos absurdos
aparentes em que acreditou tão completamente Josefo, que nunca foi iniciado e
que expôs a letra morta tal como a recebera. [6]
A verdadeira magia prática contida no Zohar e em outras obras cabalísticas só
deve ser utilizada por aqueles que as podem ler interiormente. Os apóstolos
cristãos — pelo menos aqueles que operavam “milagres” à vontade [7] — deviam
estar inteirados desta ciência. Não convém, pois, a um cristão tachar de
superstição os talismãs, amuletos e pedras mágicas com que seu possuidor
consegue exercer em outra pessoa aquela misteriosa influência chamada
vulgarmente “mau-olhado”. Há um número muito grande desses amuletos
encantados em coleções arqueológicas públicas e particulares da Antiguidade.
Muitos colecionadores exibem ilustrações de pedras convexas, com legendas
enigmáticas — cujo significado frustra toda pesquisa científica. King apresenta
muitas delas em seu Gnostics e descreve uma cornalina branca (calcedônia),
coberta de ambos os lados com inscrições intermináveis, que interpretar seria
arriscar um fracasso — a não ser que um estudioso hermetista ou adepto o
fizesse. Mas remetemos o leitor à sua interessante obra e aos talismãs descritos
em suas lâminas, para mostrar que até mesmo o próprio “Vidente de Patmos”
fora instruído na ciência cabalística dos talismãs e das gemas. São João alude
claramente à poderosa “cornalina branca” — uma gema bastante conhecida
pelos adeptos como “alba petra” ou pedra da iniciação, sobre a qual se gravava
quase sempre a palavra “prêmio” e que era dada ao candidato que vencia com
sucesso as provas preliminares por que um neófito deveria passar. O fato é que
nada menos do que o Livro de Jó, bem como o Apocalipse, é simplesmente uma
narrativa alegórica dos mistérios e da iniciação ali de um candidato, que é o
próprio João. Nenhum maçom de grau superior, versado nos diferentes graus, o
compreenderá de maneira diferente. Os números sete, doze e outros são outras
tantas luzes lançadas sobre a obscuridade da obra. Paracelso afirmava a mesma
coisa alguns séculos atrás. E quando vemos “o semelhante ao Filho de um
homem” dizer (Apocalipse II, 17): “Ao vencedor darei de comer o maná oculto e
uma PEDRA BRANCA com um novo nome escrito” — a palavra — “que não
conhece senão quem o recebe”, qual Mestre maçom titubeará em reconhecer
nessa inscrição a mesma com que epigrafamos este capítulo?
Nos mistérios mítricos pré-cristãos, os candidatos que triunfavam intrepidamente
das “doze provas”, que precediam a iniciação, recebiam um pequeno bolo
redondo ou hóstia de pão ázimo que simbolizava, em um dos seus significados,
o disco solar, e era tido como pão celeste ou “maná” e que tinha figuras
desenhadas sobre ele. Um carneiro ou um touro era morto e, com o seu sangue,
o candidato era aspergido, como no caso da iniciação do imperador Juliano. As
sete regras ou mistérios — representados no Apocalipse como sete selos que
são abertos “em ordem” (ver capítulos V e VI) — eram então confiados ao
“nascido de novo”. Não há dúvida de que o Vidente de Patmos referia-se a essa
cerimônia.

A Ordem dos Jesuítas e a sua relação


com algumas ordens maçônicas
A origem dos amuletos católicos romanos e das “relíquias” abençoadas pelo
Papa é a mesma do “Conjuro Efésio”, ou caracteres mágicos gravados numa
pedra ou desenhados sobre um pedaço de pergaminho, dos amuletos judaicos
com versículos da Lei, chamados phylacteria, φυλακτήριο e dos encantamentos
maometanos com versos do Corão. Todos eles eram usados como conjuros
mágicos protetores e utilizados por todos os crentes. Epifânio, o digno ex-
marcosiano, que fala desses encantamentos — quando eram usados pelos
maniqueus como amuletos, isto é, coisas colocadas ao redor do pescoço
(periapta) — e dessas “encantações e trapaças semelhantes”, não pode lançar
uma nódoa sobre a “trapaça” dos cristãos e dos gnósticos sem incluir aí os
amuletos católicos romanos e papais.
Mas a consistência é uma virtude que tememos estar perdendo, sob a influência
jesuítica, a mínima ascendência que deve ter exercido sobre a Igreja. A astuta,
erudita, sem consciência e terrível alma do jesuitismo, dentro do corpo do
romanismo, está lenta mas certamente tomando posse de todo o prestígio e
poder espiritual que lhe é inerente. Para uma melhor exemplificação de nosso
tema, será necessário contrastar os princípios morais dos tannaim e teurgos
antigos com aqueles que são professados pelos jesuítas modernos, que
praticamente controlam o romanismo hoje e são o inimigo oculto que os
reformadores devem enfrentar e vencer. Em toda a Antiguidade, onde, em que
país, podemos encontrar algo semelhante a essa Ordem ou que se aproxime
dela? Devemos um capítulo aos jesuítas neste capítulo sobre sociedades
secretas, pois mais do que qualquer outra, eles são um corpo secreto e têm uma
velha ligação mais estreita com a Maçonaria atual — na França e na Alemanha
pelo menos — do que as pessoas geralmente sabem. O clamor de uma
moralidade pública ultrajada ergueu-se contra essa Ordem desde o seu
nascimento. [8] Apenas quinze anos haviam passado desde a bula [papal] que
promulgara a sua constituição, quando os seus membros começaram a ser
transferidos de um lugar para outro. Portugal e os Países-Baixos desfizeram-se
deles em 1578; a França em 1594; Veneza em 1606; Nápoles em 1622. De São
Petersburgo, eles foram expulsos em 1816, * e, de toda a Rússia, em 1820.
* Informação abrangente sobre a Ordem dos Jesuítas pode ser encontrada no volume IX dos
Collected Writings de H. P. B., em seu famoso artigo “Theosophy or Jesuitism?” e nas notas do
compilador a ele apensadas. Há uma coincidência considerável o artigo mencionado acima e o
texto de Ísis sem véu. (N. do Org.)

Foi uma criança promissora desde os anos de sua adolescência. Todo o mundo
sabe do adulto que ela deveria ser. Os jesuítas causaram mais danos morais
neste mundo do que todos os exércitos infernais do mítico Satã. Toda
extravagância dessa observação desaparecerá quando os nossos leitores da
América, que sabem pouco sobre eles, forem inteirados dos seus princípios
(principia) e regras que constam de várias obras escritas pelos próprios jesuítas.
Pedimos licença para lembrar ao público que cada uma das afirmações que
seguem foram extraídas de manuscritos autênticos ou fólios impressos por esse
distinto corpo. Muitas delas foram copiadas de um grande Quarto [9] publicado,
verificado e coligido pelos Comissários do Parlamento Francês. As afirmações
ali reunidas foram apresentadas ao Rei a fim de que, como enuncia o Arrest du
Parlement du 5 Mars 1762, “o filho mais velho da Igreja fosse conscientizado da
perversidade dessa doutrina. (...) Uma doutrina que autoriza o Roubo, a Mentira,
o Perjúrio, a Impureza, toda Paixão e Crime, que ensina o Homicídio, o Parricídio
e o Regicídio, destruindo a religião a fim de substituí-la pela superstição,
favorecendo a Feitiçaria, a Blasfêmia, a Irreligião e a Idolatria (...), etc.”
Examinemos as idéias dos jesuítas sobre a magia. Escrevendo a esse respeito
em suas instruções secretas, Antonio Escobar diz:
“É lícito (...) fazer uso da ciência adquirida por meio do auxílio do diabo, desde
que seja preservada e não utilizada em proveito do diabo, pois o conhecimento
é bom em si mesmo e o pecado de adquiri-lo foi eliminado”. [10] Portanto, por
que um jesuíta não enganaria o Diabo, já que engana tão bem os leigos?
“Os astrólogos e os adivinhos estão ou não obrigados a restituir o prêmio de sua
adivinhação, quando o evento não se realizar? Eu reconheço” — observa o bom
Padre Escobar — “que a primeira opinião não me agrada de maneira alguma,
porque, quando o astrólogo ou adivinho exerceu toda diligência na arte diabólica
que é essencial a seu propósito, ele cumpriu a sua tarefa, seja qual for o
resultado. Assim como o médico (...) não é obrigado a restituir os honorários (...)
se o paciente morrer, tampouco o astrólogo deve devolver os seus (...) exceto
quando ele não se esforçou ou ignora sua arte diabólica, porque, quando ele se
empenha, ele não falha”. [11]
Além disso, encontramos o seguinte sobre a Astrologia: “Se alguém afirma, por
conjecturas fundamentadas na influência dos astros e no caráter, na disposição
e nas maneiras de um homem, que ele será um soldado, um sacerdote ou um
bispo, essa adivinhação estará isenta de todo pecado, porque os astros e a
disposição do homem podem ter o poder de inclinar a vontade humana num
determinado sentido, mas não o de constrangê-la”. [12]
Busembaum e Lacroix, em Theologia Moralis, [13] dizem: “A quiromancia deve
ser considerada lícita, se das linhas e das divisões das mãos se puder avaliar a
disposição do corpo e conjecturar, com probabilidade, sobre as propensões e
afeições da alma (...)”. [14]
Essa nobre fraternidade, à qual muitos pregadores têm negado veementemente
o fato de ser secreta, tem provado sê-lo. Suas constituições foram traduzidas
para o latim pelo jesuíta Polanco e impressas, no Colégio da Companhia, em
Roma, em 1558. “Elas foram zelosamente mantidas em segredo e a maior parte
dos próprios jesuítas só conhecia extratos delas. Elas nunca foram reveladas
antes de 1761, quando publicadas pelo Parlamento Francês [em 1761, 1762], no
famoso processo do Padre La Valette”. [15] Os graus da Ordem são: I. Noviços;
II. Irmãos Leigos ou Coadjutores temporais; III. Escolásticos; IV. Coadjutores
espirituais; V. Professos de Três Votos; VI. Professos de Cinco Votos. “Há
também uma classe secreta, conhecida apenas do Geral e de alguns poucos
jesuítas fiéis, que, talvez mais do que qualquer outra, tenha contribuído para o
poder terrível e misterioso da Ordem”, diz Nicolini. Os jesuítas reconhecem,
dentre as maiores consecuções de sua Ordem, o fato de Loiola ter conseguido,
por um memorial especial do Papa, uma petição para a reorganização daquele
instrumento abominável e repugnante de carnificina por atacado — o infame
tribunal da Inquisição.

Os crimes permitidos aos seus membros


Essa Ordem dos Jesuítas é agora todo-poderosa em Roma. Eles se reinstalaram
na Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, no Departamento
da Secretaria de Estado e no Ministério dos Negócios Estrangeiros. O Governo
Pontifício esteve completamente em suas mãos durante anos, antes que Víctor
Emanuel ocupasse Roma. A Companhia congrega agora 8.584 membros. Mas
devemos ver quais são as suas regras principais. Pelo que vimos acima,
familiarizando-nos com seu modo de ação, podemos afirmar o que todo esse
corpo católico deve ser. Diz MacKenzie: “A Ordem possui sinais secretos e
senhas diferentes para cada um dos graus a que os membros pertencem e,
como não levam nenhuma vestimenta particular, é difícil reconhecê-los, a menos
que eles próprios se revelem como membros da Ordem; eles podem apresentar-
se como protestantes ou católicos, democratas ou aristocratas, infiéis ou beatos,
segundo a missão especial que lhes foi confiada. Seus espiões estão por toda
parte, pertencem a todas as classes da sociedade e podem parecer cultos e
sábios ou simplórios e mentecaptos, conforme mandarem as regras. Há jesuítas
de ambos os sexos e de todas as idades; é bastante conhecido o fato de que
membros da Ordem, de família distinta e de educação refinada, trabalham como
criados para famílias protestantes e fazem outras coisas de natureza similar para
melhor servir aos interesses da Sociedade. Nunca nos preveniremos
suficientemente contra a sua influência, pois toda a Companhia, fundada numa
lei de obediência cega, pode dirigir sua força para um ponto qualquer com
exatidão certeira e fatal”. [16]
Os jesuítas afirmam que “a Companhia de Jesus não é uma invenção humana,
mas procedeu daquele cujo nome ela ostenta. Pois o próprio Jesus descreveu a
regra de vida que a Sociedade segue, em primeiro lugar por seu exemplo, e
depois por suas palavras”. [17]
Vejamos, então, esta “regra de vida” e esses preceitos de seu Deus,
exemplificados pelos jesuítas, e que todos os cristãos piedosos deles se
inteirem. Padre Alagona diz: “Por ordem de Deus, é lícito matar uma pessoa
inocente, roubar ou fornicar (...) (Ex mandato Dei licet occidere innocentem,
furari, fornicari), porque ele é o Senhor da Vida e da Morte e de todas as coisas:
e devemos cumprir as suas ordens”. [18]
“Um homem de uma ordem religiosa, que temporariamente se despoja do hábito
com algum propósito criminoso, está livre de crime hediondo e não incorre na
penalidade da excomunhão”. [19]
João Baptista Taberna (Synopsis Theologiae Practicae) formula a seguinte
questão: “Está um juiz obrigado a restituir o estipêndio que recebeu por ditar uma
sentença?” Resposta: “Se recebeu o estipêndio por ditar uma sentença injusta,
é provável que possa ficar com ele (...) Esta opinião é mantida e defendida por
cinquenta e oito tratadistas” (jesuítas). [20]
Abstemo-nos de seguir em frente. Esses preceitos, em sua maioria, são tão
repulsivamente licenciosos, hipócritas e desmoralizadores, que é impossível pôr
muitos deles em letra impressa, a não ser em latim. [21] Citaremos apenas os
mais decentes, para efeito de comparação. Mas o que devemos pensar do futuro
do mundo católico, se ele continuar a ser controlado por palavras e por ações
por essa sociedade nefanda? Será ele muito lisonjeiro, do que duvidamos, na
medida em que o Cardeal Arcebispo de Cambrai ergue a sua voz em prol dos
jesuítas? A sua pastoral fez um certo barulho na França; e, embora tenham
transcorrido dois séculos desde o exposé desses princípios infames, os jesuítas
tiveram tanto tempo de sobra para arranjar manhosamente a sua defesa com
mentiras, que a maioria dos católicos jamais acreditará em tal coisa. O Papa
infalível, Clemente XIV (Ganganelli), extinguiu-os a 23 de julho de 1773 e eles
reviveram; e um outro Papa igualmente infalível, Pio VII, os restabeleceu a 7 de
agosto de 1814.
Mas ouçamos o que o Monsenhor de Cambrai proclamou em 1876. Citamos de
uma comunicação secular:
“Entre outras coisas, ele afirma que o clericalismo, o transmontanismo e o
jesuitismo são uma coisa só — isto é, catolicismo — e que as distinções entre
eles foram criadas pelos inimigos da religião. Houve um tempo, diz ele, em que
uma certa opinião teológica era amplamente professada na França, a respeito
da autoridade do Papa. Ela se restringia à nossa nação e tinha origem recente.
O poder civil, durante um século e meio, assumiu a instrução oficial. Aqueles que
professavam essas opiniões eram chamados galicanos, e aqueles que
protestaram eram chamados de transmontanos, porque o seu centro doutrinário
estava além dos Alpes, em Roma. Hoje, a distinção entre as duas escolas não é
mais admissível. O galicanismo teológico não deve existir, dado que essa opinião
deixou de ser tolerada pela Igreja. Ela foi solenemente condenada, no presente
e no passado, pelo Concílio Ecumênico do Vaticano. Não se pode ser católico
sem ser transmontano — e jesuíta”. [22]
Isto define a questão. Prescindimos dos comentários, e comparamos algumas
práticas e alguns preceitos dos jesuítas, com os de castas e sociedades místicas
e organizadas dos tempos antigos. Assim, o leitor imparcial pode ser colocado
em posição de julgar qual tendência dessas doutrinas beneficia ou degrada a
Humanidade.
O Rabino Yoshua ben Hananyah, que morreu por volta de 72 d.C., declarou
publicamente que operava “milagres” por meio do Livro do Sepher Yetzîrah e
que desafiava qualquer incrédulo. [23] Franck, citando do Talmude babilônico,
nomeia dois outros taumaturgos, os Rabinos Hanina e Oshaia. [24]
Simão, o Mago, era sem dúvida um discípulo dos tannaim da Samaria; a
reputação que adquiriu com os seus prodígios, que lhe valeram o título de “o
Grande Poder de Deus”, testemunha eloquentemente em favor da habilidade
dos seus mestres. As calúnias tão cuidadosamente disseminadas contra ele
pelos autores e compiladores desconhecidos dos Atos e de outros escritos não
podem danificar a verdade a ponto de ocultar o fato de que nenhum cristão podia
rivalizar com ele em ações taumatúrgicas. É absolutamente ridícula a história de
que ele, durante um vôo aéreo, teria caído e quebrado as pernas e cometido
suicídio. Em vez de pedir mentalmente que isso acontecesse, por que os
apóstolos não pediam que lhes fosse permitido superar Simão em maravilhas e
milagres, para assim provarem facilmente a superioridade de seu poder e
converterem milhões ao Cristianismo? A posteridade só ouviu um lado da
história. Tivessem tido os discípulos de Simão uma única oportunidade, e
acharíamos, talvez, que foi Pedro que quebrou as suas pernas, se não
soubéssemos que esse apóstolo era prudente demais para se aventurar até
Roma. Segundo a confissão de muitos escritores eclesiásticos, nenhum apóstolo
operou essas “maravilhas sobrenaturais”. Naturalmente as pessoas piedosas
dirão que isso prova precisamente que foi o “Diabo” que operou por intermédio
de Simão.
Simão foi acusado de blasfêmia contra o Espírito Santo, porque o apresentou
como o “Espírito Santo, a Mens (Inteligência) ou a mãe de tudo”. Mas
encontramos a mesma expressão no Livro de Enoc, [25] em que, em
contraposição ao “Filho do Homem”, ele diz “Filho da Mulher”. No Codex dos
nazarenos, e no Zohar, bem como nos Livros de Hermes, a expressão é usual;
e até no apócrifo Evangelho dos Hebreus lemos que o próprio Jesus admitiu o
sexo do Espírito Santo ao usar a expressão “Minha mãe, o Pneuma Santo”. [26]
Mas o que é a heresia de Simão, ou o que são as blasfêmias de todos os
hereges, em comparação com as dos mesmos jesuítas que agora dominaram
tão completamente o Papa, a Roma eclesiástica e todo o mundo católico?
Ouçamos novamente sua profissão de fé.
“Fazei o que vossa consciência diz ser bom e lícito: se, por erro invencível,
acreditais que Deus vos manda mentir ou blasfemar, blasfemai.” [27]
“Omiti o que vossa consciência diz ser proibido: omiti a adoração de Deus, se
acreditais firmemente que ela é proibida por Deus.” [28]
“Há uma lei ampliada (...) obedecei a um ditado errôneo invencível da
consciência. Se acreditais que vos foi ordenada uma mentira, menti.” [29]
“Suponhamos que um católico acredite invencivelmente que a adoração de
imagens é proibida: nesse caso, nosso Senhor Jesus Cristo será obrigado a lhe
dizer: Afasta-te de mim, maldito, etc., porque adoraste a minha imagem. (...)
Assim, não há nenhum absurdo (em supor) que Cristo possa dizer: Vem, bendito,
etc., porque mentiste acreditando invencivelmente que eu ordenei a mentira.” [30]
Isso não — não! Não há palavras suficientemente expressivas que façam justiça
às emoções que esses preceitos espantosos despertam no peito de qualquer
pessoa honesta. Que o silêncio, resultante do desgosto invencível, seja o tributo
mais adequado a essa obliquidade moral sem paralelo.
O sentimento popular em Veneza (1606), quando os jesuítas foram expulsos
daquela cidade, expressou-se violentamente. Multidões enormes
acompanharam os exilados até o cais e o grito de despedida que ressoou após
eles sobre as ondas foi “Ande in malora!” (Ide embora! E que a desgraça esteja
convosco!). “Esse grito ecoou pelos dois séculos seguintes”, diz Quinet, de quem
tomamos essa afirmação, “na Boêmia, em 1618 (...) na Índia, em 1623 (...) e por
toda a cristandade, em 1773”. [31]
Como é possível, então, acusar Simão, o Mago, de ser ele um blasfemador, se
ele apenas fez aquilo que a sua consciência invencivelmente lhe ordenou ser
verdadeiro? E, em que aspecto os hereges, ou mesmo os infiéis da pior espécie,
são mais repreensíveis do que os jesuítas — os de Caen, [32] por exemplo —
que dizem:
“(A religião cristã) é (...) evidentemente crível, mas não evidentemente
verdadeira. Ela é evidentemente crível, pois é evidente que quem quer que a
abrace é prudente. Ela não é evidentemente verdadeira, porque ou ela ensina
obscuramente ou as coisas que ela ensina são obscuras. E aqueles que afirmam
que a religião cristã é evidentemente verdadeira vêem-se obrigados a confessar
que ela é evidentemente falsa (Posição 5).
“Donde se infere —
“1. Que não é evidente — que haja agora qualquer religião verdadeira no mundo.
“2. Que não é evidente — que, de todas as religiões existentes sobre a terra, a
religião católica seja a única verdadeira; viajastes por todos os países do mundo,
ou conheceis as religiões que aí se professam? (...)
(.............................................................................................................................)
“4. Que não é evidente que as previsões dos profetas fossem fundadas por
inspiração de Deus; pois que refutação faríeis contra mim, se nego que eram
profecias verdadeiras, ou se afirmo que eram apenas conjecturas?
“5. Que não é evidente que os milagres eram reais, que foram elaborados por
Cristo; embora ninguém possa prudentemente negá-los (Posição 6).
“Tampouco é necessária aos cristãos uma crença explícita em Jesus Cristo, na
Trindade, em todos os Artigos de Fé e no Decálogo. A única crença explícita que
era necessária aos últimos (os cristãos) é 1, Em Deus; 2, Em um Deus
recompensador” (Posição 8).
Por isso, também é mais do que “evidente” que há momentos na vida do maior
mentiroso do mundo em que ele pode dizer algumas verdades. Exemplo perfeito
é o dos “bons padres”, a ponto de podermos perceber de onde saiu a solene
condenação, feita no Concílio Ecumênico de 1870, contra certas “heresias”, e a
definição de outros artigos de fé nos quais ninguém acreditava menos do que os
que inspiraram o Papa a torná-los públicos. Talvez a História tenha de saber que
o Papa octogenário, intoxicado com os vapores da sua infalibilidade recém-
vigente, era apenas o eco fiel dos jesuítas. “Um velho homem ergue-se
estremecido no pavois do Vaticano”, diz Michelet, “tudo se absorveu nele e se
confinou nele. (...) Por quinze séculos a cristandade submeteu-se ao jugo
espiritual da Igreja. (...) Mas esse jugo não foi suficiente para eles; eles queriam
que todo o mundo estivesse nas mãos de um mestre. Minhas palavras são
demasiado débeis; emprestarei a de outros. Eles [os jesuítas] queriam (essa é a
acusação atirada em suas faces pelo Bispo de Paris, em pleno Concílio de
Trento) faire de l’épouse de Jésus Christ une prostituée aux volontés d’un
homme”. [33]
Eles se vingaram. A Igreja, daí por diante, é um instrumento inerte e o Papa é
um agente servil nas mãos dessa Ordem. Mas por quanto tempo? Até que venha
o fim, os cristãos sinceros recordarão as lamentações proféticas do três vezes
grande Trismegisto sobre o seu próprio país: “Ai, ai, meu filho, dia virá em que
os hieróglifos sagrados serão apenas ídolos. O mundo tomará os emblemas da
ciência como deuses e acusará o grande Egito de ter adorado monstros
infernais. Mas aqueles que nos caluniarão, eles adorarão a Morte em vez da
Vida, a loucura em vez da sabedoria; denunciarão o amor e a fecundidade,
encherão os templos com ossos de homens mortos, como relíquias, e destruirão
a sua juventude em solidão e lágrimas. Suas virgens serão viúvas [monjas] antes
de serem esposas e se consumirão em dor, porque os homens desdenharão e
profanarão os mistérios sagrados de Ísis”. [34]
A prova da correção dessa profecia está no seguinte preceito jesuítico, que
extraímos do Relatório dos Comissários ao Parlamento de Paris:
“A opinião mais verdadeira é a de que todas as coisas inanimadas e irracionais
podem ser legitimamente adoradas”, diz o Padre Gabriel Vásquez, tratando da
Idolatria. “Se a doutrina que estabelecemos for corretamente entendida, não só
uma imagem pintada e toda representação de coisas santas aprovada pela
autoridade pública para a adoração de Deus pode ser adorada como se fosse o
próprio Deus, mas também qualquer outra coisa deste mundo, de natureza
inanimada ou irracional, ou em sua natureza racional e isenta de perigo”. [35]
“Por que não podemos adorar e venerar como a Deus, sem perigo algum,
qualquer coisa deste mundo, posto que Deus está nela em essência [isto é
precisamente o que afirmam os panteístas e a filosofia hindu] e a preserva
continuamente com o seu poder? E quando nos inclinamos diante dela e a
beijamos, apresentamo-nos diante de Deus, seu Autor, com toda nossa alma,
considerando-a o protótipo da imagem [seguem-se exemplos de relíquias, etc.].
(...) A essas instâncias podemos acrescentar uma quarta. Posto que tudo que
existe neste mundo é obra de Deus e Deus está sempre morando ou trabalhando
nela, mais fácil será conhecer Deus pelas coisas do mundo, do que um santo
pelas vestes que lhe pertenceram. E, portanto, sem levar em consideração de
maneira alguma a dignidade da coisa criada, não é vão, nem supersticioso, mas
ato de religião pura, dirigir nossos pensamentos a Deus, enquanto lhe
oferecemos o sinal e a marca de nossa submissão por meio de um beijo ou uma
prostração”. [36]
Preceito que, fazendo honra ou não à Igreja cristã, poderia ser citado
proveitosamente por qualquer gentio hindu, japonês ou qualquer outro que fosse
censurado por adorar ídolos. Citamos propositadamente esse preceito para
benefício de nossos respeitados amigos “gentio” que lerem estas linhas.
A profecia de Hermes é menos equívoca do que as alegadas profecias de Isaías,
que facilitaram um pretexto para que se qualificasse de demônios, os deuses de
todas as nações. Mas os fatos são mais fortes, às vezes, do que a fé mais
robusta. Tudo que os judeus aprenderam, eles o receberam de nações mais
velhas que a deles. Os magos caldaicos foram os seus mestres na doutrina
secreta e foi durante o cativeiro da Babilônia que aprenderam os preceitos, tanto
metafísicos, quanto práticos. Plínio menciona três escolas de magos: uma
fundada em uma época desconhecida; outra, estabelecida por Osthanes e
Zoroastro; a terceira, por Moisés e Jannes. [37] E todo o conhecimento possuído
por essas escolas diferentes, fossem elas mágicas, egípcias ou judaicas, derivou
da Índia, ou antes de ambos os lados do Himalaia. Mais do que um segredo
perdido repousa sob as vastas extensões de areia do deserto de Gobi, no
Turquestão Oriental e os sábios do Khotan preservam tradições estranhas e o
conhecimento da Alquimia.
O Barão Bunsen demonstra que “a origem das preces e dos hinos antigos do
Livro dos Mortos egípcio é anterior a Menes e pertence, provavelmente, à
dinastia pré-menita de Abydos, entre 3100 é 4500 a.C.” O erudito egiptólogo
remonta a era de Menes, ou Império Nacional, ao ano 3059 a.C. e demonstra
que “o sistema de adoração e da mitologia osiriana já estava formado” antes da
era de Menes. [38]
Encontramos nos hinos dessa época pré-edênica cientificamente estabelecida
(pois Bunsen leva muitos séculos para trás o ano da criação do mundo, 4.004
a.C., fixado pela cronologia bíblica) lições precisas de moralidade, idênticas em
substância e na forma e na expressão muito parecidas, com aquelas que foram
pregadas por Jesus no seu Sermão da Montanha. É o que se pode inferir das
investigações levadas a efeito pelos egiptólogos e hierologistas mais eminentes.
“As inscrições da décima segunda Dinastia estão plenas de fórmulas ritualistas”,
diz Bunsen. Extratos dos Livros Herméticos foram encontrados em monumentos
das dinastias mais antigas e “não são incomuns os trechos de um ritual antigo,
nos da décima segunda dinastia. (...) Alimentar o faminto, dar de beber ao
sedento, vestir o nu, cremar o morto (...) constituíam a primeira tarefa de um
homem piedoso. (...) A doutrina da imortalidade da alma é tão antiga quanto este
período (Tablete, Brit. Mus., 562)”. [39]
É mais antiga ainda, talvez. Ela data da época em que a alma era um ser objetivo
e, portanto, não podia ser negada por si mesma; em que a Humanidade era uma
raça espiritual e a morte não existia. Por volta do declínio do ciclo da vida, o
homem-espírito etéreo caiu no doce cochilo da inconsciência temporária em uma
esfera para despertar na luz ainda mais brilhante de uma esfera mais elevada.
Mas ao passo que o homem espiritual se esforça continuamente para ascender
cada vez mais à sua fonte original, passando pelos ciclos e esferas da vida
individual, o homem físico tem de descer com o grande ciclo da criação universal
até se revestir das vestes terrestres. Então a alma foi de tal maneira sepultada
sob a vestimenta física, na tentativa de reafirmar a sua existência, exceto nos
casos de naturezas mais espirituais, que, em cada ciclo, ela se tornou cada vez
mais rara. Embora nenhuma das nações pré-históricas tivesse pensado em
negar a existência ou a imortalidade do homem interior, o “eu” real. Devemos ter
em mente os ensinamentos dos antigos filósofos: só o espírito é imortal — a
alma, per se, não é eterna, nem divina. Quando ligada muito estreitamente ao
cérebro físico do seu envoltório terrestre, torna-se gradualmente uma mente
finita, o mero princípio da vida animal e senciente, o nephesh da Bíblia
hebraica. [40]
A doutrina da natureza trina do homem está tão claramente definida nos livros
herméticos quanto no sistema platônico, ou ainda nas filosofias budista e
bramânica. E este é um dos ensinamentos mais importantes e menos
conhecidos das doutrinas da ciência hermética. Os mistérios egípcios, tão
imperfeitamente conhecidos pelo mundo, e aos quais poucas e breves alusões
são feitas nas Metamorfoses de Apuleio, ensinaram as maiores virtudes. Eles
revelaram ao aspirante aos mistérios “mais elevados” da iniciação aquilo que
muitos dos nossos estudantes hermetistas modernos procuram em vão nos
livros cabalísticos e que os ensinamentos obscuros da Igreja, sob a direção da
Ordem dos Jesuítas, nunca poderão revelar. Comparar, então, as antigas
sociedades secretas dos hierofantes, com as alucinações artificialmente
produzidas desses poucos seguidores de Loiola, por mais sinceros que eles
fossem no começo de sua carreira, é um insulto para com as primeiras. Apesar
disso, para lhes fazer justiça, somos compelidos a isso.
Um dos obstáculos mais difíceis para a iniciação, entre os egípcios, como entre
os gregos, era ter cometido um assassinato em qualquer grau. Um dos maiores
títulos para admissão na Ordem dos Jesuítas é um assassinato em defesa do
jesuitismo. “As crianças podem matar os seus pais, se estes as compelirem a
abandonar a fé católica.”
“Os filhos cristãos e católicos”, diz Estéban Fagundez, “podem acusar os seus
pais do crime de heresia, se eles quiserem desviá-los da fé, embora saibam que
seus pais possam ser queimados pelo fogo e levados à morte por essa razão,
como ensina Tolet. (...) E não só podem recusar comida a eles (...) como também
até podem justamente matá-los.” [41]
É sabido que Nero, o imperador, jamais se atreveu a solicitar iniciação nos
mistérios, em virtude do assassinato de Agripina!
Na Seção XIV dos Principles of the Jesuits, encontramos sobre Homicídio os
seguintes princípios cristãos ensinados pelo Padre Henrique Henriquez: “Se um
adúltero, mesmo que seja eclesiástico (...) for atacado pelo marido da mulher,
matar o seu agressor (...) ele não é considerado irregular (non videtur
irregularis)”. [42]
“(...) se um pai for antipático ao Estado [estando ele banido] e à sociedade, e se
não houver outro meio de se evitar essa injúria, então eu aprovaria a opinião dos
autores acima referidos (pelo fato de um filho matar seu pai), diz a Seção XV,
sobre Parricídio e Homicídio. [43]
“Será lícito a um eclesiástico, ou a alguém da ordem religiosa, matar um
caluniador que ameaça espalhar acusações atrozes contra ele ou a sua religião
(...)” [44] a regra emitida pelo jesuíta Francis Amicus.

Os princípios do Jesuitismo comparados


com os dos moralistas pagãos
Até aqui, tudo bem. Fomos informados pelas maiores autoridades sobre o que
um homem de comunhão católica pode fazer em relação àquilo que a lei comum
e a moralidade pública caracterizam como criminosos e ainda continuar a exalar
o olor da santidade jesuítica. Suponhamos agora que viramos a medalha e
vejamos quais princípios foram inculcados pelos moralistas egípcios pagãos
antes que o mundo fosse ferido com esses progressos modernos da ética.
No Egito, todas as cidades importantes estavam separadas do cemitério por um
Iago sagrado. A mesma cerimônia de julgamento que o Livro dos Mortos
descreve como ocorrendo no mundo do Espírito era realizada na terra, durante
o sepultamento da múmia. Quarenta e dois juízes ou assessores reuniam-se na
margem do Iago e julgavam a “alma” falecida segundo as suas ações praticadas
quando estava no corpo; só depois de uma aprovação unânime por parte do júri
post-mortem é que o barqueiro, que representava o Espírito da Morte, poderia
levar o corpo do defunto absolvido até o local do seu último repouso. Depois, os
sacerdotes retornavam aos recintos sagrados e instruíam os neófitos sobre o
provável drama solene que se desenrolava no reino invisível para o qual a alma
se dirigia. A imortalidade do espírito era fortemente inculcada pelo AI-om-jah. [45]
O Crata Repoa [46] descreve, como segue, os sete graus da iniciação.
Depois de um Julgamento preliminar em Tebas, onde o neófito deveria passar
por muitas provas, chamadas de “Doze provas”, era-lhe ordenado governar suas
paixões e nunca, em momento algum, devia afastar de seu pensamento a idéia
de Deus. Depois, como um símbolo da peregrinação da alma impura, ele devia
subir várias escadas e vagar às escuras numa caverna com muitas portas, todas
fechadas. Se triunfava dessas terríveis provas, recebia o grau de Pastophoros,
sendo que o segundo e o terceiro graus eram chamados de Neocoris e
Melanêphoros. Levado a uma vasta cripta subterrânea abundantemente
povoada de múmias ali colocadas com muito aparato, ele era deixado defronte
a um ataúde que continha o corpo mutilado de Osíris coberto de sangue. Esse
era o salão chamado “Portões da Morte” e com certeza é a esse mistério que
aludem algumas passagens do Livro de Jó (XXXVIII, 17) e porções da Bíblia
quando nela se fala desses portões. [47] No capítulo X, damos a interpretação
esotérica do Livro de Jó, que é um poema da iniciação par excellence.
“Os portões da morte se abriram para vós?
Ou vistes as portas da sombra da morte?”

— pergunta o “Senhor” — isto é, o AI-om-jah, o Iniciador — de Jó, aludindo a


esse terceiro grau da iniciação.
Quando o neófito vencia os terrores desse julgamento, era conduzido ao “Salão
dos Espíritos” para ser por eles julgado. Entre as regras nas quais era instruído,
era-lhe ordenado “nunca desejar ou procurar vingança; estar sempre pronto a
ajudar um irmão em perigo, mesmo com risco de sua própria vida; enterrar todos
os mortos; honrar seus pais acima de tudo; respeitar os anciães e proteger os
mais fracos que ele e, finalmente, ter sempre em mente a hora da morte e a da
ressurreição num corpo novo e imperecível”. [48] Pureza e castidade eram
altamente recomendadas e o adultério era punido com a morte.
Então o neófito egípcio tornava-se um Kistophoros. Nesse grau, o nome-mistério
IAÔ era comunicado a ele. O quinto grau era o de Balahate e então ele era
instruído por Horus em alquimia, chemi. No sexto, era-lhe ensinada a dança
sacerdotal no círculo, ocasião em que era instruído em Astronomia, pois a dança
representava o curso dos planetas. No sétimo grau, era iniciado nos mistérios
finais. Após uma aprovação final num edifício isolado, o Astronomos, como era
agora chamado, emergia desses aposentos sagrados chamados Maneras e
recebia uma cruz — o Tao — que, por ocasião de sua morte, devia ser colocada
sobre seu peito. Ele era um hierofante.
Lemos acima as regras desses santos iniciados da Companhia Cristã de Jesus.
Comparai-as com aquelas que foram aplicadas ao postulante pagão e com a
moralidade cristã (!) que foi inculcada naqueles mistérios dos pagãos contra os
quais a Igreja invoca os trovões de uma Divindade vingativa. Não teve esta última
os seus próprios mistérios? Ou eram eles mais puros, mais nobres ou mais
propícios a uma vida santa e virtuosa? Ouçamos o que Nicolini tem a nos dizer,
em sua competentíssima History of the Jesuits, sobre os mistérios modernos do
claustro cristão. [49]
“Na maioria dos mosteiros, e mais particularmente nos dos capuchinhos e
reformados (Reformati), tem início no Natal uma série de festas que prossegue
até à Quaresma. Todas as espécies de jogos são realizadas, os banquetes mais
esplêndidos são oferecidos e, nas cidades pequenas, o refeitório do convento é
o melhor local para o divertimento de um grande número de habitantes. Por
ocasião do carnaval, realizavam-se dois ou três festins magníficos; a mesa era
tão profusamente posta que se poderia imaginar que Cópia, a Abundância, ali
houvesse derramado todo o conteúdo do seu corno. É preciso lembrar que essas
duas ordens viviam de esmolas. [50] O silêncio sombrio do claustro é substituído
por um som confuso de brincadeiras, e as abóbadas tétricas agora ecoam com
outras canções que não as dos salmistas. Um baile anima e termina a festa; mas
antes, para torná-la ainda mais animada, e talvez para mostrar quanto o seu voto
de castidade havia extirpado deles todo apetite carnal, alguns dos monges
jovens surgem coquetemente vestidos de mulher e começam a dançar com
outros, transformados em cavalheiros folgazões. Descrever a cena escandalosa
que se segue repugnaria os meus leitores. Direi apenas que com frequência
presenciei tais Saturnais.”
O ciclo está em descida e, à medida que desce, a natureza física e bestial do
homem desenvolve-se mais e mais às expensas do Eu Superior. [51] Com que
desgosto não afastaremos a vista dessa farsa religiosa chamada cristianismo
moderno para nos voltarmos às nobres crenças da Antiguidade!

A trindade do homem no Livro dos Mortos egípcio


No Ritual Funerário dos egípcios, encontrado entre os hinos do Livro dos Mortos,
e que é chamado por Bunsen de “esse livro precioso e misterioso”, lemos um
discurso do defunto, agora sob a forma de Horus, que detalha tudo o que ele
realizou para seu pai Osíris. Entre outras coisas, a divindade diz;
“30. Dei-vos Espírito.
31. Dei-vos Alma.
32. Dei-vos poder.
33. Dei-vos [força]” [52]

Em outro lugar, a entidade, chamada de “Pai” pela alma desencarnada,


representa o “espírito” do homem; pois o versículo diz: “Fiz minha alma falar com
seu Pai”, seu Espírito.
Os egípcios consideravam o seu Ritual como uma inspiração essencialmente
Divina; em síntese, o mesmo que os hindus modernos em relação aos Vedas e
os judeus modernos quanto aos livros mosaicos. Bunsen e Lepsius mostram que
o termo hermético significa inspirado, porque é Thoth, a própria Divindade, que
fala e revela ao seu eleito entre os homens a vontade de Deus e os arcanos das
coisas divinas. Nesses livros há passagens inteiras que se diz terem sido
“escritas pelo próprio dedo de Thoth, são obra e composição do grande Deus”.
[53] “Num período posterior, o seu caráter hermético ainda é mais distintamente
reconhecido e, num ataúde da 26ª Dinastia, Horus anuncia ao morto que ‘o
próprio Thoth lhe trouxe os livros das suas obras divinas’, ou escritos
herméticos”. [54]
Dado que sabemos que Moisés era um sacerdote egípcio, ou que pelo menos
ele era versado em toda a sua sabedoria, não devemos nos espantar que ele
escrevesse no Deuteronômio (IX, IO) que “E o Senhor me entregou duas tábuas
de pedra escritas pelo dedo de DEUS”; ou que leiamos no Êxodo, XXXI, 18 que
“E Ele [o Senhor] deu a Moisés (...) duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra,
escritas pelo dedo do Deus”.
Nas noções egípcias, como nas de todas as outras fés fundamentadas na
filosofia, o homem não era apenas, como afirmam os cristãos, uma união de
alma e corpo; ele era uma trindade de que o espírito fazia parte. Além disso,
aquela doutrina o considerava composto de kha — corpo; khaba — forma astral,
ou sombra; ka — alma animal ou princípio vital; ba — a alma superior; e akh —
inteligência terrestre. Havia ainda um sexto princípio chamado sah — ou múmia;
mas as suas funções só tinham início após a morte do corpo. * Após a devida
purificação, durante a qual a alma, separada do seu corpo, visitava com
frequência o cadáver mumificado do seu corpo físico, essa alma astral “tornava-
se um Deus”, pois ela era finalmente absorvida na “Alma do mundo”.
Transformava-se numa das divindades criadoras, “o deus do Phtah”, o
Demiurgo, um nome genérico para os criadores do mundo, traduzido na Bíblia
como Elohim. No Ritual, a alma boa ou purificada, “em conjunção com seu
espírito superior ou não-criado”, é mais ou menos a vítima da influência
tenebrosa do dragão Apophis. Se chegou ao conhecimento final dos mistérios
celestiais e infernais — a gnosis, isto é, reunião completa com o espírito —, ela
triunfará dos seus inimigos; se não, a alma não pode escapar à sua segunda
morte. [55] Ela é “o Iago ardente de fogo e de enxofre” (elementos) em que eles
foram atirados para sofrer a “segunda morte”. [56] Essa morte é a dissolução
gradual da forma astral nos seus elementos primários, aos quais já aludimos
diversas vezes ao longo desta obra. Mas essa sorte terrível pode ser evitada
pelo conhecimento do “Nome Misterioso” — a “Palavra”, [57] dizem os cabalistas.
* Os egiptólogos diferem entre si em relação a esse assunto. Muitos pontos permanecem incertos
na interpretação dos textos hieroglíficos. Alguns apontaram a seguinte sequência de porções
constituintes do homem: 1. khat — corpo físico; 2. sahu — o khat transformado pela mumificação;
3. ka — o “duplo” (também “alma material”); 4. ba — a alma; 5. akh — espírito glorificado; 6.
khabit — a sombra; 7. ren — o nome; 8. sekhem — o poder; 9. ib — o coração, ou consciência.

Um dos estudos mais valiosos nesse campo de pesquisa é um artigo seriado de Franz Lambert
intitulado Weisheit der Aegypter (Sabedoria dos egípcios) e publicado em Sphinx (Leipzig,
Alemanha; ed. pelo Dr. Wm. Hübbe-Schleim), vol. VII, janeiro, fevereiro, abril e junho, 1889, com
diagramas e tabelas. (N. do Org.)

Mas, então, qual a pena vinculada à negligência do seu conhecimento? Quando


um homem leva uma vida naturalmente pura e virtuosa, não há castigo algum,
exceto uma permanência no mundo dos espíritos até que se encontre
suficientemente purificado para recebê-la do seu “Senhor” Espiritual, um da
Hoste poderosa. Por outro lado, se a “alma”, * enquanto um princípio semi-
animal, queda-se imóvel e cresce inconsciente da sua metade subjetiva — o
Senhor — e proporcionalmente ao desenvolvimento sensual do cérebro e dos
nervos, ela mais cedo ou mais tarde se esquecerá da sua missão divina na Terra.
Como o Vurdalak, ou Vampiro, do conto sérvio, o cérebro se alimenta e vive e
se fortifica às expensas do seu parente espiritual. Então, a alma já semi-
inconsciente, agora completamente embriagada pelos vapores da vida terrena,
perde os sentidos e a esperança de redenção. É incapaz de vislumbrar o
esplendor do espírito superior, de ouvir as admoestações do “Anjo guardião” e
de seu “Deus”. Ela só pretende o desenvolvimento e uma compreensão mais
completa da vida natural, terrena; e, assim, só pode descobrir os mistérios da
natureza física. Suas penas e seus temores, sua esperança e sua alegria — tudo
isso está estreitamente ligado à sua existência terrestre. Ela ignora tudo o que
pode ser demonstrado pelos órgãos de ação ou sensação. Começa por se tornar
virtualmente morta; morre completamente. Está aniquilada. Tal catástrofe pode
ocorrer, muitas vezes, muitos anos antes da separação final do princípio vital do
corpo. Quando chega a morte, seu férreo e pegajoso domínio se debate com a
vida; mas não há mais alma a liberar. A única essência dessa última já foi
absorvida pelo sistema vital do homem físico. A morte implacável libera apenas
um cadáver espiritual; no melhor dos casos, um idiota. Incapaz de se elevar para
regiões mais altas ou de despertar da letargia, ela se dissolve rapidamente nos
elementos da atmosfera terrestre.
* Na carta XXV, em The Mahatma Letters to A. P. Sinnett (p. 196; 3ª ed., p. 193), recebida em 2
de fevereiro de 1883, o Mestre K. H. insere uma nota de rodapé:

“Ver Ísis, vol. 2, p. 368 e 369. A palavra Alma está ali por Alma ‘Espiritual’; naturalmente que,
quando abandona uma pessoa ‘Sem alma’, torna-se causa do quinto princípio (Alma Animal),
deslizando para a oitava esfera”. (N. do Org.)

Os videntes, homens corretos que lograram a ciência mais elevada do homem


interior e do conhecimento da verdade, têm, como Marco Antonino, recebido
instruções “dos deuses”, em sonhos ou por outros meios. Auxiliados pelos
espíritos mais puros, aqueles que moram nas “regiões da bem-aventurança
eterna”, eles observaram o processo e advertiram repetidamente a Humanidade.
O ceticismo pode provocar com zombarias; a fé, baseada no conhecimento e na
ciência espiritual, acredita e afirma.
No século que atravessamos amiúdam-se os casos dessas mortes de almas. A
todo momento tropeçamos com homens e mulheres desalmados. Não é
estranho, portanto, no presente estado de coisas, o gigantesco fracasso dos
últimos esforços de Hegel e Schelling no sentido de elaborar a construção
metafísica de um sistema. Quando os fatos, os fatos palpáveis e tangíveis do
Espiritismo fenomenal, acontecem todo o dia e a toda hora e, não obstante, são
negados pela maior parte das nações “civilizadas”, existe pouca chance para a
aceitação de uma metafísica puramente abstrata por parte dessa massa sempre
crescente de materialistas.
No livro intitulado La manifestation à la lumière, de Champollion, há um capítulo
sobre o Ritual que está cheio de diálogos misteriosos que a alma mantém com
vários “Poderes”. * Num desses diálogos é mais do que expressiva a
potencialidade da “Palavra”. A cena ocorre na “Câmara das Duas Verdades”. O
“Portal”, a “Câmara da Verdade”, e mesmo as várias partes do portão, dirigem-
se à alma, que se apresenta para admissão. Todos lha negam, a menos que ela
lhes pronuncie os nomes misteriosos. Que estudioso das Doutrinas Secretas não
reconheceria nesses nomes a identidade, em significação e propósito, com
aqueles que se encontram nos Vedas, nas últimas obras dos brâmanes e na
Cabala?
* O título La manifestation à la lumière é apenas a tradução de Champollion em francês do título
descritivo egípcio: “Reu nu pert em hru”, que significa “Capítulo da passagem para o dia”. Esses
textos chegaram a ser conhecidos como o Livro dos mortos e esse último nome é devido a uma
tradução do árabe “Kitâb al-Maggitum”, nome com que alguns papiros encontrados junto às
múmias foram vendidos pelos ladrões egípcios de túmulos. (N. do Org.)

Magos, cabalistas, místicos, neoplatônicos e teurgos de Alexandria, que


ultrapassaram os cristãos em suas consecuções na ciência secreta; brâmanes
ou samaneus (xamãs) da Antiguidade e brâmanes modernos; budistas e
lamaístas — todos eles declararam que um determinado poder se agrega a
esses vários nomes, que pertencem a uma única Palavra inefável. Mostramos,
por experiência própria, quão profunda mente está enraizada até em nossos dias
na mente popular de toda a Rússia [58] a crença de que a Palavra opera
“milagres” e está no centro de toda façanha mágica. Os cabalistas conectam
misteriosamente a Fé com ela. Assim fizeram os apóstolos baseando as suas
afirmações nas palavras de Jesus, que diz: “Se tiverdes fé, como um grão de
mostarda (...) nada vos será impossível” [Mateus, XVII, 20]; e Paulo, repetindo
as palavras de Moisés, afirma que “perto está a PALAVRA na tua boca e no teu
coração; esta é a palavra da fé” (Romanos, X, 8). Mas quem, exceto os iniciados,
pode orgulhar-se de compreender sua significação total?
Da mesma maneira que na Antiguidade, acreditar hoje nos “milagres” bíblicos
exige fé; mas ser capacitado para operá-los requer um conhecimento do
significado esotérico da “palavra”. “Se Cristo”, dizem o Dr. F. W. Farrar e Canon
B. F. Westcott, “não operava milagres, então os Evangelhos não são dignos de
confiança”. Mas, mesmo que suponhamos que ele não os operou, isso provaria
que os evangelhos escritos por outros que não ele são mais dignos de
confiança? E, se não forem, para que serviria esse argumento? Além disso, essa
linha de raciocínio asseguraria a analogia segundo a qual os milagres operados
por taumaturgos de religião diferente da cristã tornariam dignos de confiança os
seus evangelhos. Isto não implicaria pelo menos uma igualdade entre as
Escrituras cristãs e os livros sagrados budistas? Estes últimos estão igualmente
cheios de fenômenos do caráter mais espantoso. Além disso, os cristãos não
operaram milagres genuínos, porque seus padres perderam a Palavra. Mas
muitos dos lamas budistas e dos talapões siameses — a menos que todos os
viajantes conspirassem para uma mentira — foram e são capazes de duplicar
todo fenômeno descrito no Novo Testamento; e fazem mais: sem qualquer
pretexto de suspensão da lei natural ou de intervenção divina. Na verdade, o
Cristianismo prova que está morto, tanto em fé, quanto em obras, ao passo que
o Budismo está pleno de vitalidade e o demonstra em provas práticas.
O melhor argumento em favor da veracidade dos “milagres” budistas repousa no
fato de que os missionários católicos, em vez de os negar ou de os tratar como
simples prestidigitação — como fazem alguns missionários protestantes —,
viram-se obrigados a adotar a alternativa desesperada de atribuir todos eles ao
Diabo. E tão diminuídos se sentiram os jesuítas, na presença desses genuínos
servos de Deus, que, com uma astúcia sem igual, disfarçaram-se de talapões e
de budistas, agindo como Maomé em relação à montanha. “E vendo que ela não
se movia para ele, o Profeta dirigiu-se para a montanha.” Acreditando que não
poderiam atrair os siameses com a rede de suas doutrinas perniciosas em vestes
cristãs, eles se disfarçaram e, durante séculos, apareceram entre as pessoas
pobres e ignorantes como talapões — até que foram descobertos. Eles haviam
votado e adotado uma resolução, que tem agora toda a força de um antigo artigo
de fé. “Naaman, o Sírio”, dizem os jesuítas de Caen, “não dissimulou a sua fé
quando dobrou os joelhos com o rei na casa de Rimmon; tampouco os Padres
da Companhia de Jesus, quando adoram o instituto e o hábito de talapões do
Sião (nec dissimulant Patres S. J. Talapoinorum Siamensium institutum
vestemque affectantes)”. [59]
A força contida nos Mantras e na Vâch dos brâmanes é tão acreditada hoje
quanto no começo do período védico. O “Inefável Nome” de todo país e de toda
religião relaciona-se àquilo que os maçons afirmam ser os caracteres misteriosos
que simbolizam os nove nomes ou atributos pelos quais a Divindade era
conhecida pelos iniciados. A Palavra Omnífica traçada por Henoc nos dois deltas
de ouro puríssimo, sobre os quais gravou dois dos caracteres misteriosos, talvez
seja mais conhecida pelos “gentios” humildes e incultos do que pelos Grão-
sacerdotes e Grão Z. dos Capítulos Supremos da Europa e da América. Mas não
entendemos porque os companheiros da Arca Real lamentariam tão amarga e
tão continuamente a sua perda. A palavra M. M., como eles mesmos dirão, só
contém consoantes. Por isso, duvidamos que algum deles tenha aprendido a
pronunciá-la, ou a tivessem aprendido se, em vez de a corromper, ela tivesse
sido extraída da abóbada secreta”. Todavia, acredita-se que o neto de Ham
conduziu ao país de Mezraim o delta sagrado do Patriarca Henoc. Portanto, é só
no Egito e no Oriente que a “Palavra” misteriosa deve ser procurada.

A franco-maçonaria, não mais esotérica


Mas, considerando-se que muitos dos segredos importantes da maçonaria já
foram divulgados por amigos e por inimigos, não podemos dizer, sem suspeita
de malícia ou de animosidade, que, desde a infausta catástrofe dos templários,
nenhuma “Loja” da Europa, menos ainda da América, soube de algo que
devesse permanecer oculto. Não estando dispostos a ser mal-compreendidos,
dizemos nenhuma Loja, deixando alguns irmãos escolhidos fora da questão. As
denúncias furiosas da Arte feitas por escritores católicos e protestantes parecem
simplesmente ridículas, como também a afirmação do Abade Barruel de que tudo
“indica que os nossos franco-maçons descendem do Templários” proscritos em
1314. As Memoirs of Jacobinism, [60] escritas por esse Abade, testemunha
ocular dos horrores da primeira revolução, tratam extensamente dos Rosa-
cruzes e de outras fraternidades maçônicas. Mas só o fato de remontar os
maçons modernos aos Templários e apontá-los como assassinos secretos,
perpetradores de homicídios políticos, demonstra quão pouco ele conhecia a
respeito deles, mas também quão ardentemente ele desejava, ao mesmo tempo,
transformar essas sociedades em bodes expiatórios convenientes para os
crimes e pecados de outra sociedade secreta que, desde o seu surgimento,
abrigou mais de um assassino político perigoso — a Companhia de Jesus.
As acusações contra os maçons foram em sua maioria meras conjecturas, mera
malícia insaciável e difamação premeditada. Não se pôde aduzir contra eles
nenhuma prova conclusiva de culpabilidade. Nem mesmo o sequestro de
Morgan se constituiu em matéria de conjectura. O caso foi usado na época como
conveniência política por politiqueiros. Quando um cadáver irreconhecível foi
encontrado no rio Niágara, um dos chefes dessa classe inescrupulosa, ao ser
informado de que a identidade era extremamente questionável, expôs
descuidadamente todo o cerne dessa conspiração: “Bem, não importa, ele é um
bom Morgan para depois das eleições!” Por outro lado, a Ordem dos jesuítas
não só permitiu, em certos casos, mas também ensina e incita à “Alta Traição e
ao Regicídio”. [61]
Está diante de nós uma série de Conferências sobre a Franco-maçonaria e seus
perigos, pronunciadas em 1862, por James Burton Robertson, Professor de
História Moderna na Universidade de Dublin. Nelas, o conferencista cita
profusamente como suas autoridades, o já referido Abade Barruel (um inimigo
natural dos maçons, que não pôde ser apanhado no confessionário) e Robison,
um conhecido maçon renegado de 1798. Como é usual em toda facção, tanto do
lado maçônico quanto do lado antimaçônico, o traidor do campo oposto é
saudado com louvação e estímulo e absolvido de toda culpa. Quão conveniente,
por determinadas razões políticas, o famoso Comitê da Convenção
Antimaçônica de 1830 (Estados Unidos) deve ter considerado adotar essa
proposição absolutamente jesuítica de Pufendorf de que “o juramento a nada
obriga quando é absurdo e impertinente” e uma outra que ensina que “um
juramento não obriga a aceitar o que Deus não aceita”, [62] embora nenhum
homem verdadeiramente honesto possa aceitar essa sofisticaria. Acreditamos
sinceramente que a melhor porção da Humanidade sempre terá em mente que
existe um código moral de honra que obriga a mais do que um juramento
prestado sobre a Bíblia, o Corão ou os Vedas. Os essênios nunca juraram sobre
nada, mas seus “sins” e “nãos” valiam tanto ou mais do que um juramento. Além
disso, parece extraordinariamente estranho encontrar nações que se chamam
de cristãs que instituem costumes em cortes civis e eclesiásticas,
diametralmente opostos à ordem de seu Deus, [63] que proíbe claramente
qualquer juramento, “nem pelo céu (...) nem pela terra (...) nem pela cabeça”.
Parece-nos ser anticristão no sentido pleno da palavra, além de ser um absurdo,
afirmar que “um juramento não obriga se Deus não o aceita” — pois nenhum
homem vivo, seja ele falível ou infalível, pode aprender coisa alguma dos
pensamentos secretos de Deus. [64] Este argumento é levantado só porque é
conveniente e explica o assunto. Os juramentos nunca terão força suficiente para
que nos unamos enquanto o homem não compreender completamente que a
Humanidade é, sobre a Terra, a manifestação mais elevada da Divindade
Suprema Inobservada e que cada homem é uma encarnação de seu Deus; e
quando o sentido de responsabilidade pessoal for tão grande no homem, que lhe
repugne o perjúrio como o maior agravo a si mesmo e aos seus semelhantes.
Nenhum juramento hoje obriga a nada, a menos que seja tomado por alguém
que, não o considerando um juramento, tome-o apenas como palavra de honra.
Por conseguinte, apoiar-se em autoridades como Barruel e Robison é
simplesmente obter a confiança pública sob falsas pretensões. Não se trata do
“espírito da malícia maçônica, em cujo coração são cunhadas as calúnias”, mas
o do clero católico e dos seus paladinos; e o homem que reconciliar essas duas
idéias de honra e perjúrio, em qualquer caso, não é digno de confiança.
Ruidoso é o clamor do século XIX no sentido de reivindicar a preeminência em
civilização sobre os séculos precedentes e ainda mais clamorosa é a presunção
das igrejas e dos seus bajuladores de que o Cristianismo redimiu o mundo do
barbarismo e da idolatria. Mas nenhum deles, Igreja e século, têm razão, como
tentamos provar nestes dois volumes. A luz do Cristianismo serviu apenas para
mostrar quanta hipocrisia e quanto vício os seus ensinamentos trouxeram ao
mundo, desde o seu advento, e quão imensamente superiores a nós eram os
antigos no conceito de honra. [65] O clero, ao ensinar o desamparo do homem,
sua dependência em face da Providência e a doutrina da expiação, desvaneceu
nos seus seguidores fiéis todo átomo de autoconfiança e de auto-respeito. Isso
é tão certo, que se está tornando um axioma o fato de que os homens mais
honoráveis estão entre os ateus e os chamados “infiéis”. Hiparco nos conta que,
na época do gentilismo, “a vergonha e a desgraça que resultaram da violação de
seu juramento lançaram o infeliz num acesso de loucura e de desespero, que
ele cortou sua garganta e morreu por suas próprias mãos, e a sua memória foi
tão odiada após a sua morte, que o seu corpo repousou sobre a praia da ilha de
Samos e não teve outra sepultura senão as areias da praia”. [66] Mas no nosso
século vemos noventa e seis delegados da Convenção Antimaçônica dos
Estados Unidos, cada um deles sem dúvida um membro de alguma Igreja
protestante, que exigem o respeito devido aos homens de honra e Cavalheiros,
oferecendo os argumentos mais jesuíticos contra a validade de um juramento
maçônico. O Comitê, pretendendo citar a autoridade dos “guias mais distintos da
filosofia da moral e solicitando o apoio mais amplo dos inspirados [67] (...) que
escreveram antes que a Franco-maçonaria existisse”, resolveu que, dado que
um juramento era “um convênio entre o homem e o Juiz Todo-Poderoso”, e como
os maçons eram todos infiéis e “indignos de confiança civil”, então seus
juramentos deviam ser considerados ilegais e sem obrigação alguma. [68]
Mas voltaremos a essas Conferências de Robertson e às suas cargas contra a
maçonaria. A maior acusação feita contra esta última é a de que os maçons
rejeitam um Deus pessoal (acusação apoiada na autoridade de Barruel e
Robison) e de que eles afirmam possuir um “segredo para fazer os homens
melhores e mais felizes do que Cristo, seus apóstolos e a Igreja os fizeram”. Se
essa última acusação tivesse algo de verdade, ela permitiria a esperança
consoladora de que eles realmente tivessem descoberto o segredo ao se
desligarem do Cristo místico da Igreja e do Jeová oficial. Mas ambas as
acusações são tão maliciosas, quanto absurdas, como veremos a seguir.
Ninguém deve imaginar que estamos influenciados por qualquer sentimento
pessoal em nenhuma de nossas reflexões sobre a Maçonaria. Muito pelo
contrário, proclamamos resolutamente nosso maior respeito pelos propósitos
originais da Ordem, à que pertencem alguns dos nossos amigos mais valiosos.
Nada dizemos contra uma maçonaria que poderia existir, mas denunciamos
aquilo que ela, graças ao clero intrigante — católico e protestante —, começa a
ser. Dizendo ser mais absoluta das democracias, ela é praticamente o apanágio
da aristocracia, da riqueza e da ambição pessoal. Dizendo ser a mestra da
verdadeira ética, está reduzida a uma propaganda da teologia antropomórfica. O
aprendiz seminu, levado à presença do mestre durante a iniciação do primeiro
grau, aprende que à porta da Loja é abandonada toda a distinção social e que o
irmão mais pobre é o par dos outros, sem distinção entre um soberano reinante
ou um príncipe imperial. Na prática, a Arte, em todos os países monárquicos,
bajula todo e qualquer herdeiro real que se possa dignar, para usá-lo como
instrumento político e vestir um dia simbólico velocino.
A Fraternidade maçônica desviou-se muito dessa direção; podemos julgá-lo com
as palavras de uma das suas maiores autoridades. John Yarker, Jr., da Inglaterra
— Guardião Maior da Grande Loja da Grécia, Grão-mestre do Rito de
Swedenborg, e também Grão-mestre do Antigo e Primitivo Rito da maçonaria, e
sabe Deus o quê mais [69] — diz que a Maçonaria nada perderia “com a adoção
de um modelo mais elevado (não pecuniário) de companheirismo e moralidade,
com exclusão da ‘púrpura’ de todos aqueles que inculcam fraudes, simulação,
concessão de graus e outros abusos imorais” (p. 158). E à p. 157: “Tal como é
hoje governada a Fraternidade maçônica, a Arte está se tornando o paraíso do
bon vivant; do hipócrita ‘caridoso’, que esquece a versão de São Paulo e decora
o seu peito com a ‘jóia da caridade’ (tendo obtido a ‘púrpura’ por meio dessa
despesa criteriosa, ele desdenha os irmãos dotados de mais habilidade e
moralidade, embora menos ricos); do fabricante do miserável ouropel maçônico;
do mercador desonesto que trapaceia centenas, e até milhares de vezes,
apelando às dóceis consciências daqueles poucos que fazem caso de suas O.
B.; e dos ‘Imperadores’ maçônicos e de outros charlatães que obtêm poder ou
dinheiro graças às pretensões aristocráticas com que captam a vontade do vulgo
— ad captandum vulgus”.
Não é nossa intenção expor segredos já há muito tempo apregoados a todo o
mundo por maçons perjuros. Tudo o que for vital — seja nas representações
simbólicas, nas cerimônias rituais, seja nas senhas, empregadas pela Franco-
maçonaria moderna — é sabido das fraternidades orientais, embora não pareça
haver relação ou conexão entre estas e aquela. Se Ovídio descreve Medéia
“desnuda de braços, peito e pernas e com o pé esquerdo em posição
descuidada”, e se Virgílio, falando de Dido, mostra essa “Rainha (...) determinada
à morte, com um pé descalço, etc.” [70] — porque duvidar que no Oriente existam
“Patriarcas dos Vedas sagrados” que explicam o esoterismo da teologia hindu e
do bramanismo tão completamente quanto os “Patriarcas” europeus?
Mas, se alguns maçons há que aprenderam um pouco de maçonaria esotérica,
graças ao estudo de obras cabalísticas e ao trato pessoal com “Irmãos” do
Oriente remoto, não ocorre a mesma coisa com as centenas de Lojas
americanas. Enquanto trabalhávamos neste volume, recebemos
imprevistamente, como gentileza de um amigo, um exemplar do volume do Sr.
Yarker, do qual citamos acima algumas passagens. Ele excede em erudição e,
o que é melhor, em conhecimento, como nos parece. É extremamente valioso
nesse momento, dado que corrobora, em muitos particulares, o que temos dito
nesta obra. Assim, lemos o seguinte:
“Acreditamos ter estabelecido suficientemente o fato da conexão da Franco-
maçonaria com os outros Ritos Especulativos da Antiguidade, bem como o da
antiguidade e da pureza do antigo Rito Templário inglês de sete graus e o da
derivação espúria de muitos dos outros ritos”. [71]
Esses maçons superiores não devem ser advertidos, embora os peritos o façam,
de que chegou a hora de remodelar a maçonaria e restaurar os antigos limites,
tomados dos sodalícios primordiais, que os fundadores da Franco-maçonaria
especulativa do século XVIII diziam ter incorporado à fraternidade. Não há
segredos que não tenham sido publicados; a Ordem está degenerando numa
conveniência utilizada por homens egoístas e envilecida por homens malévolos.
Só foi recentemente que a maioria dos membros do Concílio Supremo do Rito
Antigo e Aceito, reunido em Lausanne, justamente revoltada contra a crença
blasfema numa Divindade pessoal investida de atributos humanos, pronunciou
as seguintes palavras: “A Franco-maçonaria proclama, como vem proclamando
desde a sua origem, a existência de um Princípio criador denominado Grande
Arquiteto do Universo”. Uma pequena minoria protestou contra essa afirmação,
dizendo que “a crença num Princípio criador que a Franco-maçonaria exige de
todo candidato antes que ele atravesse o limiar, não é a crença em Deus”.
Essa confissão não soa como a rejeição de um Deus pessoal. Se tivéssemos a
menor dúvida sobre o assunto, ela seria completamente desfeita pelas palavras
do Geral Albert Pike, talvez a maior autoridade da época, entre os maçons
americanos, que se ergue o mais violentamente possível contra essa inovação.
Nada melhor do que citar as suas próprias palavras:
“Esse Principe Créateur não é um termo novo — trata-se de um antigo termo
agora revivido. Os nossos adversários, numerosos e formidáveis, dirão, e terão
o direito de dizer, que nosso Principe Créateur é idêntico ao Principe Générateur
dos indianos e dos egípcios e pode ser perfeitamente simbolizado, como era
simbolizado antigamente, pelo Linga. (...) Aceitá-lo, em vez de um Deus pessoal,
é ABANDONAR O CRISTIANISMO e a adoração de Jeová e voltar a chafurdar
nas pocilgas do Paganismo”. [72]
E as do jesuitismo, por sinal, são mais limpas? “Os nossos adversários,
numerosos e formidáveis”. Essa frase diz tudo. São os católicos romanos e
alguns presbiterianos reformados. Em vista do que as duas facções escrevem
uma sobre a outra, podemos perguntar qual adversário tem mais medo do outro.
Mas de que vale atacar uma fraternidade que ainda não ousa ter uma crença
própria com medo de suscitar querelas? Se os juramentos maçônicos significam
algo, e se as penalidades maçônicas confinam com o burlesco, podem os
adversários — numerosos ou poucos, frágeis ou fortes — saber o que ocorre na
Loja ou passa pelo “irmão terrível, ou o ladrilheiro, que guarda, com uma espada
desembainhada, os portais da Loja”? Existe, então, um “irmão terrível”, mais
formidável do que o General Boum de Offenbach, com sua pistola fumegante,
suas esporas tintilantes e seu penacho alto? Para que servem os milhões de
homens que compõem essa grande fraternidade, que se estende por todo o
mundo, se eles não podem manter-se unidos para desafiar todos os seus
adversários? Será que o “laço místico” é apenas um cordel de argila e a
maçonaria apenas um brinquedo que alimenta a vaidade de alguns poucos
líderes que se comprazem em ostentar fitas e insígnias? Sua autoridade é tão
falsa quanto a sua antiguidade? Parece, na verdade; mas como “até mesmo as
pulgas têm as suas pulgas”, há católicos alarmistas, aqui mesmo, que pretendem
assustar a maçonaria!
Esses mesmos católicos, com toda a serenidade da sua impudência tradicional,
ameaçam publicamente a América e seus 500.000 maçons e 34.000.000 de
protestantes, com a união da Igreja e do Estado sob a direção de Roma! O perigo
que ameaça as instituições livres dessa república, disseram-nos, virá dos
“princípios do Protestantismo logicamente desenvolvidos”. Tendo o atual
Secretário da Marinha — R. W. Thompson, de Indiana — ousado publicar
recentemente, em seu próprio país protestante, um livro intitulado The Papacy
and the Civil Power, cuja linguagem é tão moderada quanto cavalheiresca e
imparcial, um padre católico romano de Washington, D. C. — o centro mesmo
do Governo — ataca-o com violência. Porém há mais: um membro
representativo da Companhia de Jesus, o Padre F. X. Weninger D. D., despeja
sobre a sua devotada cabeça um frasco de cólera que parece ter sido trazido
diretamente das celas vaticanas. “As afirmações”, diz ele, “que o Sr. Thompson
tece sobre o antagonismo necessário entre a Igreja Católica e as Instituições
Livres são caracterizadas por uma ignorância digna de pena e uma audácia
cega. Faltam a ele lógica, história, senso comum e caridade; ele surge diante do
leal povo americano como um beato de inteligência minguada. Nenhum erudito
se aventuraria a repetir essas calúnias tão batidas que tão frequentemente têm
sido refutadas. (...) Em resposta às suas acusações contra a Igreja como inimigo
da liberdade, digo-lhe que, se este país se convertesse em um país católico, ou
se os católicos aí chegassem a ser maioria e tivessem o controle do poder
político, então ele veria os princípios da nossa Constituição desenvolvidos
amplamente; ele veria que esses Estados seriam realmente ‘Unidos’. Ele
contemplaria um povo vivendo em paz e harmonia, amparado por uma única fé,
os corações das pessoas batendo em uníssono com o amor pela pátria, com
caridade e indulgência para com tudo e respeito aos direitos de consciência
mesmo dos seus caluniadores”. [73]
Em benefício dessa “Companhia de Jesus”, ele aconselha o Sr. Thompson a
enviar o seu livro ao Czar Alexandre II e a Frederico Guilherme, Imperador da
Alemanha. Poderia esperar deles, como mostra de suas simpatias, as ordens de
Santo André e da Águia Negra. “De americanos de inteligência límpida, que
pensam por si mesmos e são patriotas, ele só deveria esperar a condecoração
do seu desprezo. Enquanto os corações americanos baterem nos peitos
americanos e o sangue de seus pais correr em suas veias, esforços como o de
Thompson não terão sucesso. Os americanos verdadeiros, genuínos,
protegerão a Igreja católica desse país e por último se unirão a ela”. Depois
disso, julgando, como ele parece pensar, ter atirado sobre o chão o cadáver de
seu antagonista ímpio, esvazia a borra da sua garrafa com as seguintes
palavras: “Deixamos este livro, cujo argumento acabamos de matar, como uma
carcaça a ser devorada pelos desprezíveis texanos — essas aves malcheirosas
— isto é, essa espécie de homens que gostam de se alimentar da corrupção, de
calúnias e de mentiras e são atraídos pelo seu fedor”.
Essa última frase é digna de ser anexada como apêndice aos Discorsi del
Sommo Pontefice Pio IX, de Don Pasquale de Franciscis, imortalizados no
desprezo do Sr. Gladstone — Tel maître, tel valet!
Moral: Tudo isto ensinará aos escritores imparciais sóbrios e cavalheirescos que
nem mesmo um antagonista tão bem-educado, quanto o Sr. Thompson mostrou
ser no seu livro, pode escapar da única arma disponível no arsenal católico —
Billingsgate. Toda a argumentação do autor mostra que, embora violento, ele
pretende ser justo; mas ele poderia perfeitamente ter atacado com violência
tertuliana, que o tratamento recebido não seria pior. Que lhe sirva de consolo o
fato de ter sido colocado na mesma categoria dos imperadores e reis cismáticos
e infiéis.
Enquanto os americanos, inclusive os maçons, estão agora avisados para se
prepararem para se unirem à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, nós nos
comprazemos em saber que há algumas pessoas leais e respeitadas na
maçonaria que aceitam as nossas opiniões. Notável dentre eles, o Sr. Leon
Hyneman P. M., membro da Grande Loja da Pensilvânia, pertenceu por oito ou
nove anos ao Masonic Mirror and Keystone e é um autor de renome. Ele nos
declara pessoalmente que combateu durante quase trinta anos a tendência de
se erigir em dogma maçônico a crença num Deus pessoal. Na sua obra Ancient
York and London Grand Lodges, ele diz: “A maçonaria, em vez de se
desenvolver progressivamente com o avanço intelectual do conhecimento
científico e da inteligência geral, afastou-se dos objetivos originais da
fraternidade e se inclina aparentemente para uma sociedade sectária. Isto está
evidente (...) [na] determinação persistente de não eliminar as inovações
sectárias que foram interpoladas no Ritual. (...) Poderia parecer que a
fraternidade maçônica deste país é tão indiferente aos antigos landmarks e
costumes da maçonaria como o estiveram os maçons do século passado filiados
à Grande Loja de Londres”. [74] Foi essa convicção que o levou, em 1856,
quando Jacques Étienne Marconis de Nègre, Grande Hierofante do Rito de
Mênfis, veio à América para lhe oferecer a Grande Mestria do Rito dos Estados
Unidos e quando o Rio Antigo e Aceito lhe ofereceu o 33º Honorário — a recusar
ambos.
A Ordem do Templo foi a última organização secreta européia que, como um
corpo, teve em sua posse alguns dos mistérios do Oriente. De fato, existiam no
século passado (e talvez ainda existam) alguns “Irmãos” isolados trabalhando
fiel e secretamente sob a direção das irmandades orientais. Mas eles, quando
não pertenciam a sociedades européias, invariavelmente se filiavam a elas com
objetivos desconhecidos da fraternidade, embora ao mesmo tempo a
beneficiassem. Foi através deles que os maçons modernos aprenderam tudo o
que sabem de importante e, também, é por meio deles que se explica a
similaridade que existe entre os Ritos Especulativos da Antiguidade, os mistérios
dos essênios, gnósticos e hindus. Os graus maçônicos mais elevados e mais
antigos provam esse fato. Se esses irmãos misteriosos tivessem possuído o
segredo das sociedades, eles nunca teriam trocado entre si o segredo, embora
em suas mãos tais segredos estivessem mais seguros, talvez, do que nas dos
maçons europeus. Quando alguns destes últimos eram considerados dignos de
se filiarem ao Oriente, eram instruídos e iniciados secretamente, sem que os
outros soubessem uma palavra a mais do que sabiam.
Ninguém jamais conseguiu surpreender a atuação dos rosa-cruzes, e, apesar
das pretensas descobertas de “câmaras secretas”, velórios chamados “T” e de
fósseis cavalheiros de lâmpadas perpétuas, essa associação antiga e os seus
verdadeiros objetivos são ainda um mistério. Pretensos templários e falsos rosa-
cruzes, além de alguns cabalistas genuínos, foram ocasionalmente mortos na
fogueira, e alguns teósofos e alquimistas infelizes foram apanhados e
submetidos a torturas; confissões enganadoras eram arrancadas deles pelos
meios mais ferozes, mas a Sociedade continua a existir até hoje, como sempre
existiu, desconhecida de todos, especialmente do seu inimigo mais cruel — a
Igreja.

A perseguição dos Templários pela Igreja


Quanto aos modernos cavalheiros templários e às Lojas maçônicas que
pretendem descender diretamente dos templários antigos, a sua perseguição
pela Igreja foi uma farsa desde o princípio. Eles não possuíam, nem nunca
possuíram, segredos que fossem perigosos para a Igreja. Ao contrário — pois,
como diz J. G. Findel, “os graus escoceses, ou o sistema templário, datam de
1735-1740 e, seguindo a tendência católica, estabeleceram sua residência
principal no colégio jesuíta de Clermont, em Paris, e por isso foram chamados
de sistema Clermont”. O sistema sueco atual também possui alguns elementos
templários, mas está livre da influência dos jesuítas e da interferência na política;
todavia, afirma que possui o Testamento de Molay no original, pois um certo
Conde Beaujeu, sobrinho de Molay, sobre o qual nunca se ouviu nada em parte
alguma, transplantou o templarismo à Franco-maçonaria e, assim, pôde erigir
para as cinzas do seu tio um sepulcro misterioso. Para provar que tudo isso não
passa de uma fábula maçônica, basta a consideração de que o funeral de Molay
foi realizado no dia 11 de março de 1313, ao passo que ele morreu no dia 19 de
março de 1313... Esse produto espúrio, que não é nem templarismo genuíno,
nem Franco-maçonaria genuína, nunca deitou raízes na Alemanha. Mas o caso
foi completamente outro na França... [75]
Escrevendo sobre esse assunto, ouçamos o que Wilcke [76] tem a dizer a
respeito de tais pretensões:
“Os atuais cavalheiros templários de Paris pretendem descender diretamente
dos antigos cavalheiros e tentam prová-lo por documentos, regulamentações
internas e doutrinas secretas. Foraisse diz que a Fraternidade de franco-maçons
foi fundada no Egito, comunicando Moisés o ensino secreto aos israelitas, Jesus
aos Apóstolos e por este caminho chegou aos cavalheiros templários. Essas
invenções são necessárias (...) para a afirmação de que os templários
parisienses são a descendência da antiga ordem. Todas essas asseverações,
que não têm o apoio da história, foram fabricadas no Alto Capítulo de Clermont
[ao amparo dos jesuítas] e preservadas pelos templários parisienses como uma
herança deixada pelos revolucionários políticos, os Stuart e os jesuítas”. Daí que
os Bispos Grégoire [77] e Münter [78] os apóiem.
Entre os templários modernos e antigos não existe, no melhor dos casos, outra
analogia senão a adoção de certos ritos e certas cerimônias de caráter
puramente eclesiástico astutamente incorporados pelo clero à Grande Ordem
antiga. Após essa desconsagração, ela foi perdendo gradualmente seu caráter
primitivo e simples até a sua ruína total. Fundada em 1118 pelos cavalheiros
Hugues de Payens e Geoffroy de Saint-Adhémar, com o fito nominal de proteger
os peregrinos, o seu verdadeiro objetivo era a restauração do primitivo culto
secreto. A versão verdadeira da história de Jesus e do Cristianismo primitivo foi
revelada a Hugues des Payens pelo Grande-Pontífice da Ordem do Templo (da
seita nazarena ou joanita), chamado Teocletes, que a ensinou depois a outros
cavalheiros da Palestina, dentre os membros mais elevados e mais intelectuais
da seita de São João, que foram iniciados nos seus mistérios. [79] A liberdade
de pensamento intelectual e a restauração de uma religião universal eram seu
objetivo secreto. Presos ao voto de obediência, pobreza e castidade, eles foram
no início os verdadeiros cavalheiros de João Baptista, vivendo no deserto e se
alimentando de mel e gafanhotos. Assim afirma a tradição e a versão cabalística
verdadeira.
É um erro afirmar que a Ordem só se tornou anticatólica posteriormente. Ela o
era desde o princípio e a cruz vermelha sobre manto branco, a veste da Ordem,
tinha a mesma significação para os iniciados de todos os outros países. Ela
apontava para os quatro pontos cardeais do compasso e era o emblema do
universo. [80] Quando, mais tarde, a Irmandade foi transformada numa Loja, os
templários, a fim de escapar às perseguições, tinham de realizar as suas próprias
cerimônias no maior segredo, geralmente no salão de alguma corporação, mais
frequentemente em cavernas isoladas ou choças erguidas no meio de bosques,
ao passo que a forma eclesiástica de culto era celebrada publicamente nas
capelas pertencentes à Ordem.
Embora fossem infamemente caluniosas muitas das acusações feitas contra
eles por ordem de Felipe IV, os seus pontos principais eram corretos, do ponto
de vista do que é considerado como heresia pela Igreja. Os templários atuais,
aderindo tão estreitamente como fazem à Bíblia, não podem pretender ser
descendentes diretos daqueles que não acreditavam em Cristo, seja como
homem-Deus, seja como o Salvador do mundo; que rejeitavam o milagre do seu
nascimento e os que foram operados por ele; que não acreditavam na
transubstanciação, nos santos, nas relíquias sagradas, no purgatório, etc. O
Jesus Cristo era, em sua opinião, um falso profeta, mas o homem Jesus era um
Irmão. Consideravam João Baptista como seu patrono, mas nunca o tiveram no
conceito em que o tem a Bíblia. Reverenciavam as doutrinas da Alquimia, da
Astrologia, da Magia, dos talismãs cabalísticos e seguiam os ensinamentos
secretos dos seus chefes do Oriente. “No último século”, diz Findel, “quando a
Franco-maçonaria supôs erroneamente ser uma filha do templarismo, era muito
difícil acreditar na inocência da Ordem dos cavalheiros templários. (...) Com essa
intenção, não só lendas e acontecimentos sem registro foram fabricados, mas
também se tentou sufocar a verdade. Os admiradores maçônicos dos
cavalheiros templários recolheram todos os documentos da ação judicial
publicada por Mohldenhauer, porque provavam a culpabilidade da Ordem”. [81]
Essa culpabilidade consistia em sua “heresia” contra a Igreja Católica Romana.
Enquanto os “Irmãos” verdadeiros morreram de morte ignominiosa, os irmãos
espúrios formaram uma sequela dos jesuítas. Os maçons sinceros e honestos
devem rejeitar com horror toda relação com eles, deixando-os sozinhos com sua
ascendência.
“Os cavalheiros de São João de Jerusalém”, escreve o Comandante Gourdin,
“às vezes chamados de cavalheiros hospitaleiros, e os cavalheiros de Malta não
eram maçons. Ao contrário, eles parecem ter sido inimigos da Franco-maçonaria,
pois, em 1740, o Grão-mestre da Ordem de Malta fez a Bula de Clemente XII ser
publicada naquela ilha e proibiu as reuniões dos franco-maçons. Nesta ocasião
alguns cavalheiros e muitos cidadãos abandonaram a ilha; e, em 1741, a
Inquisição expulsou os franco-maçons de Malta. O Grão-mestre proscreveu as
suas assembleias sob severas penalidades e seis cavalheiros foram banidos da
ilha, perpetuamente, por terem participado de uma reunião. De fato, ao contrário
dos templários, eles nem mesmo possuíam uma forma secreta de recepção.
Reghellini afirma que lhe foi impossível encontrar uma cópia do ritual secreto dos
cavalheiros de Malta. A razão é óbvia — não havia nenhum!” [82]
Contudo, o templarismo americano compreende três graus: 1, cavalheiro da cruz
vermelha; 2, cavalheiro templário; e 3, cavalheiro de Malta. Foi trazido da França
para os Estados Unidos em 1808 e o primeiro Grande Acampamento Geral foi
organizado a 21 de junho de 1816, com o Governador De Witt Clinton, de Nova
York, como Grão-mestre.
Essa herança dos jesuítas não deve ser motivo de orgulho. Se os cavalheiros
templários desejam tornar aceitáveis as suas reivindicações, devem escolher
entre uma descendência dos templários “hereges”, anticristãos, cabalísticos e
primitivos ou uma união com os jesuítas e estender seus tapetes marchetados
diretamente sobre a plataforma do transmontanismo! Se não o fizerem, suas
reivindicações não passarão de pura pretensão.
Tão impossível tornou-se para os criadores da pseudo-ordem eclesiástica dos
Templários, inventada, segundo Dupuy, na França, pelos partidários dos Stuart,
evitar ser considerada um ramo da Ordem dos Jesuítas, que não nos
surpreendemos ao ver um autor anônimo, altamente suspeito de pertencer ao
Capítulo Jesuítico de Clermont, publicar uma obra em 1751, em Bruxelas, sobre
a ação judicial dos cavalheiros templários. Nesse volume, em várias notas
mutiladas, em acréscimos e comentários, ele defende a inocência dos templários
em face da acusação de “heresia”, com o que tira desses livres-pensadores e
mártires primitivos a auréola de respeito que haviam conquistado.
Essa pseudo-ordem foi instituída em Paris, a 4 de novembro de 1804, em razão
de uma Constituição forjada e desde então “tem contaminado a Franco-
maçonaria genuína”, segundo declaram os maçons mais conspícuos. A Carte de
transmission (tabula aurea Larmenii) apresenta ares de uma antiguidade tão
extrema, “que Grégoire confessa que, se todas as outras relíquias do tesouro
parisiense da Ordem não tivessem silenciado as suas dúvidas a respeito de sua
descendência, a visão dessa carta o persuadiria de imediato”. [83] O primeiro
Grão-mestre dessa Ordem espúria foi um médico em Paris, o Dr. Fabré-Palaprat,
que assumiu o nome de Bernard Raymond.
O Conde M. A. Ramsay, um jesuíta, foi o primeiro a lançar a idéia de uma união
entre os templários e os cavalheiros de Malta. Por essa razão é que lemos as
seguintes palavras:
“Nossos ancestrais [!!!], os Cruzados, reunidos em assembléia na Terra Santa,
vindos de toda a cristandade, resolveram constituir uma fraternidade que
compreendesse todas as nações, com o pensamento de que, ligadas em
coração e alma, se desenvolvessem mutuamente e pudessem, no curso do
tempo, representar um único povo intelectual”. [84]
Por esta razão uniram-se os templários aos cavalheiros de São João,
constituindo uma irmandade maçônica conhecida como os maçons de São João.
Em Le sceau rompu, de 1745, encontramos, por essa razão, esta impudente
afirmação falsa, digna dos Filhos de Loiola: “As lojas foram dedicadas a São
João, porque os cavalheiros (!) maçons se haviam unido na Palestina aos
cavalheiros de São João”. [85]
Em 1743, inventou-se o grau Kadosh, em Lyon (assim o afirma Thory, [86] ao
menos), que “representa a vingança dos templários”. A esse respeito, Findel
afirma que “a Ordem dos cavalheiros templários foi abolida em 1311, e que,
nessa época, eles tiveram de se refugiar, quando, após o banimento de alguns
cavalheiros de Malta, em 1740, porque eram franco-maçons, não foi mais
possível manter conexão com a Ordem de São João ou cavalheiros de Malta,
que gozava da plenitude de seu poder sob a tolerância do Papa”. [87]
Clavel, por sua vez, uma das mais prestigiadas autoridades maçônicas, diz: “É
claro que a instituição da Ordem francesa dos cavalheiros templários não
remonta a além de 1804 e que ela não pode reivindicar legitimamente ser a
continuação da sociedade denominada petite Réssurrection des Templiers, nem
tampouco esta última remonta à antiga Ordem dos cavalheiros templários”. [88]
Por essa razão é que vemos esses pseudotemplários, sob a direção dos dignos
Padres jesuítas, forjando em Paris, em 1806, a famosa carta de Larmênio. Vinte
anos depois, esse corpo nefasto e subterrâneo, guiando as mãos dos
assassinos, dirigiu-as contra um dos melhores e maiores príncipes da Europa,
cuja morte misteriosa nunca foi — por razões políticas — investigada e
anunciada ao mundo como deveria ter sido, prejudicando os interesses da
verdade e da justiça. Foi esse príncipe, um franco-maçom, o último depositário
dos segredos dos verdadeiros cavalheiros templários. Esses segredos
permaneceram desconhecidos e insuspeitados durante cinco séculos.
Reunindo-se cada treze anos em Malta — revelando o seu Grão-mestre o local
do rendezvous aos irmãos europeus apenas algumas horas antes do encontro
—, os representantes desse outrora o maior e o mais glorioso corpo de
cavalheiros, reuniam-se no dia fixado, vindos de vários pontos da terra. Treze
em número, em comemoração ao ano da morte de Jacques de Molay (1313), os
agora irmãos orientais, dentre os quais se faziam presentes várias cabeças
coroadas, planejavam juntos o destino religioso e político futuro das nações; ao
passo que os cavalheiros papistas, seus sucessores assassinos e bastardos,
dormiam profundamente em seus leitos, sem um sonho sequer que perturbasse
suas consciências culpadas.
“Contudo”, diz Rebold, “apesar da confusão que criaram (1736-1772), os jesuítas
conseguiram realizar um dos seus propósitos, qual seja o de desnaturalizar e
desprestigiar a instituição maçônica. Tendo conseguido, como acreditavam,
destruí-la de uma maneira, resolveram usá-la de outra. Com essa determinação,
organizaram o sistema chamado ‘Deveres dos templários’, um amálgama de
histórias, eventos e características diferentes dos cruzados misturado às
quimeras dos alquimistas. Nesta combinação, o catolicismo governava tudo e
toda a fabricação moveu-se como sobre as rodas representativas do propósito
com que foi organizada a Companhia de Jesus”. [89]
É por essa razão que os ritos e os símbolos da maçonaria, embora sejam
“pagãos” em sua origem, foram aplicados ao cristianismo e lhe transmitiram seu
sabor. Um maçom deve declarar sua crença num Deus pessoal, Jeová, nos
graus do Acampamento e também em Cristo, antes da sua admissão na Loja,
ao passo que os templários joanitas acreditavam no Princípio desconhecido e
invisível, de que procedem os Poderes Criadores impropriamente chamados de
deuses, e se mantinham fiéis à versão nazarena de que Panthera era o pai
pecaminoso de Jesus, que assim se proclamou ser “o filho de deus e da
humanidade”. [90] Isto também explica os terríveis juramentos dos maçons
tomados sobre a Bíblia e a servil analogia de suas lendas com a cronologia
patriarco-bíblica. Na Ordem Rosa-cruz Americana, por exemplo, quando o
neófito se aproxima do altar, os “Senhores cavalheiros formam uma linha e o
capitão da guarda faz a sua proclamação”. “À glória do sublime Arquiteto do
Universo [Jehovah-Binah?], sob os auspícios do Santuário Soberano da Franco-
maçonaria Antiga e Primitiva”, etc., etc. Depois, o cavalheiro orador golpeia o
neófito e relata a ele que as lendas antigas da maçonaria datam de QUARENTA
séculos, afirmando que remontam a 622 A. M., época em que, diz ele, Noé
nasceu. Nessas circunstâncias, isso deve ser visto como uma concessão liberal
a preferências cronológicas. Depois, os maçons [91] são notificados de que foi
por volta do ano 2.188 a.C. que Mizraim estabeleceu colônias no Egito e iniciou
a fundação do Reino do Egito, cuja duração foi de 1663 anos (!!!). Estranha
cronologia, que, se concorda piedosamente com a da Bíblia, discorda
completamente da história. Os nove nomes místicos da Divindade, importados
para o Egito, segundo os maçons, apenas no século XII a.C., estão em
monumentos que os melhores egiptólogos reconhecem ser duas vezes mais
antigos. Não obstante, devemos levar em consideração também o fato de que
os próprios maçons ignoram esses nomes.
A verdade é que a maçonaria moderna difere muito radicalmente daquilo que foi
uma vez a fraternidade secreta universal na época em que os adoradores
bramânicos do AUM intercambiavam sinais e senhas com os devotos do TUM e
em que os adeptos de todos os países da terra eram “Irmãos”.
Qual era, pois, esse nome misterioso, essa “palavra” poderosa por cuja potência
os hindus e os iniciados caldeus e egípcios operavam maravilhas? No capítulo
CXV do Ritual Funerário egípcio, intitulado “O Capítulo da Vinda do Céu (...) e
do Conhecimento das Almas de Annu” (Heliópolis), Horus diz: “Conheci as Almas
de Annu. Os mais gloriosos não passarão (...) a menos que os deuses me dêem
a PALAVRA”. Em outro hino, a alma, transformada, exclama: “Que me seja
aberto o caminho para Re-stau. Eu sou o Supremo, vestido como o Supremo.
Eu cheguei! Eu cheguei! Deliciosos me são os reis de Osiris. Crio a água [pelo
poder da Palavra]. (...) Não vi os segredos ocultos. (...) Confiei no Sol. Sou puro.
Sou adorado por minha pureza” (CXVII-CXIX, Capítulos da ida ao Re-stau e do
regresso de lá). Em outro lugar, o envoltório da múmia expressa o seguinte: “Sou
o Grande Deus [espírito] que existe por si mesmo, o criador do Seu Nome (...)
sei o nome desse Grande Deus que está aí” [cap. XVII].
Os inimigos de Jesus o acusam de ter operado milagres e os seus próprios
apóstolos o apresentam como um expulsador de demônios por graça do poder
do INEFÁVEL NOME. Os primeiros acreditam firmemente que Jesus o roubou
do Santuário. “E ele expulsou os espíritos com sua espada e curou todos os que
estavam doentes” (Mateus, XVIII, 16). Quando os governadores judaicos
perguntam a Pedro (Atos, IV, 7-10) “Graças a que poder, ou graças a que nome,
vós o fizestes?”, Pedro responde: “Graças ao NOME de Jesus Cristo de Nazaré”.
Mas este nome significa o nome de Cristo, como os intérpretes nos querem fazer
acreditar, ou ele significa “graças ao NOME que estava de posse de Jesus de
Nazaré”, o iniciado, que foi acusado pelos judeus de tê-lo aprendido, porém que
só o aprendeu com a iniciação! Além disso, ele afirma repetidamente que tudo o
que faz, ele o faz em “Nome de Seu Pai”, não em seu próprio.
Mas, dentre os maçons modernos, qual deles o ouviu ser pronunciado? Em seu
próprio Ritual, confessam que nunca o ouviram. O “Senhor orador” conta ao
“Senhor cavalheiro” que todas as senhas por ele recebidas nos graus
precedentes são “muitas corrupções” do nome verdadeiro do Deus que está
gravado no triângulo; e que, por isso, eles adotaram um “substituto” para ele. A
mesma coisa acontece na Loja Azul, em que o Mestre, que representa o Rei
Salomão, concorda com o Rei Hiram em que a Palavra *** “será usada em
substituição à palavra do Mestre até que tempos mais sábios descubram qual
seria a verdadeira”. Que Diácono Superior, dentre os que ajudaram a trazer
candidatos da escuridão para a luz, ou que Mestre que sussurrou essa “palavra”
mística nos ouvidos dos supostos Hiram Abiff, enquanto os firmava nos cinco
pontos da fidelidade — quem suspeitou do significado verdadeiro desse
substituto que eles comunicavam “em voz baixa”? Quão poucos Mestres maçons
recentes continuam imaginando que ela tem alguma conexão oculta com “a
medula dos ossos”. O que eles sabem dessa personagem mística conhecida de
alguns adeptos como o “venerável MAH”, ou dos misteriosos Irmãos Orientais
que obedecem a ele, cujo nome está abreviado na primeira sílaba das três que
compõem o substituto maçônico — o MAH, que vive atualmente num lugar
desconhecido de todos os iniciados, rodeado de desertos impenetráveis que os
pés missionários ou jesuíticos não se atreverão a cruzar porque estão cheios de
perigos que aterram os exploradores mais corajosos? Entretanto, durante
gerações seguidas, esse retintim ininteligível de vogais e consoantes tem sido
repetido aos ouvidos dos neófitos, como se ele ainda possuísse virtude suficiente
para desviar do seu curso aéreo uma lanugem de cardo! Como o Cristianismo,
a Franco-maçonaria é um cadáver que o espírito abandonou há muito tempo.
A esse respeito, devemos dar espaço a uma carta do Sr. Charles Sotheran,
Secretário Correspondente do Clube Liberal de Nova York, que foi por nós
recebida no dia posterior àquele em que foi escrita. O Sr. Sotheran é conhecido
como escritor e conferencista sobre arqueologia, mística e outros assuntos. Na
maçonaria, passou por muitos graus, por ser autoridade competente em relação
à Arte. É 32 . . . A. e P. R., 94 . . . Mênfis, C. R. , C. Kadosh, M. M. 104, Eng.,
etc. É também iniciado da moderna Fraternidade Inglesa dos Rosa-cruzes e de
outras sociedades secretas e editor maçônico do New York Advocate. * Eis a
carta, que colocamos diante dos olhos dos maçons porque desejamos que vejam
o que um dos seus próprios membros tem a dizer:
* Informação biográfica abrangente relativa a Charles Sotheran e seu papel nos anos formativos
da Sociedade Teosófica pode ser encontrada no volume I dos Collected Writings de H. P.
Blavatsky, p. 126, 237 r., 311-12, 369 r., 433, 525-28. (N. do org.)

“New York Press Club, 11 de janeiro de 1877.

“Em resposta à sua carta, tenho imensa satisfação em proporcionar-lhe a


informação que deseja com relação à antiguidade e à condição atual da
Franco-maçonaria. Meu prazer é maior ao considerar que, dado
pertencermos às mesmas sociedades secretas, pode V. Sa apreciar melhor a
necessidade de me manter reservado em alguns pontos. Com muita razão
diz V. Sa que a Franco-maçonaria, não menos que as teologias estéreis do
dia, tem uma história fabulosa para contar. Bloqueada como tem sido a
Ordem pela tolice e pelos obstáculos de absurdas lendas bíblicas, não
espanta que sua utilidade tenha sido depreciada e a sua obra civilizadora
impedida. Felizmente, o grande movimento antimaçônico que se alastrou nos
Estados Unidos durante parte deste século forçou um número considerável
de trabalhadores a investigar a origem verdadeira da Arte e a instaurar uma
situação mais saudável. A agitação ocorrida na América também se espalhou
pela Europa e os esforços literários de autores maçônicos dos dois lados do
Atlântico, tais como Rebold, Findel, Hyneman, Mitchell, MacKenzie, Hughan,
Yarker e outros bastante conhecidos da fraternidade, agora são matéria da
história. Um dos efeitos de seus labores tem sido, em grande medida, trazer
à luz do dia a história da maçonaria, de sorte que seus ensinamentos, sua
jurisprudência e seu ritual não mais são segredo para os ‘profanos’ cuja
judiciosidade lhes permita compreendê-los tal como estão expostos.

Acertadamente diz V. Sa que a Bíblia é a ‘grande luz’ da maçonaria européia


e americana. Em consequência, a concepção teísta de Deus e a cosmogonia
bíblica sempre foram consideradas como duas das suas grandes pedras
angulares. Sua cronologia parece ter sido baseada na mesma pseudo-
revelação. Assim, o Sr. Dalcho, em um dos seus tratados, afirma que os
princípios da Ordem maçônica se apresentaram por ocasião da criação e são
seus contemporâneos. Não espanta, pois, que esse ou aquele pândita
assegure que Deus foi o primeiro Grande Mestre, Adão o segundo, e que
este último tenha iniciado Eva no Grande Mistério, como eu suponho depois
o foram as Sacerdotisas de Cibele e a ‘Senhora’ Kadosh. O Rev. Dr. George
Oliver, outra autoridade maçônica, relata com toda seriedade aquilo que
poderia ser denominado de pormenores de uma Loja que Moisés presidiu
como Grão-mestre, Josué era seu Grão-mestre Deputado e Ahohab e
Bezaleel seus Grandes Guardiães! O templo de Jerusalém — que
arqueólogos recentes demonstraram ser uma estrutura que nada tem da
antiguidade que se supõe e cujo nome denota seu caráter místico, pois
Salomão é palavra formada de Sol-Om-On (o nome do Sol em três línguas)
— representa, como V. Sa observa com acerto, um papel importante no
mistério maçônico. Fábulas como esta, e a tradicional colonização maçônica
do Egito antigo, deram à Arte o crédito de uma origem ilustre a que ela não
tem direito, pois as mitologias da Grécia e de Roma resultariam
insignificantes em comparação com quarenta séculos de história legendária.
As teorias egípcia, caldaica, etc. de que se valeram os inventores de ‘graus
elevados’ também tiveram curto período de proeminência. O último ‘interesse
pessoal’ foi consecutivamente a mãe fecunda da improdutividade.

Ambos concordamos em que todos os sacerdócios antigos possuíam suas


doutrinas esotéricas e suas cerimônias secretas. Da irmandade dos essênios
— uma evolução dos ginósofos hindus —, procederam sem dúvida os
sodalícios da Grécia e de Roma, descritos pelos escritores chamados
“pagãos”. Fundamentadas neles e copiando-lhes os ritos, os sinais, as
senhas, etc., desenvolveram-se as guildas medievais. Como as associações
obreiras atuais de Londres — relíquias das guildas comerciais inglesas —,
os maçons ativos eram apenas uma guilda de operários com pretensões
elevadas. Do nome francês ‘maçon’, derivado de ‘mas’, um velho substantivo
normando que significa ‘uma casa’, proveio o nosso inglês ‘Mason’, um
construtor de casas. Do mesmo modo como as companhias londrinas
concediam de vez em quando o título de sócio livre das ‘Associações’ a
estranhos, também fizeram a mesma coisa as guildas de maçons. Assim, o
fundador do Museu Ashmole foi recebido na comunidade de maçons de
Warrington, no Lancashire, na Inglaterra, a 16 de outubro de 1646. O
ingresso de homens como Elias Ashmole para a Fraternidade Operativa abriu
caminho para a grande ‘Revolução Maçônica de 1717’, quando surgiu a
maçonaria ESPECULATIVA. As Constituições de 1723 e 1738, preparadas
pelo impostor maçônico Anderson, foram escritas especialmente para a
recente e primeira Grande Loja dos ‘Maçons Livres e Aceitos’ da Inglaterra e
copiadas por todas as lojas do mundo.

“Essas Constituições falsas, escritas por Anderson, foram então compiladas


e, a fim de impingir à Arte o seu lixo miserável chamado história, ele teve a
audácia de afirmar que quase todos os documentos relativos à maçonaria na
Inglaterra haviam sido destruídos pelos reformadores de 1717. Felizmente,
no Museu Britânico, na Biblioteca Bodleana e em outras instituições públicas,
Rebold, Hughan e outros descobriram provas suficientes acerca dos maçons
operativos para rebater essa afirmação.

“Os mesmos escritores, creio eu, também demonstraram cabalmente a


falsidade de dois outros documentos que escamoteiam a maçonaria, a saber,
a espúria carta de Colônia, de 1535, e as questões forjadas, que se supõe
terem sido escritas por Leylande, o antiquário, de um manuscrito do Rei
Henrique VI da Inglaterra. Neste, Pitágoras aparece como ‘fundador de uma
grande loja em Crotona, à qual se afiliaram muitos maçons, alguns dos quais
passaram à França, onde fizeram muitos prosélitos que, com o passar do
tempo, passaram à Inglaterra. Sir Christopher Wren, arquiteto da Catedral de
São Paulo, em Londres, frequentemente chamado de ‘Grão-mestre dos
franco-maçons’, foi apenas o Mestre ou presidente da Corporação dos
Maçons Operativos de Londres. Se essa urdidura de fábula pôde ser
combinada com a história das Grandes Lojas que atualmente têm a seu
encargo os três primeiros graus simbólicos, não estranha que tenha ocorrido
a mesma coisa com os Graus Maçônicos Superiores, que, com acerto, têm
sido chamados de ‘uma mescla incoerente de princípios opostos’.

“É curioso notar que a maioria dos corpos em que existem esses graus
superiores — tais como o Rito Escocês Antigo e Aceito, o Rito de Avignon, a
Ordem do Templo, o Rito de Fessler, o ‘Grande Concílio dos Imperadores do
Oriente e do Ocidente’, Maçons Príncipes Soberanos, etc. — seja a progênie
de Inácio de Loiola. O Barão Hundt, o Chevalier Ramsay, Tschoudy,
Zinnendort e muitos outros que fundamentaram os graus nesses ritos
trabalharam segundo instruções recebidas do Geral dos jesuítas. O ninho em
que esses graus foram incubados, e a cuja influência estava mais ou menos
sujeito todo rito maçônico, era o colégio jesuíta de Clermont, em Paris.

“Esse filho bastardo da maçonaria, o ‘Rito Escocês Antigo e Aceito’, que não
é reconhecido pelas Lojas Azuis, foi um produto, em primeiro lugar, do jesuíta
Chevalier Ramsay. Foi por ele trazido da Inglaterra em 1736-1738 para
auxiliar a causa dos Stuart católicos. O rito, em sua forma atual de trinta e
três graus, foi reorganizado ao final do século XVIII por meia dúzia de
aventureiros maçônicos de Charleston, na Carolina do Sul. Dois deles —
Pirlet, um alfaiate, e um professor de dança chamado Lacorne — foram os
precursores justos de uma ressurreição posterior, levada a efeito por um
certo cavalheiro chamado Gourgas, que exercia a aristocrática função de
oficial de um navio que comerciava entre Nova York e Liverpool. O Dr.
Crucefix, aliás Gross, inventor de alguns medicamentos de índole suspeita,
introduziu a instituição na Inglaterra. Essas pessoas ilustres fiavam-se num
documento que diziam ter sido assinado em Berlim por Frederico o Grande,
em 1º de maio de 1786, que serviu para a revisão da Constituição e do
Estatuto maçônico dos Graus Superiores do Rito Antigo e Aceito. Esse papel
era uma mentira

impudente e exigiu a emissão de um protocolo, por parte das Grandes Lojas


dos Três Globos de Berlim, que provou conclusivamente que todo o arranjo
era falso em todos os seus detalhes. Com base nesse protocolo, diz-se que
o Rito Antigo e Aceito roubou os irmãos confiantes das Américas e da Europa
em milhares de dólares, para vergonha e descrédito da Humanidade.

“Os templários modernos, aos quais V. Sa se refere em sua carta, são apenas
umas gralhas vestidas com plumas de pavão. O objetivo dos templários
maçônicos é a sectarização, ou antes a cristianização da maçonaria, uma
fraternidade que admite judeus, parsis, maometanos, budistas e todo aquele
que, dentro de seus portais, aceita a doutrina de um deus pessoal e a
imortalidade do espírito. De acordo com uma parte dos israelitas, se não
todos eles, que pertencem à Arte na América — templarismo é jesuitismo.

“Parece estranho, agora que a crença num Deus pessoal está-se extinguindo
e que até mesmo o teólogo transformou sua divindade num indefinível
indescritível, parece estranho que existam aqueles que se colocam no
caminho da aceitação geral do panteísmo sublime dos orientais primevos, de
Jacob Boehme, de Spinoza. Na Grande Loja e nas subordinadas desta e de
outras jurisdições, a velha doxologia é frequentemente louvada, com seus
‘Pai, Filho e Espírito Santo’, para desgosto dos israelitas e irmãos livre-
pensadores, que são dessa maneira insultados desnecessariamente. Isso
nunca ocorreria na Índia, onde a Grande luz de uma loja pode ser o Corão, o
Zend-Avesta ou um dos Vedas. O espírito cristão sectário deve ser eliminado
da maçonaria. Hoje existem Grandes Lojas alemãs que não permitirão que
judeus sejam iniciados, nem israelitas de outros países estrangeiros serão
aceitos como irmãos em sua jurisdição. Os maçons franceses, todavia,
revoltaram-se contra essa tirania e o Grande Oriente de França permite agora
que o ateu e o materialista ingressem na Arte. Uma prova eloquente contra a
universalidade da maçonaria é o fato de a irmandade francesa ser repudiada.

“Apesar das suas muitas culpas — e a maçonaria especulativa é humana e,


portanto, falível —, não existe instituição alguma que tenha feito tanto, e
ainda pode fazer, pelo desenvolvimento humano, religioso e político. No
último século, os illuminati ensinaram ‘paz à choça, guerra ao palácio’ por
toda a largura e por toda a extensão da Europa. No último século, os Estados
Unidos foram libertados da tirania de sua terra-mãe pela ação, mais do que
se imagina, das Sociedades Secretas. Washington, Lafayette, Franklin,
Jefferson e Hamilton eram maçons. E, no século XIX, foi o Grão-mestre
Garibaldi, 33º, que unificou a Itália, trabalhando de acordo com o espírito da
irmandade fiel, com os princípios maçônicos, ou antes carbonários, de
‘liberdade, igualdade, humanidade, independência, unidade’, ensinados
durante muitos anos pelo irmão Giuseppe Mazzini.

“A maçonaria especulativa tem, ainda, muitas tarefas a cumprir. Uma delas é


aceitar a mulher como colaboradora do homem na batalha pela vida, como
fizeram os maçons húngaros ao iniciarem a Condessa Haideck. Outra coisa
importante é reconhecer na prática a irmandade de toda a humanidade, de
modo que a cor, a raça, a posição social ou o credo não sejam obstáculos
para o ingresso. O de pele escura não deve ser um irmão do de pele clara
apenas teoricamente. Os maçons de cor que têm sido devida e regularmente
despertados permanecem às portas de todas as Lojas da América desejando
a sua admissão e são por elas recusados. E há a América do Sul, que deve
ser conquistada para a participação nos deveres da Humanidade.

“Se a maçonaria há de ser, como se pretende, uma ciência progressista e


uma escola de religião pura, ela deve estar sempre na vanguarda da
civilização, nunca na sua retaguarda. Mas se tiver de se contentar com
esforços empíricos, ser uma tentativa tosca de resolver alguns dos problemas
mais profundos da humanidade, então ela deve dar lugar a sucessores mais
adequados, talvez a um daqueles que a Senhora e eu conhecemos, que agiu
como ponto ao lado dos chefes da Ordem, durante os seus maiores triunfos,
murmurando coisas aos seus ouvidos, como o daemon fez aos ouvidos de
Sócrates.

“Seu amigo sincero,


CHARLES SOTHERAN.”

Assim, cai por terra o grande poema épico dos maçons, cantado por tantos
cavalheiros misteriosos como um outro evangelho revelado. Como vemos, o
Templo de Salomão está sendo minado subterraneamente e levado ao chão por
seus próprios chefes “Mestres Maçons” deste século. Mas se, seguindo a
engenhosa descrição exotérica da Bíblia, ainda existem maçons que persistem
em considerá-lo como antes uma estrutura atual, quem, entre os estudiosos da
doutrina esotérica, não considerará esse templo místico apenas como uma
alegoria que incorpora a ciência secreta? Se houve ou não um templo real com
esse nome — que os arqueólogos decidam; mas nenhum erudito versado no
jargão antigo e medieval dos cabalistas e alquimistas duvidará de que a
descrição detalhada de 1 Reis é puramente alegórica. A construção do Templo
de Salomão é a representação simbólica da aquisição gradual da sabedoria
secreta ou magia; a ereção e o desenvolvimento do espiritual a partir do terreno;
a manifestação do poder e do esplendor do espírito no mundo físico por meio da
sabedoria e do gênio do construtor. Este, ao se tornar um adepto, é um rei mais
poderoso do que o próprio Salomão, o emblema do sol ou a própria LUZ — a luz
do mundo subjetivo real, brilhando na escuridão do universo objetivo. Esse é o
“Templo” que deve ser edificado sem que o som do martelo ou de qualquer
ferramenta seja ouvido na casa enquanto esteja “em construção”.
No Oriente, essa ciência chama-se, em alguns lugares, o Templo “de sete pisos”
e, em outros, o “de nove pisos”; cada piso corresponde alegoricamente a um
grau do conhecimento adquirido. Em todos os países do Oriente, onde quer que
a magia e a religião-sabedoria seja estudada, seus praticantes e estudiosos são
conhecidos por Construtores — pois eles constroem o templo do conhecimento,
da ciência secreta. Os adeptos ativos são chamados de Construtores operativos,
ao passo que os estudantes, ou neófitos, são denominados especulativos ou
teóricos. Os primeiros exemplificam em obras o seu controle sobre as forças da
natureza inanimada e animada; os outros estão se aperfeiçoando nos
rudimentos da ciência sagrada. Esses termos foram evidentemente emprestados
no início pelos fundadores desconhecidos das primeiras guildas maçônicas.
No jargão agora popular, os “maçons operativos” são os pedreiros e os artesões,
que compunham a Arte até a época de Sir Christopher Wren; e os “maçons
especulativos” são todos os membros da Ordem, tal como está hoje constituída.
A frase atribuída a Jesus — “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha
igreja; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” [92] —, desfigurada
como está por traduções errôneas ou interpretações incorretas, indica
claramente o seu significado real. Já mostramos a significação de Pater e de
Petra para os hierofantes — a interpretação transmitida pelo iniciador ao futuro
intérprete escolhido. Uma vez familiarizado com seu conteúdo misterioso, que
lhe revelava os mistérios da criação, o iniciado tornava-se um construtor, pois se
inteirava do dodecahedron, ou a figura geométrica com que o universo foi
construído. Ao que aprendera em iniciações prévias a respeito do uso da regra
e dos princípios arquitetônicos acrescentava-se uma cruz, cujas linhas
perpendicular e horizontal se sobrepunham para formar a fundação do templo
espiritual e cuja intersecção, ou ponto central primordial, representava o
elemento de todas as existências, [93] a primeira idéia concreta da divindade. A
partir desse momento ele podia, como Mestre-construtor (ver 1 Coríntios, III, 10),
erigir um templo de sabedoria, naquela pedra de Petra, para si mesmo; e, tendo-
o construído, permitir que “outros ali construíssem”.
O hierofante egípcio recebia um capacete quadrado, que devia vestir sempre, e
um esquadro (ver as insígnias dos maçons), sem os quais não podia apresentar-
se em nenhuma cerimônia. O Tao perfeito formado pela perpendicular (raio
masculino descendente, ou espírito), uma linha horizontal (ou matéria, raio
feminino) e o círculo mundano eram atributos de Ísis, e, só por ocasião da sua
morte, a cruz egípcia era colocada sobre o peito da múmia do iniciado. Esses
capacetes quadrados são usados até hoje pelos sacerdotes armênios. É
verdadeiramente estranha a pretensão de que a cruz seja um símbolo
genuinamente cristão introduzido em nossa era, quando se sabe que Ezequiel
marca com o signa thao (como está traduzido na Vulgata) as testas dos homens
de Judá que temiam ao Senhor (Ezequiel, IX, 4). No hebraico antigo, esse sinal

era traçado assim: , mas, nos hieróglifos egípcios originais, como uma cruz

cristã perfeita . Também no Apocalipse, o “Alfa e o Ômega” (espírito e


matéria), o primeiro e o último, estampa o nome de seu Pai nas testas dos
eleitos. [94]
E se nossos argumentos estiverem errados, se Jesus não era um iniciado, um
Mestre-construtor, ou Mestre-maçom, como agora é chamado, como é que nas
catedrais mais antigas encontramos a sua efígie com as insígnias maçônicas?
Na Catedral de Santa Croce, em Florença, sobre a porta principal, pode-se ver
a figura de Cristo segurando um esquadro perfeito em sua mão.
Os “mestres-construtores” sobreviventes da arte operativa do Templo verdadeiro
andam literalmente seminus e semidescobertos — não por causa de uma
cerimônia pueril, mas porque, como o “Filho do homem”, eles não têm onde
reclinar a cabeça — embora sejam os possuidores vivos da “Palavra”. Serve-
lhes de “reboque” o cordão triplo sagrado de certos brâmanes-sannyâsins, ou o
fio com que certos lamas penduram suas pedras yu que, embora pareçam
talismãs sem valor, nenhum deles trocaria por todas as riquezas de Salomão e
da rainha de Sabá. A vareta de bambu de sete nós do faquir pode tornar-se tão
poderosa quanto a vara de Moisés “que foi criada no crepúsculo e sobre a qual
foi gravado o grande e glorioso NOME, por cujo poder operou maravilhas em
Mizraim”.
Mas esses “trabalhadores operativos” não temem que seus segredos sejam
revelados por traiçoeiros ex-sumo-sacerdotes de alguma corporação, pois sua
geração não os recebeu de “Moisés, Salomão e Zorobabel”. Se Moses Michael
Hayes, o Irmão israelita que introduziu neste país (em dezembro de 1778) a
Maçonaria da Arca Real, [95] tivesse tido um pressentimento profético das
traições futuras, ele teria instituído obrigações mais eficazes.
Verdadeiramente, a magna e omnífica palavra da Arca Real, “por longo tempo
perdida mas agora encontrada”, cumpriu sua promessa profética. A senha desse
grau já não é “SOU O QUE SOU”. É apenas “Fui mas não sou!”
Para que não sejamos acusados de pretensão vã, daremos as chaves para
muitas das cifras secretas dos chamados graus maçônicos superiores mais
exclusivos e mais importantes. Se não nos equivocamos, elas nunca foram
reveladas ao mundo exterior (exceto aos maçons da Arca Real, em 1830), pois
foram zelosamente guardadas pelas várias Ordens. Como não nos liga nenhuma
promessa, nenhuma obrigação, nenhum juramento, não violamos, assim, a
confiança de ninguém. Nossa intenção não é satisfazer nenhuma curiosidade
frívola; só queremos mostrar aos maçons e aos filiados de todas as outras
sociedades ocidentais — à Companhia de Jesus, inclusive — que lhes é
impossível estarem seguros da posse de quaisquer segredos que interessem às
Irmandades Orientais. Em consequência, elas podem provar que, se estas
últimas podem tirar as máscaras das sociedades européias, elas tiveram êxito
ao usar seus próprios visores; pois, se algo é sabido universalmente, é o fato de
que os segredos reais de nenhuma irmandade antiga sobrevivente estão de
posse de profanos.
Algumas dessas cifras foram usadas pelos jesuítas em sua correspondência
secreta ao tempo da conspiração jacobiana e quando a maçonaria (a pretensa
sucessora do Templo) era utilizada pela Igreja para fins políticos.
Findel diz que no século XVIII, “além dos cavalheiros templários modernos,
vemos os jesuítas (...) desfigurando a face frágil da Franco-maçonaria. Muitos
autores maçônicos, que conheceram perfeitamente aquele período e sabiam
exatamente de todos os incidentes ocorridos, asseguram que os jesuítas sempre
exerceram uma influência perniciosa, ou pelo menos pretenderam influenciar,
sobre a fraternidade”. [96] A respeito da Ordem Rosa-cruz, ele observa, baseado
na autoridade do Prof. Woog, que seu “objetivo, em primeiro lugar (...) era nada
menos do que favorecer e fomentar o Catolicismo. Quando essa religião
manifestou a determinação de reprimir a liberdade de pensamento (...) os rosa-
cruzes redobraram os seus esforços para deter o quanto possível o progresso
dessa instrução”. [97]
No Sincerus Renatus (o converso sincero) de S. Richter, de Berlim (1714), lemos
que leis eram comunicadas ao governo dos “Rosa-cruzes Dourados” que
“oferecem provas inequívocas da intervenção jesuítica”. [98]
Começaremos com os criptogramas dos “Soberanos Príncipes Rosa-cruzes”,
também chamados Cavalheiros de Santo André, Cavalheiros da Águia e do
Pelicano, Heredom Rosae Crucis, Cruz Rosada, Cruz Tripla, Irmão Perfeito,
Príncipe Maçon, e assim por diante. A “Heredom Rosy Cross” também reivindica
uma origem templária em 1314. [99]

O código secreto maçônico


CIFRA DOS
S ... P ... R ... C ...

CÓDIGO DOS CAVALHEIROS ROSA-CRUZES DE HEREDOM


(de Kilwining)

CÓDIGO DOS CAVALHEIROS KADOSH


(Também da Águia Branca e Negra e do Grande Cavalheiro Templário Eleito)

Os Cavalheiros Kadosh possuem uma outra cifra — ou antes hieróglifo — que,


nesse caso, foi tomado do hebraico, e talvez seja o que mais parentesco
apresenta com a Bíblia Kadeshim do Templo. [100]
HIERÓGLIFO DOS C ... KAD ...

Quanto à cifra da Arca Real, ela já foi exposta anteriormente, mas nós a
apresentamos de maneira simplificada.
A cifra consiste de certas combinações de ângulos retos, com ou sem pontos ou
pingos. Esta é a base da sua
Formação.
O alfabeto consiste de vinte e seis letras, formadas por esses sinais divididos em
duas séries e constituindo caracteres distintos, como segue:
primeira série:

Estes mesmos sinais, com um ponto interno, formam a


segunda série:

perfazendo um total de vinte e seis, igual ao número de letras do alfabeto inglês.

Há duas maneiras, pelo menos, de combinar e usar esses caracteres para


correspondência secreta. Uma delas é chamar de a o primeiro sinal ; o mesmo
sinal, com um ponto, , b; etc. Uma outra é aplicá-los, em seu curso regular, à
primeira metade do alfabeto, a, b, e assim por diante, até m; depois, repeti-
la com um ponto, começando com n, o, etc., até z.

O alfabeto, de acordo com o primeiro método, é assim:

De acordo com o segundo método, assim:


Além desses sinais, os maçons franceses — evidentemente sob instrução dos
seus expertos mestres — os jesuítas —, aperfeiçoaram esse código em todos
os seus detalhes. Assim, eles possuem sinais para vírgula, ditongos, acentos,
pingos, etc., que são:

Jeová não é o “Nome Inefável”


Isso basta. Poderíamos, se quiséssemos, dar os alfabetos cifrados, com suas
chaves, de outro método dos maçons da Arca Real muito semelhante a certos
caracteres hindus; do G ... El ... da Cidade Mística; de uma forma bastante
conhecida da escrita devanágari dos Sábios (franceses) das Pirâmides; do
sublime Mestre da Grande Obra, e de outros. Mas nos abstemos; só,
compreende-se, pelo fato de que alguns ramos laterais da Franco-maçonaria da
Loja Azul prometem realizar trabalho útil em tempos futuros. Quanto aos demais,
cairão no monte de lixo do tempo. Os maçons de grau superior entenderão o que
queremos dizer.
Devemos agora fornecer algumas provas do que afirmamos e demonstrar que a
palavra Jehovah, tão cara aos maçons, poderá substituir, mas nunca ser idêntica
ao nome mirífico perdido. Os cabalistas sabem disso tão perfeitamente, que, em
sua cuidadosa etimologia de ‫יהוה‬, mostram sem sombra de dúvida que se trata
de apenas um dos muitos sucedâneos do Nome real e que é composto do nome
duplo do primeiro andrógino — Adão e Eva, Jod (ou Yodh), Vau e He-Va — a
serpente fêmea como um símbolo da Inteligência Divina que procede do Espírito
Criador. [101] Assim, Jehovah não é o Inefável Nome. Se Moisés tivesse dado
ao Faraó o “nome” verdadeiro, este último não teria respondido como o fez, pois
os Reis-Iniciados egípcios o conheciam tão bem quanto Moisés, que o aprendera
com eles. O “Nome” era àquela época propriedade comum dos adeptos de todas
as nações do mundo e o Faraó certamente o conhecia, pois é mencionado no
Livro dos mortos. Mas, em vez disso, Moisés (se aceitarmos literalmente a
alegoria do Êxodo) dá ao Faraó o nome Yeva, expressão ou forma do nome
divino usada por todos os Targums. Donde a resposta do Faraó: “Quem é este
Yeva, [102] para que eu obedeça a sua voz e deixe Israel sair?” [103]
“Jehovah” data apenas da inovação masorética. Quando os rabinos, com temor
de que pudessem perder as chaves de suas próprias doutrinas, compostas até
então exclusivamente de consoantes, começaram a inserir os pontos
representativos das vogais nos seus manuscritos, eles ignoravam
completamente a pronúncia verdadeira do NOME. Em consequência, deram-lhe
o som de Adonai e a grafia Ja-hovah. Assim, esta última forma é apenas uma
fantasia, uma adulteração do Inefável Nome. E como eles o podiam conhecer?
Certamente, em cada nação, os sumos sacerdotes o tinham em sua posse e o
transmitiam aos seus sucessores, como o faz o Brahmâtma hindu antes da sua
morte. Unicamente uma vez ao ano, no dia da expiação, permitia-se que o sumo
sacerdote o pronunciasse num sussurro. Passando por trás do véu, indo para a
câmara interior do santuário, o Santo dos Santos, com lábios trêmulos e olhos
baixos — ele invocava o NOME terrível. A cruel perseguição movida contra os
cabalistas, que receberam as sílabas preciosas como prêmio de toda uma vida
de santidade, deveu-se à suspeita de que eles abusariam dele. No início deste
capítulo contamos a história de Shimon ben Yohai, uma das vítimas desse
conhecimento sem preço e vimos quão pouco ele merecia esse tratamento.
O Livro de Jasher, uma obra — como nos disse um teólogo hebraico de Nova
York — que foi composta na Espanha no século XII como “um conto popular” e
que não possuía “a sanção do Colégio Rabínico de Veneza”, está eivada de
alegorias cabalísticas, alquímicas e mágicas. * Admitindo-o, é preciso dizer que
há pouquíssimos contos populares baseados em verdades históricas. The
Norsemen in Iceland, do Dr. G. W. Dasent, também é uma coleção de contos
populares, mas eles contêm a chave do culto religioso primitivo dos
escandinavos. O mesmo se dá com o Livro de Jasher. Ele contém todo o Velho
Testamento em forma condensada, tal como o reuniam os samaritanos, isto é,
os cinco Livros de Moisés sem os Profetas. Embora rejeitado pelos rabinos
ortodoxos, não podemos deixar de pensar que, como no caso dos Evangelhos
apócrifos, que foram escritos antes dos canônicos, o Livro de Jasher é o original
verdadeiro de que a Bíblia subsequente foi composta em parte. Mas os
Evangelhos apócrifos e Jasher são uma série de contos religiosos, em que um
milagre sucede a outro milagre, e se narram as lendas populares como foram
criadas pela primeira vez, sem considerar qualquer cronologia ou dogma. Ambos
são pedras angulares das religiões mosaica e cristã. É evidente que existia um
Livro de Jasher anterior ao Pentateuco mosaico, pois ele é mencionado em
Josué, Isaías e 2 Samuel.
* Consultar, em relação ao Livro de Jasher, a nota do Org., no vol. I, tomo II, de Ísis sem véu. (N.
do Org.)

Em nenhum outro lugar se mostra tão claramente a diferença entre os eloístas e


os jeovistas. Jehovah é aqui aquilo mesmo que dele falam os ofitas, um Filho de
Ialdabaôth, ou Saturno. Neste Livro, os magos egípcios, quando o Faraó lhes
perguntou “Quem é esse de que Moisés fala como o Eu sou?”, respondem que
“temos ouvido que o Deus dos hebreus é um filho do sábio, o filho de reis antigos”
(cap. LXXXIX, 45). [104] Pois bem, aqueles que afirmam que Jasher é uma
fantasia do século XII — e nós acreditamos firmemente nisso — deveriam
explicar o curioso fato de que, ao passo que o texto acima não se encontra na
Bíblia a resposta a ele está, e está, além disso, vazada em termos inequívocos.
Em Isaías, XIX, 11, o “Senhor Deus” lamenta-se furiosamente ao profeta e diz:
“Certamente os príncipes de Zoan são tolos, o conselho dos sábios conselheiros
do Faraó está-se tornando estúpido; como direis ao Faraó que eu sou o filho do
sábio, o filho de antigos reis?” — o que é evidentemente uma réplica. Em Josué,
X, 13, faz-se uma referência a Jasher, em corroboração da asserção ultrajante
de que o Sol e a Lua estavam parados até que o povo se vingasse. “Não está
escrito no Livro de Jasher?” diz o texto. E em 2 Samuel, I, 18, o mesmo livro é
novamente citado. “Vede”, diz ele, “está escrito no Livro de Jasher”.
Evidentemente, Jasher deve ter existido; devia ser considerado uma autoridade;
deve ter sido mais velho que Josué; e, dado que o versículo de Isaías aponta
infalivelmente para a passagem citada acima, temos pelo menos, com muita
razão, de aceitar a edição corrente de Jasher como uma transcrição, um excerto
ou uma compilação da obra original, como temos de reverenciar o Pentateuco
septuagista como os anais sagrados hebraicos primitivos.
De qualquer modo, Jeová não é o Ancião dos Anciães a que alude o Zohar, pois
o vemos, nesse livro, aconselhando-se com Deus Pai em relação à criação do
Mundo. “O senhor da obra falou ao Senhor. Façamos o homem à nossa imagem”
(Zohar, I, fol. 25). Jeová é apenas o Metatron e talvez nem seja o mais superior
dos Aeôns, mas apenas um deles, pois aquele a quem Onkelos chama Memra,
a “Palavra”, não é o Jeová exotérico da Bíblia, nem Yahve, ‫יהוה‬, o Ser Supremo.

Foi o sigilo dos cabalistas primitivos, ansiosos por esconder à profanação o


Nome verdadeiro, e, mais tarde, a prudência que os alquimistas e os ocultistas
medievais foram compelidos a adotar para salvar suas vidas — foi isso que
causou a confusão inextricável dos Nomes divinos. Foi isso o que levou o povo
a aceitar o Jeová da Bíblia como o nome do “Deus vivente Único”. Todo ancião
ou profeta judeu, e até mesmo outros homens de qualquer importância,
conhecem a diferença; mas, como a diferença reside na vocalização do “nome”,
e a sua pronúncia correta leva à morte, nenhum iniciado o revelou ao povo
comum, pois não queria arriscar a sua vida ao ensiná-lo. Assim, a divindade
sinaítica foi aos poucos sendo considerada idêntica a “Aquele cujo nome só é
conhecido do sábio”. Quando Capellus traduz “quem quer que pronuncie o nome
de Johovah sofrerá pena de morte”, ele comete dois erros. [105] O primeiro ao
acrescentar a letra final h ao nome, se ele quer que essa divindade seja
considerada masculina ou andrógina, pois a letra torna o nome feminino, como
realmente devia ser, considerando que é um dos nomes de Binah, a terceira
emanação; seu segundo erro está em afirmar que a palavra nokeb significa
apenas pronunciar distintamente. Ela significa pronunciar corretamente. Em
consequência, o nome bíblico Jehovah deve ser considerado apenas um
sucedâneo que, pertencendo a um dos “poderes”, veio a ser visto como do
“Eterno”. Há um erro evidente (um dos muitos) em um dos textos do Levítico,
que foi corrigido por Cahen e que prova que a interdição não concernia de
maneira alguma ao nome exotérico de Jehovah, cujos numerosos nomes
também podiam ser pronunciados sem se incorrer em qualquer pena de morte.
[106] Na viciosa versão inglesa, a tradução diz: “E aquele que blasfemar o nome
do Senhor, será certamente condenado à morte”, Levítico, XXIV, 6. Cahen traduz
mais corretamente por: “E aquele que blasfemar o nome do Eterno, será
condenado”, etc. O “Eterno” é algo mais elevado do que o “Senhor” exotérico e
pessoal. [107]
Como nas nações gentias, os símbolos dos israelitas estavam relacionados,
direta e indiretamente, ao culto do Sol. O Jehovah exotérico da Bíblia é um deus
dual, como os outros deuses; e o fato de Davi — que ignora completamente
Moisés — glorificar seu “Senhor” e lhe assegurar que o “Senhor é um grande
Deus, e um grande Rei acima de todos os deuses”, [108] deve ter grande
importância para os descendentes de Jacó e de Davi, mas seu Deus nacional
não nos interessa de maneira alguma. Para nós, o “Senhor Deus” de Israel
merece o mesmo respeito que Brahmâ, Zeus ou qualquer outra divindade
secundária. Mas recusamos, muito enfaticamente, reconhecer nele a Divindade
adorada por Moisés ou o “Pai” de Jesus, ou mesmo o “Inefável Nome” dos
cabalistas. Jehovah talvez seja um dos Elohim, que estavam implicados na
formação (que não é criação) do universo, um dos arquitetos que construíram a
partir da matéria preexistente, mas ele nunca foi a Causa “Incognoscível” que
criou (‫ברא‬, bara) na noite da Eternidade. Esses Elohim primeiro formam e
bendizem, para depois amaldiçoar e destruir; como um desses Poderes,
Jehovah é alternadamente benéfico e maléfico; num momento ele pune e depois
se arrepende. É o contratipo de muitos dos patriarcas — de Esaú e de Jacó, os
gêmeos alegóricos, emblemas do duplo princípio manifesto da Natureza. É
assim que Jacó, que é Israel, é a coluna esquerda — o princípio feminino de
Esaú, que é a coluna direita e o princípio masculino.” Quando luta com Malach-
Iho, o Senhor, é este que se transforma na coluna direita, a quem Jacó-Israel
chama Deus, embora os intérpretes da Bíblia tenham tentado transformá-lo num
mero “anjo do Senhor” (Gênese, XXXII). Jacó vence-o — como a matéria
costuma vencer o espírito — mas seu músculo é deslocado na luta.
O nome de Israel deriva de Isaral ou Asar, o Deus-Sol, conhecido como Suryal,
Sûrya e Sur. Isra-el significa “o que luta com Deus”. “O Sol que ascende sobre
Jacó-Israel” é o Deus-Sol Isaral, que fecunda a matéria ou Terra, representada
pelo Jacó-feminino. Como de costume, a alegoria tem mais de um significado
oculto na Cabala. Esaú, Aesaou, Asu também é o Sol. Como o “Senhor”, Esaú
luta com Jacó e não vence. O Deus-Sol primeiro luta contra ele e depois se eleva
sobre ele em sinal de aliança.
“E quando passou por Penuel, o Sol se ergueu sobre ele e ele [Jacó] coxeava
de uma perna” (Gênese, XXXII, 31). Israel-Jacó, oposto ao seu irmão Esaú, é
Samael e “os nomes Samael e Azâzêl e Satã” (o opositor).
Se nos afirmassem que Moisés não estava familiarizado com a filosofia hindu e,
portanto, não pôde tomar Siva, regenerador e destruidor, como modelo para o
seu Jehovah, então teríamos de admitir que havia alguma intuição universal
miraculosa que propiciou que toda a nação escolhesse para sua divindade
nacional exotérica o tipo dual que encontramos no “Senhor Deus” de Israel.
Todas estas fábulas falam por si mesmas. Siva, Jehovah, Osíris — todos são
símbolos do princípio ativo da Natureza par excellence. São as forças que
presidem a formação ou regeneração da matéria e a sua destruição. São os tipos
da Vida e da Morte, sempre fecundando e decompondo sob a influência
continuada da anima mundi, Alma intelectual Universal, espírito invisível mas
onipresente que está por trás da correlação de forças cegas. Só esse espírito é
imutável; portanto, as forças do universo, causa e efeito, estão sempre em
harmonia perfeita com essa grande Lei Imutável. A Vida Espiritual é o princípio
primordial superior; a Vida Física é o princípio Primordial inferior, mas eles são
apenas uma única vida em seu aspecto dual. Quando o Espírito se desliga
completamente dos grilhões da correlação e sua essência se torna pura para se
reunir à sua CAUSA, ele pode — quem pode dizer se ele realmente o deseja —
vislumbrar a Verdade Eterna. Até então, não construamos ídolos à nossa
imagem e não confundamos a sombra com a Luz Eterna.
O maior erro do século foi tentar uma comparação dos méritos relativos de todas
as religiões antigas e zombar das doutrinas da Cabala e de outras superstições.
Mas a verdade é mais estranha do que a ficção; e este adágio velho como o
mundo aplica-se ao caso em questão. A “sabedoria” das épocas arcaicas ou da
“doutrina secreta” da Cabala Oriental, da qual, como dissemos, a rabínica é
apenas um resumo, não morreu com os filaleteus da última escola eclética. A
Gnose ainda subsiste sobre a terra e seus fiéis são muitos, embora
desconhecidos. Essas irmandades secretas foram mencionadas antes da época
de MacKenzie por mais de um grande autor. Se elas foram consideradas como
meras ficções do romancista, esse fato contribuiu para que os “irmãos-adeptos”
mantivessem mais facilmente seu caráter incógnito. Conhecemos pessoalmente
muitos deles que, para seu grande contentamento, tiveram a história de suas
Lojas, as comunidades em que viveram e os poderes maravilhosos que
exerceram por muitos anos, ridicularizados e negados por céticos que não
sabiam sequer com quem estavam conversando. Alguns desses irmãos
pertencem a pequenos grupos de “viajantes”. Até o término do feliz reinado de
Luís Felipe, eram pomposamente chamados pelos camareiros e pelos
comerciantes parisienses de nobles étrangers e tidos inocentemente como
“boiardos”, “gospodars”, valaquianos, “nababos” indianos e “margraves”
húngaros, que acorriam à capital do mundo civilizado para admirar os seus
monumentos e para participar das suas dissipações. Há, todavia, alguns
suficientemente insanos para relacionar a presença de alguns desses hóspedes
misteriosos em Paris com os grandes eventos políticos ocorridos logo depois.
Lembramos pelo menos, como coincidências bastante notáveis, a irrupção da
Revolução de 93 e a explosão da Bolha do Mar do Sul logo depois do surgimento
de “nobres estrangeiros”, que convulsionaram Paris por períodos mais ou menos
longos, por suas doutrinas místicas ou por seus “dons sobrenaturais”. Os Saint-
Germain e os Cagliostro deste século, tendo aprendido amargas lições com as
diatribes e as perseguições do passado, seguem hoje táticas diferentes.
Há muitas irmandades secretas que não se relacionam com os chamados países
civilizados e mantêm oculta em seu seio a milenar sabedoria. Estes adeptos
poderiam, se quisessem, testemunhar a incalculável antiguidade de sua origem,
com documentos comprobatórios que esclareceriam muitos pontos obscuros da
história, tanto sagrada como profana. Mas se os padres da Igreja houvessem
conhecido as chaves dos escritos hieráticos e o significado dos simbolismos
egípcio e indiano, seguramente não escaparia à mutilação nenhum monumento
antigo, ainda que a casta sacerdotal tivesse tido o bom cuidado de anotar em
seus secretos anais hieroglíficos tudo quanto com eles se relacionava. Estes
anais se conservam ainda, por mais que não sejam do domínio público, e contêm
o histórico de monumentos desaparecidos para sempre das vistas dos homens.
Das quarenta e sete tumbas reais existentes nas cercanias de Gornah,
registradas pelos sacerdotes egípcios em seus anais sagrados, apenas quinze
eram conhecidas do público, segundo Diodoro Sículo, [109] que visitou o local
por volta do ano 60 a.C. Não obstante essa evidência histórica, afirmamos que
todas elas existem até hoje e que a tumba real descoberta por Belzoni, [110] entre
as montanhas arenosas de Bibân al-Mulûk (Melech?) é apenas um espécime
frágil de todo o resto. Acrescentaremos, além disso, que os árabes-cristãos, os
monges, espalhados ao redor de seus conventos pobres e desolados situados
na fronteira do grande deserto líbio, sabem da existência dessas relíquias não
expostas. Mas eles são coptas, remanescentes únicos da verdadeira raça
egípcia, e, como a natureza copta predomina sobre a cristã, eles permanecem
em silêncio e não nos cabe dizer por que razão. Acreditam que suas vestimentas
monacais são apenas um disfarce e que escolheram esses lares desolados entre
áridos desertos e cercados por tribos maometanas por intenções posteriores.
Seja como for, são tidos em grande estima pelos monges gregos da Palestina
— e há um rumor corrente entre os peregrinos cristãos de Jerusalém, que
acodem ao Santo Sepulcro por ocasião de toda Páscoa, segundo o qual o fogo
sagrado do céu nunca desce tão miraculosamente como quando esses monges
do deserto comparecem para fazê-lo vir com suas preces. [111]
“O Reino dos Céus” sofre violência, e o violento o toma pela força.” [112] Muitos
são os candidatos que se postam às portas daqueles que supõem conhecer o
caminho que leva às irmandades secretas. A grande maioria tem sua admissão
recusada e se consola em interpretar a recusa como uma evidência da
inexistência dessa sociedade secreta. Da minoria aceita, mais de dois terços
fracassam prova após prova. A sétima regra das antigas irmandades rosa-cruzes
— que é universal entre todas as verdadeiras sociedades secretas: “o rosa-cruz
torna-se e não é feito” — é mais do que a generalidade dos homens pode aceitar
ser aplicada a si mesmos. Mas não se acredite que os candidatos que fracassam
divulguem ao mundo o pouco que aprenderam, como o fazem os maçons.
Ninguém sabe melhor do que eles quão desagradável é o fato de um neófito falar
sobre o que lhe foi transmitido. Assim, essas sociedades prosseguirão o seu
trabalho e ouvirão a respeito de sua negação sem replicar uma única palavra,
até o dia em que sairão de sua reserva e mostrarão quão completamente são os
mestres os donos da situação.
Notas
[1] Muitas são as maravilhas registradas como ocorridas após a sua morte, ou melhor, após o
seu translado, pois ele não morreu como os outros morrem, mas desapareceu subitamente;
uma luz estonteante enchia a caverna com glória, ao passo que seu corpo foi visto novamente
quando a luz se apagou. Quando essa luz celeste deu lugar à semi-escuridão habitual da sombria
caverna — então, diz Ginsburg —, “os discípulos de Israel perceberam que a lâmpada de Israel
se apagara”. [The Kabbala, etc., cap. I.] Os seus biógrafos contam-nos que vozes vindas do Céu
foram ouvidas durante a preparação do seu funeral e do seu sepultamento. Quando o ataúde foi
baixado à profunda cova escavada para ele, uma chama brotou dele e uma voz poderosa e
majestosa pronunciou as seguintes palavras: “Este é o que faz a terra tremer e os reinos
estremecer!” [Zohar, III, p. 96; edição Mântua.]

[2] Rob. Plot, The Natural History of Staffordshire, Oxford, 1686.

[3] La Kabbale, I, III, p. 132-33; edição de 1843.

[4] Ibid., I, I, p. 56.

[5] [Cf. Clemente de Alexandria, Strom., v, 670.]

[6] Conta ele que o Rabino Eleazar, na presença de Vespasiano e de seus oficiais, expulsou
demônios de muitos homens só em aplicando ao nariz do endemoninhado uma das inúmeras
raízes recomendadas pelo Rei Salomão! O famoso historiador acrescenta que o Rabino arrancou
os diabos pelas narinas dos pacientes em nome de Salomão e pelo poder das encarnações
elaboradas pelo rei-cabalista. — Antiquities, VIII, II, 5.

[7] Há milagres inconscientes que se produzem às vezes e que, como os fenômenos agora
chamados de “espiritistas”, são causados por poderes cósmicos naturais, mesmerismo,
eletricidade, e pelos seres invisíveis — humanos ou espíritos elementares — que
constantemente atuam ao nosso redor.

[8] Ela data de 1540. E em 1555 ergueu-se uma grita geral contra ela em algumas partes de
Portugal, Espanha e outros países. [Cf. Michelet e Quinet, Des Jésuites, p. 194; 6ª edição, Paris,
1844.]

[9] Extratos de seu Arrest foram compilados numa obra de 4 volumes, 12 mo., que apareceu em
Paris em 1762, conhecida como Extraits des assertions, etc. Numa obra intitulada Réponse aux
assertions, os jesuítas tentaram lançar o descrédito aos fatos coligidos pelos Comissários do
Parlamento Francês, em 1762, dizendo serem eles produtos maliciosos. “Para corroborar a
validade das acusações”, diz o autor de The Principles of the Jesuits, “as Bibliotecas das duas
Universidades, do British Museum e do Sion College, procuraram os autores citados; e, sempre
que se pôde encontrar o volume citado, estabeleceu-se a exatidão das citações.” [P. v-vi.]

[10] Theologia Moralis, Lugduni, 1663, tomo IV, livro 28, seção 1, de praecept. 1, cap. 20, nº 184,
p. 25.

[11] Ibid., seção 2, de praecept. 1, probl. 113, nº 584, p. 77.


[12] Richard Arsdekin, Theologia tripartita universa, Colônia, 1744, tomo II, Parte II, Tr. 5, c. 1,
§2, nº 4.

[13] Theologia moralis (...) nunc pluribus partibus aucta à R. P. Claudio Lacroix, Societatis Jesu,
Colônia, 1757. [Coloniae Agrippinae, 1733, ed. British Museum.]

[14] Tomo II, livro III, parte I, tr. 1, c. 1, dub. 2, resol. viii. Pena que o conselho para a defesa não
se lembrasse de citar essa legalização ortodoxa do “engano pela quiromante ou de outra
maneira”, por ocasião da recente perseguição religiosa-científica movida contra o médium Slade,
em Londres.

[15] G. B. Nicolini, History of the Jesuits, p. 30.

[16] Royal Masonic Cyclopaedia, p. 369.

[17] Imago primi saeculi Societatis Jesu, Antuérpia, 1640, livro I, cap. 3, p. 64.

[18] Pedro Alagona, St. Thomae Aquinatis Summae Theologiae Compendium, Ex prima
secondae, Quaest 94.

[19] Antonio Escobar, Universae Theologiae Moralis receptiores, absque lite sententiae, etc.,
Lugduni, 1652 (ed. Bibl. Acad. Cant.), tomo I, livro 3, seção 2, probl. 44, nº 212. “Idem sentio,
breve illud tempus ad unius horae spatium traho. Religiosus itaque habitum demittens assignato
hoc temporis interstitio, non incurrit excommunicationem, etiamsi dimittat non solum ex causa
turpi, scilicet fornicandi aut clam aliquid abripiendi, sed etiam ut incognitus ineat lupanar.” —
Probl. 44. nº 213.

[20] Parte II, tr. 2, c. 31, p. 286.

[21] Ver The Principies of the Jesuits, Developed in a Collection of Extracts from their own
Authors, Londres, 1839.

[22] Da Pastoral do Arcebispo de Cambrai.

[23] Ver Talmude de Jerusalém, cap. 7, etc.

[24] A. Franck, La Kabbale, 1843, p. 78.

[25] [Cap. LXI, §9.]

[26] [Orígenes, Comm. Evang. in Johannis, 59, ed. Huet.]

[27] Charles Anthony Casnedi, Crisis Theologica, Lisboa, 1711, tomo I, disp. 6, seção 2, §1, nº
59.

[28] Ibid.

[29] Ibid., §2, nº 78.

[30] Ibid., seção 5, §1, nº 165.

[31] [Michelet e Quinet, Des Jésuites, p. 285-86; 6ª edição, Paris, 1844.]

[32] Thesis propugnata in regio Soc. Jes. Collegio, celeberrimae Academiae Cadomensis, die
Veneris 30 Jan., 1693. Cadomi, 1693.

[33] Michelet e Quinet (do Collège de France), op. cit., p. 284-85.

[34] Champollion, Lettres, “Hermès Trismégiste”, xxvii.

[35] De culto adorationis libri tres, Mogúncia, 1614, livro III, disp. 1, cap. 2.
[36] Ibid.

[37] [Plínio, Nat. Hist., XXX, ii.]

[38] Egypt’s Place in Universal History, vol. V. p. 94.

[39] Ibid., vol. V, p. 128-29.

[40] “E Deus criou (...) todo nephesh (vida) que se move” (Gênese I, 21), querendo dizer animais;
e (Gênese, II, 7) diz: “E o homem tornou-se um nephesh” (alma vivente) — o que mostra que a
palavra nephesh era aplicada indiferentemente ao homem imortal e à fera mortal. “E eu tomarei
certamente todo o sangue de vossos nepheshim (vidas); eu o tomarei da mão de toda fera e da
mão do homem” (Gênese, IX, 5). “Escapai para o naphsheha (traduzido por escapai para vossa
vida) (Gênese, XIX, 17). “Não o mateis”, lê a versão inglesa (Gênese XXXVII, 21). “Não matemos
seu nephesh” diz o texto hebraico. “Nephesh por nephesh”, diz Levítico (XXIV, 18). “O que matar
um homem morra de morte.” “O que abater o nephesh de um homem” (Levítico, XXIV, 17); e no
versículo 18 e seguintes lê-se: “E o que matar uma fera [nephesh] dará outra em seu lugar; fera
por fera”, onde no texto original está “nephesh por nephesh”.

1 Reis, I, 12; II, 23; III, 11; XIX, 2, 3 — têm nephesh por vida e alma. “Vosso naphsheha por
(seus) naphsha”, explica o profeta em 1 Reis, XX, 39.

Na verdade, a menos que leiamos o Velho Testamento cabalisticamente e compreendamos o


significado ali oculto, há muito pouco a aprender com ele em relação à imortalidade da alma. A
gente comum, dentre os hebreus, não tinha a menor idéia do que fossem alma e espírito, e não
fazia diferença entre vida, sangue e alma, chamando a esta última de “sopro da vida”. E os
tradutores do Rei James fizeram dela uma tal mixórdia, que só um cabalista pode restituir à Bíblia
a sua forma original.

[41] In praecepta Decalogi (ed. da Bibl. Sion), tomo I, livro 4, cap. 2, nºs 7, 8, p. 501.

[42] Summae Theologiae Moralis, Veneza, 1600 (ed. Coll. Sion.), tomo I, livro XIV, de
Irregularitate, cap. 10, nº 3, p. 869.

[43] Opinião de Juan de Dicastillo, De justitia et jure, etc., livro II, tr. 1, Disp. 10, dub. 1, nº 15.

[44] Cursus Theologiae, etc., Duaci, 1642, tomo V, Disp. 36, seção 5, nº 118, p. 544.

[45] Título do mais alto hierofante egípcio.

[46] Crata Repoa Oder Einweihungen in der alten geheimen Gessellschaft der Egyptischen
Priester, Berlim, 1778, p. 17-31.

[47] Mateus, XVI, 18.

[48] Humberto Malhandrini, Ritual of lnitiations, p. 105; Veneza, 1657.

[49] P. 43, 44, nota G. B. Nicoli de Roma, autor de The History of the Pontificate of Pius IX; The
Life of Father Alessandro Gavazzi, etc.

[50] E pediam em nome dAquele que não tinha onde reclinar a cabeça!

[51] Em Egypt’s Place in Universal History, Bunsen fornece o ciclo de 21.000 anos, que ele adota
para facilitar os cálculos cronológicos para a reconstrução da história universal da Humanidade.
Ele demonstra que esse ciclo “na oscilação da eclíptica” chegou ao seu ápice no ano 1240 da
nossa era. E diz:

“O ciclo divide-se (...) em duas metades de 10.500 (ou duas vezes 5.250) anos cada uma.

O início da primeira metade:


O ponto mais alto será..................................................................................................19.760 a. C.

O mais baixo...........................................................................................................................9.260

Consequentemente, a metade da linha descendente

(início do segundo quarto) será.............................................................................................14.510

A metade da linha ascendente (início do quarto quarto)..........................................................4.010

O novo ciclo, que começa no ano de 1240 da nossa era, terminará ao final do seu primeiro quarto,
em 4.010 d. C.”

O Barão explica que, “em números redondos, épocas mais favoráveis ao nosso hemisfério,
desde a grande catástrofe ocorrida na Ásia Central [Dilúvio, 10.000 a.C.], são: os 4.000 anos
anteriores e os 4.000 anos posteriores a Cristo; e o início da primeira época — a única que
podemos julgar, pois a temos diante de nós — coincide exatamente com o início da nossa
consciência de existência contínua” (Egypt’s Place in Universal History, Epílogo, p. 102).

“Nossa consciência” deve significar, supomos, a consciência dos cientistas, que nada aceitam
com base na fé, mas se fundamentam em hipóteses não verificadas. Não dizemos isto em
relação ao autor citado acima, investigador erudito e paladino nobre que é da liberdade da Igreja
Cristã, mas em geral. Bunsen sabe, por experiência própria, que um homem não pode continuar
sendo um cientista honesto se agradar o clero. Mesmo as pequenas concessões que fez em
favor da antiguidade da Humanidade trouxeram-lhe, em 1859, as denúncias mais insolentes, tais
como “Não temos confiança alguma no julgamento do autor (...) ele ainda tem de aprender os
princípios da crítica histórica (...) exagero extravagante e anticientífico”, etc. — encerrado o pio
vituperador às suas eruditas denúncias afirmando ao público que o Barão Bunsen “não sabe
sequer construir uma frase grega” (Quarterly Review, 1859, p. 382-421; ver também Egypt’s
Place in Universal History, capítulo sobre obras egípcias e resenhas inglesas, vol. V, p. 118).
Quanto a nós, lamentamos que o Barão Bunsen não tenha tido oportunidade de examinar a
“Cabala” e os livros bramânicos sobre o zodíaco.

[52] Bunsen, Egypt’s Place, etc., vol. V, 325.

[53] Bunsen, op. cit., vol. V, p. 133-34.

[54] Ibid., ver também Lepsius, Denkmäler aus Aegypten, Abth. III, bl. 276.

[55] [Bunsen, Egypt’s Place, etc., vol. V, p. 134-35.] No capítulo 81 do Ritual, a alma é chamada
de germe da luz e, no 79, de Demiurgo, ou um dos criadores. [Ibid., vol. V, p. 144.]

[56] Apocalipse, XXI, 8.

[57] Não podemos deixar de citar uma observação do Barão Bunsen a respeito da identidade da
“Palavra”, com o “Inefável Nome” dos maçons e dos cabalistas. Explicando o Ritual — do qual
alguns detalhes “se assemelham mais aos encantamentos de um mágico do que aos ritos
solenes, embora um significado oculto e místico lhes possa ter sido agregado” (essa admiração
honesta, é, pelo menos, digna de alguma coisa) —, o autor observa: “O mistério dos nomes, cujo
conhecimento era uma virtude soberana e que, num período posterior, degenerou numa heresia
grosseira [?] dos gnósticos e na magia dos encantadores, parece ter existido não só no Egito,
como em toda parte. Vestígios dela são encontrados na ‘Cabala’ (...) prevaleceram na mitologia
grega e asiática (...)” (Egypt’s Place, etc., vol. V, pp. 135, 147).

Vemos, então, que os representantes da Ciência concordam nesse ponto, pelo menos. Os
iniciados de todos os países têm o mesmo “nome misterioso”. Agora só falta os eruditos
provarem que todo adepto, hierofante, mágico ou encantador (Moisés e Arão inclusive), bem
como todo cabalista, desde a instituição dos Mistérios até a época atual, foi um farsante ou louco
por acreditar na eficácia desse nome.

[58] Ver Capítulo I deste Volume, nota 84.

[59] [Thesis propugnata, positio 9; Codoni, 1693.]

[60] Mémoires pour servir à I’histoire du Jacobinisme, 1797, parte II, cap. XI, p. 375-77.]

[61] Ver The Principles of the Jesuits, Developed in a Collection of Extracts from their own
Authors, Londres: J. G. e F. Rivington, St. Paul’s Churchyard e Waterloo Place, Pall Mall; H. Wix,
31 New Bridge Street, Blackfriars; J. Leslie, Great Queen Street, 1839. Seção xvii, “High Treason
and Regicide”, que contém trinta e quatro extratos do mesmo número de autoridades (da
Companhia de Jesus) sobre essa questão, entre eles a opinião do famoso Robert Bellarmine.
Manuel de Sá diz: “A rebelião de um eclesiástico contra um rei não é um crime de alta traição,
porque ele não é súdito do rei” (Aphorismi confessariorum, Colônia, 1615, ed. Coll. Sion). “Não
é só lícito”, diz John Bridgewater, “ao povo, como também se lhe exige isso como dever, negar
obediência e romper a fidelidade ao príncipe sempre que assim o ordene o vigário de Cristo, que
é o pastor soberano de todas as nações da terra” (Concertatio Ecclesiae Catholicae in Anglia
adversus Calvino Papistas, Resp. fol. 348).

Em De Rege et Regis Institutione Libre Tres, 1640 (ed. Brit. Mus.), Juán Mariana vai mais longe
ainda: “(...) se as circunstâncias permitirem”, diz ele, “será lícito destruir com a espada o príncipe
que tenha sido declarado inimigo público. (...) Nunca acreditarei que obra mal aquele que,
satisfazendo a opinião pública, tente matá-lo” e “matá-lo não só é lícito, mas também uma ação
louvável e gloriosa”. “Est tamen salutaris cogitatio, ut sit principibus persuasum si rempublicam
oppresserint, si vitiis et faeditate intolerandi erunt, ea conditione vivere, ut non jure tantum, sed
cum laude et gloria perimi possint” (livro I, cap. 6, p. 61).

Mas a peça mais delicada do ensinamento cristão está no preceito desse jesuíta, quando ele
argumenta sobre a melhor e mais segura maneira de matar reis e estadistas. “Em minha opinião”,
diz ele, “não se deve dar drogas deletérias a um inimigo, nem misturar um veneno mortal à sua
comida ou bebida. (...) Mas será lícito usar esse método no caso em questão [“aquele que matar
o tirano será tido em alta estima, favorecido e louvado” pois “é glorioso exterminar essa raça
pestilenta e daninha da comunidade dos homens”]; não constranger a pessoa a ser morta a
tomar ela mesma o veneno que, recebido interiormente, o privaria da vida, mas deve-se fazer
que ele seja aplicado exteriormente por outra pessoa sem a sua intervenção; pois, quando o
veneno tem muita força, basta que seja derramado pelo assento ou pelas vestes para que sua
potência cause a morte” (Ibid., livro I, cap. 7, p. 67). Foi assim que Squire tentou contra a vida da
Rainha Elizabeth, por instigação do jesuíta Walpole. Ver É. Pasquier, Le cathéchisme des
jésuites, etc., 1677, p. 350-52; e de Rapin-Thoyras, Histoire d’ Angleterre, 2ª ed., 1733, tomo VI,
livro XVIII, p. 145.

[62] S. von Pufendorf, Le droit dela nature et des gens, Basiléia, 1750, vol. I, livro IV, cap. II, p.
541.

[63] “Igualmente ouvirás o que foi dito aos antigos: Não jurarás falso (...) Eu porém vos digo que
absolutamente não jureis”, etc. “Mas seja o vosso falar, sim, sim; não, não; porque tudo o que
daqui passa é de procedência maligna” (Mateus, V, 33, 34, 37).

[64] Barbeyrac, em suas notas sobre Pufendorf, mostra que os peruanos não possuíam fórmula
de juramento, mas apenas faziam uma declaração diante do Inca e nunca os vimos perjurar.

[65] Pedimos ao leitor que se lembre de que com Cristianismo não queremos dizer os
ensinamentos de Cristo, mas aqueles dos seus pretensos servos — o clero.
[66] Defence of Masonry, do Dr. Anderson, citado por John Yarker em suas Notes on the
Scientific and Religious Mysteries of Antiquity, p. 24.

[67] Devemos incluir entre eles Epifânio, cujo perjúrio levou ao desterro setenta membros da
sociedade secreta que havia traído.

[68] Convenção Antimaçônica dos Estados Unidos: “Obligation of Masonic Oaths”, comunicação
proferida pelo Sr. Hopkins, de Nova York.

[69] John Yarker, Notes on the Scientific and Religious Mysteries of Antiquity; a Gnose e as
escolas secretas da Idade Média; rosa-cruzianismo moderno; e os vários ritos e graus da
maçonaria livre e aceita, Londres, 1872.

[70] [Ovídio, Metam., VII, 180 e s.; Virgílio, Eneida, IV, 517 e s.]

[71] John Yarker, Notes on the Scientific, etc., p. 150.

[72] Proceedings of the Supreme Council of Sovereign Grand Inspectory-General of the Thirty-
third and Last Degree, etc., etc. Realizado na cidade de Nova York, a 15 de agosto de 1876, p.
55.

[73] [Reply to Hon. R. W. Thompson (…) addressed to the American People, Nova York, 1877,
p. 28 e 82.]

[74] Op. cit., p. 169-70.

[75] [History of Freemasonry, p. 688-89.]

[76] [History of the Order of Knights-Templars, Halle, 1860.]

[77] Histoire des sectes religieuses, etc., II, p. 392-428; Paris, 1828.

[78] Notitia codicis graeci evangelium Johannis variatum continentis, Havniae, 1828.

[79] Esta é a razão por que até hoje os membros fanáticos e cabalistas dos nazarenos de Basra
(Pérsia) preservam a tradição de glória, riqueza e poder de seus “Irmãos”, agentes, ou
mensageiros, como os chamam em Malta e na Europa. Mas eles dizem que há alguns que mais
cedo ou mais tarde restaurarão a doutrina do seu Profeta Yôhânân (São João), o filho do Senhor
Jordão, e eliminarão dos corações da Humanidade todo o ensinamento falso.

[80] Os dois grandes pagodes de Mathurâ e Benares foram construídos em forma de cruz, de
braços de extensão igual (Maurice, Indian Antiquities, 1793-1800, vol. III, p. 360-77).

[81] Findel, History of Freemasonry, Apêndice, p. 685.

[82] A Sketch of the Knights Templars and the Knights Hospitallers of St. John of Jerusalem, de
Richard Woof, F. S. A., Comandante da Ordem dos cavalheiros templários maçônicos, p. 70-1.

[83] Findel, History of Freemasonry, Apêndice, p. 690.

[84] [“Speech delivered by Mr. de R.”, 1740; ver a Encyclopädie der Freimauerei, de Lenning, III,
p. 195 e s. Cf. Findel, op. cit., p. 205.]

[85] [Findel, op. cit., p. 206.]

[86] [Histoire de la fondation du Grand Orient de France, Paris, 1812.]

[87] [History of Freemasonry, p. 211.]

[88] [Ibid., p. 446.]

[89] Histoire générale de Ia Franc-maçonnerie, p. 212 e s.


[90] Ver a versão de Faggarel; Éliphas Lévi, La science des esprits; MacKenzie, Royal Masonic
Cyclopaedia; Sepher-Toledoth-Yeshu e outras obras cabalísticas e rabínicas. A história é a
seguinte: Uma virgem chamada Mariam, prometida a um jovem de nome Yôhânân, foi ultrajada
por um outro homem chamado Panthera ou Pandira, diz o Sepher-Toledoth-Yeshu. “Seu
prometido, informado de sua desgraça, abandonou-a, perdoando-a ao mesmo tempo. A criança
que nasceu foi Jesus, chamado Joshua. Adotado por seu tio, o Rabino Jehoshuah, foi iniciado
na doutrina secreta pelo Rabino Elhanan, um cabalista, e depois pelos sacerdotes egípcios, que
o consagraram Sumo Pontífice da Doutrina Secreta Universal, em virtude de suas grandes
qualidades místicas. Após o seu retorno à Judéia, sua erudição e seus poderes excitaram o
ciúme dos Rabinos, que o reprovaram em público pelo seu nascimento e insultaram sua mãe.
Daí as palavras atribuídas a Jesus, em Caná: ‘Mulher, que tenho eu a ver convosco?’” (Ver João,
II, 4). Como os seus discípulos o tivessem censurado por essa indelicadeza para com sua mãe,
Jesus se arrependeu e, ouvindo dela os detalhes da história, declarou que “Minha mãe não
pecou, ela não perdeu a sua inocência; ela é imaculada e, contudo, é mãe. (...) Quanto a mim,
não tenho pai neste mundo, sou o Filho de Deus e da Humanidade!” Sublimes palavras de
confiança e fé no Poder inobservado, mas quão fatal foi a milhões e milhões de homens mortos
por elas não terem sido compreendidas completamente!

[91] Falamos do Capítulo Rosa-cruz Americano.

[92] [Mateus, XVI, 18.]

[93] Pitágoras.

[94] [Apocalipse, VII, 2, 3; XIV, 1.]

[95] O primeiro Grande Capítulo foi instituído em Filadélfia em 1797.

[96] J. G. Findel, History of Freemasonry, p. 253.

[97] [Findel, op. cit., p. 258, Cf. Prof. Woog, Journal für Freimaurer, Viena, 1786, vol. III, 3ª parte,
p. 147.]

[98] [Ibid.]

[99] Cf. Yarker, Notes on the Scientific and Religious Mysteries of Antiquity, p. 153.

[100] Ver 2 Reis, XXIII, 7, texto hebraico e inglês, especialmente o primeiro. Na cerimônia de
recebimento do grau de Kadosh, o orador pronuncia um discurso a respeito da descendência da
maçonaria através de Moisés, Salomão, dos essênios e dos templários. Os cavalheiros Kadosh
cristãos poderiam obter alguma luz a respeito da espécie de “Templo” que seus ancestrais
desejavam, de acordo com essa descendência genealógica, se consultarem o versículo 13 do
mesmo capítulo citado acima.

[101] Ver É. Lévi, Dogme et rituel, etc., I, cap. II.

[102] Yeva é Heva, a contrapartida feminina de Jehovahh-Binah.

[103] [Êxodo, V. 2.]

[104] Encontramos um ponto bastante sugestivo em conexão com essa denominação de


Jehovah “Filho de antigos Reis” na seita jainista do Indostão, conhecida como os Sauryas. Eles
admitem que Brahma é um Devatâ, mas negam seu poder criador e o chamam de “Filho de um
Rei”. Ver Asiatic Researches, vol. IX, p. 279; ed. 1807.

[105] [Cf. MacKenzie, Royal Masonic Cyclop., p. 538.]

[106] Como, por exemplo, Shaddai, Elohim, Tsabaôth, etc.


[107] S. Cahen, La Bible, III, p. 117; ed. 1832.

[108] [Salmos, XCV, 3.]

[109] [Bibliotheca historica, I, 46.]

[110] [G. B. Belzoni, Narratives of the Operations (…) in Egypt and Nubia, etc., p. 224 e s.; 2ª
ed., 1821; Kenrick, Ancient Egypt under the Pharoahs, vol. I, p, 165-67.]

[111] Os monges gregos operam esse “milagre” para o “fiel”, todo ano, na noite de Páscoa.
Milhares de peregrinos estio lá aguardando com seus círios para acendê-los com este fogo
sagrado, que na hora precisa desce da abóbada da capela e volteia sobre o sepulcro em línguas
de fogo, até que cada um dos milhares de peregrinos tenha aceso o seu círio.

[112] [Mateus, XI, 12.]


9
Os Vedas e a Bíblia
“Todas as coisas são governadas no seio desta Tríada.”
JOANNES LYDUS, De mensibus, 20.

“Três vezes giram os céus em seu eixo perpétuo.”


ÓVIDIO, Fasti, IV, 179.

“E disse Balaam a Balak, Edifica-me aqui sete altares, e prepara-me sete


bezerros e sete carneiros.”
— NÚMEROS, XXIII, 1,2.

“Em sete dias, todas as criaturas que me ofenderam serão destruídas por
um dilúvio, mas tu te salvarás numa arca miraculosamente construída.
Toma, por conseguinte (...) e sete varões justos com suas mulheres, e
parelhas de todos os animais, e entra na arca sem temor, porque então,
verás a Deus face a face e todas as tuas perguntas serão respondidas.”
— Bhagavata-Purâna, slokas 32-8, Adhyâya 24, Skandha VIII.

“E disse o Senhor, “Destruirei o homem (...) da face da terra (...) Mas


estabelecerei uma aliança contigo (...) Vai com tua família para a arca (...)
Porque, passados ainda sete dias, farei chover sobre a terra.”
— Gênese, VI, 7, 18; VII, 1.

“A Tetraktys não era venerada apenas por conter em si todas as


sinfonias, mas também porque nela radica a natureza de todas as
coisas.”
— Téon de Esmirna, Mathem., p. 147.

Quase todos os mitos baseiam-se


em alguma grande verdade
Nossa tarefa não terá sido bem lograda se os capítulos anteriores não tiverem
demonstrado que o Judaísmo, o Gnosticismo, o Cristianismo e mesmo a
maçonaria cristã foram construídos com base em mitos, símbolos e alegorias
cósmicas idênticas, cuja plena compreensão só é possível àqueles que
herdaram a chave original.
Nas páginas que seguem, tentaremos mostrar como tais mitos, símbolos e
alegorias foram mal-interpretadas pelos sistemas totalmente diversos, mas
intimamente relacionados, acima mencionados, a fim adaptá-los às suas
necessidades individuais. Esta demonstração não apenas beneficiará ao
estudioso, mas renderá igualmente um ato de justiça, há muito negado, mas de
extrema necessidade, às gerações antigas cujo gênio merece o respeito da raça
humana. Comecemos cotejando uma vez mais os mitos da Bíblia, com os dos
livros sagrados das outras nações, para ver o que é original, e o que é cópia.

A origem do domingo cristão


Há apenas dois métodos que, corretamente explicados, nos podem ajudar em
nossa tarefa. São eles — a literatura védico-bramânica e a Cabala judaica. A
primeira, por ser de espírito mais filosófico, concebeu esses grandiosos mitos; a
segunda, emprestando-os dos caldeus e dos persas, moldou-os numa história
da nação judia, na qual seu espírito filosófico foi ocultado de todos, exceto os
eleitos, e sob uma forma muito mais absurda do que a que os Âryas lhe haviam
dado. A Bíblia da Igreja cristã é o último receptáculo desse esquema de alegorias
desfiguradas que foi erigido num corpo de superstições, as quais jamais
integraram as concepções daqueles de quem a Igreja obteve seu conhecimento.
As ficções abstratas da Antiguidade, que por séculos encheram a fantasia
popular com sombras bruxuleantes e imagens incertas, assumiram no
Cristianismo as formas de personagens reais e tornaram-se fatos concretos. A
alegoria, metamorfoseada, transforma-se em história sagrada, e o mito pagão
passa a ser ensinado às pessoas como uma narrativa revelada do
relacionamento de Deus com Seu povo eleito.
“Os mitos”, diz Horácio em sua Ars Poetica, “foram inventados pelos sábios para
fortalecer as leis e ensinar as verdades morais.” * Ao passo que Horácio procurou
esclarecer o espírito e a essência dos mitos antigos, Euhemerus pretendia, ao
contrário, que “os mitos eram a história legendária dos reis e dos heróis,
transformados em deuses pela admiração dos povos”. [1] Foi esse último método
que os cristãos seguiram inferencialmente, quando concordaram com a
aceitação dos patriarcas euhemerizados, e os confundiram com homens que
houvessem realmente existido.
* O texto de Ars poetica de Horácio não desvenda qualquer afirmação. Deve haver aqui alguma
referência errada. (N. do Org.)

Mas, em oposição a essa teoria perniciosa, que produziu tantos frutos amargos,
temos uma longa série dos grandes filósofos que o mundo produziu: Platão,
Epicarmo, Sócrates, Empédocles, Plotino, Porfírio, Proclus, Damasceno,
Orígenes, e mesmo Aristóteles. Este último confirmou plenamente a verdade do
que dizemos, ao afirmar que uma tradição da mais alta Antiguidade, transmitida
à posteridade sob a forma de mitos variados, ensina-nos que os princípios
primários da Natureza devem ser considerados como “deuses”, pois o divino
permeia toda a Natureza. Tudo o mais, detalhes e personagens, foram
acrescentados posteriormente para uma compreensão mais clara do vulgo, e
sempre com o objetivo de reforçar as leis inventadas no interesse comum.
Os contos de fadas não pertencem exclusivamente às amas; toda a Humanidade
— exceto os poucos que em todas as épocas lhes compreenderam o sentido
secreto e tentaram abrir os olhos supersticiosos — ouviu tais contos numa forma
ou outra, e, depois de os transformar em símbolos sagrados, chamaram o
resultado de RELIGIÃO!
Tentaremos sistematizar nosso assunto na medida em que a necessidade
sempre presente de traçar paralelos entre as opiniões conflitantes que resultam
dos mesmos mitos o permitir. Começaremos com o livro da Gênese, e
buscaremos seu sentido secreto nas tradições bramânicas e na Cabala caldaico-
judaica.
A primeira lição das Escrituras que nos ensinaram em nossa infância afirma que
Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Por tal motivo,
acredita-se que uma solenidade peculiar esteja vinculada ao sétimo dia, e os
cristãos, adotando as rígidas observâncias do Sabbath judaico, no-lo impingiram,
com a substituição do primeiro, e não do sétimo dia da semana.
Todos os sistemas de misticismo religioso se baseiam nos números. Para
Pitágoras, a Monas, a unidade, emanando a Díada, e assim formando a trindade,
e a quaternidade, o Arba-il (o quatro místico), compõe o número sete. A
sacralidade dos números tem início no grande Primeiro — o UM —, e termina
apenas com o zero — símbolo do círculo infinito que representa o universo.
Todos os números intermediários, em qualquer combinação, ou mesmo
multiplicados, representam idéias filosóficas, desde o esboço impreciso até o
axioma científico definitivamente estabelecido, que se relacionam a um fato
físico ou moral da natureza. Eles são uma chave para as antigas concepções
sobre a cosmogonia, em seu sentido amplo, que inclui o homem e as coisas, e
a evolução da raça humana, tanto espiritual como fisicamente.
O mundo sete é o mais sagrado de todos, e é, indubitavelmente, de origem
hindu. Tudo que tinha alguma importância foi calculado e moldado nesse número
pelos filósofos arianos — tanto as idéias como as localidades. Assim, eles tinham
os:
Sapta-Rishis, ou sete sábios, que simbolizam as sete raças primitivas e
diluvianas (pós-diluvianas, como dizem alguns).
Sapta-Lokas, os sete mundos inferiores e superiores, donde provinha cada um
dos Rishis, e para onde retornava gloriosamente antes de alcançar a beatitude
final da Moksha. [2]
Sapta-Kulas, ou sete castas — com os brâmanes pretendendo representar os
descendentes diretos da mais elevada de todas. [3]
Além disso, há também Sapta-Puras (sete cidades sagradas); Sapta-Dvîpas
(sete ilhas sagradas); Sapta-Samudras (os sete mares sagrados); Sapta-
Parvatas (as sete montanhas sagradas); Sapta-Aranyas (os sete desertos);
Sapta-Vrikshas (as sete árvores sagradas); e assim por diante.
Na Magia caldaico-babilônica, esse número reaparece de modo tão notável
quanto entre os hindus. O número é dual em seus atributos, i. e., sagrado em
um de seus aspectos, torna-se nefasto sob outras condições. Tal é o caso da
seguinte encantação, que encontramos gravada nas tabuinhas assírias, e agora
fielmente interpretadas.
“A tarde de mau-agouro, a região do céu, que produz a desgraça (...)
“Mensagem da peste.
“Depreciador de Nin-Ki-gal.
“Os sete deuses do vasto céu.
“Os sete deuses da vasta terra.
“Os sete deuses das radiosas esferas.
“Os sete deuses das legiões celestes.
“Os sete deuses maléficos.
“Os sete fantasmas — maus.
“Os sete fantasmas de flamas maléficas (...)
“Demônio mau, alal mau, gigim mau, tilol mau (...) deus mau, maskim mau.
“Espírito de sete céus, lembrai-vos (...) Espírito de sete terras, lembrai-vos
(...), etc.” [4]

Esse número reaparece igualmente em quase todas as páginas do Gênese e


em todos os livros mosaicos, e encontramo-lo de forma notável (ver o capítulo
seguinte) no Livro de Jó e na Cabala oriental. Se os semitas hebreus o adotaram
tão facilmente, devemos inferir que não o fizeram às cegas, mas com pleno
conhecimento de seu sentido secreto; é por essa razão que eles devem ter
adotado as doutrinas de seus vizinhos “pagãos”. É, portanto, natural que
busquemos na filosofia pagã a interpretação desse número, que reaparece
novamente no Cristianismo com os sete sacramentos, as sete igrejas na Ásia
Menor, nos sete pecados capitais, nas sete virtudes (quatro cardeais, e três
teológicas), etc.
Teriam as sete cores prismáticas do arco-íris vistas por Noé outro significado
além da aliança entre Deus e o homem para refrescar a memória deste último?
Para o cabalista, pelo menos, elas têm um significado inseparável dos sete
trabalhos da Magia, as sete esferas superiores, as sete notas da escala musical,
os sete números de Pitágoras, as sete maravilhas do mundo, as sete eras, e os
sete passos dos maçons, que levam ao Santo dos Santos, depois de passar
pelos vôos do três e do cinco.
De onde procede portanto a identidade desses números enigmáticos, que se
acham em todas as páginas das Escrituras judaicas, assim como em todo ola e
sloka dos livros budistas e bramânicos? De onde vêm esses números que são a
alma do pensamento de Pitágoras e de Platão, e que nenhum orientalista não-
iluminado, e nenhum estudante da Bíblia jamais foi capaz de penetrar? Mesmo
que tivessem eles a chave, não a saberiam utilizar. Em parte alguma como na
Índia foi tão bem compreendido o valor místico da linguagem humana, ou tão
perfeitamente entendido ou explicado o seu efeito sobre a ação humana, como
pelos autores dos Brâhmanas mais antigos, em que, não obstante a sua remota
antiguidade, se expõem de forma assaz concreta as especulações metafísicas
abstratas de seus próprios ancestrais.
Tal é o respeito que os brâmanes mostravam pelos mistérios sacrificais que,
segundo sua concepção, o próprio mundo veio à existência como consequência
de uma “palavra sacrifical” pronunciada pela Primeira Causa. Essa palavra é o
“Inefável Nome” dos cabalistas, que discutimos extensamente no capítulo
anterior.
O segredo dos Vedas, por mais “Conhecimento Sagrado” que estes possam ser,
é impenetrável sem a ajuda dos Brâhmanas. Corretamente falando, os Vedas
(que estão escritos em verso e distribuídos em quatro livros) constituem essa
porção chamada de Mantra, ou oração mágica, e os Brâhmanas (que são em
prosa) contêm a sua chave. Ao passo que apenas a parte do Mantra é sagrada,
a porção dos Brâhmana contém todas as exegeses teológicas, e as
especulações e as explicações sacerdotais. Nossos orientalistas, repetimos,
jamais farão qualquer progresso substancial na compreensão da literatura
védica enquanto não derem o devido valor a obras que agora desprezam, como,
por exemplo, a Aitareya-Brâhmana e a Kaushîtaki-Brâhmana, que pertencem ao
Rig-Veda.
Zoroastro era chamado de Manthran, ou recitador de Mantras, e, segundo Haug,
um dos nomes mais antigos para as Escrituras Sagradas dos Pârsîs era
Mânthra-speñta. O poder e o significado do brâmane que age como Hotri-
sacerdote no sacrifício do Soma, consiste na posse e no pleno conhecimento do
uso da palavra sagrada — Vâch. Esta última é personificada por Sarasvatî, a
esposa de Brahmâ, que é a deusa do “Conhecimento Secreto” ou sagrado. É
costume representá-la sentada sobre um pavão com a cauda aberta. Os olhos
sobre as penas da cauda da ave simbolizam os olhos vigilantes que vêem todas
as coisas. Para aquele que tem a ambição de tornar-se um adepto das “doutrinas
secretas”, elas valem como lembrete para que ele tenha os cem olhos de Argos
para ver e compreender todas as coisas.
E é por isso que dizemos que não é possível resolver plenamente os profundos
problemas que subjazem nos livros sagrados bramânicos e budistas sem uma
perfeita compreensão do sentido esotérico dos números pitagóricos. O maior
poder de Vâch, a Palavra Sagrada, se desenvolve de acordo com a forma que é
dada no mantra pelo Hotri oficiante, e essa forma consiste por inteiro nos
números e sílabas do metro sagrado. Se pronunciado lentamente e num certo
ritmo, produz-se um efeito; se rapidamente e com outro ritmo, obtém-se um
resultado diferente. “Cada metro”, diz Haug, “é o mestre invisível de alguma coisa
que se pode obter neste mundo; é, por assim dizer, o seu expoente, o seu ideal.
Esse grande significado da fala métrica deriva do número de sílabas que a
compõe, pois cada coisa tem (assim como no sistema pitagórico) uma certa
proporção numérica (...) Todas essas coisas, metros (chhandas), stomas e
prishthas, conforme se acredita, são tão eternas e divinas como as próprias
palavras que contêm. Os primeiros sacerdotes hindus não apenas acreditavam
numa revelação primitiva das palavras dos textos sagrados, mas também na das
várias formas (...) Essas formas, juntamente com seus conteúdos, as eternas
palavras do Veda, são símbolos expressivos de coisas do mundo invisível, e são,
em muitos aspectos, comparáveis às idéias platônicas.” [5]

A antiguidade dos Vedas


Esse testemunho de uma testemunha involuntária mostra novamente a
identidade entre as religiões antigas, no que diz respeito à doutrina secreta. O
metro Gâyatrî, por exemplo, consiste de três vezes oito sílabas, e é considerado
o mais sagrado dos metros. É o metro de Agni, o deus do fogo, e torna-se às
vezes o emblema do próprio Brahmâ, o criador-mor, e “moldador do homem” à
sua imagem. Ora, Pitágoras diz que “o número oito, ou a octada, é o primeiro
cubo, vale dizer, quadrado em todos os sentidos, como um dado, que precede
de sua base, o dois, ou de qualquer número; assim, o homem é quadrado, ou
perfeito”. Poucos, naturalmente, exceto os pitagóricos e os cabalistas, podem
compreender plenamente essa idéia; mas para sua compreensão pode ajudar a
estreita afinidade dos números com os mantras védicos. Os principais problemas
de toda teologia jazem ocultos sob essa imageria do fogo e do ritmo mutável de
suas chamas. A pira ardente da Bíblia, os outros fogos sagrados, a alma
universal de Platão, e as doutrinas rosa-cruzes que afirmam que tanto a alma
como o corpo do homem estão envolvidos pelo fogo, o elemento inteligente e
imortal que permeia a todas as coisas, e que, de acordo com Heráclito,
Hipócrates e Parmênides, é Deus, têm todos o mesmo significado.
Cada metro nos Brâhmanas corresponde a um número, e, como o mostra Haug,
segundo rezam os volumes sagrados, é um protótipo de alguma forma visível na
terra, e seus efeitos são bons ou maus. A “palavra sagrada” pode salvar, mas
também matar; seus muitos sentidos e faculdades são plenamente conhecidos
apenas do dîkshita (o adepto), que foi iniciado em muitos mistérios, e cujo
“nascimento espiritual” está completamente realizado; a Vâch do mantra é um
poder falado, que desperta outro poder correspondente e ainda mais oculto, cada
um deles personificado por algum deus no mundo dos espíritos, e, conforme o
seu uso, respondido pelos deuses ou pelos Râkshasas (maus espíritos). Nas
idéias bramânicas e budistas, uma maldição, uma bênção, um voto, um desejo,
um pensamento fútil podem assumir uma forma visível, e assim manifestar-se
objetivamente aos olhos de seu autor, ou àquele a quem diz respeito. Todo
pecado se encarna, por assim dizer, e tal como um demônio vingativo, persegue
o seu perpetrador.
Há palavras que têm uma qualidade destrutiva em suas próprias sílabas, como
se fossem coisas objetivas; pois todo som desperta um som correspondente no
mundo invisível do espírito, e a repercussão produz um bom ou um mau efeito.
Um ritmo harmonioso, uma melodia que vibra suavemente na atmosfera, cria
uma doce influência benéfica no meio ambiente, e age poderosamente, tanto
sobre a natureza psicológica, como sobre a natureza física de toda coisa viva na
Terra; ela reage mesmo sobre os objetos inanimados, pois a matéria ainda é
espírito em sua essência, embora possa parecer invisível aos nossos sentidos
grosseiros.
Dá-se o mesmo com os números. Folheemos o que quisermos, dos Profetas ao
Apocalypse, e veremos os autores bíblicos utilizando constantemente os
números três, quatro, sete e doze.
No entanto, conhecemos alguns partidários da Bíblia que afirmavam que os
Vedas foram copiados dos livros mosaicos! [6] Os Vedas, que estão escritos em
sânscrito, uma língua cujas regras e formas gramaticais, como confessam Max
Müller e outros eruditos, foram completamente estabelecidas muito antes dos
dias em que a grande onda de emigração os levou da Ásia para o Ocidente,
estão aí para proclamar o seu parentesco com todas as filosofias e instituições
religiosas desenvolvidas posteriormente pelos povos semitas. E quais desses
números ocorrem com mais frequência nos cantos sânscritos, esses sublimes
hinos à criação, à unidade de Deus, e às incontáveis manifestações de Seu
poder? UM, TRÊS e SETE. Leia-se o hino de Dîrghatamas. *
* Há uma incerteza muito grande em relação a este nome. Em A doutrina secreta, II, 97, o termo
ocorre como título de uma obra. Tanto quanto se saiba, essa obra não existe. Dîrghatamas, que
significa “longa noite”, era nome de um sábio védico a quem são atribuídos alguns hinos do
Rigveda. Nascera cego e o Mahâbhârata relata (Adiparva, primeira seção) que a pedido do rei
Bali ele teve cinco filhos com sua esposa Sudeshnâ. (N. do Org.)

“ÀQUELE QUE REPRESENTA A TODOS OS DEUSES.”


“O Deus aqui presente, nosso abençoado patrono, nosso sacrificante, tem um
irmão que se expande pelo ar. Existe um terceiro Irmão a quem aspergimos com
nossas libações de manteiga líquida. É a ele que eu vi, mestre dos homens e
armado de sete raios.” [7]
E ainda:
“Sete Noivas auxiliam a guiar um carro que tem apenas UM eixo, e que é tirado
por um único cavalo que brilha com sete raios. O eixo tem três membros, um
eixo imortal, indestrutível, donde pendem todos os mundos.”
“Às vezes, sete cavalos puxam esse carro de sete rodas, e sete pessoas o
montam, acompanhadas de sete fecundas ninfas da água”. [8]
E o seguinte ainda, em honra do deus do fogo — Agni, que é claramente
mostrado como um espírito subordinado ao Deus ÚNICO.
“Sempre ÚNICO, embora tenha três formas de natureza dupla andrógina — ele
desperta! E os sacerdotes oferecem a Deus, no ato do sacrifício, suas preces
que alcançam os céus, levadas por Agni”. [9]
É isso uma coincidência, ou antes, como nos diz a razão, o resultado da
derivação de muitos cultos nacionais de uma religião primitiva universal? Um
mistério para os não iniciados, o desvelar dos problemas psicológicos e
fisiológicos mais sublimes (porque corretos e verdadeiros) para o iniciado.
Revelações do espírito pessoal do homem que é divino, porque esse espírito
não é apenas a emanação do ÚNICO Deus Supremo, mas é o único Deus que
o homem é capaz, em sua fraqueza e em seu abandono, de compreender — de
sentir em si mesmo. Essa verdade o poeta védico a confessa claramente,
quando diz:
“O Senhor, Mestre do universo e cheio de sabedoria, entrou comigo [em mim] —
fraco e ignorante — e me formou de si mesmo naquele lugar [10] em que os
espíritos obtêm, com auxílio da Ciência, o gozo pacífico do fruto, doce como
ambrosia”. [11]
Se chamamos esse fruto de “maçã” da Árvore do Conhecimento, ou da pippala
do poeta hindu, não importa. Ele é o fruto da sabedoria esotérica. Nosso objetivo
é mostrar a existência de um sistema religioso na Índia muitos milhares de anos
antes de as fábulas exotéricas do Jardim do Éden e do Dilúvio terem sido
inventadas, donde a identidade de doutrinas. Instruídos nelas, cada um dos
iniciados das outras nações tornou-se, por sua vez, o fundador de alguma grande
escola de filosofia no Ocidente.
Qual de nossos eruditos sanscritistas jamais se sentiu interessado em descobrir
o sentido real dos seguintes hinos, palpáveis como são: “Pippala, o doce fruto
da árvore sobre a qual pousam os espíritos que amam a ciência [?] e em que os
deuses produzem maravilhas. Esse é um mistério para aquele que nada sabe
do Pai do mundo”. [12]
Ou ainda este:
“Estas estrofes trazem à testa um título que anuncia que elas são consagradas
aos Visvadevas [isto é, a todos os deuses]. Aquele que não conhece o Ser que
eu canto em todas as suas manifestações, nada compreenderá de meus versos;
aqueles que O conhecem não são estranhos a esta reunião”. [13]
A passagem refere-se à reunião e à separação das partes imortal e mortal do
homem. “O Ser imortal”, diz a estrofe anterior, “está no berço do Ser mortal. Os
dois espíritos eternos vão e vêm em toda parte; apenas alguns homens
conhecem a um, sem conhecer ao outro” (Dîrghatamas).
Quem pode dar uma idéia correta daquEIe de quem diz o Rig-Veda: “Aquele que
é UM, o sábio o invoca de diversas maneiras.” Esse Um é cantado pelos poetas
védicos em todas as suas manifestações na Natureza; e os livros considerados
“infantis e tolos” ensinam a como invocar voluntariamente os seres de sabedoria
para a nossa instrução. Eles ensinam, como diz Porfírio: “uma libertação de
todas as coisas terrenas (...) um vôo do só para o SÓ”.
O Prof. Max Müller, cujas palavras são aceitas por sua escola como um
evangelho filológico, está absolutamente certo, num sentido, quando, ao
determinar a natureza dos deuses hindus, chama-os de “máscaras sem um ator
(...) nomes sem ser, não seres sem nomes”. [14] Pois ele apenas prova dessa
maneira o monoteísmo da antiga religião védica. Mas não acreditamos que ele
ou qualquer cientista de sua escola possa ter a esperança de penetrar o antigo
pensamento ariano, [15] sem um acurado estudo dessas “máscaras”. Para o
materialista, assim como para o cientista, que por várias razões procura
solucionar o difícil problema de conciliar os fatos históricos com suas opiniões
pessoais ou as da Bíblia, elas podem não passar de cascas vazias de fantasmas.
No entanto, tais autoridades serão, para sempre, como no passado, os guias
mais inseguros, exceto nos assuntos da ciência exata. Os patriarcas da Bíblia
são tão “máscaras sem atores”, como os prajâpatis, e, no entanto, se a
personagem viva atrás dessas máscaras não passa de uma sombra abstrata, há
uma idéia encarnada em cada uma delas, a qual diz respeito às teorias filosóficas
e científicas da sabedoria antiga. [16] E quem pode render melhor serviço a essa
tarefa do que os brâmanes nativos, ou os cabalistas?
Negar redondamente qualquer filosofia profunda nas especulações bramânicas
sobre o Rig-Veda equivale a recusar para sempre a correta compreensão da
própria religião-mãe, que lhes deu origem e que é a expressão do pensamento
interior dos ancestrais diretos desses autores tardios dos Brâhmanas. Se os
sábios europeus podem mostrar com tanta facilidade que todos os deuses
védicos não passam de máscaras vazias, eles podem também demonstrar que
os autores bramânicos foram tão incapazes como eles de descobrir esses
“atores” em algum lugar. Isto feito, não apenas os três outros livros sagrados,
que Max Müller afirma “não merecerem o nome de Vedas”, mas o próprio Rig-
Veda torna-se uma mixórdia incompreensível de palavras; pois o que o intelecto
universalmente louvado e sutil dos antigos sábios hindus não conseguiu
compreender, nenhum cientista moderno, embora erudito, terá a esperança de
penetrar. O pobre Thomas Taylor estava certo quando disse que “a filologia não
é filosofia”.
Para dizer o mínimo, é ilógico admitir que há um pensamento oculto na obra
literária de uma raça talvez etnologicamente diferente da nossa, e depois, negar
que ele tenha qualquer sentido, visto que ele é completamente incompreensível
para nós, cujo desenvolvimento, durante os vários milhares de anos
intervenientes, se bifurcou numa direção absolutamente contrária. Mas é isso
precisamente o que fazem, com o devido respeito à sua erudição, o Professor
Max Müller e sua escola. Em primeiro lugar, somos informados de que, embora
cautelosamente e com algum esforço, ainda podemos caminhar nas pegadas
dos autores dos Vedas. “Teremos a sensação de estar face a face com homens
que ainda podemos compreender, depois de nos termos livrado de nossos
conceitos modernos. Não conseguiremos sempre; palavras, versos, ou melhor,
hinos inteiros do Rig-Veda serão para nós uma letra morta.” Pois, com
pouquíssimas exceções, “(...) o mundo das idéias védicas está tão longe de
nosso horizonte intelectual, que, ao invés de traduzir, só podemos conjecturar e
supor”. [17]
No entanto, para não nos deixar nenhuma dúvida quanto ao verdadeiro valor de
suas palavras, o sábio erudito, em outra passagem, expressa sua opinião sobre
esses mesmos Vedas (com uma exceção), nas seguintes palavras: “O único
Veda real e importante é o Rig-Veda. Os outros chamados Vedas (...) merecem
tanto o nome de Veda, quanto o Talmud o nome de Bíblia”. O Professor Müller
rejeita-os como indignos da atenção de alguém, e, conforme o entendemos,
porque contêm principalmente “fórmulas sacrificais, encantamentos e
conjuros”. [18]
Ocorre-nos, porém, uma pergunta muito natural: Está qualquer um de nossos
eruditos preparado para demonstrar que está intimamente familiarizado com o
sentido oculto dessas “fórmulas sacrificais, encantamentos e conjuros”
perfeitamente absurdos, e a magia abstrusa do Atharva-Veda? Não o
acreditamos, e nossa dúvida se baseia na confissão do próprio Prof. Müller,
acima citado. Se “o mundo das idéias védicas [o Rig-Veda não pode ser incluído
com exclusividade nesse mundo, ao que supomos] está tão longe de nosso [dos
cientistas] horizonte intelectual que, ao invés de traduzir, só podemos conjecturar
e supor”; e se o Yajur-Veda, o Sama-Veda e o Atharva-Veda são “infantis e
tolos”; [19] e se os Brâhmanas, os Sûtras, Yâska e Sâyana, “embora mais
próximos cronologicamente dos hinos do Rig-Veda, incorrem nas interpretações
mais frívolas e insensatas”, [20] como pode ele, ou qualquer outro erudito formar
qualquer opinião adequada sobre eles? Se, além disso, os autores dos
Brâhmanas, os mais próximos cronologicamente dos hinos védicos, eram já
incompetentes para oferecer coisa melhor do que “interpretações insensatas”,
então em que período da história, quando, e por quem, foram escritos esses
grandiosos poemas, cujo sentido místico morreu com as suas gerações?
Estaremos, portanto, errados, ao afirmar que, se os textos encontrados no Egito
se tornaram — mesmo aos escribas de há 4.000 anos — totalmente
ininteligíveis, [21] e os Brâhmanas oferecem apenas interpretações “infantis e
tolas” do Rig-Veda, tão antigo, pelo menos, quanto aqueles, 1º, ambas as
filosofias religiosas, do Egito e da Índia, são de uma antiguidade incontável,
muito mais antigas do que os séculos cautelosamente atribuídos a elas por
nossos estudiosos de mitologia comparada; e 2º, os reclamos dos sacerdotes
antigos do Egito e dos brâmanes modernos, quanto à sua idade, são, em suma,
corretos.
Não poderemos jamais admitir que os três outros Vedas são menos dignos do
nome do que o Rig (hinos), ou que o Talmude e a Cabala são tão inferiores à
Bíblia. O próprio nome dos Vedas (cujo sentido literal é conhecimento ou
sabedoria) mostra que eles pertencem à literatura daqueles homens que, em
todos os países, idiomas e séculos, falaram como “aqueles que sabem”. Em
sânscrito, a terceira pessoa do singular é veda (ele sabe), e o plural é vidus (eles
sabem). A palavra veda é sinônima do grego θεοσέβεια, que Platão utiliza quando
fala dos sábios — os mágicos; e do hebraico Hakhamim, ‫( חכמים‬homens sábios).
Se rejeitássemos o Talmude e o seu antigo predecessor, a Cabala, seria
simplesmente impossível até mesmo traduzir com correção uma só palavra
dessa Bíblia tão encomiada às suas expensas. Mas é a isto, talvez, que os seus
defensores se propõem. Banir os Brâhmanas é sepultar a chave que abre a porta
do Rig-Veda. A interpretação literal da Bíblia já deu os seus frutos; com os Vedas
e com os livros sagrados em sânscrito, em geral, se dará talvez o mesmo, com
a diferença de que a interpretação absurda da Bíblia recebeu um venerando
direito de eminente domínio no departamento do ridículo e ainda dispõe de
defensores, contra a razão e contra as provas. Quanto à literatura “pagã”, após
mais uns poucos anos de fracassadas tentativas de interpretação, seu sentido
religioso será relegado ao limbo das superstições rejeitadas, e as pessoas não
mais ouvirão falar dela.
Gostaríamos que nos compreendessem com toda a clareza antes de nos
criticarem pelas observações acima. O vasto saber do célebre professor de
Oxford dificilmente pode ser questionado pelos seus próprios inimigos, mas
temos o direito de lamentar sua precipitação em condenar o que ele próprio
confessa estar “longe de nosso próprio horizonte intelectual”. Mesmo naquilo que
ele considera como tolice ridícula da parte do autor dos Brâhmanas, outras
pessoas mais dispostas espiritualmente podem ver exatamente o contrário.
“Quem é o maior dos deuses? Quem será louvado em primeiro lugar por nossos
cantos?”, pergunta um antigo Rishi do Rig-Veda, confundindo (como imagina o
Prof. M.) o pronome interrogativo “Quem” por algum nome divino. Diz o Prof.:
“Confere-se um papel nas invocações sacrificais a um deus ‘Quem’, e os hinos
que lhe são dirigidos chamam-se hinos ‘Quemistas’”. [22] E é um deus “Quem”
menos natural do que um termo como “Eu Sou”, ou os hinos “Quemistas” menos
reverentes dos que os salmos “Eu-souístas”? E quem pode provar que isso é
realmente um erro, e não uma expressão premeditada? É tão impossível
acreditar que o estranho termo se devia precisamente a um temor reverente que
fez o poeta hesitar antes de dar um nome a uma forma que é justamente
considerada como a mais alta abstração dos ideais metafísicos — Deus? Ou,
que esse mesmo sentimento fez o comentador que o seguiu parar e deixar o
trabalho de antropomorfização do “Desconhecido”, do “QUEM”, às futuras
concepções humanas? “Esses poetas primitivos pensavam mais por si mesmos
do que pelos outros” — assinala Max Müller. “Eles procuravam, em sua
linguagem, ser antes verdadeiros ao seu próprio pensamento, do que agradar à
imaginação de seus ouvintes”. [23] Infelizmente, é esse mesmo pensamento que
não desperta nenhum eco nas mentes de nossos filólogos.
Ademais, lemos a seguinte advertência profunda aos estudiosos dos hinos do
Rig-Veda, no sentido de reunir, comparar, peneirar e rejeitar. “Que ele estude os
comentários dos Sûtras, dos Brâhmanas, e mesmo das obras posteriores, a fim
de exaurir todas as fontes de que se podem extrair informações. Ele [o erudito]
não deve desprezar as tradições dos brâmanes, mesmo quando as suas falhas
(...) são palpáveis (...) Nenhum rincão dos Brâhmanas, dos Sûtras, de Yâsha e
de Sâyana deve ser deixado sem exploração, antes que nos aventuremos a
propor uma tradução própria (...) Quando o erudito tiver realizado sua obra, o
poeta e o filósofo deverão tomá-la e terminá-la”. [24]

A doutrina pitagórica das potencialidades dos números


Pobre sorte a de um “filósofo” que tenha de seguir as pegadas de um erudito
filólogo e emendar-lhe os erros! Gostaríamos de ver que sorte de recepção teria
o erudito mais sábio da Índia, do público educado da Europa e da América, se
ele se empenhasse em corrigir um sábio, depois de ter peneirado, aceito,
rejeitado, explicado e declarado o que era bom, e o que era “absurdo e infantil”
nos livros sagrados de seus ancestrais. O que o conclave de sábios europeus e
especialmente alemães declarasse finalmente como sendo “erros bramânicos”
seria tão pouco reconsiderado pelo pândita mais erudito de Benares ou de Ceilão
quanto a interpretação da Escritura judia de Maimônides e Fílon, o Judeu pelos
cristãos, após os Concílios da Igreja terem aceito os erros de tradução e as
explicações de Irineu e Eusébio. Que pândita, ou que filósofo nativo da Índia,
não conhecerá melhor a sua língua ancestral, a sua religião ou a sua filosofia,
do que um inglês ou um alemão? Ou por que não terá um hindu a mesma
autoridade para expor o Bramanismo do que um erudito rabínico para interpretar
o Judaísmo ou as profecias de Isaías? Os tradutores nativos são mais seguros
e mais fidedignos do que os estrangeiros. Não obstante, temos ainda a
esperança de encontrar por fim, mesmo que seja no futuro remoto, um filósofo
europeu que examine os livros sagrados da religião da sabedoria com bastante
acerto, para não ser contraditado por seus colegas.
Entrementes, esquecidos das pretensas autoridades, tentemos examinar, nós
mesmos, alguns desses mitos antigos. Procuraremos uma explicação na
interpretação popular, e sentiremos nosso caminho com a ajuda da lâmpada
mágica de Trismegisto — o misterioso número sete. Deve haver alguma razão
para que esse número tenha sido universalmente aceito como um número
místico de cálculo. Para todos os povos antigos, o Criador, ou Demiurgo, estava
assentado sobre o sétimo céu. “Se tivesse de falar da iniciação em nossos
Mistérios sagrados”, diz o Imperador Juliano, o cabalista, “que os caldeus
consagraram ao Deus dos sete raios, cuja veneração exaltava as almas, diria
coisas desconhecidas, muito desconhecidas do vulgo, mas bem conhecidas dos
Abençoados Teurgistas”. [25] Em Lido, afirma-se que “Os caldeus chamam ao
Deus de IAÔ, e TSABAÔTH é ele amiúde chamado, pois Aquele que está sobre
as sete órbitas [céus, ou esferas], esse é o Demiurgo”. [26]
Precisamos consultar os pitagóricos e os cabalistas para aprender a
potencialidade desse número. Exotericamente, os sete raios do espectro solar
são representados concretamente no deus de sete raios Heptaktys. Esses sete
raios, resumidos em TRÊS raios primários, a saber, o vermelho, o azul e o
amarelo, formam a trindade solar, e simbolizam respectivamente o espírito-
matéria e o espírito-essência. A ciência também reduziu recentemente os sete
raios a três primários, corroborando assim a concepção científica dos antigos de
pelo menos uma das manifestações visíveis da divindade invisível, e o sete
dividido numa quaternidade e numa trindade.
Os pitagóricos chamavam o número sete de veículo da vida, como se ele
contivesse corpo e alma. Eles explicavam tal ponto dizendo que o corpo humano
consistia de quatro elementos principais, e que a alma é tripla, compreendendo
razão, paixão e desejo. A PALAVRA inefável era considerada a Sétima Palavra,
a mais alta de todas, pois há seis substitutas menores, cada qual pertencendo a
um grau de iniciação. Os judeus derivaram seu Sabbath dos antigos, que o
chamavam de dia de Saturno e o consideravam maléfico, e não dos últimos dos
israelitas quando cristianizados. Os povos da Índia, da Arábia, da Síria e do Egito
observavam semanas de sete dias; e os romanos aprenderam o método
hebdomadário dessas nações estrangeiras quando elas se tornaram sujeitas ao
Império. Foi apenas no século IV que as calendas, as nonas e os idos romanos
foram abandonados, e as semanas empregadas em seu lugar; e os nomes
astronômicos dos dias, tais como dies Solis (dia do Sol); dies Lunae (dia da Lua),
dies Martis (dia de Marte); dies Mercurii (dia de Mercúrio), dies Jovis (dia de
Júpiter), dies Veneris (dia de Vênus), e dies Saturni (dia de Saturno) provam que
a semana de sete dias não foi emprestada dos judeus. Antes de examinar
cabalisticamente esse número, propomos analisá-lo do ponto de vista do
Sabbath judaico-cristão.
Quando Moisés instituiu o yom sheba, ou Shebang (Shabbath), a alegoria do
Senhor Deus que repousa de seu trabalho de criação no sétimo dia era apenas
um disfarce, ou, como expressa o Zohar, um manto, para ocultar o verdadeiro
significado.
Os judeus computavam então, como o fazem hoje, os seus dias pelo número, do
seguinte modo: dia, o primeiro; dia, o segundo; e assim por diante; yom a’had;
yom sheni; yom shelishi; yom rebi’i, yom ‘hamishi; yom shishshi; yom shebi’i.
O sete hebraico, ‫שבע‬, que consiste de três letras, sh, b, ô, tem mais de um
significado. Em primeiro lugar, ele significa século, idade ou ciclo, Sheb-ang;
Sabbath, ‫שבת‬, pode ser traduzido por idade antiga, e também por descanso, e
no antigo copta Sabe significa sabedoria, saber. Os arqueólogos modernos
descobriram que como no hebraico shib, ‫שיב‬, também significa de cabeça
grisalha, e que por conseguinte o dia do Saba era o dia em que os “homens de
cabeça grisalha”, ou os “pais antigos” de uma tribo tinham o costume de fazer
reuniões para concílios ou sacrifícios. [27]
Portanto, a semana de seis dias e o sétimo, o período do dia de Sapta ou Saba,
é da mais alta antiguidade. A observância dos festivais lunares na Índia mostra
que essa nação também mantinha encontros hebdomadários. A cada novo
quarto, a Lua produz alterações na atmosfera, e por isso certas modificações
também são produzidas por todo o nosso universo, das quais as meteorológicas
são as mais insignificantes. Por ocasião do sétimo e mais poderoso dos dias
prismáticos, os adeptos da “Ciência Secreta” se encontram, como o faziam há
milhares de anos, a fim de se tornarem os agentes dos poderes ocultos da
Natureza (emanações do Deus operante), em consonância com os mundos
invisíveis. É nessa observância do sétimo dia pelos sábios antigos — não por
causa do dia de descanso da Divindade, mas porque eles lhes compreenderam
o poder oculto — que repousa a profunda veneração de todos os filósofos
pagãos pelo número sete que eles chamam de “venerável”, o número sagrado.
A Tetraktys pitagórica, reverenciada pelos platônicos, consistia num retângulo
colocado sob um triângulo, representando este último — a Trindade — uma
encarnação da Mônada invisível — a unidade, e era tal nome tão sagrado que
só se podia pronunciá-lo dentro das paredes de um Santuário.
A observância ascética do Sabbath cristão pelos protestantes não passa de pura
tirania religiosa, e, conforme tememos, faz muito mais mal do que bem. Ela data,
na verdade, apenas da Lei de Carlos II, [28] que proibia qualquer “comerciante,
artífice, operário, camponês, ou outra pessoa” de “fazer qualquer trabalho
mundano, etc., etc., no dia do Senhor”. Os puritanos levaram tal coisa ao
extremo, aparentemente para assinalar seu ódio ao catolicismo romano e
episcopal. Não estava nos planos de Jesus distinguir um tal dia, como se pode
constatar não apenas por suas palavras, como também por seus atos. Ademais,
os cristãos primitivos não observavam esse preceito.
Quando Trifon, o Judeu, censurava os cristãos por não terem um Sabbath, o que
lhe respondeu o mártir? “A nova lei vos mandará guardar um perpétuo Sabbath.
Por passardes um dia na ociosidade, julgai-vos religioso. O Senhor não se
agrada com tais coisas. Se o perjuro e o fraudulento se arrependerem, se o
adúltero se reformar, guardarão eles o Sabbath que mais agrada a Deus (...) Os
elementos nunca descansam, e não guardam nenhum Sabbath. Se antes de
Moisés não houve necessidade de guardar o Sabbath, tampouco haverá depois
de Jesus Cristo”. [29]
A Heptaktys não é a Causa Suprema, mas simplesmente uma emanação dEle
— a primeira manifestação visível do Poder Não Revelado. “Seu Sopro Divino,
que, surgindo violentamente, se condensou, brilhando com radiância, até que se
transformou em Luz, e assim se tornou visível aos sentidos externos”, diz John
Reuchlin. [30] Tal é a emanação do Supremo, o Demiurgo, uma multiplicidade
numa unidade, os Elohim, que vemos criando nosso mundo, ou antes moldando-
o, em seis dias, e descansando no sétimo. E quem são esses Elohim, senão
poderes evemerizados da Natureza, os fiéis mensageiros manifestos, as leis
daquEIe que é lei e harmonia imutável?
Eles demoram no sétimo céu (ou mundo espiritual), pois foram eles que,
segundo os cabalistas, formaram sucessivamente os seis mundos materiais, ou
melhor, os seis esboços de mundos, que precederam o nosso, que, conforme
dizem, é o sétimo. Se, deixando de lado a concepção metafísico-espiritual,
prestarmos atenção apenas ao problema religioso-científico da criação em “seis
dias”, no qual nossos melhores eruditos da Bíblia tanto meditaram em vão,
poderemos, talvez, desentranhar o sentido oculto dessa alegoria. Os antigos
eram filósofos, congruentes em todas as coisas. Assim, eles ensinavam que
cada um desses mundos, tendo alcançado a sua evolução física, e atingido —
graças a nascimento, crescimento, maturidade, velhice e morte — o fim de seu
ciclo, retornava à sua forma subjetiva primitiva de terra espiritual, servindo,
doravante, por toda a eternidade, como morada daqueles que a haviam habitado
como homens, e mesmo animais, porém que serão agora espíritos. Essa idéia,
embora seja tão difícil de provar quanto a de nossos teólogos relativa ao Paraíso,
é, pelo menos, um pouco mas filosófica.
Assim como o homem, e como todas as outras coisas vivas sobre ele, nosso
planeta está sujeito à evolução espiritual e física. De um impalpável pensamento
ideal sob a Vontade criativa d’AquEle de quem nada sabemos, e que só
podemos conceber obscuramente na imaginação, este globo tornou-se fluido e
semi-espiritual, e então se condensou mais e mais, até que o seu
desenvolvimento físico — matéria, o demônio tentador — o compeliu a tentar
sua própria faculdade criadora. A Matéria desafiou o ESPÍRITO, e a terra teve
também a sua “Queda”. A maldição alegórica sob a qual ele trabalha é que ele
apenas procria, e não cria. Nosso planeta físico é apenas o servo do espírito,
seu patrão. “Maldita é a terra (...) espinhos e cardos ela produzirá”, dizem os
Elohim. “Na dor parirás teus filhos.” [31] Os Elohim dizem isto à terra e à mulher.
E essa maldição perdurará até que a menor partícula de matéria sobre a terra
tenha sobrevivido a seus dias, até que todo grão de pó se tenha transformado,
pela transformação gradual através da evolução, numa parte constituinte de uma
“alma viva”, e até que esta tenha completado o arco cíclico, e finalmente se
deponha — seu próprio Metatron, ou Espírito Redentor — aos pés do patamar
superior dos mundos espirituais, como na primeira hora de sua emanação. Além,
repousa o grande “Abismo” — UM MISTÉRIO!
Deve-se lembrar que toda cosmogonia tem uma trindade de trabalhadores à sua
testa — Pai, espírito; Mãe, Natureza, ou matéria; e o universo manifesto, o Filho,
ou resultado de ambos. O universo, assim como cada planeta que ele
compreende, passa também por quatro idades, como o próprio homem. Todos
têm sua infância, sua juventude, sua maturidade e sua velhice, e essas quatro
idades, acrescentadas a três outras, perfazem novamente o sete.
Os capítulos introdutórios do Gênese nunca pretenderam apresentar sequer
uma remota alegoria da criação de nossa terra. Eles consistem (capítulo I) numa
concepção metafísica de algum período indefinido na eternidade, quando
tentativas sucessivas estavam sendo feitas pela lei de evolução para a formação
de universos. Essa idéia consta com clareza do Zohar: “Houve mundos que
pereceram assim que vieram à existência; eram informes e chamavam-se
chispas. Assim, o ferreiro, quando amolga o ferro, deixa que as chispas voem
em todas as direções. As chispas são os mundos primordiais que não podem
continuar, porque o Ancião Sagrado [Sephîrâh] ainda não assumira a sua forma
[de sexos opostos ou andróginos] de rei e rainha [Sephîrâh e Cadmo] e o Mestre
não se tinha ainda posto a trabalho”. [32]
Os seis períodos, ou “dias” do Gênese referem-se à mesma crença metafísica.
Cinco de tais infrutíferas tentativas foram feitas pelos Elohim, mas a sexta
resultou em mundos como o nosso (i. e., todos os planetas e muitas estrelas são
mundos, e habitados, embora não como nossa terra). Tendo formado este
mundo por fim no sexto período, os Elohim descansaram no sétimo. Assim, o
“Sagrado”, quando criou o presente mundo, disse: “Este me agrada; os
anteriores não me agradavam”. [33] E os Elohim “viram tudo que ele havia feito,
e consideraram que era bom. E a tarde e a manhã foram o sexto dia”. — Gênese,
I, 31.
O leitor deverá lembrar-se de que no Capítulo IV se explicou o sentido do “dia” e
da “noite” de Brahmâ. O primeiro representa um certo período de atividade
cósmica; a segunda, um período igual de repouso cósmico. Num, os mundos
estão em evolução, e passam pelas quatro idades de existência; noutro, a
“inspiração” de Brahmâ reverte a tendência das forças naturais; o visível
dispersa-se gradualmente; instala-se o caos; e uma longa noite de repouso
revigora o cosmos para o seu termo seguinte de evolução. Na manhã de um
desses “dias”, os processos formativos atingem gradualmente o seu clímax de
atividade; à tarde, os mesmos processos diminuem imperceptivelmente, até que
chega o pralaya, e, com ele, a “noite”. Uma manhã e uma tarde constituem de
fato um dia cósmico; e era num “dia de Brahmâ” que pensava o autor cabalista
do Gênese quando dizia: “E a tarde e a manhã foram o primeiro (ou quinto, ou
sexto, ou qualquer outro) dia”. Seis dias de evolução gradual, um de repouso, e
então — a tarde! Desde a primeira aparição do homem sobre a nossa terra, tem
sido o tempo um Sabbath eterno de repouso para o Demiurgo.

Os “Dias” da Gênese e os “Dias” de Brahmâ


As especulações cosmogônicas dos primeiros seis capítulos do Gênese se
demonstram nas raças dos “filhos de Deus”, “gigantes”, etc., do capítulo VI.
Propriamente falando, a história da formação de nossa Terra, de nossa “criação”,
como a chamam de forma assaz inadequada, começa com o resgate de Noé das
águas do dilúvio. As tábuas caldaico-babilônicas recentemente traduzidas por
George Smith não deixam nenhuma dúvida do que passava pela mente daqueles
que liam esotericamente as inscrições. Ishtar, a grande deusa, fala na coluna III
da destruição do sexto mundo, e do surgimento do sétimo, nos seguintes termos:
“Por seis dias e noites, dominaram o vento, o dilúvio e a tempestade.
“No sétimo dia, a tempestade se acalmou, e cessou o dilúvio,
“que a tudo havia destruído como um terremoto, [34]
“Ele fez o oceano secar-se, e pôs fim ao vento e ao dilúvio. (...)
“Eu percebi a costa no limite do mar. (...)
“Ao país de Nizir veio a nau [argha, a lua].
“a montanha de Nizir deteve a nau. (...)
“O primeiro dia, e o segundo dia, a montanha de Nizir fez o mesmo. (...)
“O quinto, o sexto, a montanha de Nizir fez o mesmo.
“No curso do sétimo dia
“Enviei uma pomba e ela se foi. A pomba foi e voltou, e (...) o corvo foi (...) e não
voltou. (...)
“Ergui um altar no topo da montanha.
“cortei sete ervas, e em sua base depus bambus, pinhos e especiarias. (...)
“os deuses acudiram como moscas para o sacrifício.
“Da antiguidade também o grande Deus em seu curso.
“o grande fulgor [o Sol] de Anu criou. [35] Quando a glória desses deuses sobre
o amuleto em torno do meu pescoço eu não deixaria (...), [36] etc.
Tudo isso tem uma relação puramente astronômica, mágica e esotérica. Quem
quer que leia essas tábuas reconhecerá de pronto o conteúdo bíblico, e julgará,
ao mesmo tempo, quanto foi desfigurado o grande poema babilônico por
personagens eveméricas — degradadas de suas elevadas posições de deuses
em simples patriarcas. O espaço nos impede de entrar profundamente nessa
caricatura bíblica das alegorias caldaicas. Lembraremos apenas ao leitor que
pela confissão das testemunhas mais insuspeitas — como Lenormant, primeiro
o inventor e depois o campeão dos acádios — a tríada caldaico-babilônica
colocada sob Ilon, a divindade não revelada, é composta de Anu, Nuah e Bel.
Anu é o caos primordial, o deus, simultaneamente, do tempo e do mundo, χρόνος
e κόσμος, a matéria incriada oriunda do princípio fundamental de todas as coisas.
Quando a Nuah, ele é, de acordo com o mesmo orientalista:
“(...) a inteligência, diremos de bom grado o verbum, que anima e fecunda a
matéria, que penetra o universo, que o dirige e o faz viver; e Nuah é ao mesmo
tempo o rei do princípio úmido; o Espírito que se move sobre as águas”.
Não é isto evidente? Nuah é Noé, que flutua sobre as águas, em sua arca, sendo
esta o emblema de argha, a Lua, o princípio feminino; Noé é o “espírito” que cai
na matéria. Assim que desce à Terra, ele planta uma vinha, bebe do vinho e se
embebeda; i. e., o espírito puro fica intoxicado na medida em que é finalmente
aprisionado na matéria. O sétimo capítulo do Gênese não passa de outra versão
do primeiro. Assim, enquanto este diz: “(...) e as trevas cobriam o abismo. E o
espírito de Deus pairava sobre as águas”, no sétimo capítulo lê-se: “(...) e as
águas subiram (...) e a arca [com Noé — o espírito] flutuava sobre as águas”. [37]
Assim, Noé, se [identificado com] o Nuah caldeu, é o espírito que vivifica a
matéria, que ademais é o caos representado pelo Abismo ou as Águas do
Dilúvio. Na lenda babilônica, é Ishtar (Astoreth, a Lua) que é encerrada na arca
e que envia uma pomba (emblema de Vênus e de outras deusas lunares) em
busca de terra seca. E enquanto nas tábuas semitas é Xisuthros ou Hasisadra
que é “levado à companhia dos deuses por sua piedade”, na Bíblia é Henoc que
caminha com os deuses e é por eles levado “para sempre”.
A existência sucessiva de um incalculável número de mundos antes da
subsequente evolução do nosso próprio planeta, constitui uma crença de todos
os povos antigos. A punição dos cristãos, por terem despojado os judeus de seus
registros e recusado a verdadeira chave para a sua interpretação, teve início nos
primeiros séculos. E assim é que encontramos os santos padres da Igreja
trabalhando com uma cronologia impossível e com os absurdos da interpretação
literal, ao passo que os rabinos eruditos estavam perfeitamente a par do
significado real de suas alegorias. Não apenas no Zohar, mas também em muitas
outras obras cabalísticas aceitas pelos talmudistas, tal como Midrash Berêshîth
Rabbah, ou o Gênese universal, que, com o Merkabah (o carro de Ezequiel),
compõem a Cabala, pode-se encontrar a doutrina segundo a qual toda uma série
de mundos evolui do caos, e é sucessivamente destruída.
As doutrinas hindus falam de dois Pralayas, ou dissoluções; uma universal, o
Mahâ-Pralaya, a outra parcial, ou Pralaya menor. Isto não diz respeito à
dissolução universal que ocorre ao fim de todo “Dia de Brahmâ”, mas aos
cataclismos geológicos ao fim de todo ciclo menor de nosso globo. Esse dilúvio
histórico e local da Ásia Central, cujas tradições podem ser traçadas em todos
os países, e que, de acordo com Bunsen, ocorreu por volta do ano 10.000, nada
tem a ver com o Noé, ou Nuah, mítico. Um cataclismo parcial ocorre ao término
de toda “idade” do mundo, dizem elas, e não destrói a este, mas apenas lhe
modifica a aparência geral. Novas raças de homens e animais e uma nova flora
têm origem na dissolução das precedentes.
As alegorias da “queda do homem” e do “dilúvio” são as características mais
importantes do Pentateuco. Elas são, por assim dizer, o Alfa e o Ômega, as
chaves superior e inferior da escala de harmonia na qual ressoa o majestoso
hino da criação da Humanidade, pois revelam àquele que interroga a Zura
(figurado, Gemaria), o processo da evolução humana desde a entidade espiritual
mais elevada até o homem pós-diluviano mais inferior; como nos hieróglifos
egípcios, em que cada signo da escrita pictográfica que não pode ser relacionado
a uma determinada figura geométrica circunscrita deve ser rejeitado, por se tratar
de um véu erguido deliberadamente pelo hierogramatista sagrado, muitos dos
detalhes da Bíblia podem ser tratados com base no mesmo princípio, aceitando-
se uma parte apenas quando responde aos métodos numéricos ensinados na
Cabala.

A queda do homem e o dilúvio nos livros hindus


O dilúvio figura nos livros hindus apenas como uma tradição. Não tem nenhum
caráter sagrado, e o encontramos no Mahâbrârata, nos Purânas, e ainda antes
no Satapatha, um dos últimos Brâhmanas. É mais do que provável que Moisés,
ou quem quer que tenha escrito por ele, utilizou esses relatos como base de sua
própria alegoria propositadamente desfigurada, acrescentando-lhe ademais a
narrativa caldaico-berosiana. No Mahâbrârata, reconhecemos Nimrod sob o
nome do King Daitya. A origem da fábula grega dos Titãs escalando o Olimpo, e
a da outra sobre os construtores da Torre de Babel que procuram alcançar o céu,
acha-se no ímpio Daitya, que lança imprecações contra o relâmpago do céu, e
tenta conquistar o próprio céu com seus poderosos guerreiros, trazendo dessa
forma para a Humanidade a ira de Brahmâ. “O Senhor então resolveu”, diz o
texto, “castigar as suas criaturas com uma terrível punição que serviria como
uma advertência para os sobreviventes, e os seus descendentes.”
Vaivasvata (que na Bíblia torna-se Noé) salva um pequeno peixe, que vem a ser
um avatâra de Vishnu. O peixe avisa ao justo homem que o globo está prestes
a ser submerso, que tudo que o habita deve perecer, e ordena-lhe que construa
um barco no qual embarcará, com toda a sua família. Quando o barco está
pronto, e Vaivasvata encerrado nele com sua família, com as sementes das
plantas e com os pares de todos os animais, e a chuva começa a cair, um
gigantesco peixe, armado com um corno, se coloca à testa da arca. O santo
homem, seguindo suas ordens, amarra uma corda ao seu corno, e o peixe guia
o navio com segurança através dos elementos em revolta. Na tradição hindu, o
número de dias durante os quais durou o dilúvio concorda exatamente com o do
relato mosaico. Quando os elementos se acalmaram, o peixe depôs a arca no
topo do Himâlaya.
Muitos comentadores ortodoxos afirmam que essa fábula foi emprestada das
Escrituras mosaicas. [38] Mas, se um cataclismo universal como esse tivesse
ocorrido à memória humana, alguns dos monumentos egípcios, dos quais muitos
são de uma tremenda antiguidade, teriam com certeza registrado essa
ocorrência, juntamente com a da desgraça de Cão, Canaã e Mizraim, seus
pretensos ancestrais. Mas até o presente não se encontrou a menor alusão a tal
calamidade, embora Mizraim certamente pertença à primeira geração pós-
diluviana, se é que ele próprio não seja pré-diluviano. Por outro lado, os caldeus
preservaram a tradição, como o testemunha Berosus, e os hindus antigos
possuem a lenda tal como dada acima. Ora, há apenas uma explicação para o
extraordinário fato de que de duas nações civilizadas e contemporâneas como
Egito e Caldéia, uma não tenha preservado nenhuma tradição a respeito, embora
tivesse um interesse direto na ocorrência — se acreditamos na Bíblia —, e a
outra sim. O dilúvio relatado na Bíblia, em um dos Brâhmanas, e nos Fragmentos
de Berosus, [39] dá notícia do dilúvio parcial que, por volta do ano 10.000,
segundo Bunsen, e de acordo também com as computações bramânicas do
Zodíaco, mudou toda a face da Ásia Central. [40] Portanto, os babilônios e os
caldeus poderiam ter tido dele conhecimento através de seus misteriosos
convidados, batizados por alguns assiriólogos de acádios, ou, o que é ainda mais
provável, eles próprios talvez tenham sido os descendentes daqueles que
haviam habitado as localidades submersas. Os judeus tomaram a narrativa dos
caldeus, assim como tudo o mais; os brâmanes podem ter registrado as
tradições das terras que invadiram, e que eram talvez habitadas antes de eles
terem dominado o Puñjâb. Mas os egípcios, cujos primeiros colonos vieram
evidentemente da Índia setentrional, tinham menos razões para registrar o
cataclismo, visto que ele talvez jamais os tenha afetado, exceto indiretamente,
pois o dilúvio se limitou à Ásia Central.
Burnouf, comentando o fato de que a história do dilúvio se acha apenas em um
dos Brâhmanas mais modernos, pensa também que ela deve ter sido tomado
pelos hindus das nações semitas. Contra tal suposição, enfileiram-se todas as
tradições e costumes dos hindus. Os Âryas, e especialmente os brâmanes,
jamais tomaram o que quer que seja dos semitas, e aqui somos apoiados por
uma dessas “testemunhas involuntárias”, como chama Higgins aos partidários
de Jeová e da Bíblia. “Jamais vi coisa alguma na história dos egípcios e dos
judeus”, escreve o Abade Dubois, após quarenta anos residindo na Índia, “que
me induzisse a acreditar que uma dessas nações ou qualquer outra na face da
Terra se tenha estabelecido mais cedo do que os hindus e particularmente os
brâmanes; portanto, não posso acreditar que estes últimos tenham tomado seus
ritos de nações estrangeiras. Pelo contrário, deduzo que eles os extraíram de
uma fonte original e própria. Quem quer que conheça algo do espírito e do
caráter dos brâmanes, e sua majestade, o seu orgulho e extrema vaidade, a sua
distância e seu soberano desrespeito por tudo o que é estrangeiro e pelo que
eles não podem orgulhar-se de ser os inventores, concordará comigo em que tal
povo não pode ter consentido em tomar seus costumes e regras de conduta de
um país alienígena”. [41]
A fábula que menciona o primeiro avatâra — Matsya — diz respeito a outro yuga,
diferente do nosso, o do primeiro aparecimento da vida animal; talvez, quem
sabe, ao período devoniano de nossos geólogos. Ela com certeza corresponde
melhor a esse período do que o ano 2348 a.C! Além disso, a própria ausência
de qualquer menção ao dilúvio nos livros mais antigos dos hindus sugere um
poderoso argumento quando só podemos nos haver com inferências, como
neste caso. “Os Vedas e Manu”, diz Jacolliot, “esses monumentos do antigo
pensamento asiático, existiam muito tempo antes do período diluviano; esse é
um fato indiscutível, e tem todo o valor de uma verdade histórica, pois, além da
tradição que mostra o próprio Vishnu salvando os Vedas do dilúvio — tradição
que, não obstante a sua forma lendária, deve certamente repousar num fato real
—, é bem evidente que nenhum desses livros sagrados faz menção ao
cataclisma, ao passo que os Purânas e o Mahâbhârata, e um grande número de
outras obras mais recentes, o descrevem com profusão de detalhes, o que é
uma prova da anterioridade dos primeiros textos. Os Vedas não deixariam
certamente de conter uns poucos hinos sobre o terrível desastre que, mais do
que todas as outras manifestações naturais, deve ter impressionado a
imaginação das pessoas que o testemunharam.
“Nem teria Manu, que nos dá uma completa narrativa da criação, com uma
cronologia das eras divinas e heróicas, até o aparecimento do homem sobre a
Terra — deixado passar em silêncio um evento de tal importância. (...) Manu
(livro I, sloka 35) dá os nomes de dez eminentes santos a quem chama de
prajâpatis; em quem os teólogos bramânicos vêem profetas, ancestrais da raça
humana, e os panditas simplesmente consideram como os dez reis poderosos
que viveram no Krita-yuga, ou a idade do bem (a “era de ouro” dos gregos).” [42]
O último desses prajâpatis é Nârada.
“Enumerando a sucessão desses seres eminentes que, de acordo com Manu,
governaram o mundo, o velho legislador bramânico os designa como
descendentes de Bhrigu: Svârochisha, Auttami, Tâmasa, Raivata, o glorioso
Châkshusha, e o filho de Vivasvat, cada um dos quais se tornou digno do título
de Manu (legislador divino), título que pertencia igualmente aos Prajâpatis e a
todo grande personagem da Índia primitiva. A genealogia detém-se nesse nome.
“Ora, segundo os Purânas e o Mahâbhârata, foi sob um descendente desse filho
de Vivasvat, de nome Vaivasvata, que ocorreu o grande cataclismo; cuja
lembrança, como se verá, passou à tradição, e foi trazida pela emigração a todos
os países do Oriente e do Ocidente que a Índia colonizou desde então. (...)
“Visto que a genealogia dada por Manu pára, como vimos, em Vivasvat, segue-
se que essa obra [a de Manu] nada sabia, seja de Vaivasvata, seja do
dilúvio.” [43]
O argumento é irrespondível; e recomendamo-lo aos cientistas oficiais, que, para
agradar ao clero, contestam qualquer fato que prove a tremenda antiguidade dos
Vedas e de Manu. O Cel. Vans Kennedy [44] declarou há muito que Babilônia foi,
desde a sua origem, a sede da literatura sânscrita e do saber bramânico. E como
e por que teriam os brâmanes lá se fixado, senão como resultado das guerras
intestinas e das migrações da Índia? O relato mais completo do dilúvio acha-se
no Mahâbhârata de Veda-Vyâsa, um poema em honra das alegorias astrológicas
sobre as guerras entre as raças Solar e Lunar. Uma das versões afirma que
Vaivasvata se tornou o pai de todas as nações da Terra por meio de sua
progênie, e essa é a forma adotada pela história de Noé; a outra afirma que —
como Deucalião e Pirra — precisou ele de apenas lançar seixos ao limo deixado
pelas ondas do dilúvio para produzir os homens que quisesse. Essas duas
versões — uma hebraica, e outra grega — não nos dão escolha. Devemos
acreditar que os hindus tomaram ambas as versões seja dos gregos pagãos,
seja dos judeus monoteístas, ou — o que é muito mais provável — que ambas
as nações as tomaram da literatura védica através dos babilônios?
A História fala-nos da corrente de imigração ao longo do Indo, e da sua posterior
invasão do Ocidente, com populações de origem hindu abandonando a Ásia
Menor para colonizar a Grécia. Mas a História não diz uma única palavra sobre
o “povo eleito” ou sobre as colônias gregas que teriam penetrado a Índia antes
dos séculos V e IV a.C., época em que encontramos as primeiras e vagas
tradições que fazem algumas das problemáticas tribos perdidas de Israel tomar,
na Babilônia, a rota para a Índia. Mas mesmo se a história das dez tribos fosse
digna de crédito, e se se provasse que as tribos existiram tanto na história
sagrada como na profana, isso não ajudaria na solução do problema.
Colebrooke, Wilson e outros eminentes indianistas mostram que o Mahâbhârata,
se não o Satapatha-Brâhmana, em que a história também figura, é anterior à
época de Ciro — e, por conseguinte, anterior à época possível do surgimento de
qualquer das tribos de Israel na Índia. [45]

A antiguidade do Mahâbhârata
Os orientalistas fixam a data do Mahâbhârata entre os anos 1.200 e 1.500 a.C.;
quanto à versão grega, ela tem tão poucas evidências quanto a outra, e as
tentativas dos helenistas nessa direção fracassaram por completo. A história
sobre o exército conquistador e Alexandre, que penetrou no noroeste da Índia,
torna-se cada dia mais duvidosa. Nenhum registro hindu, nem a menor atestação
histórica, em toda a extensão da Índia, oferece um traço sequer de tal invasão.
Se mesmo esses fatos históricos não passam hoje, por tudo o que sabemos, de
ficção, o que não devemos pensar das narrativas que trazem em sua própria
face o selo da invenção? Não podemos deixar de simpatizar de coração com o
Prof. Müller quando ele assinala que parece “blasfêmia considerar essas fábulas
do mundo pagão como fragmentos corrompidos e mal interpretados da
Revelação divina outrora dispensada a toda a raça humana”. Mas podemos
afirmar ser esse erudito perfeitamente imparcial e probo para com ambos os
partidos, se não incluir, no número dessas fábulas, as que figuram na Bíblia? E
será a linguagem do Velho Testamento mais pura ou mais moral do que os livros
bramânicos? Ou será qualquer fábula do mundo pagão mais blasfema e ridícula
do que o diálogo de Jeová com Moisés (Êxodo, XXXIII, 23)? Apareceu qualquer
deus pagão de maneira mais diabólica do que o mesmo Jeová em tantas e tantas
passagens? Se os sentimentos de um cristão piedoso se chocam com os
absurdos do Pai Cronos que come seus filhos e mutila a Ouramos; ou de Júpiter
que expulsa Vulcano dos céus e lhe quebra as pernas; por outro lado, ele não
pode se sentir ofendido se um não-cristão ri da idéia de Jacó brigando com o
Criador, que “quando viu que não o dominava”, deslocou o fêmur de Jacó,
agarrando-se ainda o patriarca a Deus, e não O deixando partir, não obstante
Suas súplicas.
Por que seria a história de Deucalião e Pirra, que jogaram pedras às costas, e
assim criaram a raça humana, mais ridícula do que a da mulher de Lot que foi
transformada numa estátua de sal, ou a do Todo-Poderoso que criou o homem
do barro e então lhe soprou o alento de vida? A escolha entre este último modo
de criação e o do deus egípcio com chifres de carneiro que fabricou o homem
numa roda de oleiro é praticamente imperceptível. A história de Minerva, deusa
da sabedoria, que veio à luz após um período de gestação nas coxas do pai, é
pelo menos sugestiva e poética enquanto alegoria. Nenhum grego antigo jamais
foi queimado por não aceitá-la literalmente; e, para todos os efeitos, as fábulas
“pagãs” são em geral muito menos absurdas e blasfemas do que as que foram
impostas aos cristãos, a partir do momento em que a Igreja aceitou o Velho
Testamento, e a Igreja Católica Romana abriu seu registro de santos
taumaturgos.
“Muitos dos nativos indianos”, prossegue o Prof. Müller, “confessam seus
sentimentos de revolta contra as impurezas atribuídas a esses deuses pelo que
eles chamam de escritos sagrados; no entanto há brâmanes dignos de fé que
sustentam que essas histórias têm um sentido mais profundo — visto que a
imoralidade é incompatível com um ser divino, deve-se supor que haja um
mistério oculto nessas consagradas fábulas — um mistério que um espírito
atilado e reverente pode ter a esperança de penetrar.” [46]
É exatamente isso o que afirma o clero quando tenta explicar as indecências e
incongruências do Velho Testamento. No entanto, em vez de atribuir a
interpretação àqueles que têm a chave de tais incongruências, ele chamou para
si o ofício e o direito, por procuração divina, de interpretá-las à sua maneira. E
não só o fez, como também privou gradualmente o clero hebraico dos meios de
interpretar as suas Escrituras como os fizeram seus pais; de modo que é muito
raro encontrar, no presente século, entre os rabinos, um cabalista bem versado.
Os próprios judeus esqueceram a chave! Como poderiam ajudar? Onde estão
os manuscritos originais? O mais antigo manuscrito hebraico ainda existente é o
Codex bodleiano, que não tem mais de oitocentos ou novecentos anos. [47] * O
lapso entre Esdras e esse Codex [48] é portanto de quinze séculos. Em 1490, a
Inquisição fez queimar todas as Bíblias hebraicas; e só Torquemada destruiu
6.000 volumes em Salamanca. Exceto uns poucos manuscritos da Torah
Khethubim e Nebiim, utilizados nas sinagogas, e que são de data recentíssima,
não sabemos de nenhum manuscrito antigo ainda existente que não tenha sido
adulterado, e portanto — completamente desvirtuado e distorcido pelos
masoretas. Se não fosse essa oportuna invenção dos Masorah, nenhuma cópia
do Velho Testamento teria sido provavelmente tolerada em nosso século. É
sabido que os masoretas, quando transcreviam os manuscritos mais antigos, se
deram ao trabalho de cortar, exceto em algumas poucas passagens para as
quais fizeram vista grossa, todas as palavras impudicas, substituindo-as por
sentenças de sua autoria e desse modo alterando completamente o sentido do
versículo. “É claro”, diz J. W. Donaldson, “que a escola masorética de Tiberíade
se ocupou com manejar e remanejar o texto hebraico até a sua publicação final
do próprio Mosarah”. [49] Portanto, se tivéssemos apenas os textos originais —
a julgar pelas atuais cópias da Bíblia de que podemos dispor —, seria realmente
edificante comparar o Velho Testamento com os Vedas, e mesmo com os livros
bramânicos. Acreditamos de fato que nenhuma fé, ainda que cega, poderia
suportar tal avalanche de cruas impurezas e fábulas. Se estas são, não apenas
aceitas, mas impingidas a milhões de pessoas civilizadas que as consideram
respeitáveis e edificantes o bastante para nelas acreditar como revelação divina,
por que nos espantaríamos com o fato de os brâmanes considerarem igualmente
seus livros como uma Sruti, uma revelação?
* Isto se refere sem dúvida à relação de Joannes Uri, que compilou uma obra intitulada Catalogus
Codicum Manuscriptorum Orientalium Bibliothecae Bodleianae, 1781, em três volumes, que
contêm no vol. I uma relação dos manuscritos hebraicos. Na Entrada nº 37 há um Codex do ano
1104. No Catalogue of the Hebrew Manuscripts in the Bodleian Library and in the College
Libraries of Oxford, etc., 1886, 1906, em dois volumes, que é uma relação cronológica, esse
Codex aparece como nº 1 e está marcado ARCH. SELD. A. 47, o que parece indicar que foi
adquirido da coleção de John Selden.

Atualmente, com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, se modificou consideravelmente


a situação dos manuscritos hebraicos primitivos do Velho Testamento. (N. do Org.)

Agradeçamos aos masoretas por todos os meios, mas estudemos ao mesmo


tempo os dois lados da medalha.
Lendas, mitos, alegorias, símbolos, se pertencem à tradição hindu, caldaica ou
egípcia, são lançados à pilha como ficção. Dificilmente são eles honrados com
uma pesquisa superficial sobre suas relações possíveis com a astronomia ou os
emblemas sexuais. Os mesmos mitos — quando e por que mutilados — são
aceitos como Escrituras Sagradas, mais — como Palavra de Deus! É isso
História imparcial? É isso justiça para com o passado, o presente ou o futuro?
“Não podemos servir a Deus e a Mammon”, disse o Reformador, há dezenove
séculos. “Não podemos servir à verdade e ao preconceito público”, deveríamos
dizer com mais propriedade ao nosso próprio século. Contudo, nossas
autoridades pretendem estar a serviço da primeira.
Há poucos mitos em qualquer sistema religioso que não tenham um fundamento
histórico e científico. Os mitos, como afirma corretamente Pococke, “revelam-se
agora como fábulas, apenas na medida em que não os compreendemos; e como
verdades, na medida em que eram outrora entendidos. Nossa ignorância
consiste em ter feito da história um mito; e esta ignorância é uma herança
helênica, consequência da vaidade helênica”. [50]
Bunsen e Champollion já demonstraram que os livros sagrados do Egito são
muito mais antigos do que a parte mais antiga do Livro Gênese. E uma pesquisa
mais cuidadosa parece agora corroborar a suspeita — que para nós é uma
certeza — de que as leis de Moisés são cópias do código do Manu bramânico.
Portanto, segundo todas as probabilidades, o Egito deve sua civilização, suas
instituições civis e suas artes, à Índia. Mas contra essa suspeita temos todo um
exército de “autoridades” enfileiradas, e o que se pode fazer se estas negam o
fato no presente? Mais cedo ou mais tarde, elas terão de aceitá-lo, pertençam à
escola alemã ou à francesa. Entre os eruditos, mas não entre aqueles que fazem
rapidamente um compromisso entre o interesse e a consciência, há uns poucos
destemidos que podem trazer à luz certos fatos incontrovertidos. Há cerca de
doze anos, Max Müller, numa carta ao Editor do Times de Londres (abril de
1857), afirmou com veemência que Nirvâna significa aniquilação, no sentido
pleno da palavra. (Ver Chips, etc., vol. I, p. 279, em “The Meaning of Nirvâna”.)
Mas em 1869, numa conferência por ocasião do congresso geral da Associação
de Filólogos Alemães, em Kiel, “ele declara distintamente sua crença de que o
niilismo atribuído aos ensinamentos de Buddha não faz parte de sua doutrina, e
que é totalmente errôneo supor que Nirvâna significa aniquilação”. (Trübner,
American and Oriental Literary Record, 16 de outubro de 1869; também Inman,
Ancient Faiths and Modern, p. 128.) Mas, se não nos enganamos, o Prof. Müller
era uma autoridade tanto em 1857, quanto em 1869.
“É difícil estabelecer”, diz (agora) o grande erudito, “se o Veda é o mais antigo
dos livros, ou se algumas partes do Velho Testamento não podem remontar à
mesma data, ou até mesmo a antes, dos hinos mais antigos do Veda”. [51] Mas
sua retratação a propósito do Nirvâna permite-nos a esperança de que ele possa
ainda mudar sua opinião também a respeito da questão do Gênese, para que o
público possa ter simultaneamente o benefício da verdade e a sanção de uma
das maiores autoridades européias.
Sabido é que os orientalistas não se puseram de acordo quanto à época de
Zoroastro, e, enquanto a questão não ficar estabelecida, será talvez mais seguro
acreditar implicitamente nos cálculos bramânicos pelo Zodíaco, do que nas
opiniões dos cientistas. Deixando de lado a horda profana de eruditos de nenhum
renome, aqueles que ainda esperam ser escolhidos pela adoração pública como
ídolos simbólicos da liderança científica, onde podemos encontrar, dentre as
autoridades sancionadas do dia, duas que concordem quanto a essa época? Há
a de Bunsen, que situa Zoroastro na Bactriana, e a emigração dos bactrianos ao
Indo em 3794, e o nascimento de Moisés em 1392. [52] Mas é difícil situar
Zoroastro antes dos Vedas, considerando que toda a sua doutrina já se acha nos
Vedas. Na verdade, ele demorou no Afeganistão por um período mais ou menos
problemático antes de cruzar o Puñjâb; mas os Vedas foram iniciados neste
último país. Eles indicam o progresso dos hindus, assim como o Avesta o dos
iranianos. E há a de Haug, que atribui o Aitareya-Brâhmanam — um comentário
especulativo bramânico sobre o Rig-Veda, muito mais recente do que o Veda —
ao período entre 1400 e 1200 a.C., ao passo que os Vedas são por ele situados
entre os anos 2000 e 2400 a.C. Max Müller sugere cautelosamente certas
dificuldades nessa computação cronológica, mas não a nega em absoluto. [53]
Seja como for, e supondo que o Pentateuco foi escrito pelo próprio Moisés —
embora dessa forma ele teria por duas vezes registrado sua morte —, se Moisés
nasceu, como acredita Bunsen, em 1392 a.C., o Pentateuco não poderia ter sido
escrito antes dos Vedas. Especialmente se Zoroastro nasceu em 3784 a.C. Se,
como afirma o Dr. Haug, [54] alguns dos hinos do Rig-Veda foram escritos antes
de Zoroastro ter realizado seu cisma, por volta de 3700 a.C., e Max Müller diz
que “os zoroastristas e os seus ancestrais partiram da Índia durante o período
védico”, como podem algumas partes do Antigo Testamento remontar à mesma
data, “ou até antes dos hinos mais antigos do Veda”?
Concordam em geral os orientalistas em que os âryas, em 3000 a.C., ainda
estavam nas estepes a leste do Cáspio, e unidos. Rawlinson conjectura que eles
“migraram para leste” oriundos da Armênia como centro comum, ao passo que
duas correntes congêneres começaram a migrar, uma para norte, além do
Cáucaso, e outra para oeste, além da Ásia Menor e da Europa. Ele acredita que
os âryas, num período anterior ao século XV antes de nossa era, estavam
“sediados na região banhada pelo Indo Superior”. [55] Daí os âryas védicos
migraram para o Puñjâb, e os âryas zêndicos para oeste, estabelecendo os
países históricos. Mas essa, como as demais, é uma hipótese, e como tal é dada.
Ademais, diz Rawlinson, seguindo evidentemente a Max Müller: “A história
primitiva dos âryas constitui por muitos séculos uma lacuna absoluta.” Mas
muitos brâmanes eruditos declararam ter encontrado traços da existência dos
Vedas já em 2100 a.C.; e Sir William Jones, [56] tomando como guia os dados
astrológicos, situa o Yajur-Veda em 1580 a.C. Isso seria ainda “antes de Moisés”.
É na suposição de que os âryas não deixaram o Afeganistão pelo Puñjâb antes
de 1500 a.C. que Max Müller e outros sábios de Oxford puderam estimar que
partes do Velho Testamento remontam à mesma data, ou até antes, dos hinos
mais antigos do Veda. Por conseguinte, enquanto os orientalistas não nos
puderem indicar a data correta em que viveu Zoroastro, nenhuma autoridade
será mais bem considerada no que respeita à época dos Vedas do que os
próprios brâmanes.

Eram os antigos egípcios de raça ariana?


Sendo por demais sabido o fato de que os judeus tomaram muitas de suas leis
dos egípcios, examinemos quem eram os egípcios. Em nossa opinião — que é,
naturalmente, a de uma pobre autoridade —, eles eram os indianos antigos, e
em nosso primeiro volume citamos passagens do historiador Kullûka-Bhatta que
corroboram tal teoria. É o seguinte o que entendemos por Índia antiga:
Nenhuma região no mapa — exceto talvez a antiga Cítia — é mais incertamente
definida do que a que leva a designação de Índia. A Etiópia é talvez o único
paralelo. Ela era a pátria das raças cuchitas e camíticas, e situava-se a leste da
Babilônia. Tinha outrora o nome de Indostão, quando as raças negras,
adoradoras de Bala-Mahâdeva e Bhavânî-Mahâdevî, dominavam esse país. A
Índia dos primeiros sábios parece ter sido a região localizada nas nascentes do
Oxus e do Jaxartes. Apolônio de Tiana cruzou o Cáucaso ou o Hindu Kush, onde
encontrou um rei que o dirigiu à morada dos sábios — descendentes talvez
daqueles a quem Amiano chama de “Brachmanas da Índia Superior”, e a quem
Hystaspes, o pai de Dario (ou, mais provavelmente, o próprio Darius Hystaspes),
visitou; e, tendo sido instruído por eles, infundiu seus ritos e idéias nas
observâncias mágicas. Essa narrativa sobre Apolônio parece indicar Caxemira
como a região que ele visitou, e os Nâgas — após a sua conversão ao Budismo
— como seus mestres. Nessa ocasião, a Índia ariana não se estendia além do
Puñjâb.
A nosso ver, o maior obstáculo que se antepõe no caminho do progresso da
etnologia sempre foi a tríplice progênie de Noé. Na tentativa de reconciliar as
raças pós-diluvianas com a descendência genealógica de Sem, Cam e Jafé, os
orientalistas cristianóides se lançaram a uma tarefa impossível de cumprir. A
arca de Noé da Bíblia tem sido um leito de Procusto no qual eles procuram a
tudo amoldar. A atenção foi dessarte desviada das verdadeiras fontes de
informação no que respeita à origem do homem, e uma alegoria meramente local
foi erroneamente tomada como um relato histórico emanado de uma fonte
inspirada. Estranha e infeliz escolha! Dentre todos os escritos sagrados das
nações básicas, oriundos do berço primitivo da Humanidade, o Cristianismo
escolheu para seu guia os registros e as escrituras nacionais do povo menos
espiritual talvez da família humana — o semita. Um ramo que nunca foi capaz
de desenvolver, a partir de seus numerosos idiomas, uma língua capaz de
encarnar as idéias do mundo moral e intelectual; cuja forma de expressão e cuja
inclinação mental jamais conseguiu se elevar mais alto do que as figuras de
linguagem puramente sensuais e terrestres; cuja literatura nada deixou de
original, nada que não foi tomado do pensamento ariano; e cuja ciência e filosofia
carecem totalmente das nobres características que caracterizam os sistemas
altamente espirituais e metafísicos das raças indo-européias (jaféticas).
Bunsen [57] mostra que o camita (a língua do Egito) era um depósito da Ásia
ocidental, que continha os germes do semítico e que, portanto, “testemunhavam
a primitiva unidade das raças semitas e arianas”. Devemos lembrar, a esse
respeito, que os povos da Ásia sudoeste e ocidental, incluindo os medas, eram
todos âryas. No entanto, ainda não se provou quem foram os mestres originais
e primitivos da Índia. O fato de que esse período está agora fora do alcance da
história documentária não exclui a probabilidade de nossa teoria de que esses
mestres pertenciam à poderosa raça de construtores, chamada etíopes orientais
ou âryas de pele negra (a palavra ârya significa simplesmente “guerreiro nobre”,
um “bravo”). Eles governaram de modo supremo toda a Índia antiga, enumerada
mais tarde como possessão daqueles que os nossos cientistas chamam de
povos de fala sânscrita.
Esses hindus, ao que se supõe, teriam entrado no país oriundos de noroeste;
conjectura-se que alguns deles teriam trazido consigo a religião bramânica, e a
língua dos conquistadores era provavelmente o sânscrito. Nossos filólogos
trabalharam com esses três magros dados desde que a imensa literatura
sânscrita foi anunciada por Sir William Jones — e sempre com os três filhos de
Noé lhes torcendo o pescoço. Tal é a ciência exata, livre de preconceitos
religiosos! Na verdade, a etnologia teria sido a maior ganhadora, se esse trio
noético tivesse sido posto ao mar antes de a arca alcançar a terra firme!
Os etíopes são geralmente classificados no grupo semita; mas veremos em
seguida que essa classificação não se lhes enquadra bem. Consideraremos
também a sua possível vinculação à civilização egípcia, que, como assinala um
autor, parece ser dotada da mesma perfeição desde os tempos primitivos, não
tendo experimentado a evolução e o progresso, como no caso dos outros povos.
Por razões que agora aduziremos, estamos preparados para afirmar que o Egito
deve a sua civilização, sua comunidade e suas artes — mormente a arte da
construção — à Índia pré-védica, e que foi uma colônia dos âryas de pele escura,
ou aqueles que Homero e Heródoto chamam de etíopes orientais, [58] i. e., os
habitantes da Índia setentrional, que trouxe ao Egito sua já adiantada civilização
nas eras pré-cronológica que Bunsen chama de pré-menitas, mas que
corresponde aos tempos históricos.
Em India in Greece de Pococke, encontramos o seguinte sugestivo parágrafo:
“O relato completo das guerras travadas entre o chefe solar, Oosras (Osíris), o
Príncipe dos Guclas, e ‘TU-PHOO’, corresponde na verdade ao simples fato
histórico das guerras entre os apianos, ou tribos do Sol de Oudh, e o povo de
‘TU-PHOO’, ou TIBETE, que era, de fato, de raça lunar, e budista, [59] e inimigo
de Râma, e dos ‘AITYO-PIAS’, ou povo de Oudh, posteriormente os ‘AITH-IO-
PIAS’ da África”. [60]
Lembraremos ao leitor a esse respeito que Râvana, o gigante, que, no
Râmâyana, trava uma batalha com Râma Chandra, é mostrado como Rei de
Lanka, o antigo nome do Ceilão; e que o Ceilão, naqueles dias, formava parte
talvez do continente da Índia setentrional, e era povoado pelos “etíopes
orientais”. Conquistada por Râma, o filho de Dasaratha, o Rei Solar do antigo
Oudh, uma colônia desse povo migrou para o norte da África. Se, como muitos
supõem, a Ilíada de Homero e muito do seu relato da guerra de Tróia foi plagiada
do Râmâyana, então as tradições que serviram como base a esta última obra
devem datar de uma tremenda antiguidade. Deixa-se assim uma ampla margem
à história pré-cronológica por um período durante o qual os “etíopes orientais”
podem ter estabelecido a hipotética colônia de Mizra, com a sua alta civilização
indiana.
A ciência ainda está no escuro, no que respeita às inscrições cuneiformes.
Enquanto estas não forem decifradas, e especialmente aquelas gravadas nas
rochas descobertas com abundância nas fronteiras do antigo Irã, quem poderá
falar dos segredos que elas ainda possam revelar? Não existem inscrições
monumentais, em sânscrito, mais antigas do que Chandragupta (315 a.C.), e as
inscrições persepolitanas são 220 anos mais antigas. Há ainda hoje alguns
manuscritos em caracteres completamente desconhecidos dos filólogos e dos
paleógrafos, e um deles está, ou esteve, há algum tempo, na biblioteca de
Cambridge, Inglaterra. Os linguistas classificam o semita entre as línguas indo-
européias, incluindo geralmente o etíope e o egípcio antigo na classificação.
Mas, se alguns dialetos da moderna África do Norte, e mesmo o moderno giz,
ou etíope, tanto se degeneraram e corromperam no presente a ponto de
admitirem falsas conclusões, no que respeita ao relacionamento genético entre
elas e as outras línguas semíticas, não estamos de todo seguros de que estas
últimas tenham direito a essa classificação, exceto no caso do velho copta e do
antigo giz.
Que há mais consanguinidade entre os etíopes e as raças arianas de pele
escura, e entre estas e os egípcios, eis algo que ainda está para ser provado.
Descobriu-se recentemente que os antigos egípcios eram de tipo caucasianos,
e que a forma de seus crânios é puramente asiática. [61] Se sua pele era de cor
menos escura do que a dos etíopes modernos, os próprios etíopes devem ter
tido outrora uma tez mais clara. O fato de que, para os reis etíopes, a ordem da
sucessão dava a coroa ao sobrinho do rei, ao filho de sua irmã, e não ao seu
próprio filho, é extremamente sugestivo. É esse um velho costume que prevalece
até hoje na Índia setentrional. O Râjâ não é sucedido por seus próprios filhos,
mas pelos filhos de sua irmã. [62]
De todos os dialetos e idiomas que se acredita serem semitas, só o etíope é
escrito da esquerda para a direita, como o sânscrito e o indo-ariano. [63]
Assim, contra a teoria que atribui a origem dos egípcios a uma antiga colônia
indiana, não há nenhum impedimento mais grave do que o desrespeitoso filho
de Noé, Cam — ele próprio um mito. Mas a forma primitiva do culto religioso
egípcio, de seu governo, de sua teocracia e de seu clero, seus usos e costumes,
tudo indica uma origem indiana.
As lendas mais antigas da história da Índia mencionam duas dinastias,
atualmente perdidas na noite do tempo; a primeira era a dinastia dos reis, da
“raça do Sol”, que reinou em Ayôdhyâ (atual Oudh); a segunda, a da “raça da
Lua”, que reinou em Prayâga (Allâhâbad). Quem quer que desejar informações
sobre o culto religioso desses reis primitivos deverá ler o Livro dos mortos dos
egípcios, e todas as peculiaridades que dizem respeito ao culto do Sol e aos
deuses do Sol. Nunca se faz qualquer menção a Hórus ou Osíris sem os
relacionar com o Sol. Eles são os “Filhos do Sol”; “Senhor e Adorador do Sol” é
o seu nome. “O Sol é o criador do corpo, o genitor dos deuses que são os
sucessores do Sol”. Pococke, em sua engenhosa obra, advoga com firmeza a
mesma idéia, e tenta estabelecer ainda mais firmemente a identidade entre as
mitologias egípcia, grega e indiana. Ele mostra que o chefe da raça solar de
Râjput — na verdade, o grande Cuclo-pos (Cíclope, ou construtor) — recebia o
nome de “O Grande Sol”, na mais antiga tradição hindu. Esse Príncipe Gok’la, o
patriarca das vastas fileiras de inaquienses, diz ele, “esse ‘Grande Sol’, foi
deificado em sua morte, e de acordo com a doutrina indiana da metempsicose,
supôs-se que sua alma transmigrou para o touro ‘APIS’, o ‘SERA-PIS’ dos
gregos, e o SOORA-PAS’, ou ‘CHEFE DO SOL’, dos egípcios (...) Osíris, mais
propriamente Oosras, significa tanto “um touro”, quanto ‘um raio de luz’. Soora-
pas (SERA-PIS), o CHEFE DO SOL”, pois o Sol em sânscrito é Sûrya. [64] A
obra La Manifestation à Ia Lumière, de Champollion, fala, em todos os seus
capítulos, das duas Dinastias dos Reis do Sol e da Lua. Mais tarde, esses reis
foram deificados e transformados, após a morte, em divindades solares e
lunares. Seu culto foi a primeira corrupção da grande fé primitiva que
considerava justamente o Sol e os seus ígneos raios dadores de vida como o
símbolo mais apropriado para nos lembrar da presença universal e invisível
daquEle que é mestre da Vida e da Morte. Tal fé pode ser rastreada atualmente
em todo o globo. Tratava-se da religião dos antigos brâmanes védicos, que
chamam, nos hinos mais antigos do Rig-Veda, a Sûrya (o Sol) e a Agni (o fogo),
de “regente do universo”, “senhor dos homens”, e “rei sábio”. Era o culto dos
magos, dos zoroastristas, dos egípcios e dos gregos, chamassem-no eles de
Mithra, ou Ahura-Mazda, ou Osíris, ou Zeus, mantendo-o em honra de seu
parente mais próximo, Vesta, o puro fogo celestial. E essa religião acha-se
também no culto solar peruano; no sabeanismo e na heliolatria dos caldeus, na
“pira ardente” mosaica, na reverência dos chefes dos povos para com o Senhor,
o “Sol”, e mesmo na ereção abrâmica dos altares de fogo e nos sacrifícios dos
judeus monoteístas a Astarte, a Rainha do Céu.
Até o presente, com todas as controvérsias e pesquisas, a História e a Ciência
permanecem como sempre nas trevas, no que respeita à origem dos judeus.
Eles podem muito bem ser os Chandâlas ou Pariahs, exilados da Índia antiga,
os “pedreiros” mencionados por Vina-Snati, Veda-Vyâsa e Manu, ou os fenícios
de Heródoto, ou os Hyksôs de Josefo, ou os descendentes dos pastores pâli, ou
uma mistura de todos esses. A Bíblia denomina os tirianos de povo
consanguíneo, e vindica o domínio sobre eles. [65]

Samuel, Davi e Salomão, personagens míticos


Há na Bíblia mais de um personagem importante cuja biografia lhe aponta o
caráter de herói mítico. Samuel é o personagem da Comunidade Hebraica. Ele
é o doppel de Sansão, do Livro dos juízes, como se verá — sendo ele o filho de
Ana e EL-KAINA, como Sansão o foi de Manua ou Manoah. Ambos eram
caracteres fictícios, como agora o indica o livro revelado; um era o Hércules
hebreu, e o outro Ganesa. Credita-se a Samuel a façanha de ter estabelecido
uma república, destruindo o culto cananita de Baal e Astarte, ou Adônis e Vênus,
e estabelecendo o de Jeová. Como o povo pedia um rei, ele ungiu a Saul, e,
depois dele, a Davi de Belém.
Davi é o rei Artur israelita. Realizou grandes façanhas e estabeleceu um governo
na Síria e em Iduméia. Seu domínio se estendeu à Armênia e à Assíria, a norte
e nordeste, ao Deserto sírio e ao Golfo Pérsico, a leste, à Arábia, ao sul e ao
Egito e ao Levante, a oeste. Somente a Fenícia não estava incluída.
Sua amizade com Hirão parece indicar que ele fez sua primeira expedição à
Judéia partindo desse país. E sua longa permanência em Hebron, a cidade dos
Cabiri (Arba, ou quatro), parece implicar igualmente que ele estabeleceu uma
nova religião no país.
Depois de Davi, veio Salomão, poderoso e luxuriento, que procurou consolidar o
domínio que Davi havia obtido. Como Davi era um adorador de Jeová, um templo
a Jeová (Tukht-i-Sulaiman) foi edificado em Jerusalém, ao passo que os
santuários a Moloch-Hércules, Chemosh e Astarte foram erguidos no Monte das
Oliveiras. Tais santuários perduraram até Josias.
Em seguida, armaram-se conspirações. Revoltas estalaram em Iduméia e
Damasco; e Ahijah, o profeta, liderou o movimento popular que resultou na
deposição da casa de Davi e na coroação de Jeroboão. Desde então
predominaram os profetas em Israel e prevaleceu o culto do bezerro em todo o
país; os sacerdotes dominaram a frágil dinastia de Davi, e o lascivo culto local
se estendeu a todo o país. Após a destruição da casa de Ahab, e do fracasso de
Jehu e seus descendentes em unir o país sob um único comando, a tentativa foi
feita em Judá. Isaías havia posto fim à linha direta na pessoa de Ahaz (Isaías,
VIII, 9), e colocado no trono um príncipe de Belém (Miquéias, V, 2, 5). Era este
Ezequias. Ao subir ao trono, convidou ele os chefes de Israel a unirem-se numa
aliança contra a Assíria (2 Crônicas, XXX, 1, 21; XXXI, 1, 5; 2 Reis, XVIII, 7).
Estabeleceu, ao que parece, um colégio sagrado (Provérbios, XXV, 1), e,
posteriormente, modificou o culto, * a ponto de quebrar em pedaços a serpente
dourada construída por Moisés.
* A referência às Crônicas parece estar errada e a referência aos Provérbios não é corroborada
pelo texto em si mesmo. (N. do Org.)

Isto demonstra que são míticas as histórias de Samuel e Davi e Salomão. Foi
por essa época que muitos dos profetas que também eram letrados começaram
a escrever.
O país foi finalmente dominado pelos assírios, que encontraram o mesmo povo
e as mesmas instituições que os da Fenícia e de outras nações.
Ezequias não era filho natural, mas adotivo de Ahaz. Isaías, o profeta, pertencia
à família real, e acreditava-se que Ezequias era seu genro. Ahaz recusou aliar-
se ao profeta e ao seu partido, dizendo: “Não tentarei ao Senhor” (Isaías, VII,
12). Declarou o profeta: “Se não acreditardes, não permanecereis” —
prenunciando a deposição de sua linhagem direta. “Aborreceis a meus Deus”,
replicou o profeta, predizendo o nascimento de uma criança por uma almeh, ou
mulher do templo, antevendo ainda que, antes de ela atingir a maturidade
(Hebreus, V, 14; Isaías, VII, 16; VIII, 4), o rei da Assíria dominaria a Síria e Israel.
Essa é a profecia que Irineu procurou relacionar a Maria e Jesus, e a razão por
que a mãe do profeta nazareno é representada como pertencente ao templo e
consagrada a Deus desde a sua infância.
Numa segunda canção, Isaías, celebrou o novo chefe, sentado no trono de Davi
(IX, 6, 7; XI, 1), que deveria fazer voltarem às casas os judeus que a aliança
havia mantido cativos (Isaías, VIII, 2-12; Joel, III, 1-7; Abdias, 7, 11, 14). Miquéias
— seu contemporâneo — também enunciou o mesmo evento (IV, 7-13; V, 1-7).
O Redentor também deveria vir de Belém; em outras palavras, seria da casa de
Davi; e deveria resistir à Assíria com a qual Acaz se aliara, e também reformar a
religião (2 Reis, XVIII, 408). Isso Ezequias fez. Ele era neto de Zacarias, o
vidente (2 Crônicas, XXIX, 1; XXVI, 5), o conselheiro de Usías; e assim que subiu
ao trono, restaurou a religião de Davi, e destruiu os últimos vestígios da de
Moisés, i. e., a doutrina esotérica, declarando “nossos pais caíram sob a espada”
(2 Crôn., XXIX, 6-9). Ele tentou em seguida uma união com a monarquia do
Norte, havendo então um interregno em Israel (2 Crôn., XXX, 1, 2, 6; XXXI, 1, 6,
7). Ele teve sucesso, mas isso resultou numa invasão do rei da Assíria. E houve
então um novo régime. Tudo isso mostra o curso de duas correntes paralelas no
culto religioso dos israelitas; uma que pertence à religião do Estado e que adota
exigências políticas; e outra, que é pura idolatria, resultante da ignorância da
verdadeira doutrina esotérica pregada por Moisés. Pela primeira vez, desde que
Salomão as construíra, “os planos foram tomados”.
Foi Ezequias o esperado Messias da religião exotérica do Estado. Ele foi o
rebento do tronco de Jessé, que libertaria os judeus de um deplorável cativeiro,
sobre o qual os historiadores hebreus parecem fazer silêncio, evitando
cuidadosamente qualquer menção a esse fato particular, porém que os irascíveis
profetas imprudentemente revelam. Se Ezequias esmagou o culto exotérico de
Baal, ele também arrancou violentamente o povo de Israel da religião de seus
pais, e dos ritos secretos instituídos por Moisés.
Foi Dario Hystaspes quem pela primeira vez estabeleceu uma colônia persa na
Judéia, cujo chefe foi talvez Zoro-Babel. “O nome Zoro-babel significa “a
semente ou o filho da Babilônia” — como Zoro-astro, ‫זרעיאשחר‬, é a semente, filho
ou príncipe de Ishtar”. [66] O próprio Sião recebia o nome de Judéia, e havia uma
Ayôdhyâ, na Índia. Os templos de Shalom, Paz, eram numerosos. Por toda a
Pérsia e o Afeganistão os nomes de Saul e Davi eram comuns. A “Lei” é atribuída
por sua vez a Ezequias, a Esdras, a Simão o Justo, e ao período asmoniano.
Nada definitivo, por toda parte contradições. Quando o período asmoniano teve
início, os principais defensores da Lei foram chamados de asidues ou kasdim
(caldeus), e posteriormente de fariseus ou pharsi (parsis). Isso indica que as
colônias persas foram estabelecidas na Judéia e governaram o país, ao passo
que todos os povos mencionados nos livros Gênese e de Josué aí viveram como
uma comunidade (ver Esdras, IX, 1).
Não há nenhuma história real no Velho Testamento, e as únicas informações
históricas que se podem recolher são aquelas que se acham nas indiscretas
revelações dos profetas. O livro, como um todo, deve ter sido escrito em diversas
épocas, ou antes inventado como uma autorização para algum culto posterior,
cuja origem pode ser traçada com facilidade em parte dos mistérios órficos, e em
parte dos antigos ritos egípcios com os quais Moisés estava familiarizado desde
a sua infância.
Desde o último século, a Igreja tem sido gradualmente forçada a entregar partes
do território bíblico usurpado àqueles a quem elas de fato pertenciam. O território
foi ganho polegada por polegada, e um personagem após o outro revelou a sua
natureza mítica e pagã. Mas agora, após a recente descoberta por George
Smith, o assaz chorado assiriólogo, uma das mais seguras escoras da Bíblia foi
arrasada. Sargão e suas tábuas revelaram ser mais antigas do que Moisés.
Como o relato do Êxodo, o nascimento e a história do legislador parecem ter sido
“emprestados” dos assírios, como as “jóias de ouro e as jóias de prata” o foram
dos egípcios.
À página 224 das Assyrian Discoveries, diz o Sr. George Smith: “No palácio de
Senaqueribe, em Kouyunjik, descobri outro fragmento da curiosa história de
Sargão, uma tradução da qual publiquei nas Transactions of the Society of
Biblical Archaeology, vol. I, parte I, p. 46. Esse texto conta que Sargão, um jovem
monarca babilônico, havia nascido de pais da realeza, mas foi escondido por sua
mãe, que o colocou no rio Eufrates numa arca de junco, recoberta de betume,
semelhante àquela em que a mãe de Moisés escondeu seu filho (ver Êxodo, II).
Sargão foi descoberto por um homem chamado Akki, um aguadeiro, que o
adotou como filho, e que mais tarde se tornou Rei da Babilônia. A capital de
Sargão era a grande cidade de Agade, chamada pelos semitas de Akkad,
mencionada no Gênese como uma capital de Nimrod (Gênese, X, 10), e aí reinou
por quarenta e cinco anos. [67] Akkad situava-se nas proximidades da cidade de
Sippara, [68] no Eufrates e a norte da Babilônia. A época de Sargão, que pode
ser fixada pelo Moisés babilônico, é o século XVI a.C., ou talvez antes”.
G. Smith acrescenta em seu Chaldean Account of Genesis que “Sargão I era um
monarca babilônico que reinou na cidade de Agade por volta de 1600 a.C. O
nome de Sargão significa o rei correto, digno ou legítimo. A curiosa história acha-
se nos fragmentos das tábuas de Kouyunjik e reza assim:
1. Sou Sargina, o poderoso rei de Agade.
2. Minha mãe era uma princesa, meu pai não conheci, um irmão de meu pai
governava o país.
3. Na cidade de Azupiran, situada às margens do rio Eufrates,
4. Minha mãe, a princesa, me concebeu; difícil foi o seu parto.
5. Ela me colocou numa arca de junco, e com betume impediu a minha saída.
6. Ela me lançou ao rio, que não me afogou.
7. O rio me conduziu a Akki, o aguadeiro, que me recolheu.
8. Akki, o aguadeiro, me levou, ternamente”, etc., etc. [69]
E agora o Êxodo (II, 3): “E como ela, a mãe de Moisés, não mais pudesse
escondê-lo, tomou uma arca de papiro, e calafetou-a com betume e pez, e
colocou dentro a criança, e a expôs nos juncos à beira do rio”.
O evento, diz o Sr. G. Smith, “teria ocorrido por volta de 1600 a.C., * muito antes
da suposta época de Moisés; [70] e, como sabemos que a fama de Sargão
chegou ao Egito, é quase certo que esse relato tenha uma conexão com o fato
narrado no Êxodo II, pois toda ação, uma vez realizada, tem a tendência de se
repetir”. [71]
* Corrigido para 1800 a.C. por Sayce, em Chald. Account of Genesis, mas dada por Hilprecht
(em 1904) como 3800 a.C. (Babyl. Exped., Série D, I, p. 249). Cf. A doutrina secreta, vol. I, p.
320, rodapé. (N. do Org.)
As “eras” dos hindus pouco diferem das dos gregos, dos romanos e mesmo dos
judeus. Incluímos deliberadamente a computação mosaica, e no propósito de
provar nossa posição. A cronologia que separa Moisés da criação do mundo por
apenas quatro gerações parece ridícula simplesmente, porque o clero cristão a
quis impingir literalmente ao mundo. [72] Os cabalistas sabem que essas
gerações simbolizam as quatro eras do mundo. As alegorias que, nos cálculos
hindus, abrangem todo o estupendo curso das quatro eras, são astutamente
reduzidas nos livros mosaicos, graças à prestativa ajuda da Masorah, ao
pequeno período de dois milênios e meio (2513)!
O plano exotérico da Bíblia visa responder também às quatro era. Assim, ela
computa a Era de Ouro de Adão a Abraão; a de Prata, de Abraão a Davi; a de
Cobre, de Davi ao Cativeiro; e daí por diante, a de Ferro. Mas o cômputo secreto
é muito diferente, e não difere dos cálculos zodiacais dos brâmanes. Estamos
na Idade do Ferro, ou Kali-Yuga, mas ela começou com Noé, o ancestral mítico
de nossa raça.
Noé, ou Nuah, como todas as manifestações evemerizadas do Irrevelado —
Svâyambhuva (de Svayanbhû) —, era andrógino. Por isso, em algumas
passagens, ele pertencia à Tríada puramente feminina dos caldeus, conhecida
como “Nuah, a Mãe universal”. Já mostramos em outro capítulo que toda Tríada
masculina tem a sua contraparte feminina, um em três, como a anterior. Ela era
o complemento passivo do princípio ativo, o seu reflexo. Na Índia, a Trimûrti é
reproduzida na Sakti-trimûrti, feminina; e na Caldéia, Ana, Belita e Davkina
correspondiam a Anu, Bel, Nuah. As três primeiras resumiam-se numa só —
Belita.
“Deusa soberana, senhora do abismo inferior, mãe dos deuses, rainha da terra,
rainha da fecundidade.”
Enquanto umidade primordial, donde tudo provém, Belita é Tiamat, o mar, a mãe
da cidade de Erech (a grande necrópole caldaica), portanto, uma deusa infernal.
No mundo dos astros e dos planetas, ela é conhecida como Ishtar ou Astoreth.
Portanto, ela é idêntica a Vênus, e a todas as outras Rainhas do Céu, às quais
bolos e pães são ofertados em sacrifício, [73] e, como o sabem todos os
arqueólogos, à Eva, a mãe de tudo o que vive, e a Maria.
A Arca, na qual se preservam os germes de todas as coisas necessárias para
repovoar a Terra, representa a sobrevivência da vida, e a supremacia do espírito
sobre a matéria, através do conflito das forças opostas da Natureza. Na carta
Astro-Teosófica do Rito Ocidental, a Arca corresponde ao umbigo, e é colocada
no lado esquerdo, o lado da mulher (a Lua), um de cujos símbolos é a coluna
esquerda do templo de Salomão — Boaz. O umbigo está relacionado com o
receptáculo no qual se frutificam os germes da raça. [74] A Arca é a Argha
sagrada dos hindus, e, portanto, podemos perceber com facilidade a sua relação
com a arca de Noé, quando aprendemos que a Argha era um vaso oblongo,
utilizado pelos sumo-sacerdotes como cálice sacrifical no culto de Ísis, Astarte e
Vênus-Afrodite, todas as quais eram deusas dos poderes gerativos da Natureza,
ou da matéria — representando simbolicamente, portanto, a Arca que contém os
germes de todas as coisas vivas.
Admitimos que os pagãos tinham e têm agora — como na Índia — símbolos
estranhos, que, aos olhos dos hipócritas e dos puritanos, parecem
escandalosamente imorais. Mas não copiaram os judeus antigos muitos desses
símbolos? Já descrevemos alhures a identidade do linga com a coluna de Jacó,
e poderíamos dar muitos exemplos de ritos cristãos que têm a mesma origem,
mas o espaço não o permite, e, ademais, tudo isso já foi plenamente estudado
por Inman e outros (ver Ancient Faiths Embodied in Ancient Names, de Inman).
Ao descrever o culto dos egípcios, diz a Sra. Lydia Maria Child: “Essa reverência
pela produção da Vida introduziu no culto de Osíris o emblema sexual, tão
comum no Indostão. Uma colossal imagem dessa espécie foi apresentada ao
seu templo em Alexandria, pelo Rei Ptolemeu Philadelphus. (...) A reverência
pelo mistério da vida organizada levou ao reconhecimento de um princípio
masculino e feminino em todas as coisas espirituais ou materiais. (...) Os
emblemas sexuais presentes em todas as esculturas de seus templos
pareceriam impuros se descritos, mas nenhuma mente limpa e séria poderá
contemplá-los sem testemunhar a óbvia simplicidade e solenidade com que o
assunto é tratado. [75]
Assim fala essa respeitável senhora e admirável autora, e nenhum homem ou
mulher de pensamentos puros poderá recriminá-la por isso. Mas essa perversão
do pensamento antigo é natural numa época de hipocrisia e puritanismo como a
nossa.
A água do dilúvio, que na alegoria representa o “mar” simbólico, Tiamat,
simboliza o caos turbulento, a matéria, chamado “o grande dragão”. De acordo
com a doutrina gnóstica e rosa-cruz medieval, a mulher não estava incluída no
plano inicial da criação. Ela resultou da fantasia impura do homem, e, como
dizem os hermetistas, é “uma intrusa”. Gerada por um pensamento impuro, ela
veio à existência na demoníaca “sétima hora”, quando os verdadeiros mundos
“sobrenaturais” já haviam passado, e os mundos “naturais” ou ilusórios
começavam a evoluir no “microcosmos descendente”, ou, em termos mais
claros, no arco do grande ciclo. Originalmente “Virgo”, a Virgem Celestial do
Zodíaco, se tornou “Virgo-Scorpio”. Mas, ao desenvolver sua companheira, o
homem a dotou involuntariamente de seu próprio quinhão de espiritualidade, e o
novo ser a quem sua “imaginação” havia trazido à vida tornou-se o seu
“Salvador” dos laços de Eva-Lilith, a primeira Eva, que tinha um quinhão maior
de matéria em sua composição do que o primitivo homem “espiritual”. [76]
Portanto, a mulher figura na cosmogonia relacionada com a “matéria”, ou o
grande abismo, como a “Virgem do Mar”, que esmaga o “Dragão” sob seus pés.
O “Dilúvio” recebe também amiúde, na fraseologia simbólica, o nome de “o
grande Dragão”. Para quem está familiarizado com essas doutrinas, fica mais do
que sugestivo saber que para os católicos a Virgem Maria é não só a padroeira
dos marinheiros cristãos, mas também a “Virgem do Mar”. Assim era Dido, a
padroeira dos marinheiros fenícios, [77] e, juntamente com Vênus e outras
divindades lunares — tendo a Lua uma forte influência sobre as marés — a
“Virgem do Mar”. Mar, o “Mar”, é a raiz do nome Maria. A cor azul, que
simbolizava para os antigos o “Grande Abismo” ou o mundo material, e portanto
o mal, tornou-se sagrada para a nossa “Abençoada Senhora”. É a cor da “Notre
Dame de Paris”. Devido à sua relação com a serpente simbólica, tinham grande
aversão por essa cor os ex-nazarenos, discípulos de João Baptista, os atuais
mandeus de Basra.
Entre as belas gravuras de Maurício, há uma que representa Krishna esmagando
a cabeça da serpente. Uma mitra de três pontas lhe cobre a cabeça
(simbolizando a Trindade), e o vencido réptil envolve o corpo do deus hindu. [78]
Essa gravura mostra de onde proveio a inspiração para a caracterização de uma
história posterior extraída de uma pretensa profecia. “Porei uma hostilidade entre
ti e a mulher, e entre a tua linhagem e a dela; e ela te esmagará a cabeça, e tu
lhe ferirás o calcanhar.” [79]
O orant egípcio também é representado com os braços estendidos na forma de
um crucifixo, e esmagando a “Serpente”; e Hórus (o Logos) é representado
cortando a cabeça do dragão, Tífon ou Apófis. * Tudo isso dá-nos uma chave da
alegoria bíblica de Caim e Abel. Caim era ancestral dos hivitas, as Serpentes, e
os gêmeos de Adão são uma cópia evidente da fábula de Osíris e Tífon. À parte
a forma externa da alegoria, contudo, ela encarna a concepção filosófica da
eterna luta entre o bem e o mal.
* O termo orant confundiu um grande número de estudiosos teosóficos e parece ter sido um
tropeço para um ou dois editores anteriores de Ísis sem véu. Alguns especularam sobre ter sido
o nome de algum deus ou alguma divindade. A palavra deriva do latim orans, — antis, part. pres.
de orare, orar. Na arte grega antiga, é usado para uma figura feminina em postura de prece. Na
arte cristã primitiva, era uma figura, geralmente feminina, que tinha as mãos reunidas como que
em oração. Essas figuras são muito comuns em catacumbas e a postura era vista como
especialmente significativa, porque lembrava a posição de Cristo na cruz. Essas figuras também
podem ser encontradas no simbolismo egípcio. (N. do Org.)

Mas quão estranhamente elástico e quão adaptável a tudo se revelou essa


filosofia mística depois da era cristã! Quando foram os fatos, irrefutáveis,
irrefragáveis, e inquestionáveis, tão pouco capazes de restabelecer a verdade
do que em nosso século de casuísmo e de velhacaria cristã? Se se prova que
Krishna era conhecido como “Bom Pastor”, séculos antes do ano 1 d.C., que ele
esmagou a Serpente Kâlîyanâga, e que foi crucificado — tudo isso não é senão
uma antecipação profética do futuro! Se mostram o escandinavo Thor, que
esmagou a cabeça da Serpente com sua maça em forma de cruz, e Apolo, que
matou Píton, as mais impressionantes semelhanças com os heróis das fábulas
cristãs — tornam-se eles apenas concepções originais de mentes “pagãs”,
“trabalhando sobre as antigas profecias dos Patriarcas relativas ao Cristo, pois
estavam integradas na única Revelação universal”. [80]

O simbolismo da Arca de Noé


O dilúvio é portanto, a “Velha Serpente”, ou o grande abismo da matéria, o
“dragão do mar” de Isaías (XXVII, 1), o mar que a arca cruza em segurança em
seu caminho ao monte da Salvação. Mas, se ouvimos falar da arca e de Noé, e
da Bíblia em suma, é porque a mitologia dos egípcios estava à disposição de
Moisés (se é que Moisés escreveu qualquer coisa da Bíblia), e porque ele estava
familiarizado com a história de Hórus, que navega em seu barco de forma
serpentina, e que mata a Serpente com sua lança, e com o sentido oculto dessas
fábulas, e sua origem real. É por essa razão também que encontramos no
Levítico, e em outras partes de seus livros, páginas inteiras de leis idênticas às
de Manu.
Os animais embarcados na arca são as paixões humanas. Eles simbolizam
certas provas de iniciação, e os mistérios que foram instituídos em muitas nações
em homenagem a essa alegoria. A arca de Noé deteve-se no décimo sétimo dia
do sétimo mês. Temos aqui novamente o número, assim como nas “feras limpas”
que ele colocou em número de sete na arca. Falando sobre os mistérios
aquáticos de Biblos, diz Luciano: “No topo de uma das duas colunas edificadas
por Baco, fica um homem por sete dias”. [81] Ele supõe que tal era feito em honra
de Deucalião. Elias, quando orava no topo do Monte Carmelo, enviou um servo
para observar uma nuvem no mar, e repete “Retorna sete vezes. Na sétima vez,
o servo lhe diz: ‘Eis que sobe do mar uma nuvem pequena com a mão de um
homem’”. [82]
“Noé é uma revolutio de Adão, assim como Moisés é uma revolutio de Abel e
Seth”, diz a Kabala; [83] vale dizer, uma repetição ou outra versão da mesma
história. A grande prova disso é a distribuição dos caracteres na Bíblia. Por
exemplo, a começar de Caim, o primeiro assassino, todo quinto homem em sua
linha de descendência é um assassino. Assim, vieram Henoc, Irad, Mehujael,
Mathusalém, e o quinto é Lamech, o segundo assassino, e ele é o pai de Noé.
Desenhando-se a estrela de cinco pontas de Lúcifer (que tem seu ponto coronal
voltado para baixo), e escrevendo o nome de Caim sob a ponta inferior,
descobrir-se-á que todo quinto nome — que será desenhado sob o de Caim —
é o de um assassino. No Talmude, essa genealogia é dada por inteiro, e treze
assassinos se enfileiram na linha sob o nome de Caim. Isso não é uma
coincidência. Siva é o Destruidor, mas é também o Regenerador. Caim é um
assassino, mas é também o criador de nações, o inventor. Essa estrela de
Lúcifer é a mesma que João vê cair na Terra em seu Apocalipse.
Em Tebas, ou Theba, que significa arca — sendo TH-ABA sinônimo de Kartha
ou Tiro, Astu ou Atenas, e Urbs ou Roma, e significando também “cidade”
—, encontram-se as mesmas folheações descritas nas colunas do templo de
Salomão. A folha de oliva bicolorida, a folha de figueira de três lobados, e a folha
de louro lanceolada tinham todas sentidos tanto esotéricos, como populares ou
vulgares, para os antigos.
As pesquisas dos egiptólogos apresentam outra corroboração da identidade
entre as alegorias da Bíblia e as das terras dos Faraós e dos caldeus. A
cronologia dinástica dos egípcios, registrada por Heródoto, Manetho,
Eratosthenes, Diodorus Siculus, e aceita por nossos arqueólogos, dividia os
períodos da história egípcia sob quatro cabeçalhos gerais: o domínio dos
deuses, dos semideuses, dos heróis e dos homens mortais. Combinando os
semideuses e os heróis numa única classe, Bunsen [84] reduz os períodos a três:
os deuses regentes, os semideuses ou heróis — filhos de deuses, mas nascidos
de mães mortais — e os manes, que foram os ancestrais das tribos humanas.
Essas subdivisões, como todos podem perceber, correspondem perfeitamente
aos Elohim bíblicos, filhos de Deus, gigantes e homens noéticos mortais.
Diodorus de Sicília [85] e Berosus [86] dão-nos os nomes dos doze grandes
deuses que governam os doze meses do ano e os doze significados do zodíaco.
Esses nomes, que incluem Nuah, [87] são por demais conhecidos para
merecerem uma repetição. O Jano de duas faces estava também à testa dos
doze deuses, e nas figuras que o representam ele segura as chaves dos
domínios celestes. Depois de todos esses terem servido como modelos para os
patriarcas bíblicos, ainda prestaram um outro serviço — especialmente Jano —
ao fornecerem uma cópia a São Pedro e aos seus doze apóstolos, o primeiro do
qual também tinha duas faces em sua negação, e igualmente era representado
segurando as chaves do Paraíso.
A afirmação de que a história de Noé não passa de uma outra versão, em seu
sentido oculto, da história de Adão e seus três filhos, pode ser comprovada em
todas as páginas do livro Gênese * Adão é o protótipo de Noé. Adão cai porque
come o fruto proibido do conhecimento celeste; Noé porque experimenta o fruto
terrestre, representando o suco da uva o abuso do conhecimento numa mente
não equilibrada. Adão é privado de seu envoltório espiritual; Noé, de suas vestes
terrestres; e a nudez de ambos os faz sentirem-se envergonhados. A iniquidade
de Caim é repetida por Cam. Mas os descendentes de ambos são mostrados
como sendo os mais sábios das raças da Terra, e recebem por essa razão os
nomes de “serpentes” e “filhos de serpentes”, o que significa filhos da sabedoria,
e não de Satã, como alguns sacerdotes gostariam de entender a palavra. A
inimizade entre a “serpente” e a “mulher” só foi estabelecida na medida em que
este “mundo do homem” mortal e fenomênico “nasceu da mulher”. Antes da
queda carnal, a “serpente” era Ophis, a sabedoria divina, que não precisava de
matéria para procriar os homens, sendo a Humanidade totalmente espiritual. Daí
a guerra entre a serpente e a mulher, ou entre o espírito e a matéria. Se, em seu
aspecto material, a “velha serpente” é matéria, e representa Ophiomorphos, em
seu sentido espiritual ela se torna Ophis-Christos. Na magia dos antigos sírio-
caldeus, ambos estão reunidos no signo zodiacal do andrógino de Virgo-Scorpio,
e podem ser divididos ou separados sempre que necessário. Assim como a
origem do “bem e do mal”, o sentido dos S.S. e Z.Z. sempre foi intercambiável,
e se em algumas ocasiões os S. S. sobre os selos e os talismãs sugerem a má
influência serpentina e denotam um desígnio de magia negra para com os outros,
noutras ocasiões eles podem ser encontrados sobre as taças sacramentais da
Igreja e indicam a presença do Espírito Santo ou da sabedoria pura.
* Cf. relato do Dr. S. Langdon nos Proceedings of the Society of Biblical Archaeology, vol. XXXVI
(1914), p. 188-98. (N. do org.)

Os madianitas eram tidos como homens sábios, ou filhos de serpentes, assim


como os cananitas e os camitas, e tal era o seu renome que vemos Moisés, o
profeta, guiado e inspirado pelo “Senhor”, curvando-se diante de Hobab, o filho
de Raguel, o madianita, e implorando-lhe para ficar com o povo de Israel; “Não
nos abandones, eu te peço, pois conheces os lugares onde devemos acampar
NO DESERTO, e tu serás os nossos olhos”. [88] Além disso, quando Moisés
envia espiões para explorar a terra de Canaã, eles trazem como uma prova da
sabedoria (cabalisticamente falando) e da excelência da terra um ramo com um
cacho de uvas, cujo peso tornou necessário que dois homens o transportassem
pendente de uma vara. Além disso, acrescentam: “Lá, vimos os filhos de ANAC”.
Estes são os gigantes, os filhos de Anac, “que são descendentes dos gigantes,
[89] e tínhamos a impressão de sermos gafanhotos diante deles e assim também
lhes parecíamos”. [90]
Anac é Henoc, o patriarca, que não morre, e que é o primeiro possuidor do “nome
mirífico”, segundo a Cabala e o ritual da franco-maçonaria.
Comparando os patriarcas bíblicos com os descendentes de Vaivasvata, o Noé
hindu, e as antigas tradições sânscritas sobre o dilúvio, no Mahâbhârata
bramânico, descobrimo-los espelhados nos patriarcas védicos que são os tipos
primitivos com base nos quais todos os outros foram modelados. Mas antes de
fazer a comparação, é preciso compreender os mitos hindus em seu verdadeiro
significado. Cada uma dessas personagens míticas tem, além de um significado
astronômico, um sentido espiritual ou moral, e antropológico ou físico. Os
patriarcas não são apenas deuses evemerizados — os pré-diluvianos
correspondendo aos grandes doze deuses de Berosus, e aos dez Prajâpatis, e,
os pós-diluvianos, aos sete deuses da famosa tábua da Biblioteca de Nínive, —
mas representam também os eões gregos, as Sephîrôth cabalísticas, e os signos
zodiacais, enquanto tipos de raças humanas. [91] Explicaremos agora essa
variação do dez ao doze, provando-a com a própria autoridade da Bíblia. Eles
não são os primeiros deuses descritos por Cícero, [92] que pertencem à
hierarquia dos poderes superiores, os Elohim — mas se enfileiram antes na
segunda classe dos “doze deuses”, os Dii minores, e que são os reflexos
terrestres dos primeiros, entre os quais Heródoto coloca Hércules. [93] Mas, por
causa do grupo dos doze, Noé, graças à sua posição no ponto de transição,
pertence à Tríada babilônica superior, Nuah, o espírito das águas. Os demais
são idênticos aos deuses inferiores da Assíria e da Babilônia, os quais
representam a ordem inferior de emanações, que, sob a direção de Bel, o
Demiurgo, o ajudavam em sua obra, tal como os patriarcas que assistiam a
Jeová — o “Senhor Deus”.
Além desses, muitos dos quais eram deuses locais, as divindades protetoras dos
rios e das cidades, havia quatro classes de genii. Ezequiel, em sua visão, fá-los
amparar o trono de Jeová. Esse fato, se identifica o “Senhor Deus” judeu com
um dos deuses da trindade babilônica, relaciona, ao mesmo tempo, o atual Deus
cristão com a mesma Tríada, visto que são esses quatro querubins, se o leitor
estiver lembrado, que Irineu [94] faz Jesus cavalgar, e que são mostrados como
os companheiros dos evangelistas.
Percebe-se com grande clareza a influência cabalística hindu sobre o livro de
Ezequiel e sobre o Apocalipse na descrição das quatro bestas, que simbolizam
os quatro reinos elementares — terra, ar, fogo e água. Como é sabido, elas são
as esfinges assírias, mas essas figuras também estão gravadas nas paredes de
quase todos os pagodes hindus.
O autor do Apocalipse copia fielmente em seu texto (ver cap. IV, vers. 7) o
pentagrama de Pitágoras, do qual o admirável esboço de Éliphas Lévi é
reproduzido adiante. [95]
A deusa hindu Ardhanârî (ou, como se poderia grafar com mais propriedade,
Ardhonârî, visto que o segundo a é pronunciado quase como o inglês o) é
representada tendo à sua volta as mesmas figuras. Ela se assemelha
exatamente à “roda do Adonai” de Ezequiel, conhecida como “Os Querubins de
Ezequiel”, que indica, sem nenhuma dúvida, a fonte de onde o profeta hebreu
tirou suas alegorias. Por conveniência da comparação, colocamos a figura no
pentagrama.
Acima dessas feras estão os anjos ou espíritos, divididos em dois grupos: os Igili,
ou seres celestiais, e os Am-anaki, ou espíritos terrestres, os gigantes, filhos de
Anac, de quem se queixaram os espiões a Moisés.
A Kabbala Denudata dá aos cabalistas um relato muito claro — embora confuso
aos profanos — das permutações ou substituições de uma pessoa a outra.
Assim, por exemplo, diz que “as centelhas” (a centelha ou alma espiritual) de
Abraão foram tomadas de Miguel, o chefe dos Eões e emanação superior da
Divindade — tão superior de fato que, aos olhos dos gnósticos, Miguel é idêntico
a Cristo. E no entanto Miguel e Henoc são a mesma pessoa. Ambos ocupam o
ponto de junção da cruz do Zodíaco como “homem”. A centelha de Isaac era a
de Gabriel, o chefe da hoste angélica, e a centelha de Jacó foi tomada de Uriel,
o chamado “fogo de Deus”, o espírito de penetração mais aguda em todo o Céu.
Adão não é o Cadmo, mas Adão Primus, o Microprosopus. Num de seus
aspectos, ele é Enoque, o patriarca terrestre e pai de Mathusalém. Ele, que
“caminhava com Deus” e “não morreu”, é o Henoc espiritual, que simbolizava a
Humanidade, eterna em espírito e eterna na carne, embora esta morra. Morte,
mas apenas como um novo nascimento, pois o espírito é imortal; portanto, a
Humanidade não pode morrer, já que o Destruidor se tornou o Criador, sendo
Henoc o símbolo do homem dual, espiritual e terrestre. Daí seu lugar no centro
da cruz astronômica.

Mas foram os hebreus os criadores dessa idéia? Acreditamos que não. Toda
nação que possuía um sistema astronômico, e especialmente a Índia, tinha pela
cruz a mais alta reverência, pois ela era a base geométrica do simbolismo
religioso dos seus avatâras, da manifestação da Divindade, ou do Criador, em
sua criatura, o HOMEM; de Deus na Humanidade e da Humanidade em Deus,
como espíritos. Os monumentos mais antigos da Caldéia, da Pérsia e da Índia
exibem a cruz dupla ou de oito pontos. Esse símbolo, que se encontra com
facilidade, como todas as outras figuras geométricas da natureza, tanto nas
plantas quanto nos flocos de neve, levou o Dr. Lundy, em seu misticismo
supercristão, a chamar essas flores cruciformes que formam uma estrela de oito
pontas pela junção das duas cruzes de — “Estrela Profética da Encarnação, que
une céu e terra, Deus e homem”. [96] Tal frase está muito bem expressa; mas o
velho axioma cabalístico, “Em cima, como embaixo”, seria mais apropriado, pois
revela o mesmo Deus para toda a Humanidade, e não apenas para um punhado
de cristãos. Trata-se da cruz Cósmica do Céu, reproduzida na Terra pelas
plantas e pelo homem dual: o homem físico que suplanta o “espiritual” no ponto
de junção do qual está o mítico Libra-Hermes-Henoc. O gesto de uma mão que
aponta para o Céu é contrabalançado pelo de outra que aponta para a terra;
gerações incontáveis abaixo, regenerações incontáveis acima; o visível apenas
como manifestação do invisível; o homem de pó abandonado ao pó, o homem
de espírito renascido no espírito; tal é a humanidade finita que é o Filho do Deus
Infinito. Abba, o Pai; Amona, a Mãe; o Filho, o Universo. Essa Tríada primitiva
se repete em todas as teogonias. Adão-Cadmo, Hermes, Henoc, Osíris, Krishna,
Ormasde ou Christos são todos uma mesma personalidade. Eles ficam como
Metatrons entre o corpo e a alma — espíritos eternos que redimem a carne pela
regeneração da carne abaixo, e da alma pela regeneração acima, em que a
Humanidade caminha uma vez mais com Deus.

Já mostramos alhures que o símbolo da cruz ou do Tao egípcio , é muito


anterior à época atribuída a Abraão, o pretenso antepassado dos israelitas, pois,
do contrário, Moisés não poderia tê-lo aprendido dos sacerdotes. E que o Tao
era tido como sagrado pelos judeus, assim como por outras nações “pagãs”,
prova-o um fato admitido agora tanto pelos sacerdotes cristãos como pelos
arqueólogos infiéis. Moisés, em Êxodo, XII, 22, ordena a seu povo que marque
as ombreiras e os lintéis das casas com sangue, para que o “Senhor Deus” não
se engane e castigue alguns do povo eleito, no lugar dos condenados egípcios.
[97] E essa marca é um Tao! A mesma cruz manual egípcia, com a metade de
cujo talismã Horus despertava os mortos, tal como se vê na ruína de uma
escultura em Dendera. [98] Quão gratuita é a idéia de que todas essas cruzes e
símbolos foram profecias inconscientes de Cristo, prova-o plenamente o caso
dos judeus graças a cuja acusação Jesus foi condenado à morte. Assinala, por
exemplo, o mesmo erudito autor em Monumental Christianity que “os próprios
judeus conheciam esse signo de salvação antes de rejeitarem ao Cristo”; e em
outro lugar afirma que “a vara de Moisés, utilizada em seus milagres diante do
Faraó, era, sem dúvida, essa crux ansata, ou algo semelhante, empregada
também pelos sacerdotes egípcios”. [99] Portanto, cabe inferir logicamente que
1º, se os judeus cultuavam os mesmos símbolos que os pagãos, não eram
melhores do que estes; e 2º, que, tão versados como eram no simbolismo oculto
da cruz, em face de sua espera por séculos do Messias, eles no entanto
rejeitaram tanto o Messias cristão, quanto a Cruz cristã, então deve ter havido
algo de errado com ambos.
Aqueles que “rejeitaram” a Jesus como “Filho de Deus” não eram pessoas que
ignoravam os símbolos religiosos, nem os poucos saduceus ateístas que o
condenaram à morte, mas, sim, homens instruídos na sabedoria secreta, que
conheciam tanto a origem quanto o sentido do símbolo cruciforme, e que
rejeitaram tanto o emblema cristão quanto o Salvador nele suspenso, porque
não queriam ser partidários dessa blasfema imposição sobre o povo comum.
Quase todas as profecias sobre Cristo são creditadas aos patriarcas e aos
profetas. Se uns poucos destes últimos podem ter existido como personagens
reais, todos os primeiros não passam de mitos. Tentaremos prová-lo por meio
da interpretação oculta do Zodíaco, e da relação de seus signos com esses
homens antediluvianos.
Se o leitor tiver em mente as idéias hindus sobre a cosmogonia, dadas no
Capítulo IV, melhor compreenderá a relação entre os patriarcas bíblicos
antediluvianos e esse enigma dos comentadores — “a roda de Ezequiel”. Assim,
recorde-se: 1º, que o universo não é uma criação espontânea, mas uma
evolução da matéria preexistente; 2º, que ele não é senão um dentre as infinitas
séries de universos; 3º, que a eternidade é recortada em grandes ciclos, em cada
um dos quais ocorrem doze transformações de nosso mundo, causadas
alternativamente pelo fogo e pela água. De sorte que quando um novo período
menor se inicia, a Terra se modifica de tal forma, mesmo geologicamente, que
quase se transforma praticamente num novo mundo; 4º, que no curso dessas
doze transformações, a Terra se torna mais grosseira a cada passagem das seis
primeiras, ficando tudo que há sobre ela — o homem inclusive — mais material,
ao passo que nas seis últimas transformações ocorre o contrário, tornando-se
tanto a Terra, como o homem, cada vez mais refinados e espirituais a cada
mudança; 5º, que quando o ápice do ciclo é atingido, ocorre uma dissolução
gradual, e toda forma viva e objetiva é destruída. Mas quando esse ponto é
alcançado, a Humanidade está apta a viver tanto subjetivamente, como
objetivamente. E não só a Humanidade, mas também os animais, as plantas e
os átomos. Após um período de descanso, dizem os budistas, por ocasião da
autoformação de un novo mundo, as almas astrais dos animais, e de todos os
seres, exceto os que alcançaram o Nirvana supremo, retornarão à Terra
novamente para concluir seus ciclos de transformação, e converter-se, por sua
vez, em homens.
Essa estupenda concepção, os antigos a sintetizaram para a instrução do povo
comum, num simples plano pictórico — o Zodíaco, ou cinto celeste. Ao invés dos
doze signos agora utilizados, havia originalmente apenas dez, conhecidos do
público em geral, a saber: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem-
Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. [100] Estes signos eram
exotéricos. Mas além desses havia dois signos místicos, inseridos, o que só os
iniciados sabiam, no meio ou no ponto de junção em que agora está Libra, e no
signo agora chamado Escorpião, que segue a Virgem. Quando era necessário
torná-los exotéricos, esses dois signos secretos eram acrescentados sob seus
nomes atuais como véus para ocultar os verdadeiros nomes que davam a chave
de todo o segredo da criação e divulgava a origem do “bem e do mal”.
A verdadeira doutrina astrológica sabéia ensinava secretamente que nesse
duplo signo estava oculta a explicação da gradual transformação do mundo, de
seu estado espiritual e subjetivo para o estado “bissexuado” e sublunar. Os doze
signos eram dessa forma divididos em dois grupos. Os seis primeiros
chamavam-se de linha ascendente, ou linha do macrocosmo (o grande mundo
espiritual); os seis últimos, de linha descendente, ou linha do microcosmo (o
pequeno mundo secundário) — mero reflexo do primeiro, por assim dizer. Essa
divisão chamava-se de roda de Ezequiel, e era completada da seguinte maneira:
Primeiro vinham os cinco signos ascendentes (evemerizados nos patriarcas),
Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, e o grupo se fechava com Virgem-
Escorpião. Vinha então o ponto crucial, Libra, após o que a primeira metade do
signo Virgem-Escorpião era duplicada e transferida para liderar o grupo inferior
ou descendente do microcosmo que termina em Peixes, ou Noé (dilúvio). Para
torná-lo mais claro, o signo de Virgem-Escorpião, que aparecia originalmente
como , tornou-se simplesmente Virgem, e a duplicação, , ou Escorpião,
foi colocada depois de Libra, o sétimo signo (que é Henoc, ou anjo de Metatron,
ou Mediador entre o espírito e a matéria, ou Deus e homem). Ela se tornou
Escorpião (ou Caim), signo ou patriarca que levou a Humanidade à destruição,
segundo a teologia exotérica; mas, de acordo com a verdadeira doutrina da
religião da sabedoria, ele indicou a degradação de todo o universo em seu curso
de evolução descendente do subjetivo ao objetivo.
A invenção do signo de Libra é creditada aos gregos, mas não se diz geralmente
que foram apenas os iniciados dentre eles que fizeram uma alteração nos nomes
comunicando a idéia e o nome secreto àqueles “que sabiam”, e deixando as
massas em sua habitual ignorância. Não obstante, foi essa uma bela idéia, a de
Libra, ou balança, que expressa, na medida do possível, sem desvendá-lo, a
verdade total e última. Eles pretendiam com esse signo indicar que, quando o
curso da evolução havia levado os mundos ao ponto máximo de materialidade,
em que as terras e os seus frutos era mais toscos, e seus habitantes mais brutos,
o ponto crucial havia sido alcançado — as forças estavam em equilíbrio. No
ponto mais baixo, a centelha divina ainda cintilante do espírito começa a
transferir o impulso ascendente. Os pratos da balança simbolizam esse equilíbrio
eterno necessário a um universo de harmonia, de justiça exata, de equilíbrio
entre as forças centrípetas e centrífugas, entre trevas e luz, espírito e matéria.
Esses signos adicionais do Zodíaco corroboram a nossa afirmação de que o
Livro Gênese tal como agora o temos é muito posterior à invenção de Libra pelos
gregos, pois observamos que os capítulos das genealogias foram remodelados
para se adaptarem ao novo Zodíaco, e não o contrário. E foi esse acréscimo e a
necessidade de ocultar a verdadeira chave que levou os compiladores rabínicos
a repetirem os nomes de Henoc e de Lamech por duas vezes, como podemos
agora observar na tábua quenita. Dentre todos os livros da Bíblia, apenas
Gênese remonta a uma imensa antiguidade. Os demais são adições posteriores,
a mais antiga das quais surgiu com Hilkiah, que evidentemente a planejou com
o auxílio de Huldah, a profetisa.
Como há mais de um sentido vinculado às histórias da criação e do dilúvio, não
é possível compreender o relato bíblico sem a referência à história babilônica
correspondente, ao passo que nenhuma delas será totalmente clara sem a
interpretação bramânica e esotérica do dilúvio, tal como se encontra no
Mahâbhârata e no Satapatha-Brâhmana. Foram os babilônicos que aprenderam
os “mistérios”, a língua sacerdotal e a sua religião dos problemáticos acadianos,
que, segundo Rawlinson, vieram da Armênia — mas não foram os primeiros a
migrar para a Índia. A evidência torna-se clara aqui. O Xisuthros babilônico,
segundo mostra Movers, [101] representava o “sol” no Zodíaco, no signo de
Aquário, e Oannes, o homem-peixe, o semi-demônio, é Vishnu em seu primeiro
avatâra, o que dá assim a chave para a fonte dupla da revelação bíblica.
Oannes é o emblema da sabedoria esotérica e sacerdotal; ele vem do mar, visto
que o “grande abismo”, a água, simboliza, como já mostramos, a doutrina
secreta. Foi por essa mesma razão que os egípcios deificaram o Nilo, à parte de
o considerarem como o “Salvador” do país, devido às suas periódicas enchentes.
Eles consideravam até mesmo os crocodilos como sagrados, por habitarem eles
no “abismo”. Os chamados “camitas” sempre preferiam ter as suas moradas
perto dos rios e dos oceanos. A água foi o primeiro elemento a ser criado, de
acordo com algumas antigas cosmogonias. O nome de Oannes era
grandemente reverenciado nos relatos caldeus. Os sacerdotes caldeus trajavam
chapéus semelhantes a cabeças de peixes, e capas de pele de savelha que
representavam o corpo de um peixe. [102]
“Tales”, diz Cícero, “assegura-nos que a água é princípio de todas as coisas; e
que Deus é essa Mente que formou e criou todas as coisas da água. [103]
“No Início, o Espírito anima Céu e Terra,
Os campos aquáticos, e o brilhante globo de Luna, e
As estrelas de Titã. A mente instilada nos membros
Agita toda a massa, e se funde com a GRANDE MATÉRIA.” [104]
Assim, a água representa a dualidade do macrocosmo e do microcosmo, em
conjunção com o ESPÍRITO vivificante, e a evolução a partir do cosmos universal
do pequeno mundo. O dilúvio assinala, portanto, nesse sentido, a batalha final
entre os elementos em conflito, que leva o primeiro grande ciclo de nosso planeta
à sua conclusão. Esses períodos fundiram-se gradualmente uns nos outros, com
a ordem provindo do caos, a desordem, e os tipos subsequentes de organismo
evoluindo apenas quando as condições físicas da natureza estavam preparadas
para o seu aparecimento, pois a nossa atual raça não poderia ter respirado na
terra durante esse período intermediário, não tendo ainda as alegóricas túnicas
de pele. [105]
Nos capítulos IV e V do Gênese encontramos as chamadas gerações de Caim
e Seth. Observemo-las na ordem em que figuram:
Linhas de Gerações

Todas as lendas bíblicas referem-se à história universal


Tais são os dez patriarcas da Bíblia, idênticos aos prajâpatis hindus, e às
Sephîrôth da Cabala. Dizemos dez patriarcas, não vinte, pois a linhagem de
Caim foi urdida apenas no propósito de 1º, pôr em prática a idéia do dualismo,
sobre a qual se funda a filosofia de todas as religiões, pois essas duas tabelas
genealógicas representam simplesmente os poderes ou princípios opostos do
bem e do mal; e 2º, lançar um véu sobre as massas não iniciadas. Acreditamos
tê-las restaurado à sua forma primitiva, afastando esses véus premeditados.
Eles são tão transparentes que só precisamos de um pouco de perspicácia para
rasgá-los, mesmo que só possamos utilizar o discernimento, sem o auxílio da
doutrina secreta.
Se nos livrarmos, por conseguinte, dos nomes da linhagem de Caim que são
apenas duplicações dos da linhagem de Seth, ou de qualquer outra, livramo-nos
de Adão; de Henoc — que, numa genealogia, figura como pai de Irad, e, na outra,
como filho de Jared; de Lamech, filho de Metusael, ao passo que ele, Lamech,
é filho de Mathusalém, na linhagem de Seth; de Irad (Jared), [106] Jubal e Jabal,
que, com Tibalcain, formam uma trindade em um, e esse um, o duplo de Caim;
de Mehujael (que não é senão outra grafia de Mahalalil), e Metusael
(Mathusalém). Resta assim, na genealogia de Caim do capítulo IV, apenas um
nome, o de Caim, que — como primeiro assassino e fratricida — permanece em
sua linhagem como pai de Henoc, o mais virtuoso dos homens, que não morre
e é levado com vida. Voltamos à tábua de Seth, e descobrimos que Enós, ou
Henoc, é o segundo depois de Adão, e pai de Caim (Cainam). Isto não é um
acidente. Há uma razão evidente para essa inversão de paternidade, um
desígnio palpável — o de criar confusão e dificultar a investigação.
Dizemos, portanto, que os patriarcas são simplesmente os signos do Zodíaco,
emblemas, em seus múltiplos aspectos, da evolução espiritual e física das raças
humanas, das eras e das divisões do tempo. Na astrologia, as primeiras quartas
“Casas”, nos diagramas das “Doze Casas do Céu” — a saber, a primeira, a
décima, a sétima e a quarta, ou o segundo quadrante interno com seus ângulos
superior e inferior, chamam-se ângulos, por estarem dotados de grande força.
Eles correspondem a Adão, Noé, Cain-am, e Henoc, Alfa, Ômega, mal e bem,
que governam o todo. Além disso, quando divididos (incluindo os dois nomes
secretos) em quatro trígonos ou tríadas, a saber: a ígnea, a aérea, a terrestre e
a aquática, encontramos que a última corresponde a Noé.
Henoc e Lamech são duplicados na tábua de Caim para perfazer o número dez
nas duas “gerações” da Bíblia, sem o emprego do “Nome Secreto”; e para que
os patriarcas correspondam às dez Sephîrôth cabalísticas, quadrando-se ao
mesmo tempo com os dez, e posteriormente doze, signos do Zodíaco, de modo
compreensível apenas aos cabalistas.
Tendo Abel desaparecido dessa linhagem, ele é substituído por Seth, que foi
claramente uma idéia posterior sugerida pela necessidade de não fazer a raça
humana descender inteiramente de um assassino. Esse dilema só foi percebido,
ao que parece, quando a tabela de Caim estava completa, e assim se fez que
Adão (depois do aparecimento de todas as gerações) gerasse esse filho, Seth.
É sugestivo o fato de que, ao passo que o Adão bissexuado do capítulo V é feito
à imagem e semelhança dos Elohim (ver Gênese, I, 27, e V, 1), Seth (V, 3) é
gerado à “semelhança” de Adão, significando assim que havia homens de raças
diferentes. É notável também que nenhum dado figure, na tabela de Caim,
relativo à época ou a outros detalhes dos patriarcas, ao passo que o contrário é
verdadeiro nas linhagens de Seth.
É claro que ninguém deveria esperar descobrir, numa obra aberta ao público, os
mistérios finais daquilo que foi preservado por incontáveis séculos como o maior
segredo do santuário. Mas, sem divulgar a chave ao profano, ou sem ser tachado
de indevida indiscrição, pode muito bem o autor erguer uma ponta do véu que
oculta as majestosas doutrinas da Antiguidade. Descreveremos então os
patriarcas tais como deveriam estar em sua relação com o Zodíaco, e
observaremos a sua correspondência com os signos. O seguinte diagrama
representa a Roda de Ezequiel, conforme é dada em muitas obras, entre outras
em The Rosicrucians, de Hargrave Jenning:

A RODA DE EZEQUIEL (exotérica)

Esses signos são (acompanhe os números):


1, Áries; 2, Touro; 3, Gêmeos; 4, Câncer; 5, Leão; 6, Virgem, ou linha ascendente
do grande ciclo de criação. Vêm, em seguida, 7, Libra — o “homem”, que,
embora se ache exatamente no ponto de interseção, conduz aos números 8,
Escorpião; 9, Sagitário; 10, Capricórnio; 11, Aquário; e 12, Peixes.
Ao discutir os signos duplos de Virgem-Escorpião, observa Hargrave Jennings:
“Tudo isso é incompreensível, exceto no estranho misticismo dos gnósticos e
dos cabalistas; e toda a teoria requer uma chave de explicação que a torne
inteligível, mas os ocultistas negam absolutamente a existência de tal chave,
visto que não lhes é permitido divulgá-la”. [107]
Essa dita chave deve ser girada sete vezes antes que todo o sistema possa ser
divulgado. Dar-lhe-emos apenas um giro, e dessa forma permitiremos ao profano
um relance no mistério. Feliz aquele que puder compreendê-lo todo!
A RODA DE EZEQUIEL (esotérica)

Para explicar a presença de Yod-‘heva, ou do que é geralmente chamado de


Tetragrama, ‫יהוה‬, e de Adão e Eva, bastará remeter o leitor aos seguintes versos
do Gênese, com o seu sentido correto inserido nos colchetes.
1. “E Deus [os Elohim] criou o homem à sua [deles] imagem (...) macho e fêmea
os [o] criou” — (cap. I, 27).
2. “Macho e fêmea os [o] criou (...) e deu-lhes [lhe] o nome de ADÃO” — (V, 2).
Quando a Trindade é tomada no início do Tetragrama, ela expressa a criação
divina espiritual, i. e., sem qualquer pecado carnal: tomada em seu termo oposto,
ela expressa a esse último; é feminina. O nome de Eva compõe-se de três letras,
o do Adão primitivo ou celestial é escrito com uma única letra, Jod ou Yod; por
conseguinte, não se deve ler Jeová, mas Ieva, ou Eva. O Adão do primeiro
capítulo é espiritual, portanto puro, andrógino, Adão-Cadmo. Quando a mulher
sai da costela esquerda do segundo Adão (do pó), a Virgem pura se separa, e,
caindo “na geração”, ou no ciclo inferior, torna-se Escorpião, [108] emblema do
pecado e da matéria. Ao passo que o ciclo ascendente assinala as raças
puramente espirituais, ou os dez patriarcas antediluvianos, os Prajâpatis e as
Sephîrôth [109] são conduzidos pela própria Divindade criadora, que é Adão-
Cadmo, ou Yod-‘heva. [Espiritualmente], o inferior [Jeová] é o das raças
terrestres, conduzidas por Enoque ou Libra, o sétimo, que, por ser metade divino,
metade terrestre, teria sido tomado com vida por Deus. Enoque, Hermes e Libra
são uma mesma coisa. * Todos representam as escalas da harmonia universal;
a justiça e o equilíbrio estão colocados no ponto central do Zodíaco. O grande
círculo dos céus, de que tão bem fala Platão no Timeu, [110] simboliza o
desconhecido como uma unidade; e os círculos menores que formam a cruz, por
sua divisão no plano do anel zodiacal, representam, no ponto de sua interseção,
a vida. As forças centrípetas e centrífugas, como símbolos do Bem e do Mal, do
Espírito e da Matéria, da Vida e da Morte, o são também do Criador e do
Destruidor — Adão e Eva, ou Deus e o Demônio. Nos mundos subjetivos, assim
como no objetivo, elas são as duas forças que através de seu eterno conflito
mantêm o espírito e a matéria em harmonia. Elas forçam os planetas a buscar
seus caminhos, e os mantêm em suas órbitas elípticas, traçando assim a cruz
astronômica em sua revolução através do Zodíaco. Em seu conflito, a força
centrípeta, se prevalecesse, dirigiria os planetas e as almas vivas ao sol,
protótipo do Sol Espiritual invisível, o Paramâtman ou grande Alma universal,
seu pai, ao passo que a força centrífuga enxotaria os planetas e as almas para
o espaço árido, muito longe do luminar do universo objetivo, fora do reino
espiritual da salvação e da vida eterna, e para o caos da destruição cósmica
final, e da aniquilação individual. Mas a harmonia aí está, sempre perceptível no
ponto de interseção. Ela regula a ação das duas combatentes, e o esforço
combinado de ambas faz os planetas e as “almas vivas” traçarem uma dupla
linha diagonal em sua revolução através do Zodíaco e da Vida; e assim,
preservando a rigorosa harmonia, no céu e na Terra visíveis e invisíveis, a
forçada unidade de ambas reconcilia o espírito e a matéria, e Henoc permanece
como um “Metraton” diante de Deus. Desde Henoc até Noé e seus três filhos,
cada um representa um novo “mundo” (i. e., nossa Terra, a sétima) [111] que
após cada período de transformação geológica dá nascimento a outra raça
distinta de homens e seres.
* Os colchetes dessa frase foram acrescentados em consonância com as próprias correções de
H. P. B. em A doutrina secreta, vol. II, p. 129, onde ela cita essa passagem de Ísis sem véu. (N.
do Org.)

Caim conduz a linha ascendente, ou Macrocosmo, pois ele é o Filho do “Senhor”,


não de Adão (Gênese, VI, 1). O “Senhor” é Adão-Cadmo, Caim, o Filho de mente
pecadora, não a progênie de carne e sangue. Seth, por outro lado, é o guia das
raças da Terra, pois ele é o Filho de Adão, e gerado “à sua imagem e
semelhança” (Gênese, V, 3). Caim é Kenu, assírio, palavra que significa
“primogênito”, ao passo que a palavra hebraica ‫ קין‬indica um “ferreiro”, um
“artífice”.
Nossa ciência mostra que o globo passou por cinco fases geológicas distintas,
cada qual caracterizada por um estrato diferente, e estas são na ordem inversa,
a começar do último: 1º, o período Quaternário, em que o homem aparece como
uma certeza; 2º o período Terciário, no qual o homem pode ter aparecido; 3º, o
período Secundário, o dos sáurios gigantescos, os megalossauros, os
ictiossauros e os plessiossauros — sem nenhum vestígio do homem; 4º o
período Paleozóico, o dos crustáceos gigantescos; 5º (ou primeiro): o período
Azóico, durante o qual a vida orgânica ainda não havia aparecido.
E não há a possibilidade de ter havido um período (ou vários períodos) em que
o homem existia, mas não como ser orgânico — não deixando por conseguinte
nenhum vestígio para a ciência exata? O espírito não deixa esqueletos ou
fósseis, e, no entanto, poucos são os homens na Terra que duvidam de que o
homem possa viver tanto objetiva como subjetivamente. Para todos os efeitos, a
teologia dos brâmanes, de venerável antiguidade, que divide os períodos
formadores da terra em quatro eras e coloca, entre cada um deles, um lapso de
1.728.000 anos, harmoniza-se muito mais com a ciência oficial e as descobertas
modernas do que as absurdas noções cronológicas promulgadas pelos Concílios
de Nicéia e Trento.
Os nomes dos patriarcas não eram hebraicos, embora eles possam ter sido
hebraizados mais tarde; são evidentemente de origem assíria ou ária.
Assim, Adão, por exemplo, conforme explica a Cabala, é um termo conversível,
e aplica-se a quase todos os outros patriarcas, assim como cada uma das
Sephîrôth às demais, e vice-versa. Adão, Caim e Abel formam a primeira Tríada
dos doze. Eles correspondem, na árvore sephîrótica, à Coroa, à Sabedoria e à
Inteligência; e na astrologia, aos três trígonos — o ígneo, o terrestre e o aéreo,
fato esse que, se dispuséssemos de mais espaço para elucidá-lo, mostraria
talvez que a astrologia merece tanto o nome de ciência como qualquer outra.
Adão (Cadmo) ou Áries (carneiro) é idêntico a Amun, o deus egípcio de cabeça
de carneiro, que fabrica o homem na roda de oleiro. Sua duplicação, por
conseguinte — ou o Adão de pó — é também Áries, Amon, quando permanece
à testa de suas gerações, pois ele fabrica mortais também “à sua semelhança”.
Na astrologia, o planeta Júpiter está relacionado com a “primeira casa” (Áries).
A cor de Júpiter, tal como se vê nos “estágios das sete esferas”, na torre de
Borsippa, ou Birs Nimrud, era vermelha; [112] e no hebraico Adão, ‫אדם‬, significa
“vermelho”, assim como “homem”. O deus hindu Agni, que governa o signo de
Peixes, próximo do de Áries, em sua relação com os doze meses (fevereiro e
março), [113] é pintado com um intenso vermelho, com duas faces (masculina e
feminina), três pernas, e sete braços, perfazendo o todo o número doze. Assim,
Noé (Peixes), que aparece nas genealogias como o décimo segundo patriarca,
incluindo Caim e Abel, é novamente Adão sob outro nome, pois ele é o ancestral
de uma nova raça da Humanidade; e os seus três filhos, um mau, um bom e um
que partilha de ambas as qualidades, constituem o reflexo terrestre do
superterrestre Adão e de seus três filhos. Agni figura nas imagens montado num
carneiro, com uma tiara encimada por uma cruz. [114]
Caim, que governa o Touro do Zodíaco, é também muito sugestivo. Touro
pertence ao trígono terrestre, e a propósito desse signo não será demais lembrar
ao leitor uma alegoria do Avesta persa. Reza a história que Ormasde produziu
um ser — fonte e protótipo de todos os seres do universo — chamado VIDA, ou
Touro no Zend. Ahriman (Caim) mata esse ser (Abel), da semente do qual (Seth)
novos seres são produzidos. [115] Abel, no assírio, significa filho, mas em
hebraico, ‫הבל‬, significa algo efêmero, sem valor, e também um “ídolo pagão”,
[116] pois Caim significa uma estátua de herma (um pilar, o símbolo da geração).
Assim também, Abel é a contraparte feminina de Caim (masculino), pois eles são
gêmeos e provavelmente andróginos, correspondendo o último à Sabedoria e o
primeiro à Inteligência.
Ocorre o mesmo com todos os outros patriarcas. Enosh, ‫אנוש‬, é Homo
novamente — um homem, ou o mesmo Adão, e Enoque, no acordo; e ‫קינן‬, Kain-
an, é idêntico a Caim. Seth, ‫שת‬, é Teth, ou Thoth, ou Hermes; e essa é a razão,
sem dúvida, por que Josefo [117] afirma que Seth era tão proficiente em
astrologia, geometria e outras ciências ocultas. Antevendo o dilúvio, diz ele, ele
gravou os princípios fundamentais de sua arte em dois pilares de tijolo e pedra,
o mais recente dos quais “ele próprio [Josefo] viu na Síria em seu tempo”. Por
isso, está Seth identificado também com Enoque, a quem os cabalistas e os
maçons atribuem o mesmo feito, e ao mesmo tempo com Hermes, ou Cadmo,
pois Enoque, é idêntico ao primeiro; ‫חנוך‬, He-NOCH, significa um mestre, um
iniciador, ou um iniciado; na mitologia grega, Inachus. Já vimos o papel que ele
exerce no Zodíaco.
Mahalalel, se dividirmos a palavra e escrevermos ‫מהלה‬, ma-ha-lah, significa
terno, misericordioso, e corresponde, por conseguinte, à quarta Sephîrâh, Amor
ou Misericórdia, emanada da primeira tríada. [118] Irad, ‫ירד‬, ou Iared, é (menos
as vogais) exatamente a mesma coisa. Se deriva do verbo ‫ירד‬, significa descida;
se de ‫ארד‬, arad, significa prole, e corresponde assim perfeitamente às
emanações cabalísticas.
Lamech, ‫למך‬, não é hebraico, mas grego. Lam-ach significa Lam — o pai —, e
Olam-Ach é o pai da era; ou o pai daquele (Noé) que inaugura uma nova era ou
período de criação após o pralaya do dilúvio, sendo Noé o símbolo de um novo
mundo, o Reino (Malkhuth) das Sephîrôth; é por isso que seu pai, que
corresponde à nona Sephîrôth, é a Fundação. [119] Além disso, o pai e seu filho
correspondem a Aquário e Peixes no Zodíaco, pertencendo o primeiro ao trígono
aéreo e o segundo, ao aquático, e fechando dessa forma a lista dos mitos
bíblicos.
Mas se cada patriarca representa, como já vimos, num sentido, como cada um
dos Prajâpatis, uma nova raça de seres humanos ante-diluvianos; e se, como se
pode provar facilmente, eles são as cópias dos Saros, ou eras, babilônicos,
sendo estes, por sua vez, cópias das dez dinastias dos “Senhores dos Seres”,
[120] como quer que os consideremos, eles figuram entre as alegorias mais
profundas jamais concebidas pelos espíritos filosóficos.
No Nychthêmeron, [121] a evolução do universo e os seus sucessivos períodos
de formação, juntamente com o desenvolvimento gradual das raças humanas,
são ilustrados com perfeição nas doze “horas” em que se divide a alegoria. Cada
“hora” simboliza a evolução de um novo homem, e é por sua vez dividida em
quatro quartos ou eras. Essa obra mostra quão profundamente imbuída estava
a filosofia antiga das doutrinas dos primitivos âryas, que foram os primeiros a
dividir a vida em nosso planeta em quatro eras. Se remontarmos essa doutrina
de sua fonte na noite do período tradicional até o Profeta de Patmos, não
precisaremos nos desviar entre os sistemas religiosos de outras nações.
Descobriremos que os babilônicos ensinavam que em quatro diferentes períodos
surgiram quatro Oannes (ou sóis); que os hindus propunham quatro Yugas; que
os gregos, os romanos e outros acreditavam firmemente nas idades do ouro, da
prata, do bronze e do ferro, sendo cada uma das épocas anunciada pelo
surgimento de um salvador. Os quatro Buddhas dos hindus e os três profetas
dos zoroastristas — Oshedâr-Bâmî, Oshedâr-Mâh e Saoshyant — precedidos
por Zaratustra, são os símbolos dessas idades. [122]
Na Bíblia, o próprio livro inicial nos diz que antes que os filhos de Deus vissem
as filhas dos homens, eles viviam de 365 a 969 anos. Mas quando o “Senhor
Deus” viu as iniquidades da Humanidade, decidiu conceder-lhes no máximo 120
anos de vida (Gênese, VI, 3). Para se explicar tal violenta oscilação na tabela da
mortalidade humana, é necessário remontar essa decisão do “Senhor Deus” à
sua origem. Essas incongruências que encontramos a cada passo na Bíblia só
podem ser atribuídas ao fato de que o livro Gênese e os outros livros de Moisés
foram alterados e remodelados por mais de um autor; e de que em seu estado
original eles eram, com exceção da forma externa das alegorias, cópias fiéis dos
livros sagrados hindus. Em Manu, Livro I, 81 et seq., lê-se o seguinte:
“Na primeira era, não havia doença ou sofrimento. Os homens viviam por quatro
séculos”.
Isto foi no Krita ou Satya-yuga.
“O Krita-yuga é o símbolo da justiça. O touro que se assenta firmemente sobre
as patas é a sua imagem; o homem se mantém fiel à verdade, e o mal ainda não
lhe dirige as ações.” [123] Mas em cada uma das eras seguintes a primitiva vida
humana perde um quarto da sua duração, vale dizer, no Tretâ-yuga o homem
vive 300 anos, no Dvâpara-yuga 200, e no Kali-yuga, a nossa era, apenas 100
anos, no máximo. Noé, filho de Lamech — Olam-Ach, ou pai da era — é a cópia
distorcida de Manu, filho de Svayambhû, e os seis manus ou rishis oriundos dos
“primeiros homens” hindus são os originais de Terah, Abraão, Isaac, Jacó, José
e Moisés, os sábios hebreus que, a começar de Terah, teriam sido todos
astrólogos, alquimistas, profetas inspirados e adivinhos, ou, em termos mais
profanos, porém mais claros, mágicos.
Se consultarmos o Mishnah talmúdico, descobriremos que o primeiro par divino
emanado, o Demiurgo andrógino Hokhmah (ou Hokhma-Akhamôth) e Binah,
construiu uma casa com sete colunas. Eles são os arquitetos de Deus —
Sabedoria e Inteligência — e Seu “compasso e esquadro”. As sete colunas são
os futuros sete mundos, ou os sete “dias” primordiais da criação.
“Hokhmah imola suas vítimas.” Essas vítimas são as incontáveis forças da
natureza que precisam “morrer” (consumir-se) para que possam viver; quando
uma força morre, é apenas para dar nascimento a outra força, sua prole. Ela
morre mas vive em sua criação, e ressuscita a cada sétima geração. Os servos
de Hokhmah, ou sabedoria, são as almas de ha-Adão, pois nele estão todas as
almas de Israel.
Há doze horas no dia, diz o Mishnah, e é durante essas horas que se realiza a
criação do homem. Essa frase seria incompreensível se não tivéssemos Manu
para nos ensinar que esse “dia” abrange as quatro eras do mundo e tem a
duração de doze mil anos divinos dos Devas.
“Os Criadores (Elohim) moldaram na segunda” hora “o contorno de uma forma
mais corpórea do homem. Eles o separaram em duas partes e deram formas
distintas a cada um dos sexos. Foi assim que os Elohim procederam em relação
a toda coisa criada.” [124] Todo peixe, ave, planta, animal e homem era andrógino
nessa primeira hora.”
Diz o comentador, o grande Rabino Shimon:
“Ó companheiros, companheiros, o homem como emanação era tanto homem,
como mulher, tanto do lado do PAI, como do lado da MÃE. E tal é o sentido das
palavras, e disse Elohim, Que haja Luz, e houve Luz! (...) E esse é o ‘homem
duplo’!” [125]
Uma mulher espiritual foi necessária como um contraste, pois a Harmonia
masculina espiritual é a lei universal. Na tradução de Taylor, o discurso de Platão
sobre a criação é traduzido de tal forma que o faz dizer que este universo
“estabeleceu Ele que girasse numa revolução circular (...) Quando, por
conseguinte, esse Deus, que é um raciocínio perpétuo, cogitou no Deus [homem]
que estava destinado a subsistir num certo período de tempo, fez-lhe um corpo
uniforme e igual; e igual em todos os pontos, do centro à circunferência, e
perfeito para a composição de corpos perfeitos. Esse círculo perfeito do deus
criado, Ele o decussou na forma da letra X.” [126]
Os itálicos, nas duas sentenças do Timeu, são do Dr. Lundy, o autor dessa
notável obra mencionada mais de uma vez, Monumental Christianity; [127] e
chama-se a atenção para as palavras do filósofo grego, no evidente propósito de
lhes dar o caráter profético que Justino Mártir lhes negou, ao acusar Platão de
ter emprestado sua “discussão filológica no Timeu, (...) concernente ao Filho de
Deus deposto em forma de cruz no universo”, de Moisés e sua serpente de
bronze. [128] O erudito autor parece conceder uma não premeditada profecia a
essas palavras, embora ele não nos diga se acredita que, tal como o Deus criado
de Platão, Jesus era originalmente uma esfera “uniforme e igual, e igual em todos
os pontos, do centro à circunferência”. Mesmo se se pudesse desculpar Justino,
o Mártir por deturpar Platão, o Dr. Lundy deveria saber que há muito passou a
época de tais casuísmos. O que Platão quis dar a entender é que, antes de ficar
aprisionado na matéria, o homem não tinha necessidade de membros, pois era
uma pura entidade espiritual. Por essa razão, se a Divindade, seu universo e os
corpos estelares eram concebidos como esferóides, essa forma haveria de ser
o do homem arquetípico. Como sua concha envoltória se tornou mais pesada,
surgiu a necessidade de membros, e os membros brotaram. Se imaginarmos um
homem com os braços e as pernas naturalmente estendidas no mesmo ângulo,
colocado contra o círculo que simboliza sua forma anterior como um espírito,
teremos exatamente a figura descrita por Platão — a cruz em X dentro do círculo.
Todas as lendas da criação, da queda do homem, e do consequente dilúvio
pertencem à história universal, e são tanto propriedade dos israelitas, quanto de
qualquer outra nação. O que lhes pertence em particular (excetuados os
cabalistas) são os detalhes desfigurados da tradição. O Gênese de Henoc é
muito anterior aos livros de Moisés, [129] e Guillaume Postel apresentou-o ao
mundo, explicando as alegorias na medida de sua ousadia, mas a base ainda
não foi exposta. Para os judeus, o Livro de Enoque [130] é tão canônico quanto
os livros de Moisés; e se os cristãos aceitaram esses últimos como uma
autoridade, não conseguimos perceber por que eles deveriam rejeitar o primeiro
como apócrifo. Não se pode determinar com exatidão a antiguidade de nenhum
deles. À época da separação, os samaritanos reconheciam apenas os livros de
Moisés, e o de Josué, diz o Dr. Jost. Em 168 a.C., Jerusalém teve o seu templo
saqueado, e todos os livros sagrados foram destruídos; [131] por conseguinte, os
poucos manuscritos que restaram só puderam ser encontrados entre os
“mestres da tradição”. Os tannaim cabalísticos e seus iniciados e profetas
sempre haviam praticado seus ensinamentos em comum com os cananitas, os
camitas, os madianitas, os caldeus, e todas as outras nações. A história de
Daniel é uma prova disso.
Havia uma espécie de Irmandade ou Franco-maçonaria entre os cabalistas
espalhados pelo mundo, e isso desde tempos imemoriais. Como algumas
sociedades da maçonaria medieval, na Europa, eles se chamavam de
Companheiros [132] e Inocentes. [133] Há uma crença (baseada no
conhecimento) entre os cabalistas de que apenas dois rolos herméticos são os
genuínos livros sagrados dos setenta e dois anciães — livros que continham a
“Palavra Antiga” — perdidos, mas que sempre foram preservados desde os
tempos mais remotos entre as comunidades secretas. Emanuel Swedenborg fala
bastante sobre isso, e suas palavras se baseiam, diz ele, na informação obtida
de certos espíritos, que lhe asseguraram que “eles realizavam seu culto de
acordo com a Palavra Antiga”. “Buscai-a na China”, acrescenta o grande profeta,
“e talvez a encontrareis na Grande Tartária!” Outros estudiosos das ciências
ocultas têm mais do que a palavra de “certos espíritos” neste caso especial —
eles viram os livros.
Devemos por conseguinte escolher entre dois métodos — aceitar a Bíblia
exotericamente ou esotericamente. Contra o primeiro temos os seguintes fatos:
Que, após a primeira cópia do Livro de Deus ter sido editada e lançada ao mundo
por Hilkiah, essa cópia desaparece, e Esdras tem que fazer uma nova Bíblia,
que Judas Macabeus termina; que quando foi copiada das letras cornudas para
as letras quadradas, ela foi de tal modo corrompida que não se pôde mais
reconhecer o original; que a Masorah completou o trabalho de destruição; que,
finalmente, temos um texto, de modo algum com 900 anos, formigando de
omissões, interpolações e deturpações premeditadas; e que,
consequentemente, visto que esse texto hebraico masotérico fossilizou seus
erros, e que a chave da “Palavra de Deus” está perdida, ninguém tem o direito
de impingir sobre os chamados “cristãos” as divagações de uma fileira de
profetas alucinados e talvez espúrios, sob a falsa e insustentável pretensão de
que o seu autor foi o “Espírito Santo” em propria persona.
Por conseguinte, rejeitamos essa pretensa Escritura monoteísta, formada
quando os sacerdotes de Jerusalém acreditaram necessário para a sua política
romper violentamente todos os vínculos com os gentios. É apenas nesse
momento que eles perseguiram os cabalistas, e baniram a “antiga sabedoria”
tanto dos pagãos, como dos judeus. A verdadeira Bíblia hebraica era um volume
secreto, desconhecido das massas, e mesmo o Pentateuco samaritano é muito
mais antigo do que a Septuaginta. Quanto à primeira, os padres da Igreja jamais
ouviram falar dela. Preferimos decididamente nos louvar na palavra de
Swedenborg de que a “Palavra Antiga” está em algum lugar da China ou da
Tartária. E tanto mais valioso é esse testemunho porquanto, segundo afirma pelo
menos um clérigo, a saber, o Reverendo Dr. R. L. Tafel, de Londres, o vidente
sueco estava num estado de “inspiração de Deus” enquanto escrevia suas obras
teológicas. Ele é até mesmo superior aos autores da Bíblia, pois, ao passo que
estes últimos tinham as palavras sopradas aos seus ouvidos, Swedenborg tinha
que entendê-las racionalmente, sendo, por conseguinte, internamente e não
externamente iluminado. “Quando”, diz o reverendo autor, “um membro
consciencioso da Nova Igreja ouve qualquer ataque contra a divindade e a
infalibilidade, seja da alma ou do corpo das doutrinas da Nova Jerusalém, deve
ele ter presente que, segundo essas mesmas doutrinas declaram, o Senhor
realizou Sua segunda vinda através dos escritos que foram publicados por
Emanuel Swedenborg, Seu servo, e que, por conseguinte, esses ataques não
são e não podem ser verdadeiros”. E se foi “o Senhor” que falou através de
Swedenborg, então há ainda uma esperança para nós de que pelo menos um
sacerdote corroborará nossa afirmação de que a antiga “palavra de Deus” se
acha agora apenas em países pagãos, especialmente a Tartária, o Tibete e a
China budistas!
“A história primitiva da Grécia é a história primitiva da Índia”, exclama Pococke
em sua India in Greece (p. 30). Em face dos frutos posteriores da investigação
crítica, poderíamos parafrasear a sentença e dizer. “A história primitiva da Judéia
é uma distorção da fábula indiana enxertada na do Egito”. Muitos cientistas,
encontrando fatos pertinentes, e relutando em comparar as narrativas da
revelação “divina” com as dos livros bramânicos, meramente os apresentam ao
público leitor. Entrementes, limitam as suas conclusões às críticas e às
contradições mútuas. Assim, Max Müller opõe-se às teorias de Spiegel, e de
alguns mais; e o Professor Whitney às do Orientalista de Oxford; e o Dr. Haug
investe furiosamente contra Spiegel, ao passo que o Dr. Spiegel escolhe outra
vítima, e isso, mesmo agora que os veneráveis acadianos e turanianos tiveram
o seu dia de glória. Os protocasdeus, os casdeo-citas, os sumerianos, e o que
mais, tiveram que recuar em face a outras ficções. Pior para os acadianos!
Halévy, o assiriólogo, ataca a língua acado-sumeriana da antiga Babilônia [134]
e Chabas, o egiptologista, não contente com destronar a língua turaniana, que
prestou tão eminentes serviços aos perplexos orientalistas, chama o venerável
pai dos acadianos — François Lenormant — de charlatão. Aproveitando-se da
barafunda erudita, o clero cristão reforça a sua fantástica teologia, na suposição
de que, havendo discordância entre o júri, há pelo menos um ganho de tempo
para o litigante indiciado. E assim se esquece a vital questão de saber se não
seria melhor para a cristandade a adoção antes do cristismo, do que do
Cristianismo, com a sua Bíblia, a sua redenção vicária e o seu Demônio. Mas a
um personagem tão importante quanto este último não podemos deixar de
dedicar um capítulo especial.
Notas
[1] [Cf. Plutarco, On Isis and Osiris, § 23.]

[2] Os rishis são iguais a manu. Os dez prajâpatis, filhos de Virâj, de nome Marîchi, Atri, Angiras,
Pulastya, Pulaka, Kratu, Prachetas, Vasishtha, Bhrigu e Nârada, são poderes evemerizados, as
Sephîrôth hindus. Tais Poderes emanam os sete Rishis, ou Manus, o chefe dos quais surgiu por
si mesmo do “incriado”. Ele é o Adão da Terra, e é o símbolo do homem. Seus “filhos”, os seis
Manus seguintes, representam cada qual uma nova raça de homens, e no conjunto são a
Humanidade que passa gradualmente através dos sete estágios primitivos de evolução.

[3] Nos dias de outrora, quando os brâmanes estudavam mais do que hoje o sentido oculto de
sua filosofia, explicavam eles que cada uma dessas seis raças distintas que precederam à nossa
havia desaparecido. Mas agora eles afirmam que um espécime foi preservado e que esse, não
tendo sido destruído, alcançou o atual sétimo estágio. Assim, eles, os brâmanes, são os
espécimes do Manu celestial, oriundos da boca de Brahmâ, ao passo que os Sudras foram
criados dos pés dessa divindade.

[4] [F. Lenormant, Chaldean Magic, etc., trad. do francês, Londres, 1877-1878, cap. I, p. 17-8.]

[5] Haug, Attareya-Brâhmanam, I, p. 76-9.

[6] Para evitar discussões, adotamos as conclusões paleográficas a que chegaram Martin Haug
e outros cautelosos eruditos. Pessoalmente, acreditamos nas afirmações dos brâmanes e nas
de Halhed, o tradutor dos Sâstras. [Cf. A Code of Gentoo Laws, 1776.]

[7] O deus Heptaktis.

[8] [Cf. Jacolliot, Les traditions indo-européennes, etc., p. 155; cf. Rig Veda, I, 164, 1, 2, 3.]

[9] [Jacolliot, op. cit., p. 157. Cf. Rig-Veda, I, 164, 10.]

[10] O santuário da iniciação.

[11] [Ibid., p. 160. Cf. Rig-Veda, I, 164, 21.]

[12] [Rig-Veda, I, 164, 22.]

[13] [Jacolliot, op. cit., p. 165.]

[14] “Comparative Mythologie”, in Chips, etc., II, p. 76.

[15] Embora não tendo a intenção de entrar no momento numa discussão sobre as raças
nômades do “período rhemático”, reservamos o direito de questionar a propriedade de chamar
com tal denominação aquela parte do povo primitivo donde os Vedas vieram à existência, os
âryas. Alguns cientistas acreditam não apenas que a ciência não corrobora a existência dos
âryas, como também que as tradições do Industão protestam contra tal pretensão.

[16] Sem a explicação esotérica, o Velho Testamento torna-se uma absurda miscelânea de
contos sem sentido — ou ainda, pior do que isso, enfileira-se no rol dos livros imorais. É curioso
que o Prof. Max Müller, como profundo conhecedor da Mitologia Comparada, afirme que os
prajâpatis e os deuses hindus não passam de máscaras sem atores; e que Abraão e outros
patriarcas míticos foram homens reais; sobre Abraão em especial, somos informados (ver
“Semitic Monotheism”, in Chips, I, p. 373) de que ele “só é superado por uma única figura em
toda a história do mundo”.

[17] Os itálicos são nossos. Chips, etc., vol. I, p. 77, 75.

[18] Chips, etc., vol. I, p. 8-9.

[19] Acreditamos ter já externado alhures a opinião contrária, a propósito do Atharva-Veda do


Prof. Whitney do Yale College.

[20] Chips, etc., vol. I, p. 76.

[21] Ver Baron Bunsen, Egypt’s Place, etc., vol. V, p. 90.

[22] Max Müller, conferência sobre “Os Vedas” in Chips, etc., vol. I, p. 76.

[23] Ibid., p. 73.

[24] Ibid., p. 75-6

[25] Juliano, Oratio V in Matrem Deorum, § 172.

[26] J. Lydus, De mensibus, IV, 38, 74; Movers, Die Phönizier, vol. I, p. 550-51.

[27] “Septenary Institutions”, Westminster Review, Londres, vol. LIV, outubro de 1850, p. 81.

[28] 1676.-29 Car. II, c. 7.

[29] [Justino, o Mártir, Diálogo com Trypho, XII, XXIII.]

[30] De verbo mirifico.

[31] [Gênese, III, 16-8.]

[32] Zohar, III, p. 292b; ed. de Amst. O Supremo que se consulta com o Arquiteto do mundo —
em Logos — sobre a criação.

[33] Berêshîth Rabbah, parsha IX. Se os capítulos do Gênese e dos outros livros mosaicos,
assim como os temas, foram alterados, a falta é do compilador — não da tradição oral. Hilkiah e
Josias tiveram que ponderar com Huldah, a profetisa, daí o recurso à magia, para compreender
a palavra do “Senhor Deus de Israel”, muito convenientemente encontrada por Hilkiah (2 Reis,
XXII); e que a tarefa ultrapassou em muito os limites duma revisão ou remodelação, provam-no
as suas frequentes incongruências, repetições e contradições.

[34] Essa assimilação do dilúvio a um terremoto nas tábuas assírias provaria que as nações
antediluvianas estavam bem familiarizadas com outros cataclismos geológicos do dilúvio, que
figura na Bíblia como a primeira calamidade que recaiu sobre a Humanidade, e como uma
punição.

[35] George Smith observa nas tábuas, primeiro a criação da Lua, e depois a do Sol: “A beleza
e a perfeição de ambos são louvadas, e a regularidade de suas órbitas, é por ele considerada
como o símbolo de um juiz que regula o mundo”. Se essa história se refere simplesmente a um
cataclismo cosmogônico — ou mesmo universal —, por que falaria a deusa Ishtar ou Astoreth (a
Lua) da criação do Sol após o dilúvio? As águas poderiam ter atingido as alturas da montanha
de Nizir (na versão caldaica), ou Jebel-Judi (as montanhas do dilúvio das lendas árabes), ou
ainda Ararat (da narrativa bíblica), e ainda o Himâlâya da tradição hindu, e no entanto não
alcançar o Sol — e nem mesmo a Bíblia se atreve a esse milagre. É evidente que o dilúvio do
povo que primeiro o registrou tinha um outro significado, menos problemático e muito mais
filosófico do que o de um dilúvio universal, do qual não há um traço geológico sequer.
[36] [G. Smith, Assyrian Discoveries, 1875, p. 190-91. Cf. Jastrow, The Civil. of Babylonia, p.
449-51.]

[37] [Gênese, I, 2; VII, 18.]

[38] A “letra morta que mata” é magnificamente ilustrada no caso do Jesuíta de Carrière, citado
em La Bible dans l’Inde, p. 253. A seguinte dissertação representa o espírito de todo o mundo
católico: “De modo que a criação do mundo”, escreve esse fiel filho de Loiola, ao explicar a
cronologia bíblica de Moisés, “e tudo que é registrado no Gênese, poderia ter chegado ao
conhecimento de Moisés por meio dos relatos que os seus pais lhe fizeram pessoalmente.
Talvez, mesmo, as lembranças ainda existentes entre os israelitas, e dessas lembranças ele
pode ter registrado as datas de nascimento e morte dos patriarcas, o número de seus filhos, e
os nomes dos diferentes países em que cada um se estabeleceu sob a guia do Espírito Santo,
que devemos sempre encarar como o principal autor dos livros sagrados”!!!

[39] [Eusébio, Chronicon, livro I, cap. II e VII. Cf. Cory, Anc. Fragm., 1832, p. 26 e s.]

[40] Ver vol. I, cap. XV, e o último desta obra.

[41] Description, etc., of the People of India, pelo Abbé J. A. Dubois, missionário em Mysore, vol.
I, parte II, cap. VI, p. 129, 186; 1817.

[42] La Genèse de l’humanite, p. 169, 170.

[43] Jacolliot, op. cit., p. 170-71.

[44] Researches into (…) Ancient and Hindu Mythology.

[45] Contra a última afirmação, derivada apenas dos relatos da Bíblia, temos o próprio fato
histórico. 1º Não há prova alguma de que essas doze tribos tenham existido; a de Levi era uma
casta sacerdotal, e todas as outras imaginárias. 2º Heródoto, o mais exato dos historiadores, que
esteve na Assíria quando Esdras floresceu, nunca menciona os israelitas. Heródoto nasceu em
484 a.C.

[46] [“Comparative Mythology” in Chips, etc., vol. II, p. 14.]

[47] O próprio Dr. Kannicott, e Bruns, sob sua direção, por volta de 1780, reuniram 692
manuscritos da “Bíblia” hebraica. De todos esses, apenas dois foram creditados ao século X, e
três ao período entre os séculos XI e XII. Os outros se classificavam entre os séculos XIII e XVI.

[48] Em sua Introduzione alla Sacra Scrittura, p. 34-47, de Rossi menciona 1.418 manuscritos
reunidos, e 374 edições. O Codex manuscrito mais antigo, afirma ele — o de Viena — data do
ano 1019 d.C.; o seguinte, de Reuchlin de Karlsruhe, 1038. “Não há”, declara ele, “nenhum
manuscrito hebraico do Antigo Testamento que seja de data anterior ao século XI d.C.”

[49] [Christian Orthodoxy, Londres, 1857, p. 239.]

[50] India in Greece, prefácio, p. VIII-IX.

[51] Chips, etc., vol. I, p. 5.

[52] Egypt’s Place in Universal History, vol. V, p. 77-8).

[53] Chips, etc., vol. I, p. 114; Aitareya-Brâhmanam, vol. I, introdução, p. 47-8.

[54] Dr. M. Haug, Superintendente dos estudos sânscritos no Colégio de Poona, Bombay.

[55] [G. Rawlinson, The Hist. of Herodotus, vol. I, p. 669-70; Londres, 1858.]

[56] [Ordinances of Manu, prefácio, p. VII.]


[57] [Egypt’s Place, etc., vol. IV, p. 142.]

[58] [History, VII, §70.]

[59] Pococke pertence àquela classe de orientalistas que acreditam que o Budismo precedeu o
Bramanismo, e era a religião dos Vedas mais antigos, tendo Gautama apenas lhes restaurado a
forma pura, que depois degenerou novamente em dogmatismo.

[60] India in Greece, p. 200.

[61] A origem asiática dos primeiros habitantes do Vale do Nilo é claramente demonstrada por
testemunhos paralelos e independentes. Cuvier e Blumenbach afirmam que todos os crânios de
múmias que eles tiveram oportunidade de examinar apresentavam o tipo caucasiano. Um
moderno fisiologista americano (o Dr. S. G. Morton) chegou também à mesma conclusão (Crania
Aegyptiaca, Londres, Filadélfia, 1844, p. 20, 40-1, 53, 63-6).

[62] O falecido Râjâ de Travancore foi sucedido pelo filho mais velho de sua irmã, o atual regente,
o Mahârâja Râma Vurmah. Os herdeiros seguintes são os filhos de sua falecida irmã. No caso
de a linhagem feminina ser interrompida pela morte, a família real é obrigada a adotar a filha de
algum outro Râjâ, e a não ser que nasçam filhas dessas Rânî, outra menina é adotada, e assim
por diante.

[63] Há alguns orientalistas que acreditam que esse costume foi introduzido apenas depois das
primeiras colônias na Etiópia; mas como sob os romanos a população desse país se alterou
quase por completo, tornando-se o elemento totalmente arábico, podemos acreditar, sem
nenhuma dúvida, que foi a influência árabe predominante que alterou a antiga escrita. Seu
método atual é muito mais análogo ao Devanâgarf, e a outros alfabetos indianos mais antigos,
que se lêem da esquerda para a direita e cujos caracteres não têm nenhuma semelhança com
as letras fenícias. Ademais, todas as autoridades antigas corroboram plenamente a nossa
afirmativa. Filostrato faz o brâmane Iarchas dizer (Vita Apoll., III, XX) que os etíopes eram
originalmente de raça indiana, tendo sido compelidos a emigrar da terra-mãe por sacrilégio e
regicídio. “Assinalou um egípcio que o seu pai lhe contara que os indianos eram os homens mais
sábios, e que os etíopes, uma colônia de indianos, preservaram a sabedoria e os costumes de
seus pais, e reconheciam a sua antiga origem.” Julius Africanus (em Eusébio e Syncellus) faz a
mesma afirmação (Pococke, India in Greece, p. 205-06). E escreve Eusébio: “Os etíopes,
emigrando do rio Indo, fixaram-se nas vizinhanças do Egito” (Lemprière, Classical Dictionary, s.
v. “Meroe”; ed. de Barker).

[64] [Pococke, India in Greece, p. 200.]

[65] Eles poderiam ser simplesmente, como pensa Pococke, tribos do “Oxus”, um nome derivado
dos “Ookshas”, as pessoas cuja riqueza repousa no “Ox”, “boi”, pois ele mostra que Ookshan é
uma forma rude de Ooksha, um “boi” (em sânscrito, ox significa também “boi”). Ele acredita que
foram eles, “os senhores do OXUS”, que deram seu nome ao mar em torno do qual eles reinaram
em mais de um país, o Euxino ou Ooksh-ine. “Pâli, significa “pastor”, e s’thân é uma terra (...) As
tribos guerreiras do Oxus (...) penetraram no Egito, e depois voltaram para a Palestina (PÂLI-
STÂN), a “terra dos Pâlis, ou pastores”, e aí estabeleceram colônias mais permanentes (...)
“(India in Greece, p. 198). Mesmo se assim fosse, isso apenas confirma a nossa opinião de que
os judeus são uma raça híbrida, pois a Bíblia os mostra unindo-se livremente por casamento,
não apenas com os cananitas, mas com todas as outras raças ou nações com que entravam em
contato.

[66] Prof. A. Wilder: “Notes”.

[67] Moisés reinou sobre o povo de Israel no deserto por mais de quarenta anos.

[68] O nome da mulher de Moisés era Séfora (Êxodo, II, 21).


[69] Op. cit., 1876, p. 299-300.

[70] Por volta de 1040 os doutores judeus transferiram suas escolas da Babilônia para a
Espanha, e as obras dos quatro grandes rabinos que floresceram durante os quatro séculos
seguintes mostram diferentes versões, e abundam de erros nos manuscritos. Os “Masorah”
fizeram coisas ainda piores. Muitas coisas que então existiam nos manuscritos foram eliminadas,
e suas obras formigam de interpolações e de lacunae. O mais antigo manuscrito hebraico
pertence a esse período. Tal é a revelação divina a que devemos dar crédito.

[71] Op. cit., p. 300.

[72] Nenhuma cronologia foi aceita como autorizada pelos rabinos antes do século XII. Os
números 40 e 1.000 não são exatos, mas foram aumentados para corresponder ao monoteísmo
e às exigências de uma religião que deveria parecer diferente da dos pagãos (“Chron. Orth”, p.
237). Descobrimos no Pentateuco apenas eventos que ocorreram cerca de dois anos antes do
fabuloso “Êxodo”. O resto da cronologia inexiste, e só pode ser seguida através de cálculos
cabalistas, tendo-se a chave em mãos.

[73] Os gnósticos coliridianos transferiram seu culto de Astoreth a Maria, também Rainha do
Céu. Eles foram perseguidos e condenados à morte pelos cristãos ortodoxos, sob a acusação
de heresia. Mas se esses gnósticos haviam estabelecido seu culto oferecendo à deusa sacrifícios
de bolos, biscoitos e finas hóstias, foi porque acreditavam que ela havia nascido de uma virgem
imaculada, tal como se pretende que Cristo tenha nascido de sua mãe. E agora, tendo sido a
infalibilidade papal reconhecida e aceita, sua primeira manifestação prática é a restauração da
crença coliridiana como um artigo de fé. Ver Hone, The Apocryphal New Testament. “The Gospel
of the Birth of Mary” (atribuído a Mateus), com introdução de Hone.

[74] Hargrave Jennings, The Rosicrucians, 1870, p. 328.

[75] The Progress of Religious Ideas, etc., I, p. 157-58.

[76] Lilith foi a primeira mulher de Adão, “antes de seu casamento com Eva, de quem ele nada
gerou a não ser demônios”. Não deixa de surpreender essa nova maneira piedosa de explicar
uma alegoria eminentemente filosófica. [Cf. Buxtorf, Lexicon Chaldaicum, etc., p. 1140.]

[77] Era em comemoração da Arca do Dilúvio que os fenícios, esses intrépidos exploradores do
“abismo”, fixavam, na proa de seus navios, a imagem da deusa Astarté, que é Elissa, Vênus-
Erycina da Sicília, e Dido, cujo nome é o feminino de Davi.

[78] [Hist. of Hindostan, vol. II, prancha VIII; vol. III, pranchas VIII e IX.]

[79] [Gênese, III, 15.]

[80] [Dr. Lundy, Monumental Christianity, p. 161.]

[81] [Luciano, De Syria Dea, §28.]

[82] 1 Reis, XVIII, 43, 44. Tudo isso é alegórico, e, ademais, puramente mágico. Pois Elias está
sob o influxo de um encantamento.

[83] [Rosenroth, Kabb. denudata, II, p. 305; ed. 1684.]

[84] [Egypt’s Place, etc., vol. I, p. 69 e s.; vol. IV, p. 335.]

[85] [Biblioth. Hist., 11, 30.]

[86] [Cory, Ancient Fragm., p. 26 e s. Cf. Movers, Die Phönizier, vol. I, p. 165.]

[87] Os livros do Talmude dizem que Noé era a pomba (espírito), identificando-o assim com o
Nuah caldeu. Baal é representado com as asas de uma pomba, e os samaritanos cultuavam, no
Monte Garizim, a imagem de uma pomba. — Talmude, Hulin, 6ª [Cf. Nork, Hundert und ein Frage,
p. 37.]

[88] Números, X, 29, 31.

[89] A Bíblia se contradiz, tal como o relato caldeu, pois, no cap. VII do Gênese, se diz que “todos
eles” pereceram no dilúvio.

[90] Números, XIII, 33.

[91] Não conseguimos atinar porque o clero — especialmente o católico — deveria objetar à
nossa afirmação de que os patriarcas são signos do zodíaco, tal como os antigos deuses
“pagãos”. Houve um tempo, e isso há menos de dois séculos, em que o clero exibia o mais
fervente desejo de restabelecer o culto do Sol e das estrelas. Essa piedosa e curiosa tentativa
foi denunciada há alguns poucos meses por Camille Flammarion, o astrônomo francês. Ele
mostra que dois jesuítas de Augsburg, Schiller e Bayer, sentiram vontade de modificar os nomes
de toda a massa sabéia do céu estelar, e adorá-la sob nomes cristãos! Tendo anatematizado os
idólatras adoradores do Sol por mais de quinze séculos, a Igreja agora se propôs seriamente a
continuar a heliolatria — ao pé da letra, desta vez —, pois sua idéia era substituir os mitos bíblicos
pagãos e (a seu ver) os personagens reais. Eles chamariam o Sol de Cristo; a Lua, de Virgem
Maria; Saturno, de Adão; Júpiter, de Moisés (!); Marte, de Josué; Vênus, de João Baptista; e
Mercúrio, de Elias. De fato, substitutos bem apropriados, mostrando a grande familiaridade da
Igreja católica com o antigo saber pagão e cabalístico, e a sua boa vontade, talvez, em pelo
menos confessar a fonte donde vieram os seus próprios mitos. Pois não é o rei Messias o Sol, o
Demiurgo dos heliólatras, sob vários nomes? Não é ele o Osíris egípcio e o Apolo grego? E que
nome mais apropriado do que o da Virgem Maria para a pagã Diana-Astarte, “a Rainha do Céu”,
contra a qual Jeremias gastou todo um vocabulário de imprecações? Tal adoração seria tanto
histórica, como religiosamente correta. Duas recentes pranchas foram publicadas, diz
Flammarion, num recente número de La Nature, e representavam os céus com constelações
cristãs no lugar de pagãs. Apóstolos, papas, santos, mártires e personagens do Velho e do Novo
Testamento completavam esse sabeanismo cristão. “Os discípulos de Loyola usaram todo o seu
poder para conseguir sucesso.” É curioso encontrar na Índia, entre os muçulmanos, o nome de
Terah, o pai de Abraão, Azar ou Azarh, e Âzur, que também significa fogo, e é, ao mesmo tempo,
o nome do terceiro mês solar hindu (de junho a julho), durante o qual o Sol está em Gêmeos, e
a Lua cheia próxima de Sagitário.

[92] Cícero, De natura Deorum, I, XII.

[93] History, II, §145.

[94] [Fragments, LIII, LIV.]

[95] [Cf. E. Lévi, Dogme et Rituel, etc., vol. I.]

[96] Monumental Christianity, p. 9.

[97] Quem, a não ser os autores do Pentateuco, poderia ter inventado um Deus Supremo ou um
seu anjo de caráter tão humano a ponto de requerer uma mancha de sangue na ombreira para
impedir o assassínio da pessoa errada?! Por ser grosseiro materialismo, isso ultrapassa todas
as concepções teísticas de que temos notícia na literatura pagã.

[98] Denon, Voyage dans Ia basse et Ia haute Egypte, vol. II, prancha 40, fig. 8, p. 54, 145.

[99] Dr. Lundy, op. cit., p. 13, 402.

[100] Na obra Ruins (...) of Empires, de C. F. de Volney, p. 360, observa-se que, tendo estado
Áries em seu décimo quinto grau, no ano 1447 a.C., não poderia o primeiro grau de “Libra” ter
coincidido com o equinócio vernal senão no ano 15.194 a.C., de sorte que, acrescentando a esse
número os 1790 anos transcorridos desde o nascimento de Cristo, podemos estimar a origem
do Zodíaco para o ano 16.984.

[101] [Die Phönizier, vol. I, p. 165 e s.]

[102] Ver as gravuras em Inman, Ancient Faiths Embodied in Ancient Names, vol. I, p. 529.

[103] Cícero, De natura deorum, I, X.

[104] Virgílio, Eneida, VI, 724-27.

[105] O termo “túnicas de pele” torna-se mais sugestivo quando sabemos que a palavra hebraica
“pele” utilizada no texto original significa pele humana. Diz o texto: “E Yava-Aleim fez para Adão
e sua mulher ‫בתבת עור‬, KOTHNOTH OR.” Gênese, III, 21. A primeira palavra hebraica é sinônimo
do grego χιτών, chiton, “capa”. Parkhurst a define como a pele dos homens ou dos animais, ‫ער‬,
‫עור‬, e ‫עות‬, OUR, OR ou ORAH. A mesma palavra é empregada em Êxodo, XXXIV, 30, 35, em
que a pele de Moisés “brilhou” (A. Wilder).

[106] Aqui, novamente, os “Masorah”, transformando um no outro, ajudaram a falsificar o pouco


que ainda havia restado das Escrituras originais.

De Rossi, de Parma, afirma em seu Compêndio, vol. IV, p. 7-8, a propósito dos Masoretas: “É
sabido o cuidado com que Esdras, o melhor crítico que eles tiveram, reformou [o texto] e o
corrigiu, e lhe restaurou o esplendor primitivo. Dentre as várias revisões efetuadas
posteriormente, nenhuma é mais célebre do que a dos Masoretas, que floresceram depois do
século VI (...) e todos os mais zelosos adoradores e defensores do ‘Masorah’, cristãos e judeus
(...) concordam ingenuamente que ele, tal como existe, é deficiente, imperfeito, interpolado, cheio
de erros, e um guia muito pouco seguro.” A letra quadrada só foi inventada a partir do século III.

[107] The Rosicrucians, 1870, p. 64-5.

[108] Escorpião é o signo astrológico dos órgãos de reprodução.

[109] Os patriarcas podem ser convertidos em números, e intercambiados. Segundo o que


simbolizam, podem tornar-se dez, cinco, sete, doze, e mesmo catorze. O sistema em seu todo é
tão complicado que se torna impossível numa obra como esta dar mais do que algumas pistas
sobre certas matérias.

[110] [34 et seq.]

[111] Ver o vol. I da presente obra, cap. I. Só o cálculo hindu pelo Zodíaco pode dar uma chave
das cronologias hebraicas e das épocas dos patriarcas. Se tivermos em mente que, de acordo
com os primeiros cálculos astronômicos e cronológicos dos catorze manvantaras (ou épocas
divinas), cada uma das quais, composta de doze mil anos dos devas, multiplicados por setenta
e um, forma um período de criação, e que apenas sete desses períodos já se passaram,
compreenderemos então, com maior clareza, o cômputo hebraico. No propósito de ajudar, na
medida do possível, àqueles que poderão coisas muito interessantes nesse cômputo,
lembraremos ao leitor que o Zodíaco se divide em 360 graus, e que cada signo, por sua vez, tem
30 graus; que na Bíblia samaritana a época de Henoc é fixada em 360 anos; que em Manu, as
divisões de tempo são assim computadas: “O dia e a noite são compostos de Muhurtas. Um
muhurta contém trinta kalâs. Um mês [dos mortais] compõe-se de trinta dias, mas ele é apenas
um dia e uma noite dos pitris. (...) Um ano [dos mortais] é um dia e uma noite dos Devas”. [Manu,
I, 64-7.]

[112] Ver H. C. Rawlinson, “Diagrams” [“On the Birs Nimrud, etc.,”, in Journal of the Royal Asiatic
Society of Great Britain and Ireland, vol. XVIII, 1861, p. 17-9.]
[113] No Zodíaco bramânico os signos são presididos por um dos doze grandes deuses, e a eles
dedicados. Assim: 1. Mesha (Áries) é dedicado a Varuna; 2. Vrisha (Touro), a Yama; 3. Mithuna
(Gêmeos), a Pâvana; 4. Karkataka (Câncer), a Sûrya; 5. Sinha (Leão), a Soma; 6. Kanyâ
(Virgem), a Kârttikeya; 7. Tulâ (Libra), a Kuvera; 8. Vrischika (Escorpião), a Kâma; 9. Dhanu
(Sagitário), a Ganesa; 10. Makara (Capricórnio), a Pulaha; 11. Kumbha (Aquário), a Indra; e 12.
Mîna (Peixes), a Agni.

[114] E. Moor, The Hindoo Pantheon, p. 295-302, e pr. 80.

[115] [Cf. Haug, Essays on the Sacred Language (…) of the Parsees, 1878, p. 147, nota.]

[116] Apolo era também Abelius, ou Bel.

[117] [Antiquities, I, II, 3.]

[118] Halal é um nome de Apolo. O nome de Mahalal-Eliel seria então o sol outonal, de julho, e
esse patriarca rege Leão (julho), o signo zodiacal.

[119] Ver a descrição das Sephîrôth no Capítulo V.

[120] Podemos observar o quão servil era essa cópia caldaica comparando a cronologia hindu
com a dos babilônios. Segundo Manu, as dinastias antediluvianas dos Prajâpatis reinaram por
4.320.000 anos humanos, toda uma era divina dos devas, em suma, a extensão de tempo que
invariavelmente ocorre entre a vida na Terra e a dissolução dessa vida, ou pralaya. Os caldeus,
por sua vez, deram precisamente os mesmos números, menos uma cifra, a saber: deram a seus
120 saros um total de 432.000 anos.

[121] Éliphas Lévi dá tanto a versão grega, quanto a hebraica, mas de um modo tão condensado
e arbitrário que ê impossível a quem quer que seja e conheça menos do que ele o tentar
compreendê-lo. [Dogme et rituel, etc., II, supl.]

[122] [Cf. Spiegel, Zend-Avesta, I, p. 32 e s.]

[123] Ver a dissertação do Rabino Shimon sobre o Homem-Touro primitivo e os chifres. Zohar.

[124] “The Nychthêmeron of the Hebrews”; ver É. Lévi, Dogme et rituel, etc., II, supl.

[125] Auszüge aus dem Buche Sohar, Berlim, 1857, p. 14-5.

[126] [T. Taylor, The Works of Plato, vol. II, p. 483, 487.]

[127] [P. 8.]

[128] [Primeira Apologia, cap. LX.]

[129] Tal é a opinião dos eruditos Drs. Jost e Donaldson. “A coleção dos escritos do Velho
Testamento, tal como agora os possuímos, parece ter sido concluída por volta do ano 150 a.C.
Os judeus procuraram então os livros que se perderam na diáspora, e os juntaram num único
recolho” (Ghillany, Die Menschenopfer der altern Hebräer, p. l).

[130] I. M. Jost, The Israelite Indeed, I, p. 51.

[131] Josefo, Antiguidades, XII, V, 4.

[132] A. Franck, La Kabbale, 1843, p. 131.

[133] Gaffarel, Introduction to Book of Enoch.

[134] [Mélanges d’épigraphie et d’archéologie sémitique, Paris, 1874.]


10
O mito do Demônio
“Afasta-te de mim, SATÔ (Palavras de Jesus a Pedro).
Mateus, XVI, 23.

“E tal enredo de patranhas e de tolices


Que me afastam de minha fé. Digo-vos que
Ele me deteve, ontem à noite, por nove horas pelo menos
Recitando-me os muitos nomes do diabo (...)”
King Henry IV, Parte I, Ato iii, seção 1, versos 153-56.

“La force terrible et juste qui tue éternellement les avortons a été nommée
par les Hébreux Samael; par les Orientaux, Satan; et par les Latins,
Lucifer. Le Lucifer de Ia Cabale n’est pas un ange maudit et foudroyé;
c’est l’ange qui éclaire et qui régenère en brûlant.”
ÉLIPHAS LÉVI, Dogme et rituel, etc., II, Intr.

“Ainda que o diabo seja mau de per si,


os homens atiram sobre ele a culpa de todas
as suas maldades e o maltratam e incriminam
injustamente’.”
DE DEFOE, The Political History of the Devil, Londres, 1726.

Há alguns anos, um notável escritor e cabalista perseguido sugeriu o seguinte


credo, comum para protestantes e católicos romanos:
Protoevangelium
“Creio no Diabo, o Pai Todo-poderoso do Mal, o Destruidor de todas as
coisas, Perturbador do Céu e da Terra;
E no Anticristo, seu único Filho, nosso Perseguidor,
Que foi concebido do Espírito do Mal;
Nascido de uma sacrílega Virgem louca,
Glorificado pela Humanidade, reinou sobre ela,
E ascendeu ao trono de Deus Todo-poderoso,
E sentado junto a Ele insulta os vivos e os mortos.
Creio no Espírito do Mal;
Na Sinagoga de Satã;
Na comunhão dos perversos,
Na perdição do corpo;
E na Morte e no Inferno eternos. Amém.”

Esse credo ofende alguém? Parece ser extravagante, cruel ou blasfemo? Prestai
atenção: Na cidade de Nova York, no nono dia do mês de abril de 1877 — isto
é, no último quartel daquele que é orgulhosamente chamado de século da
descoberta e de idade da iluminação —, foram mencionadas as idéias
escandalosas que seguem. Citamos do relato do Sun da manhã seguinte:
“Os pregadores batistas reuniram-se ontem na Capela dos Marinheiros, em
Oliver Street. Muitos missionários estrangeiros estavam presentes. O Rev. John
W. Sarles, do Brooklin, leu um discurso, em que defendia a proposição de que
todo gentio adulto que morrer sem o conhecimento do Evangelho está
condenado para toda a eternidade. De outra maneira, argumentou o reverendo
ensaísta, o Evangelho é uma maldição, em vez de uma bênção, os judeus que
crucificaram Cristo obraram com justiça e toda a estrutura da religião revelada
cai por terra.
“O Irmão Stoddard, um missionário da Índia, endossou as opiniões do pastor do
Brooklin, dizendo que os hindus era grandes pecadores. Certa vez, depois de ter
ele pregado num mercado público, um brâmane se acercou dele e lhe disse:
‘Nós, os hindus, podemos avantajar-nos o mundo em mentiras, mas este homem
nos vence. Como pode ele dizer que Deus nos ama? Olhai para as serpentes
venenosas, os tigres, os leões e todas as espécies de animais perigosos que
nos rodeiam. Se Deus nos ama, por que Ele não os afugenta?’
“O Rev. Sr. Pixley, de Hamilton, N. Y., aderiu entusiasticamente à doutrina do
ensaio do Irmão Sarles e solicitou 5.000 dólares para o ensino de jovens
aspirantes ao sacerdócio.”
E esses homens — não diremos que ensinam a doutrina de Jesus, pois isso
seria insultar a sua memória, mas — são pagos para ensinar a sua doutrina!
Podemos nos espantar com o fato de que pessoas inteligentes prefiram a
aniquilação a uma fé fundamentada numa doutrina tão monstruosa? Duvidamos
que qualquer brâmane respeitável confessasse o vício da mentira — uma arte
cultivada apenas naquelas regiões da Índia britânica onde se encontram os
cristãos. [1] Mas desafiamos qualquer homem honesto desse imenso mundo a
dizer se ele acha que o brâmane estava longe da verdade ao afirmar, em relação
ao missionário Stoddard, que “este homem nos vence” em mentiras. Que mais
poderia ele dizer, se este pregava a eles a doutrina da condenação eterna,
porque, na verdade, haviam passado suas vidas sem ler um livro judaico, de que
nunca haviam ouvido falar, ou sem procurar a salvação num Cristo de cuja
existência eles nunca haviam suspeitado! Mas o clero batista, que precisa de
alguns milhares de dólares, há de recorrer a representações terroríficas para
acender o coração de sua congregação.
Como de costume, prescindimos de nossa experiência própria sempre que
podemos recorrer à de outros, e, assim, após ler as observações ultrajantes do
missionário Stoddard, solicitamos a opinião isenta de nosso amigo, Sr. William
L. D. O’Grady, [2] sobre os missionários. O pai e o avô desse cavalheiro foram
oficiais do exército britânico; ele próprio nasceu na Índia e no curso de sua longa
vida teve numerosas oportunidades de saber qual a opinião geral entre os
ingleses a respeito desses propagandistas religiosos. Eis sua resposta à nossa
carta:
“A Senhora minha opinião sobre os missionários cristãos na Índia. Durante
todos os anos que passei ali, nunca falei com um único missionário. Eles não
viviam em sociedade e, a julgar pelo que sobre eles ouvi e pelo que pude ver
por mim mesmo, não me admira o seu retraimento. A sua influência sobre os
nativos é nociva. Seus conversos são indignos e, via de regra, pertencem à
classe mais baixa; e nem por isso a conversão os melhora. Nenhuma família
respeitável empregará criados cristãos. Eles mentem, roubam, são sujos —
e a sujeira não é certamente um vício hindu; eles bebem — e nenhum nativo
decente de qualquer outra crença jamais toca licores intoxicantes; são
proscritos pelo seu próprio povo e completamente indignos. Seus novos
mestres lhes dão um péssimo exemplo de consistência. Enquanto pregam
aos párias que Deus não faz nenhuma distinção entre as pessoas, por outro
lado jactam-se de ser superiores aos brâmanes, que, muitos deles ‘escuros’,
caem ocasionalmente, em longos intervalos, nas garras desses sujeitos
hipócritas.

“Os missionários recebem salários muito pequenos, como afirmam


publicamente os relatórios das sociedades que os empregam, mas, de
alguma maneira inexplicável, vivem tão bem quanto os oficiais que recebem
dez vezes mais. Quando voltam às suas casas para recobrar a saúde,
abalada, como dizem, por seu árduo labor — o que eles parecem fazer muito
frequentemente, coisa que as pessoas supostamente ricas não podem fazer
—, contam histórias pueris do alto dos púlpitos, exibem ídolos conseguidos
com grandes dificuldades, o que é absurdo, e fazem um relato de suas
fadigas imaginárias que é pungente e inverídico do começo ao fim. Eu próprio
vivi alguns anos na Índia e quase todos os meus parentes consanguíneos
passaram ou passarão ali os melhores anos de suas vidas. Conheço
centenas de oficiais britânicos e nunca ouvi de um só deles uma única palavra
em favor dos missionários. Os nativos de qualquer posição olham para eles
com o desrespeito mais supremo, sofrendo embora a exasperação crônica
da sua agressividade arrogante; e o Governo Britânico, que continua fazendo
dotações aos pagodes, oferecidas pela East India Company, e que propicia
uma educação não-sectária, não lhes dá ajuda de espécie alguma.
Protegidos contra a violência pessoal, eles ganem e latem tanto aos nativos
quanto aos europeus, após exibirem uma soberba insultante.
Frequentemente recrutados os espécimes mais pobres do fanatismo
teológico, são vistos em todos os lugares como nocivos. Seu propagandismo
rábido, imprudente, vulgar e ofensivo causou o grande de 1857. São
escroques daninhos.

“Wm. L. D. O’GRADY.
“Nova York, 12 de junho de 1857.”

O novo credo, portanto, com que abrimos este capítulo, tão grosseiro como
possa parecer, incorpora a essência mesma da crença da Igreja, tal como
inculcada por seus missionários. Considera-se menos ímpio, menos infiel,
duvidar da existência pessoal do Espírito Santo, ou da Divindade de Jesus, do
que questionar a personalidade do Diabo. Mas, está quase esquecido um
resumo do Koheleth. [3] Quem cita as palavras de ouro do profeta Miquéias, [4]
ou parece preocupar-se com a exposição da Lei, tal como foi ouvida do próprio
Jesus? [5] Toda a moral do Cristianismo moderno se resume no mandamento de
“temer o Diabo”.
O clero católico e alguns dos paladinos leigos da Igreja romana brigam ainda
mais pela existência de Satã e de seus diabretes. Se des Mousseaux afirma a
realidade objetiva dos fenômenos espiritistas com um ardor tão inflexível é
porque, em sua opinião, esses fenômenos são a prova mais evidente do Diabo
em função. Ele é mais católico do que o Papa, e sua lógica e suas deduções de
premissas infundadas e não-estabelecidas são singulares e provam uma vez
mais que o credo oferecido por nós expressa com grande eloquência a crença
católica.
“Se a Magia”, diz ele, “fosse apenas uma quimera, teríamos que dar um adeus
eterno a todos os anjos rebeldes, que agora perturbam o mundo; pois, assim,
não haveria demônios aqui. E, se perdermos nossos demônios, PERDEREMOS
também O NOSSO SALVADOR. Pois de que nos redimiria o Redentor? Por
conseguinte, não existiria o Cristianismo!” [6]
Oh, Santo Pai do Mal, Santificado Satã! Não abandoneis os cristãos pios como
o des Mousseaux e alguns clérigos batistas!!

O demônio oficialmente reconhecido pela Igreja


De nossa parte queremos antes lembrar as sábias palavras de J. C. Colquhoun,
que diz que “aqueles que, nos tempos modernos, adotam a doutrina do Diabo,
em sua aplicação estritamente literal e pessoal, não parecem estar conscientes
de que são na realidade politeístas, gentios, idólatras”. [7]
No afã de dar a seu credo a supremacia sobre todos os credos antigos, os
cristãos clamam para si a descoberta do Diabo oficialmente reconhecido pela
Igreja. Jesus foi o primeiro a usar a palavra “legião”, quando falava deles, e é
nisto que se apóia des Mousseaux para defender sua posição em uma das suas
obras demonológicas. “Posteriormente”, diz ele, “quando a sinagoga se
extinguiu, depositando sua herança nas mãos de Cristo, nasceram e brilharam
os padres da Igreja, que têm sido acusados por determinadas pessoas de uma
ignorância rara e preciosa, de terem emprestado dos teurgos as suas idéias
relativas aos espíritos das trevas”. [8]
Três erros — para não usar uma palavra mais áspera — deliberados, palpáveis
e facilmente refutáveis ocorrem nessas poucas linhas. Em primeiro lugar, a
sinagoga, longe de ter-se extinguido, está florescendo nos dias atuais em quase
todas as cidades da Europa, da América e da Ásia; e, de todas as igrejas das
cidades cristãs, ela é a que está mais firmemente estabelecida, e também a que
melhor se comporta. Além disso — embora ninguém negue que muitos padres
cristãos nasceram (sempre, é claro, excetuando os doze Bispos fictícios de
Roma, que ainda não nasceram de fato) —, toda pessoa que se der ao trabalho
de ler as obras dos platônicos da velha Academia, que foram teurgos antes de
Jâmblico, descobrirão nelas a origem, tanto da Demonologia Cristã, quanto da
Angelologia, cujo significado alegórico foi, entretanto, completamente distorcido
pelos padres. Então, dificilmente se poderia admitir que os ditos Padres
brilharam, exceto talvez na refulgência de sua extrema ignorância. O Rev. Dr.
Shuckford, que passou a melhor parte de sua vida tentando reconciliar as
contradições e os absurdos dos padres, foi finalmente levado a desistir em
desespero do seu intento. A ignorância dos paladinos de Platão deve parecer de
fato rara e preciosa em comparação com a profundidade impenetrável de
Agostinho, “o gigante da sabedoria e da erudição”, que negava a esfericidade da
Terra, pois, se ela fosse comprovada, impediria os antípodas de verem o Senhor
Cristo quando descesse do céu no segundo advento; ou, a de Lactâncio, que
rejeita com horror piedoso a teoria idêntica de Plínio, dizendo que não era
possível que as árvores crescessem ao contrário e os homens andassem com a
cabeça para baixo; [9] ou, ainda, a de Cosmos Indicopleustes, cujo sistema
ortodoxo de geografia está exposto em sua Topografia cristã; ou, finalmente, a
de Bede, que assegurou ao mundo que o céu “está temperado com águas
glaciais, caso contrário pegaria fogo” [10] — uma dispensação benigna da
Providência, mais provavelmente para impedir que a irradiação de suas
sabedorias pusesse fogo no céu!
Seja como for, esses resplandecentes padres certamente emprestaram suas
noções relativas aos “espíritos das trevas” dos cabalistas judaicos e dos teurgos
pagãos, com a diferença, todavia, de que desfiguraram e ultrapassaram em
absurdidade tudo o que a fantasia impetuosa do vulgo hindu, grego e romano
jamais criou. Não existe um daêva no pandaimonium persa que seja tão absurdo,
em termos de concepção, quanto o Incubus que des Mousseaux remendou de
Agostinho. Typhon, simbolizado como um asno, parece um filósofo em
comparação com o diabo apanhado pelo camponês normando num buraco de
fechadura; e certamente não seriam Ahriman ou o Vritra hindu que correriam em
fúria e em desalento ao serem chamados de São Satã por um Lutero nativo.
O Diabo é o gênio protetor do Cristianismo teológico. Tão “santo e reverente é
seu nome” na concepção moderna, que ele não pode, exceto ocasionalmente no
púlpito, ser pronunciado para não ferir os ouvidos dos fiéis. Da mesma maneira,
antigamente, não era lícito pronunciar os nomes sagrados ou repetir o jargão dos
mistérios, exceto no claustro sagrado. Mas conhecemos os nomes dos deuses
samotrácios e não podemos precisar o número dos Kabiri. Os egípcios
consideravam blasfemo pronunciar o epíteto dos deuses de seus ritos secretos.
E mesmo agora, o brâmane só pronuncia a sílaba Om em pensamento
silencioso, como os rabinos, o Inefável Nome, ‫יהוה‬. Por essa razão, nós que não
exercemos tal veneração, fomos levados à cincada da adulteração dos nomes
de HISIR e YAVA, nos abusivos Osíris e Jeová. Uma fascinação similar promete
muito mais, como se pode perceber, para reunir as designações da personagem
obscura de que tratamos; e, no uso familiar, é bastante provável que choquemos
as sensibilidades peculiares de muitas pessoas que consideram uma blasfêmia
a simples menção dos nomes do Diabo — o pecado dos pecados, que “nunca
terá perdão”. [11]
Faz alguns anos um amigo nosso escreveu um artigo de jornal para demonstrar
que o diabolos ou Satã do Novo Testamento denotava a personificação de uma
idéia abstrata e não um ser pessoal. Foi contestado por um clérigo, que concluiu
sua réplica com uma expressão deprecatória: “Temo que ele tenha negado seu
Salvador”. Na sua tréplica, nosso amigo afirmou: “Oh, não! só negamos o Diabo”.
Mas o clérigo não conseguiu perceber a diferença. Em sua concepção do
assunto, a negação da existência objetiva pessoal do Diabo era “o pecado contra
o Espírito Santo.
Esse mal necessário, dignificado pelo epíteto de “padre das mentiras”, era,
segundo o clero, o fundador de todas as religiões do mundo dos tempos antigos
e de todas as heresias, ou antes heterodoxias, dos períodos posteriores, bem
como do deus ex machina do Espiritismo moderno. Com as exceções que
subtraímos a essa noção, reafirmamos que não atacamos a religião verdadeira
ou a piedade sincera. Estamos apenas levando adiante uma controvérsia sobre
os dogmas humanos. Talvez nos assemelhemos a Dom Quixote, porque essas
coisas são apenas moinhos de vento. Não obstante, deve-se lembrar que elas
serviram de pretexto para assassinar mais de cinquenta milhões de seres
humanos, desde que foram pronunciadas as palavras “AMAI VOSSOS
INIMIGOS”. [12]
É tarde para esperar que o clero cristão refaça e emende sua obra. Há muita
coisa em jogo. Se a Igreja cristã abandonasse ou mesmo modificasse o dogma
de um diabo antropomórfico, isso equivaleria a empurrar a carta da base de um
castelo de cartas. Toda a estrutura ruiria. Os clérigos a que aludimos perceberam
que, após a abdicação de Satã como um diabo pessoal, o dogma de Jesus Cristo
como a segunda divindade de sua Trindade sofreria a mesma catástrofe. Por
incrível, ou mesmo horrendo, que pareça, a Igreja romana baseia sua doutrina
da divindade de Cristo inteiramente no satanismo do arcanjo caído. Temos o
testemunho do Padre Ventura, que proclama a importância vital desse dogma
dos católicos.
O Rev. Padre Ventura, ilustre ex-geral dos teatinos, certifica que des Mousseaux,
com seu tratado Moeurs et pratiques des démons, dignificou a Humanidade, e
ainda mais a Santa Igreja Católica e Apostólica. Com esse encômio, o nobre
cavalheiro, como se percebe, “fala como quem tem autoridade”. Ele afirma
explicitamente que ao Diabo e seus anjos devemos o nosso Salvador e que, não
fossem eles, não teríamos Redentor nem Cristianismo. [13]
Muitas almas zelosas e ardorosas revoltaram-se contra o monstruoso dogma de
João Calvino, o papinha de Genebra, para quem o pecado é a causa necessária
do maior bem. Essa afirmação foi apoiada, no entanto, por uma lógica como a
de des Mousseaux e ilustrada pelos mesmos dogmas. A execução de Jesus, o
homem-deus, na cruz, foi o crime mais horrendo do universo e foi necessário
para que a Humanidade — esses seres predestinados à vida eterna — pudesse
ser salva. D’Aubigné cita o que Martinho Lutero extraiu do cânone e o faz
exclamar, em enlevo extático: “O beata culpa, qui talem meruisti redemptorem!”
“Ó pecado abençoado, que mereceste esse Redentor”. Percebemos agora que
o dogma que parecia tão monstruoso é, afinal, a doutrina do Papa, de Calvino e
de Lutero — os três são apenas um.

Satã, o esteio do sacerdotalismo


Maomé e seus discípulos, que tinham Jesus em grande respeito como um
profeta, observa Éliphas Lévi, costumavam pronunciar, quando falavam dos
cristãos, as seguintes palavras: “Jesus de Nazaré era verdadeiramente um
profeta de Alá e um grande homem —, mas eis que todos os seus discípulos um
dia enlouqueceram e fizeram dele um deus”.
Max Müller acrescenta benevolamente: “Foi um erro dos padres antigos tratar os
deuses gentios como demônios ou espíritos do mal e devemos ter cuidado de
não cometer o mesmo erro em relação aos deuses hindus”. [14]
Mas Satã nos é apresentado como o arrimo e o esteio do sacerdotalismo — um
Atlas, que sustenta em seus ombros o céu e o cosmos cristãos. Se ele cair,
então, em sua concepção, tudo estará perdido e voltará ao caos.
Esse dogma do Diabo e da redenção parece ter sido baseado em duas
passagens do Novo Testamento: “Para destruir as obras do Diabo é que o Filho
de Deus veio ao mundo”. [15] “E então houve no céu uma guerra; Miguel e os
seus anjos pelejavam contra o Dragão e o Dragão com os seus anjos pelejavam
e não prevaleceram; nem o seu lugar se achou mais no céu. E foi banido o
grande Dragão, aquela velha serpente, chamada Diabo e Satã, que seduz a todo
o mundo”. [16] Que nos seja permitido, então, explorar as teogonias antigas, a
fim de verificar o que significavam essas expressões notáveis.
A primeira indagação refere-se ao fato de saber se o termo Diabo, tal como
usado aqui, representa atualmente a maligna Divindade dos cristãos, ou uma
força antagônica, cega — o lado escuro da Natureza. Com esta última expressão
não queremos dizer que a manifestação de qualquer princípio do mal é malum
in se, mas apenas a sombra da Luz, por assim dizer. As teorias dos cabalistas
tratam dela como uma força que é antagônica, mas ao mesmo tempo essencial
para a vitalidade, a evolução e o vigor do princípio do bem. As plantas poderiam
perecer em seu primeiro estágio de existência se fossem expostas a uma luz
solar constante; a noite que alterna com o dia é essencial ao seu crescimento
saudável e ao seu desenvolvimento. O bem, da mesma maneira, deixaria
rapidamente de sê-lo se não alternasse com seu oposto. Na natureza humana,
o mal denota o antagonismo da matéria com o que é espiritual, e assim eles se
purificam mutuamente. No cosmos, o equilíbrio deve ser preservado; a operação
dos dois contrários produz a harmonia, tais como as forças centrípeta e
centrífuga, e uma é necessária à outra. Se uma delas cessar, a ação da outra se
tornará destrutiva imediatamente.
A personificação, denominada Satã, deve ser contemplada de três planos
diferentes: o Velho Testamento, os padres cristãos e a antiga atitude gentia.
Supõe-se que ele fosse representado pela Serpente do Jardim do Éden; não
obstante, o epíteto de Satã não se aplica, em nenhum dos escritos sagrados
hebraicos, nem a essa, nem a qualquer outra variedade de ofídios. A Serpente
de Bronze de Moisés foi adorada pelos israelitas como um deus, [17] porque era
o símbolo de Esmun-Asklepius, o Iaô fenício. Na verdade, o caráter do próprio
Satã é apresentado no Primeiro Livro de Crônicas, instigando Davi a contar o
povo israelita, um ato depois declarado como tendo sido ordenado pelo próprio
Jeová. [18] A inferência inevitável é a de que os dois, Satã e Jeová, eram tidos
como idênticos.
Nas profecias de Zacarias encontra-se outra menção a Satã. Esse livro foi escrito
num período posterior à colonização da Palestina e, por essa razão, pode-se
supor que os assideus devem ter trazido diretamente do Oriente essa
personificação. É bastante conhecido o fato de que esse corpo de sectários
estava profundamente imbuído das noções mazdeístas e que representava
Ahriman ou Angra-Mainyur pelos deuses-nomes da Síria. Set ou Set-an, o deus
dos hititas e dos hicsos, e BeeelZebub, o oráculo-deus, mais tarde o Apolo grego.
O profeta iniciou os seus trabalhos na Judéia, no segundo ano de Darius
Hystaspes, o restaurador da adoração mazdeísta. Eis como ele descreve o
encontro com Satã: “Depois mostrou-me o Senhor o sumo-sacerdote Jesus, que
estava diante do anjo do Senhor, e Satã estava à sua direita para ser seu
adversário. E o Senhor disse a Satã ‘O Senhor te reprima, ó Satã; e reprima-te
o Senhor, que elegeu a Jerusalém! Acaso não é este um tição que foi tirado ao
fogo?” [19]
Percebemos que essa passagem, que citamos, é simbólica. Há duas alusões no
Novo Testamento que indicam que assim deve ser. A Epístola Católica de Judas
refere-se a isso com os seguintes termos: “Quando o arcanjo Miguel, disputando
com o Diabo, altercava sobre o corpo de Moisés, não se atreveu a fulminar-lhe
a sentença de blasfemo (κρἳσιν ἐπενεγκεἳν βλασφημίας), mas disse ‘O Senhor te
reprima’”. [20] Vemos aqui o arcanjo Miguel mencionado como idêntico ao ‫יהוה‬,
Senhor, ou anjo do Senhor, da citação anterior, e demonstra-se assim que o
Jeová hebraico tem um caráter duplo, o secreto e o manifestado como o anjo do
Senhor, ou o arcanjo Miguel. Uma comparação entre essas duas passagens
deixa claro que “o corpo de Moisés” sobre o qual altercavam era a Palestina,
que, como “a terra dos hititas”, [21] era o domínio peculiar de Seth, seu deus
tutelar. [22] Miguel, o paladino da adoração de Jeová, lutou com o Diabo ou
Adversário, mas deixou o julgamento ao seu superior.
Belial não deve ser considerado, nem como deus, nem como diabo. O termo
‫בליעל‬, BELIAL, é definido nos léxicos hebraicos como destituição, assolamento,
esterilidade; a frase ‫ איש־בליעל‬AISH-BELIAL ou homem-Belial significa um
homem destruidor, daninho. Se Belial deve ser personificado para agradar
nossos amigos religiosos, seríamos obrigados a fazê-lo distinto de Satã e a
considerá-lo como uma espécie de Diakka espiritual. Os demonógrafos, todavia,
que enumeram nove ordens distintas de daimonia, fazem-no chefe da terceira
classe — um conjunto de duendes, nocivos e imprestáveis.
Asmodeu tem origem puramente persa, não é nenhum espírito judaico. Bréal,
autor de Hercule et Cacus, mostra que ele é o Eshem-daêva parsi, o espírito
maligno da concupiscência, de quem Max Müller nos diz ser “mencionado muitas
vezes no Avesta como um dos devas”, [23] originalmente deuses, que se
tornaram espíritos do mal.

A identidade de Satã com o Tífon egípcio


Samuel é Satã; mas Bryant e outras autoridades demonstram ser ele o nome de
Simoom — o verbo do deserto, [24] e o Simmom é chamado Atabul-os ou
Diabolos.
Plutarco [25] observa que por Typhon se deve entender alguma coisa violenta,
ingovernável e desregrada. O transbordamento do Nilo era chamado pelos
egípcios de Typhon. O Baixo Egito é muito plano e quaisquer morretes erguidos
ao longo do rio para evitar as inundações frequentes eram chamados Typhonian
ou Taphos; aí, a origem de Typhon. Plutarco, que era um grego rígido, ortodoxo,
e que nunca foi conhecido como alguém que olhasse egípcios com muita
simpatia, testemunha em seu Ísis e Osíris que, longe de adorarem o Diabo (de
que os cristãos os acusam), os egípcios mais desprezavam do que temiam
Typhon. No seu símbolo de poder oposto e obstinado da natureza, acreditavam
fosse ele uma divindade pobre, batida, semimorta. Assim, mesmo naquela
remotíssima era, já havia pessoas ilustradas o bastante para não acreditarem
num diabo pessoal. Como Typhon era representado em um de seus símbolos
sob a figura de um asno, no festival dos sacrifícios em honra do sol, os
sacerdotes egípcios exortavam os adoradores fiéis a não vestirem ornamentos
de ouro sobre seus corpos para não alimentar com eles o asno! [26]
Três séculos e meio antes de Cristo, Platão expressou sua opinião a respeito do
mal dizendo que “existe na matéria uma força cega, refratária, que resiste à
vontade do Grande Artífice”. Essa força cega, sob o influxo cristão, tornou-se
fidedigna: foi transformada em Satã!
Sua identidade com Typhon não pode ser posta em dúvida quando se lê o relato
de Jó a respeito de sua semelhança com os filhos de Deus, diante do Senhor.
Ele acusa Jó de ser capaz de maldizer o Senhor, após suficiente provocação.
Assim também Typhon, no Livro dos mortos egípcio, figura como acusador. A
semelhança estende-se até os nomes, pois uma das designações de Typhon era
Seth, ou Set; como Shatan, em hebraico, significam adversário. Em árabe, a
palavra é Shâtana — ser adverso — perseguir — e Manetho diz que assassinou
traiçoeiramente Osíris, em cumplicidade com os semitas (os israelitas). Este fato
pode ter dado origem à fábula narrada por Plutarco, segundo a qual, na luta entre
Horus e Typhon, Typhon, com medo da maldade que cometera, fugiu por sete
dias em um asno e, escapando, gerou os meninos Hierosolymus e Judaeus
(Jerusalém e Judéia). [27]
O Professor Reuvens refere-se a uma invocação a Typhon-Seth, [28] e Epifânio
diz que os egípcios adoravam Typhon sob a forma de um asno, [29] ao passo
que, de acordo com Bunsen, Seth “surgia gradualmente entre os semitas como
pano de fundo de sua consciência religiosa”. [30] O nome do asno em copta, AO,
é uma variante fonética de IAÔ, e assim o animal tornou-se um trocadilho-
símbolo. Assim, Satã é uma criação posterior, nascida da fantasia ardente dos
padres da Igreja. Por um revés da sorte, a que os deuses estão tão sujeitos
quanto os mortais, Typhon-Seth caiu das alturas eminentes de filho deificado de
Adão-Cadmo para a posição degradante de um espírito subalterno, um demônio
mítico — um asno. Os cismas religiosos são tão pouco isentos da mesquinhez
frágil e dos sentimentos vingativos da Humanidade quanto às querelas sectárias
dos leigos. Prova desse fato nos é oferecida pela reforma zoroastriana, quando
o Magismo se separou da velha crença dos brâmanes. Os brilhantes devas do
Veda tornaram-se, sob a reforma religiosa de Zoroastro, daêvas, ou espíritos do
mal do Avesta. Até mesmo Indra, o deus luminoso, foi enviado às trevas [31] para
ser substituído, com uma luz mais brilhante, por Ahura-Mazda, a Divindade Sábia
e Suprema.
A estranha veneração que os ofitas dedicavam à serpente que representava
Christos se tornará menos perplexa se os estudiosos lembrarem de que em
todas as épocas a serpente foi o símbolo da sabedoria divina que mata para
fazer ressurgir, destrói para melhor reconstruir. Moisés era descendente de Levi,
uma tribo-serpente. Gautama Buddha pertence a uma linhagem-serpente,
através da dinastia Nâga (serpente) de reis que reinou no Magadha. Hermes, ou
o deus Taautos (Thoth), em seu símbolo-serpente, é Têt; e, de acordo com as
lendas ofitas, Jesus ou Christos nasceu de uma serpente (sabedoria divina, ou
Espírito Santo), isto é, tornou-se um filho de Deus por meio de sua iniciação na
“Ciência da Serpente”. Vishnu, idêntico ao egípcio Kneph, repousa sobre a
serpente celestial de sete cabeças.
O dragão vermelho ou ígneo dos tempos antigos era a insígnia dos assírios. Ciro
adotou-a deles, quando a Pérsia se apoderou do seu país. Os romanos e os
bizantinos foram os próximos a assumi-la; e então o “grande dragão vermelho”,
além de ser o símbolo da Babilônia e de Nínive, tornou-se o de Roma. [32]
A tentação, ou provocação, [33] de Jesus é, todavia, a ocasião mais dramática
em que surge Satã. Como que para provar a designação de Apolo-Esculápio e
Baco, [como] Diobolos, ou filho de Zeus, ele também é chamado de Diabolos, ou
acusador. A cena da provação foi o ermo. O deserto entre o Jordão e o Mar
Morto era a morada dos “filhos dos profetas” e dos essênios. [34] Estes ascetas
costumavam sujeitar seus neófitos a provações, análogas às torturas dos ritos
mitraicos, e a tentação de Jesus foi evidentemente uma cena dessa índole. Por
essa razão, afirma-se no Evangelho segundo São Lucas [IV, 13, 14] que “o
Diabolos, tendo completado a provação, deixou-o por um tempo específico, αχρι
καιροῠ; e voltou Jesus em virtude do Espírito para a Galiléia”. Mas o διάβολος, ou
Diabo, neste exemplo, não é evidentemente nenhum princípio maligno, senão o
princípio que exerce a disciplina. Os termos Diabo e Satã são empregados
repetidas vezes neste sentido. [35] Assim, quando Paulo estava propenso a um
júbilo excessivo em virtude da abundância de revelações ou descobertas
epópticas, foi-lhe dado “na carne, um estímulo, o anjo de Satanás”, para o
esbofetear. [36]
A história de Satã, no Livro de Jó, tem um caráter familiar. Ele é introduzido como
um dos “Filhos de Deus”, que se apresentam diante do Senhor como numa
iniciação mística. Miquéias, o profeta, descreve uma cena similar, em que ele
“viu o Senhor sentado em Seu trono e toda a corte do Céu ao Seu lado”, com
quem Ele se aconselhou, o que resultou em pôr “um espírito mentiroso na boca
dos profetas de Ahab”. [37] O Senhor se aconselha com Satã e lhe dá carte
blanche para testar a fidelidade de Jó. Jó foi privado dos seus bens e da sua
família e atingido por uma doença repugnante. Nos seus momentos finais, sua
esposa duvida da sua integridade e o exorta a adorar Deus, já que está para
morrer. Todos os seus amigos o vituperam com acusações e finalmente o
Senhor, agindo como o supremo hierofante, acusa-o de ter pronunciado palavras
em que não existe nenhuma sabedoria e de disputar com o Todo-poderoso.
Então Jó replica, fazendo este apelo: “Perguntar-te-ei, e responde-me: por isso
me repreendo a mim mesmo, e faço penitência no pó e na cinza?” Foi
imediatamente vindicado. “O Senhor diz a Elifaz (...) vós não falastes diante de
mim o que era reto, como falou o meu servo Jó”. [38] Sua integridade foi
reconhecida e sua predicação foi cumprida: “Sei que meu Paladino vive e que
ele me substituirá na Terra numa época posterior; e serei novamente revestido
de minha pele e na minha própria carne verei a meu Deus”. [39] A predição foi
cumprida: “Eu tinha ouvidos e te ouvi com o ouvido, mas agora te vêem os meus
olhos. (...) E o Senhor se deixou dobrar à vista da penitência de Jó”. [Jó, XIII, 5,
10.]
Em todas estas cenas não se manifesta nenhum diabolismo que se supõe
caracterizar o “adversário das almas”.
É opinião de alguns escritores de mérito e erudição que o Satã do livro de Jó é
um mito judaico, que contém a doutrina mazdeísta do Princípio do Mal. O Dr.
Haug observa que “a religião zoroastriana apresenta uma afinidade muito
estreita ou antes uma identidade, com muitas doutrinas importantes da religião
mosaica e o cristianismo, tais como a personalidade e os atributos do diabo e a
ressurreição dos mortos”. [40] A batalha do Apocalipse entre Miguel e o Dragão
pode ser remontada, com igual facilidade, aos mitos mais antigos dos arianos.
No Avesta, [41] lemos sobre a luta entre Thraêtaoma e Azhi-Dahâka, a serpente
destruidora. Burnouf esforçou-se por demonstrar que o mito védico de Ahi, ou a
serpente, que lutou contra os deuses, foi gradualmente evemerizado, na “batalha
de um homem piedoso contra o poder do mal”, na religião mazdeísta. Segundo
essas interpretações, Satã seria idêntico a Zohâk ou Azhi-Dahâka, que é uma
serpente de três cabeças, uma das quais é humana. [42]
Beel-Zebub é geralmente distinguido de Satã. Ele parece, no Novo Testamento
Apócrifo, [43] ser considerado como a potestade do mundo inferior. O nome é
costumeiramente traduzido por “Baal das Moscas”, que pode ser uma
designação dos Escaravelhos ou besouros sagrados. [44] Mais corretamente, o
termo deveria ser lido, como ocorre no texto grego dos Evangelhos, como
Beelzebul, ou senhor da família, como de fato é chamado em Mateus, X, 25: “Se
eles chamaram Beelzebul ao pai de família, quanto mais aos seus domésticos”.
Ele também era chamado de príncipe ou arconte dos demônios.
Typhon figura no Livro dos mortos como o acusador de almas quando elas
comparecem a julgamento, da mesma maneira que Satã acusa Josué, o sumo
sacerdote, diante do anjo, e tenta ou testa Jesus durante seu jejum no deserto.
Ele também foi a divindade denominada Baal-Zephon, ou deus da cripta, no livro
do Êxodo [XIV, 2, 9] e Seth, ou coluna. Durante esse período, a adoração antiga
ou arcaica estava proscrita pelo governo; em linguagem figurativa, Osíris foi
morto traiçoeiramente e cortado em catorze (duas vezes sete) pedaços e
enterrado por seu irmão Typhon, e Ísis foi a Biblos em busca do seu corpo.
Não devemos nos esquecer, nesta relação, de que Saba ou Sabazios, da Frígia
e da Grécia, foi dilacerado pelos Titãs em sete pedaços e que ele era, como o
Heptaktys dos caldeus, o deus de sete raios. Siva, o hindu, é representado
coroado com sete serpentes e é o deus da guerra e da destruição. O Jeová
hebraico, o Tsabaôth, também é chamado de Senhor dos exércitos, Seba, ou
Saba, Baco ou Diôniso-Sabazuis; assim, pode-se provar facilmente que todos
eles são idênticos.
Finalmente, os príncipes do régime mais antigo, os deuses que, ao assalto dos
gigantes, assumiram formas de animais e se ocultaram na Etiópia, voltaram e
expulsaram os pastores.
De acordo com Josefo, os hicsos foram os ancestrais dos israelitas. [45] Esse
fato é, sem dúvida, substancialmente verdadeiro. As Escrituras hebraicas, que
contam uma história um pouco diferente, foram escritas num período posterior e
sofreram várias revisões antes que fossem promulgadas com qualquer grau de
publicidade. Typhon tornou-se odioso no Egito e os pastores, “uma abominação”.
“No curso da vigésima dinastia foi tratado repentinamente como um demônio do
mal, além de suas efígies e nome terem sido obliterados em todos os
monumentos e em todas as inscrições onde haviam sido gravados”. [46]
Em todas as épocas, existiu a propensão de se evemerizar os deuses em
homens. Mencionam-se túmulos de Zeus, Apolo, Hércules e Baco para
demonstrar que eles foram originalmente apenas seres mortais. Sem, Cam e
Jafé são as personificações respectivas das divindades Shamas, da Assíria,
Kham, do Egito, e Iapetes, o Titã. Seth era deus dos hicsos, Enoc, ou Inaco, dos
argivos; e Abraão, Isaac e Judá têm sido comparados a Brahmâ, Ikshvaku e
Yadu, do panteão hindu. Typhon caiu da divindade para a diabolicidade, tanto
no seu caráter próprio de irmão de Osíris quanto no de Seth, o Satã da Ásia.
Apolo, o deus do dia, tornou-se, na sua roupagem fenícia mais antiga, não mais
Baal-Zebul, o Oráculo-deus, mas o príncipe dos demônios e finalmente o senhor
do mundo subterrâneo. A separação do mazdeísmo, do vedismo, transformou
os devas, ou deuses, em potências do mal. Indra, também, subordina-se a
Ahriman na Vendîdâd, [47] criado por ele com material extraído das trevas, [48]
junto com Siva (Sûrya) e os dois Aswins. Até mesmo Jahi é o demônio da Luxúria
[49] — provavelmente idêntico a Indra.

As muitas tribos e nações tinham seus deuses tutelares e aviltavam os dos povos
inimigos. A transformação de Typhon, Satã e Beelzebub tem esse caráter. De
fato, Tertuliano fala de Mithra, o deus dos Mistérios, como um diabo.
No capítulo doze [9, 11] do Apocalipse, Miguel e seus anjos venceram o Dragão
e seus anjos: “e o Grande Dragão foi precipitado na Terra, aquela Serpente
Antiga, chamada Diabolos e Satã, que seduz a todo o mundo”. E em seguida: “E
eles o venceram pelo sangue do Cordeiro”. O Cordeiro, ou Cristo, tinha de descer
ao inferno, o mundo dos mortos, e permanecer ali durante três dias antes de
subjugar o inimigo, segundo o mito.
Miguel foi denominado pelos cabalistas e pelos gnósticos de “o Salvador”, o anjo
do Sol e o anjo da Luz. (‫מיבאל‬, talvez de ‫יבח‬, manifestar, e ‫אל‬, Deus.) Ele era o
primeiro dos Aeôns e bastante conhecido dos antiquários como o “anjo
desconhecido” representado nos amuletos gnósticos.
O autor do Apocalipse, se não era um cabalista, deve ter sido um gnóstico.
Miguel não foi uma personagem original de sua revelação (epopteia), mas o
Salvador e Matador-do-dragão. As investigações arqueológicas o têm indicado
como idêntico a Anubis, cuja efígie foi descoberta recentemente num
monumento egípcio, com uma couraça e uma lança, no ato de matar um Dragão
que possui a cabeça e a cauda de uma serpente. [50]
O estudioso de Lepsius, Champollion e outros egiptólogos reconhecerão
imediatamente que Ísis é a “mulher com a criança”, “vestida de Sol e com a Lua
a seus pés”, que o “grande Dragão feroz” perseguiu e a quem “foram dadas duas
asas da Grande Águia de modo que pudesse fugir para o deserto”. Typhon tinha
a pele vermelha. [51]

A sua relação com o culto da serpente


Os Dois Irmãos, os Príncipes do Bem e do Mal, aparecem nos mitos da Bíblia,
bem como nos dos gentios, e assim temos Caim e Abel, Typhon e Osíris, Esaú
e Jacó, Apolo e Píton, etc. Esaú ou Osu é representado, quando nascido, como
“todo vermelho como uma veste felpuda”. Ele é o Typhon ou Satã, que se opõe
ao seu irmão.
Desde a mais remota antiguidade, a serpente foi venerada por todos os povos
como a incorporação da sabedoria divina e como o símbolo do espírito e
sabemos por Sanchoniathon que foi Hermes Thoth o primeiro a considerar a
serpente como “o mais espiritual de todos os répteis”; [52] e a serpente gnóstica
com as sete vogais sobre a cabeça não é senão uma cópia de Ananta, a serpente
de sete cabeças sobre a qual repousa Vishnu.
Não pouco nos surpreendeu verificar, ao lermos os últimos tratados europeus
sobre adoração de serpentes, que os escritores confessam que o público “ainda
está no escuro, quanto à origem da superstição em questão”. O Sr. C. Staniland
Wake, M. A. I., de quem citamos, diz: “Os estudiosos de mitologia sabem que
certas idéias foram associadas pelos povos da antiguidade à serpente e que ela
era o símbolo favorito de divindades particulares; mas não se sabe ao certo
porque esse animal, e não qualquer outro, foi escolhido para esse
propósito”. [53]
O Sr. James Fergusson, F. R. S., que recolheu material abundante sobre esse
culto antigo, parece não ter sido mais feliz do que os outros. [54]
A nossa explicação desse mito pode ser de pouca valia para os estudiosos da
simbologia, mas acreditamos que a interpretação da adoração primitiva da
serpente dada pelos iniciados é a correta. No vol. I, Cap. I, citamos uma porção
do mantra da serpente, no Aitareya-Brâhmanam, uma passagem que fala da
terra como Sarparâjñî, a Rainha das Serpentes, e “a mãe de tudo que se move”
[V, IV, 23]. Essas expressões referem-se ao fato de que, antes que nosso globo
assumisse a forma oval ou redonda, ele era uma longa esteira de poeira cósmica
ou névoa de fogo que se movia e se retorcia como uma serpente. Essa poeira,
dizem as explicações, era o Espírito de Deus movendo-se no caos até que seu
alento incubasse a matéria cósmica e a fizesse assumir a forma anular de uma
serpente com sua cauda em sua boca — emblema da eternidade na ordem
espiritual e do nosso planeta na ordem física. De acordo com as noções dos
filósofos mais antigos, como mostramos no capítulo precedente, a terra, forma
de serpente, atira fora sua pele e ressurge após cada pralaya menor num estado
rejuvenescido e, após o grande pralaya, ressurge ou passa da existência
subjetiva para a objetiva. Como a serpente, ela não só “põe fora sua velhice”, diz
Sanchoniathon, “mas também aumenta em tamanho e força”. [55] Eis porque não
só Serapis, mas depois também Jesus, era representado por uma grande
serpente, e também porque, no nosso século, grandes serpentes sejam
mantidas com cuidados sagrados nas mesquitas maometanas, como na do
Cairo, por exemplo. No Alto Egito, diz-se que um famoso santo aparece sob a
forma de uma enorme serpente; e na Índia, nos berços de algumas crianças, um
par de serpentes, macho e fêmea, é criado com o bebê, e costuma-se manter
serpentes dentro das casas, pois se acredita que elas trazem (uma aura
magnética de) sabedoria, saúde e sorte. Elas são a progênie de Sarpa-râjñî, a
terra, e são dotadas de todas as suas virtudes.
Na mitologia hindu, Vasuki, o Grande Dragão, cospe contra Durgâ um fluido
venenoso que se estende por sobre a terra, mas, seu consorte, Siva, faz a terra
abrir sua boca para sugá-lo.
Assim, o drama místico da virgem celestial perseguida pelo dragão que quer
devorar seu filho não só foi visualizado nas constelações do céu, como já foi
mencionado, mas também foi representado na adoração secreta dos templos.
Era o mistério do deus Sol e foi inscrito numa imagem negra de Ísis. [56]
O Menino Divino foi caçado pelo cruel Typhon. [57] Na lenda egípcia, o Dragão
persegue Thuêris (Ísis), enquanto esta tenta proteger seu filho. [58] Ovídio
descreve Dione (a consorte de Zeus pelásgio original, e mãe de Vênus) a fugir
de Typhon para o Eufrates, [59] identificando assim o mito como pertencente a
todos os países em que os mistérios eram celebrados. Virgílio canta a vitória:
“Salve, querido filho dos deuses, grande filho de Jove!
Recebei a suma honra; os tempos se avizinham;
A Serpente morrerá!” [60]
Alberto Magno, alquimista e estudioso de ciências ocultas, bem como bispo da
Igreja Católica Romana, declarou, entusiasmado pela astrologia, que o signo
zodiacal da virgem celestial eleva-se acima do horizonte no vigésimo quinto dia
do mês de dezembro, no momento assinalado pela Igreja para o nascimento do
Salvador. [61]
O signo e o mito da mãe e do filho eram conhecidos milhares de anos antes da
era cristã. O drama dos Mistérios de Demeter representa Perséfone, sua filha,
raptada por Plutão ou Hades para o mundo dos mortos; e quando a mãe
finalmente a descobre lá, foi instalada como rainha do reino das Trevas. Esse
mito foi transcrito pela Igreja na lenda de Sant’Anna [62] indo em busca de sua
filha Maria, que fora levada por José para o Egito. Perséfone é descrita com duas
espigas de trigo na mão; assim também Maria, nas imagens antigas; assim
também a Virgem Celestial da constelação. Albumazar, o árabe, indica a
identidade de muitos mitos da seguinte maneira:
“No primeiro decano da Virgem nasce uma donzela, chamada em árabe
Aderenosa [Ardhhanâri?], isto é, virgem pura imaculada, [63] a graça em pessoa,
encantadora na postura, modesta no hábito, cabeleira flutuante, segurando em
suas mãos duas espigas de trigo, sentada sobre um trono bordado,
amamentando um menino e alimentando-o justamente num lugar chamado
Hebréia; um menino, quero dizer, chamado Iessus por determinadas nações,
que significa Issa, a quem chamam também de Cristo em grego”. [64]
Por essa época, as idéias gregas, asiáticas e egípcias haviam sofrido uma
transformação notável. Os Mistérios de Diônisio-Sabazius haviam sido
substituídos pelos ritos de Mithra, cujas “cavernas” sucederam as criptas do deus
antigo da Babilônia à Bretanha. Serapis, ou Sri-Apa, do Ponto, usurpara o lugar
a Osíris. O rei do Indostão Oriental, Asoka, abraçara a religião de Siddhârtha e
enviara missionários à Grécia, à Ásia, à Síria e ao Egito para promulgar o
evangelho da sabedoria. Os essênios da Judéia e da Arábia, os terapeutas [65]
do Egito e os pitagóricos [66] * da Grécia e da Magna Grécia eram evidentemente
adeptos do novo credo. As lendas de Gautama sucederam os mitos de Horus,
Anubis, Adonis, Atys e Baco. Foram incorporadas aos mistérios e aos
Evangelhos e a eles devemos a literatura conhecida como os Evangelhos e o
Novo Testamento Apócrifo. Foram guardados pelos ebionitas, nazarenos e
outras seitas como livros sagrados, que podiam “mostrar apenas aos sábios”; e
foram preservados até que a influência ofuscante da política eclesiástica romana
os arrebatasse.
* Patah significa “porta” e potoh “abrir”. Segundo Jastrow (Dict. of the Targumim, etc., vol. II, p.
1252), o termo Pethahia é o nome de um sacerdote e de uma família sacerdotal; Pethahia tinha
a seu cargo a supervisão das aves sacrificais e era chamado Pethahia porque explicava palavras
e as interpretava. (N. do Org.)

Quando o sumo sacerdote Hilkiah encontrou o Livro da lei, os Purânas


(Escrituras) hindus eram conhecidos dos assírios. Os assírios haviam dominado
durante muito tempo a região compreendida entre o Helesponto e o Indo e talvez
tenham empurrado os arianos da Bactriana para o Pañjab. O Livro da lei parece
ter sido um purâna. “Os brâmanes cultos”, diz Sir William Jones, “pretendem que
as seguintes cinco condições devam constituir um purâna verdadeiro:
“1. Tratar da criação da matéria em geral.
“2. Tratar da criação ou produção de material secundário e dos seres espirituais.
“3. Fornecer um resumo cronológico dos grandes períodos de tempo.
“4. Fornecer um resumo genealógico das famílias principais que reinaram sobre
o país.
“5. Finalmente, fornecer a história de algum grande homem em particular.” [67]
É indubitável que quem quer tenha escrito o Pentateuco se sujeitou a essas
condições, bem como aqueles que escreveram o Novo Testamento estavam
muito bem familiarizados com a adoração ritualista budista, com as lendas e as
doutrinas por meio dos missionários budistas que se contavam em grande
número, naquela época, na Palestina e na Grécia.
Mas “nem Diabo, nem Cristo”. Este é o dogma básico da Igreja. Devemos
perseguir os dois ao mesmo tempo. Há uma conexão misteriosa entre os dois,
mais estreita do que talvez se suponha, que leva à identidade. Se aproximarmos
os filhos míticos de Deus, todos aqueles que eram considerados como os
“primogênitos”, eles se harmonizarão e se fundirão nesse caráter dual. Adão-
Cadmo desdobra-se da sabedoria conceptiva espiritual em criativa, que
desenvolve a matéria. O Adão feito de barro é o filho de Deus e Satã; e Satã
também é um filho de Deus, de acordo com Jó. [68]
Hércules também era “o Primogênito”. Também era Bel, Baal e Bal e equivalia a
Siva, o Destruidor. Baco é chamado por Eurípedes de “Baco, o Filho de Deus”.
Em criança, Baco, como o Jesus dos Evangelhos Apócrifos, foi muito adorado.
É descrito como benevolente para a Humanidade; não obstante, era inexorável
ao punir os que fracassassem no respeito à sua adoração. Pentheus, filho de
Cadmus e Hermione, foi, como o filho do Rabino Hannon, destruído por sua
pequena piedade.

O Livro de Jó e o Livro dos Mortos


A alegoria de Jó, que já foi citada, se corretamente entendida, nos dá a chave
para todo esse assunto do Diabo, sua natureza e seu ofício, e substancia nossas
declarações. Que nenhum indivíduo piedoso se alarme com essa designação de
alegoria. O mito era o método favorito e universal de ensinar nos tempos
arcaicos. Paulo, escrevendo aos coríntios, declara que toda a história de Moisés
e dos israelitas era típica; [69] e na sua Epístola dos Gálatas afirma que toda a
história de Abraão, suas duas esposas e seus filhos era uma alegoria. [70] De
fato, segundo toda probabilidade, que raia à certeza, os livros históricos do Velho
Testamento tinham o mesmo caráter. Não tomamos nenhuma liberdade
extraordinária com o Livro de Jó, quando damos a ele a mesma designação que
Paulo dá às histórias de Abraão e Moisés.
Mas devemos, talvez, explicar o uso antigo da alegoria e da simbologia. A
veracidade da primeira devia ser deduzida; o símbolo expressava alguma
qualidade abstrata da Divindade, que os leigos podiam apreender facilmente.
Seu sentido superior terminava aí e era empregado pela multidão, portanto,
como uma imagem a ser utilizada em ritos idólatras. Mas a alegoria foi reservada
para o santuário interior, onde só os eleitos eram admitidos. Donde a resposta
de Jesus, quando os seus discípulos o interrogaram em virtude de ele ter falado
à multidão por meio de parábolas. “A vós outros”, disse ele, “vos é dado saber
os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não lhes é concedido. Porque ao
que tem, se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem
lhe será tirado”. [71] Nos mistérios menores, lavava-se uma porca para
exemplificar a purificação de neófito; a sua volta à lama indicava a natureza
superficial da obra que fora realizada.
“O Mito é o pensamento não-manifestado da alma. O traço característico do mito
é converter a reflexão em história (uma forma histórica). Como na epopéia,
também no mito predomina o elemento histórico. Os fatos (os eventos externos)
constituem frequentemente a base do mito e neles se entretecem as idéias
religiosas.”
Toda a alegoria de Jó é um livro aberto para quem compreende a linguagem
pictórica do Egito, tal como ela está registrada no Livro dos mortos. Na Cena do
Julgamento, Osíris aparece sentado em seu trono, segurando em uma das mãos
o símbolo da vida, “o garfo da atração”, e, na outra, o leque báquico místico.
Diante dele estão os filhos de Deus, os quarenta e dois assessores dos mortos.
Um altar está imediatamente diante do trono, coberto de oferendas e rematado
pela flor do lótus sagrado, sobre a qual se podem ver quatro espíritos. Na porta
de entrada, permanece a alma que está prestes a ser julgada, a quem Thmei, o
gênio da Verdade, está recebendo para a conclusão da provação. Thoth,
segurando um junco, registra os procedimentos no Livro da Vida. Horus e
Anubis, diante da balança, inspecionam o peso que determina se o coração do
morto equilibra ou não o símbolo da verdade. Num pedestal está uma prostituta
— o símbolo do Acusador.
A iniciação nos mistérios, como todas as pessoas inteligentes sabem, era uma
representação dramática das cenas do mundo subterrâneo. Assim se
desenvolve a alegoria de Jó.
Vários críticos têm atribuído a autoria desse livro a Moisés. Mas ele é mais antigo
do que o Pentateuco. Jeová não é mencionado no poema; e, se o nome ocorre
no prólogo, esse fato deve ser atribuído ou a um erro dos tradutores, ou à
premeditação exigida pela necessidade posterior de transformar o politeísmo
numa religião monoteísta. Adotou-se o plano muito simples de atribuir os muitos
nomes de Elohim (deuses) a um único deus. Assim, em um dos mais antigos dos
textos hebraicos de Jó (no cap. XII, 9), ocorre o nome de Jeová, ao passo que
todos os outros manuscritos apresentam “Adonai”. Mas Jeová está ausente do
poema original. Em lugar desse nome encontramos Al, Aleim, Ale, Shaddai,
Adonai, etc. Portanto, devemos concluir que ou o prólogo e o epílogo foram
acrescentados num período posterior, o que é inadmissível por muitas razões,
ou o texto foi adulterado, como o restante dos manuscritos. Assim, não
encontramos nesse poema arcaico nenhuma menção à Instituição Sabática;
mas um grande número de referências ao número sagrado sete, do qual
falaremos adiante, e uma discussão aberta sobre o sabeísmo, a adoração dos
corpos celestes que prevalecia, naquela época, na Arábia. Satã é chamado no
texto de um “Filho de Deus”, membro do conselho que se apresenta diante de
Deus, a quem induz a tentar a fidelidade de Jó. Nesse poema, mais claramente
do que em qualquer outro lugar, vemos corroborado o significado da
denominação Satã. É um termo para o ofício ou o caráter de acusador público.
Satã é o Typhon dos egípcios, que grita suas acusações no Amenti; um ofício
tão respeitável quanto o do promotor público em nossa época; e se, apesar da
ignorância dos primeiros cristãos, ele se tornou posteriormente idêntico ao
Diabo, isso não se faz com a sua conivência.
O Livro de Jó é uma representação completa da iniciação antiga e das provas
que geralmente precedem tão augusta cerimônia. O neófito se vê privado de
tudo a que dava valor e afligido por uma doença abominável. Sua esposa o
exorta a amaldiçoar Deus e a morrer; não há mais esperança para ele. Três
amigos aparecem em cena para visitá-lo; Elifaz, o temanita culto, pleno do
conhecimento “que os sábios receberam dos seus pais (...) as únicas pessoas a
quem a terra foi dada”; Baldad, o conservador, que toma as coisas como elas
vêem e que opina que a aflição de Jó é consequência de suas culpas; e Sofar,
inteligente e habilidoso em “generalidades”, mas de sabedoria superficial. [72] Jó
responde corajosamente: “Se eu errei, meu erro ficará comigo. Vós vos
engrandeceis e me arguis com as minhas calamidades; mas foi Deus quem me
aniquilou. (...) Por que me perseguis e não estais satisfeitos com minha carne
destruída? Mas eu sei que meu Paladino vive e que num dia futuro ficará no meu
lugar; e embora minha pele e tudo que a rodeia sejam destruídos, mesmo sem
minha carne eu verei Deus. (...) Vós direis: ‘Por que o molestamos?’, pois a raiz
da matéria está em mim!” [73]
Essa passagem, como todas as outras em que se poderia encontrar alusões
mais tênues a um “Paladino”, “Libertador” ou “Vindicador”, foi interpretada como
uma referência direta ao Messias; além disso, esse versículo está traduzido da
seguinte maneira nos Septuaginta:
“Pois eu sei que é eterno
Aquele que há de me libertar na Terra
Para restaurar esta minha pele que sofre estes males”, etc. [74]

Na versão do rei James, como foi traduzida, ela não guarda semelhança alguma
com o original. [75] Tradutores artificiosos deram “Eu sei que meu Redentor
viverá”, etc. E os Septuaginta, a Vulgata e o original hebraico devem ser
considerados como a inspirada Palavra de Deus. Jó refere-se a seu próprio
espírito imortal que é eterno e que, quando viu a morte, o libertará desse pútrido
corpo terreno e o vestirá com um novo revestimento espiritual. Nos Mistérios
báquicos e eleusinos, no Livro dos mortos egípcio e em todas as outras obras
que tratam de assuntos ligados à iniciação, esse “ser eterno” tem um nome. Para
os neoplatônicos era o Nous, o Augoeides; para os budistas é Agra; e, para os
persas, Feroher. Todos eles são chamados de “Libertadores”, “Paladinos”,
“Metatrons”, etc. Nas esculturas mítricas da Pérsia, o feroher é representado por
uma figura alada que volteia no ar sobre seu “objeto” ou corpo. [76] É o Eu
luminoso — o Âtman dos hindus, nosso espírito imortal, o único que pode redimir
nossa alma, e o fará, se o seguirmos em vez de sermos arrastados pelo nosso
corpo. Portanto, nos textos caldaicos, lê-se “Meu libertador, meu restaurador”,
isto é, o Espírito que restaurará o corpo decaído do homem e o transformará
numa vestimenta de éter. E é esse nous, augoeides, Feroher, Agra, Espírito dele
mesmo, que o triunfante Jó verá sem sua carne — isto é, quando tiver escapado
da sua prisão corporal —, e ao qual os tradutores chamam “Deus”.
Não só não existe a mínima alusão no poema de Jó a Cristo, como também se
provou que todas as versões feitas por tradutores diferentes, que concordam
com a do rei James, foram escritas com base em Jerônimo, que tomou estranhas
liberdades em sua Vulgata. Ele foi o primeiro a enxertar no texto esse versículo
de sua própria criação:
“Eu sei que meu Remidor vive,
E que no último dia eu me erguerei da terra,
E serei novamente recoberto de minha pele,
E em minha carne verei meu Deus”. [77]

Tudo o que lhe deve ter parecido uma boa razão para crer que ele o sabia, mas
que outros não sabiam, e que, além disso, encontravam no texto uma idéia
bastante diferente — isso só prova que Jerônimo decidira, com mais uma
interpolação, reforçar o dogma de uma ressurreição “no último dia”, e com a
mesma pele e os mesmos ossos que possuía na terra. Trata-se na verdade de
uma agradável perspectiva de “restauração”. Por que não ressuscitar também
com as mesmas roupas com que o corpo morre?
E como poderia o autor do Livro de Jó saber algo do Novo Testamento quando
ignorava evidentemente o Velho? Há uma ausência total de alusões a qualquer
um dos patriarcas; foi sem dúvida obra de um Iniciado, pois que uma das três
filhas de Jó recebeu um nome mitológico decididamente “pagão”. O nome Keren
happuch [78] é traduzido de várias maneiras. Na Vulgata tem “chifre de
antimônio”; e em LXX tem “chifre de Amalthea”, a preceptora de Júpiter e uma
das constelações, emblema do “chifre da plenitude”. A presença nos Septuaginta
dessa heroína de fábula pagã mostra a ignorância dos transcritores em relação
ao seu significado, bem como da origem esotérica do Livro de Jó.
Em vez de oferecer consolo, os três amigos do sofrido Jó tentam fazê-lo acreditar
que merece sua desventura como uma punição por algumas transgressões
extraordinárias que praticou. Respondendo veementemente a todas essas
imputações, Jó jura que, enquanto tiver alento, manterá a sua causa. Tem em
mente o período de sua prosperidade, “quando o segredo de Deus permanecia
sobre seu tabernáculo”, [79] e ele era um juiz “que era soberano, e vivia como
um rei no exército, e que consolava os aflitos”, e compara essa época com a
atual — quando beduínos errantes riem dele com escárnio, homens “mais vis do
que a terra”, quando estava prostrado pela desventura e pela doença
abominável. Então ele reafirma sua simpatia pelo desafortunado, sua castidade,
sua integridade, sua probidade, sua justiça estrita, suas caridades, sua
moderação, sua isenção da prevalecente adoração do Sol, sua misericórdia para
com os inimigos, sua hospitalidade em relação aos estrangeiros, sua bondade
de coração, seu denodo pelo direito, embora enfrentasse a multidão e a oposição
das famílias; e exige do Todo-poderoso uma resposta e do seu adversário a
declaração das culpas de que é acusado. [80]
Não cabia para tanto réplica possível. Os três haviam tentado confundir Jó com
alegações e argumentos gerais e ele lhes solicitou uma consideração dos seus
atos específicos. Então surgiu o quarto: Eliú, o filho de Baraquel, o buzita, da
estirpe de Ram. [81]
Eliú é o filho do hierofante; começa com uma repreensão e os sofismas de Jó se
desvanecem como a areia que o vento do oeste leva.
“E Eliú, filho de Baraquel, disse: ‘Os grandes homens nem sempre são sábios
(...) há um espírito no homem; o espírito que está em mim me constrange. (...)
Deus fala uma vez, uma segunda, embora o homem não o perceba. Num sonho;
numa visão noturna, quando o sono profundo cai sobre o homem, em cochilos
na cama; então ele abre os olhos dos homens e lhes dá suas instruções. Ó Jó,
ouve-me; cala-te e eu te ensinarei a SABEDORIA.” [82]
E Jó, diante das falácias dogmáticas de seus três amigos, no amargor do
deserto, exclamara: “Não há dúvida de que vós sois o povo e a sabedoria
morrerá convosco. (...) Todos vós sois uns consoladores miseráveis. (...)
Certamente falarei ao Todo-poderoso e com Deus desejo conversar. Mas vós
sois os que forjam as mentiras, vós sois médicos de nenhum valor!” [83] O
devorado pelas chagas, o Jó que recebera as visitas e que para o clero oficial —
que não oferecia outra esperança senão a condenação eterna — havia em seu
desespero vacilado em sua fé paciente, respondeu: “Isso que vós sabeis,
também eu sei a mesma coisa; não sou inferior a vós. (...) O homem que como
flor cai e é pisado foge como a sombra e jamais permanece num mesmo estado.
(...) Quando o homem morrer, despojado que seja e consumido, onde estará ele?
(...) Se um homem morrer, ele viverá novamente? (...) Quando se passarem
alguns anos, então seguirei um caminho de onde não poderei retornar. (...) Oxalá
se fizera o juízo entre Deus e o homem, como se faz o de um filho do homem
com o seu vizinho’.” [84] Jó encontra alguém que responde ao seu grito de
agonia. Ouve a SABEDORIA de Eliú, o hierofante, o mestre perfeito, o filósofo
inspirado. De seus lábios rígidos brota a repreensão justa da impiedade de ter
censurado o Ser SUPREMO pelos males da Humanidade. “Deus”, diz Eliú, “é
excelente em poder e em julgamento e em plenitude de justiça. ELE não
condenará”. [85]
Enquanto o neófito se satisfazia com sua própria sabedoria mundana e
irreverente compreensão da Divindade e Seus desígnios e enquanto dava
ouvidos às sofisticarias perniciosas dos seus conselheiros, o hierofante se
mantinha calado. Mas, quando essa mente ansiosa estava pronta para os
conselhos e as instruções, sua voz se fez ouvir e ele fala com a autoridade do
Espírito de Deus que o “constrange”: “Certamente Deus não ouvirá em vão, nem
o Todo-poderoso verá as causas de cada um. (...) Ele não respeitará aqueles
que se dão por sábios”. [86]
Magnífica lição para o pregador da moda, que “multiplica palavras sem
conhecimento”! Esta magnífica sátira profética deve ter sido escrita para
prefigurar o espírito que prevalece em todas as denominações dos cristãos.
Jó escuta as palavras de sabedoria e então o “Senhor” responde a Jó “fora do
redemoinho” da Natureza, a primeira manifestação visível de Deus: “Pára, Jó,
pára! e considera as maravilhosas obras de Deus; só por meio delas podes
conhecer Deus. ‘Com efeito, Deus é grande, e não o conhecemos’, Ele que ‘faz
pequenas as gotas d’água; mas elas vertem segundo o vapor”; [87] não segundo
o capricho divino, mas segundo leis estabelecidas e imutáveis; lei que “transferiu
os montes e não é conhecida por eles; que move a terra; que ordena ao Sol e o
Sol não nasce; e que selou as estrelas; (...) que faz coisas grandes e
incompreensíveis, e maravilhosas, que não têm número. (...) Se ele vier a mim,
eu não o verei; se se for, eu não o perceberei!” [88]
Então, “Quem é este que obscurece os conselhos com palavras desprovidas de
conhecimento?”, diz a voz de Deus por meio de Seu porta-voz —, a Natureza.
“Onde estavas tu quando eu lançava os fundamentos da terra? dize-mo, se é
que tens compreensão. Quem deu as medidas para ela, se é que o sabes?
Quando os astros da manhã contavam todos juntos, e quanto todos os filhos de
Deus estavam transportados de júbilo? (...) Estavas presente quando eu disse
aos mares: ‘Até aqui podes vir, mas não além daqui; até aqui tuas orgulhosas
ondas poderão rolar’? (...) Sabes quem obriga a chuva a cair sobre a terra, onde
não havia homem algum; no deserto, onde não havia homem algum? (...) Acaso
poderás reunir as doces influências das Plêiades ou impedir a evolução de
Orion? (...) Poderás enviar os raios, que possam ir e vos dizer ‘Aqui
estamos’?” [89]
“Então Jó respondeu ao Senhor.” Ele compreendeu quais são os seus caminhos
e os seus olhos estão abertos pela primeira vez. A Sabedoria Suprema desceu
sobre ele; e, se o leitor ficar confuso diante deste PETROMA final da iniciação,
pelo menos Jó, ou o homem “afligido” em sua cegueira, entendeu então a
impossibilidade de caçar “Leviatã cravando-lhe um arpão no nariz”. O Leviatã é
a CIÊNCIA OCULTA, em que se pode pôr a mão, mas “não mais do que isso”,
[90] e cujo poder e cuja “proporção conveniente” Deus não quer esconder.

“Quem pode descobrir a superfície de sua vestimenta? e quem entrará no meio


da sua boca? Quem pode abrir as portas do seu rosto? Em roda dos seus dentes
está o seu orgulho, e eles estão selados. O seu espirro é resplendor do fogo e
os seus olhos como as pestanas da aurora.” Que “faz brilhar uma luz atrás de
si”, para que se aproxime dele os que não têm medo. E então eles também verão
“todas as coisas altas, pois ele é rei apenas sobre todos os filhos da
soberba”. [91]
Jó, agora à guisa de retratação, responde:
“Eu sei que podes todas as coisas,
E que nenhum pensamento se te esconde.
Quem é este que fez uma exibição de sabedoria arcana
Sem nada saber dela?
Por isso falei sobre o que não compreendia —
Coisas que estavam acima de mim, as quais não conhecia.
Ouve! suplico-te, e eu falarei;
Perguntar-te-ei, e me responderás:
Eu te ouvi com meus ouvidos,
E agora te verei com meus olhos,
Por isso me repreendo a mim mesmo,
E me penitencio no pó e na cinza?” [92]

Ele reconheceu seu “paladino” e se convenceu de que havia chegado a hora da


sua vindicação. Imediatamente o Senhor (“os sacerdotes e os juízes”,
Deuteronômio, XIX, 17) disse aos seus amigos: “Minha ira se voltou contra ti e
contra teus dois amigos, porque não me haveis falado retamente diante de mim,
como meu servo Jó”. Então “o Senhor voltou-se para a penitência de Jó” e “lhe
deu em dobro tudo quanto ele havia tido”. [93]
Assim, no julgamento [egípcio], o morto invoca quatro espíritos que residem no
Lago de Fogo e é purificado por eles. Ele então é conduzido à sua morada
celestial e é recebido por Athar e por Ísis e permanece diante de Atum, [94] o
Deus essencial. Ele agora é Turu, o homem essencial, um espírito puro, e em
consequência On-ati, o olho de fogo, e um companheiro dos deuses. *
* Se o leitor ler esse parágrafo sobre a cena egípcia do julgamento imediatamente depois do
segundo parágrafo da p. 130, verá que pertence claramente a ele. De uma maneira ou de outra,
foi deslocado no manuscrito de Ísis sem véu ou durante o processo de sua organização. Os
termos Turu e On-ati, todavia, não foram identificados. (N. do Org.)

Esse grandioso poema de Jó era muito bem compreendido também pelos


cabalistas. Enquanto muitos dos hermetistas medievais eram homens
profundamente religiosos, eles eram, no fundo de seus corações — como os
cabalistas de todas as épocas —, os inimigos mais mortais do clero. Como
parecem verdadeiras as palavras de Paracelso quando exclamou, afligido por
uma perseguição feroz e por calúnias, e incompreendido por seus amigos e por
seus inimigos, maltratado pelo clero e pelos leigos:
“Ó vós de Paris, Pádua, Montpellier, Salerno, Viena e Leipzig! Não sois mestres
da verdade, mas confessores de mentiras. Vossa filosofia é uma mentira. Se
quereis saber o que realmente é a MAGIA, procurai-a no Apocalipse de São
João. (...) Posto que não podeis aprovar que vossos ensinamentos derivam da
Bíblia e do Apocalipse, acabai com vossas farsas. A Bíblia é a verdadeira chave
e o verdadeiro intérprete. João, não menos do que Moisés, Elias, Henoc, Davi,
Salomão, Daniel, Jeremias e os outros profetas, era um mago, cabalista, um
adivinhador. Se todos eles, ou pelo menos um dos que nomeei, vivessem agora,
eu não duvidaria que faríeis deles um exemplo em vosso matadouro miserável
e os aniquilaríeis e, se fosse possível, o Criador de todas as coisas também!”
Paracelso demonstrou na prática que aprendeu algumas coisas misteriosas e
úteis do Apocalipse e de outros livros da Bíblia, bem como da Cabala; e tanto o
fez, que é chamado por muitos de o “pai da magia e fundador da física oculta da
Cabala e do Magnetismo”. [95]
Tão firme era a crença popular nos poderes sobrenaturais de Paracelso, que até
hoje perdura entre os alsacianos simplórios a tradição de que ele não morreu,
mas “repousa em seu túmulo”, em Salzburgo. [96] E eles murmuram
frequentemente entre si que o gramado verde que o rodeia se agita ao impulso
de cada respiração daquele peito fatigado, e que se ouvem gemidos profundos
como se o grande filósofo do fogo despertasse à lembrança das injustiças cruéis
que sofreu nas mãos dos seus cruéis assassinos por causa do seu amor à
verdade!
Essa extensa ilustração pode mostrar que o Satã do Velho Testamento, o
Diabolos ou Diabo dos Evangelhos e das Epístolas Apostólicas são
personificações do princípio antagônico da matéria, necessariamente inerente a
ele, e não mau no sentido moral do termo. Os judeus, vindo do país persa,
trouxeram consigo a doutrina de dois princípios. Não puderam trazer o Avesta,
pois ele não estava escrito. Mas eles — queremos dizer os assideus [chasîdîm]
e parsis — investiram Ormuzd com o nome secreto de ‫יהוה‬, e Ahriman, com o
nome dos deuses do lugar, Satã dos hititas e Diabolos, ou antes Diobolos, dos
gregos. A Igreja primitiva, pelo menos sua parte paulina, a dos gnósticos e seus
sucessores refinaram posteriormente as suas idéias e a Igreja católica as adotou
e adaptou, enquanto passava pelo fio da espada os seus promulgadores.

O demônio hindu, uma abstração metafísica


A Igreja protestante é uma reação contra a Igreja Católica Romana. Não é
necessariamente coerente em suas partes, mas uma multidão de fragmentos
que se chocam ao redor de um centro comum, atraindo-se e repelindo-se.
Algumas partes se dirigem centripetamente para Roma, ou para o sistema que
fez a velha Roma existir; outras ainda são empurradas pelo impulso centrífugo
para longe da ampla região etérea de Roma, ou mesmo da influência cristã.
O Diabo moderno é o legado principal da Cibele romana, “Babilônia, a Grande
Mãe das religiões idólatras e abomináveis da terra”.
Mas talvez se pudesse argumentar que a teologia hindu, tanto bramânica quanto
budista, está tão impregnada da crença em diabos objetivos quanto a própria
cristandade. Há uma pequena diferença. A sutileza mesma da mente hindu é
uma garantia suficiente de que as pessoas educadas, a porção mais culta pelo
menos dos teólogos bramânicos e budistas, consideram o Diabo segundo uma
outra luz. Para elas o Diabo é uma abstração metafísica, uma alegoria do mal
necessário; ao passo que para os cristãos o mito se tornou uma entidade
histórica, a pedra fundamental sobre a qual se erigiu a Cristandade, com seu
dogma de redenção. Ele é tão necessário — como o mostrou des Mousseaux —
para a Igreja, quanto a besta do capítulo dezessete do Apocalipse para seu leitor.
Os protestantes de fala inglesa, não considerando a Bíblia suficientemente
explicativa, adotaram a Diabologia do celebrado poema de Milton, Paradise Lost,
embelezando-a aqui e ali com trechos extraídos do celebrado poema Fausto, de
Goethe. John Milton, primeiramente um puritano e depois quietista e unitário,
sempre considerou sua grande produção como uma obra de ficção, ainda que
ajustada às linhas gerais de diferentes partes da Escritura. O Ialdabaôth dos
ofitas foi transformado num anjo de luz e na estrela da manhã e feito o Diabo, no
primeiro ato do Diabolic Drama. Assim, o capítulo doze do Apocalipse foi
traduzido para o segundo ato. O grande Dragão vermelho foi identificado com a
mesma ilustre personagem de Lúcifer, e a última cena é a sua queda, como a de
Vulcano-Hefaistos, do Céu, para a ilha de Lemnos; as hostes fugitivas e seu líder
“caem no abismo tenebroso” do Pandemonium. O terceiro ato é o Jardim do
Éden. Satã preside um concílio num salão erigido por ele para seu novo império
e determina empreender uma expedição exploradora à procura do novo mundo.
O ato seguinte refere-se à queda do homem, sua passagem pela Terra, o
advento do Logos, ou Filho de Deus, e sua redenção da Humanidade, ou sua
porção eleita, como se deu.
Esse drama de Paradise Lost compreende a crença não-formulada dos “Cristãos
protestantes evangélicos” de fala inglesa. Não crer em suas características
principais equivale, em seu ponto de vista, a “negar Cristo” e a “blasfemar contra
o Espírito Santo”. Se John Milton houvesse suspeitado de que seu poema, em
vez de ser equiparado à Divina Comédia de Dante, seria considerado como um
outro Apocalipse suplementar à Bíblia e complementar da sua demonologia, é
mais provável que tivesse optado pela pobreza mais resolutamente e retirado o
livro do prelo. Um poeta posterior, Robert Pollock, inspirando-se nessa obra,
escreveu uma outra, The Course of Time, que também foi tida durante algum
tempo como uma nova Escritura; mas o século XIX felizmente recebeu uma outra
inspiração e o poeta escocês está caindo no esquecimento.
Talvez devamos dar uma breve notícia do Diabo europeu. Ele é o gênio que
intervém na bruxaria, na feitiçaria e em outros malefícios. Os padres, tomando a
idéia dos fariseus judaicos, transformaram em diabos os deuses pagãos, Mithra,
Serapis e outros. A Igreja Católica Romana denunciou a adoração antiga como
comércio com os poderes da escuridão. Os malefici e as feiticeiras da Idade
Média eram nada menos do que adeptos da adoração proscrita. A Magia nos
tempos antigos fora considerada como ciência divina, sabedoria e conhecimento
de Deus. A arte de curar nos templos de Esculápio e nos santuários do Egito e
do Oriente sempre foi mágica. Até mesmo Darius Hystaspes, que exterminou os
magos medos e expulsou, da Babilônia para a Ásia Menor, os teurgos caldaicos,
fora instruído pelos brâmanes da Ásia Superior e, finalmente, enquanto
estabelecia o culto de Ormusde, foi ele próprio denominado de instituidor do
magismo. Tudo agora está mudado. A ignorância foi entronizada como a mãe da
devoção. A erudição foi condenada e os sábios prosseguiram em sua obra
científica com o perigo de suas vidas. Foram obrigados a expor suas idéias em
uma linguagem enigmática compreendida apenas pelos seus adeptos e a aceitar
o opróbrio, a calúnia e a pobreza.
Os fiéis da adoração antiga foram perseguidos e condenados à morte por
feitiçaria. Os albigenses, descendentes dos gnósticos, e os waldenses,
precursores dos protestantes, foram caçados e exterminados sob acusações
semelhantes. O próprio Martinho Lutero foi acusado de conivência com Satã em
pessoa. Todo o mundo protestante ainda está sob o peso da mesma imputação.
Não há distinção nos julgamentos da Igreja entre dissensão, heresia e feitiçaria.
E, exceto onde a autoridade civil lança sua proteção, eles representam ofensas
capitais. A liberdade religiosa é vista pela Igreja como intolerância.
Mas os reformadores foram alimentados com o leite de sua mãe. Lutero era tão
sedento de sangue quanto o Papa; Calvino, mais intolerante do que Leão ou
Urbano. Trinta anos de guerra despovoaram distritos inteiros da Alemanha, tanto
protestantes quanto católicos. O novo credo, também, abriu suas baterias contra
a feitiçaria. Os códigos legais carminaram-se com uma legislação sangrenta na
Suécia, na Dinamarca, na Holanda, na Grã-Bretanha e na Commonwealth norte-
americana. Quem quer que fosse mais liberal, mais inteligente, que expressasse
mais livremente o seu pensamento do que seus companheiros, era preso e
morto. As fogueiras que foram apagadas em Smithfield foram novamente acesas
para os magos; era menos arriscado rebelar-se contra um trono do que perseguir
um conhecimento abstruso além dos limites da linha marcada pela ortodoxia.
No século XVII, Satã fez uma investida na Nova Inglaterra, em Nova Jersey e
Nova York e em muitas das colônias sulistas da América do Norte, e Cotton
Mather nos fornece as principais crônicas sobre suas manifestações. Alguns
anos depois, visitou o Presbitério de Mora, na Suécia, e a vida cotidiana na
Dalecarlia foi modificada com a queima de crianças vivas e a flagelação de
outras às portas da igreja, nos dias de Sabbath. O ceticismo dos tempos
modernos, todavia, recolheu aos conventos a crença na feitiçaria, e o Diabo de
forma antropomórfica pessoal, com seu pé à Baco e chifres de bode à Pã, só
tem lugar nas Cartas Encíclicas e outras efusões da Igreja Católica Romana. A
respeitabilidade protestante não o permite ser nomeado, senão em voz baixa no
púlpito.
Relatada a biografia do Diabo desde seu primeiro acidente na Índia e na Pérsia,
seu progresso entre os judeus e na teologia cristã antiga e recente até as últimas
fases da sua manifestação, examinemos agora algumas opiniões dominantes
nos primeiros séculos cristãos.
Avatares ou encarnações eram comuns às velhas religiões. Na Índia, os avatares
chegaram a constituir um sistema. Os persas esperavam Saoshyant e os
escritores judaicos aguardavam um libertador. Tácito [97] e Suetônio [98] relatam
que o Oriente, na época de Augusto, ardia de expectativa por uma Grande
Personagem. “Assim, doutrinas tão óbvias para os cristãos eram os arcanos
supremos do Paganismo”. [99] O Maneros de Plutarco era um menino de
Palaestinus; [100] seu mediador Mithras, o Salvador Osíris, é o Messias. [101]
Nas nossas “Escrituras canônica” atuais descobrem-se os vestígios das
adorações antigas; e nos ritos e nas cerimônias da Igreja Católica Romana
encontramos as formas da adoração budista, suas cerimônias e sua hierarquia.
Os primeiros Evangelhos, que já foram tão canônicos quanto os quatro atuais,
contêm páginas tomadas quase integralmente das narrativas budistas, como
podemos mostrar. Após as provas fornecidas por Burnouf, Cosma de Körös,
Beal, Hardy, Schmidt e as traduções do Tripitaka, é impossível duvidar que todo
o esquema cristão não emanasse de um outro. Os milagres da “Concepção
Milagrosa” e outros incidentes se deixam ver claramente no A Manual of
Buddhism, de Hardy [p. 141 e seguintes.] Compreendemos prontamente por que
a Igreja Católica Romana está ansiosa para manter o vulgo na ignorância mais
completa da Bíblia hebraica e da literatura grega. A Filologia e a Teologia
comparada são seus inimigos mais mortais. As falsificações deliberadas de
Irineu, Epifânio, Eusébio e Tertuliano tornaram-se uma necessidade.
Naquele tempo, parece que os Livros sibilinos gozavam de muita consideração.
Pode-se perceber facilmente que eles foram inspirados na mesma fonte de onde
brotaram as obras gentias.
Eis uma página de Gallaeus:
“Uma Nova Luz surgiu
Que, descendo do Céu, assumiu forma mortal.
Primeiro Gabriel apresentou sua poderosa pessoa sagrada,
Depois, dando a mensagem, dirigiu-se com palavras à Virgem:
Virgem, recebe Deus em teu peito puro. (...)
E a coragem voltou a ela e a PALAVRA entrou em seu útero.
Tornando-se encarnado e animado por seu corpo,
Formou-se uma imagem mortal e um MENINO foi criado
Por um parto da Virgem. (...)
A nova estrela enviada por Deus foi adorada pelos Magos.
A criança envolta em panos foi mostrada numa manjedoura ao obediente a
Deus
E Belém foi chamada ‘terra divina’ da Palavra”. [102]

À primeira vista, essa passagem parece uma profecia do nascimento de Jesus.


Mas não poderia ela referir-se a algum outro Deus criador? Temos expressões
análogas relativas a Baco e a Mithras.
“Eu, filho de Zeus, vim ao país dos tebanos. Sou Baco, a quem pariu Semelê [a
virgem], filha de Cadmo [o homem do Oriente], e, engendrado pela chama
portadora do raio, assumi forma mortal em vez de divina.” [103]
As Dionisíacas, escritas no século V, são úteis para tornar essa matéria mais
clara e até mesmo para pôr em relevo sua conexão estreita com a lenda cristã
do nascimento de Jesus:
“Perséfone-Virgem, [104] não escapaste do casamento
E foste esposada nos epitalâmios do Dragão
Quando Zeus, todo enrolado e de aparência modificada,
Um Dragão-noivo transbordante de amor,
Deslizou para teu leito virginal
Agitando a barba áspera. (...) Pelos esponsais dracontianos etéreos,
O útero de Perséfone foi agitado por um jovem frutuoso,
E nasceu Zagreus, [105] o Menino coroado de chifres.” [106]

Temos aqui o segredo da adoração ofita e a origem da fábula cristã


posteriormente revisada da concepção imaculada. Os gnósticos foram os
primeiros cristãos a possuir algo como um sistema teológico regular e é bastante
evidente que Jesus é que foi adaptado para Christos em sua teologia, e não foi
a sua teologia que se desenvolveu a partir dos seus ditos e das suas ações.
Seus ancestrais afirmam, antes da era cristã, que a Grande Serpente — Júpiter,
o Dragão da Vida, o Pai e a “Divindade do Bem” — deslizara para o leito de
Semelê e os gnósticos pré-cristãos, com uma modificação muito insignificante,
aplicaram a mesma fábula ao homem Jesus e afirmaram que a mesma
“Divindade do Bem”, Saturno (Ialdabaôth), na forma do Dragão da Vida, deslizou
por sobre o leito da menina Maria. [107] A seus olhos, a Serpente era o Logos —
Christos, a encarnação da Sabedoria Divina, por meio de seu Pai Ennoia e sua
Mãe Sophia.
“Agora minha mãe o Espírito Santo me tomou”, diz Jesus no Evangelho dos
Hebreus, [108] assumindo assim seu papel de Christos — o Filho de Sophia, o
Espírito Santo. [109]
“O Espírito Santo descerá sobre ti e o PODER do Supremo te cobrirá da sua
sombra; e por isso mesmo a coisa santa que há de nascer de ti será chamada
de Filho de Deus”, diz o anjo (Lucas, I, 35).
“Deus (...) nos falou nestes dias por seu Filho, ao qual apontou como herdeiro
de todas as coisas, e por quem fez os Aeôns.” [110]
Todas essas expressões são variações cristãs do versículo de Nonnus “(...) por
meio do dracônteo etéreo”, pois Éter é o Espírito Santo ou a terceira pessoa da
Trindade — a Serpente com cabeça de falcão, o Kneph egípcio, emblema da
Mente Divina, [111] e a alma universal de Platão.
“Eu (Sabedoria) saí da boca do Altíssimo e cobri como nuvem toda a terra.” [112]
Poimandres, o Logos, surge da Escuridão Infinita e cobre a terra com nuvens
que, em forma de serpente, se espalham por sobre toda a Terra. [113] O Logos
é a mais velha imagem de Deus e é o Logos ativo, diz Filo. [114] O Pai é o
Pensamento Latente.
Sendo esta idéia universal, encontramos uma fraseologia idêntica para
expressá-la entre os pagãos, os judeus e os cristãos primitivos. O Logos
caldaico-persa é o Primogênito do Pai na cosmogonia babilônica de Eudemus.
[115] O “Hino a Eli, filho de Deus”, inicia um hino homérico ao Sol. [116] Sôl-Mithra
é uma “imagem do Pai”, como o cabalístico Zeir-Anpîn.
Parece impossível, e todavia esta é a triste realidade, que, entre todas as várias
nações da Antiguidade, não houve uma só que acreditasse num diabo pessoal
mais do que os cristãos liberais do século XIX. Nem os egípcios, que Porfírio
chama de “a mais erudita nação do mundo”, [117] nem os gregos, seus fiéis
imitadores, caíram em absurdo tão grande. Podemos acrescentar que nenhum
deles, nem mesmo os judeus antigos, acreditou no inferno ou numa condenação
eterna mais do que no Diabo, embora nossas igrejas cristãs atribuam ao
demônio tudo quanto se relacione com os gentios. Em todo lugar em que a
palavra “inferno” ocorre nas traduções dos textos sagrados hebraicos, ela está
distorcida. Os hebreus ignoravam essa idéia, mas os Evangelhos contêm
exemplos frequentes de compreensões erradas. Assim, quando Jesus diz
(Mateus, XVI, 18) “(...) e as portas do Hadês não prevalecerão contra ela”, o texto
original apresenta “as portas da morte”. Em nenhum lugar aparece a palavra
“inferno” — aplicada com o significado de condenação, seja temporária ou eterna
— utilizada no Velho Testamento com o sentido que lhe deram os forjadores
desse dogma. “Tophet”, ou “o Vale do Hinnom” [118] não tem esse significado. O
termo grego “Gehenna” [119] tem um sentido bastante diferente e equivale, na
opinião de escritores competentes, ao Tártaro homérico.
O próprio Pedro nos dá prova desse fato. Em sua segunda Epístola (II, 4), o
Apóstolo, no texto original, diz, sobre os anjos pecadores, que Deus “os lançou
ao Tártaro”. Essa expressão, que lembra muito inconvenientemente a guerra
entre Júpiter e os Titãs, foi alterada e agora, na versão do rei James, apresenta
“os lançou no inferno”.
No Velho Testamento as expressões “portas da morte” e “câmaras da morte”
aludem simplesmente às “portas do túmulo”, mencionadas especificamente nos
Salmos e nos Provérbios. O inferno e seu soberano são ambos invenções do
Cristianismo, contemporâneos do seu poder e do recurso à tirania. São
alucinações nascidas dos pesadelos dos Antônios do deserto. Antes da nossa
era, os sábios antigos conheciam o “Pai do Mal” e não o tratavam senão como
asno, o símbolo escolhido de Typhon, “o Diabo”. [120] Triste degeneração de
cérebros humanos!
Assim como Typhon era a sombra escura de seu irmão Osiris, Python é o lado
mau de Apolo, o brilhante deus das visões, o vidente e adivinho. É morto por
Python, mas mata-o por sua vez, redimindo a Humanidade do pecado. Foi em
memória dessa façanha que as sacerdotisas do deus-Sol se vestiam com peles
de serpente, típicas do fabuloso monstro. Sob sua poderosa influência — a pele
da serpente era considerada magnética —, as sacerdotisas caíam em transes
magnéticos e “recebiam de Apolo as suas vozes”, tornavam-se proféticas e
proferiam oráculos.
Além disso, Apolo e Python são apenas um, e moralmente andróginos. As idéias
do deus-Sol são todas duais, sem exceção. O calor benéfico do Sol traz o germe
à existência, mas o calor excessivo mata a planta. Quando toca a lira planetária
de sete cordas, Apolo produz a harmonia; mas, como outros deuses-sóis, sob
seu aspecto sombrio ele se torna o destruidor, Python.
Sabe-se que São João viajou pela Ásia, uma região governada pelos magos e
imbuída de idéias zoroastrianas e, naqueles dias, repleta de missionários
budistas. Se ele não tivesse visitado esses lugares e entrado em contato com os
budistas, seria duvidoso acreditar que o Apocalipse pudesse ter sido escrito.
Além das suas idéias do dragão, dá narrativas proféticas inteiramente
desconhecidas dos outros apóstolos e que, relativas ao segundo advento, fazem
de Cristo uma cópia fiel de Vishnu.
Assim, Ophios e Ophiomorphos, Apolo e Python, Osíris e Typhon e Christos e a
Serpente são termos equivalentes. Todos eles são Logos e um é ininteligível
sem o outro, como não se poderia saber o que é dia, se não se conhecesse a
noite. Todos são regeneradores e salvadores, um num sentido espiritual, o outro
num sentido físico. Um assegura a imortalidade para o Espírito Divino; o outro a
concede através da regeneração da semente. O Salvador da Humanidade tem
de morrer, porque ele oculta à Humanidade o grande segredo do ego imortal; a
serpente do Gênese é amaldiçoada porque disse à matéria “não morrerás”. [III,
4.] No mundo do Paganismo, a contrapartida da “serpente” é o segundo Hermes,
a reencarnação de Hermes Trismegisto.
Hermes é o companheiro constante e o instrutor de Osíris e Ísis. É a sabedoria
personificada; como Caim, o filho do “senhor”. Ambos construíram cidades,
civilizaram e instruíram a Humanidade nas artes.
Já foi repetidamente afirmado pelos missionários cristãos do Ceilão e da Índia
que as pessoas estão saturadas de idolatria; que são adoradoras do diabo, no
sentido amplo da palavra. Sem qualquer exagero, dizemos que elas não o são
mais do que as massas de cristãos incultos. Mas eram adoradores do (o que é
mais do que crentes no) Diabo, embora haja uma grande diferença entre os
ensinamentos do seu clero sobre o tema de um diabo pessoal e os dogmas dos
pregadores cristãos, e de muitos ministros protestantes, também. Os sacerdotes
cristãos estão presos, e se limitam a impô-la às mentes de seu rebanho, à
existência do Diabo, e as páginas inaugurais desse capítulo mostram a razão
desse procedimento. Mas os Upasampanna cingaleses, que pertencem a um
sacerdócio superior, não só não confessam acreditar num demônio pessoal,
como também os Sâmanêra, candidatos e noviços, ririam dessa idéia. Tudo na
adoração externa dos budistas é alegórico e, por conseguinte, não é aceito, nem
ensinado pelos punghis (pânditas) cultos. Tem um certo fundamento a acusação
de que eles permitem e concordam tacitamente em deixar o povo imerso nas
mais degradantes superstições; mas negamos veementemente que eles
reforcem essas superstições. E, nesse particular, eles parecem levar vantagem
em relação ao nosso clero cristão, que (pelo menos aqueles que não permitem
que seu fanatismo interfira em seus cérebros), sem acreditar numa só palavra
disso, ainda prega a existência do Diabo, como inimigo pessoal de um Deus
pessoal e o gênio mau da Humanidade.
O Dragão de São Jorge, que figura com tanta evidência nas maiores catedrais
dos cristãos, não excede em beleza o Rei das Serpentes, o Nammadâ-Nârada
budista, o grande Dragão. Se a superstição popular dos cingaleses acredita que
o Demônio zodiacal Râhu destrói a Lua devorando-a e se o povo da China e da
Tartária sai às ruas batendo bombos, pratos e discos, com que fazem estrépito
para afugentar o monstro durante os eclipses — por que o clero cristão acha isso
errado, ou chama de superstição? Não faz a mesma coisa o clero da França
meridional, ocasionalmente, no aparecimento de cometas, na ocorrência de
eclipses ou outros fenômenos celestiais? Em 1456, quando o cometa de Halley
fez sua aparição, “tão tremenda foi sua aparição”, escreve Draper, “que o próprio
Papa teve de interferir. Ele o exorcizou e o afugentou dos céus. Foi lançado nos
abismos do espaço, aterrorizado pelas maldições de Calixto III e não se atreveu
a voltar antes de setenta e cinco anos!” [121]
Nunca ouvimos falar que um clérigo cristão ou o Papa houvessem tentado
convencer as mentes ignorantes de que a crença no Diabo tivesse algo a ver
com eclipses e cometas; mas vemos um prelado budista dizendo a um oficial
que lhe atirava na cara essa superstição: “Nossos livros religiosos cingaleses
ensinam que os eclipses do Sol e da Lua denotam um ataque de Râhu, [122] *
não de um diabo”. [123]
* Além do seu aspecto mitológico exotérico, Râhu e Ketu são respectivamente os nodos
ascendente e descendente da órbita da Lua, isto é, os pontos em que ela intercepta a eclíptica.
São pontos fixos na órbita da Lua, mesmo que se movam em relação à Terra por causa do
movimento da própria órbita. Podem ser chamados a cabeça e cauda do Dragão, se
considerarmos o fato de que a Lua é chamada de Dragão pelos chineses. A menos que esses
fatos não sejam levados em consideração, a nota de rodapé não apresenta sentido definido,
sendo um tanto confusos os termos “estrelas fixas” e “constelação”. (N. do Org.)

A origem do mito do “Dragão”, que ocupa um lugar importante no Apocalipse e


na Lenda dourada, e da fábula sobre Simão Estilita convertendo o Dragão e
inegavelmente budista e até mesmo pré-budista. Foram as doutrinas puras de
Gautama que atraíram para o budismo os cachemirianos cuja adoração primitiva
era a ofita, ou a adoração da Serpente. O olíbano e as flores substituíam os
sacrifícios humanos e a crença em demônios pessoais. O Cristianismo herdou a
degradante superstição de diabos investidos de poderes pestilentos e
assassinos. O Mahâvansa, o mais antigo dos livros cingaleses, relata a história
do rei Covercapal (cobra-de-capelo), o deus-serpente, que foi convertido para o
budismo por um santo Rahat; [124] e desta lenda derivou seguramente a de
Simão Estilita e seu Dragão, que faz parte da Lenda Dourada.
O Logos triunfa uma vez mais sobre o grande Dragão; Miguel, o arcanjo
luminoso, chefe dos Aeôns, vence Satã. [125]
É digno de menção o fato de que, enquanto o iniciado mantiver em segredo “o
que sabe”, ele estará perfeitamente seguro. Isso acontecia nos tempos antigos
e acontece agora. Tão logo o Deus dos cristãos, emanando do Silêncio, se
manifestava como a Palavra ou Logos, este último se tornava a causa de sua
morte. A serpente é o símbolo da sabedoria e da eloquência, mas é também o
símbolo da destruição. “Ousar, conhecer, querer e calar” são os axiomas
cardeais dos cabalistas. Como Apolo e outros deuses, Jesus é morto por seu
Logos; [126] ele se ergue novamente, mata-o por sua vez e se torna seu senhor.
Será que esse velho símbolo tem, como as outras concepções filosóficas
antigas, mais de um sentido alegórico e insuspeitado? As coincidências são
estranhas demais para resultarem do mero acaso.
E agora que mostramos essa identidade entre Miguel e Satã e os Salvadores e
Dragões de outros povos, o que pode ser mais claro do que todas essas fábulas
filosóficas originadas na Índia, esse viveiro universal do misticismo metafísico?
“O mundo”, diz Ramatsariar em seus comentários sobre os Vedas, “começou
com uma luta entre o Espírito de Deus e o Espírito do Mal, e em luta há de
acabar. Após a destruição da matéria, o mal não mais existirá, deverá voltar ao
nada”. [127]
Na sua Apologia, Tertuliano falsifica evidentemente toda doutrina e toda crença
dos pagãos relativas aos oráculos e aos deuses. Chama-os, indiferentemente,
de demônios e de diabos, acusando estes últimos de possuírem até mesmo as
aves do ar! Que cristão ousaria duvidar de tal autoridade? Não afirmou o salmista
que “Todos os deuses das nações são ídolos” [128] e não explicou o Anjo das
Escolas, Tomás de Aquino, com sua autoridade cabalística, a palavra ídolos por
diabos? “Eles vêem até os homens”, diz ele, “e os incitam a adorá-los, valendo-
se de certas obras que parecem milagrosas”. [129]
Os padres foram tão prudentes, quanto sábios em suas invenções. Para ser
imparciais, após terem criado um Diabo, começaram a criar santos apócrifos.
Nomeamos vários deles em capítulos precedentes; mas não devemos nos
esquecer de Baronius, que, ao ler uma obra de Crisóstomo sobre o santo Xynoris
— palavra que significa par, casal —, tomou-a pelo nome de um santo e criou
com ela um mártir da Antióquia e chegou a dar uma biografia detalhada e
autêntica do “mártir ferido”. Outros teólogos fizeram de Apollyon — ou antes
Apolouôn — o Anticristo. Apolouôn é o “banhador” de Platão, o deus que purifica,
que lava e nos livra do pecado, porém que foi transformado naquele “cujo nome
na língua hebraica é Abaddon, mas na língua grega tem o nome de Apollyon” —
Diabo! [Apocalipse, IX, 11.]
Max Müller diz que a serpente do Paraíso é uma concepção que deve ter brotado
entre os judeus e “dificilmente parece convidar a uma comparação com as
concepções mais grandiosas do poder terrível de Vritra e de Ahriman no Veda e
no Avesta”. [130] Para os cabalistas, o Diabo foi sempre um mito — o aspecto
invertido de Deus ou do bem. O Mago moderno, Éliphas Lévi, chama o Diabo de
l’ivresse astrale. É uma força cega como a eletricidade, diz ele; e, falando
alegoricamente, como sempre fez, Jesus observou que ele “considerava Satã
como se fosse um raio caído do Céu”. [131]
O clero insiste que Deus enviou o Diabo para tentar a Humanidade, o que seria
antes uma maneira singular de mostrar seu amor infinito para com o gênero
humano! Se o Supremo foi realmente culpado dessa traição incompatível com
sua augusta paternidade, ele é digno, certamente, de adoração por parte de uma
Igreja que canta o Te Deum depois do Massacre de São Bartolomeu e de
abençoar as espadas maometanas feitas para exterminar os cristãos gregos!
Isto soa ao mesmo tempo lógico e legal; não diz uma máxima da jurisprudência
que “Qui facit per alium, facit per se”?
A grande dessemelhança que existe entre as várias concepções do Diabo é
verdadeiramente ridícula. Enquanto os beatos o enfeitam invariavelmente com
chifres e rabo e o concebem numa figura repulsiva que inclui um cheiro humano
pestilento, [132] Milton, Byron, Goethe, Lermontoff [133] e um exército de
romancistas franceses ergueram seu louvor em poesia graciosa e em prosa
emocionante. O Satã de Milton e até mesmo o Mefistófeles de Goethe possuem
um relevo mais vigoroso do que alguns dos anjos representados na prosa de
beatos extáticos. Comparemos duas descrições. Premiemos em primeiro lugar
o incomparavelmente sensacional des Mousseaux. Ele nos dá uma narrativa
emocionante de um íncubo, nas palavras da própria penitente: “Certa vez”, ela
conta, “durante todo o espaço de meia hora, ela viu claramente perto dela um
indivíduo com um corpo preto, espantoso, horrível, cujas mãos, de um tamanho
enorme, exibiam dedos agatanhados estranhamente encurvados. Os sentidos
da visão, do tato e do olfato foram corroborados pelo da audição”!! [134]
E, pelo espaço de muitos anos, a donzela foi arrastada por tal herói! Quão
distante desse galante odorífero está a majestosa figura do Satã miltoniano!
Que o leitor então imagine, se puder, essa quimera soberba, esse ideal do anjo
rebelde tornado o Orgulho encarnado, e encerrado na pele do mais repulsivo dos
animais? Muito embora o catecismo cristão nos ensine que Satã in propria
persona tentou nossa primeira mãe, Eva, num paraíso real, e na forma de uma
serpente, que de todos os animais era o mais insinuante e o mais fascinante!
Deus ordena a ela, como castigo, arrastar-se eternamente sobre seu ventre, e
comer a poeira do chão. “Uma sentença”, observa Lévi, “que em nada se parece
às tradicionais chamas do inferno”. Não levaram em consideração os autores
dessa alegoria que a serpente zoológica real, criada antes de Adão e Eva,
arrastava-se sobre seu ventre e comia a poeira do chão, antes que existisse
qualquer pecado original.
Por outro lado, não foi Ophion, o Daimôn ou Diabo, como Deus, chamado
Dominus? [135] A palavra Deus (deidade) deriva da palavra sânscrita Deva, e
Diabo provém do persa daêva — palavras substancialmente semelhantes.
Hércules, filho de Jove e de Alcmena, um dos deuses-sóis mais elevados e
também o Logos manifesto, e, não obstante, representado numa natureza dupla,
como todos os outros. [136]
O Agathodaimôn, o daemon beneficente, [137] o mesmo que encontramos
posteriormente entre os ofitas com a denominação de Logos, ou sabedoria
divina, era representado por uma serpente que se mantinha ereta sobre uma
vara, nos mistérios das Bacanais. A serpente com cabeça de falcão está entre
os emblemas egípcios mais antigos e representa a mente divina, diz Deane. [138]
Azâzêl é Moloch e Samael, diz Movers, [139] e Aaron, o irmão do grande
legislador Moisés, faz sacrifícios idênticos a Jeová e Azâzêl.
“E Aarão deita sortes sobre os dois bodes; uma para o Senhor [Ihoh no original]
e outra para o bode emissário [Azâzêl]”. [140]
No Velho Testamento, Jeová exibe todos os atributos do velho Saturno, [141]
apesar de suas metamorfoses de Adoni em Elói e em Deus dos Deuses, Senhor
dos Senhores. [142]
Jesus é tentado na montanha pelo Diabo, que lhe promete reinos e glória se se
prostrasse e o adorasse (Mateus IV, 8, 9). Buddha é tentado pelo Demônio
Wasawartti-Mâra, que lhe diz, no momento em que deixava o palácio de seu pai:
“Fica, que possuirás as honras que estiverem ao teu alcance; não vás, não vás!”
E com a recusa de Gautama em aceitar suas oferendas, rangeu seus dentes
com raiva e prometeu vingar-se. Como Cristo, Buddha triunfa sobre o
Diabo. [143]
Nos mistérios báquicos, um cálice consagrado, chamado cálice de
Agathodaimôn, passava de mão em mão entre os fiéis após o jantar. [144] O rito
ofita de mesma descrição foi evidentemente tomado desses mistérios. A
comunhão, que consistia de pão e vinho, foi usada na adoração de quase todas
as divindades importantes. [145]
Em relação com o sacramento semi-mítrico adotado pelos marcosianos — uma
outra seita gnóstica, totalmente cabalística e teúrgica —, há uma estranha
história oferecida por Epifânio como uma ilustração das artimanhas do Diabo. Na
celebração da sua Eucaristia, os marcosianos traziam três grandes vasos do
cristal mais fino e mais claro para o meio da congregação e os enchiam de vinho
branco. No transcorrer da cerimônia, à vista de todos, esse vinho era
instantaneamente mudado para vermelho-sangue, para púrpura e depois para
azul-celeste. “Então o Mago”, diz Epifânio, “entrega um desses vasos para uma
mulher da congregação e lhe pede que o abençoe. Feito isso, o mago despeja o
seu conteúdo num vaso de maior capacidade, formulando o seguinte pedido:
‘Possa a graça de Deus, que está acima de tudo, é inconcebível e inexplicável,
preencher o teu interior e aumentar o conhecimento dAquele que está dentro de
ti semeando o grão de mostarda em terreno fértil’. Depois disso o licor do vaso
maior aumenta e aumenta até chegar à borda”. [146]
Em relação com muitas divindades pagãs que, após a morte, e antes de sua
ressurreição, descem ao Inferno, seria útil comparar as narrativas pré-cristãs
com as pós-cristãs. Orfeu fez a sua viagem, [147] e Cristo foi o último desses
viajantes subterrâneos. No Credo dos Apóstolos, que está dividido em doze
frases ou artigos, que foram inseridos cada um por um apóstolo em particular,
segundo Santo Agostinho, [148] a frase “Desceu ao inferno, no terceiro dia
ressurgiu dos mortos” é atribuída a Tomé, talvez como uma expiação da sua
incredulidade. Seja como for, diz-se que a frase é uma falsificação e não há
evidência “de que esse Credo tenha sido modelado pelos apóstolos, ou pelo
menos que existisse como credo em sua época”. [149]
Trata-se da adição mais importante que foi efetuada no Credo dos Apóstolos e
data do ano 600. [150] Esse artigo não era conhecido na época de Eusébio. O
Bispo J. Pearson diz que ele não fazia parte dos credos antigos ou das regras
de fé. [151] Irineu, Orígenes e Tertuliano não parecem conhecê-lo. [152] Não é
mencionado em nenhum dos Concílios realizados antes do século VII.
Theodoret, Epifânio e Sócrates silenciam-se a seu respeito. Difere do credo de
Santo Agostinho. [153] Rufino afirma que, em sua época, ele não constava nem
dos credos romanos nem dos orientais. [154] Mas o problema se resolve quando
lemos que séculos atrás Hermes falou da seguinte maneira a Prometeu,
acorrentado no rochedo árido do Cáucaso:
“Teu tormento não cessará ATÉ QUE DEUS O SUBSTITUA EM TUA AFLIÇÃO
E DESÇA AO LÚGUBRE HADES E ÀS PROFUNDEZAS SOMBRIAS DO
TÁRTARO!” [155]

Satã e o Príncipe do Inferno no


Evangelho de Nicodemo
Esse deus era Hércules, o “Unigênito”, e o Salvador. E é ele que foi escolhido
como modelo pelos padres engenhosos. Hércules — chamado Alexikakos
porque converteu os malvados à virtude; Soter, ou Salvador, também chamado
Neulos Eumêlos — o Bom Pastor; Astrochitôn, o vestido de estrelas, e o Senhor
do Fogo. “Ele não sujeitou as nações pela força, mas pela sabedoria divina e
pela persuasão”, diz Luciano. “Hércules disseminou cultura e uma religião suave
e destruiu a doutrina da punição eterna expulsando Cérbero (o Diabo pagão) do
mundo inferior.” E, como vemos, foi também Hércules quem libertou Prometeu
(o Adão dos pagãos), pondo um fim à tortura infligida a ele por suas
transgressões, descendo ao Hades e ao Tártaro. Como Cristo, ele apareceu
como um substituto para as aflições da Humanidade, oferecendo-se em
sacrifício numa pira funerária. “Sua imolação voluntária”, diz Bart, “augurou o
novo nascimento etéreo dos homens. (...) Com a libertação de Prometeu, e a
ereção de altares, vemos nele um mediador entre os credos antigos e os novos.
(...) Ele aboliu o sacrifício humano onde quer que fosse praticado. Desceu ao
reino sombrio de Plutão, como uma sombra (...) ascendeu como espírito a seu
pai, Zeus, no Olimpo”. [156]
A Antiguidade estava tão marcada pela lenda de Hércules, que até mesmo os
judeus monoteístas (?) daquela época, para não serem ultrapassados pelos
seus contemporâneos, utilizaram-na na manufatura das fábulas originais.
Hércules é acusado, em sua mitobiografia, de uma tentativa de roubo do oráculo
de Delfos. No Sepher Toledoth Yeshu, os Rabinos acusam Jesus de roubar do
seu Santuário o Nome Inefável!
Portanto, nada há de estranho em suas numerosas aventuras, mundanas e
religiosas, tão fielmente espelhadas na Descida ao Inferno. Por uma
extraordinária ousadia de embuste e um plágio despudorado, o Evangelho de
Nicodemo, só agora proclamado apócrifo, ultrapassa tudo que já lemos. Que o
leitor julgue.
No começo do capítulo XVI, Satã e o “Príncipe do Inferno” são apresentados
conversando amigavelmente. De repente, ambos são colhidos por “uma voz
como de trovão” e pelo assalto dos ventos, que lhes ordenam abrir as portas
para que “o Rei da Glória possa entrar”. Logo após o Príncipe do Inferno ter
ouvido essa ordem, “começa a discutir com Satã por não ter sido prevenido para
tomar as precauções necessárias contra essa visita”. A discussão termina com
o príncipe lançando Satã “para fora de seu inferno”, ordenando ao mesmo tempo
que seus oficiais impiedosos “cerrassem as portas brônzeas da crueldade e as
aferrolhassem com barras de ferro e lutassem corajosamente para não sermos
tomados como prisioneiros”.
Mas “quando toda a companhia de santos [no Inferno?] ouviu isto, todos eles
disseram com voz encolerizada ao príncipe do inferno “Abre as portas, deixa o
Rei da Glória entrar’”, provando que o príncipe precisava de arautos.
“E o divino [?] profeta Davi gritou: ‘Acaso não profetizei em verdade quando
estava na Terra?” Após isso, outro profeta, chamado santo Isaías, falou da
mesma maneira “Não profetizei eu em verdade?”, etc. Então, a companhia dos
santos e profetas, depois de se jactar por um capítulo inteiro e de comparar as
notas de suas profecias, iniciou um tumulto, o que fez o Príncipe do Inferno
observar que “os mortos nunca se comportaram tão insolentemente” (os diabos,
XVIII, 6), fingindo ignorar sobre quem estava pedindo admissão. Ele então,
inocentemente, pergunta outra vez: “Mas quem é o Rei da Glória?” Então Davi
diz-lhe que ele conhece muito bem a voz e compreende suas palavras “porque”,
acrescenta ele, “eu lhes falei por seu Espírito”. Percebendo finalmente que o
Príncipe do Inferno não abriria as “portas brônzeas da “iniquidade”, apesar do
fiador do rei-salmista para o visitante, ele, Davi, resolve tratar o inimigo como um
filisteu e replica: “E agora, imundo e hediondo príncipe do inferno, abre tuas
portas para que o Rei da Glória possa entrar” [XVI, 14-7.]
Enquanto discutiam, o “Senhor poderoso apareceu sob a forma de um homem”
(?), cuja presença atemorizou a “Morte impiedosa e seus oficiais cruéis”. Então,
trêmulos, dirigem-se a Cristo com lisonjas e cumprimentos à guisa de perguntas,
cada um dos quais é um artigo do credo. Por exemplo: “E quem és tu, que não
libertas os cativos presos nas cadeias do pecado original?” pergunta um diabo.
“Talvez sejas aquele Jesus”, diz submissamente outro, “de quem Satã dizia há
pouco que pela morte na Cruz mereceste receber poder sobre a morte?”, etc.
Em vez de responder, o Rei da Glória “tripudia sobre a Morte, prende o Príncipe
do Inferno e o priva do seu poder” [XVII, 7, 12-3.]
Então produz-se no Inferno um alvoroço que foi magistralmente descrito por
Homero, por Hesíodo e por Preller, comentador de ambos, na sua narrativa do
Hércules astronômico Invictus e de seus festivais de Tiro, Tarso e Sardis.
Iniciado nos Mistérios Eleusinos Áticos, o deus pagão desce ao Hades e quando
entrou no mundo inferior, espalhou tal terror entre os mortos que todos eles
fugiram! [157] As mesmas palavras ocorrem em Nicodemo. Segue-se uma cena
de confusão, horror e lamentação. Percebendo que a batalha está perdida, o
Príncipe do Inferno encolhe a cauda e se coloca prudentemente ao lado do mais
forte. Ele, contra quem, segundo Judas e Pedro, até mesmo o Arcanjo Miguel
“não conseguiria levantar uma única acusação diante do Senhor”, agora é
vergonhosamente tratado pelo ex-aliado e amigo, o “Príncipe do Inferno”. O
pobre Satã é maltratado e ultrajado, por todos os seus crimes, pelos diabos e
pelos santos; enquanto o Príncipe é abertamente recompensado por sua traição.
Dirigindo-se a ele, o Rei da Glória diz: “Beelzebub, Príncipe do Inferno! Satã o
Príncipe estará para sempre sujeito ao teu domínio, no espaço de Adão e de
seus filhos justos, que são meus. (...) Vinde a mim, meus santos, que foram
criados à minha imagem, que foram condenados pela árvore do fruto proibido e
pelo Diabo e pela morte. Vivei agora pelo lenho de minha cruz; o Diabo, o
príncipe deste mundo, está subjugado [?] e a Morte está conquistada”. Então o
Senhor toma Adão por sua mão direita, Davi pela esquerda, e “sobe do Inferno,
seguido por todos os santos”, Henoc e Elias, e pelo “bom ladrão”. [158]
O piedoso autor, talvez por descuido, esqueceu-se de acrescentar à comitiva,
formando sua retaguarda, o dragão penitente de Simão Estilita e o lobo
convertido de São Francisco, meneando suas caudas e vertendo lágrimas de
alegria!
No Codex dos nazarenos é Tobo, “o libertador da alma de Adão”, que a leva do
Orcus (Hades) ao local da VIDA. [159] Tobo é Tob-Adonijah, um dos doze
discípulos (levitas) enviados por Josafá para pregar, nas cidades de Judá, o Livro
da Lei (2 Crônicas, XVII). No livro cabalista, eles eram “homens sábios”, Magos.
Traziam para baixo os raios do sol para iluminarem o Sheol (Hades), Orcus, e
assim mostrar o caminho para as Tenebrae, a escuridão da ignorância, para a
alma de Adão, que representa coletivamente todas as “almas da Humanidade”.
Adão (Athamas) é Tamuz ou Adonis, e Adonis é o Sol Helios. No Livro dos
mortos, Osíris diz: “Eu brilho como o Sol na mansão estrelada na festa do Sol”.
Cristo é chamado de “Sol da Retidão”, “Helios da Justiça”, [160] uma mera
reminiscência das velhas alegorias gentias; não obstante, tê-la utilizado para tal
não é menos blasfemo na boca de homens que pretendiam descrever com ela
um episódio verdadeiro da peregrinação terrena de seu Deus!
“Hércules, que saiu das câmaras da terra,
Deixando a moradia subterrânea de Plutão!” [161]

Diante de Ti tremeu o lago estígio; a Ti, o porteiro do Orcus


Temia, reclinando-se em sua cova sangrenta sobre ossos meio devorados.
Nem mesmo a Typhon amedrontou (...)
Salve verdadeiro FILHO de JOVE, GLÓRIA aos deuses!” [162]
Mais de quatro séculos antes do nascimento de Jesus, Aristóteles escrevera sua
paródia imortal sobre a Descida ao Inferno por Hércules. [163] O coro dos “bem-
aventurados”, o iniciado, os Campos Elíseos, a chegada de Baco (que é Iacchos
— Iaho — e Tsabaôth) com Hércules, sua recepção com tochas acesas,
emblemas da nova vida e da RESSURREIÇÃO das trevas, da morte para a luz,
a VIDA eterna; nada do que se encontra no Evangelho de Nicodemo está
ausente deste poema:
“Desperta acendendo as tochas (...) pois tu chegas
Brandindo-as em tuas mãos, ó Iaccho,
Estrela fosfórica do rito noturno!” [164]

Mas os cristãos aceitaram literalmente essas aventuras post-mortem de seu


deus, sem perceber o amálgama dessa crença com o mito pagão ridicularizado
por Aristófanes quatro séculos antes de nossa era! Os absurdos de Nicodemo
foram lidos nas igrejas, bem como os do Pastor de Hermas. Ireneu cita este
último como Escritura, “revelação” inspirada divinamente; Jerônimo e Eusébio
insistem em que sejam lidos nas igrejas; e Atanásio observa que os Padres
“recomendam sua leitura para confirmação da fé e da piedade”. [165] Mas então
surge o reverso dessa medalha brilhante para mostrar uma vez mais quão
estáveis e dignas de crédito eram as opiniões das colunas mais fortes de uma
Igreja infalível. Jerônimo, que aplaude o livro em seu catálogo de escritores
eclesiásticos, denomina-o “apócrifo e insensato” em seus últimos comentários!
Tertuliano, que se desfez em elogios ao Pastor de Hermas quando era católico,
“voltou-se contra ele ao abraçar o montanismo”. [166]
O capítulo XII começa com a narrativa feita pelos dois espíritos ressuscitados de
Carino e Lêncio, filhos daquele Simão que, no Evangelho segundo São Lucas
(II, 28-32), toma o menino Jesus em seus braços e louva a Deus, dizendo:
“Senhor, tu podes despedir ao teu servo em paz (...) porque já os meus olhos
viram tua salvação”. [167] Esses dois espíritos se levantaram de suas tumbas
frias para declarar “os mistérios” que haviam visto no inferno após a morte. Eles
ressuscitaram graças à prece inoportuna de Anás e Caifás, Nicodemo (o autor),
José (de Arimatéia) e Gamaliel, desejosos de conhecer os grandes segredos.
Anás e Caifás, todavia, que trazem os espíritos à sinagoga de Jerusalém,
tomaram o cuidado de fazer os dois homens ressuscitados, que estiveram
mortos e queimados por muitos anos, jurar sobre o Livro da Lei “pelo deus
Adonai e pelo Deus de Israel” dizer apenas a verdade. Em seguida, após fazer
o sinal da cruz em suas línguas, [168] pediram papel para escrever as confissões
(Evangelho de Nicodemo, XII, 21-5). Segundo eles, quando estavam “nas
profundezas do inferno, na escuridão das trevas”, viram de repente “uma luz
intensa e purpúrea iluminando o lugar”. Adão, com os patriarcas e os profetas,
entrou em regozijo e Isaías imediatamente se orgulhou de ter predito tudo aquilo.
Enquanto isto se passava, Simão, seu pai, chegou, declarando que “o menino
que tivera nos braços no templo estava chegando para libertá-los”.
Depois de Simão ter transmitido sua mensagem à distinta companhia no inferno,
“chegou alguém que parecia um pequeno eremita”, que declarou ser João
Baptista. A idéia é sugestiva e mostra que o “Precursor” e “o profeta do Altíssimo”
não se isentou de passar uma temporada no inferno para se reduzir às suas
proporções mínimas, tanto físicas, quanto morais. Esquecendo-se (Mateus, XI)
de que manifestara as dúvidas mais evidentes em relação à Messianidade de
Jesus, o Baptista também reclamou o direito de ser reconhecido como profeta.
“E eu, João”, diz ele, “quando vi Jesus vindo a mim, movido pelo Espírito Santo,
disse: ‘Eis aqui o Cordeiro de Deus, (...) que tira os pecados do mundo’. E eu o
batizei (...) e vi o Espírito Santo descendo sobre ele (...) dizendo ‘Este é o meu
amado Filho’, etc.” [XIII, 12-3] E pensar que seus descendentes e seguidores,
como os mandeanos de Basra, rejeitam completamente essas palavras!
Então Adão, receando não ser acreditado pelas cortes infernais, chama seu filho
Seth e quer que ele repita aos seus filhos, patriarcas e profetas, o que o arcanjo
Miguel lhe dissera na porta do Paraíso quando ele, Adão, enviara Seth com a
ordem de “suplicar a Deus que ungisse” a sua cabeça quando estava enfermo
(XIV, 2). E Seth diz-lhes que, quando estava pedindo às portas do Paraíso,
Miguel o aconselhou a não pedir a Deus “o óleo da árvore da misericórdia para
ungir seu pai Adão por causa da sua dor de cabeça; porque não seria possível
recebê-lo até o FINAL dos tempos, isto é, passados 5.500 anos”, [XIV, 4].
Esse pequeno trecho de uma conversa particular entre Miguel e Seth foi
evidentemente introduzido para coonestar a cronologia patrística e com a
intenção de conectar ainda mais a Messianidade de Jesus, com base na
autoridade de um Evangelho reconhecido e inspirado divinamente. Os padres
dos primeiros séculos cometeram um erro inexplicável, ao destruir imagens
frágeis e pagãos mortais, em vez de demolir os monumentos da antiguidade
egípcia. Estes últimos se tornaram preciosíssimos para a arqueologia e para a
ciência moderna, dado que provam que o rei Menes e seus arquitetos
floresceram entre quatro e cinco mil anos antes que o “Pai Adão” e o universo,
segundo a cronologia bíblica, fossem criados “do nada”. [169]
“Enquanto todos os santos se regozijavam, Satã, o príncipe e o paladino da
morte”, diz ao Príncipe do Inferno: “Prepara-te para receber o próprio Jesus de
Nazaré, que se vangloriou de ser o Filho de Deus e era um homem temeroso de
sua morte, pois disse: ‘Triste está minha alma até a morte’.” (XV, I, 2.)
Há uma tradição entre os escritores eclesiásticos gregos de que os “hereges”
(talvez Celso) haviam repreendido severamente os cristãos em relação a esse
ponto delicado. Eles afirmam que, se Jesus não fosse um simples mortal, que
foi frequentemente abandonado pelo Espírito de Christos, ele não se teria
lamentado com as expressões que lhe são atribuídas, e nem teria exclamado em
tom lamuriante: “Meu deus, meu deus! por que me abandonaste?” Esta objeção
está respondida muito claramente no Evangelho de Nicodemo e é o “Príncipe do
Inferno” quem resolve a questão.
Ele começa argumentando com Satã como um verdadeiro metafísico. “Como
pode um príncipe tão poderoso”, pergunta desdenhosamente, “temer tanto a
morte? (...) Asseguro-te que (...) quando ele disse que temia a morte, ele quis
enganar-te e desgraçado serás por toda a eternidade!” [XV, 4-7.]
É bastante reanimador ver quão estreitamente o autor desse Evangelho se aferra
ao texto do Novo Testamento, e especialmente ao quarto evangelista. Quão
habilmente ele prepara para questões e respostas aparentemente “inocentes”,
corroborando as passagens mais dúbias dos quatro evangelhos, as passagens
mais questionadas e examinadas detidamente naquela época de sofisticaria sutil
dos gnósticos eruditos, do que agora; uma razão que explica por que os padres
estavam ansiosos mais por queimar os documentos dos seus antagonistas do
que por destruir a sua heresia. O que segue é um bom exemplo. O diálogo ainda
ocorre entre Satã e o Príncipe metafísico semiconverso do submundo.
“Quem, então, é esse Jesus de Nazaré?”, pergunta ingenuamente o príncipe,
“que sem rogar a Deus só com sua palavra me arrebatou os mortos” (XV, 13).
“Talvez”, replica Satã, com a inocência de um jesuíta, “seja o mesmo que me
tirou LÁZARO depois de estar morto por quatro dias, quando já fedia e se
descompunha? (...) É a mesma pessoa, Jesus de Nazaré. (...) Eu te conjuro,
pelos poderes que pertencem a ti e a mim, que não o tragas a mim!” — exclama
o príncipe. “Pois, quando ouvi sobre o poder de sua palavra, tremi de medo e
toda a minha corte impiedosa também se perturbou. E não fomos capazes de
deter Lázaro, pois ele se sacudiu e, com todos os sinais de malícia, fugiu
imediatamente de nós; e a terra mesma em que repousava o corpo de Lázaro
restituiu-o vivo.” “Sim”, acrescenta pensativamente o Príncipe do Inferno, “sei
agora que ele é o Deus Todo-poderoso (...) que é onipotente em seus domínios
e onipotente em sua natureza humana, pois é o Salvador da Humanidade. Não
o tragas aqui, porque ele libertará todos aqueles que prendi por incredulidade e
(...) os conduzirá à vida eterna” (XV, 14-20).
Aqui termina a evidência post-mortem dos dois espíritos. Carino (espírito nº 1)
entrega o que escreveu a Anás, Caifás e Gamaliel, Lêncio (espírito nº 2) faz sua
entrega a José e a Nicodemo. Após isso, ambos se transformaram em “formas
excessivamente brancas e nunca mais foram vistos”.
Para demonstrar que os “espíritos” estiveram durante todo o tempo sob as
“condições de teste” mais convincentes, como diriam os espiritistas modernos, o
autor do Evangelho acrescenta: “E o que eles escreveram coincidia tão
perfeitamente, que não havia em um relato, nem mais, nem menos letras do que
no outro”.
Essas novas espalharam-se por todas as sinagogas, diz o Evangelho; Pilatos,
aconselhado por Nicodemo, foi ao templo e reuniu os judeus em assembléia.
Nesse encontro histórico, Caifás e Anás declaram que suas Escrituras testificam
“que Ele [Jesus] é o Filho de Deus e o Senhor e Rei de Israel” (!) e encerram a
confissão com as seguintes palavras memoráveis:
“E assim parece que Jesus, a quem crucificamos, é Jesus Cristo, o Filho de Deus
e o verdadeiro Deus Todo-poderoso. Amém! (!) [XXII, 14, 20.]
Mas, não obstante essa confissão, e o reconhecimento de que Jesus era o
próprio Deus Todo-poderoso, o “Senhor Deus de Israel”, nem o sumo sacerdote,
nem seu sogro, nem nenhum dos anciães, nem Pilatos, que escreveram aqueles
relatos, nem nenhum dos judeus de Jerusalém, cidadãos de respeito, se
converteram ao cristianismo.
Não é preciso fazer comentário algum. Esse Evangelho termina com seguintes
palavras: “Em nome da Santíssima Trindade [sobre a qual Nicodemo não podia
saber uma palavra sequer], assim terminam os Atos de Nosso Salvador Jesus
Cristo que o imperador Teodósio o Grande encontrou em Jerusalém, no palácio
do Pôncio Pilatos, entre os documentos público”; “os fatos narrados”, escritos,
segundo a história, em hebraico por Nicodemo, “ocorreram no décimo nono ano
do governo de Tibério César, e no décimo-sétimo ano do governo de Herodes,
o filho de Herodes, rei da Galiléia, no oitavo dia das calendas de abril, etc., etc.”
Esta é a impostura mas atrevida de quantas foram perpetradas depois da era
das falsificações piedosas aberta com o primeiro Bispo de Roma, seja lá ele
quem for. O desajeitado falsificador parece não ter sabido, nem ouvido, que o
dogma da Trindade só foi promulgado 325 anos depois da data pretendida. O
Velho Testamento e nem o Novo contêm a palavra Trindade, nem há neles a
menor alusão a essa doutrina (ver Cap. IV, vol. II, tomo I, “A descida de Cristo
ao Inferno”). Não há explicação alguma que justifique a publicação desse
evangelho espúrio como uma revelação divina, pois sabia-se desde o começo
que ele era uma impostura premeditada. Não obstante, se o próprio evangelho
fora declarado apócrifo, cada um dos dogmas nele contidos foi e ainda é imposto
ao mundo cristão. E nem tem mérito algum o fato de ele agora ter sido repudiado,
pois a Igreja se envergonhou e se viu forçada a renegá-lo.
De maneira que estaremos perfeitamente afiançados se repetirmos o Credo
emendado de Robert Taylor, que é substancialmente o dos cristãos:
Creio em Zeus, Pai Todo-poderoso,
E em seu filho, Iasios Cristo nosso Senhor,
Que foi concebido pelo Espírito Santo,
Nasceu da Virgem Electra,
Atingido por um raio,
Morreu e foi sepultado,
Desceu aos Infernos,
Subiu novamente para os céus,
E voltará para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Nous Santo,
No Santo círculo dos Grandes Deuses,
Na Comunhão das Divindades,
Na expiação dos pecados,
Na imortalidade da Alma
E na Vida Eterna. [170]

Já se provou que os israelitas adoravam Baal, o Baco sírio, ofereciam incenso à


serpente sabaziana ou esculápia e realizavam os mistérios dionisíacos. Mas,
como poderia ser de outra maneira, se Typhon era chamado Typhon Set, [171] e
Seth, o filho de Adão, é idêntico a Satã ou Sat-an, e se Seth era adorado pelos
hititas? Menos de dois séculos a. C., os judeus reverenciavam ou simplesmente
adoravam a “cabeça dourada de um asno” em seu templo; de acordo com Apion,
Antíoco Epifanes levou-o consigo. E Zacarias ficou mudo quando da aparição da
divindade sob a forma de um asno no templo! [172]
Pleyte declara que El, o Deus-Sol dos sírios, dos egípcios e dos semitas, não é
outro senão Set ou Seth, e que EI é o Saturno primordial — Israel. [173] Siva é
um Deus etiópio, da mesma forma que o Baal caldaico — Bel; portanto, ele
também é Saturno. Saturno, El, Seth e Khîyûn, ou o Chiun bíblico de Amos, são
uma única e mesma divindade e podem ser vistos no seu aspecto pior como
Typhon, o Destruidor. Quando o panteão religioso assumiu uma expressão mais
definida, Typhon foi separado do seu andrógino — a divindade boa — e caiu em
degradação como um poder intelectual brutal.
Essas reações nos sentimentos religiosos de uma nação eram frequentes. Os
judeus adoraram Baal ou Moloch, o Deus-Sol Hércules, [174] nos seus tempos
primitivos — se é que tiveram tempos mais primitivos do que os persas e os
macabeus — e então fizeram os seus profetas denunciá-los. Por outro lado, as
características do Jeová mosaico exibem mais da disposição moral de Siva, do
que um Deus benevolente e “que sofreu muito”. Além disso, ser identificado a
Siva não é pequena cortesia, pois ele é o Deus da sabedoria. Wilkinson
descreve-o como o mais intelectual dos deuses hindus. Ele tem três olhos e,
como Jeová, é terrível em sua vingança e sua cólera, às quais não se pode
resistir. E, embora seja o Destruidor, é o “recriador de todas as coisas com
perfeita sabedoria”. [175] É o tipo do Deus de Santo Agostinho que “prepara o
inferno para os que espreitam os seus mistérios” e põe à prova a razão humana
forçando-a a considerar, na mesma medida, suas boas e más ações.
Apesar das provas numerosas de que os israelitas adoravam uma variedade de
deuses e ofereciam sacrifícios humanos até um período posterior aos sacrifícios
realizados pelos seus vizinhos pagãos, eles conseguiram esconder tais
verdades à Humanidade. Sacrificaram vidas humanas até 169 a.C., [176] e a
Bíblia registra um grande número dessas ocorrências. Numa época em que os
pagãos haviam abandonado essa prática abominável e haviam substituído o
homem sacrifical por um animal, [177] surge Jefté sacrificando sua própria filha
em holocausto ao “Senhor”. [178]
As denúncias dos seus próprios profetas são as melhores provas contra eles.
Sua adoração em lugares elevados é a mesma dos “idólatras”. Suas profetisas
são contrapartidas das pitonisas e das bacantes. Pausânias fala de colégios de
mulheres que superintendiam a adoração de Baco e aludem às dezesseis
matronas de Elis. [179] A Bíblia diz que “Débora, uma profetisa (...) julgava Israel
naquela época”; [180] e fala de Holda, outra profetisa, que “morava em
Jerusalém, no colégio”. [181] e 2 Samuel menciona muitas vezes “mulheres
sábias”, [182] apesar da injunção de Moisés no sentido de não se utilizar a
adivinhação ou o augúrio. Quando à identificação final e conclusiva do “Senhor
Deus” de Israel com Moloch, encontramos uma prova muito suspeita no caso do
último capítulo do Levítico, relativo às coisas que não podem ser remidas. “Tudo
o que é consagrado ao Senhor, ou seja homem, ou animal, não se venderá, nem
se poderá remir. (...) Tudo o que foi oferecido por algum homem, e consagrado
ao Senhor, não se remirá, mas será necessário que morra. (...) é mais sagrado
diante do Senhor”. [183]
A dualidade, se não a pluralidade dos deuses de Israel, está manifesta nessas
mesmas denúncias. Seus profetas nunca aprovaram a adoração sacrifical.
Samuel negou que o Senhor se agradasse com holocaustos e vítimas (1 Samuel,
XV, 22). Jeremias afirmou, inequivocamente, que o Senhor, Yava Tsabaôth
Elohe Israel, nunca exigiu nada desse tipo, mas exatamente o contrário (VII,
21-4).
Mas esses profetas que se opuseram aos sacrifícios humanos eram todos eles
nazar e iniciados. Esses profetas comandavam uma oposição nacional aos
sacerdotes, como mais tarde os gnósticos combateram os padres cristãos. É por
essa razão que, quando a monarquia foi dividida, encontramos os sacerdotes
em Jerusalém e os profetas no país de Israel. Até mesmo Acab e seus filhos,
que introduziram a adoração tíria de Baal-Hércules e das deusas sírias em Israel,
foram auxiliados e encorajados por Elias e Eliseu. Poucos profetas apareceram
na Judéia antes de Isaías, depois de derrubada a monarquia setentrional. Eliseu
ungiu Jeú, com o propósito de que ele exterminasse as famílias reais de ambos
os países e, assim, unisse os povos sob uma única coroa. Quanto ao Templo de
Salomão, desconsagrado pelos sacerdotes, nenhum profeta ou iniciado hebraico
moveu uma palha sequer. Elias nunca foi lá, nem Eliseu, Jonas, Naum, Amos ou
qualquer outro israelita. Enquanto os iniciados aderiam à “doutrina secreta” de
Moisés, o povo, levado pelos seus sacerdotes, embebia-se de idolatria,
exatamente como os pagãos. Foram as opiniões e interpretações populares de
Jeová que os cristãos adotaram.
Pois bem, pode-se perguntar então: “Considerando-se as muitas evidências de
que a teologia cristã é apenas uma miscelânea de mitologias pagãs, como
relacioná-la à religião de Moisés?” Os cristãos primitivos, Paulo e seus
discípulos, os gnósticos e geralmente os seus sucessores, distinguiram
essencialmente Cristianismo e Judaísmo. Este último, na sua opinião, era um
sistema antagonístico, e de origem mais baixa. “Vós recebestes a lei”, diz
Estevão, “por ministério dos anjos”, [184] ou aeôns, e não do Altíssimo. Os
gnósticos, como vimos, ensinaram que Jeová, a Divindade dos judeus, era
Ialdabaôth, o filho do antigo Bohu, ou Caos, o adversário da Sabedoria Divina.
A pergunta pode ser respondida muito facilmente. A lei de Moisés, e o dito
monoteísmo dos judeus, dificilmente poderá ser colocada para além de dois ou
três séculos antes do advento do Cristianismo. O próprio Pentateuco, podemos
demonstrar, foi escrito e revisto depois dessa “nova partida”, num período
posterior à colonização da Judéia sob a autoridade dos reis da Pérsia. Os padres
cristãos, em sua ânsia de harmonizar seu novo sistema com o Judaísmo e assim
esvaziar o Paganismo, fugiram inconscientemente de Scylla e foram apanhados
pelo remoinho de Charybdis. Sob o estuco monoteísta do Judaísmo descobriu-
se a mesma mitologia familiar do paganismo. Mas não devemos ver os israelitas
com mais desaprovação por terem tido um Moloch ou por serem como os
nativos. Nem devemos obrigar os judeus a fazer penitência por causa de seus
pais. Eles tiveram seus profetas e suas leis e estavam satisfeitos com ambos. O
presente testemunha um povo antes glorioso que leal e que nobremente se
manteve unido graças à sua fé ancestral por ocasião das perseguições mais
diabólicas. O mundo cristão tem estado num estado de convulsão desde o
primeiro século até o atual; dividiu-se numa infinidade de seitas; mas os judeus
continuam substancialmente unidos. Mesmo as divergências de opinião não
destroem sua unidade.
As virtudes cristãs inculcadas por Jesus, no Sermão da Montanha, não são
exemplificadas como deveriam ser no mundo cristão. Os ascetas budistas e os
faquires indianos parecem ser os únicos que as inculcam e as praticam. Ao
passo que os vícios achacados, por caluniadores viperinos, ao paganismo são
correntes entre os padres cristãos e as Igrejas cristãs.
O grande abismo entre o Cristianismo e o Judaísmo, apoiado na autoridade de
Paulo, existe apenas na imaginação do devoto. Somos nada mais, nada menos,
do que os herdeiros dos israelitas intolerantes dos tempos antigos; não dos
hebreus da época de Herodes e do domínio romano, que, com todas as suas
falhas, se mantinham estritamente ortodoxos e monoteístas, mas dos judeus
que, sob o nome de Jeová-Nissi, adoravam Baco-Osíris, Dio-Nyssos, o
multiforme Jove de Nysa, o Sinai de Moisés. Os demônios cabalísticos —
alegorias do significado mais profundo — foram adotados como entidades
objetivas e constituíram uma hierarquia satânica cuidadosamente elaborada
pelos demonólogos ortodoxos.
O mote rosicruciano Igne natura renovatur integra [INRI], que os alquimistas
interpretam como natureza renovada pelo fogo, ou matéria pelo espírito, tem sido
imposto até hoje como Iesus Nazarenus rex Iudeorum. A sátira sarcástica de
Pilatos é aceita literalmente e os judeus a tomaram inadvertidamente como
reconhecimento da realeza de Cristo; no entanto, se essa inscrição não for uma
falsificação feita no período constantiniano, ela será uma ação dirigida a Pilatos,
contra quem os judeus foram os primeiros a protestar violentamente. Interpreta-
se I. H. S. como Iesus Hominum Salvator e In hoc signo, ao passo que IΗΣ é um
dos nomes mais antigos de Baco. E mais do que nunca começamos a descobrir,
à luz brilhante da Teologia comparada, que o grande propósito de Jesus, o
iniciado do santuário interior, era abrir os olhos da multidão fanática para a
diferença entre a Divindade suprema — o misterioso e nunca pronunciado IAÔ
dos iniciados caldaicos antigos e dos neoplatônicos posteriores — e o Yahuh
hebraico, ou Yaho (Jeová). Os rosa-cruzes modernos, tão violentamente
censurados pelos católicos, agora têm atirado contra eles, como a maior das
suas responsabilidades, o fato de acusarem Cristo de ter destruído a adoração
de Jeová. Melhor fora se ele o tivesse feito, pois o mundo não estaria tão
irremediavelmente confuso após dezenove séculos de massacres mútuos, com
trezentas seitas brigando entre si e com um Diabo pessoal reinando sobre uma
cristandade aterrorizada!
Apoiado na exclamação de Davi, parafraseada na Versão do Rei James como
“todos os deuses das nações são Ídolos”, [185] isto é, diabos, Baco ou o
“primogênito” da teogonia órfica — o Monogenes, ou o “unigênito” do Pai Zeus e
Korê — foi transformado, com o restante dos mitos antigos, num diabo. Por meio
dessa degradação, os padres, cujo zelo piedoso só poderia ser ultrapassado por
suas ignorâncias, forneceram inadvertidamente as provas contra si mesmos.
Prepararam, com suas próprias mãos, o caminho para a solução futura e
auxiliaram em grande medida os estudiosos modernos da ciência da religião.
É o mito de Baco que manteve escondida durante longos e tenebrosos séculos
a vindicação futura dos vilipendiados “deuses das nações” e a última chave do
enigma de Jeová. A estranha dualidade de características divinas e mortais, tão
conspícua na Divindade Sinaítica, começa a entregar seu mistério diante da
pesquisa incansável de nossa época. Uma das contribuições mais recentes pode
ser encontrada num artigo pequeno, mas altamente importante, publicado em
The Evolution, um periódico de Nova York, cujo parágrafo final lança um raio de
luz sobre Baco, o Jove de Nysa, que foi adorado pelos israelitas como Jeová do
Sinai.
“Assim era o Jove de Nysa para os seus adoradores”, conclui o autor.
“Representava para eles o mundo da natureza e o mundo do pensamento. Era
o ‘Sol da retidão, que trazia a saúde em suas asas’, e não trazia apenas a alegria
para os mortais, mas descortinava para eles a esperança que está além da
mortalidade da vida imortal. Nascido de uma mãe humana, elevou-a do mundo
da morte para o ar superno, para que fosse reverenciada e adorada. Sendo o
senhor de todos os mundos, era em todos eles o Salvador.
“Assim era Baco, o Deus-Profeta. Uma mudança de culto, decretada pelo
Assassino Imperial, o Imperador Teodósio, por ordem do Padre Espectral
Ambrósio de Milão, modificou seu título para Padre das Mentiras. Sua adoração,
antes universal, foi denominada pagã ou local, e seus ritos foram estigmatizados
como feitiçaria. Suas orgias receberam o nome de Sabbath das Bruxas e sua
forma simbólica favorita, o pé bovino, tornou-se a forma representativa moderna
do Diabo, com o casco rachado. O pai da família, que antes fora chamado de
Beel-zebub, passou a ser acusado de manter relações com os poderes das
trevas. Levantaram-se cruzadas, povos inteiros foram massacrados. A sabedoria
e a erudição foram condenados como magia e feitiçaria. A ignorância tornou-se
a mãe da devoção hipócrita. Galileu penou durante longuíssimos anos na prisão
por ensinar que o Sol era o centro do universo solar. Bruno foi queimado vivo em
Roma em 1600 por restaurar a filosofia antiga; mas, apesar de tudo, a Liberalia
converteu-se em festa da Igreja. [186] Baco é um santo do calendário repetido
quatro vezes e representado em muitos santuários nos braços de sua mãe
deificada. Os nomes mudaram, mas as idéias perduraram”. [187]
E agora que mostramos que devemos “dar um adeus eterno a todos os anjos
rebeldes”, passamos naturalmente a um exame do Deus Jesus, que foi
manufaturado a partir do homem Jesus para nos redimir desses muitos diabos
míticos, como o Padre Ventura nos afirma. Esse trabalho necessitará uma
pesquisa comparada da história de Gautama Buddha, suas doutrinas e seus
“milagres”, com as de Jesus e do predecessor de ambos — Krishna.
Notas
[1] Tão firmemente estabelecida parece ter sido a reputação dos brâmanes e dos budistas em
termos da mais alta moralidade, e isso desde um tempo imemoriável, que o Cel. Henry Yule, em
sua admirável edição de Marco Polo, dá o seguinte testemunho: “As excelsas virtudes atribuídas
aos brâmanes e aos mercadores hindus foram em parte encomiadas pela tradição (...) mas o
elogio é tão constante entre os viajantes medievais, que ele deve ter tido um fundamento sólido.
Com efeito, não seria difícil traçar um encadeamento de testemunhos similares desde os tempos
antigos até os nossos dias. Arrião diz que nenhum indiano jamais foi acusado de falsidade. Hiuen
Tsang reconhece a retidão, a honestidade e o desinteresse do povo indiano. O Frei Jordano (ca.
1330) diz que o povo da Pequena Índia (Sind e Índia Ocidental) era verídico na fala e eminente
na justiça; e também podemos fazer referência ao elevado caráter atribuído aos hindus por Abul
Fazl. Mas depois de 150 anos de comércio europeu encontramos urna triste deterioração. (...) E
Pallas, no último século, noticiando a colônia Banya, e Astrakhan, diz que seus membros eram
notáveis por um proceder correto preferível ao dos armênios. E o sábio e admirável funcionário
público, Sir William Sleeman, em nossa época, disse que não conhecia nenhuma classe de
homens mais honrosa do que as classes mercantis da Índia”. [Cel. H. Yule, The Book of Ser
Marco Polo, vol, II, p. 354; 2a ed., 1875.]

São conhecidos nos nossos dias os exemplos péssimos da rápida desmoralização dos índios
americanos selvagem, por causa da sua convivência com os oficiais e missionários cristãos.

[2] No momento presente, o Sr. O’Grady é o editor de The American Builder, de Nova York, e é
bastante conhecido pelas cartas interessantíssimas — “Indian Sketches, or Rules of a Rolling
Stone”, com que contribuiu, sob o pseudônimo Hadji Nicka Bauker Khan, para o Commercial
Bulletin de Boston.

[3] Eclesiástico, XII, 13; ver Lange, Commentary on the Old Testament, ed. por Tayler Lewis,
Edimburgo, 1870, p. 199:

“A grande conclusão ouvi: Temei a Deus


E Seus mandamentos guardai,
Pois tudo isto é do homem.”

[4] Ver Miquéias, VI, 6-8, tradução de Noyes.

[5] Mateus, XXII, 37-40.

[6] Les hauts phénomènes de la magie, prefácio, p. xii.

[7] An History of Magic, Witchcraft, and Animal Magnetism, 1851, vol. I, cap. III, p. 21.

[8] [La magie au XIXe siècle, p. 99.]

[9] [Divine Inst., III, xxiv.]

[10] Ver History of the Conflict between Religion and Science, de Draper, p. 65.

[11] Marcos, III, 29: “Aquele que blasfemar contra o Espírito Santo nunca jamais terá perdão,
mas estará em perigo de condenação eterna” (αμαρτήματος erro).
[12] Mateus, v, 44.

[13] Des Mousseaux, op. cit., p. x.

[14] “Comparative Mythology”, em Chips, etc., vol. II, p. 76.

[15] 1 João, III, 8.

[16] [Apocalipse, XII, 7-9.]

[17] 2 Reis, XVIII, 4. É provável que as serpentes ferozes ou Seraphim mencionadas no vigésimo
quinto capítulo do livro dos Números eram as mesmas dos levitas, ou tribo ofita. Comparar o
Êxodo XXXII, 26-29 com Números XXI, 5-9. Os nomes ‫חוח‬, Hevah; ‫חוי‬, Hivi ou Hivita; e ‫לוי‬, Levi,
todos eles significam serpente; e é curioso o fato de que os hivitas, ou a tribo-serpente da
Palestina, como os levitas ou ofitas de Israel, eram ministros dos templos. Os gibeonitas, que
Josué encaminhou ao serviço do santuário, eram hivitas.

[18] 1 Crônicas, XXI, 1: “E Satã se levantou contra Israel e incitou Davi a numerar Israel”. 2
Samuel, XXIV, 1: “E novamente se acendeu o furor do Senhor contra Israel e ele moveu Davi
contra eles e disse: ‘Vai, numera Israel e Judá”.

[19] Zacarias, III, 1, 2. Convém observar que nesta passagem há um trocadilho ou jogo de
palavras; “adversário” aplica-se a “Satã” e deriva de ‫[ שטן‬shatan], opor-se.

[20] Judas, 9.

[21] Nos Tabletes Assírios, a Palestina é chamada “terra dos hititas”; e os papiros egípcios,
declarando a mesma coisa, também fazem de Seth, o “deus-pitar”, sua divindade tutelar.
[Bunsen, Egypt’s Place, etc., vol. III, p. 180, 212; vol. IV, p. 208.]

[22] Seth, Suteh, ou Sat-an era o deus das nações aborígines da Síria. Plutarco [Sobre Ísis, etc.,
§49] o identifica com Typhon. Donde ser o deus de Goshen e da Palestina, países ocupados
pelos israelitas.

[23] Vendîdâd, X, 23: “Combato o daêva Aêshma, o próprio mal”. O Yasna, X, 18 fala
similarmente do Aêshma-daêva: “Pois todas as ciências dependem de Aêshma, o astuto”.
“Aniquilemos o malvado Anra-mainyus [Ahriman, o poder do mal], aniquilemos Aêshma com as
armas terríveis, aniquilemos os daêvas mazanianos, aniquilemos todos os daêvas.” (Yasna, LVI,
12. 5.)

No mesmo fargard [X, 16] do Vendîdâd, as divindades bramânicas estão envolvidas na mesma
denúncia: “Combato Indra, combato Sauru, combato o daêva Nâunghithya”. O comentador
explica que as divindades referidas são os deuses védicos Indra, Saurva, ou Siva, e os dois
Aswins. Deve haver um erro, todavia, pois Siva, na época em que os Vedas foram completados,
era um Deus aborígene ou etíope, o Bala ou Bel da Ásia Ocidental. Não era uma divindade ariana
ou védica. Talvez Sûrya fosse a divindade em questão.

[24] Jacob Bryant, New System, or, an Analysis of Ancient Mythology, III, p. 334; 3a ed.

[25] Plutarco, Sobre Ísis e Osíris, § §49, 50, 64.

[26] Ibid., § §30, 50.

[27] [Sobre Ísis, etc., §31.]

[28] Wilkinson, Manners and Customs of the Ancient Egyptians, 2a série, 1841, vol. I, p. 434.

[29] Adv. Haer., livro III, tomo II, § XII.

[30] God in History, Londres, 1868, vol. I, p. 234.


[31] Ver Vendîdâd, fargard x.

[32] Salverte, The Philosophy of Magic, vol. II, p. 315.

[33] O termo α πειρασμός significa prova, ou provação.

[34] Plínio, Nat., Hist., V, xvi.

[35] Ver 1 Coríntios, V, 5, 2; 2 Coríntios, XI, 14; 1 Timóteo, I, 20.

[36] 2 Coríntios, XII, 7. Em Números, XXII, 22, o anjo do Senhor é descrito como desempenhando
o papel de um Satã a Balaam.

[37] 1 Reis, XXII, 19-23.

[38] [Jó, XIII, 4-7.]

[39] [Jó, XIX, 25, 26.]

[40] Haug, Essays on the Sacred Languages, Writings and Religion of the Parsees, 2a ed., p. 4.

[41] [Vendîdâd, fargard I, 18; Yasna ix, 8 e s.]

[42] [Vendîdâd, I, 66; ver também a Introdução de Darmesteter, p. LXIII.] Segundo o Avesta, a
serpente Dahâka pertencia à região de Bauri, ou Babilônia. Na história da Média há dois reis de
nome Deiokes ou Dahâka e Astyages ou Az-dahâka. Havia filhos de Zohâk sentados em vários
tronos orientais, após Ferîdûn. Parece, entretanto, que Zohâk significava uma dinastia assíria,
cujo símbolo era o purpureum signum draconis — o signo purpúreo do Dragão. Desde uma
antiguidade muito remota (Gênese XIV), essa dinastia reinou sobre a Ásia, a Armênia, a Síria, a
Arábia, a Babilônia, a Média, a Pérsia, a Báctria e o Afeganistão. Foi finalmente destronada por
Ciro e Dario Hystaspes, após “mil anos” de poder. Yima e Thraêtaona ou Jemshid e Ferîdûn são
sem dúvida personificações. Zohâk provavelmente tenha imposto a adoração assíria ou mágica
do fogo aos persas. Dario era o vice-rei de Ahura-Mazda.

[43] [Hone, Gospel of Nicodemus, xviii.]

[44] O nome, nos Evangelhos, é βεελζεβούλ, ou Baal da Moradia. É quase certo que Apolo, o
Deus délfico, não era originalmente helênico, mas fenício. Ele era o Paian ou médico, bem como
o deus dos oráculos. Não é preciso muita imaginação para identificá-lo com Baal-zebul, o deus
de Ekron, ou Acheron, sem dúvida modificado para Zebub, ou moscas, pelos judeus, por
escárnio.

[45] Contra Apionem, I, §25: “Os egípcios tiveram muitas ocasiões para nos odiar e nos invejar:
em primeiro lugar porque nossos ancestrais [os hicsos, ou pastores] dominaram seu país e,
quando foram deles libertados, viveram em prosperidade”.

[46] Bunsen, God in History; I, p. 233. O nome Seth, com a sílaba an do caldaico ana ou Céu,
faz o termo Satan. Os trocadilhistas agora parecem-se arremeter contra ele, como era seu
costume, e afazer derivar do verbo ‫[ שטן‬shatan], opôr-se.

[47] Vendîdâd, fargard X. O nome Vendîdâd é uma contração de Vîdaêvo-dâtem, leis contra os
Daêvas.

[48] Bundahish [cod. havn. fol. 90. Recto 6, pen.]. “Ahriman, do material das trevas, criou Akuman
e Ander, depois Sauru e Nakait”.

[49] [Spiegel, Zend-Avesta, III, Intr., p. 1.]

[50] Ver A. Lenoir, “Du Dragon de Metz”, em Mémoires de l’Académie Celtique, tomo II, p. 11,
12.
[51] Plutarco, Sobre Ísis e Osíris, §30; Diodoro Sículo, Bibl. hist., I, 88.

[52] [Eusébio, Praep. evang., livro I, cap. X (40).]

[53] Serpent-Worship, etc., cap. III; Nova York, J. W. Bouton, 1877.

[54] Tree and Serpent Worship, etc., Londres, 1873.

[55] [Eusébio, Praep. evang., livro I, cap. X (41).]

[56] Higgins, Anacalypsis, I, p. 170; Dupuis, Origine de tous les cultes, vol. III, p. 49 es.

[57] Martianus Capella, “Hymn to the Sun”, De nuptiis philol., etc., II, 54; Movers, Die Phönizier,
vol. I, p. 266.

[58] Plutarco, Sobre Ísis e Osíris, XIX.

[59] Ovídio, Fasti, II, 461.

[60] Virgílio, Éclogas IV.

[61] [G. Higgins, Anacalypsis, vol. I, p. 314.]

[62] Anna é uma designação oriental do caldaico ana, ou céu, donde Anaitis e Anaitres. Durgâ,
a consorte de Siva, também é chamada Annapûrna e sem dúvida foi o original de Sant’Ana. A
mãe do profeta Samuel chamava-se Ana; o pai de sua contrapartida, Sansão, era Manu.

[63] As virgens dos tempos antigos, como veremos, não eram donzelas, mas apenas almehs,
ou mulheres núbeis.

[64] Kircher, Oedipus Aegyptiacus, vol. II (1653), parte II, p. 203.

[65] De θεραπεύω, servir, adorar, curar.

[66] E. Pococke [India in Greece, p. 364] deriva o nome Pythagoras de Buddha e guru, um mestre
espiritual. Higgins acha que o nome é celta e diz que significa observador das estrelas. Ver Celtic
Druids, p. 125-26. Se, todavia, derivarmos a palavra Pytho de ‫פהה‬, patah, o nome significaria
explicador de oráculos, enquanto Buddha-guru seria um instrutor das doutrinas de Buddha.

[67] [The Works of Sir William Jones, 1799, vol. VI, p. 444-45.]

[68] [Jó, I, 6.] No Museu Secreto de Nápoles, há um baixo-relevo em mármore que representa a
Queda do Homem, em que Deus o Pai representa o papel da Serpente Enganadora.

[69] Primeira Epístola aos Coríntios, X, 11: “Todas estas coisas, porém, lhes aconteciam a eles
em figuras”.

[70] Epístola aos Gálatas, IV, 22, 24: “Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um de
mulher escrava, e outro de mulher livre (...) as quais coisas foram ditas por alegoria”.

[71] [Mateus, XIII, 11-2.]

[72] [Jó II, 9, 11.]

[73] [Ibid., XIX, 4-6, 22-9.]

[74] [Ibid., XIX, 25-7. Traduzido dos Septuaginta.]

[75] Ver Jó em várias traduções e comparar os textos diferentes.

[76] Ver Sir R. K. Porter, Travels in Georgia, Persia, etc., vol. I, lâminas 17, 41.

[77] [Jó, XIX, 25-7; trad. de Douay.]


[78] [Jó XIII, 14.]

[79] [Ibid., XXIX, 4.]

[80] [Jó, XXIX, 25; XXX, 8; XXXI.]

[81] A expressão “da família de Ram” denota que ele era um aramaico ou sírio da Mesopotâmia.
Buz era um filho de Nahor. “Elihu filho de Baraquel” é suscetível de duas traduções. Eli-hu é, ou
Hva [ele] é Deus; e Barach-Al — o adorador de Deus, ou Bar-Rachel, o filho de Raquel, ou filho
da ovelha.

[82] [Jó, XXXII, 2, 6, 9, 18; XXXIII, 14-6, 33.]

[83] [Ibid., XII, 2; XVI, 2; XIII, 3, 4.]

[84] [Ibid., XIII, 2; XIV, 2, 10, 14; XVI, 21-2.]

[85] [Jó, XXXVII, 23.]

[86] [Ibid., XXXV, 13; XXXVII, 24.]

[87] Ibid., XXXVIII, 1; XXXVII, 14; XXXVI, 26-7.

[88] Ibid., IX, 5-11.

[89] Jó, XXXVIII, 1 e s.

[90] Ibid., XLI, 2, 8.

[91] Ibid., XLI, 13-5, 18, 32, 34.

[92] [Ibid., XLII, 2-6.]

[93] [Ibid., XLII, 7, 10.]

[94] Atum, ou At-mu (Âtman), é o Deus Escondido, ao mesmo tempo Phtah e Amen, Pai e filho,
Criador e coisa criada, Pensamento e Aparência, Pai e Mãe.

[95] Cf. F. J. Molitor, Philosophie der Geschichte, Parte III; Ennemoser, History of Magic, II;
Hemmann, Mediz.-Chir. Aufsätze (Berlim, 1778); J. W. A. Pfaff, Astrologie, 1816.

[96] Schopheim, Traditions, p. 32.

[97] [Annals, V, XIII, 3.]

[98] [Vidas dos Césares, “Vespasiano”, §4.]

[99] Dunlap, Vestiges of the Spirit-History of Man, p. 256, citando W. Williams, Prim. Hist., livro I,
p. 70.

[100] Plutarco, Sobre Ísis e Osíris, §§ 16, 17.

[101] [W. Williams, op. cit., p. 70.]

[102] Sibyllina Oracula, 760-88. Amsterdã, 1689.

[103] Eurípedes, Bacchae, versos 1-4.

[104] Duvidamos da propriedade de se traduzir κόρη, por virgem. Demeer e Perséfone eram
substancialmente a mesma divindade, como Apolo e Esculápio. A cena dessa aventura ocorre
em Krêtê ou Kourêtis, onde Zeus era o deus principal. É Ceres ou Demeter que se deve entender,
sem dúvida alguma. Ela também era chamada κούρη, o mesmo que κώρα. Sendo deusa dos
Mistérios, estava mas talhada para o lugar como consorte do Deus-Serpente e mãe de Zagreus.
[105] Pococke considera Zeus um grande lama, ou chefe jaina, e Korê-Perséfone como Kuru-
Parasu-pâni. Zagreus é Chakra, a roda, o círculo, a terra, o governante do mundo. Foi morto
pelos Titãs, ou Teith-ans (Daityas). Os Chifres ou o crescente eram um distintivo da soberania
lamaica. [Ver India in Greece, p. 257-265.]

[106] Nonnus, Dyonisiacs, VI, 155 e s.

[107] Ver Deane, Worship of the Serpent, etc., Londres, 1830, p. 89-90.

[108] F. Creuzer, Symbolik und Mythologie, 1837, vol. I, p. 341. [Cf. Orígenes, Comm. in Evang.
Joannis, tomo II, p. 64.]

[109] O Dragão é o Sol, o princípio gerador — Júpiter-Zeus; e Júpiter é chamado de “Espírito


Santo” pelos gregos, diz Plutarco, Sobre Ísis, XXXVI.

[110] Hebreus I, 1-2. No original está Aeôns (emanações). Na tradução está mundos. Não se
deve esperar que, depois de anatematizar a doutrina das emanações, a Igreja se abstivesse de
apagar a palavra original, que se opunha diametralmente ao seu dogma da Trindade.

[111] Ver Dean, op. cit., p. 145.

[112] Eclesiastes XXIV, 3.

[113] Champollion-Figeac, Égypte ancienne, p. 141.

[114] Quaest. et sol. in Gen., II, 62; De conf. ling., §33 e ss. Cf. Dunlap, Vestiges, etc., p. 233.

[115] [Movers, Die Phönizier, vol. I, p. 268.]

[116] Hino XXXI, a Helios.

[117] De abstinentia, II, §5.

[118] Isaías, XXX, 33; Josué, XV, 8.

[119] [Do hebraico Ge Hinnom.]

[120] Typhon é chamado por Plutarco e por Sanchoniathon de “Typhon, o de pele vermelha”.
Plutarco, Sobre Ísis e Osíris, §30-1.

[121] Conflict between Religion and Science, p. 269.

[122] Râhu e Ketu são duas estrelas fixas que formam a cabeça e a cauda da constelação do
Dragão.

[123] E. Upham, The Mahâvansi, etc., p. 54, para a resposta dada pelo sumo-sacerdote de
Mulgirri-Galle Vihâra, chamado Sue Bandare Metankere Samenêre Samewahanse, a um
governador holandês, em 1766.

[124] Deixamos aos arqueólogos e aos filólogos a tarefa de decidir como a adoração de Nâga
ou da Serpente pôde viajar da Cachemira para o México e se transformar na adoração do Nagual,
que é também uma adoração da Serpente, e numa doutrina de licantropia.

[125] Miguel, o chefe dos Aeôns, também é “Gabriel, o mensageiro da Vida” dos nazarenos e o
Indra hindu, o chefe dos Espíritos do bem, que venceram Vâsuki, o Demônio que se revoltou
contra Brahmâ.

[126] Ver o amuleto gnóstico chamado “Serpente Chnuphis”, no ato de erguer sua cabeça
coroada com as sete vogais, que são o símbolo cabalístico que significa “dom da fala para o
homem”, ou Logos.
[127] Jacoliot, La Bible dans l’Inde, p. 368.

[128] [Salmos, XCVI. 5.]

[129] Tomás de Aquino, Summa theologiae, iia, iiae, quaest. 94, art. 4. [Cf. Porfírio, De
abstinentia, II, 41, 42.]

[130] [Chips, etc., vol. I, p. 155.]

[131] [Lucas, X, 18.]

[132] Ver des Mousseaux; ver vários outros demonógrafos; as diferentes “Provas das
Feiticeiras”, as declarações das bruxas no torneio da tortura, etc. Em nossa humilde opinião, o
Diabo deve ter contraído esse odor desagradável e seus hábitos de sujeira na sua convivência
com os monges medievais. Muitos desses santos se orgulhavam de nunca se terem lavado!
“Desnudar-se por vã limpeza é pecado aos olhos de Deus”, diz Sprenger, em The Witches’
Hammer. Os eremitas e os monges “repugnavam o asseio corporal. Não se banhavam por
milhares de anos!” exclama Michelet em La sorcière. Por que esses vitupérios contra os faquires
hindus? Estes últimos banham-se pelo menos uma vez por dia, e às vezes mais de uma vez,
embora por suas práticas se sujem logo depois de banhados.

[133] Lermontoff, o grande poeta russo, autor de The Demon.

[134] Les hauts phénomènes de la magie, p. 373.

[135] Movers, Die Phönizier, I, p. 109.

[136] Hércules é de origem hindu.

[137] Idêntico ao Kneph egípcio e ao Ophis gnóstico.

[138] Worship of the Serpent, p. 145.

[139] Movers, op. cit., p. 367, 397. Azâzêl e Samael são idênticos.

[140] Levítico, XVI, 8.

[141] Saturno é Bel-Moloch e também Hércules e Siva. Estes últimos são Hâras, ou deuses da
guerra, da batalha, ou “Senhores dos Exércitos”. Jeová é chamado “homem da guerra”, no Êxodo
XV, 3. “O Senhor dos Exércitos é seu nome” (Isaías, LI, 15), e Davi o abençoa por ensinar “suas
mãos a guerrear e seus dedos a lutar” (Salmos, CXLIV, 1). Saturno é também o Sol, e Movers
diz que “Kronos Saturno era chamado de Israel pelos fenícios (Die Phönizier, I, p. 130). Fílon diz
a mesma coisa (citado em Eusébio, Praep. evang., livro I, cap. X, 40).

[142] “Abençoado seja Jehovah Elohim Elohei lsrael” (Salmos, LXXII, 18).

[143] Hardy, A Manual of Buddhism, p. 159-60.

[144] Dunlap, Vestiges, etc., p. 217.

[145] Movers, Duncker, Higgins e outros.

[146] Epifânio, Panarion, livro I, tomo III, Haer. XXXIV, I; cf. King, The Gnostics, etc., p. 53-54 [p.
126 na 2a ed.]. O vinho foi considerado sagrado pela primeira vez nos mistérios de Baco. R.
Payne Knight [Symb. Lang., p. 50] acredita — erroneamente, pensamos nós — que o vinho era
ingerido com o propósito de se produzir um falso êxtase por meio da intoxicação. Ele era
considerado sagrado, todavia, e a Eucaristia Cristã é certamente uma imitação do rito pagão. Se
o Sr. Knight está certo ou errado, lamentamos dizer que um clérigo protestante, o Rev. Joseph
Blanchard, de Nova York, foi encontrado bêbado em uma esquina na noite de um domingo, 5 de
agosto de 1877, e levado à prisão. O relato publicado diz: “O prisioneiro afirmou que fora à igreja
e tomara um pouco demais do vinho da comunhão!”

[147] O rito iniciatório representava uma descida ao submundo. Baco, Herakles, Orfeu e Asclépio
desceram todos ao inferno e daí subiram no terceiro dia.

[148] Lord King, Hist. Apost. Creed, Basiléia, 1750, p. 26.

[149] Justice Bailey, Common Prayer Book, 1813, p. 9.

[150] Ibid

[151] An Exposition of the Creed, p. 225; 6a ed. rev.

[152] Cf. Irineu, Adv. Haer., I, X; Orígenes, De princ., proêmio; Tertuliano, Adv. Praxean, II; De
praescr. haer., XIII.

[153] [Theodoret, Eccl. Hist., I, XI; Socrates Scholasticus, Eccl. Hist., I, XXVI; Epifânio, Panarion,
Livro III, tomo I, Haer, LXXII, II e s.; Agostinho, De fide et symbole.]

[154] Exposit. in symbol. apost., 10; ed. 1682.

[155] Ésquilo, Prometeu acorrentado, 1026-1029.

[156] [C. C. Bart, Die Kabiren in Teutschland, 1832, p. 177-78.]

[157] L. Preller, Grieschische Mythologie, vol. II, p. 154.

[158] Apocryphal Gospel of Nicodemus, XVIII-XIX; trad. por Hone, de Grynaeus, Monumenta S.
Patrum Orthodoxographa, Basiléia, 1569, vol. II, p. 656.

[159] [Norberg, Codex Nazaraeus, III, p. 267.]

[160] Eusébio, Demonstr. evang., V, XXIX.

[161] Eurípedes, The Madness of Herakles, 806-08.

[162] Virgílio, Eneida, VIII, 296 e s.

[163] Aristófanes, Ranae (As rãs).

[164] Op. cit., versos 340-43.

[165] [Ep. Fest., 39, vol. I, parte II, p. 963. Cf. Smith e Wace, Dict. of Christ. Biogr., s. v. “Shepherd
of Hermas”.]

[166] Hone, The Apocryphal New Testament, pref. a Hermas, Londres, 1820.

[167] Na “Vida de Buddha”, do Kanjur (bKah-hgyur, texto tibetano), encontramos o original do


episódio fornecido no Evangelho segundo São Lucas. Um asceta velho e santo, Rishi Asita, vem
de muito longe para ver Buddha, instruído que fora do seu nascimento e da sua missão por
visões sobrenaturais. Tendo adorado o pequeno Buddha, o velho santo desfaz-se em lágrimas
e, questionado sobre a causa da sua dor, responde: “Quando este menino for Buddha, ajudará
centenas de milhares de pessoas a passar para o outro oceano da vida e as conduzirá à
eternidade. E eu — eu não poderei contemplar esta pérola dos Buddhas! Curado de minha
enfermidade, não serei libertado por ele da minha paixão humana! Grande Rei! Estou muito velho
— eis por que choro e porque, em minha tristeza, suspiro longamente!”

Todavia, isso não impediu o homem santo de fazer profecias sobre o jovem Buddha, as quais,
com uma diferença muito pequena, são as mesmas de Simão sobre Jesus. Ao passo que este
último chama o jovem Jesus de “uma luz para a revelação dos gentios e para a glória do povo
de Israel”, o profeta budista promete que o jovem príncipe adquirirá a vestimenta perfeita e
completa ou “luz” do Buddha e rodeará a roda da lei como ninguém fez antes dele. Rgya tch’er
rol pa, traduzido do texto tibetano do Kanjur e revisto pelo original sânscrito Lalitavistara por P.
É. Foucaux, 1847-1848, vol, II, p. 106-07.

[168] O sinal da cruz — apenas alguns dias depois da ressurreição e antes que a cruz fosse
imaginada como um símbolo!

[169] R. Payne Knight demonstra que “desde a época do primeiro rei, Menes, em cujo reinado
era pantanoso o país situado mais abaixo do Lago Meris (Heródoto, II, 41), até a invasão persa,
quando era o vergel do mundo” — entre 11.000 e 12.000 anos devem ter transcorrido. (Ver
Symbolic Language of Ancient Art and Mythology, §151. Ed. por A. Wilder.)

[170] [The Diegesis, p. 9-10.]

[171] Seth ou Sutech, History of Herodotus, livro II, 144, de Rawlinson.

[172] O fato é admitido por Epifânio. Ver Hone, Apocryphal New Testament, pref. a The Gospel
of the Birth of Mary.

Em seu notável artigo intitulado “Bacchus the Prophet-God”, o Prof. A. Wilder observa que “Tácito
se equivocou ao dizer que os judeus adoravam um asno, o símbolo de Typhon ou Seth, o Deus
dos hicsos. O nome egípcio do asno era eo, o símbolo fonético de Iaô, donde talvez”, acrescenta,
“um símbolo daquela circunstância”. Dificilmente podemos concordar com esse grande
arqueólogo, pois a idéia de que os judeus reverenciavam, por alguma razão misteriosa, Typhon
sob sua representação simbólica está comprovada por mais de uma instância. Encontramos uma
passagem no Gospel of the Birth of Mary, citada por Epifânio, que corrobora esse fato. Ela está
relacionada à morte de “Zacarias, o pai de João Baptista, morto por Herodes”, diz o
Protevangelium [cap. XVI.]. Epifânio escreve que a causa da morte de Zacarias foi que, após ter
tido uma visão no templo, “ele, surpreso, quis decifrá-la e sua boca se fechou. O que ele viu no
momento de oferecer incenso foi um homem NA FORMA DE UM ASNO. Quando dali saiu e se
dispunha a falar ao povo — “Desgraça para vós! A quem adorais?” — aquele que lhe apareceu
no templo cortou sua palavra. Depois de tê-la recobrado, e capaz de falar, contou o fato aos
judeus e estes o mataram. Eles acrescentam (os gnósticos nesse livro) que por esta razão seu
legislador [Moisés] ordenou que o sumo-sacerdote carregasse campainhas, de maneira que,
quando chegasse ao templo para o sacrifício, aquele a quem adoravam, ouvindo o ruído dos
sinos, tivesse tempo de se esconder e de não ser pego de surpresa naquela forma e naquela
figura horríveis”. (Atribuído a Epifânio em Hone, The Apocryphal New Testament, 1820, p. 17.)

[173] Westropp e Wake, Ancient Symbol Worship, 22a ed., 1875, p. 62; Pleyte, La religion des
pré-israélites, p. 89 et passim.

[174] Hércules é também um deus de combate, como Jacó-lsrael.

[175] Westropp e Wake, op. cit., p. 74.

[176] Antíoco Epifanes encontrou, em 169 a.C. no templo judaico, um homem preparado para
ser sacrificado. Josefo, Contra Apionem, II, §8.

[177] O touro de Dionisio era sacrificado nos mistérios báquicos. Ver Wm. Smith, Dict. of Greek
and Roman Antiquities, 1848, p. 410, s.v. DIIPOLEIA.

[178] [Juízes, XI, 39.]

[179] Pausânias, Itinerário, “Elis”, l, XVI.

[180] Juízes, IV, 4.

[181] 2 Reis, XXII, 14.


[182] §XIV, 2; XX, 16, 17.

[183] XXVII, 28, 29.

[184] [Atos, VII, 53.]

[185] [Salmos, XCVI, 5: dii gentium daemonia.]

[186] O festival denominado Liberalia ocorria no décimo sétimo dia de março, hoje dia de São
Patrício. Assim, Baco era também o padroeiro dos irlandeses.

[187] Prof. A. Wilder. “Bacchus the Prophet-God”, no número de junho (1877) de The Evolution,
a Review of Politics, Religion, Science, Literature and Art.
11
Resultados comparados do Budismo
e do Cristianismo
“Não pecar, fazer o bem e purificar a mente. Tal é o ensinamento de quem
despertou (...)
“Mais valioso do que a soberania da Terra, do que a glória do céu, que o
domínio dos mundos é o prêmio de quem dá o primeiro passo na senda
da santidade.”
Dhammapada, versos 178 e 183.

“Criador! Onde estão os tribunais, onde julgam as audiências, onde se


reúnem os jurados a quem o mortal tem de dar conta de sua alma?”
Vendîdâd persa, XIX, 89.

“Salve ó humano! que da região do transitório te elevaste à do


imperecível!”
Vendîdâd, frag., VII, 136.

“O verdadeiro crente, acolhe a verdade onde quer que a encontre, e


nenhuma doutrina lhe parece menos aceitável nem menos verdadeira
porque a tenham exposto Moisés ou Cristo, Buddha ou Lao-tsé.”
MAX MÜLLER.

Infelizmente para aqueles que de bom grado renderiam justiça às filosofias


religiosas antigas e modernas do Oriente, pouquíssimas oportunidades lhes têm
sido dadas. Tem havido, recentemente, um tocante acordo entre os filólogos que
mantém altos postos oficiais e os missionários de terras pagãs. Prudência diante
da verdade, quando esta ameaça as nossas sinecuras! Ademais, quão fácil é
fazer concessões à consciência. Uma religião do Estado é um arrimo do governo;
todas as religiões do Estado são “farsas desacreditadas”; por conseguinte, visto
que uma é tão boa, ou antes tão má, quanto outra, a religião do Estado pode ser
muito bem suportada. Tal é a diplomacia da ciência oficial.
Grote, em sua History of Greece, [1] compara os pitagóricos aos jesuítas, e vê
em sua Irmandade apenas um estratagema habilmente disfarçado para adquirir
poder político. Com base no impreciso testemunho de Heráclito [2] e alguns
outros escritores, que acusaram Pitágoras de astúcia, e o descreveram como um
homem “de vasta erudição (...) mas hábil para o mal e destituído de bom senso”,
alguns biógrafos se apressaram em apresentá-lo à posteridade sob esse caráter.

A idade da filosofia não produziu ateus


Como então podem eles, se aceitam o Pitágoras pintado pelo satírico Timon —
“um trapaceiro de palavras solenes empenhado em fisgar os homens”, [3]
—, evitar de julgar a Jesus de acordo com o esboço que Celso conservou em
sua sátira? A imparcialidade histórica nada tem a ver com os credos e as crenças
pessoais, e exige tanto da posteridade para uma quanto para a outra. A vida e
os feitos de Jesus são muito menos atestados do que os de Pitágoras, se é que
podemos dizer de fato que exista qualquer prova histórica que os corrobore. Pois
ninguém com certeza negará que como personagem real, Celso tem a primazia
no que respeita à credibilidade de seu testemunho sobre Mateus, ou Marcos, ou
Lucas, ou João, que nunca escreveram uma linha sequer dos Evangelhos que
lhes são atribuídos. Ademais, Celso é uma testemunha tão boa quanto Heráclito.
Ele era conhecido como um erudito e um neoplatônico por alguns padres, ao
passo que a própria existência dos quatro apóstolos deve ser objeto de fé cega.
Se Timon considerava o sublime sâmio como um “trapaceiro”, em tal conta tinha
Celso a Jesus, ou antes àqueles que se escondiam sob esse nome. Em sua
famosa obra, dirigindo-se ao nazareno, diz ele: “Mesmo concedendo que
realizastes as maravilhas que contam de ti (...) não fizeram o mesmo os
trampolineiros egípcios que em praça pública pediam o óbolo das gentes?” [4] E
sabemos, com base na autoridade do Evangelho segundo São Mateus, que o
profeta galileu era também um homem de palavras solenes, e que chamava a si
mesmo e aos seus discípulos de “pescadores de homens”.
Não se pense que fazemos essa censura a quem quer que reverencie a Jesus
como Deus. Qualquer que seja a fé, sendo o crente sincero, merece ela todo o
respeito. Se não aceitamos Jesus como Deus, reverenciemo-lo como homem.
Tal sentimento o honra mais do que se lhe atribuíssemos os poderes e a
personalidade do Supremo, e lhe creditássemos o mérito de ter encenado uma
comédia inútil com a Humanidade, visto que, depois de tudo, a sua missão se
revelou um completo fracasso; 2.000 anos se passaram, e os cristãos não
contam com uma quinta parte da população do globo, nem parece que venham
a conseguir melhor sucesso no futuro. Não, desejamos apenas justiça, deixando
todas as veleidades pessoais de lado. Questionamos aqueles que, não adorando
a Jesus ou a Pitágoras, nem a Apolônio, não obstante recitam a tola tagarelice
de seus contemporâneos; aqueles que em seus livros mantêm um prudente
silêncio, ou falam de “nosso Salvador” e “nosso Senhor”, como se tivessem tanta
fé no fictício Cristo teológico quanto no fabuloso Fo da China.
Não havia ateus na Antiguidade, nem descrentes ou materialistas, no moderno
sentido da palavra, e tampouco detratores fanáticos. Aquele que julga as
filosofias antigas por sua fraseologia externa, e cita sentenças aparentemente
ateístas dos escritos antigos, não merece o crédito como crítico, pois é incapaz
de penetrar o sentido interno de sua metafísica. As concepções de Pirro, cujo
racionalismo se tornou proverbial, só podem ser interpretadas à luz da mais
antiga filosofia hindu. Desde Manu até o último Svâbhâvika, a sua característica
metafísica principal sempre consistiu em proclamar a realidade e a supremacia
do espírito, com uma veemência proporcional à negação da existência objetiva
de nosso mundo material — fantasma passageiro de formas e seres temporários.
As numerosas escolas fundadas por Kapila refletem sua filosofia de modo tão
claro quanto as doutrinas deixadas, como um legado aos pensadores, por Timon,
o “Profeta” de Pirro, como o chama Sexto Empírico. Suas concepções sobre o
repouso divino da alma, sua orgulhosa indiferença pela opinião de seus colegas,
sua recusa à sofisticaria, refletem em igual grau os raios perdidos da
autocontemplação dos ginosofistas e dos Vaibhâshikas budistas. Não obstante
a pecha de “céticos” que se atribui tanto a ele como a seus seguidores, por causa
de seu estado de constante dúvida e apenas porque levaram seus julgamentos
finais a dilemas, com os quais os nossos modernos filósofos preferem tratar,
como Alexandre, cortando o nó górdio, declarando o dilema uma superstição,
homens como Pirro não podem ser chamados de ateus. Não mais do que Kapila,
ou Giordano Bruno, ou ainda Spinoza, que também foram considerados ateus,
ou então o grande poeta, filósofo e dialético hindu Veda- Vyâsa, o princípio de
que tudo é uma ilusão — exceto o Grande Desconhecido e a Sua essência
direta— foi adotado plenamente por Pirro.
Essas crenças filosóficas se estendiam como uma rede sobre todo o mundo pré-
cristão; e a perseguição e as falsificações supervenientes formam a pedra
angular de toda religião atualmente existente além do Cristianismo.
A teologia comparada é uma faca de dois gumes, e assim se tem revelado. Mas
os advogados cristãos, inabaláveis diante das provas, forçam a comparação do
modo mais sereno; as lendas e os dogmas cristãos, dizem eles, assemelham-se
um tanto aos pagãos, é verdade; mas vede, ao passo que um credo nos ensina
a existência de um Pai-Deus todo-poderoso, dotado de plena sabedoria, o
Bramanismo nos dá uma multidão de deuses menores, e o Budismo, nenhum;
um é fetichismo e politeísmo, o outro pobre ateísmo. Jeová é o único Deus
verdadeiro, e o Papa e Martinho Lutero são Seus profetas! Este é um dos gumes
da faca, e este é o outro: a despeito das missões, a despeito dos exércitos, a
despeito dos impingidos intercâmbios comerciais, os “pagãos” nada descobrem
nos ensinamentos de Jesus — por mais sublimes que sejam — que Krishna e
Gautama não tenham ensinado antes. E assim, para conquistar novos
convertidos, e manter os poucos já vencidos por séculos de velhacaria, os
cristãos tacham os dogmas “pagãos” de mais absurdos do que os nossos, e os
castigam adotando o hábito de seus sacerdotes nativos e praticando a “idolatria
e o fetichismo” que eles tanto menosprezam nos “pagãos”. A teologia comparada
atua em ambos os caminhos.
No Sião e em Burma, os missionários católicos se tornaram perfeitos talapoins,
em toda a aparência externa, i. e., menos nas suas virtudes; e por toda a Índia,
especialmente no sul, eles foram denunciados pelo seu próprio colega, o Abade
Dubois. [5] Isso foi posteriormente negado com veemência. Mas temos agora
testemunhas vivas da exatidão da acusação. Entre outros, o Capitão O’Grady,
já citado, um nativo de Madras, escreve o seguinte sobre esse método
sistemático de trapaça: “Os mendigos hipócritas professam uma total abstinência
e horror da carne para amealhar convertidos do Hinduísmo (...) Eu convidei um
padre, ou antes, ele próprio gloriosamente se convidou para comer em minha
casa repetidas vezes, e não se fez de rogado em aceitar boas fatias de carne
assada”. [6] Ademais, o autor tem boas histórias para contar sobre os “Cristos
de face negra”, as “Virgens com rodas”, e sobre as procissões católicas em geral.
Já presenciamos tais solenes cerimônias acompanhadas pela mais infernal
cacofonia de uma orquestra cingalesa, tam-tam e gongos inclusos, seguida por
uma procissão bramânica, que, por seu pitoresco colorido e sua mise-en scène,
parecia muito mais solene e grandiosa do que a Saturnália cristã. Falando de
uma dessas, assinala o mesmo autor: “Era mais demoníaca do que religiosa. (...)
Os bispos caminhavam para fora de Roma, [7] com uma enorme pilha de
esmolas de São Pedro reunidas em pequenas somas, ornamentos de ouro,
anéis de nariz, tornozeleiras, braceletes, etc., etc., em profusão,
imprudentemente lançadas em pilhas aos pés da grotesca imagem cor de cobre
do Salvador, com sua auréola de metal holandês e uma faixa
espalhafatosamente amarrada e — ó manes de Rafael — um turbante azul”. [8]
Como todos podem ver, tais voluntárias contribuições visam arremedar os
brâmanes e bonzos nativos. Entre os adoradores de Krishna e Cristo, ou Avany
e a Virgem Maria, há uma diferença menos substancial, de fato, do que entre
duas seitas nativas, os Vaishnavas e os Sivaitas. Para os hindus convertidos,
Cristo é um Krishna pouco modificado, isso é tudo. Os missionários obtêm ricas
doações, e Roma fica satisfeita. Vem então um ano de fome; mas os anéis de
nariz e os braceletes de ouro se foram, e o povo morre de fome aos milhares.
Qual o sentido disso? Eles morrem em Cristo, e Roma esparge suas bênçãos
sobre os cadáveres, dos quais milhares flutuam anualmente dos rios sagrados
para o oceano. [9] Tão servis são os católicos em sua imitação, e tão cuidadosos
em não ofender aos seus paroquianos, que se acontecer de alguns poucos
convertidos de uma alta casta estarem numa Igreja, nenhum pária ou qualquer
membro das castas inferiores, por mais bom cristão que seja, será admitido na
mesma Igreja com eles. No entanto, eles ousam chamar-se de servos daquEle
que buscava de preferência a companhia dos publicanos e dos pecadores; e
cujo apelo — “Vinde a mim todos os que estão cansados sob o peso de vosso
fardo e eu vos darei descanso” [10] — abriu para ele os corações de milhões de
sofredores e oprimidos!
Poucos autores são tão corajosos e sinceros quanto o falecido Dr. Thomas
Inman, de Liverpool, Inglaterra. Mas, embora em pequeno número, todos esses
concordam unanimemente em que a filosofia do Budismo e do Bramanismo é
superior à Teologia cristã, e não ensinam, nem o ateísmo, nem o fetichismo. “A
meu ver”, diz Inman, “a afirmação de que Sâkya não acreditava em Deus é
totalmente falsa. Ao contrário, todo o seu sistema se baseia na crença de que há
poderes superiores capazes de punir a Humanidade por seus pecados. É
verdade que esses deuses não se chamavam Elohim, ou Jâh, ou Jeová, ou Javé,
nem Adonai, Ehieh, ou Baalim ou Ashtoreth — no entanto, para o filho de
Suddhodana, havia um Ser Supremo.” [11]
Há quatro escolas de Teologia budista. No Ceilão, no Tibete, e na Índia. Uma é
mais panteísta do que ateísta, mas as três outras são puramente teístas.
As especulações de nossos filólogos baseiam-se na primeira. Quanto à
segunda, à terceira e à quarta, seus ensinamentos variam apenas no modo
externo de expressão. Já explicamos alhures o espírito de todas elas.
Quanto às concepções práticas, e não teóricas, sobre o Nirvâna, eis o que diz
um cético racionalista: “Interroguei várias centenas de budistas nas próprias
portas de seus templos, e não encontrei um só que não se esforçasse, jejuasse
e se entregasse a toda sorte de austeridade para se aperfeiçoar e adquirir
imortalidade, não para atingir a aniquilação final.
“Há mais de 300.000.000 de budistas que jejuam, rezam e trabalham. (...) Por
que tachar esses 300.000.000 de homens de idiotas e tolos, por macerarem seus
corpos e se imporem as mais terríveis privações de toda natureza, a fim de atingir
a aniquilação fatal que os deve levar para parte alguma?” [12]
Assim como esse autor, também nós interrogamos budistas e bramanistas, e
lhes estudamos a filosofia. Apavarga significa algo muito diferente da
aniquilação. Trata-se apenas de procurar tornar-se mais e mais semelhante a
Ele, de quem o devoto é apenas uma das refulgentes centelhas, tal é a aspiração
de todo filósofo hindu, e a esperança do mais ignorante nunca consiste em
perder a sua individualidade. “De outro modo”, como outrora observou um
estimado correspondente da autora, “a existência mundana e individual se
assemelharia à comédia de Deus e à nossa tragédia; aprazaria a Ele que
trabalhássemos e sofrêssemos, e morte para nós por sofrê-lo”.
Ocorre o mesmo com a doutrina da metempsicose, tão distorcida pelos eruditos
europeus. Mas quando o trabalho de tradução e análise fizer maiores
progressos, belezas religiosas serão descobertas nas antigas fés.
O Prof. Whitney sublinhou em sua tradução dos Vedas a grande importância que
essa obra concede aos cadáveres de seus fiéis, segundo se pode ler nas
seguintes passagens, citadas da obra do Sr. Whitney, a propósito dos ritos
funerários:
“Levanta-te e anda! Reúne todos os membros de teu corpo,
e não os deixes em abandono; teu espírito partiu, segue-o agora;
onde quer que ele te agrade, vai para lá”. (...)

“Reúne teus membros, e com ajuda dos ritos eu os modelarei para ti. (...)

“Se Agni esqueceu algum membro ao enviar-te para o mundo


de teus pais, eu to darei de novo, para que com todos os teus
membros te regozijes no céu entre teus pais”. [13]

O “corpo” aqui referido não é o físico, mas o astral — o que é uma grande
distinção, como se pode ver.
Além disso, a crença na existência individual do espírito imortal do homem figura
nos seguintes versos do cerimonial hindu de cremação e enterro.
“Aqueles que na esfera da terra permanecem estacionados;
os que moram nos reinos da felicidade;
os pais que por mansão têm a terra, a atmosfera e os céus.
Ante-céu se chama o terceiro céu
onde está o sólio de teus pais”. — (Rig-Veda, X, 14.) [14]

Visto o alto conceito que esses povos têm de Deus e da imortalidade do espírito
do homem, não é de surpreender que uma comparação entre os hinos védicos
e os estreitos e nada espirituais livros mosaicos resulte em vantagem para os
primeiros na mente de todo erudito sem preconceitos. Mesmo o código ético de
Manu é incomparavelmente superior ao do Pentateuco de Moisés, no sentido
literal do qual todos os eruditos não iniciados dos dois mundos não conseguem
encontrar uma única prova de que os antigos judeus acreditavam numa vida
futura ou num espírito imortal no homem, ou de que o próprio Moisés ensinava
tal coisa. No entanto, alguns eminentes orientalistas têm começado a suspeitar
que a “letra morta” oculta algo não aparente à primeira vista. Assim, conta-nos o
Prof. Whitney que “quando observamos mais profundamente as formas do
moderno cerimonial hindu não descobrimos a mesma discordância entre credo
e preceito; um não é explicado pelo outro”, diz esse grande erudito americano.
E acrescenta: “Somos forçados a concluir, ou que a Índia derivou seu sistema
de ritos de alguma fonte estrangeira, e os praticou cegamente, sem cuidar de
sua verdadeira importância, ou que esses ritos são o produto de outra doutrina
de data mais antiga, tendo sido mantidos no uso popular depois da decadência
do credo de que eles eram a expressão original”. [15]
Esse credo não decaiu, e sua filosofia oculta, tal como a entendem agora os
hindus iniciados, é exatamente a mesma de há 10.000 anos. Mas podem nossos
eruditos esperar seriamente que aqueles a revelem ao primeiro pedido; ou
esperam ainda eles penetrar os mistérios da Religião Universal por seus ritos
populares exotéricos?
Nenhum brâmane ou budista ortodoxo negaria o mistério da encarnação cristã;
mas eles a compreendem à sua própria maneira, e como poderiam negá-lo? A
pedra fundamental de seu sistema religioso são as encanações periódicas da
Divindade. Sempre que a Humanidade está prestes a cair no materialismo e na
degradação moral, um Espírito Supremo se encarna na criatura selecionada
para o propósito. O “Mensageiro do Superior” liga-se à dualidade da matéria e
da alma, e, completando-se assim a Tríada por meio da união de sua Coroa,
nasce um Salvador, que ajuda a Humanidade a retornar ao caminho da verdade
e da virtude. A Igreja cristã primitiva, imbuída de filosofia asiática, partilhava
evidentemente da mesma crença — do contrário, jamais teria erigido em artigo
de fé o segundo advento, nem inventado a fábula do Anti-Cristo como uma
precaução contra as possíveis encarnações futuras. Nem teria imaginado que
Melquisedeque foi um avatâra de Cristo. Eles só precisariam folhear a
Bhagavad-Gitâ para descobrir Krishna ou Bhagavat dizendo a Arjuna: “Aquele
que me segue está salvo pela sabedoria e também pelas obras. (...) Assim que
a virtude declina no mundo, eu me torno manifesto para salvá-lo”. [16]
Na verdade, é muito difícil não partilhar essa doutrina das encarnações
periódicas. Não tem o mundo testemunhado, em raros intervalos, o advento de
personagens tão grandiosos como Krishna, Sakyamuni e Jesus? Como estes
dois últimos caracteres, Krishna parece ter sido um ser real, deificado por sua
escola em algum tempo no alvorecer da história, e inserido no quadro do
venerando programa religioso. Comparai os dois Redentores, o hindu e o cristão,
separados no tempo por um espaço de alguns milhares de anos; colocai entre
eles Siddhârta Buddha, que reflete Krishna e projeta na noite do futuro a sua
própria sombra luminosa, com cujos raios foram esboçadas as linhas gerais do
mítico Jesus, e de cujos ensinamentos derivaram os do Christos histórico, e
descobrireis que sob uma mesma capa idêntica de lenda poética viveram e
respiraram figuras humanas reais. O mérito individual de cada uma delas
ressalta do mesmo colorido mítico, pois nenhum caráter indigno poderia ter sido
selecionado para a deificação pelo instinto popular, tão infalível e justo quando
desimpedido. O brocardo Vox populi, vox Dei foi outrora verdadeiro, embora falso
quando aplicado à atual massa dominada pelo clero.
Kapila, Orfeu, Pitágoras, Platão, Basilides, Marcion, Amônio e Plotino fundaram
escolas e semearam os germes de muitos e nobres pensamentos, e, ao
desaparecerem, deixaram atrás de si o brilho de semideuses. Mas as três
personalidades de Krishna, Gautama e Jesus surgiram como deuses
verdadeiros, cada qual em sua época, e legaram à Humanidade três religiões
edificadas na imperecível rocha dos séculos. O fato de que as três,
especialmente a fé cristã, tenham sido adulteradas com o tempo, e de que a
última seja quase irreconhecível, não se deve a nenhuma falha dos nobres
reformadores. São os clérigos que se intitulam de cultivadores da “vinha do
Senhor” que devem prestar contas à posteridade. Purificai os três sistemas da
escória dos dogmas humanos, e a pura essência permanecerá a mesma. Mesmo
Paulo, o grande, o honesto apóstolo, no ardor de seu entusiasmo, perverteu
involuntariamente as doutrinas de Jesus, ou então seus escritos foram
desfigurados depois de reconhecidos. O Talmude, o registro de um povo que,
não obstante a sua apostasia do Judaísmo, sentiu-se compelido a reconhecer a
grandeza de Paulo como filósofo e teólogo, diz a propósito de Aher (Paulo), [17]
no Yerushalmi, que “ele corrompeu a obra daquele homem” — ou seja,
Jesus. [18]

As lendas dos três Salvadores


Entretanto, antes que essa fusão seja realizada pela ciência honesta e pelas
gerações futuras, lancemos uma vista d’olhos ao quadro atual das três
legendárias religiões.

AS LENDAS DOS TRÊS SALVADORES

KRISHNA GAUTAMA BUDDHA JESUS DE NAZARÉ


Época: Incerta. A ciência européia Época: Supõe-se que tenha sido há
Época: Segundo a ciência européia e
teme comprometer-se. Mas os 1877 anos. Seu nascimento e sua
os cálculos cingaleses, há 2.540
cálculos bramânicos a fixam por volta ascendência real foram ocultados de
anos.
de há 5.000 anos. Herodes, o tirano.
Krishna descende de uma família Descende da família real de Davi. É
real, mas é educado por pastores; é Gautama é o filho de um rei. Seus adorado por pastores em seu
chamado de Deus Pastor. Seu primeiros discípulos são pastores e nascimento, e é chamado de “Bom
nascimento e sua ascendência divina mendigos. Pastor”. (Ver Evangelho segundo São
são mantidos em segredo de Kansa. João.)
Encarnação de Vishnu, a segunda Segundo alguns, uma encarnação de Uma encarnação do Espírito Santo,
pessoa da Trimûrti (Trindade). Vishnu; segundo outros, uma portanto a segunda pessoa da
Krishna foi adorado em Maturâ, no rio encarnação de um dos Buddhas, e Trindade, agora a terceira. Mas a
Jumnâ. [19] mesmo de Âdi-Buddha, a Sabedoria Trindade só foi inventada 325 anos
Suprema. depois de seu nascimento. Foi a
Matarea, Egito, e aí produziu os seus
primeiros milagres. [20]

As lendas budistas estão livres deste Jesus é perseguido por Herodes, Rei
Krishna é perseguido por Kansa,
plágio, mas a lenda católica que o da Judéia, mas escapa para o Egito
Tirano de Madura, mas escapa
transforma em São Josafá mostra que guiado por um anjo. Para se assegurar
miraculosamente. Na esperança de
seu pai, rei de Kapilavastu, matou de sua morte, Herodes ordena um
destruir a criança, o rei mata milhares
inocentes jovens cristãos (!!). (Ver A massacre de inocentes, e 40.000
de varões inocentes.
legenda dourada.) crianças são mortas.
A mãe de Jesus foi Mariam, ou Miriam;
A mãe de Krishna foi Devakî, uma A mãe de Buddha foi Mâyâ ou casou-se com o marido, mas
virgem imaculada (porém que havia Mâyâdevî; não obstante o seu manteve-se virgem imaculada,
dado à luz oito filhos antes de casamento, manteve-se virgem embora tenha tido várias crianças
Krishna). imaculada. além de Jesus. (Ver Mateus, XIII, 55,
56.)
Jesus tem os mesmos dons. (Ver os
Krishna é dotado de beleza, Evangelhos e o Testamento Apócrifo.)
onisciência e onipotência desde o Buddha é dotado dos mesmos
Passa sua vida com pecadores e
nascimento. Produz milagres, cura os poderes e qualidades, e realiza
publicanos. Expulsa igualmente os
aleijados e cegos, e expulsa prodígios semelhantes. Passa sua
demônios. A única diferença notável
demônios. Lava os pés dos vida com mendigos. Pretende-se que
entre os três é que Jesus é acusado
brâmanes, e, descendo às regiões Gautama era diferente de todos os
de expulsar os demônios pelo poder
inferiores (inferno), liberta os mortos, outros Avatâras, tendo todo o espírito
de Belzebu, ao passo que os outros
e retorna a Vaikuntha — o paraíso de de Buddha em si, ao passo que os
não. Jesus lava os pés de seus
Vishnu. Krishna era o próprio Deus demais tinham apenas uma parte
discípulos, morre, desce ao inferno, e
(ansa) da divindade.
Vishnu em forma humana. [21] sobe ao céu, depois de libertar os
mortos.

Gautama esmaga a cabeça da Conta-se que Jesus esmagou a


Krishna cria meninos de carneiros, e Serpente, i.e., abole o culto de Nâga cabeça da Serpente, de acordo com a
vice-versa. Esmaga a cabeça da por fetichismo; mas, como Jesus, faz revelação original do Gênese.
Serpente. [22] da Serpente o emblema da sabedoria Também transforma meninos em
divina. cabritos e cabritos em meninos. [25]

Buddha abole a idolatria; divulga os


mistérios da Unidade de Deus e o
Krishna é Unitário. Persegue o clero, Nirvana, cujo verdadeiro significado Jesus rebela-se contra a antiga lei
acusa-o de ambição e hipocrisia, era conhecido apenas pelos judaica; denuncia os Escribas e
divulga os grandes segredos do sacerdotes. Perseguido e expulso do Fariseus, e a sinagoga por hipocrisia e
Santuário — a Unidade de Deus e a país, escapa da morte reunindo ao intolerância dogmática.
imortalidade de nosso espírito. A seu redor algumas centenas de Quebra o Sabbath, e desafia a Lei. É
tradição diz que ele caiu vítima de sua milhares de crentes em seu Budado. acusado pelos judeus de divulgar os
vingança. Seu discípulo favorito, Finalmente morre, cercado por uma segredos do Santuário. E condenado
Arjuna, nunca o abandona. Há hoste de discípulos, com Ânanda, seu a morrer numa cruz (uma árvore).
tradições fidedignas segundo as primo e amado discípulo, o líder de Dos poucos discípulos que havia
quais ele morreu perto de uma árvore todos eles. O’Brien acredita que a convertido, um o trai, um o nega, e os
(ou cruz), sendo atingido no pé por Cruz irlandesa em Tuam diz respeito outros desertam por fim, exceto João,
a Buddha, mas Gautama jamais foi o discípulo que ele amava. Jesus,
uma flecha. [23] Os eruditos mais crucificado. Em muitos templos ele é Krishna e Buddha, os três salvadores,
sérios concordam em que a Cruz representado sentado sob uma morrem sobre ou sob árvores, e estão
irlandesa, em Tuam, erigida muito árvore cruciforme, que é a “Arvore da relacionados com cruzes que
antes da era cristã, é asiática. [24] Vida”. Em outra imagem, ele está simbolizam os tríplices poderes da
sentado sobre Nâga, o Râjâ das criação.
Serpentes com uma cruz em seu
peito. [26]

Krishna sobe ao Svarga e torna-se Jesus sobe ao Paraíso.


Buddha sobe ao Nirvâna.
Nirguna.

RESULTADO
Em meados do século XVIII, contavam essas três religiões com os seguintes
números de seguidores: [27]

DE KRISHNA DE BUDDHA DE JESUS


Bramanistas: 60.000.000 Budistas: 450.000.000 Cristãos: 260.000.000.
Tal é o estado atual dessas três grandes religiões. Cada uma das quais se reflete
por sua vez em sua sucessora. Tivessem os dogmatizadores cristãos parado
aqui, os resultados não teriam sido tão desastrosos, pois teria sido difícil, de fato,
fazer um mau credo dos sublimes ensinamentos de Gautama, ou de Krishna
como Bhagavat. Mas eles foram adiante, e acrescentaram ao puro Cristianismo
primitivo as fábulas de Hércules, Orfeu e Baco. Assim como os muçulmanos não
admitem que seu Corão se baseia no substrato da Bíblia judaica, não confessam
os cristãos que devem quase tudo às religiões hindus. Mas os hindus têm a
cronologia para prová-lo. Vemos os melhores e mais eruditos de nossos
escritores lutando inutilmente por mostrar que as extraordinárias semelhanças
— no que se refere à identidade — entre Krishna e Cristo se devem aos espúrios
Evangelhos da Infância e do de Santo Tomás, que teriam “provavelmente
circulado na costa do Malabar, e dado cor à história de Krishna”. [28] Por que
não aceitar a verdade, e, invertendo o problema, admitir que Santo Tomás, fiel à
política de proselitismo que caracterizou os cristãos primitivos, ao encontrar no
Malabar o original do Cristo mítico em Krishna, tentou reunir os dois; e, adotando
em seu evangelho (do qual todos os demais foram copiados) os detalhes mais
importantes da história do Avatâra hindu, enxertou a heresia cristã na religião
primitiva de Krishna. Para quem estiver familiarizado com o espírito do
Bramanismo, a idéia de os brâmanes aceitarem qualquer coisa de um
estrangeiro é simplesmente ridícula. Que eles, o povo mais fanático no que
respeita aos assuntos religiosos, que, durante séculos, não pôde ser compelido
a adotar o mais simples dos costumes europeus, sejam suspeitos de ter
introduzido em seus livros sagrados lendas não averiguadas sobre um Deus
estrangeiro, eis algo tão absurdamente ilógico que é realmente uma perda de
tempo tentar contraditar a idéia!
Não examinaremos em profundidade as bem-conhecidas semelhanças entre a
forma externa do culto budista — especialmente o Lamaísmo — e o catolicismo
romano, façanha pela qual pagou caro o pobre Huc — mas, tentaremos
comparar os pontos mais vitais. De todos os manuscritos originais que foram
traduzidos das várias línguas em que o Budismo está exposto, os mais
extraordinários e interessantes são o Dhammapada, ou O caminho da virtude,
de Buddha, traduzido do pâli pelo Cel. Rogers, [29] e A roda da lei, que contém
as observações de um Ministro de Estado siamês sobre a sua própria religião e
as outras, traduzida por Henry Alabaster. [30] A leitura de ambos os livros, e a
descoberta neles de semelhanças de pensamento e doutrina, habilitou o Dr.
Inman a escrever muitas das passagens profundamente verdadeiras constantes
de uma de suas últimas obras, Ancient Faiths and Modern. [31] “Falo com sóbria
sinceridade”, escreve esse generoso e franco erudito, “quando digo que após
quarenta anos de experiência entre aqueles que professam o Cristianismo, e
aqueles que proclamam (...) mais ou menos em silêncio a sua discordância com
ele, observei mais virtude e moralidade entre os últimos do que entre os
primeiros (...) Conheci pessoalmente muitas pessoas pias e boas cristãs, a quem
honro, admiro e talvez gostaria de imitar; mas elas merecem o elogio que assim
lhes passo em consequência de seu bom senso, pois ignoram a doutrina da fé
de modo quase total, e cultivam a prática das boas obras (...) A meu juízo, os
cristãos mais louváveis que conheço são budistas reformados, embora
provavelmente nenhum deles jamais tenha ouvido falar de Siddhârtha.”
Entre os artigos de fé e as cerimônias lamaico-budistas e católico-romanas há
cinquenta e um pontos que apresentam uma semelhança perfeita e
surpreendente; e quatro pontos diametralmente opostos.
Como seria inútil enumerar as “semelhanças”, pois o leitor pode encontrá-las
cuidadosamente anotadas na obra de Inman acima citada, às p. 237-40,
citaremos apenas as quatro dessemelhanças, e deixaremos ao leitor a tarefa de
tirar suas conclusões:

1. “Os budistas afirmam que nada que seja contraditado 1. “Os cristãos aceitarão qualquer absurdo, desde que
pela razão pode constituir uma verdadeira doutrina de
promulgado pela Igreja como um artigo de fé.” [32]
Buddha.”

2. “Os romanos adoram a mãe de Jesus, e lhe pedem


2. “Os budistas não adoram a mãe de Sâkya, embora a
ajuda e intercessão.” O culto da Virgem enfraqueceu o de
honrem como uma mulher santa, escolhida por suas
Cristo, e lançou por completo na sombra o do Todo-
grandes virtudes para tal tarefa.
Poderoso.

3. “Os budistas não têm sacramentos.” 3. “Os seguidores do papa têm sete.”

4. Os não acreditam em qualquer perdão para os seus 4. Os cristãos estão certos de que, se apenas acreditam
pecados, exceto depois de uma adequada punição para no “precioso sangue de Cristo”, esse sangue oferecido por
toda má ação, e uma compensação proporcional às partes Ele para a expiação dos pecados de toda a Humanidade
injuriadas. (leia-se cristãos) reparará todos os pecados mortais.

Qual dessas teologias mais se recomenda ao pesquisador sincero, eis uma


questão que podemos deixar com segurança ao julgamento do leitor. Uma
oferece luz, a outra trevas.
Reza A roda da lei:
“Os budistas acreditam que todo ato, palavra ou pensamento tem a sua
consequência, que aparecerá mais cedo ou mais tarde no atual estado, ou
nalgum futuro. Os atos maus produzirão más consequências: [33] prosperidade
neste mundo, ou nascimento no céu (...) em algum estado futuro”. [34]
Essa é a justiça correta e imparcial. Essa é a idéia de um Poder Supremo que
não pode falhar e que, por conseguinte, não pode ter nem ira nem misericórdia,
mas deixa todas as causas, grandes ou pequenas, exercerem seus efeitos
inevitáveis. “Com a medida com que medis sereis medidos” [35] — tal sentença,
nem pela expressão, nem pela implicação assinala qualquer esperança de um
futuro perdão ou salvação por procuração. A crueldade e a misericórdia são
sentimentos finitos. A Divindade Suprema é infinita, portanto só pode ser JUSTA,
e a Justiça deve ser cega. Os pagãos antigos tinham a esse respeito concepções
mais filosóficas do que os cristãos modernos, pois representam Têmis de olhos
vendados. E o autor siamês da obra em pauta dá mostra novamente de uma
concepção mais reverente da Divindade dos que os cristãos, quando dá vazão
a seu pensamento: “Um budista poderia acreditar na existência de um Deus
sublime acima de todas as qualidades e atributos humanos, um Deus perfeito,
acima do amor e do ódio, repousando calmamente numa silente felicidade que
nada pode perturbar, e de tal Deus nada de mau ele poderia falar; não pelo
desejo de agradá-lo, ou pelo medo de ofendê-lo, mas pela veneração natural.
Mas ele não pode compreender um Deus com os atributos e as qualidades dos
homens, um Deus que ama e odeia e mostra raiva, uma Divindade que,
conforme a descrevem os missionários cristãos, ou os maometanos, os
brâmanes e os judeus, cai sob o seu padrão na categoria de um bom homem
comum”. [36]

A doutrina cristã da Expiação ilógica


Já nos temos surpreendido amiúde com as extraordinárias idéias de Deus e Sua
justiça que parecem ser honestamente defendidas pelos cristãos que cegamente
confiam no clero quanto aos assuntos religiosos, e jamais em sua própria razão.
Quão estranhamente ilógica é essa doutrina da Expiação. Propomos discuti-la
com os cristãos do ponto de vista budista, e mostrar ao mesmo tempo por quais
séries de sofismas, dirigidas para o objetivo único de apertar o jugo eclesiástico
sobre o pescoço popular, sua aceitação, como um mandamento divino, foi
finalmente efetuada; queremos mostrar também que ela se revelou uma das
doutrinas mais perniciosas e desmoralizantes.
Diz o clero: “Não importa quão enormes sejam os nossos crimes contra as leis
de Deus e do homem, temos apenas que acreditar no auto-sacrifício de Jesus
para a salvação da Humanidade, e Seu sangue lavará todas as máculas. A
misericórdia divina é infinita e insondável. É impossível conceber um pecado
humano tão abominável que o preço pago em adiantado para a redenção do
pecador não o elimine, sendo ainda mil vezes pior. E, além disso, nunca é tarde
demais para se arrepender. Mesmo que o pecador espere até o último minuto
da hora extrema, do último dia de sua vida mortal, depois de seus descoloridos
lábios pronunciarem a confissão de fé, ele estará pronto para ir ao Paraíso; o
bom ladrão assim o fez, e assim poderão fazê-lo outros da mesma laia”. Tais são
os pontos de vista da Igreja.
Mas se transpusermos o estreito círculo do credo e considerarmos o universo
como um todo equilibrado pelo primoroso ajustamento das partes, como se
revoltará a lógica sensata, o mais fraco senso de justiça contra essa Vicária
Expiação! Se o criminoso pecou apenas contra si mesmo, e causou mal apenas
a si mesmo; se pelo arrependimento sincero ele puder apagar os eventos
passados, não apenas da memória do homem, mas também desse registro
imperecível, que nenhuma divindade — nem mesmo a Suprema das Supremas
— pode fazer desaparecer, então esse dogma não seria incompreensível. Mas
afirmar que alguém pode fazer mal a seu companheiro, matar, perturbar o
equilíbrio da sociedade, e a ordem natural das coisas, e então — pela covardia,
esperança, ou compulsão, não importa — ser esquecido por acreditar que o
sangue derramado de alguém lave o outro sangue derramado — isso é absurdo!
Podem os resultados de um crime ser esquecidos ainda que o crime seja
perdoado? Os efeitos de uma causa nunca se limitam ao âmbito da causa, nem
podem os resultados de um crime ser confinados ao ofensor e à sua vítima. Toda
boa ação, assim como a má, tem seus efeitos, que são tão palpáveis como a
pedra que cai num lago de águas claras. A comparação é trivial, mas é a melhor
que podemos imaginar, e portanto a empregamos. Os círculos redemoinhantes
são maiores e mais rápidos, conforme seja o objeto perturbador maior ou menor,
mas o menor pedregulho, ou melhor, a partícula mais fina, provoca suas ondas.
E essa perturbação não é visível apenas na superfície. Abaixo, em todas as
direções — para fora e para baixo —, de modo invisível, gota puxa gota, até que
os lados e o fundo sejam tocados pela força. Mais, o ar acima da água é agitado,
e essa perturbação passa, como nos dizem os físicos, de estrato a estrato no
espaço para todo o sempre; um impulso é dado à matéria, e esse nunca se
perde, e não pode ser retomado!...
Ocorre o mesmo com o crime, e com o seu oposto. A ação pode ser instantânea,
os efeitos são eternos. Quando, depois de a pedra ter caído no Iago, pudermos
chamá-la de volta à mão, recolher as ondas, obliterar a força expendida,
restaurar as ondas etéreas ao seu estado anterior de não-ser, e apagar todos os
traços do ato de atirar a pedra, de modo que o registro do Tempo não possa
mostrar o que aconteceu, então, então, poderemos ouvir pacientemente os
cristãos defenderem a eficácia dessa Expiação.
O Times de Chicago publicou recentemente a lista de algozes da primeira
metade do presente ano (1877) — uma longa e chocante lista de assassinos e
enforcamentos. Quase todos esses assassinos receberam a consolação
religiosa, e muitos anunciaram que haviam recebido o perdão de Deus através
do sangue de Jesus, e que estavam indo para o Céu! Sua conversão foi efetuada
na prisão. Observai quão ligeira é a balança da Justiça cristã: esses
sanguinolentos assassinos, incitados pelos demônios da luxúria, da vingança,
da cupidez, do fanatismo, ou pela mera sede brutal de sangue, mataram suas
vítimas, em muitos casos, sem lhes dar o tempo para se arrependerem, ou
chamarem a Jesus para lhes lavar o sangue. Morreram, talvez, em pecado, e,
naturalmente — de acordo com a lógica teológica — encontraram a recompensa
para as suas ofensas maiores ou menores. Mas o assassino, agarrado pela
justiça humana, é aprisionado, chorado pelos sentimentalistas, confessa,
pronuncia as encantadas palavras de conversão, e vai ao cadafalso uma
redimida criança de Jesus! Se não fosse pelo assassínio, ele não teria sido
confessado, redimido, perdoado. Então, esse homem fez bem em matar, pois
assim ganhou a felicidade eterna! E quanto à vítima, e sua família, seus
parentes, dependentes, e amigos — não tem a Justiça nenhuma recompensa
para eles? Devem eles sofrer neste mundo e no próximo, enquanto aquele que
lhes fez mal se senta ao lado do “bom ladrão” do Calvário e é para sempre
abençoado? Sobre essa questão, o clero também mantém um prudente silêncio.
Steve Anderson foi um desses criminosos americanos — culpado de duplo
assassínio, incêndio culposo e roubo. Antes da hora de sua morte, ele foi
“convertido”, mas o relato nos conta que “os clérigos que o atendiam objetaram
ao adiamento da execução, sob o pretexto de que estavam certos de sua
salvação caso ele morresse naquele dia, mas que não podiam responder por ela
se a execução fosse adiada”. Dirigimo-nos a esses ministros, e lhes pedimos
para nos contar com que base se sentiram seguros para fazer tal coisa
monstruosa. Como puderam se sentir seguros, com o futuro negro diante deles,
e com os intermináveis resultados desse assassínio duplo, incêndio culposo e
roubo? Eles não podiam estar seguros de coisa alguma, exceto que a sua
abominável doutrina é a causa de três quartos dos crimes dos pretensos cristãos;
que essas causas terríveis devem produzir esses efeitos monstruosos, que por
sua vez geram outros resultados, e assim levam por toda a eternidade a um fim
que nenhum homem pode calcular.
Ou tomemos outro crime, um dos mais egoístas, cruéis e impiedosos, e no
entanto dos mais frequentes, a sedução de uma jovem. A sociedade, por instinto
de autopreservação, julga impiedosamente a vítima, e a condena ao ostracismo.
A jovem pode ser impelida ao infanticídio, ao suicídio, ou, se é avessa por demais
à morte, mergulhar numa vida de vícios e crimes. Pode tornar-se mãe de
criminosos, que, como nos agora célebres Jukes, de cujos aterradores detalhes
o Sr. Dugdale publicou um relato, procriam às centenas outras gerações de
delinquentes, em cinquenta ou sessenta anos. Todo esse desastre social
provém da paixão egoísta de um único homem; será ele perdoado pela Justiça
Divina, enquanto a sua ofensa não for expiada, recaindo a punição apenas sobre
os desgraçados escorpiões humanos nascidos de sua luxúria?
Um clamor acaba de se levantar na Inglaterra, em face da descoberta de que os
clérigos anglicanos estão introduzindo largamente a confissão auricular e
concedendo a absolvição após duras penitências. A pesquisa mostra a mesma
coisa acontecendo nos Estados Unidos. Posto sob o ordálio da repergunta, o
clero cita triunfantemente do Book of Common Prayer inglês as rubricas que lhe
dão a autoridade de absolver, através do poder de “Deus, o Espírito Santo”,
concedido a ele pelo bispo por meio da imposição das mãos no instante de sua
ordenação. O bispo, interrogado, cita Mateus, XVI, 19, como a fonte de sua
autoridade para prender e soltar na Terra aqueles que serão abençoados ou
condenados no céu; e a sucessão apostólica como prova de sua transmissão de
Simão Bar-jona até a ele próprio. Os presentes volumes terão sido escritos em
vão se não tiverem mostrado, 1º, que Jesus, o Cristo-Deus, é um mito
arquitetado dois séculos depois da morte do judeu Jesus real; 2º, que, por
conseguinte, ele jamais teve qualquer autoridade para dar a Pedro, ou a qualquer
outro, os poderes plenários; 3º, que, mesmo que ele tivesse dado tal autoridade,
a palavra Petra (rocha) se referia às verdades reveladas do Petroma, não àquele
que o negou por três vezes; e que, além disso, a sucessão apostólica é uma
fraude grosseira e evidente; 4º, que o Evangelho segundo São Mateus é uma
invenção baseada num manuscrito totalmente diverso. Toda a coisa é, portanto,
uma imposição impingida sobre sacerdotes e penitentes. Mas deixando de lado
esses pontos por um instante, basta perguntar a esses pretensos agentes dos
três deuses da Trindade, como reconciliam eles com as noções mais
rudimentares de equidade o fato de que, se o poder de perdoar os pecadores
lhes foi dado, não receberam eles também a capacidade de obliterar por milagre
os danos causados contra a pessoa ou a propriedade. Que eles restaurem a vida
ao assassinado; a honra à desonrada; a propriedade àqueles que foram
roubados, e forcem as escalas da justiça humana e divina a retomarem seu
equilíbrio. Poderemos então falar de seu mandato divino para punir e perdoar.
Que falem, se puderem fazê-lo. Até agora o mundo nada recebeu a não ser
sofisticaria — na qual se acreditou por fé cega; pedimos provas palpáveis e
tangíveis da justiça e da misericórdia de seu Deus. Mas tudo é silêncio; nenhuma
resposta, nenhuma réplica, e no entanto a inexorável e infalível Lei da
Compensação, prossegue em seu firme caminho. Se apenas observarmos o seu
progresso, descobriremos que ela ignora todos os credos, e não mostra
preferências, caindo seus raios de Sol e sua luz, tanto sobre pagãos, como
cristãos. Nenhuma absolvição pode defender os últimos, quando culpados,
nenhum anátema injuriar os primeiros, quando inocentes.
Longe de nós uma insultante concepção da justiça divina como a pregada pelos
sacerdotes com base na sua própria autoridade. Ela só serve para covardes e
criminosos! Se eles são defendidos por todo um exército de padres e clérigos,
nós o somos pela maior de todas as autoridades — um instintivo e reverente
sentimento da imorredoura e onipresente lei da harmonia e da justiça.
Mas, além da razão, temos outra prova para mostrar que tal construção é
totalmente injustificada. Sendo os Evangelhos “revelação divina”, sem dúvida os
cristãos encararão seu testemunho como conclusivo. Afirmam eles que Jesus se
entregou a um sacrifício voluntário? Ao contrário, não há uma única palavra que
sustente essa idéia. Eles deixam bem claro que ele teria antes continuado a viver
o que considerava a sua missão, e que morreu porque não conseguiu levá-la a
cabo, quando se viu traído. Além disso, quando foi tratado com violência, ele se
fez invisível pelo emprego da força mesmérica sobre os circunstantes, e
escapou. Quando, finalmente, viu que sua hora havia chegado, sucumbiu ao
inevitável. Mas vede-o no jardim, no Monte das Oliveiras, contorcendo-se em
agonia até que “seu suor consistia em grandes gotas de sangue”, pedindo com
férvida súplica que o cálice fosse dele afastado; exausto por sua batalha a tal
ponto que um anjo do céu teve que vir para fortalecê-lo, e dizei se a imagem é a
de um refém ou mártir auto-imolante. Para coroar o assunto, e não deixar
nenhuma dúvida em nossas mentes, temos suas próprias desesperadas
palavras. “NÃO A MINHA VONTADE, mas a tua seja feita!” (Lucas, XXII, 42.)
Ademais, encontramos nos Purânas que Krishna foi pregado numa árvore pela
flecha de um caçador, que, pedindo ao deus moribundo para perdoá-lo, recebe
a seguinte resposta: “‘Vai, caçador, por minha graça, ao céu, a morada dos
deuses’ (...) Então, o ilustre Krishna, tendo-se unido com seu espírito puro,
espiritual, inexaurível, inconcebível, inato, incorruptível, imperecível e universal,
que forma uma unidade com Vâsudeva, abandonou seu corpo imortal, e o estado
das três qualidades”. [37] Não é esse o original da história de Cristo que perdoa
o ladrão na cruz, e lhe promete um lugar no Céu? Tais exemplos “desafiam o
investigador quanto à sua origem e sentido, muito anteriores ao Cristianismo”,
diz o Dr. Lundy, em Monumental Christianity, e acrescenta: “A idéia de Krishna
como um pastor, eu a tenho por mais antiga do que o Evangelho da Infância e o
de São João, e profética de Cristo” (p. 156).
Fatos como esses, talvez, forneceram mais tarde um pretexto plausível para
declarar como apócrifas obras como as Homilias, que mostravam de maneira
absolutamente clara a hipótese posterior de uma autoridade primitiva para a
doutrina da expiação. As Homilias diferem muito pouco dos Evangelhos; mas
discordam totalmente dos dogmas da Igreja. Pedro nada sabia da expiação; e
sua reverência pelo mítico pai Adão jamais lhe teria permitido admitir que esse
patriarca pecou e foi amaldiçoado. Tampouco as escolas teológicas de
Alexandria parecem ter tido conhecimento dessa doutrina, nem mesmo
Tertuliano, e não foi ela discutida por qualquer dos Padres primitivos. Fílon
apresenta a história da Queda como simbólica, e Orígenes a encarava da
mesma maneira que Paulo, como uma alegoria. [38]
Queiram ou não, os cristãos têm que acreditar na tola história da tentação de
Eva por uma serpente. Além disso, Agostinho pronunciou-se formalmente sobre
o assunto. “Deus, por Sua vontade arbitrária”, diz ele, “selecionou de antemão
certas pessoas, sem consideração pela fé ou pelas boas ações futuras, e lhes
concedeu irremediavelmente a felicidade eterna, ao passo que condenou outros
do mesmo modo à reprovação eterna!!” (De dono perseverantiae, § 25, etc.). [39]
Calvino promulgou idéias sobre a parcialidade e a crueldade divinas igualmente
abomináveis. “A raça humana, corrompida radicalmente na queda de Adão, tem
sobre si a culpa e a impotência do pecado original; sua redenção só pode ser
alcançada pelos méritos de um Salvador encarnado para redimir a Humanidade.
Todavia, do benefício da redenção desfrutam apenas as almas de antemão
escolhidas, e predestinadas, às quais voluntariamente favorece Deus com sua
graça, pois os demais homens estão predestinados à eterna condenação pelo
decreto imutável do plano divino. (...) Só a fé o justifica, e a fé é um dom de
Deus.” [40]
Ó Justiça Divina, quão blasfemado tem sido o teu nome! Infelizmente para todas
essas especulações, a crença na eficácia propiciatória do sangue pode ser
remontada aos ritos mais antigos. Pouquíssimas nações a desconheciam. Todos
os povos ofereciam sacrifícios animais e mesmo humanos aos deuses, na
esperança de evitar dessa forma a calamidade pública, pacificando a ira de
alguma vingativa divindade. Há exemplos de generais gregos e romanos que
ofereciam suas vidas simplesmente para o sucesso de seu exército. César se
queixa disso, e chama tal costume de superstição gaulesa. “Eles devotam a vida
(...) acreditando que se a vida não for substituída por vida, os deuses imortais
não serão apaziguados”, escreve ele”. [41] “Se qualquer mal está prestes a cair
sobre qualquer dos que agora sacrificam, ou sobre o Egito, possa ele recair
sobre esta cabeça”, pronunciavam os sacerdotes egípcios quando sacrificavam
um de seus animais sagrados. [42] E as imprecações eram pronunciadas sobre
a cabeça da vítima expiatória, em torno de cujos chifres um pedaço de papiro
era enrolado. O animal era geralmente conduzido a alguma região árida, e
consagrado a Tífon, naquelas épocas primitivas quando essa divindade fatal
ainda não havia obtido uma certa consideração dos egípcios. É nesse costume
que repousa a origem do “bode expiatório” dos judeus, que, quando o ruivo deus-
asno foi rejeitado pelos egípcios, começaram a sacrificar a outra divindade a
“bezerra vermelha”.
“Que todos os pecados cometidos neste mundo caiam sobre mim para que o
mundo possa ser salvo”, exclamou Gautama, o Salvador hindu, séculos antes
de nossa era.
Ninguém pretenderá afirmar em nosso século que foram os egípcios que
emprestaram qualquer coisa dos israelitas, como agora se acusa os hindus de o
fazerem. Bunsen, Lepsius, Champollion há muito estabeleceram a precedência
cronológica do Egito sobre os israelitas, assim como em todos os ritos religiosos
que agora reconhecemos entre o “povo eleito”. O próprio Novo Testamento
formiga de citações e repetições do Livro dos mortos, e Jesus, se tudo o que
seus quatro biógrafos lhe atribuem for verdadeiro — deve ter tido conhecimento
dos Hinos Funerários egípcios. [43] No Evangelho Segundo São Mateus
descobrimos sentenças inteiras extraídas do Ritual antigo e sagrado que
precedem a nossa era por mais de 4.000 anos. Comparemo-los, novamente. [44]
A “alma” sob julgamento é levada diante de Osíris, o “Senhor da Verdade”, que
está sentado, ornado com a cruz egípcia, emblema da vida eterna, e segura em
sua mão direita o vannus, o flagelo da justiça. [45] O espírito dá início, na
“Câmara das Duas Verdades”, a um fervoroso apelo, e enumera suas boas
ações, corroboradas pelas respostas dos quarenta e dois assessores — as
ações e os acusadores encarnados. Se tal se justifica, chamam-no de Osíris,
assumindo assim o nome da Divindade donde provém a sua essência divina, e
as seguintes palavras, cheias de majestade e justiça, são pronunciadas! “Que
Osíris parta; vede que ele é isento de faltas (...) Ele viveu na verdade, e
alimentou-se de verdade (...) O deus o recebeu, como era seu desejo. Ele deu
alimento aos meus famintos, bebida aos meus sedentos, roupa aos meus
desnudos (...) Ele transformou o alimento sagrado dos deuses no alimento dos
espíritos.” [46]
Na parábola do Reino dos Céus (Mateus, XXV, 34-6), o Filho do Homem (Osíris
é também chamado de Filho) senta-se no trono de sua glória, julgando as nações
e diz aos justos: “Vinde, benditos de meu Pai, [o Deus], herdeiros do reino (...)
Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber (...) estive
nu e me vestistes”. [47] E para completar a semelhança (Mateus, III, 12): João
descreve Cristo como Osíris, “cuja pá (vannus) está em sua mão”, e que “vai
limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro.”
Ocorre o mesmo em relação às lendas budistas. Em Mateus, IV, 19, diz Jesus:
“Segui-me e eu vos farei pescadores de homens”, referindo-se a passagem a um
diálogo entre ele e Simão Pedro e André, seu irmão.
Em Der Weise und der Thor, de Schmidt, [48] uma obra cheia de anedotas sobre
Buddha e seus discípulos, extraídas todas dos textos originais, fala-se de um
novo convertido à fé, que “havia sido apanhado pelo anzol da doutrina, como um
peixe, que se pesca com a linha e a rede”. Nos templos do Sião, a imagem do
esperado Buddha, o Messias Maitreya, é representada com a rede de um
pescador nas mãos, ao passo que no Tibete ele segura uma espécie de
armadilha. A explicação para isso é a seguinte: “Ele [Buddha] esparge sobre o
Oceano do nascimento e da morte a flor de Lótus da excelente lei como uma
isca; com o laço da devoção, nunca arremessado em vão, ele pesca os seres
vivos como peixes, e os leva ao outro lado do rio, onde está o verdadeiro
saber”. [49]
Se Grabe, o Dr. Parke, e o erudito Arcebispo Cave — que tão zelosamente
impediram, em sua época, a admissão das Epístolas de Jesus Cristo e Abgarus,
Rei de Edessa, no Cânone da Escritura — tivessem vivido em nossos dias de
Max Müller e da erudição sânscrita, duvidamos que teriam agido da mesma
forma. Quem fez a primeira menção a essas Epístolas foi o famoso Eusébio.
Esse piedoso bispo parece se ter eleito para fornecer à cristandade as provas
mais inesperadas para corroborar as suas mais absurdas fantasias. Se entre os
muitos feitos do Bispo de Cesaréia devemos incluir o conhecimento do cingalês,
do pehlevi, do tibetano e de outros idiomas, não o sabemos; mas ele certamente
transcreveu as cartas de Jesus e Abgarus, e a história do miraculoso retrato de
Cristo impresso numa peça de roupa pelo suor de sua face, do Cânone budista.
Na verdade, o bispo declarou que descobriu a carta escrita em siríaco,
preservada entre os registros da cidade de Edessa, onde Abgarus reinou. [50]
Lembramos as palavras de Babrias: “O mito, ó filho do Rei Alexandre, é uma
antiga invenção humana dos sírios, que viviam nos tempos antigos sob Ninus e
Belus”. Edessa era uma das antigas “cidades sagradas”. Os árabes a veneram
até hoje; e nela se fala o mais puro árabe. Eles a chamam ainda por seu antigo
nome, Orfa, outrora a cidade Arpha-Kasda (Arphaxad), a sede de um Colégio de
caldeus e magos, cujos missionários, chamados de Orpheus, daí trouxeram os
Mistérios báquicos à Trácia. Muito naturalmente, Eusébio aí encontrou os contos
que ele transformou na história de Abgarus, e a imagem sagrada impressa num
tecido; pois a de Bhagavat, ou o abençoado Tathâgata (Buddha) [51] foi obtida
pelo Rei Bimbisâra. [52] Comprada pelo Rei, Bhagavat projetou sua sombra nela.
[53] Esse pedaço de “miraculoso tecido”, com sua sombra, ainda está
preservado, dizem os budistas; “só a sombra é raramente vista”. [54]
De igual maneira, o autor gnóstico do Evangelho segundo, São João, copiou e
metamorfoseou a lenda de Ânanda que pediu de beber a uma mulher Mâtamgî
— o anti-tipo da mulher encontrada por Jesus no poço —, [55] e a quem disse
ela que, por pertencer a uma casta inferior, nada podia fazer por um santo
monge. “Eu não te perguntei, minha irmã”, responde Ânanda à mulher, “qual a
tua casta ou tua família, eu apenas te peço água, se puderes me dar alguma.”
[56] Essa mulher Mâtamgî, encantada e comovida até as lágrimas, arrepende-
se, ingressa na Ordem monástica de Gautama, e torna-se uma santa, resgatada
de uma vida de lascívia por Sâkya-muni. Muitas de suas ações posteriores foram
utilizadas pelos forjadores cristãos para caracterizar Maria Madalena e outras
santas e mártires.
“E quem der, nem que seja um copo de água fria a um destes pequeninos, por
ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá sua recompensa”, diz
o Evangelho (Mateus, X, 42). “Quem, com um puro coração, oferecer mesmo
que seja um pouco de água, ou ofertar tanto à assembléia espiritual, ou der de
beber ao pobre e ao necessitado, ou a um animal do campo, essa ação meritória
não se perderá por muitos séculos”, [57] diz o Cânone budista.
Na hora do nascimento de Gautama Buddha, realizaram-se 32 prodígios. As
nuvens ficaram imóveis no céu, as águas dos rios pararam de correr, as flores
cessaram de germinar, os pássaros ficaram silentes e cheios de maravilha; toda
a natureza ficou suspensa em seu curso, e plena de expectativa. “Uma luz
sobrenatural se difundiu por todo o mundo; os animais pararam de comer; os
cegos passaram a enxergar; os coxos e os mudos foram curados”, etc. [58]
Citemos agora o Protevangelion:
“Na hora da Natividade, quando José olhou para o ar, Eu vi [diz ele] as nuvens
espantadas, e as aves do ar parando em meio ao seu vôo (...) E vi as ovelhas
dispersas, mas todas em silêncio (...) e vi o rio, e observei as novilhas com suas
bocas perto da água, e tocando-a, mas sem a beber.
“Então, uma nuvem brilhante ofuscou a caverna (...) Mas, de súbito, a nuvem
transformou-se numa grande luz na caverna, de modo que seus olhos não
puderam suportá-la (...) A mão de Salomé, que estava murcha, foi imediatamente
curada (...) Os cegos enxergaram; os coxos e os mudos foram curados.” [59]
Quando foi à escola, o jovem Gautama, sem jamais ter estudado, superou
completamente todos os seus competidores, não apenas na escrita, mas na
Aritmética, na Matemática, na Metafísica, na luta, na arte do arco, na Astronomia,
na Geometria, e finalmente venceu os seus próprios professores dando a
definição das sessenta e quatro virtudes, que eram desconhecidas dos próprios
mestres. [60]
E eis o que diz novamente o Evangelho da Infância: “E quando ele [Jesus] tinha
doze anos (...) um certo Rabino importante lhe perguntou, ‘Lestes livros?’ (...) e
um certo astrônomo (...) perguntou ao Senhor Jesus se havia estudado
Astronomia. E o Senhor Jesus lhe explicou (...) sobre as esferas (...) sobre a
Física e a Metafísica. E também sobre coisas que a razão do homem jamais
havia descoberto (...) A constituição do corpo, como a alma operava sobre o
corpo, etc. (...) E o mestre ficou tão surpreso que disse: Creio que esse rapaz
nasceu antes de Noé (...) ele é mais sábio do que todos os mestres!” [61]

Por que os missionários falham ao tentar


convencer budistas e bramanistas
Os preceitos de Hillel, que morreu quarenta anos antes do nascimento de Cristo,
aparecem antes como citações, do que expressões originais, no Sermão da
Montanha. Jesus nada ensinou ao mundo que não tivesse sido
convenientemente ensinado antes por outros instrutores. Ele começa seu
sermão com certos preceitos puramente budistas que haviam encontrado
aceitação entre os essênios, e eram geralmente praticados pelos Orphikoi e
pelos neoplatônicos. Havia os filelenos, que, como Apolônio, devotavam suas
vidas à pureza moral e física, e que praticavam o ascetismo. Jesus tenta inculcar
em sua audiência o desprezo pelas riquezas do mundo; uma indiferença de
faquir pelo dia seguinte; amor pela Humanidade, pobreza e castidade. Abençoa
o pobre de espírito, o humilde, os que têm fome e sede de justiça, o
misericordioso e os mansos, e, como Buddha, deixa uma pobre esperança para
as castas orgulhosas no que se refere a seu ingresso no reino do céu. Todas as
palavras desse sermão ecoam os princípios essenciais do budismo monástico.
Os dez mandamentos de Buddha, que se acham num apêndice ao Pratimoksha-
Sûtra (texto páli-burmês), são elaborados em toda a sua extensão em Mateus.
Se desejamos conhecer o Jesus histórico, temos de pôr o Cristo mítico
inteiramente de lado, e aprender tudo o que pudermos sobre o homem no
primeiro Evangelho. Suas doutrinas, suas concepções religiosas, e suas maiores
aspirações se acham concentradas em seu sermão.
Essa é a principal causa do fracasso dos missionários em converter os
bramanistas e os budistas. Eles constatam que as poucas coisas realmente boas
oferecidas na nova religião são exibidas apenas em teoria, ao passo que as suas
fés obrigam a que essas regras sejam aplicadas na prática. Não obstante a
impossibilidade para os missionários cristãos compreenderem claramente o
espírito de uma religião totalmente baseada nessa doutrina de emanação que é
tão inimiga de sua própria teologia, os poderes de raciocínio de alguns simples
pregadores budistas são tão superiores que vemos um erudito como Gützlaff [62]
reduzido ao silêncio completo e metido em grandes apuros pelos budistas.
Judson, o famoso missionário batista de Burma, confessa, em seu Jornal, [63] as
dificuldades a que foi por eles levado. Falando de um certo Ooyan, observa ele
que esse forte espírito era capaz de compreender os assuntos mais difíceis.
“Suas palavras”, observa ele, “são suaves como óleo, doces como mel, e agudas
como navalhas; seu modo de raciocinar é suave, insinuante e agudo; e tão
destramente desempenhava ele seu papel, que (...) eu, com a força da verdade,
quase não fui capaz de vencê-lo.” Parece, no entanto, que num período posterior
de sua missão, o Sr. Judson descobriu que não havia compreendido
corretamente a doutrina. “Comecei a descobrir”, diz ele, “que o semi-ateísmo,
que eu às vezes mencionara, não passa de um refinado budismo, que se baseia
nas Escrituras budistas”. Assim, descobriu ele por fim que ao passo que há no
Budismo “um termo genérico da mais exaltada perfeição realmente aplicado a
numerosos indivíduos, um Buddha superior a toda a hoste de divindade
secundárias, há também, escondidos no sistema, os lampejos de uma anima
mundi, anterior, e mesmo superior, a Buddha”. [64]
Eis de fato uma feliz descoberta!
Mesmo os tão caluniados chineses acreditam no Deus Supremo e Único, “O
Governante Supremo dos Céus Imperiais”, Yuh-Hwang Shang-ti tem seu nome
inscrito apenas na tábua dourada diante do altar do céu, no grande templo T’ien-
t’ân, em Pequim. “Esse culto”, diz o Cel. Yule, “é mencionado pelo narrador
muçulmano da embaixada de Shah Rukh (1421 d.C.): “Todos os anos, há alguns
dias durante os quais o Imperador não come comida animal (...) Ele passa seu
tempo num aposento que não contém nenhum ídolo, e diz que está adorando o
Deus do Céu’.” [65]
Falando de Shahrastânî, o grande erudito árabe, diz Chwolsohn que, a seu ver,
o Sabeísmo não era astrolatria, como muitos estão propensos a acreditar. Ele
pensava “que Deus é muito sublime e muito grande para Se ocupar com o
governo imediato deste mundo; que Ele, por conseguinte, transferiu tal governo
aos deuses, e conservou apenas os casos importantes para Si; que portanto o
homem é frágil demais para se dirigir imediatamente ao Supremo, devendo,
dessarte, dirigir suas preces e sacrifícios às divindades intermediárias, a quem
o governo do mundo foi confiado pelo Supremo”. Chwolsohn argumenta que
essa idéia é tão antiga quanto o mundo, e que “no mundo pagão, esse ponto de
vista era partilhado universalmente pelas pessoas cultas”. [66]
O Padre C. Borri, um missionário português, que foi enviado para converter os
“pobres pagãos” da Cochinchina, já no século XVI, “protesta em desespero [em
sua narrativa], que não há uma veste, um ofício, uma cerimônia na Igreja de
Roma às quais o Demônio não tenha aqui providenciado alguma contraparte.
Mesmo quando o padre começou a investir contra os seus ídolos, responderam-
lhe que aquelas eram imagens dos grandes homens mortos, a quem eles
honravam, exatamente no mesmo princípio e modo como os católicos faziam
com as imagens dos apóstolos e dos mártires”. [67] Além disso, esses ídolos só
têm importância aos olhos das multidões ignorantes. A filosofia do Budismo
ignora imagens e fetiches. Sua enorme vitalidade repousa em suas concepções
psicológicas do eu interior do homem. O Caminho para o estado supremo da
felicidade, chamado de Passagem para o Nirvâna, abre suas trilhas através da
vida espiritual, e não física, de uma pessoa, enquanto ela está nesta terra. A
literatura budista sagrada aponta o caminho, estimulando o homem a seguir
praticamente o exemplo de Gautama. Por conseguinte, os escritos budistas
abrem uma corrente particular nos privilégios espirituais do homem,
aconselhando-o a cultivar seus poderes para a produção de meipo (fenômenos)
durante a vida, e para a obtenção do Nirvâna no futuro.
Mas, voltando das narrativas históricas para as míticas, inventadas igualmente
sobre Krishna, Buddha e Cristo, encontramos o seguinte:
Apresentando um modelo para o avatâra cristão e para o arcanjo Gabriel, o
luminoso Santushita (Bodhisattva) apareceu a Mahâ-mâyâ “como uma nuvem
ao luar, oriundo do norte, e tendo em suas mãos um lótus branco”. Ele lhe
anunciou o nascimento de seu filho, volteando o leito da rainha por três vezes,
“(...) passou do deva-loka e foi concebido no mundo dos homens”. [68] A
semelhança ficará ainda mais perfeita se examinarmos as ilustrações dos
saltérios medievais, [69] e os afrescos do século XVI (na Igreja de Jouy, por
exemplo, na qual a Virgem é representada de joelhos, com as mãos erguidas
para o Espírito Santo, e a criança por nascer é vista miraculosamente através de
seu corpo), pois descobriremos o mesmo tema tratado de modo idêntico nas
esculturas de certos conventos no Tibete. Nos Anais Páli-Budistas, e em outros
registros religiosos, afirma-se que Mâyâdevî e todas as suas servas eram
constantemente gratificadas com a visão do Bodhisattva desenvolvendo-se
quietamente no útero da mãe, e já espargindo, de seu local de gestação, sobre
a Humanidade, “o resplendente luar de sua futura benevolência”. [70]
Ânanda, o primo e futuro discípulo de Sâkyamuni, é representado como se
tivesse nascido ao mesmo tempo. Esse parece ter sido o original das antigas
lendas sobre João Batista. Por exemplo, a narrativa páli relata que Mahâ-mâyâ,
estando grávida do sábio, fez uma visita à mãe deste, como Maria o fez à mãe
de Baptista. Assim que ela entrou no aposento, o futuro Ânanda saudou o futuro
Buddha-Siddhârtha, que respondeu à saudação; e de igual maneira o futuro João
Baptista pulou no útero de Isabel, assim que Maria entrou. [71] E mais: Didron
descreve uma cena de saudação, pintada nos postigos em Lyons, entre Isabel e
Maria, na qual duas crianças por nascer, ambas desenhadas fora das mães, se
saúdam mutuamente. [72]
Se retornarmos a Krishna e compararmos atentamente as profecias a ele
relacionadas, recolhidas nas tradições ramatsariarianas do Atharva, dos
Vedângas e dos Vedântas, [73] com passagens da Bíblia e dos Evangelhos
apócrifos, alguns dos quais pressagiam talvez a vinda de Cristo, descobriremos
fatos muito curiosos. Eis alguns exemplos:

DOS LIVROS HINDUS [74] DOS LIVROS CRISTÃOS


1. “Ele (o Redentor) virá coroado de luzes, saindo o puro
1. “O Povo da Galiléia dos Gentios, que jazia nas trevas,
fluido da grande alma (...) e dispersando as trevas”
viu uma grande luz” (Mateus, IV, 16, de Isaías, IX, 1, 2).
(Atharva).

2. “No início do Kali-Yuga nascerá o filho da Virgem” 2. “Eis que a jovem conceberá e dará à luz um filho”
(Vedânta). (Isaías, VII, 14, citado em Mateus, I, 23).

3. “E eis que Jesus de Nazaré, com o brilho de sua gloriosa


3. “O Redentor virá, e os malditos Râkshasas procurarão
divindade, expulsou os terríveis poderes das trevas e da
refúgio no inferno mais profundo” (Atharva).
morte” (Nicodemo, XVIII, 3).

4. “Ele virá, e a vida desafiará a morte (...) e ele reviverá o


4. “Eu lhes dou a vida eterna e elas jamais perecerão”
sangue de todos os seres, regenerará todos os corpos e
(João, X, 28).
purificará as almas.”

5. “Ele virá, e todos os seres animados, todas as flores,


5. “Regozijai, filha de Sião! Grita de alegria, filha de
plantas, homens, mulheres, crianças, escravos (...)
Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo (...) Que
entoarão juntos o canto de alegria, pois ele é o Senhor de
riqueza! Que beleza a sua! O trigo fará crescer os jovens,
todas as criaturas (...) ele é infinito, pois é poder, pois é
e o mosto as virgens”. (Zacarias, IX, 9, 17).
sabedoria, pois é beleza, pois é tudo e está em tudo.”

6. “Ele virá, mais doce do que o mel e a ambrosia, mais 6. “Eis o cordeiro de Deus” (João, I, 36). “Como um
puro do que o cordeiro sem mácula” (Ibid.). cordeiro, é conduzido ao matadouro”. (Isaías, LIII, 7).

7. “Bendita és tu dentre as mulheres, e bendito é o fruto do


7. “Feliz o ventre abençoado que o conceberá” (Ibid.). teu ventre!” (Lucas, I, 42); “Feliz o ventre que te gerou” (XI,
27).

8. Jesus “manifestou Sua glória” (João, II, 11). “Pois era


8. “Pois Deus manifestará Sua glória, e proclamará Seu
Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo” (2
poder, e Se reconciliará com Suas criaturas” (Ibid.).
Coríntios, V, 19).

9. “É no ventre de uma mulher que o raio do esplendor 9. “Por ser caso sem paralelos, sem qualquer polução ou
divino receberá uma forma humana, e ela conceberá, profanação, uma virgem que não conheceu a nenhum
sendo virgem, pois nenhum contato a maculará " homem conceberá um filho, e uma donzela conceberá o
(Vedângas). Senhor” (Evangelho do Nascimento de Maria, III, 5).

Por muito que se exagere ou não a antiguidade do Atharva-Veda e dos outros


livros, permanece o fato de que essas profecias e a sua realização antecedem
ao Cristianismo, e que Krishna precede a Cristo. Isso é tudo que precisamos
investigar.
Fica-se muito surpreendido ao se ler a obra Monumental Christianity. Seria difícil
dizer se é mais forte a admiração pela erudição do autor, ou se o espanto em
face de sua argumentação serena e inigualável. Ele reuniu um mundo de fatos
que provam que as religiões, muito mais antigas do que o Cristianismo, de
Krishna, Buddha e Osíris anteciparam até mesmo os símbolos mais
insignificantes daquele. Seus materiais provêm não de papiros forjados, nem de
Evangelhos interpolados, mas de esculturas nas paredes dos templos antigos,
de monumentos, inscrições e outras relíquias arcaicas, apenas mutiladas pelos
martelos dos iconoclastas, o cânone dos fanáticos, e os efeitos do tempo. Ele
nos mostra Krishna e Apolo como bons pastores; Krishna segurando o ânkh
cruciforme e o chakra, e Krishna “crucificado no espaço”, segundo sua
expressão. [75] Sobre essa figura — emprestada pelo Dr. Lundy de Hindoo
Pantheon, de Moor —, pode-se dizer que ela é capaz de petrificar um cristão de
espanto, pois que se trata do Cristo crucificado da arte romana no mais alto grau
de semelhança. Não falta uma única característica; e afirma o autor: [76] “[essa]
imagem, eu a creio anterior ao Cristianismo (...) Ela se assemelha a um crucifixo
cristão em muitos respeitos (...) O desenho, a atitude, e as marcas dos cravos
na mãos e nos pés indicam uma origem cristã, ao passo que a coroa parta de
sete pontas, a ausência do bastão e da inscrição usual, e os raios de glória
acima, parecem indicar um origem diferente da cristã. Seria talvez o Homem-
Vítima, ou o Sacerdote e a Vítima reunidos numa única pessoa, na mitologia
hindu, que se ofereceu a si mesmo como sacrifício antes da criação dos
mundos? Seria talvez o segundo Deus de Platão que se imprimiu no universo na
forma da cruz? Ou seria esse homem divino que foi açoitado, torturado,
agrilhoado, que teve os olhos arrancados, e que por fim (...) foi crucificado?” [77]
É tudo isso e muito mais. A Filosofia Religiosa Arcaica era universal.
Seja como for, o Dr. Lundy contradiz a Moor, [78] e afirma que essa figura é a de
Vithobâ, um dos avatâras de Vishnu, portanto de Krishna, e anterior ao
Cristianismo, o que não é um fato fácil de refutar. E embora acredite que tal
imagem antecipe o Cristianismo, ele pensa que ela não tem qualquer relação
com Cristo! Sua única razão é que “num crucifixo cristão a glória sempre vêm da
cabeça sagrada; aqui ela vem de cima, e detrás (...) O Vithobâ dos pânditas,
dado a Moor, parece ser o Krishna crucificado, o deus pastor de Mathurâ (...) um
Salvador — o Senhor da aliança, assim como Senhor do céu e da Terra — puro
e impuro, luz e treva, bom e mau, pacífico e belicoso, amistoso e colérico, manso
e turbulento, misericordioso e vingativo, Deus e uma estranha mistura de
homem, mas não o Cristo dos Evangelhos”.
Ora, todas essas qualidades pertencem tanto a Jesus como a Krishna. O próprio
fato de que Jesus foi um homem pelo lado da mãe — embora fosse um Deus —
é igualmente corroborativo. Sua atitude para com a figueira e as suas
contradições, em Mateus, onde por um lado promete paz na Terra e por outro a
espada, etc., são provas a esse respeito. Sem dúvida alguma, essa imagem
jamais pretendeu representar Jesus de Nazaré. Ela era a de Vithobâ, como
informaram a Moor, e como, além disso, afirmam as Escrituras Sagradas hindus,
Brahmâ, o sacrificador que é “ao mesmo tempo sacrificador e vítima”; ele é
Brahmâ, vítima em Seu Filho Krishna, que veio para morrer na terra por nossa
salvação, que realiza Ele mesmo o sacrifício solene [do Sarvamedha].” No
entanto, é tanto o homem Jesus como o homem Krishna, pois ambos estavam
unidos aos seus Christos.
Temos assim que, ou admitir as “encarnações” periódicas, ou deixar passar o
Cristianismo como a maior impostura e o maior plágio de todos os séculos!
Quanto às Escrituras judaicas, apenas homens como o jesuíta de Carrière, um
conveniente representante da maioria do clero católico, pode ainda ordenar a
seus seguidores que aceitem apenas a cronologia estabelecida pelo Espírito
Santo. É com base na autoridade deste último que ficamos sabendo que Jacó
foi, com uma família de setenta pessoas, no total, fixar-se no Egito no ano de
2.298, e que em 2.513 — apenas 215 depois — essas setenta pessoas haviam
aumentado tanto, que deixaram o Egito 600.000 fortes homens, aptos à guerra,
“sem contar as mulheres e as crianças”, o que, de acordo com a ciência da
estatística, representaria uma população total de dois a três milhões!! A história
natural não registra nenhum paralelo de tal fecundidade, exceto nos arenques
vermelhos. Depois disso, que riam os missionários cristãos, se puderem, da
cronologia e dos cálculos hindus.
“Felizes são as pessoas, embora não as invejemos”, exclama Bunsen, “que não
se vexam de fazer Moisés marchar com mais de dois milhões de pessoas ao
término de uma conspiração popular, nos alegres dias da 18ª Dinastia; que
fazem os israelitas conquistar Canaã sob Josué, durante, ou antes, das mais
formidáveis campanhas dos faraós conquistadores nesse mesmo país. Os anais
egípcios e assírios, combinados com a crítica histórica da Bíblia, provam que o
êxodo só poderia ter ocorrido sob o reinado de Menephthah, de modo que Josué
não poderia ter cruzado o Jordão antes da Páscoa de 1280, tendo ocorrido a
última campanha de Ramsés III, na Palestina, em 1281.” [79]
Retomemos, porém, o fio de nossa narrativa com Buddha.

Nem Buddha, nem Jesus deixaram relatos escritos


Nem ele, nem Jesus jamais escreveram uma única palavra de suas doutrinas.
Devemos tomar os ensinamentos dos mestres segundo o testemunho dos
discípulos, e temos portanto, o direito de julgar ambas as doutrinas de acordo
com o seu valor intrínseco. Onde mais repousa o peso da lógica, podemos
constatá-lo nos resultados dos frequentes encontros entre os missionários
cristãos e os teólogos budistas (punghi). Estes últimos sempre levaram a melhor
sobre os seus oponentes. Por outro lado, o “Lama de Jeová” raramente
consegue dominar seu temperamento, para grande deleite do Lama de Buddha,
e demonstra praticamente sua religião de paciência, misericórdia e caridade
insultando seus adversários com a linguagem menos canônica que se pode
imaginar. Testemunhamo-lo repetidas vezes.
A despeito da notável semelhança entre os ensinamentos diretos de Gautama e
Jesus, observamos que os seus respectivos seguidores partem de dois pontos
de vista diametralmente opostos. O sacerdote budista, seguindo literalmente a
doutrina ética de seu mestre, permanece assim fiel ao legado de Gautama, ao
passo que o ministro cristão, distorcendo os preceitos registrados pelos quatro
Evangelhos, ensina, não o que Jesus ensinou, mas as interpretações absurdas,
e amiúde perniciosas, de homens falíveis — Papas, Luteros e Calvinos incluídos.
Aqui estão dois exemplos selecionados de ambas as religiões. Deixamos ao
leitor a tarefa de julgá-los:
“Não acrediteis em alguma coisa porque muitos falam dela”, diz Buddha; “não
penseis que isso é uma prova de sua verdade.
“Não acrediteis meramente porque a afirmação escrita de algum antigo sábio o
disse; nunca estareis certos de que o escrito não foi revisado pelo dito sábio, ou
de que se possa nele confiar. Não acrediteis em vossas fantasias, pensando
que, por ser extraordinária uma idéia, ela deve ter sido inculcada por um Deva,
ou por algum ser maravilhoso.
“Não acrediteis em conjecturas, isto é, escolhendo algo ao acaso como um ponto
de partida, e dele tirando conclusões. Antes de contar o dois, o três, e o quatro,
tende bem fixo para vós o número um (...)
“Não acrediteis meramente com base na autoridade de vossos mestres, nem
acrediteis e pratiqueis simplesmente porque eles acreditaram e praticaram.
“Eu [Buddha] vos digo, deveis saber por vós mesmos que ‘isto é mau, isto é
punível, isto é censurado pelos sábios, a crença nisto não trará vantagens a
ninguém, mas causará infelicidade’. E quando souberes isto, evitai-o. [80]
É impossível evitar de contrastar com esses sentimentos humanos e benévolos
as fulminações do Concílio Ecumênico e do Papa contra o uso da razão e a
perseguição à ciência, quando ela se choca contra a revelação. A atroz bênção
papal dos exércitos muçulmanos e a maldição aos cristãos russos e búlgaros
despertaram a indignação de algumas das mais devotas comunidades católicas.
Os Czechs católicos de Praga, por ocasião do recente cinquentenário jubileu de
Pio IX, e também a 6 de julho, o dia consagrado à memória de John Huss, o
mártir queimado, no intuito de assinalar seu horror à política ultramontana a esse
respeito, reuniram-se aos milhares nas cercanias do Monte Zhizhkov, e com
grande cerimônia e denúncias, queimaram o retrato do Papa, seu Sílabo, e a
última oração contra o Csar russo, dizendo que eram bons católicos, mas
melhores eslavos. Evidentemente, a memória de John Huss lhes é mais sagrada
do que a dos Papas do Vaticano.
“O culto das palavras é mais pernicioso do que o culto das imagens”, assinala
Robert Dale Owen. “A gramatolatria é a pior espécie de idolatria. Chegamos a
uma era em que o literalismo está destruindo a fé (...) A letra mata.” [81]
Não há um dogma da Igreja ao qual essas palavras possam ser mais bem
aplicadas do que à doutrina da transubstanciação. [82] “Quem come a minha
carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna”, diz Cristo. “Dura é essa palavra”,
repetiram seus consternados ouvintes. A resposta foi a de um iniciado. “Isto vos
ofende? (...) É o Espírito que vivifica; a carne para nada serve. As palavras
[rêmata, ou ditos arcanos] que vos disse são espírito e Vida.” [João, VI, 54, 61,
63.]
Durante os mistérios, o vinho representava Baco, e o pão, Ceres. [83] O iniciador-
hierofante apresentava simbolicamente, antes da revelação final, vinho e pão ao
candidato que tinha de comer e beber de ambos, em sinal de que o espírito viria
vivificar a matéria, i.e., a sabedoria divina iria entrar em seu corpo através do que
lhe seria revelado. Jesus, em sua fraseologia oriental, assimilava-se
constantemente ao verdadeiro vinho (João, XV, 1). Além disso, o hierofante, o
revelador do Petroma, era chamado de “Pais”. Quando Jesus diz, “Bebei (...)
este é o meu sangue”, tinha ele em mente apenas uma comparação metafórica
de si mesmo com a vinha, que produz a uva, cujo suco é seu sangue — vinho.
Era essa uma indicação de que, tendo ele sido iniciado pelo “Pai”, desejava
também iniciar os outros. Seu “Pai” era o agricultor, ele a vinha, seus discípulos
os ramos. Seus seguidores, por ignorarem a terminologia dos Mistérios, ficaram
surpresos; ele tomaram suas palavras como uma ofensa, o que não é de
surpreender, considerando a proibição mosaica do sangue.
Há vários indícios, nos quatro evangelhos, para indicar qual era a esperança
secreta e mais ardente de Jesus, com a qual começou a ensinar e com a qual
morreu. Em seu imenso e desprendido amor pela Humanidade, ele considerou
injusto privá-la dos resultados do conhecimento adquirido por uns poucos. Esse
resultado, ele o prega coerentemente — a unidade de um Deus espiritual, cujo
templo está dentro de cada um de nós, e em quem vivemos assim como Ele vive
em nós — em espírito. Esse conhecimento estava nas mãos dos adeptos judeus
da escola de Hillel e dos cabalistas. Mas os “escribas”, ou legisladores, tendo
mergulhado gradualmente no dogmatismo da letra morta, há muito haviam se
separado dos Tannaim, os verdadeiros mestres espirituais; e os cabalistas
práticos eram mais ou menos perseguidos pela Sinagoga. Eis por que Jesus
exclama: “Ai de vós, legisladores, pois tomastes as chaves do conhecimento à
Gnose: Vós mesmos não entrastes, e impedistes os que queriam entrar” (Lucas,
XI, 52). O sentido aqui é claro. Eles tomaram a chave, e não puderam tirar
proveito dela, pois a Masorah (tradição) se havia tornado um livro fechado, tanto
para eles como para outros.

Os grandes mistérios da religião na Bhagavad-Gîtâ


Nem Renan, nem Strauss, nem o mais moderno Visconde Amberley parecem
ter sequer suspeitado do verdadeiro sentido de muitas das parábolas de Jesus,
ou mesmo do caráter do grande filósofo galileu. Renan, como vimos, apresentou-
o como um rabino galicizado, “le plus charmant de tous”, mas ainda um rabino,
que, além disso, não veio da escola de Hillel, ou de qualquer outra, embora ele
o chame repetidamente de “o doutor encantador”. [84] Ele o mostra como um
jovem entusiasta e sentimental, oriundo das classes baixas da Galiléia, que
imagina o rei ideal de suas parábolas como os seres empurpurados e cobertos
de jóias com que tomamos contato nos contos de fadas.
O Jesus de Lorde Amberley, por outro lado, é um “idealista iconoclasta”, muito
inferior em sutileza e lógica a seus críticos. Renan contempla Jesus com a
unilateralidade de um semita maníaco; Visconde Amberley encara-o do plano
social de um lorde inglês. A propósito dessa parábola sobre a festa de
casamento, que ele considera como a encarnação de “uma curiosa teoria de
comunhão social”, diz o Visconde: “Ninguém pode impedir que indivíduos
caridosos peçam a pessoas pobres ou inválidas sem nenhuma categoria que
venham cear em suas casas (...) Mas não podemos admitir que essa espécie de
ação venha a se tornar obrigatória (...) é certamente desejável que façamos
exatamente aquilo que Cristo nos proibiria de fazer, a saber, convidarmos nossos
vizinhos e sermos convidados por eles, quando as circunstâncias possam
requerê-lo. O medo de que possamos receber uma recompensa pelos jantares
que possamos dar é seguramente quimérica (...) Jesus, de fato, menospreza por
inteiro o lado mais intelectual da sociedade (...)”. [85] Tudo isso mostra
inquestionavelmente que o “Filho de Deus” não era mestre da etiqueta social,
nem digno da “sociedade”, mas é também um bom exemplo da incompreensão
predominante mesmo de suas parábolas mais sugestivas.
A teoria de Anquetil-Duperron, [86] segundo a qual a Bhagavad-Gîtâ é uma obra
independente, visto que não consta de vários manuscritos do Mahâ-bhârata,
pode ser tanto uma prova de sua maior antiguidade quanto o contrário. A obra é
puramente metafísica e ética, e num certo sentido é antivédica, porquanto está,
pelo menos, em oposição a muitas das posteriores interpretações bramânicas
dos Vedas. Como se explica então que, em lugar de destruir a obra, ou, pelo
menos, de considerá-la anticanônica — um expediente ao qual a Igreja Cristã
jamais deixou de recorrer —, os brâmanes mostram por ela a maior reverência?
Perfeitamente unitarista em seu objetivo, ela colide com o culto popular dos
ídolos. Além disso, a única precaução tomada pelos brâmanes para impedir uma
ampla divulgação de seus dogmas, foi preservá-lo mais secreto do que qualquer
outro livro religioso das demais castas, exceto a sacerdotal; e impor mesmo
sobre essa, em muitos casos, certas restrições. Os maiores mistérios da religião
bramânica estão abarcados nesse magnífico poema; e mesmo os budistas o
reconhecem, explicando certas dificuldades dogmáticas à sua própria maneira.
“Sê desprendido, subjuga teus sentidos e tuas paixões, que obscurecem a razão
e conduzem à ilusão”, diz Krishna a seu discípulo Arjuna, enunciando assim um
princípio puramente budista. “Os pequenos homens seguem os exemplos, os
grandes os dão (...) a alma deve libertar-se dos vínculos da ação, e agir
absolutamente de acordo com a sua origem divina. Só há um Deus, e todas as
outras devatâs são inferiores, e meras formas, poderes de Brahmâ ou de mim
mesmo. A adoração por feitos predomina sobre a da contemplação.” [87]
Essa doutrina coincide perfeitamente com a de Jesus. [88] Só a fé, que não é
acompanhada de “obras”, é reduzida a zero na Bhagavad-Gîtâ. Quanto ao
Atharva-Veda, ele foi e ainda é preservado em tal segredo pelos brâmanes que
constitui assunto de dúvida saber se os orientalistas têm uma cópia completa
dele. Quem quer que tenha lido o que o Abade J. A. Dubois diz sobre o assunto
poderá duvidar do fato. “Das últimas espécies” — o Atharva — “há
pouquíssimas”, diz ele, ao escrever sobre os Vedas, “e muitas pessoas supõem
que ele não existe mais. Mas a verdade é que ainda existem, sim, mas ocultas
com mais cuidados do que outros, por medo de serem tomados como iniciados
nos mistérios mágicos e outros terríveis segredos que segundo se acredita esta
obra ensina”. [89]
Mesmo entre os epoptai superiores dos mistérios maiores havia aqueles que
nada sabiam do último e terrível rito — a transferência voluntária de vida do
hierofante ao candidato. Em Ghost-Land, [90] essa operação mística da
transferência do adepto de sua entidade espiritual, após a morte de seu corpo,
no jovem que ele ama com todo o amor ardente de um pai espiritual, é descrita
soberbamente. Como no caso da reencarnação dos lamas do Tibete, um adepto
da ordem superior pode viver indefinidamente. Sua casca mortal se desgasta,
não obstante certos segredos alquímicos que prolongam o vigor juvenil muito
além dos limites usuais, embora o corpo raramente possa manter-se vivo além
de dez ou doze anos. O velho envoltório é então esgotado, e o Ego espiritual
forçado a deixá-lo, escolhe para sua morada um novo corpo, fresco e cheio do
sadio princípio vital. Caso o leitor se sinta inclinado a ridicularizar essa afirmação,
sobre o possível prolongamento da vida humana, podemos remetê-lo às
estatísticas de vários países. O autor de um excelente artigo na Westminster
Review de outubro de 1850, é responsável pela asserção de que na Inglaterra
há o exemplo autêntico de um certo Thomas Jenkins, que morreu com a idade
de 169 anos, e o de “Old Parr”, aos 152 anos; * e na Rússia alguns camponeses
são “conhecidos pelo fato de terem atingido 242 anos”. [91] Há também casos de
centenários registrados entre os índios peruanos. Estamos cientes de que vários
autores desacreditaram recentemente essas pretensões quanto a uma extrema
longevidade, mas, no entanto, afirmamos nossa crença em sua verdade.
* Acredita-se que Thomas Parr, “Old Parr”, tenha nascido em Winnington, em 1483. A fonte
principal de informações a seu respeito é Old, Old, Very Old Man, de John Taylor, um panfleto
barato publicado em 1635 e desde então frequentemente reimpresso. Parr passou a maior parte
de sua vida em sua terra natal, na pequena propriedade que herdou de seu pai. Casou-se pela
primeira vez aos dezoito anos e, pela segunda, com 122. Trinta anos depois foi levado a Londres
por Thomas Howard, segundo Conde de Arundel, e foi apresentado ao Rei em setembro de
1635. A mudança de vida e a pletora de uma rica dieta lhe foram fatais e ele morreu a 14 de
novembro de 1635, na casa de Lord Arundel. Uma autópsia feita no dia seguinte pelo famoso
William Harvey, revelou que os órgãos principais de Old Parr estavam em perfeitas condições.
Parr foi posteriormente enterrado no transepto sul da Abadia de Westminster, onde há uma
inscrição no piso de pedra que fornece suas datas e afirma que possuía 152 anos de idade e
que viveu sob dez Reis e Rainhas.
Consultar Dict. of National Biography, onde podem ser encontrados dados bibliográficos
detalhados e fontes de informação. (N. do Org.)

Verdadeiras ou falsas, há “superstições” entre os povos orientais com que nunca


sonharam Edgar Alan Poe ou Hoffmann. E essas crenças estão no próprio
sangue das nações em que tiveram origem. Se cuidadosamente escoimadas dos
exageros, descobriremos que elas encarnam uma crença universal nas almas
astrais incansáveis e errantes chamadas de fantasmas e vampiros. Um Bispo
armênio do século V, de nome Eznik, dá várias de tais narrativas numa obra
manuscrita (Livro I, § 20, 30), preservada há cerca de trinta anos na biblioteca
do Mosteiro de Etchmiadzin. [92] * Entre outras, há uma tradição que data dos
dias do paganismo, segundo a qual sempre que morre no campo de batalha um
herói cuja vida ainda é necessária na terra, os aralezes, os deuses populares da
antiga Armênia, fecham as feridas do cadáver e sopram nele até infundir-lhe
nova e vigorosa vida física. Depois disso, o guerreiro se levanta, apaga todos os
traços de suas feridas, e retoma seu lugar na luta. Mas seu espírito imortal parte;
e para o resto de seus dias ele vive — como um templo deserto.
* Eznik Kulpskiy (também pronunciado Yeznik) foi um teólogo e escritor armênio do século V. Foi
Bispo de Bagrevand e de Arsharunik e autor de Refutation of the Sects, cujo texto armênio foi
publicado em Constantinopla, em 1763, em Esmirna, em 1772 e em Veneza, em 1826 e 1863.
Uma tradução francesa apareceu em Paris, em 1853, e uma alemã, em 1927. A obra pode ser
encontrada em Patrologia Orientalis, vol. XXVIII, nºs 3-4. Embora H. P. B. fale dela como um
manuscrito, é provável que se refira à obra mencionada acima. (N. do Org.)

Uma vez iniciado o candidato no último e mais solene mistério da transferência


de vida, o terrível sétimo rito da grande operação sacerdotal, que é a teurgia
superior, não mais pertence ele a este mundo. Sua alma ficava então livre, e os
sete pecados mortais que estavam à espera para devorar-lhe o coração, (pois a
alma, liberada pela morte, estaria cruzando as sete câmaras e as sete escadas),
não mais poderiam afligi-lo; ele havia passado pelos “catorze julgamentos”, os
doze trabalhos da hora final. [93]
Só o Sumo Hierofante sabia como realizar essa solene operação infundindo sua
própria vida e sua alma astral no adepto escolhido por ele como seu sucessor, e
que assim se tornava dotado de uma vida dupla. [94]

O sentido da regeneração explicado no


Satapatha-Brâhmana
“Em verdade, em verdade te digo, quem não nascer de novo não pode ver o
reino de Deus” (João, III, 3). Disse Jesus a Nicodemos: “O que nasceu da carne
é carne, o que nasceu do Espírito é espírito”.
Essa alusão, tão ininteligível em si mesma, é explicada no Satapatha-Brâhmana.
Ele ensina que um homem que se esforça pela perfeição espiritual deve ter três
nascimentos: 1º, o físico, de seus pais mortais; 2º, o espiritual, através do
sacrifício religioso (iniciação). 3º, seu nascimento final no mundo do espírito —
na morte. Embora possa parecer estranho que devamos ir à antiga terra do
Puñjâb e às margens do Ganges sagrado em busca de um intérprete para as
palavras ditas em Jerusalém e expostas às margens do Jordão, o fato é evidente.
Esse segundo nascimento, ou regeneração do espírito, após o nascimento
natural do que é nascido da carne, pode ter espantado o legislador judeu. Não
obstante, ele foi ensinado 3.000 anos antes do aparecimento do grande profeta
galileu, não apenas na Índia antiga, mas a todos os epoptai da iniciação pagã,
que foram instruídos nos grandes mistérios da VIDA e da MORTE. Esse segredo
dos segredos, segundo o qual a alma não está soldada à carne, foi praticamente
demonstrado no exemplo dos iogues, os seguidores de Kapila. Tendo
emancipado suas almas dos grilhões da Prakriti, ou Mahat (a percepção física
dos sentidos e da mente — numa palavra, criação), eles então desenvolveram
sua força de alma e sua força de vontade, habilitando-se, assim, enquanto na
terra, a comunicar-se com os mundos supernos e a realizar o que é
erroneamente chamado de “milagres”. [95] Homens cujos espíritos astrais
atingiram na terra o naihsreyasa, ou a mukti, são semideuses; espíritos
desencarnados, eles alcançam Moksha ou Nirvâna, e esse é o seu segundo
nascimento espiritual.

Interpretação do sacrifício do sangue


Buddha ensina a doutrina de um novo ensinamento de modo tão claro quanto
Jesus. Desejando romper com os mistérios antigos, a cujo acesso as massas
ignorantes não tinham direito, o reformador hindu, embora mantivesse um
silêncio geral sobre mais de um dogma secreto, afirma claramente seu
pensamento em várias passagens. Assim, diz ele: “Algumas pessoas nascem
novamente; os pecadores vão ao Inferno; as pessoas virtuosas vão ao Céu;
aqueles que estão livres de todos os desejos mundanos penetram no Nirvâna”
(Dhammapada, 126). Noutro lugar, Buddha afirma que é melhor acreditar numa
vida futura, na qual se pode examinar a felicidade ou a miséria; pois se o coração
acreditar nela, “ele abandonará o pecado e agirá virtuosamente; e mesmo se
não houver ressurreição, uma tal vida terá um bom nome, e o respeito dos
homens. Mas aqueles que acreditam na extinção após a morte não deixarão de
cometer os pecados, porquanto nada esperam no futuro. [96]
A Epístola aos Hebreus trata do sacrifício do sangue. “Onde existe um
testamento”, diz o autor, “é necessária a morte do testador (...) Sem o
derramamento de sangue não há remissão. E também: “Cristo não se atribui a
glória de tornar-se sumo sacerdote; mas ele a recebeu daquele que lhe disse:
Tu és o meu filho, HOJE EU TE GEREI” (Hebreus., V, 5). Essa é uma clara
inferência de que 1º, Jesus era considerado apenas à luz de um sumo sacerdote,
como Melquisedeque — outro avatâra, ou encarnação de Cristo, de acordo com
os Padres; e 2º, que o autor pensava que Jesus se havia tornado um “Filho de
Deus” apenas no momento de sua iniciação pela água; portanto, que ele não
havia nascido deus, nem havia sido fisicamente gerado por Ele. Todo iniciado da
“última hora” se torna, pelo próprio fato de sua iniciação, um filho de Deus.
Quando Máximo, o Efésio, iniciou o Imperador Juliano nos mistérios de Mithra,
ele pronunciou, como fórmula usual do rito, a seguinte: “Por este sangue, eu te
lavo de teus pecados. A Palavra do Supremo entrou em ti, e Seu Espírito
doravante repousará sobre o RECÉM-NASCIDO do Deus Superior (...) Tu és o
filho de Mithra”. “Tu és O ‘Filho de Deus’”, repetiram os discípulos após o batismo
de Cristo. Quando Paulo sacudiu a víbora no fogo sem sofrer nenhum mal, o
povo de Melita disse: “que ele era um deus” (Atos, XXVIII, 6). “Ele é o filho de
Deus, o Belo!”, essa a fórmula utilizada pelos discípulos de Simão Mago, pois
pensavam reconhecer nele o “grande poder de Deus”.
O homem não pode ter nenhum deus que não esteja limitado por suas próprias
concepções humanas. Quanto mais amplo for o alcance de sua visão espiritual,
mais poderosa será a sua divindade. Mas onde podemos encontrar uma melhor
demonstração d’Ele do que no próprio homem; nos poderes espirituais e divinos
que jazem adormecidos em todo ser humano? “A própria capacidade de imaginar
a possibilidade de poderes taumatúrgicos é uma evidência de que eles existem”,
diz o Dr. A. Wilder. “O crítico, assim como o cético, geralmente é inferior à pessoa
ou assunto que está sob sua consideração, e, por conseguinte, dificilmente será
uma testemunha competente. Se há falsificações, algo deve ter sido um original
genuíno.” [97]
O sangue gera fantasmas, e suas emanações fornecem a certos espíritos os
materiais necessários para moldar suas aparições temporárias. “O sangue”, diz
Lévi, “é a primeira encarnação do fluido universal; é a luz vital materializada. Seu
nascimento é a mais maravilhosa de todas as maravilhas da natureza; ele vive
apenas se se transforma perpetuamente, pois é o Proteu universal. O sangue
provém de princípios em que nada havia dele antes, e torna-se carne, ossos,
cabelo, unhas (...) lágrimas, e respiração. Não pode se aliar nem à corrupção,
nem à morte; quando a vida se vai, ele começa a se decompor; se souberes
como reanimá-lo, infundir vida nele por uma nova magnetização de seus
glóbulos, a vida retornará. A substância universal, com o seu duplo movimento,
é o grande arcano do ser; o sangue é o grande arcano da vida.”
“O sangue”, diz o hindu Ramatsariar, “contém todos os misteriosos segredos da
existência, pois nenhum ser vivo pode existir sem ele. É profanar a grande obra
do Criador o ato de comer sangue.”
Por sua vez, Moisés, seguindo a lei universal e tradicional, proíbe comer o
sangue.
Paracelso escreve que com os vapores do sangue é possível evocar qualquer
espírito que desejemos ver; pois com suas emanações ele construirá uma figura,
um corpo visível — apenas isso é feitiçaria. Os hierofantes de Baal faziam
profundas incisões em seus corpos, gerando aparições objetivas e tangíveis com
seu próprio sangue. Os seguidores de uma certa seita na Pérsia, muitos dos
quais podem ser encontrados nas colônias russas de Temir-Khân-Shura, e
Derbent, têm seus mistérios religiosos com o qual formam um largo círculo, e
rodopiam à volta com uma dança frenética. Seus templos estão arruinados, e
eles fazem o seu culto em grandes edificações provisórias, seguramente
guardadas, e com o andar térreo profundamente fechado por areia. Todos
vestem longos mantos brancos, e suas cabeças descobertas e cuidadosamente
raspadas. Armados de facas, eles logo atingem um estado de furiosa exaltação,
e ferem a si mesmos e aos outros até que suas vestes e a areia do chão estejam
coalhadas de sangue. Antes do término do “mistério”, todo homem terá uma
companhia, que rodopiará com ele. Às vezes, os dançarinos espectrais terão
cabelos em suas cabeças, que os deixarão muito diferentes dos seus
inconscientes criadores. Como prometemos solenemente jamais divulgar os
principais detalhes dessa terrível cerimônia (que tivemos a permissão de
presenciar por uma única vez), não insistiremos mais neste ponto. [98] *
* O domínio de Tarkov teve existência independente, no Daguestão, do século VIII a 1867,
quando se tornou distrito de Temir-Khân-Shura, no Império Russo. Ao longo dos muitos séculos
de sua história, e das guerras com vários exércitos invasores, Tarkov foi governado por
indivíduos que portavam o título de Shambal e cujo domínio se estendeu ao longo das margens
do Mar Cáspio, entre os rios Koysu e Orusay-Bulak.

Shamdudin-Khân foi o último dos Shambal de Tarkov e se retirou da participação ativa nos
negócios do domínio a 20 de abril de 1867, quando a administração russa assumiu a sua direção.
Ele continuou, todavia, a exercer uma grande influência, devido ao seu caráter honesto e à suas
grandes habilidades. Aparentemente H. P. B. encontrou-se com ele um pouco antes de seu
afastamento, quando sua soberania foi dividida com um oficial residente russo. (N. do Org.)

Na Antiguidade, as feiticeiras de Tessália acrescentavam às vezes ao sangue


de um carneiro negro o de uma criança, e assim evocavam as sombras. Os
sacerdotes eram instruídos na arte de evocar os espíritos dos mortos, assim
como os dos elementos, mas a sua maneira era certamente diversa da das
feiticeiras de Tessália.
Entre os Yakuts da Sibéria, há uma tribo que habita os confins das regiões de
Transbaikal, nas proximidades do rio Vitema (Sibéria oriental), que pratica a
feitiçaria tal como era conhecida nos dias das feiticeiras da Tessália. Suas
crenças religiosas são uma curiosa mistura de filosofia e superstição. Eles têm
um deus principal ou supremo, Ay.Toyon, que não criou, dizem eles, mas apenas
preside a criação de todos os mundos. Ele vive no nono céu, e é apenas do
sétimo que os outros deuses menores — seus servos — se podem manifestar
às suas criaturas. Esse nono céu, de acordo com a revelação das divindades
menores (espíritos, supomos), tem três sóis e três luas, e o chão de sua morada
é formado de quatro lagos (os quatro pontos cardeais) de “ar suave” (éter), em
vez de água. Visto que não oferecem sacrifícios à Divindade Suprema, pois esta
não precisa deles, eles tentam propiciar, tanto as boas, como as más divindades,
que eles chamam, respectivamente, de deuses “brancos” e “negros”. Eles o
fazem porque nenhuma das duas classes é boa ou má por causa de seu mérito
ou demérito pessoal. Como todos estão sujeitos ao Ay.Toyon Supremo, e cada
qual tem de cumprir o dever que lhe foi atribuído desde a eternidade, eles não
são responsáveis, seja pelo bem, seja pelo mal que produzem neste mundo. A
razão dada pelo Yakuts para tais sacrifícios é muito curiosa. Os sacrifícios, dizem
eles, ajudam cada classe de deuses a realizar a sua missão da melhor maneira
possível, e assim agradar ao Supremo; e todo mortal que ajuda um deus a
realizar seu dever deve, por conseguinte, agradar igualmente ao Supremo, pois
ele terá auxiliado a justiça. Assim como os deuses “negros” são inculpados de
provocar doenças, males e todas as espécies de calamidades à Humanidade,
cada uma das quais é uma punição por alguma transgressão, os Yakuts lhes
oferecem sacrifícios “sangrentos” de animais, ao passo que aos “brancos” eles
fazem oferendas puras, que consistem geralmente de um animal consagrado a
algum deus especial e tratado com muito cuidado, a ponto de se tornar sagrado.
Segundo suas idéias, as almas dos mortos tornam-se “sombras”, e são
condenadas a errar sobre a Terra, até que certas mudanças ocorram, seja para
melhor, seja para pior, o que os Yakuts não pretendem explicar. As sombras
luminosas, i.e., as das boas pessoas, tornam-se guardiãs e protetoras das que
as amam na Terra; as sombras “negras” (as malvadas) procuram sempre, ao
contrário, afligir àquelas que conhecem, incitando-as a crimes, más ações, e
causando injúrias aos mortais. Além desses, como os antigos caldeus, eles
contam com sete Sheitans (demônios) divinos, ou deuses menores. É durante
os sacrifícios de sangue, que ocorrem à noite, que os Yakuts evocam as sombras
más ou tenebrosas, para lhes perguntar o que podem fazer para cessar sua
maldade; por essa razão, o sangue é necessário, pois sem os seus vapores, os
fantasmas não poderiam se tornar visíveis, e se tornariam, segundo sua
concepção, apenas mais perigosos, pois sugariam o sangue das pessoas vivas
por meio da transpiração. [99] Quanto às sombras boas e luminosas, elas não
precisam ser evocadas; além disso, tal ato as perturba; elas podem fazer sentir
sua presença, quando necessária, sem qualquer preparativo ou cerimônia.
A evocação pelo sangue também é praticada, embora com um propósito
diferente, em várias partes da Bulgária e da Moldávia, especialmente nos
distritos vizinhos aos muçulmanos. As terríveis opressões e a escravidão a que
esses infortunados cristãos ficaram sujeitos por séculos tornou-os mil vezes mais
impressionáveis, e ao mesmo tempo mais supersticiosos, do que aqueles que
vivem nos países civilizados. Todos os anos, a sete de maio, os habitantes de
todas as cidades ou aldeias moldavo-valáquias e búlgaras têm o que elas
chamam de “festa dos mortos”. Depois do crepúsculo, massas imensas de
homens e mulheres, cada qual com um círio na mão, acorrem aos cemitérios, e
rezam nas tumbas dos amigos mortos. Essa antiga e solene cerimônia, chamada
de Trizna, é uma reminiscência dos primitivos ritos cristãos, mas muito mais
solene, quando sob a escravidão muçulmana. Todos os túmulos são
ornamentados com uma espécie de armário, de cerca de meio metro de altura,
construído com quatro pedras, e com duas portas dobráveis. Essas caixas
contêm o que se chama de utensílios do defunto, a saber: uns poucos círios,
algum óleo e uma lâmpada de barro, que é iluminada nesse dia, e queima por
vinte e quatro horas. As pessoas ricas têm lâmpadas de prata ricamente
cinzeladas, e imagens cravejadas de jóias, que estão a salvo dos ladrões, pois,
no cemitério, os armários ficam abertos. Tal é o medo da população (muçulmana
e cristã) da vingança dos mortos que um ladrão capaz de cometer qualquer
assassínio jamais ousaria tocar a propriedade de uma pessoa morta. Os
búlgaros acreditam que todo sábado, e especialmente toda véspera do domingo
de Páscoa, até o Dia da Trindade (cerca de sete semanas), as almas dos mortos
descem à Terra, algumas para pedir perdão aos vivos a quem fizeram mal;
outras para proteger seus entes queridos e com eles comungar. Seguindo
fielmente os ritos tradicionais de seus antepassados, os nativos, a cada sábado
dessas sete semanas, mantêm suas lâmpadas ou círios acesos. Em adição a
isso, a sete de maio eles encharcam os túmulos com vinho, e queimam incenso
ao redor deles, do crepúsculo à aurora. Para os habitantes das cidades, a
cerimônia se limita a essas simples observâncias. Para alguns dos camponeses,
no entanto, o rito assume as proporções de uma evocação teúrgica. Na véspera
do Dia da Ascensão, as mulheres búlgaras acendem vários círios e velas; os
vasos são colocados sobre tripés, e o incenso perfuma a atmosfera por
quilômetros, enquanto grossas nuvens brancas de fumaça envolvem os túmulos,
como se um véu os separasse. Durante o entardecer e até antes da meia-noite,
em memória dos mortos, os familiares e um certo número de mendigos são
alimentados e tratados com vinho e rakíya (uísque de vinho), e dinheiro é
distribuído aos pobres, de acordo com os meios dos parentes sobreviventes.
Quando a festa termina, os convidados se aproximam do túmulo e, dirigindo-se
ao defunto pelo nome, o agradecem pelos prêmios recebidos. Quando todos
partem, exceto os parentes mais próximos, uma mulher, geralmente a mais
idosa, fica só com o morto, e — dizem alguns — recorre à cerimônia da
invocação.
Após ardentes preces, repetidas com a face voltada para o túmulo, mais ou
menos gotas de sangue são extraídas de perto de seu seio esquerdo, e
derramadas sobre o jazigo. Isso dá força ao espírito invisível que paira ao redor,
para assumir por uns poucos instantes uma forma visível, e sussurrar suas
instruções ao teurgista cristão — se ele tem alguma para oferecer, ou
simplesmente “abençoar o pranteador” e então desaparecer novamente até o
ano seguinte. Tão firmemente enraizada é essa crença que ouvimos o caso de
uma família em dificuldades, na qual a mulher moldávia apelava à sua irmã para
adiar todas as decisões até a noite da Ascensão, quando então o pai morto seria
capaz de lhes dizer qual era a sua vontade pessoalmente, com o que a irmã
concordou, como se o pai estivesse simplesmente no quarto ao lado.
Que há segredos terríveis na Natureza, eis algo em que podemos acreditar
quando, como vimos no caso do znachar’ russo, o feiticeiro não pode morrer
enquanto não passar a palavra a outro, e os hierofantes da Magia Branca
realmente o fazem. Parece que o poder terrível da “Palavra” só poderia ser
confiado a um homem de um certo distrito ou corpo de pessoas ao mesmo
tempo. Quando o Brahmâtma estava prestes a deixar o fardo da existência física,
ele comunicava seu segredo ao seu sucessor, seja oralmente, seja por meio de
um escrito colocado numa caixa seguramente aferrolhada e ao alcance apenas
do legatário. Moisés “depôs as mãos” sobre seu neófito, Josué, nas solidões de
Nebo, e partiu. Aarão inicia Eleazar no Monte Hor, e morre. Siddhârta-Buddha
promete a seus mendigos que antes da morte viverá naquele que o merecer,
abraça seu discípulo favorito, murmura em seu ouvido, e morre; e assim que a
cabeça de João repousa no regaço de Jesus, é informado de que ele deverá
demorar até a sua volta. Tal como as fogueiras de comunicação dos tempos
antigos, que, acesas e extintas alternadamente no topo das montanhas,
transmitiam certas informações por um longo trecho do país, vemos assim uma
longa linhagem de homens “sábios”, desde o início da história até os nossos
tempos, comunicando a palavra da sabedoria aos seus sucessores diretos.
Passando de profeta a profeta, a “Palavra” cintila como relâmpago, e, retirando
embora para sempre o iniciador da visão humana, apresenta o novo iniciado.
Entrementes, as nações se matam umas às outras em nome de outra “Palavra”,
uma substância vazia aceita literalmente por cada uma delas, e mal interpretada
por todas!
Temos poucas seitas que de fato praticam a feitiçaria. Uma delas é a dos
Yezîdis, considerados por alguns como um ramo dos Curdos, embora isso nos
pareça errôneo. Habitam principalmente as regiões montanhosas e desoladas
da Turquia asiática, nos arredores de Mosul, e são encontrados também na Síria
[100] e na Mesopotâmia. São chamados por toda parte de adoradores do
demônio, e com certeza não foi por ignorância ou rebaixamento mental que se
entregaram ao culto e a uma regular intercomunicação com os mais baixos e
mais maliciosos elementais e elementares. Eles reconhecem a maldade atual do
chefe dos “poderes negros”, mas ao mesmo tempo temem seu poder, e portanto
tentam captar seus favores. Ele está numa luta aberta com Alá, dizem eles, mas
uma reconciliação pode ocorrer entre os dois em algum dia; e aqueles que
mostram marcas de seu desrespeito ao “princípio negro” atualmente, podem
sofrer por isso num tempo futuro, e ter tanto Deus, como o Demônio, contra si.
Essa é simplesmente uma política astuciosa que procura propiciar a sua
majestade satânica, que não é outro senão Tchermo-bog (o deus negro) dos
Variago-Russos, os antigos russos idólatras de antes dos dias de Vladimir.
Como J. Wier, o famoso demonógrafo do século XVI (que em sua
Pseudomonarchia Daemonum descreve e enumera uma corte infernal regular,
que tem seus dignitários, príncipes, duques, nobres e oficiais), os Yezîdis têm
todo um panteão de demônios, e utilizam os Yakshas, os espíritos aéreos, e os
afrits do deserto, para transmitir suas preces e seus respeitos a Satã, seu mestre.
Durante suas cerimônias de devoção, eles juntam as mãos e formam imensos
círculos, com seu Xeque, ou um sacerdote oficiante, no meio, que bate palmas,
e entoa versos em louvor de Sheitan (Satã). Eles então rodopiam e saltam.
Quando o frenesi chega a seu clímax, eles se ferem e cortam com adagas,
prestando ocasionalmente o mesmo serviço aos seus vizinhos. Mas suas feridas
não cicatrizam tão facilmente, como no caso dos lamas e dos homens santos,
pois não raramente caem vítimas dos flagelos auto-inflingidos. Enquanto
dançam e brandem as adagas sem as soltar das mãos — pois isso seria
considerado como sacrílego, e o encanto se quebraria instantaneamente —, eles
lisonjeiam e reverenciam Sheitan, e o induzem a manifestar-se em suas obras
por meio dos “milagres”. Como seus ritos são realizados principalmente durante
a noite, eles não deixam de obter manifestações de diversos tipos, a menor das
quais são enormes globos de fogo que tomam a forma dos animais mais
estranhos.
A Sra. Hester Stanhope, * cujo nome por muitos anos foi prezado nas
fraternidades maçônicas do Oriente, testemunhou pessoalmente, ao que dizem,
várias dessas cerimônias yezîdianas. Informou-nos um ‘Uqqal da seita dos
drusos que, após ter estado presente a uma de suas “missas do demônio”, como
elas são chamadas, essa extraordinária senhora, tão considerada pela coragem
pessoal e pela audaciosa bravura, desmaiou e, não obstante o seu traje
masculino de Emir, foi chamada à vida com a maior dificuldade. Pessoalmente,
lamentamos dizer, todos os nossos esforços para testemunhar uma dessas
cerimônias falharam.
* Lady Hester Lucy Stanhope era a filha mais velha de Charles, Visconde Mahon (depois, o
Terceiro Conde Stanhope), com sua primeira esposa, Lady Hester Pitt, irmã do famoso William
Pitt. Nasceu a 12 de março de 1776 e viveu na propriedade de seu pai em Chevening, Kent, até
mais ou menos 1800, quando sua disposição instável a levou à casa de sua avó. Em 1803,
tornou-se a líder da casa de seu tio, William Pitt, onde logo se tornou sua confidente mais segura.
Possuía sagacidade, beleza e talento para os negócios. Após a morte de Pitt, em 1806,
permaneceu durante algum tempo em Londres e Gales. Aborrecida com as restrições da
sociedade, deixou a Inglaterra e partiu para o Levante, em 1810, e, depois de muitas andanças,
fixou-se entre os drusos do Monte Líbano, onde o paxá de Acre lhe cedeu as ruínas de um
convento e a aldeia de Dahar-Juni. A partir de um grupo de casas que construiu ali, cercadas por
um muro semelhante a uma fortaleza, ela exerceu uma autoridade quase absoluta sobre alguns
dos distritos vizinhos, mantida por seu caráter dominador e pela crença de que ela possuía o
dom da adivinhação. Intrigou-se contra os cônsules britânicos e exerceu alguma influência sobre
o próprio paxá Ibrahim. Com o passar do tempo, adotou as maneiras e os costumes orientais,
praticou a astrologia e se diz que acreditava na “transmigração” de almas, seja lá qual o sentido
que se dava a essa expressão. Fez muitas dívidas e a parte principal de sua pensão foi tomada
pelo Governo da Inglaterra para pagar os credores. Sofreu muito com esse fato e trancou-se em
seu castelo, cujos portões foram fechados. Morreu ali a 23 de junho de 1839, sendo enterrada
em seu próprio jardim. Em 1845, apareceram três volumes das Memoirs of the Lady Hester
Stanhope as related by herself in Conversations with her Physician (Dr. Charles Lewis Meryon,
que esteve com ela durante muitos anos); foram seguidos por outros três, de Travels, escritos
pela mesma pena. Em suma, Lady Stanhope foi um caráter muito excêntrico e estranho. (N. do
Org.)
Um artigo recente de um jornal católico sobre nagual e vodu acusa o Haiti de ser
o centro das sociedades secretas, com formas terríveis de iniciação e ritos
sanguinolentos, onde crianças humanas são sacrificadas e devoradas pelos
adeptos (!!). Piron, um viajante francês, é longamente citado, em sua descrição
de uma terrível cena testemunhada por ele em Cuba, na casa de uma senhora
que ele jamais suspeitara de ter qualquer relação com seita tão monstruosa.
“Uma jovem branca, nua, agia como sacerdotisa vodu, levada ao frenesi por
danças e encantamentos que se seguiram ao sacrifício de duas galinhas, uma
branca e outra preta. Uma serpente, treinada para o papel, e que dançava
conforme a música, enrolava-se nos membros da jovem, e seus movimentos
eram estudados pelos participantes que dançavam ao redor ou observavam
suas contorções. O espectador fugiu por fim, horrorizado, quando a pobre jovem
caiu ao solo presa de um ataque epiléptico.”

A desmoralização da Índia Britânica


pelos missionários cristãos
Embora deplorando esse estado de coisas em países cristãos, o artigo católico
em pauta explica essa tenacidade dos ritos religiosos ancestrais como uma
evidência da depravação natural do coração humano, e invoca o maior zelo da
parte dos católicos. Além de repetir a absurda ficção sobre as crianças
devoradas, o autor parece totalmente insensível ao fato de que a devoção a uma
fé que séculos da mais cruel e sangrenta perseguição não conseguem extinguir,
faz os heróis e os mártires de um povo, ao passo que a sua conversão a qualquer
outra fé os transformaria simplesmente em renegados. A resposta recebida de
alguns indianos, pelo missionário Margil, corrobora esse truísmo. A questão era:
“Por que sois pagãos depois de terdes por tanto tempo sido cristão?” A resposta:
“O que farias, padre, se os inimigos de tua fé conquistassem tua terra? Não
pegarias todos os teus livros e vestes e sinais de religião e te retirarias para as
cavernas e montanhas mais distantes? É isso justamente o que fizeram nossos
sacerdotes, nossos profetas, nossos nagualistas”.
Tal resposta de um católico romano, interrogado por um missionário da Igreja
grega ou protestante, lhe granjearia a coroa de santo no martiriológio papal.
Muito melhor uma religião “pagã” que pode extorquir de um Francisco Xavier o
tributo que ele paga aos japoneses, dizendo que “na virtude e na probidade, eles
ultrapassavam todas as nações que havia visto”, do que um Cristianismo cujo
avanço sobre a face da Terra devastou as nações aborígenes como um furacão
de fogo. [101] Doenças, alcoolismo e relaxamento dos costumes são os
resultados imediatos da apostasia da fé dos pais, e a conversão para uma
religião de meras formas.
Não precisamos recorrer a fontes inimigas para saber o que o Cristianismo está
fazendo com a Índia Britânica. O Capitão O’Grady, o ex-oficial britânico, diz: “O
governo britânico comete um ato vergonhoso ao transformar a sóbria raça dos
nativos indianos numa nação de bêbados, por pura cupidez. A bebida é proibida,
tanto pela religião dos hindus, quanto pela dos muçulmanos. Mas (...) o ato de
beber está se tornando cada dia mais generalizado (...) O que o maldito tráfico
de ópio, imposto à China pela cupidez britânica, causou a essa infeliz nação, a
venda de álcool pelo governo o fará à Índia. Pois se trata de um monopólio do
governo, baseado quase que exatamente no mesmo modelo do monopólio do
tabaco pela Espanha (...) Os criados estrangeiros das famílias européias
transformam-se amiúde em terríveis beberrões (...) Os servos do país detestam
usualmente a bebida, e são muito mais respeitáveis nesse ponto do que os seus
patrões e patroas (...) todos bebem (...) bispos, capelães, as jovens recém-
saídas das escolas, todos”. [102]
Sim, tais são as “bênçãos” que a moderna religião cristã traz, com suas Bíblias
e Catecismos, aos “pobres pagãos”. Rum e bastardia ao Indostão; ópio à China;
rum e doenças medonhas ao Taiti; e, pior que tudo, o exemplo da hipocrisia na
religião, e um ceticismo e ateísmo prático, que, por parecer bom para os povos
civilizados, pode muito bem, com o tempo, vir a se considerado como bom por
aqueles cuja teologia por muito tempo permaneceu sob o jugo do céu. Por outro
lado, tudo o que é nobre, espiritual, elevado na religião antiga é negado, e
mesmo deliberadamente falsificado.
Peguemos Paulo, leiamos as poucas partes originais que nos restaram dos
escritos atribuídos a esse homem bravo, honesto e sincero, e vejamos se alguém
pode encontrar nelas uma palavra que seja para mostrar que Paulo considerava
a palavra Cristo como algo mais do que o ideal abstrato da divindade pessoal
que habita no homem. Para Paulo, Cristo não é uma pessoa, mas uma idéia
encarnada. “Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura”, [103] ele renasce,
como depois da iniciação, pois o Senhor é espírito — o espírito do homem. Paulo
foi o único apóstolo que compreendeu as idéias secretas que subjaziam aos
ensinamentos de Jesus, embora jamais o tenha encontrado pessoalmente. Mas
Paulo se iniciou a si mesmo; e, decidido a inaugurar uma nova e ampla reforma,
ele sinceramente elevou suas próprias doutrinas muito acima da sabedoria dos
séculos, acima dos antigos Mistérios e da revelação final dos epoptai. Como
comprova o Professor A. Wilder numa série de argutos artigos, não foi Jesus,
mas Paulo o verdadeiro fundador do Cristianismo. “Foi em Antioquia que os
discípulos receberam pela primeira vez o nome de cristãos”, dizem os Atos dos
Apóstolos, XI, 26. “Homens como Irineu, Epifânio e Eusébio transmitiram à
posteridade a reputação de práticas inverídicas e desonestas; e o coração chora
diante das histórias dos crimes desse período”, escreve o autor, num artigo
recente. [104] “Seja lembrado”, acrescenta ele, “que quando os muçulmanos
invadiram a Síria e a Ásia Menor pela primeira vez, foram bem recebidos pelos
cristãos dessas regiões como libertadores da intolerável opressão das
autoridades governantes da Igreja.”
Maomé jamais foi, ou é agora, considerado como um deus; no entanto, sob o
estímulo de seu nome, milhões de muçulmanos serviram a seu Deus com um
ardor que não tem paralelo no sectarismo cristão. Que os muçulmanos tenham
degenerado tristemente depois dos dias de seu profeta, não altera o caso em
questão, mas apenas prova o domínio da matéria sobre o espírito em todo o
mundo. Além disso, eles jamais se degeneraram tanto da fé primitiva quanto os
próprios cristãos. Por que, então, não deveria Jesus de Nazaré, mil vez mais
nobre e moralmente superior do que Maomé, ser reverenciado pelos cristãos e
seguido na prática, ao invés de ser cegamente adorado numa fé inútil como
deus, e ao mesmo tempo reverenciado muito mais à maneira de certos budistas,
que giram sua roda de orações? Que essa fé se tornou estéril, e não é mais
digna do nome de Cristianismo do que o fetichismo dos Calmuques o é, da
filosofia pregada por Buddha, ninguém duvida. “Jamais manteríamos a opinião”,
diz o Dr. Wilder, “de que o Cristianismo moderno é em qualquer grau idêntico à
religião pregada por Paulo. Falta-lhe a amplitude de concepções de Paulo, seu
fervor, sua fina percepção espiritual. Tomando a forma das nações pela qual é
professado, ele exibe tantas formas quantas são as raças. É uma coisa na Itália
e na Espanha, mas completamente diversa na França, na Alemanha, na
Holanda, na Suécia, na Grã-Bretanha, na Rússia, na Armênia, no Curdistão e na
Abissínia. Comparado com os cultos anteriores, a mudança parece ser mais de
nome do que de gênio. Os homens foram ao leito pagão e despertaram cristãos.
Quanto ao Sermão da Montanha, suas notáveis doutrinas são mais ou menos
repudiadas por todas as comunidades cristãs de alguma dimensão. O
barbarismo, a opressão, os castigos cruéis são tão comuns agora como nos dias
do paganismo.
“O Cristianismo de Pedro não existe mais; o de Paulo o suplantou, e foi por sua
vez amalgamado com as outras religiões do mundo. Quando a Humanidade for
iluminada, ou as raças e famílias bárbaras forem suplantadas por aquelas de
natureza e instintos mais nobres, as excelências ideais poderão se tornar
realidades.
“O ‘Cristo de Paulo’ constituiu um enigma que evocou os mais ingentes esforços
no sentido de sua solução. Ele era algo diverso do Jesus dos Evangelhos. Paulo
prescindiu completamente de suas ‘intermináveis genealogias’. O autor do
quarto Evangelho, um gnóstico alexandrino, descreve Jesus como o que agora
chamaríamos de um espírito divino ‘materializado’. Ele era o Logos, ou Primeira
Emanação — o Metatron (...) A ‘mãe de Jesus’, como a Princesa Mâyâ, Danaé,
ou talvez Periktione, deu nascimento, não a uma criança, mas a um rebento
divino. Nenhum judeu de qualquer seita, nenhum apóstolo, nenhum crente
primitivo, jamais promulgou tal idéia. Paulo trata de Cristo antes como uma
personagem, do que como uma pessoa. As lições sagradas das assembléias
secretas personificavam amiúde o bem divino e a verdade divina numa forma
humana, assaltada pelas paixões e pelos apetites da Humanidade, mas superior
a eles; e essa doutrina, emergindo da cripta, foi assimilada pelos ignorantes
sacerdotes como a de uma concepção imaculada e uma encarnação divina.”
Numa antiga obra, publicada em 1693 e escrita pelo Senhor De Ia Loubère,
embaixador francês no reino de Sião, [105] são relatados muitos fatos
interessantes da religião siamesa. As observações do satírico francês são tão
agudas que citaremos suas palavras a respeito do Salvador siamês —
Sommona-Codom.
“Embora os siameses afirmem o prodigioso nascimento de seu Salvador, não
lhe deixam de atribuir um pai e uma mãe. [106] Sua mãe, cujo nome se acha em
alguns de seus livros Balie [Páli?], chamava-se, como dizem, Mahâ MARIA, que
parece significar a Grande Maria, pois Mahâ significa grande (...) Seja como for,
isso não deixa de chamar a atenção dos missionários, e deu talvez ocasião aos
siameses para acreditar que, sendo Jesus o Filho de Maria, seria ele irmão de
Sommona-Codom, e que, tendo ele sido crucificado, seria esse irmão perverso
que deram a Sommona-Codom, sob o nome de Thevetat, que teria sido
castigado no Inferno, com uma punição algo parecida à Cruz (...) Os siameses
esperam outro Sommona-Codom, penso que outro homem miraculoso como ele,
a quem já chamam de Pra-Narotte, e que, conforme dizem, foi prenunciado por
Sommona (...) Ele fez toda sorte de milagres (...) Tinha dois discípulos, cada qual
sentado em um dos pés do ídolo; um à direita, e o outro à esquerda (...) o primeiro
chamava-se Pra-Mogla, e o segundo Pra-Scaribout (...) O pai de Sommona-
Codom era, de acordo com esse mesmo Livro Balie, um Rei de Teve Lanca, isto
é, um Rei do famoso Ceilão. Mas como os Livros Balie não têm data, nem autor,
têm eles tanta autoridade quanto todas as tradições, cuja origem é
desconhecida.” [107]

A Bíblia é menos autêntica do que


qualquer outro livro sagrado
Este último argumento é tão imponderado quanto errôneo. Não sabemos de
qualquer livro, em todo o mundo, menos autenticado quanto a data, nomes dos
autores, ou tradição do que a nossa Bíblia Cristã. Sob tais circunstâncias, os
siameses têm tantas razões para acreditar em seu miraculoso Sommona-Codom
como os cristãos em seu Salvador de miraculoso nascimento. Além disso, eles
não têm mais direito a forçar sua religião sobre os siameses, ou sobre qualquer
outra nação, para onde vão sem ser chamados, do que os chamados pagãos “a
compelir a França ou a Inglaterra a aceitarem o Budismo sob a ponta da espada”.
Um missionário budista, mesmo na América livre-pensadora, correria
diariamente o risco de ser atacado, e isso não impede aos missionários de
caluniar publicamente a religião dos brâmanes, dos lamas e dos bonzos; e estes
nem sempre têm liberdade para responder-lhes. Isso é o que se chama de
difundir a luz do Cristianismo e da civilização sobre as trevas do ateísmo.
No entanto, descobrimos que essas pretensões — que poderiam parecer
ridículas se não fossem tão fatais a milhões de homens nossos semelhantes que
apenas pedem que os deixem em paz — eram plenamente apreciadas já no
século XVII. Descobrimos o mesmo espirituoso Monsieur de La Loubère, sob o
pretexto de piedosa simpatia, dando algumas instruções verdadeiramente
curiosas às autoridades eclesiásticas, [108] que encarnam a própria alma do
jesuitismo.
“Do que falei a respeito das opiniões dos orientais”, observa ele, “é fácil
compreender quão difícil é a tentativa de lhes impor a religião cristã; e daí a
necessidade de que os missionários, que pregam o Evangelho no Oriente,
compreendam perfeitamente as maneiras e as crenças desse povo. Pois, assim
como os apóstolos e os primeiros cristãos, quando Deus corroborava sua
pregação com tantos prodígios, não revelaram de uma só vez aos pagãos todos
os mistérios que adoramos, mas os ocultaram por um longo tempo deles, e
também dos catecúmenos, o conhecimento daqueles que poderiam escandalizá-
los; parece-me muito racional que os missionários, que não têm o dom dos
milagres, não devam atualmente revelar aos orientais todos os nossos mistérios,
nem todas as práticas do Cristianismo.
“Seria conveniente, por exemplo, se não estou enganado, não lhes pregar, sem
grande cautela, o culto dos Santos; e quanto ao conhecimento de Jesus Cristo,
penso que seria necessário ocultá-lo deles, se posso assim dizer, e não lhes
falar do mistério da Encarnação, senão depois de estarem eles convencidos da
existência de um Deus Criador. Pois qual é a probabilidade de persuadir os
siameses a retirarem Sommona-Codom, Pra-Mogla e Pra-Scaribout dos altares,
e pôr Jesus Cristo, São Pedro e São Paulo em seu lugar? Não seria mais próprio
ensiná-los sobre Jesus Cristo crucificado apenas depois de terem compreendido
que um homem pode ser infeliz e inocente; e que pela regra recebida, mesmo
entre eles, de que um inocente pode assumir a responsabilidade do culpado, foi
necessário que um deus se tornasse homem, a fim de que esse Deus-Homem
pudesse, graças a uma vida laboriosa, e a uma infame mas voluntária morte,
satisfazer todos os pecados dos homens; mas antes de mais nada seria
necessário lhes dar a verdadeira idéia de um Deus Criador, justamente indignado
contra os homens. A Eucaristia, depois disso, não escandalizaria os siameses,
como escandalizou outrora os pagãos da Europa, além do mais porque os
siameses de fato acreditam que Sommona-Codom poderia dar sua esposa e
seus filhos aos talapoins para que os comessem.
“Do contrário, como os chineses são extremamente respeitosos para com seus
pais, não duvido de que, se o Evangelho lhes caísse atualmente nas mãos,
ficariam eles escandalizados com aquela passagem em que, quando algumas
pessoas informaram a Jesus que sua mãe e seus irmãos o esperavam,
respondeu ele de modo a entender que isso pouco se lhe dava. Eles não ficariam
menos ofendidos com aquelas outras misteriosas palavras, que nosso divino
Salvador falou ao jovem homem que precisava de tempo para enterrar seus pais:
‘Deixai aos mortos’, disse ele, ‘o cuidado de enterrar os mortos.’ Todos
conhecem a confusão que os japoneses expressaram a São Francisco Xavier
quanto à eternidade da condenação, não sendo capazes de acreditar que seus
pais mortos cairiam em tão horrível desgraça pelo fato de não terem abraçado o
Cristianismo, do qual jamais haviam ouvido falar. Parece necessário, por
conseguinte, impedir e modificar esse pensamento, utilizando o meio empregado
por esse grande apóstolo das Índias, estabelecendo, em primeiro lugar, a idéia
de um Deus onipotente, onisciente e justo, autor de todas as boas coisas, a quem
tudo se deve, e por cuja vontade devemos prestar aos reis, aos bispos, aos
magistrados e aos nossos pais o necessário respeito. Esses exemplos são
suficientes para mostrar com que precaução é necessário preparar as mentes
dos orientais para que pensem como nós, e não fiquem ofendidos com muitos
dos Artigos da fé cristã.” [109]
E o que restou, perguntamos, para pregar? Sem nenhum Salvador, nenhuma
expiação, nenhuma crucificação para o pecado humano, nenhum Evangelho,
nenhuma condenação eterna para lhes contar, e nenhum milagre para exibir, o
que restou para os jesuítas disseminarem entre os siameses, a não ser o pó dos
santuários pagãos, no propósito de lhes cegar os olhos? O sarcasmo é de fato
amargo. A moralidade que esses pobres pagãos comungam por sua fé ancestral
é tão pura que o Cristianismo precisa ser podado de todos os seus traços
característicos, antes que os seus sacerdotes possam se arriscar a oferecê-lo a
exame. Uma religião que não pode ser confiada ao escrutínio de um povo
simples, leal, honrado, piedoso, modelo de ternura filial e de profunda reverência
por Deus, com um instintivo horror de profanar Sua majestade, essa religião deve
ter algo de errado. E isso nosso século o está demonstrando paulatinamente.
Na expoliação sofrida pelo Budismo para edificar a nova religião cristã, era de
esperar que um caráter tão imaculado quanto Gautama Buddha fosse
aproveitado. Seria natural que após tomar essa história legendária para
preencher as lacunas deixadas na fictícia história de Jesus, e após utilizar o que
podiam da de Krishna, eles tomassem o homem Sâkyamuni e o pusessem em
seu calendário sob um nome suposto. Eles o fizeram, e o Salvador hindu
apareceu no devido tempo na lista de santos como Josafá, para fazer companhia
a esses mártires da religião, Santos Aura e Plácida, Longinus e Amphibolus.
Em Palermo, há mesmo uma igreja dedicada a Divo Josaphat. Entre as vãs
tentativas dos posteriores autores eclesiásticos para fixar a genealogia desse
misterioso santo, a mais original foi a de transformá-lo em Josué, o filho de Nun.
Mas como essas insignificantes dificuldades foram por fim superadas,
descobrimos a história de Gautama copiada palavra por palavra dos livros
sagrados budistas, na Legenda Dourada. Os nomes das pessoas foram
modificados, o lugar da ação, Índia, permanece o mesmo — tanto na lenda cristã
como na budista. Pode-se descobri-lo também no Speculum Historiale de
Vicente de Beauvais, que foi escrito no século XIII. A primeira descoberta se
deve ao historiador do Couto, embora o Prof. Müller credite o primeiro
reconhecimento da identidade das duas histórias a Laboulaye, em 1859. [110] O
Cel. Yule conta-nos que essas histórias de Barlaam e Josafá “foram
reconhecidas por Baronius, e acham-se à p. 348 de ‘A Martiriologia Romana,
publicada por ordem do Papa Gregório XIII, e revisada pela autoridade do Papa
Urbano VIII, traduzida do latim para o inglês por G. K. da Companhia de Jesus
(...)’”. [111]
Repetir ainda que uma pequena parte desse absurdo eclesiástico seria tedioso
e inútil. Quem o duvidar e quiser conhecer a história, que a leia na obra do Cel.
Yule. Algumas das especulações cristãs e eclesiásticas parecem ter
embaraçado até mesmo a Dominie Valentyn. “Há alguns que tomam esse
Budhum por um judeu sírio fugitivo”, escreve ele; “outros que o tomam por um
discípulo do Apóstolo Tomás; mas, como nesse caso ele poderia ter nascido 622
anos antes de Cristo, eu deixo a eles a tarefa de explicar. Diogo do Couto
acredita que se trata certamente de Josué, o que é ainda mais absurdo!” [112]
“O romance religioso intitulado História de Barlaam e Josafá foi por vários
séculos uma das obras mais populares do Cristianismo”, diz o Cel. Yule. “Foi
traduzido para todas as principais línguas européias, inclusive para os idiomas
escandinavos e eslavos (...) A história (...) aparece primeiramente nas obras de
São João Damasceno, um teólogo da primeira metade do século VIII.” [113] Aqui
repousa o segredo de sua origem, pois esse São João, antes de se tornar
sacerdote, teve um alto cargo na corte do califa Abu Jáfar Almansúr, onde
provavelmente aprendeu a história, e posteriormente a adaptou às novas
necessidades ortodoxas do Buddha transformado em santo cristão.
Tendo repetido a história plagiada, Diogo do Couto, que parece comunicar com
relutância sua curiosa noção de que Gautama era Josué, diz: “A esse nome
[Budâo] os Gentios por toda Índia dedicaram grandes e soberbos pagodes. Com
referência a essa história, tivemos o cuidado de investigar se os antigos gentios
dessas partes tinham em seus escritos algum conhecimento de São Josafá, que
foi convertido por Barlam, que em sua lenda é representado como filho de um
grande rei da Índia, e que havia tido quase a mesma educação, com todos os
detalhes que se contam da vida do Budâo (...) Em minha viagem pela Ilha de
Salsette, vi raros e admiráveis pagodes, que chamamos de Pagodes Canará,
Cavernas de Kânheri, edificados numa montanha, com muitas paredes cortadas
de sólida rocha (...) e indagando desse velho sobre a obra, e sobre o que ele
pensava quanto a quem a havia construído, ele nos informou que a obra fora
executada sem dúvida por ordem do pai de São Josafá para aí mantê-lo em
reclusão, como reza a história. E como ela nos informa que ele foi filho de um
grande rei na Índia, pode muito bem ser, como já dissemos, que ele era o Budâo,
de quem se contam tantas maravilhas”. [114]
A lenda cristã provém igualmente, em muitos de seus detalhes, da tradição
singalesa. Foi nessa ilha que se originou a história do jovem Gautama que rejeita
o trono do pai, e este erige para ele um soberbo palácio, no qual o manteve em
semiprisão, cercado por todas as tentações da vida e das riquezas. Marco Polo
a narrou como a havia recebido dos singaleses, e descobrimos que sua versão
é uma fiel repetição do que consta em vários livros budistas. Como afirma
singelamente Marco Polo, Buddha levou uma vida tão dura e tão santa, e
manteve tal abstinência, “quase como se fosse um cristão. De fato”, acrescenta,
“ele teria sido um grande santo de nosso Senhor Jesus Cristo, tão boa e pura foi
a vida que levou.” A esse piedoso apotegma, seu editor observa com pertinência
que “Marco não é a única pessoa eminente que expressou esse ponto de vista
sobre a vida de Sâkyamuni”. E, por sua vez, o Prof. Max Müller diz: “Seja o que
for que pensemos da santidade dos santos, aqueles que duvidam do direito de
Buddha a um lugar entre eles devem ler a história de sua vida tal como consta
do cânone budista. Se ele viveu a vida que aí é descrita, poucos santos podem
reclamar um título melhor do que o de Buddha; e ninguém da Igreja grega ou
romana deve se arrepender de haver conferido à sua memória as honras da
santidade conferidas a São Josafá, o príncipe, o eremita e o santo”. [115]
A Igreja Católica Romana jamais teve uma chance tão boa de cristianizar toda a
China, o Tibete e a Tartária, como no século XIII, durante o reino de Kublai-Khân.
Parece estranho que ela não tenha aproveitado a oportunidade quando Kublai
hesitava, ao mesmo tempo, entre as quatro religiões do mundo, e talvez por
causa da eloquência de Marco Polo, favorecendo mais o Cristianismo do que o
Maometismo, o Judaísmo ou o Budismo. Marco Polo e Ramúsio, um de seus
intérpretes, nos contam por quê. Parece que, infelizmente para Roma, a
embaixada do pai e do tio de Marco Polo fracassou, pois aconteceu de Clemente
IV morrer exatamente nessa época. Por vários meses, não houve nenhum Papa
para receber os amistosos convites de Kublai-Khân; e, assim, os cem
missionários cristãos convidados por ele não puderam ser enviados ao Tibete e
à Tartária. [116] Para aqueles que acreditam que há uma Divindade inteligente
superior que se interessa pelo bem-estar de nosso miserável pequeno mundo,
esse contretemps deve parecer uma boa prova de que o Budismo tenha levado
a melhor sobre o Cristianismo. Talvez — quem sabe? — o Papa Clemente tenha
caído doente para salvar os budistas de cair na idolatria do Catolicismo romano?
Do puro Budismo, a religião desses distritos degenerou em Lamaísmo; mas este,
com todos os seus defeitos — como a ênfase no formalismo, em detrimento da
doutrina, está muito acima do Catolicismo. O pobre Abade Huc logo o descobriu
por si mesmo. Enquanto caminha com sua caravana, escreve ele — “todos nos
repetiam que, à medida que avançássemos para oeste, deveríamos encontrar
as doutrinas mais luminosas e sublimes. Lhasa era o grande foco de luz, cujos
raios se enfraqueciam assim que eram difundidos”. Um dia ele deu a um lama
tibetano “um breve sumário da doutrina cristã, que não lhe pareceu de maneira
alguma desconhecida; não nos surpreendemos com isso, tendo mesmo ele
sustentado que o catolicismo não diferia muito da fé dos grandes lamas do Tibete
(...) Essas palavras do lama tibetano nos surpreenderam bastante”, escreve o
missionário; “a unidade de Deus, o mistério da Encarnação, o dogma da
presença real, constavam de sua crença (...) A nova luz lançada sobre a religião
do Buddha nos induziu realmente a acreditar que encontraríamos entre os lamas
do Tibete um sistema mais puro”. [117] Foram essas palavras de louvor ao
Lamaísmo, abundantes no livro de Huc, que levaram sua obra a figurar no Index
de Roma, tendo ele sido secularizado.
Quando lhe perguntavam, visto que afirmava ser a fé cristã a melhor das religiões
colocadas sob sua proteção, por que ele não se filiava a ela, respondia Kublai
Khân de uma maneira tão sugestiva quanto curiosa:
“Por que deveria de me tornar cristão? Há Quatro Profetas adorados e
reverenciados por todo o mundo. Os cristãos dizem que seu deus é Jesus Cristo;
os sarracenos, Maomé; os judeus, Moisés; os idólatras, Sogomon Borcan
[Sâkyamuni Burkhan, ou Buddha], que era o primeiro deus entre os ídolos; eu
adoro e presto respeito a todos os quatro, e peço que aquele dentre eles que
seja o maior no céu me possa ajudar”. [118]

Os conhecimentos sobre química exibidos


pelos prestidigitadores indianos
Podemos ridicularizar a prudência de Khân; mas não podemos censurá-lo por
deixar à Providência o cuidado de resolver tão complicado dilema. Uma de suas
mais insuperáveis objeções para abraçar o Cristianismo, ele assim a expõe a
Marco Polo: “Vê que os cristãos destes países são tão ignorantes que não fazem
nada e não sabem fazer nada, ao passo que os idólatras podem fazer o que
quiserem, de modo que, quando me sento à mesa, as taças do meio da sala vêm
a mim cheias de vinho ou outro licor sem serem tocadas por ninguém, e eu bebo
delas. Eles controlam as tempestades, dirigindo-as para onde quiserem, e fazem
muitas outras maravilhas; além disso, como sabes, seus ídolos falam, e lhes dão
predições sobre qualquer assunto. Mas se eu me voltasse para a fé de Cristo e
me tornasse um cristão, então meus barões e os outros que não foram
convertidos diriam: ‘O que te levou a ser batizado? (...) Que poderes ou milagres
testemunhaste? (Sabes que os idólatras dizem aqui que seus milagres são
realizados por causa da santidade e do poder de seus ídolos.) Ora, eu não
saberia o que lhes responder, e assim não só confirmaria os erros dos idólatras,
como estes, que são adeptos de tais artes estranhas, procurariam conseguir a
minha morte. Mas vai agora ao teu Papa, e pede-lhe de minha parte que envie
uma centena de homens versados em vossa lei, e capazes de censurar as
práticas dos idólatras, e de lhes dizer que também sabem realizar tais coisas,
mas que não o fazem, visto que elas são feitas com a ajuda do demônio e de
outros maus espíritos, e que assim controlarão os idólatras para que eles não
tenham o poder de executar tais coisas em sua presença. Quando
testemunharmos isso, denunciaremos os idólatras e a sua religião, e então
receberei o batismo (...) e todos os meus barões e chefes serão batizados
também (...) e assim haverá por fim mais cristãos aqui do que na tua parte do
mundo!” [119]
A proposta era justa. Por que não a aceitaram os cristãos? Moisés não vacilou
em enfrentar a mesma prova diante do Faraó, e triunfou.
A nosso ver, a lógica desse mongol inculto era irrefutável, e sua intuição, perfeita.
Ele via bons resultados em todas as religiões, e sentia que, fosse o homem
budista, cristão, muçulmano ou judeu, seus poderes poderiam ser igualmente
desenvolvidos, levando sua fé à mais alta verdade. Tudo o que ele pedia antes
de fazer a escolha de um credo para a sua pessoa, era a evidência em que se
baseava a fé.
A julgar apenas por seus prestidigitadores, a Índia deve estar muito mais
familiarizada com a Alquimia, a Química e a Física do que qualquer academia
européia. Os prodígios psicológicos produzidos por alguns faquires do Indostão
meridional, e pelos Shaberons e Hubilgans do Tibete e da Mongólia, comprovam
o que afirmamos. A ciência da psicologia alcançou aí o auge da perfeição jamais
atingido noutra parte dos anais do maravilhoso. Que esses poderes não se
devem apenas ao estudo, mas são naturais a todo ser humano, provam-no
agora, na Europa e na América, os fenômenos do mesmerismo e o que se chama
de “Espiritismo”. Se a maioria dos viajantes estrangeiros, e residentes na Índia
Britânica, está predisposta a encarar tudo como hábil prestidigitação, há, não
obstante, uns poucos europeus que tiveram a rara sorte de ser admitidos atrás
do véu nos pagodes. Esses com certeza não ridicularizarão os ritos, nem
menosprezarão os fenômenos produzidos nas lojas secretas da Índia. O
mahâdevasthâna dos pagodes (usualmente chamados de gopura, por causa do
pórtico piramidal secreto que dá acesso aos edifícios) é atualmente conhecido
por alguns poucos europeus.
Não sabemos se o prolífico Jacolliot [120] foi alguma vez admitido nessas lojas.
Isto é muito duvidoso, poderíamos dizer, a julgar por muitos de seus contos
fantásticos sobre as imoralidades dos ritos místicos executados por brâmanes,
pelos faquires dos pagodes, e mesmo pelos budistas (!!), relatos esses nos quais
ele se reserva o papel do casto José. Seja como for, é evidente que os brâmanes
não lhe ensinaram nenhum segredo, pois ao falar dos faquires e de seus
milagres, observa ele, “sob a direção dos brâmanes iniciados, eles praticam, na
reclusão dos pagodes, as ciências ocultas (...) E que ninguém fique surpreso
com essa palavra, que parece abrir a porta do sobrenatural, pois há, nas ciências
que os brâmanes chamam de oculta, fenômenos de fato extraordinários que
desafiam todas as investigações, mas nenhum que não possa ser explicado, e
que não esteja sujeito à lei natural”. [121]
Inquestionavelmente, qualquer brâmane, se o quisesse, poderia explicar os
fenômenos. Mas ele não o fará. Entrementes, ficamos esperando que os
melhores de nossos físicos expliquem os mais triviais fenômenos ocultos
produzidos por um aprendiz de faquir de um pagode.
Diz Jacolliot que seria quase impraticável dar um relato das maravilhas
testemunhadas por ele. Mas acrescenta, com extrema honestidade, “basta dizer
que no tocante ao Magnetismo e ao Espiritismo, a Europa ainda está no abecê,
e que os brâmanes alcançaram, nesses dois departamentos do saber,
resultados que são verdadeiramente surpreendentes. Quando vemos estranhas
manifestações, cuja força não se pode negar, sem compreender as leis que os
brâmanes mantêm ocultas com tanto cuidado, a mente fica tomada de surpresa,
e não há outra saída senão abandonar o local para quebrar o encanto”.
“A única explicação que fomos capazes de obter sobre o assunto, de um
brâmane erudito com quem temos a mais íntima amizade, foi essa: ‘Vocês
estudaram a natureza física, e obtiveram, através das leis da Natureza,
resultados maravilhosos — vapor, eletricidade, etc.; por doze mil anos ou mais,
nós estudamos as forças intelectuais, descobrimos suas leis, e obtivemos,
fazendo-as agir isoladamente ou em conjunto com a matéria, fenômenos ainda
mais espantosos do que os de vocês’.”
Jacolliot deve de fato ter ficado surpreendido, pois diz: “Vimos coisas tais que
não podemos descrever, por medo de que os leitores duvidem de nossa
inteligência (...) mas de fato as vimos. E assim se compreende por que, na
presença de tais fatos, o mundo antigo acreditava (...) nas possessões do
Demônio e no exorcismo”. [122]
No entanto, esse inimigo irreconciliável da política clerical, das ordens
monásticas, e do clero de todas religiões e de todos os países — inclusive
brâmanes, lamas e faquires — ficou tão impressionado com o contraste entre os
cultos objetivos da Índia e as pretensões vazias do Catolicismo, que depois de
descrever as terríveis autotorturas dos faquires, num arroubo de sincera
indignação, ele assim dá vazão aos seus sentimentos: “Não obstante, esses
faquires, esses brâmanes mendicantes, ainda são magníficos: quando eles se
flagelam, quando durante o martírio auto-inflingido a carne é arrancada em
pedaços, e o sangue banha o chão. Mas vós mendigos católicos, o que fazeis
hoje? Vós, Franciscanos, Capuchinhos, Carmelitas, que brincais de faquires,
com vossos cordões de nós, vossos silícios e vossas flagelações de água de
rosa, vossos pés descalços e vossas cômicas mortificações — fanáticos sem fé,
mártires sem torturas? Não temos o direito de perguntar se obedeceis à lei de
Deus ao vos encerrardes nos muros do convento, e assim escapardes à lei do
trabalho que ressoa duramente sobre todos os outros homens? (...) Fora daqui,
sois apenas mendigos!” [123]
Mas basta — já devotamos muito espaço a eles e à sua confusa Teologia. Já
pesamos a ambos na balança da história, da lógica e da verdade, e descobrimos
que estão em falta. Seu sistema produz ateísmo, niilismo, desespero e crime;
seus sacerdotes e seus pregadores são incapazes de provar por palavras a sua
recepção do poder divino. Se a Igreja e o clero pudessem sair da vista do mundo
de modo tão fácil como seus nomes agora o fazem dos olhos de nosso leitor,
esse seria um feliz dia para a Humanidade. Nova York e Londres poderiam
rapidamente tornar-se tão morais quanto uma cidade pagã não ocupada por
cristãos; Paris seria mais limpa do que a antiga Sodoma. Quando os católicos e
os protestantes estiverem mais seguros do que estão os budistas ou os
brâmanes de que todos os crimes são punidos, e que toda a boa ação é
recompensada, eles poderão dispender com os seus próprios pagãos as
vultosas quantias que hoje subvencionam os missionários, cuja efetiva missão é
despertar nos países não cristãos o ódio ao Cristianismo.
————
Como a ocasião pedia, reforçamos nosso argumento com as descrições de
alguns dos inúmeros fenômenos testemunhados por nós em diferentes partes
do mundo. O espaço restante à nossa disposição será devotado a tais assuntos.
Tendo deixado os fundamentos que permitem a elucidação da filosofia dos
fenômenos ocultos, parece oportuno ilustrar o tema com fatos que ocorreram
sob os nossos próprios olhos, e que podem ser verificados por qualquer viajante.
Os povos primitivos desapareceram, mas a sabedoria primitiva sobrevive, e pode
ser alcançada por aqueles que “querem”, “ousam” e possam “manter silêncio”.
Notas
[1] [Vol. III, parte II, cap. XXXVII, p. 335 e s., 348; ed. de 1862.]

[2] [Diógenes Laércio., VIII, “Pitágoras”, V; IX, “Heráclito”, II.]

[3] [Ibid., VIII, “Pitág.”, XV; Plutarco, Vidas, “Numa”, VIII.]

[4] [Orígenes, Contra Celsum, I, LXVIII.]

[5] Edinburg Review, abril de 1851, p. 411.

[6] “Indian Sketches; or Rubs of a Rolling Stone”, escrito para o Commercial Bulletin de Boston.

[7] Ver o cap. II.

[8] Valeria a pena a um artista, recolher, numa viagem ao redor do mundo, a multidão de
Madonas, Cristos, santos e mártires que aparecem em diferentes trajes nos diversos países.
Eles forneceriam os modelos para os bailes de máscara em benefício das caridades paroquiais!

[9] No momento em que escrevemos, chega-nos do Conde de Salisbury, Secretário de Estado


para a Índia, o relato de que a fome de Madras será seguida por uma outra ainda mais severa
na Índia meridional, o distrito em que os missionários católicos cobram os mais pesados tributos
para os gastos da Igreja de Roma. Esta, incapaz de retaliar de outro modo, despoja os súditos
britânicos, e quando a fome surge como consequência, faz o herético Governo Britânico pagar
por isso.

[10] [Mateus. XI, 28.]

[11] Ancient Faiths and Modern, p. 24.

[12] Jacolliot, La Genèse de l’humanite, p. 67.

[13] Oriental and Linguistic Studies, “Vedic Doctrine of a Future Life”, p. 56-7, por W. Dwight
Whitney, Prof. de Sânscrito e Filologia Comparada no Yale College.

[14] [Ibid., p. 59.]

[15] Oriental and Linguistic Studies, p. 48.

[16] [Ver cap. III, IV.]

[17] Em seu artigo sobre “Paulo, o Fundador do Cristianismo” [The Evolution, set. de 1877], o
Prof. A. Wilder, cujas intuições da verdade são sempre claras, diz: “Na pessoa de Aher,
reconhecemos o Apóstolo Paulo. Ele recebia inúmeros nomes. Chamava-se Saulo,
evidentemente por causa de sua visão do Paraíso — sendo Saulo ou Sheól o nome hebraico do
outro mundo. Paulo, que apenas significa ‘o pequeno homem’, era uma espécie de alcunha.
Aher, ou outro, era um epíteto na Bíblia para as pessoas fora da política judaica, e lhe foi aplicado
por ter estendido o seu ministério aos Gentios. Seu nome real era Elisha ben-Abuiah”.

[18] “No Talmude, Jesus é chamado de OTO-HA-ISH, ‫אתו האיש‬, aquele homem.” — A. Wilder,
op. cit. Talmud Yerushalmi: Hagigah, II, 1.
[19] Ver Arrimo, Anabasis, livro VIII (Indica), VIII, 5; e Rev. J. B. S. Carwithen, Bampton Lectures,
1809, p. 98-100.

[20] Cf. The Arabic Gospel of the Infancy, § 24 et passim; Maurice, History of Hindostan, 1795-
1798, livro IV, parte II, cap. III, p. 308, 318.

[21] T. Maurice, Indian Antiquities, 1794, vol. III, p. 44-6.

[22] T. Maurice, The History of Hindostan, vol. II, p. 340-41, 343-45.

[23] [Vishnu-Purâna, V, XXXVII; Mahâbhârata, Mausal-parvan, 126 e s.]

[24] Ver H. O’Brien, The Round Towers of Ireland, p. 296 e s.; também J. D. Guigniaut, Religions
de I’antiquité, vol. I, p. 208-9, e gravura em Dr. P. Lundy, Monumental Christianity, p. 160.

[25] Evangelho da Infância, XVII.

[26] Cf. E. Moor, The Hindoo Pantheon, pr. LXXV, 3.

[27] Estimativas de Max Müller.

[28] Lundy, Monumental Christianity, p. 153; Maurice, Hist. of Hind., livro IV, parte II, cap. III, p.
300-06.

[29] Parábolas de Buddhaghosa, traduzidas do burmês pelo Cel. H. T. Rogers, R. E., com uma
Introdução, contendo o Dhammapada, ou o “Caminho da Virtude”, de Buddha. Traduzido do páli
por F. Max Müller. Londres, 1870.

[30] Intérprete do Consulado Geral no Sião.

[31] Ancient Faiths and Modern, p. 162.

[32] As palavras entre aspas são de Inman.

[33] The Wheel of the Law, vol. I, p. 319.

[34] Ibid., p. 45.

[35] Mateus, VII, 2.

[36] The Whell of the Law, p. 17-8.

[37] H. H. Wilson, Vishnu-Purâna, livro V, cap. XXXVII.

[38] Ver Draper, Conflict between Religion and Science, p. 224.

[39] Essa é a doutrina dos Supralapsarianos, que afirmavam que “Ele [Deus] predestinou a
queda de Adão, com todas as suas perniciosas consequências, desde a eternidade, e que
nossos primeiros pais não tiveram liberdade desde o início”.

É também dessa doutrina altamente moral que o mundo católico tomou, no século XI, a
instituição da Ordem conhecida como monges cartussianos. Bruno, seu fundador, foi levado à
fundação dessa monstruosa Ordem por uma circunstância digna de ser aqui registrada, pois
ilustra graficamente essa predestinação divina. Um amigo de Bruno, um médico francês, muito
famoso por sua extraordinária piedade, pureza moral e caridade, morreu, e seu corpo foi velado
pelo próprio Bruno. Três dias depois de sua morte, estando ele prestes a ser enterrado, o piedoso
médico sentou-se em seu caixão e declarou, com grave e solene voz, “que pelo justo julgamento
de Deus ele estava eternamente condenado”. Após essa consoladora mensagem de além do
“rio negro”, ele tornou a deitar e morreu.
Por sua vez, os teólogos pârsî dizem: “Se alguém comete pecado sob a crença de que será salvo
por quem quer que seja, tanto o enganado como o enganador serão condenados até o dia de
Rastâ Khez (...) Não há nenhum salvador. No mundo receberás a recompensa de tuas ações
(...) Teu salvador são teus atos, e o Próprio Deus”. [M. Müller, Chips, I, p. 176.]

[40] [Calvino, Inst. Christ. Religion, livro III.]

[41] [Commentarii de bello Gallico, VI, 16.]

[42] Plutarco, On Isis and Osiris, § 73.

[43] Todas as tradições mostram que Jesus foi educado no Egito e passou sua infância e sua
juventude nas fraternidades dos essênios e outras comunidades místicas.

[44] Bunsen descobriu alguns registros que mostram que a língua e o culto religioso dos egípcios,
por exemplo, não apenas existiam no início do antigo Império, “mas já haviam sido plenamente
estabelecidos e fixados a ponto de receber apenas um pequeno desenvolvimento no curso dos
Impérios antigo, médio e moderno”, e, embora o início do antigo Império seja fixado por ele além
do período de Menes, pelo menos no ano 4.000 a.C., a origem das antigas preces herméticas e
hinos do Livro dos mortos é atribuída por Bunsen à dinastia pré-menita de Abydos (entre 4.000
e 4.500 a.C.), mostrando assim que “o sistema do culto e da mitologia de Osíris já se haviam
estabelecido 3.000 anos antes dos dias de Moisés.” [Egypt’s Place, etc., V, p. 94.]

[45] Chamado também de “gancho de atração”. Virgílio o chama de “mystica vannus Iacchi”
(Georgica, I, 166).

[46] Livro dos Mortos, CXXV, do Papiro de Nu; Brit. Mus. Nº 10, 477, lâmina 24.

[47] Num Comunicado aos Delegados da Aliança Evangélica, Nova York, 1874, o Sr. Peter
Cooper, um unitarista, e um dos cristãos práticos mais nobres do século, conclui seu texto com
as seguintes palavras: “Nesse último e final acerto de contas, feliz de nós se então descobrirmos
que nossa influência sobre a vida tendeu a alimentar o faminto, a vestir o nu, e a mitigar os
sofrimentos daqueles que estão doentes e aprisionados”. Tais palavras de um homem que deu
dois milhões de dólares por caridade, educou quatro mil jovens em artes úteis, pelas quais elas
ganham um confortável apoio, manteve uma biblioteca, um museu e uma sala de leituras
públicos, classes para trabalhadores, conferências públicas por cientistas eminentes, abertas a
todos e que em sua longa e imaculada vida foi o primeiro a realizar obras úteis e benéficas. Os
feitos de Peter Cooper ficarão gravados com letras de ouro no coração da posteridade.

[48] Aus dem Tibetischen übersetzt und mit dem Originaltexte herausgegeben, von I. J. Schmidt,
São Peterbusgo, 1843.

[49] Buddhism in Tibet, por Emil Schlangintweit; ed. 1863, p. 213.

[50] Ecclesiastical History, I, XIII.

[51] Tathâgata é Buddha, “aquele que caminha nas pegadas de seus predecessores”; como
Bhagavat — ele é o Senhor.

[52] Temos a mesma lenda sobre Santa Verônica — como um complemento.

[53] E. Burnouf, Introduction à I’histoire du boulddhisme indien, p. 341.

[54] Ver a mesma história no Kanjur tibetano, Dulvâ, V, fl. 30. Cf. Alex. Csoma de Körös, On the
Kanjur, p. 164.

[55] Moisés foi um notável praticante da Ciência Hermética. Tendo em mente que Moisés
(Asarsiph) foi à Terra de Madiã, e que se sentou junto de um poço” (Êxodo, II, 15), descobrimos
o seguinte:
O “Poço” exercia um papel predominante nos Mistérios dos festivais de Baco. Na língua
sacerdotal de todos os países, ele tinha o mesmo significado. Um poço é “a fonte da salvação”
mencionado em Isaías (XII, 3). A água é o princípio masculino em seu sentido espiritual. Em sua
relação física na alegoria da criação, a água é o caos, e o caos é o princípio feminino vivificado
pelo Espírito de Deus — o princípio masculino. Na Cabala, Zakhar significa “masculino”; e o
Jordão era chamado de Zacchar (An Universal History, vol. II, p. 429). É curioso que o Pai de
São João Baptista, o Profeta do Jordão — Zacchar — seja chamado de Zachar-ias. Um dos
nomes de Baco é Zagreus. A cerimônia de vertedura da água no sacrário era sagrada tanto nos
ritos de Osíris como nas instituições mosaicas. No Mishnah afirma-se, “Demorarás em Sukkah e
derramarás água por sete vezes, e as pipas por seis dias” (Mishnah Sukkah, IV, 1). “Toma terra
virgem (...) e molda o pó com ÁGUA viva (Kabbala Denudata, II, p. 220, 221). Somente “terra e
água, de acordo com Moisés, pode produzir uma alma viva”, cita Cornélio Agrippa. A água de
Baco comunicava o Pneuma Sagrado ao iniciado; e ela lava todos os pecados pelo batismo
através do Espírito Santo, para os cristãos. O “poço”, no sentido cabalístico, é o misterioso
emblema da Doutrina Secreta. “Se o homem tem sede, que ele venha a mim e beba”, diz Jesus
(João, VII, 37).

Por conseguinte, Moisés, o adepto, é, bastante naturalmente, representado como se estivesse


sentado ao lado de um poço. As sete filhas do Sacerdote Quenita de Madiã dele se aproximam
para encher os bebedouros, a fim de dar água ao rebanho do pai. Temos novamente aqui o
número sete — o número místico. Na presente alegoria bíblica, as filhas representam os sete
poderes ocultos. “Vieram uns pastores e expulsaram as sete filhas; mas Moisés se levantou e,
defendendo as moças, deu de beber ao rebanho.” [Êxodo, II, 17.] Segundo alguns intérpretes
cabalistas, os pastores representam os sete "Estelares mal dispostos” dos nazarenos; pois no
antigo texto samaritano, o número desses pastores é também sete (ver os livros cabalísticos).

Então Moisés, que havia dominado os sete maus Poderes, e conquistado a amizade dos sete
poderes ocultos e benéficos, é representado como conviva de Raguel, o Sacerdote de Madiã,
que convida “o egípcio” a comer pão, i.e., a partilhar de sua sabedoria. Na Bíblia, os anciães de
Madiã são conhecidos como grandes profetas e adivinhos. Finalmente, Raguel ou Jetro, o
iniciador e instrutor de Moisés, lhe deu sua filha em casamento. Essa filha é Zéfora, i.e., a
Sabedoria esotérica, a luz brilhante do conhecimento, pois Ziprah significa “brilhante” ou
“resplendente”, da palavra “Shapar”, brilhar. Zippara, na Caldéia, era a cidade do “Sol”. Portanto,
Moisés foi iniciado pelo madianita, ou melhor quenita, e daí a alegoria bíblica.

[56] [E. Burnouf, op. cit., p. 205.]

[57] I. J. Schmidt, Der Weise und der Thor, II, p. 37.

[58] Rgya tch’er rol pa, vol. II, p. 80, 81, 90, 91, etc.; Alabaster, The Wheel of the Law, p. 104-05.

[59] Protevangelion (atribuído a Tiago), cap. XIII e XIV.

[60] PâIi-Buddhistical Annals, III, p. 28; Cf. Hardy, A Manual of Budhism, p. 153; Lalitavistara, X,
XII.

[61] The Arabic Gospel of the Infancy, § 48, 50-2 (cap. XX, XXI, Hone), aceito por Eusébio,
Atanásio, Epifânio, Crisóstomo, Jerônimo, e outros. A mesma história, com as características
hindus apagadas para evitar o reconhecimento, se acha em Lucas, II, 46-47.

[62] Alabaster, The Wheel of the Law p. 20-6.

[63] In Ann H. Judson, An Account of the American Baptist Mission to Burman Empire, Londres,
1827.
[64] E. Upham, The History and Doctrines of Buddhism, p. 135. O Dr. Judson incorreu nesse
prodigioso erro por causa de seu fanatismo. Em seu zelo para “salvar almas”, ele se recusou a
ler com atenção os clássicos burmeses, com medo de perder seu tempo nessa tarefa.

[65] Indian Antiquary vol. II, p. 81; Book of Ser Marco Polo, vol. I, p. 441; ed. 1875.

[66] Die Ssabier un der Ssabismus, vol. I, p. 725-26.

[67] Murray, Historical Account of Discoveries and Travels in Asia, etc., vol. III, cap. I, p. 249.

[68] R. Spence Hardy, A Manual of Budhism, p. 142.

[69] Ver Inman, Ancient Pagan and Modem Christian Symbolism, p. 92.

[70] Rgya tch’er rol pa, cap. VI, no Segundo Volume da Quinta Seção do Kanjur tibetano; também
The Wheel of the Law, p. 100.

[71] Lucas, 1, 39-45.

[72] Didron, Iconographie chrétienne. Histoire de Dieu, Paris, 1843, p. 287; e Manuel
d’iconographie chrétienne grecque et latine, Paris, 1845, p. 156.

[73] Há numerosas obras que derivam imediatamente dos Vedas, e que recebem o nome de
Upaveda. Quatro obras são incluídas sob essa denominação, a saber, Ayur, Gândharva, Dhanur
e Sthâpatya. O terceiro Upaveda foi composto por Visvamitra para uso dos Kshatriyas, a casta
guerreira.

[74] [Cf. L. Jacolliot, The Bibie in India, Londres, 1870, p. 220-21.]

[75] Lundy, Monumental Christianity, fig. 72.

[76] Ibid., p. 173.

[77] República, livro II, 362 A.

[78] Lundy, op. cit., p. 176.

[79] Bunsen. Egypt’s Place in Universal History, vol. V, p. 75.

[80] Alabaster, The Wheel of the Law, p. 35-6.

[81] The Debatable Land, p. 145.

[82] “Dividimos nosso zelo”, diz o Dr. Henry More, “contra tantas coisas que nos parecem
papistas que regateamos o justo quinhão de repulsa contra o que é verdadeiramente assim. Tal
é essa grosseira, vulgar e escandalosa possibilidade da Transubstanciação, os vários modos de
ofensiva Idolatria e as mentirosas imposturas, a incerteza de sua lealdade aos seus legítimos
Soberanos por sua supersticiosa adesão à tirania espiritual do Papa, e essa bárbara e ferina
crueldade contra aqueles que não são, nem tolos para serem persuadidos a acreditarem em tais
coisas, nem hipócritas e falsos que, conhecendo algo melhor, fingem nelas acreditar.” (P.S. à
carta a Glanvill, Sadduc. triumph., p. 53).

[83] R. Payne Knight acredita que Ceres “não era uma personificação da matéria bruta que
compõe a terra, mas do princípio passivo e produtivo que a permeia, e que, unido ao ativo, seria
a causa da organização e da animação de sua substância (...) Ela é mencionada por Virgílio
como a esposa do Pai onipotente, Éter ou Júpiter” (The Symbolical Language of Ancient Art and
Mythology, § XXXVI). Daí as palavras de Cristo, “é o Espírito que vivifica, a carne nada produz”,
aplicadas em seu duplo sentido às coisas espirituais e terrestres, ao espírito e à matéria.
Baco, como Dionísio, é de origem indiana. Cícero afirma que ele é filho de Thyônê e Nisus, [De
natura deorum, III, XXIII.] Διόνυσος significa o deus Dis dos Monte Nys, na Índia. Baco, coroado
de hera, ou kissos, é Krishna, um de cujos nomes era Kissen. Dionísio é sobretudo a divindade
em quem se centram todas as esperanças da vida futura; em suma, era o deus a quem se
esperava para libertar as almas dos homens das suas prisões carnais. Orfeu, o poeta-Argonauta,
era também esperado na terra para purificar a religião de seu grosseiro antropomorfismo
terrestre; ele aboliu o sacrifício humano e instituiu uma teologia mística baseada na pura
espiritualidade. Cícero chama Orfeu de filho de Baco. É estranho que ambos pareçam ter
originalmente vindo da Índia. Como Dionísio-Zagreus, Baco é de indubitável origem hindu.
Alguns autores, derivando uma curiosa analogia entre o nome de Orfeu e um antigo termo grego,
όρφυός, negro ou fulvo, lhe dão a nacionalidade hindu, relacionando o termo com a sua tez
escura. Ver Voss, Heyne e Schneider sobre os Argonautas.

[84] La Vie de Jésus cap. V.

[85] An Analysis of Religious Belief, vol. I, p. 466-67; ed. 1876.

[86] [Oupnek’hat, II, p. 732, nota; Strassburg, 1801-1802.]

[87] [Ver a Bhagavad-Gîtâ traduzida por Charles Wilkins, em 1785; e o Bhâgavata-Purânâ, que
contém a história de Krishna, traduzida para o francês por Eugène Burnouf, em 1840. Livro IV,
cap. 29.]

[88] Mateus, VII, 21.

[89] Descreption of the People of India, etc., vol. I, parte I, p. 47-8; ed. 1817.

[90] Ghost-Land; or Researches into the Mysteries of Occultism, cap. XV, etc. Editado pela Sra.
E. Hardinge-Britten, Boston, 1876.

[91] O Cap. James Riley, na Narrativa de sua escravização na África, relata exemplos
semelhantes de grande longevidade no Deserto do Saara.

[92] Armênia russa; um dos conventos cristãos mais antigos.

[93] Livro dos mortos egípcio. Os hindus têm sete céus superiores e sete inferiores. Os sete
pecados mortais dos cristãos foram tomados dos Livros de Hermes egípcios, com os quais
Clemente de Alexandria estava tão familiarizado.

[94] O costume atroz, posteriormente introduzido entre o povo, de sacrificar vítimas humanas, é
uma cópia pervertida do Mistério Teúrgico. Os sacerdotes pagãos, que não pertenciam à classe
dos hierofantes, utilizaram por algum tempo esse rito odiento, e ele serviu para encobrir o
propósito genuíno. Mas o Hércules grego é representado como o adversário dos sacrifícios
humanos e como um matador dos homens e dos monstros que os ofereciam. Mostra Bunsen,
pela própria ausência de qualquer representação do sacrifício humano nos monumentos mais
antigos, que esse costume havia sido abolido no velho Império, no fim do sétimo século depois
de Menes [Egypt’s Place, etc., vol. I, p. 18; também p. 65-6]; por conseguinte, 3.000 anos antes
de nossa era, Iphicrates havia posto fim por completo aos sacrifícios humanos entre os
cartagineses. Diphilus ordenou que os touros substituíssem as vítimas humanas. Amosis forçou
os sacerdotes a substituírem estas últimas por figuras de cera. [Porfírio, De abstin, II, § 55, 56.]
Por outro lado, para cada estrangeiro oferecido no santuário de Diana pelos habitantes do
Quersoneso Táurico, a Inquisição e o clero cristão pode se vangloriar de uma dezena de hereges
oferecidos no altar da “mãe de Deus” e de seu “Filho”. E quando pensaram os cristãos em
substituir por animais ou figuras de cera os hereges, os judeus e as bruxas? Eles os queimavam
em efígie apenas quando, através da interferência providencial, as pobres vítimas escapavam
de suas garras.
[95] Eis a razão pela qual Jesus recomenda que se ore só. Essa oração sagrada e secreta não
é senão o Parâ Vidyâ [Conhecimento Supremo] do filósofo vedantista: “Aquele que conhece sua
alma [o eu interior] retira-se diariamente para a região do Svarga, o reino celeste em seu próprio
coração”, diz a Chhândogya-Upanishad (VII, 3, 3). O filósofo vedantista reconhece o Âtman, o
eu espiritual, como o Deus Supremo e Único.

[96] The Wheel of the Law, p. 42.

[97] A. Wilder, “Prophecy, Ancient an Modern”.

[98] Estando em Petrovsk (Daghestan, região do Cáucaso), tivemos a oportunidade de


testemunhar outro de tais mistérios. Foi devido à gentileza do Príncipe Loris-Melikoff, o
governador geral de Daghestan, que vivia em Temir-Khân-Shura, e especialmente do Príncipe
Shamsudin-Khân, o ex-Shamhal regente de Tarkoff, um tártaro nativo, que durante o verão de
1865 assistimos a essa cerimônia de uma distância segura, numa espécie de cômodo particular,
construído sob o teto da edificação temporária.

[99] Não fornece isto um ponto de comparação com os chamados “médiuns materializadores”?

[100] Os Yezîdis devem contar ao todo cerca de 200.000 almas. As tribos que habitam o Pashalik
de Bagdá, e que estão espalhadas pelas montanhas sinjar, são as mais perigosas, sendo
odiadas por suas práticas maléficas. Seu xeque principal vive constantemente perto do túmulo
de seu profeta e reformador, Adi, mas toda tribo escolhe seu próprio xeque dentre aqueles que
mais conhecem a “arte negra”. Esse Adi ou Ad é um ancestral mítico dessas tribos, e não é outro,
senão Adi — Deus da sabedoria ou Pârsî Ab-ad, primeiro ancestral da raça humana, sendo ainda
o Âdi-Buddha dos hindus, antropomorfizado e degenerado.

[101] Em menos de quanto meses coletamos dos jornais diários quarenta e sete casos de crime,
que vão da bebedeira ao assassínio, cometidos por eclesiásticos apenas nos Estados Unidos.
Ao final do ano, nossos correspondentes do Oriente terão fatos preciosos para compensar com
as denúncias dos missionários a respeito da má conduta dos “pagãos”.

[102] [Commercial Bulletin, 17 de margo de 1877.]

[103] [2 Coríntios, V, 17.]

[104] The Evolution, Setembro de 1877, art. “Paul, the Founder of Christianity”.

[105] [A New Historical Relation of the Kingdom of Siam, “Diverse Observations to be Made in
Preaching the Gospel to the Orientals”, p. 136-37; Londres, 1693.]

[106] Descobrimos o seguinte em Gálatas, IV, 4: “Mas quando chegou a plenitude do tempo,
Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei”.

[107] A data foi estabelecida plenamente para esses Livros Páli em nosso próprio século;
suficientemente, pelo menos, para mostrar que existiam no Ceilão, em 316 a.C., quando
Mahinda, o filho de Asoka, lá estava (Ver Max Müller, Chips, etc., vol. I, p. 196).

[108] A New Historical Relation of the Kingdom of Siam, p. 140-41, por M. de La Loubère, Enviado
da França ao Sião, 1687-1688.

O relato de Sieur de La Loubère ao rei foi feito, como vemos, em 1687-1688. Quão aceita foi a
sua proposta aos jesuítas para suprimirem e disfarçarem o cristianismo pregado aos siameses,
prova-o a passagem alhures citada da Tese proposta pelos jesuítas de Caen (Thesis propugnata
in regio Soc. Jes. Collegio, celererrimae Academiae Cadomiemsis, die Veneñs, 30 Jan., 1693),
relativa ao seguinte: “(...) e não devem dissimular os Padres da Sociedade de Jesus, quando
adotam o instituto e o hábito dos talapoins de Sião”. Em cinco anos, o pequeno punhado de
levedura do Embaixador havia fermentado tudo o mais.
[109] Num diálogo de Hermes com Thoth, diz o primeiro: “É impossível para o pensamento
conceber corretamente a Deus (...) Não podemos descrever, por meio de órgãos materiais, aquilo
que é imaterial e eterno (...) Uma é a percepção do espírito, outra é a realidade. O que pode ser
percebido por nossos sentidos pode ser descrito em palavras; mas o que é incorpóreo, invisível,
imaterial, e sem forma não pode ser compreendido através de nossos sentidos ordinários. Eu
compreendo assim, Ó Thoth, Eu compreendo que Deus é Inefável.” [Champollion-Figeac, Egypte
ancienne, p. 139.]

No Catecismo dos Pârsîs, traduzido por Dâdâbhâi Naurojî, lemos o seguinte:

“P. Qual é a forma de nosso Deus?”

“R. Nosso Deus não tem face, nem forma, cor, figura, nem lugar fixo. Não existe outro que se lhe
assemelhe. Ele é Ele Mesmo, e tem tal glória que não podemos louvá-Lo ou descrevê-Lo, nem
pode a nossa mente compreendê-Lo.”

[110] Contemporary Review, julho de 1870, p. 588.

[111] Book of Ser Marco Polo, vol. II, p. 308.

[112] Ibid., II, 308.

[113] Ibid., II, 305-06.

[114] Da Ásia etc., Déc. V, p. II, liv. VI, cap. II, p. 16-7; ed. de Lisboa, 1780. Cf. Yule, op. cit., vol.
II, p. 308.

[115] [Contemp. Rev., loc. cit., citado em Yule, op. cit., II, 300, 309.]

[116] [Yule, op. cit., Introd., p. 15-6; também p. 13 do texto; ed. 1875.)

[117] Travels in Tartary, Thibet, etc., I, V.

[118] [Yule, op. cit., I, 339.]

[119] [Book of Ser Marco Polo, vol. I, p. 339-40; ed. 1875.]

[120] Seus vinte ou mais volumes sobre temas orientais são na verdade um curioso aglomerado
de verdade e ficção. Eles contêm uma grande quantidade de fatos sobre as tradições, a filosofia
e a cronologia indianas, com muitos pontos de vista corajosamente expressos. Mas é como se o
filósofo fosse constantemente superado pelo romancista. Como se dois homens estivessem
unidos em sua autoria — um cuidadoso, sério, erudito, sábio, o outro, um romancista francês
sensacional e sensual, que julga os fatos não como eles são, mas como ele os imagina. Suas
traduções do Manu são admiráveis; sua habilidade para a polêmica, notável; seus pontos de
vista sobre a moral dos sacerdotes, parciais, e, no caso dos budistas, positivamente caluniosas.
Mas em toda a série dos volumes não há uma única linha de leitura tediosa; ele tem o olho de
um artista, a pena de um poeta da Natureza.

[121] [Les fils de Dieu, p. 296.]

[122] Les fils de Dieu, p. 296.

[123] Ibid., p. 297.


12
Conclusões e exemplos
“Minha vasta e nobre capital, minha Daitu esplendidamente ornada!
E tu, minha fresca e deleitosa residência vernal, minha Shangtu-Keibung!
(...)
Ai do meu ilustre nome, soberano do Mundo!
Ai de minha Daitu, sede da santidade, obra gloriosa do imortal Kublai!
Tudo, tudo isto eu perdi!”
Cel. H. YULE, The Book of Ser Marco Polo, I, 296 (ed. 1875). [1]

“Quanto ao que ouvistes dizer outros que persuadem muitos,


assegurando-lhes que a alma, uma vez separada do corpo, não sofre (...)
maldade, nem é consciente, eu sei que não consentirá acreditar nisso o
bom fundamento das doutrinas recebidas de nossos antepassados e
confirmadas nas orgias sagradas de Dioniso; porque os símbolos
místicos são bastante conhecidos de nós que pertencemos à
Fraternidade.”
PLUTARCO, Consolatory Letter to his Wife, X.

“O problema da vida é o homem. A MAGIA, ou antes a Sabedoria, é o


conhecimento pleno das potências do ser interior do homem, que são
emanações divinas, como a intuição é a percepção da origem delas e a
iniciação, nossa introdução nesse conhecimento. (...) Começamos com o
instinto; o final é a ONISCIÊNCIA.”
A. WLDER.

“O Poder pertence àquele QUE SABE.”


Brahmanical Book of Evocation.

Seria prova de pouco discernimento de nossa parte supormos que fomos


seguidos até aqui apenas por metafísicos ou místicos de qualquer espécie. Se
assim fosse, certamente deveríamos poupar a essas pessoas o trabalho de
lerem este capítulo, pois, embora nada do que se vai dizer seja estritamente
verdadeiro, elas não hesitariam em considerar como falsa, embora
substanciada, a menor maravilha das narrativas que virão.

Resumo das proposições fundamentais


Para compreender os princípios da lei natural envolvidos nos muitos fenômenos
descritos a seguir, o leitor deve ter em mente as proposições fundamentais da
Filosofia Oriental que temos elucidado sucessivamente. Recapitulando-as
brevemente:
1. Não existe milagre algum. Tudo o que acontece é o resultado da lei — eterna,
imutável, sempre ativa. O milagre aparente é apenas a operação de forças
antagônicas a que o Dr. W. B. Carpenter, F. R. S. — um homem de grande
erudição, mas de pouco conhecimento — chama de “as leis devidamente
estabelecidas da Natureza”. Como muitos do seu grupo, o Dr. Carpenter ignora
o fato de que há leis “conhecidas” que a ciência desconhece.
2. A Natureza é trina: há uma natureza visível, objetiva; uma natureza invisível,
vital e energizadora, o modelo exato da outra e seu princípio vital; e, acima
dessas duas, o espírito, fonte de todas as forças, eterno e indestrutível. As duas
primeiras, inferiores, mudam constantemente; a terceira, superior, não.
3. O homem, também, é trino: ele possui seu corpo objetivo, físico; seu corpo
astral vitalizante (ou alma), o homem real; e estes dois são fecundados e
iluminados pelo terceiro — o espírito soberano, imortal. Quando o homem real
se identifica com o espírito, então se torna uma entidade imortal.
4. A Magia, enquanto ciência, é o conhecimento desses princípios e do caminho
pelo qual a onisciência e a onipotência do espírito e de seu controle sobre as
forças da Natureza podem ser adquiridas pelo indivíduo, enquanto ainda está no
corpo. A Magia, enquanto arte, é a aplicação prática desse conhecimento.
5. O conhecimento arcano mal-aplicado é feitiçaria; devidamente utilizado, é
magia verdadeira ou SABEDORIA.
6. A mediunidade é o contrário da condição de adepto; o médium é um
instrumento passivo de influências estranhas, o adepto controla-se ativamente e
a todas as potências inferiores.
7. O iniciado adepto, utilizando a visão de seu próprio espírito, pode conhecer
tudo o que foi ou pode ser conhecido, todas as coisas passadas, presentes e
futuras que foram registradas na luz astral, ou nos anais do universo
inobservado.
8. As raças de homens diferem em dons espirituais como em cor, estatura ou
qualquer outra qualidade externa; entre alguns povos prevalece naturalmente a
vidência; entre outros, a mediunidade. Alguns aderem à feitiçaria e transmitem
suas regras secretas de prática de geração a geração e têm como resultado uma
série de fenômenos físicos mais ou menos ampla.
9. Uma fase da habilidade mágica é a separação voluntária e consciente do
homem interior (forma astral), do homem exterior (corpo físico). No caso de
alguns médiuns ocorre essa separação, mas é inconsciente e involuntária.
Nestes últimos, o corpo é mais ou menos cataléptico nessas ocasiões; mas, no
adepto, a ausência da forma astral não seria notada, pois os sentidos físicos
estão alertas e o indivíduo parece estar abstraído — “um devaneio”, como alguns
o chamam.
Nem o tempo, nem o espaço oferecem obstáculos aos movimentos da forma
astral vagueante. O taumaturgo, profundamente versado em ciência oculta, pode
fazer-se (isto é, seu corpo físico) parecer desaparecer, ou aparentemente
assumir qualquer forma que quiser. Ele pode tornar visível sua forma astral, ou
pode lhe dar aparências protéicas. Em ambos os casos, esses resultados podem
ser conseguidos por uma alucinação mesmérica simultânea dos sentidos de
todas as testemunhas. Essa alucinação é tão perfeita que sua vítima apostaria
a vida, tomando por realidade o que é apenas uma imagem mental refletida na
sua consciência pela vontade irresistível do mesmerizador.
Mas, ao passo que a forma astral pode ir a qualquer parte, ultrapassar qualquer
obstáculo e ser vista a qualquer distância do corpo físico, isto depende dos
métodos ordinários de transporte. Pode ser levitado sob condições magnéticas
prescritas, mas não passa de um lugar a outro, exceto da maneira usual. Por
esta razão repudiam-se todas as histórias de vôos aéreos de médiuns, pois isso
seria um milagre, e repudiamos os milagres. A matéria inerte pode ser, em certos
casos e sob certas condições, desintegrada, passar através de muros e
recombinada, mas os organismos animais vivos não podem fazê-lo.
Os swedenborgianos acreditam que a ciência arcana ensina que o abandono do
corpo vivo pela alma ocorre frequentemente e que nos deparamos a cada dia,
em toda condição vital, com esses cadáveres vivos. Várias causas — entre elas
o temor esmagador, a dor, o desespero, um violento ataque de doença ou
sensualidade excessiva — podem ocasionar esse abandono. A carcaça vacante
pode ser penetrada e habitada pela forma astral de um feiticeiro adepto ou por
um elementar (uma alma humana desencarnada presa à terra) ou, muito
raramente, por um elemental. Naturalmente, um adepto da magia branca possui
o mesmo poder, mas, a menos que tenha de cumprir uma grande missão muito
excepcional, ele nunca consentirá em se poluir ocupando o corpo de uma pessoa
impura. Em casos de insanidade, o ser astral do paciente ou está
semiparalisado, perplexo e sujeito à influência de todo espírito vagueante, ou se
afasta definitivamente dele e o corpo é então ocupado por alguma entidade
vampiresca prestes a se desintegrar e apegada à Terra, cujos prazeres sensuais
ela pode desfrutar por um breve tempo graças a esse expediente.
10. A pedra angular da MAGIA é um conhecimento prático profundo do
magnetismo e da eletricidade, suas qualidades, correlações e potências. É
especialmente necessária uma familiaridade com seus efeitos no reino animal e
no homem e sobre eles. Há propriedades ocultas em muitos outros minerais,
igualmente estranhos como o ímã, que todos os praticantes de Magia devem
conhecer e que são ignoradas completamente pela chamada ciência exata. As
plantas também possuem propriedades místicas semelhantes num grau mais
maravilhoso e os segredos das ervas dos sonhos e encantamentos foram
perdidos pela ciência européia e, é inútil dizer, são por ela desconhecidos, exceto
em alguns casos, tais como o ópio e o haxixe. Todavia, os efeitos físicos dessas
poucas plantas sobre o sistema humano são considerados como provas de uma
desordem mental temporária. As mulheres da Tessália e de Épiro, hierofantes
femininas dos ritos de Sabázio, não sepultaram seus segredos com a queda de
seus santuários. Eles foram preservados e, quem conhece a natureza do Soma,
conhece as propriedades das outras plantas.

A vidência da alma e do espírito


Para resumir tudo isto em poucas palavras, a MAGIA é a SABEDORIA espiritual;
a Natureza, o aliado material, discípula e criada do mago. Um princípio vital
comum penetra todas as coisas e é controlado pela vontade humana
aperfeiçoada. O adepto pode estimular os movimentos das forças naturais nas
plantas e nos animais num grau sobrenatural. Esses experimentos não são
obstruções da Natureza, mas vivificações — condições de ação vital mais
intensa.
O adepto pode controlar as sensações e alterar as condições dos corpos físicos
e astrais de outras pessoas que não sejam adeptos; também pode governar e
utilizar, como quiser, os espíritos dos elementos. Ele não pode controlar o
espírito imortal de qualquer ser humano, vivo ou morto, pois esses espíritos são
como centelhas da Essência Divina e não estão sujeitos a qualquer dominação
estranha.
Há duas espécies de vidência — a da alma e a do espírito. A vidência das antigas
pitonisas, ou do paciente mesmerizador moderno, varia apenas nos modos
artificiais adotados para induzir o estado de clarividência. Mas, como as visões
de ambos dependem da maior ou menor agudeza dos sentidos do corpo astral,
elas diferem enormemente do estado espiritual perfeito, onisciente, pois, no
melhor dos casos, o paciente pode obter apenas lampejos da verdade, através
do véu que a natureza física interpõe. O princípio astral, ou a mente, chamado
pelo iogue hindu jîvâtman, é a alma sensível, inseparável de nosso cérebro
físico, que ela mantém em sujeição e por quem é, por sua vez, dominada. Este
é o ego, o princípio vital intelectual do homem, sua entidade consciente. Embora
esteja dentro do corpo material, a clareza e a exatidão de suas visões espirituais
dependem de sua relação mais ou menos íntima com seu Princípio superior.
Quando essa relação é tal que permite que as porções mais etéreas da essência
da alma ajam independentemente de suas partículas mais grosseiras e do
cérebro, ela pode perceber o que vê sem mescla de erro: só então ela se torna
a alma pura, racional, supersensível. É isso que na Índia se conhece por
Samâdhi: é a mais alta condição de espiritualidade possível ao homem na terra.
Os faquires tentam obter essa condição com a retenção de sua respiração por
horas a fio durante seus exercícios religiosos e chamam essa prática de dama-
sandhâna. Os termos hindus Prânâyâma, Pratyâhâra e Dhâranâ referem-se a
diferentes estados psicológicos e mostram o quanto o sânscrito, e até a língua
hindu moderna, está mais adaptado para uma elucidação clara dos fenômenos
encontrados por aqueles que estudam esse ramo da ciência psicológica, do que
as línguas dos povos modernos, cujas experiências ainda não precisaram da
invenção desses termos descritivos.
Quando o corpo está no estado de dhâranâ — uma catalepsia total da forma
física —, a alma do clarividente pode liberar-se e perceber as coisas
subjetivamente. Mas, como o princípio senciente do cérebro está vivo e ativo,
essas imagens do passado, do presente e do futuro serão misturadas às
percepções terrestres do mundo objetivo; a memória física e a fantasia estarão
no lugar da visão clara. Mas o vidente-adepto sabe como suspender a ação
mecânica do cérebro. Suas visões serão tão claras como a própria verdade,
incolores e não-distorcidas, ao passo que o clarividente, incapaz de controlar as
vibrações das ondas astrais, apenas perceberá mais ou menos imagens
quebradas por meio do cérebro do médium. O vidente nunca pode tomar
sombras bruxuleantes por realidades, pois, estando sua memória
completamente sujeita à sua vontade como o resto do corpo, ele recebe
impressões diretamente do seu espírito. Entre seus egos subjetivo e objetivo não
existem médiuns obstrutivos. Esta é a vidência espiritual real, na qual, de acordo
com uma expressão de Platão, a alma é elevada para cima de todos os deuses
inferiores. Quando alcançamos “o que é supremo, o que é simples, puro e
imutável, sem forma, cor ou qualidades humanas: o Deus — nosso Nous”.
Esse é o estado que videntes como Plotino e Apolônio chamaram de “União com
a Divindade”; que os iogues antigos chamaram Îsvara, [2] * e os modernos
chamam de Samâdhi; mas esse estado está tão distante da clarividência
moderna, quanto as estrelas estão acima dos pirilampos. Plotino, como se sabe,
foi um clarividente-vidente durante toda a sua vida; e no entanto ele se uniu a
seu Deus apenas quatro vezes, durante os sessenta e seis anos de sua
existência, como ele mesmo confessou a Porfírio.
* Há uma grande confusão nas últimas linhas desta nota e sua causa é difícil de ser determinada.
Basta apontar que o Pûrva-Mîmânsâ-sûtra também é conhecido como Jaiminisûtra e que a
filosofia do Uttara-mîmânsâ ou Vedânta está exposta principalmente nos famosos bhâshyas ou
comentários dos Brahmasûtras de Bâdarâyana e Samkarâchârya. O nome Vyâsa não está
relacionado de maneira alguma ao Vedanta. Consultar Bibliografia, s. v. Mîmânsâ. (N. do Org.)

Ammonius Sacca, o “ensinado por Deus”, afirma que o único poder que se opõe
diretamente ao vaticínio e ao predizer o futuro é a memória, a que Olimpiodoro
chama de fantasia. “A fantasia”, diz ele, “é um impedimento das nossas
concepções intelectuais; por essa razão, quando somos agitados pela influência
inspiradora da Divindade, se a fantasia intervém, cessa a energia entusiástica,
pois o entusiasmo e a fantasia são reciprocamente contrários. Se nos
perguntassem se a alma é capaz de se energizar sem a fantasia,
responderíamos que sua percepção dos universais prova que ela é capaz. Ela
possui percepções, portanto, independentemente da fantasia; ao mesmo tempo,
todavia, a fantasia acompanha-a em suas energias, assim como a tempestade
persegue aquele que se aventura pelo mar”. [3]
Um médium, além disso, não precisa de uma inteligência estranha — um espírito
ou um mesmerizador vivo — para subjugar suas partes físicas e mentais, ou de
nenhum meio fictício para induzir o transe. Um adepto, e mesmo um simples
faquir, precisa de apenas alguns minutos de “autocontemplação”. As colunas de
bronze do templo de Salomão, os sinos dourados e as romãs de Aarão, o Júpiter
Capitolino de Augusto cercado de harmoniosas campainhas [4] e as taças de
bronze utilizadas nos mistérios quando o Korê era chamado [5] — eram meios
artificiais de que se valiam os antigos. [6] E também, as taças de bronze de
Salomão cercadas por uma fileira dupla de duzentas romãs, que serviam de
badalos nos ocos das colunas. As sacerdotisas da Alemanha Setentrional, sob
a liderança dos hierofantes, só podiam profetizar entre o rumor de águas
tumultuosas. Elas se hipnotizavam ao olhar fixamente as ondas formadas com o
curso rápido do rio. Sabemos que José, o filho de Jacó, buscava inspiração
divina com sua taça dourada de adivinhação, em que certamente deve ter
propiciado um fundo brilhante para tal. As sacerdotisas de Dodona colocavam-
se sob o velho carvalho de Zeus (o deus pelásgio, não o olímpico) e ouviam
atentamente o murmúrio das folhas sagradas, enquanto outras concentravam
sua atenção no murmurejar do arroio frio que regava suas raízes. [7] Mas o
adepto não precisa de nenhum auxílio artificioso — a simples ação de seu poder
de vontade é mais do que suficiente.
O Atharva-Veda ensina que o exercício desse poder de Vontade é a forma mais
elevada de prece e sua resposta instantânea. Desejar é realizar em proporção à
intensidade da aspiração; e a realização, por sua vez, é medida pela pureza
interior.
Alguns desses preceitos vedantinos mais nobres sobre a alma e sobre os
poderes místicos do homem foram expostos por um erudito hindu e publicados
recentemente por um periódico inglês, “A Sânkhya”, escreve o hindu, “ensina
que a alma [isto é, o corpo astral] tem os seguintes poderes: comprimir-se numa
forma diminuta, ou dilatar-se em tamanho gigantesco, ou levitar (ao longo de um
raio de luz até o globo solar), ou possuir extensão ilimitada dos órgãos (como
tocar a Lua com a ponta dos dedos), ou uma vontade irresistível (por exemplo,
mergulhar na terra tão facilmente quanto o faria na água), e domínio sobre todos
os seres, animados ou inanimados, faculdade de mudar o curso da Natureza,
habilidade para realizar tudo quanto deseja”. A seguir, dá os nomes a esses
poderes:
“Os poderes chamam-se: 1, Animan; 2, Mahiman; 3, Laghiman; 4, Gariman; 5,
Prâpti; 6, Prâmâmya; 7, Vasitva; 8, Isitva, ou poder divino. O quinto é predizer
eventos futuros, compreender línguas desconhecidas, curar doenças, adivinhar
pensamentos inexpressos, compreender a linguagem do coração. O sexto é o
poder de mesmerizar seres humanos e animais e fazê-los obedientes; é o poder
de dominar as paixões e as emoções. O oitavo é o estado espiritual; a ausência
dos sete anteriores prova que nesse estado o iogue está pleno de Deus”.
“Nenhum escrito”, acrescenta ele, “revelado ou sagrado, é tão autorizado e final
como o ensinamento da alma. Alguns rishis parecem ter acentuado em grande
medida essa fonte supersensual do conhecimento”. [8]
Desde a Antiguidade mais remota, a Humanidade como um todo sempre se
convenceu da existência de uma entidade espiritual pessoal no interior do
homem físico. Essa entidade interna era mais ou menos divina, segundo sua
proximidade com a coroa — Christos. Quanto mais estreita a união, mais sereno
o destino do homem, menos perigosas as condições externas. Essa crença não
é beatice, nem superstição, apenas um sentimento onipresente, instintivo da
proximidade de um outro mundo espiritual e invisível que, embora seja subjetivo
aos sentidos do homem exterior, é perfeitamente objetivo para o ego interior.
Além disso, os antigos acreditavam que há condições externas e internas que
afetam a determinação de nossa vontade às nossas ações. Eles rejeitavam o
fatalismo, pois o fatalismo implica na ação cega de algum poder ainda mais cego.
Mas eles acreditavam no destino, que o homem vai tecendo desde o nascimento
até a morte, fio por fio, ao seu redor, como uma aranha tece a sua teia; e esse
destino é guiado ou pela presença chamada por alguns de anjo guardião, ou pelo
nosso homem interior astral mais íntimo, que é muito frequentemente o gênio
mau do homem encarnado. Ambos se dirigem para o homem exterior; mas um
deles deve prevalecer; e, desde que se inicie a luta invisível entre um e outro, a
severa e implacável lei da compensação intervém, seguindo fielmente as
flutuações. Quando o último fio estiver tecido e o homem estiver envolto na rede
por ele mesmo tecida, então ele se encontra completamente preso no império
desse destino feito por ele, que o fixará em um determinado lugar como a concha
inerte contra o rochedo imovível, ou, como uma leve pluma, o levará de um lado
a outro, arrastado pelo torvelinho de suas próprias ações.

O fenômeno da chamada mão espiritual


Aos maiores filósofos da Antiguidade não parecia irracional, nem estranho, que
“as almas voltassem às almas e comunicassem a elas concepções de coisas
futuras, às vezes por letras, ou por um simples toque, ou, por um vislumbre,
revelassem eventos passados ou anunciassem eventos futuros”, como nos
relata Amônio. Além disso, Lamprias e alguns outros afirmaram que, se os
espíritos ou almas desencarnados descessem à Terra e se tornassem guardiães
de homens mortais, “não podemos privar das almas que ainda estão nos corpos,
esse poder de conhecer eventos futuros e de os anunciar. Não é provável”,
acrescenta Lamprias, “que a alma, após a separação do corpo, ganhe um novo
poder de profecia que ela não possuísse anteriormente. Devemos antes concluir
que ela possuía todos esses poderes durante sua união com o corpo, embora
num grau inferior de perfeição. (...) Pois, assim como o Sol só não brilha quando
passa por entre as nuvens, mas sempre refulge e só é ofuscado e obscurecido
pelos vapores, da mesma maneira a alma só não recebe o poder de olhar para
o futuro quando se afasta do corpo, mas sempre possuiu esse poder embora
estivesse ofuscado pela conexão com o terreno”. [9]
Um exemplo familiar de uma fase do poder de a alma ou o corpo astral se
manifestar é o fenômeno conhecido como “mãos luminosas”. Na presença de
determinados médiuns, esses membros aparentemente destacados do corpo se
desenvolverão a partir de uma névoa luminosa, pegarão um lápis, escreverão
mensagens e então se dissolverão diante dos olhos das testemunhas. Muitos
casos estão registrados por pessoas absolutamente competentes e confiáveis.
Esses fenômenos são reais e exigem uma consideração séria. Mas “mãos-
luminosas” falsas às vezes são tomadas como verdadeiras. Em Dresden, vimos
certa vez uma mão e um braço, feitos com intenção de enganar, com um
engenhoso arranjo de que fariam o mecanismo imitar perfeitamente os
movimentos do membro natural, ao passo que exteriormente seria preciso uma
inspeção muito rigorosa para se detectar seu caráter artificial. Ao usá-lo, o
médium desonesto desliza seu braço natural para fora da sua manga e o
substitui pelo aparato mecânico; ambas as mãos parecem então repousar sobre
a mesa, ao passo que de fato uma outra está tocando os presentes, mostrando-
se, dando batidas nos móveis e produzindo outros fenômenos.
Os médiuns mais adequados às manifestações reais são os menos capazes, via
de regra, de compreender ou explicar essas manifestações. Dentre aqueles que
escreveram mais inteligentemente sobre o tema dessas mãos luminosas está o
Dr. Francis Gerry Fairfield, autor de Ten Years with Spiritual Mediums, um artigo
que apareceu em The Library Fable de 19 de julho de 1877. Ele mesmo um
médium, é um forte oponente da teoria espiritista. Discutindo o tema da “mão
luminosa”, ele afirma que “isto o autor testemunhou pessoalmente, sob
condições de teste estabelecidas por ele próprio, em seus próprios aposentos, à
luz do dia, com o médium sentado em um sofá a seis ou oito pés da mesa sobre
a qual a aparição (a mão) surgiu. A aplicação dos pólos de um ímã em forma de
ferradura à mão obrigou-a a oscilações perceptíveis e lançou o médium em
convulsões violentas — prova bastante conclusiva de que a força envolvida no
fenômeno fora gerada em seu próprio sistema nervoso”.

A diferença entre médiuns e adeptos


A dedução do Dr. Fairfield de que a mão luminosa trêmula é uma emanação do
médium, é lógica e correta. O teste do ímã em forma de ferradura prova de
maneira científica o que todo cabalista afirmaria com base na autoridade da
ciência, não menos do que na da filosofia. A “força envolvida no fenômeno” é a
vontade do médium, exercida inconscientemente sobre o homem exterior, que
nesse momento está semiparalisado e cataléptico; a mão-luminosa é uma
projeção do membro inferior ou astral do homem. Este é aquele ego real cujos
membros o cirurgião não pode amputar, porém que continuam sendo o veículo
sensório mesmo depois da morte do corpo físico (não obstante quantas
hipóteses neurológicas tenham sido estabelecidas em contrário). Este é aquele
corpo espiritual (astral) que “se eleva em não-corrupção”. É útil afirmar que se
trata de mãos-espírito, pois, admitindo-se que, em toda sessão, espíritos
humanos de muitas espécies são atraídos pelo médium, e que eles guiam e
produzem algumas manifestações, para tornar objetivas mãos ou faces, eles são
compelidos a utilizar os membros astrais do médium ou os materiais fornecidos
a eles pelos elementais, ou as emanações áuricas combinadas de todas as
pessoas presentes. Os espíritos puros não querem, nem podem manifestar-se
objetivamente; os que o fazem não são espíritos puros, mas elementares e
elementais. Desgraçado do médium que for presa dessas entidades astrais!
O mesmo princípio envolvido na projeção inconsciente de um membro fantasma
pelo médium cataléptico aplica-se à projeção de seu “duplo” ou corpo astral
inteiro. Essa projeção pode ser efeito da vontade do próprio ego interior do
médium, sem retenção, em seu cérebro físico, de qualquer lembrança desta
tentativa — que é uma fase da capacidade dual do homem. Ela também pode
ser efetuada por espíritos elementares e elementais, com as quais ele pode estar
na relação de paciente mesmérico. O Dr. Fairfield está certo em uma posição
assumida em seu livro, a saber: os médiuns estão comumente atacados por uma
enfermidade orgânica e em alguns casos transmitem essa doença aos seus
filhos. Mas está completamente errado ao atribuir todos os fenômenos psíquicos
a condições fisiológicas mórbidas. Os adeptos da magia oriental gozam
constantemente de perfeita saúde mental e corporal e, na verdade, a produção
voluntária e independente de fenômenos é impossível para quaisquer outras
pessoas. Conhecemos muitos e nunca vimos um doente entre eles. O adepto
tem consciência perfeita; não apresenta nenhuma mudança de temperatura
corporal, ou outro sinal de morbidez; não exige “condições”, mas realizará suas
façanhas em qualquer tempo e em qualquer lugar, e, em vez de ser passivo e
estar sujeito à influência estranha, governa as forças com uma vontade de ferro.
Mas já mostramos que o médium e o adepto são tão opostos quanto os pólos.
Só acrescentaremos que o corpo, a alma e o espírito do adepto são conscientes
e trabalham em harmonia, mas o corpo do médium é um torrão inerte e sua alma
poderá estar longe dali num sonho, enquanto sua habitação estiver ocupada por
um outro.
Um adepto não só pode projetar e tornar visível uma mão, um pé ou qualquer
outra parte de seu corpo, mas também todo o corpo. Vimos um realizar essa
projeção, em plena luz do dia, enquanto suas mãos e seus pés estavam seguros
por um amigo cético a quem queria surpreender. [10] Pouco a pouco todo o corpo
astral exsudou-se como uma nuvem de vapor, assumindo duas formas, a
segunda das quais era uma duplicata exata da primeira, apenas um pouco mais
indistinta.
O médium não exercita qualquer poder de vontade. Basta que ele ou ela saiba
o que os investigadores esperam. A entidade “espiritual” do médium, quando não
obsedado por outros espíritos, agirá fora da vontade ou da consciência do ser
físico, como seguramente ela age quando está dentro do corpo num caso de
sonambulismo. Suas percepções, externas e internas, serão mais agudas e
muito mais desenvolvidas, precisamente como o são as do sonâmbulo. E é por
isso que “a forma materializada às vezes sabe mais do que o médium”, [11] pois
a percepção intelectual da entidade astral é proporcionalmente muito mais
elevada do que a inteligência corporal do médium em seu estado normal, como
a entidade espiritual é mais sutil. Geralmente o médium esfriará, o pulso mudará
visivelmente e um estado de prostração nervosa sucede aos fenômenos, inábil
e indiscriminadamente atribuídos a espíritos desencarnados; por outro lado,
apenas um terço deles pode ser produzido por estes últimos, outro terço pelos
elementais e o restante pelo duplo astral do próprio médium.
Mas — ao passo que acreditamos firmemente que a maioria das manifestações
físicas, isto é, aquelas que não precisam de inteligência ou grande discriminação
e nem se exibem, é produzida mecanicamente pelo scîn-lâc (duplo) do médium,
da maneira que atua durante o sono comum, de modo que, ao despertar, de
nada se lembra a pessoa de tudo aquilo que lhe ocorreu em sonhos — os
fenômenos puramente subjetivos são apenas uma porção pequena de casos
devidos à ação do corpo astral pessoal. Eles são principalmente, e de acordo
com a moral, a pureza intelectual e física do médium, obra dos espíritos
elementares e às vezes dos espíritos humanos puros. Os elementais nada têm
a ver com as manifestações subjetivas. Em casos raros, é o espírito divino do
próprio médium que os guia e os produz.
Como afirma Bâbû Pyârichânda Mitra, numa carta ao Presidente da Associação
Nacional dos Espiritistas, o Sr. Alexandre Calder, “um espírito é uma essência
ou poder, e não tem forma. (...) A idéia mesma de forma implica ‘materialismo’.
Os espíritos [almas astrais, diríamos] (...) podem assumir formas por algum
tempo, mas a forma não é seu estado permanente. Quanto mais material a nossa
alma, mais material a nossa concepção dos espíritos”. [12]
Epimênides, o Órfico, foi famoso por sua “natureza sagrada e maravilhosa” e
pela faculdade que sua alma possuía de abandonar seu corpo “por quanto tempo
e quando quisesse”. Os filósofos antigos que testemunharam essa habilidade
podem ser contados às dúzias. Apolônio abandonava seu corpo a qualquer
instante, mas devemos nos lembrar de que Apolônio era um adepto — um
“mago”. Fosse apenas um médium, ele não poderia ter realizado essas façanhas
a seu bel prazer. Empédocles de Agrigento, o taumaturgo pitagórico, não exigia
condições para desviar uma tromba d’água que ameaçava cair sobre a cidade.
Nem precisou de nada para ressuscitar uma mulher, como o fez. Apolônio não
usava nenhum compartimento escuro dentro do qual realizasse suas façanhas
etrobáticas. Desaparecendo de repente no ar diante dos olhos de Domiciano e
de toda uma multidão de testemunhas (muitos milhares de pessoas), ele
apareceu uma hora depois na gruta de Puteoli. Mas a investigação teria
mostrado que, tornado invisível seu corpo físico pela concentração de âkâsa, ele
poderia ter caminhado em segurança para algum lugar retirado da vizinhança e,
uma hora depois, sua forma astral surgiu em Puteoli para os seus amigos, e
parecia ser o próprio homem.
Da mesma maneira, Simão, o Mago não precisava entrar em transe para flutuar
no ar diante dos apóstolos e das multidões de testemunhas. “Isso não requer
conjuração, nem cerimônias; a formação de círculos e o incensamento não têm
sentido e são trapaças”, diz Paracelso. O espírito humano “é uma coisa tão
grande, que nenhum homem o pode expressar; assim como o Próprio Deus é
eterno e imutável, assim também é a mente do homem. Se compreendermos
corretamente os seus poderes, nada nos será impossível sobre a Terra. A
imaginação se desenvolve e se fortalece por meio da fé em nossa vontade. A fé
deve confirmar a imaginação, pois a fé estabeleceu a vontade”.

Diálogo entre um embaixador inglês


e um Buddha reencarnado
Um relato singular da entrevista pessoal — apenas mencionada no vol. I, tomo
II, desta obra — de um embaixador inglês em 1783 com um Buddha
reencarnado, um bebê de dezoito meses de idade naquela época, nos é
fornecido nas Asiatic Researches pela própria testemunha ocular, o Sr. Turner,
o autor de The Embassy to Tibet. A fraseologia cautelosa de um infortúnio
ridículo, público, apavorante e cético esconde o espanto da testemunha, que, ao
mesmo tempo, deseja dar os fatos tão fielmente quanto possível. O lama infante
recebeu o embaixador e sua comitiva com uma dignidade e um decoro tão
naturais e descontraídos, que eles caíram numa absoluta estupefação de
maravilhas. O comportamento desse infante, diz o autor, foi o de um velho
filósofo, grave e sossegado, e sumamente cortês. Ele conseguiu fazer o jovem
pontífice compreender a dor inconsolável em que o Governador-Geral de
Galagata (Calcutá), a Cidade dos Palácios, e o povo da Índia estavam
mergulhados quando de sua morte e a viva satisfação por todos experimentada
quando descobriram que havia ressuscitado num corpo jovem e fresco; a esse
cumprimento, o jovem lama o observou e à sua comitiva com olhares de singular
complacência. “O embaixador continuou a expressar os votos do Governador-
Geral de que o lama pudesse continuar a iluminar por muito tempo o mundo com
sua presença; e de que a amizade que, de agora em diante, subsistia entre eles
pudesse ser fortemente incrementada para o benefício e o interesse dos devotos
inteligentes do lama (...) tudo isso fez a pequena criatura olhar firmemente para
o falante e graciosamente curvar-se e balançar a cabeça — como se ele
compreendesse e aprovasse (...) todas as palavras pronunciadas.” [13]
Como se compreendesse! Se o infante se comportara da maneira mais natural
e digna durante a recepção e, “quando suas taças de chá se esvaziavam,
tornava-se apreensivo e atirava para trás a cabeça e franzia o cenho, e
continuava a fazer barulho até que elas fossem enchidas novamente”, por que
ele não poderia compreender perfeitamente o que lhe fora dito?
Há alguns anos, um pequeno grupo de viajantes seguia penosamente de
Cachemira a Leh, cidade do Ladâkh (Tibete Central). * Entre os nossos guias ia
um xamã tártaro, uma personagem muito misteriosa, que falava um pouco de
russo e nada de inglês e que conseguiu lá uma maneira de conversar conosco
e nos ser de muita utilidade. Sabedor de que alguns membros do nosso grupo
eram russos, imaginou que poderíamos protegê-lo contra tudo e ajudá-lo a voltar
a seu lar siberiano, do qual, por razões desconhecidas, havia fugido vinte anos
antes, como nos contou, passando por Kyakhta e pelo deserto de Gobi, rumo ao
país dos chakhar. [14] ** Em vista da confiança que em nós depositou o guia,
consideramo-nos seguros sob sua guarda. Para explicar a situação com poucas
palavras: nossos companheiros haviam maquinado o plano temerário de
penetrar no Tibete sob vários disfarces, sem que nenhum deles conhecesse a
língua do país, exceto um deles, a quem chamarei Sr. K., que sabia algo do
idioma tártaro kazan e que pensava conseguir realizar o plano. Como só
mencionamos este fato incidentalmente, podemos dizer que dois deles, os
irmãos N., foram gentilmente trazidos de volta à fronteira antes que
caminhassem dezesseis milhas pelas terras do Bod Oriental; e o Sr. K., um ex-
ministro luterano, não pôde nem tentar deixar sua miserável aldeia perto de Leh,
pois caiu de cama com febre e teve de voltar a Lahore por Cachemira. Mas teve
oportunidade de presenciar um fato que para ele equivalia a testemunhar a
reencarnação do próprio Buddha. Como havia ouvido falar desse “milagre” por
um velho missionário russo em quem confiava muito mais do que no Abade Huc,
era seu desejo já há muitos anos descobrir a “grande trapaça gentia”, como a
denominava. K. era um positivista e se orgulhava desse neologismo
antifilosófico. Mas esse positivismo estava condenado a sofrer um golpe mortal.
* O Ladak (ou Ladakh) e o Baltistão são províncias da Cachemira e o nome Ladak pertence
primeiramente ao amplo vale do Alto Indo, mas inclui muitos distritos circunvizinhos que com ele
estão em conexão política. Limita-se ao norte pela cadeia Kuenlun e pelos declives de
Karakorum, a noroeste e oeste pelo Baltistão (conhecido como Pequeno Tibete), a sudoeste pela
própria Cachemira, ao sul pelo que se costumava dizer território himalaiano britânico e a leste
pelas províncias tibetanas de Ngari e Rudog. Toda a região é muito alta, os vales de Rupshu e
do Sudeste estão a 15.000 pés e o Indo, perto de Leh, a 11.000 pés, ao passo que a altura média
das cadeias vizinhas chega a 20.000 pés. Leh (11.550 pés) é a capital do Ladak e a estrada de
Srinagar a Leh liga o belo vale do Sind às fontes do rio no Passo de Zoji La (11.580 pés), na
cadeia Zaskar. Muitas estradas partem de Leh para o Tibete; a mais conhecida delas é a que vai
do vale do Indo ao platô tibetano, por Chang La, ao Lago Pangong e a Rudog (14.000 pés).

É um erro chamar essa região de Tibete Central, embora alguns escritores o façam. (N. do Org.)
** Os chakhars são uma tribo dos mongóis que estão levando uma vida nômade ao longo da
Grande Muralha Norte de Suanhwa e Tatung, na China. Na época de H. P. B., eram governados
por oficiais indicados por Pequim. Há uma grande dose de Xamanismo entre eles, embora em
vários aspectos tivessem adotado muitos costumes e crenças chineses. (N. do Org.)

A uns quatro dias de Islamâbâd, numa vila insignificante, cuja característica


redentora era um Iago magnífico, paramos para um descanso de alguns dias.
Nossos companheiros haviam-se separado temporariamente de nós e a vila
seria o local de nosso reencontro. Foi ali que fomos informados por nosso xamã
de que um grande grupo de “santos” lamaicos, em peregrinação por vários
santuários, ali estava alojado numa caverna-templo da redondeza, onde havia
estabelecido um Vihâra temporário. Ele acrescentou que, como, segundo se
dizia, os “Três Honoráveis” [15] viajavam com eles, os santos Bhikshus (monges)
eram capazes de produzir os maiores milagres. O Sr. K., entusiasmado com a
perspectiva de confundir este embuste dos séculos, apressou-se a visitá-los e,
a partir desse momento, estabeleceram-se entre os dois campos as relações
mais amigáveis.
O Vihâra estava situado numa paragem solitária e romântica ao abrigo de toda
intrusão. A despeito das atenções mais efusivas, dos presentes e dos protestos
do Sr. K., o Chefe, que era um Pase-Budhu [16] (um asceta de grande santidade),
não quis exibir o fenômeno da “encarnação” até que fosse exibido um certo
talismã que estava de posse da autora destas linhas. [17] Apenas o viu, todavia,
e os preparativos foram feitos e um bebê de três ou quatro meses foi trazido,
filho de uma mulher pobre da vizinhança. Exigiu-se que o Sr. K. pronunciasse o
juramento de não divulgar, por sete anos, o que pudesse ver ou ouvir. O talismã
é uma simples ágata ou cornalina conhecida entre os tibetanos e por outros
como A-yu, e possui, natural ou convencionalmente, muitas propriedades
misteriosas. Têm um triângulo gravado sobre ele, dentro do qual estão algumas
palavras místicas. [18]
Alguns dias se passaram até que tudo estivesse pronto; nada de caráter
misterioso ocorreu durante esse tempo, exceto, a convite de um Bhikshu, o
aparecimento de rostos espectrais vindos do seio cristalino do lago, enquanto
nos mantínhamos sentados à borda da entrada do Vihâra. Um desses rostos era
o da irmã do Sr. K., que ele deixara bem e muito feliz em casa, porém que, como
soubemos posteriormente, morrera pouco tempo depois que ele partira. A visão
o impressionou, mas logo ele se apoiou no ceticismo e se acalmou com teorias
de sombras de nuvens, reflexos dos ramos das árvores, etc., como pessoas
desse tipo costumam fazer nessas situações.
Na tarde marcada, o bebê, trazido para o Vihâra, foi colocado no vestíbulo ou
salão de recepção, pois K. não podia passar dali. A criança foi então colocada
num tapete no centro do piso e, depois de afastados os curiosos, dois
“mendicantes” se postaram à entrada para impedir a presença de intrusos. Então
todos os lamas sentaram-se no solo, de costas para as paredes de granito, de
maneira que ficassem distantes da criança por um espaço de, pelo menos, dez
pés. O chefe sentou-se no canto mais distante de uma peça de couro que fora
estendida para ele pelo desservant. Sozinho, o Sr. K. postou-se perto do bebê e
observava cada movimento seu com um interesse muito grande. A única
condição exigida de nós foi a de que mantivéssemos um silêncio rígido e
aguardássemos pacientemente os acontecimentos. Uma luz brilhante entrou
pela porta aberta. Pouco a pouco o “Superior” entrou naquilo que parecia um
estado de meditação profunda, enquanto os outros, após uma curta invocação
feita a sotto voce, se calaram repentinamente e pareciam petrificados. Tudo
estava angustiantemente calmo e o choro da criança era o único som que se
ouvia. Após alguns momentos cessaram subitamente os movimentos dos
membros do bebê e seu corpo pareceu tornar-se rígido. K. observava
atentamente cada movimento e nós, com uma rápida olhadela, verificamos
satisfeitos que todas as pessoas presentes estavam sentadas imóveis. O
superior, com o olhar fixo no chão, não olhava para o bebê; mas, pálido e imóvel,
mais parecia uma estátua de bronze de um talapão em meditação, do que um
ser vivo. De repente, para nossa grande consternação, vimos a criança, não se
erguer, mas, de fato, ser sentada violentamente! Algumas sacudidas mais e
então, como um autômato posto em movimento por fios invisíveis, o bebê de
quatro meses de idade ficou em pé! Imaginai nossa consternação e, no caso do
Sr. K., seu horror. Nem uma mão se dirigira à criança, nem se fizera movimento
algum, nem se pronunciara palavra alguma; e no entanto aí estava o bebê de
colo em pé e firme como um homem!
Citaremos o resto da história de uma cópia de notas escritas sobre o assunto
pelo próprio Sr. K., na mesma tarde, e que nos foram dadas para a eventualidade
de não chegarem ao seu lugar de destinação ou no caso de a escritora não
conseguir ver mais nada.
“Após um minuto ou dois de hesitação”, escreve K., “o bebê virou sua cabeça e
olhou para mim com uma expressão de inteligência que me fez estremecer! Senti
um calafrio. Belisquei minhas mãos e mordi os lábios até quase o sangue brotar,
para me certificar de que não estava sonhando. Mas isto foi apenas o começo.
A criatura miraculosa, como imaginei, deu dois passos em minha direção, tornou
a se sentar e, sem tirar os olhos de cima de mim, repetiu, frase por frase, naquilo
que eu supunha ser a língua tibetana, as mesmas palavras que, segundo me
haviam dito anteriormente, são geralmente pronunciadas nas encarnações de
Buddha, começando com ‘Eu sou Buddha; eu sou o velho lama; eu sou seu
espírito num corpo novo’, etc. Senti um terror real; meu cabelo se eriçou e meu
sangue congelou. Nem com ameaças de morte alguém me arrancaria uma
palavra. Não havia truque algum nisso, nem ventriloquismo. Os lábios do bebê
moviam-se e os olhos pareciam procurar minha alma com uma expressão que
me fez pensar que era a face do próprio Superior, seus olhos, seu olhar, o que
eu estava vendo. Era como se seu espírito tivesse entrado no pequeno corpo e
me estivesse olhando através da máscara transparente da face do bebê. Meu
cérebro entrou em vertigem. O bebê avançou em minha direção e senti sua
mãozinha tocar a minha mão. Senti-me como se tocado por um carvão ardente;
e, incapaz de presenciar a cena por mais tempo, cobri meu rosto com as mãos.
Foi só por um instante; mas quando as retirei do rosto, o pequeno ator voltou a
chorar e, um momento depois, deitado de costas, emitiu um choramingo. O
superior voltara à sua condição normal e conversava tranquilamente conosco.
“Só foi após uma série de experimentos similares, que se estenderam por dez
dias, que compreendi que havia visto o incrível e estarrecedor fenômeno descrito
por determinados viajantes, mas sempre denunciado por mim como uma
impostura. Entre muitas questões deixadas sem resposta, apesar da minha
insistência, o Superior deixou cair uma gota de informação, que deve ser vista
como sumamente significativa. ‘O que aconteceria’, perguntei, através do xamã,
‘se, enquanto a criança estava falando, eu, num momento de loucura insana,
acreditando ser ela o ‘Diabo’, a matasse?’ Ele respondeu que, se o golpe não
fosse instantâneo e fatal, só a criança teria sido morta. ‘Mas’, continuei,
‘suponhamos que ele fosse tão rápido quanto um relâmpago?’ ‘Nesse caso, foi
a resposta, ‘eu também teria morrido’.”
No Japão e no Sião há duas ordens de sacerdotes, uma das quais é pública e
se relaciona com o povo; a outra é estritamente privada. Estes últimos nunca são
vistos; sua existência só é conhecida de pouquíssimos nativos, nunca dos
estrangeiros. Seus poderes nunca são exibidos em público, nem mesmo nas
raras ocasiões da maior importância, quando então as cerimônias são realizadas
em templos subterrâneos ou inacessíveis e na presença de poucos escolhidos
cujas cabeças respondem pelo seu segredo. Entre essas ocasiões estão as
mortes da família real, ou as de dignitários filiados à Ordem. Uma das exibições
mais misteriosas e impressionantes do poder desses mágicos é a separação da
alma astral dos restos cremados de seres humanos, uma cerimônia praticada
também em algumas das mais importantes lamaserias do Tibete e da Mongólia.
No Sião, no Japão e na Grande Tartária há o costume de fazer medalhões,
estatuetas e ídolos com as cinzas das pessoas; [19] * elas são misturadas com
água e essa pasta é modelada segundo a forma desejada e depois cozida e
dourada. A Lamaseria de Ou-Tay, na província de Shan-Si, na Mongólia, ** é a
mais famosa por esse trabalho e as pessoas ricas vendem os ossos de seus
parentes defuntos para que com eles sejam modelados os objetos desejados.
Quando o adepto da magia propõe-se a facilitar a separação da alma astral do
morto, que de outra maneira permaneceria por um período indefinido no interior
das cinzas, ele segue o seguinte processo: o pó sagrado é colocado sobre uma
placa metálica fortemente magnetizada, do tamanho do corpo de um homem. O
adepto, então, abana-o leve e gentilmente com o Talapat Nang; [20] um leque de
forma peculiar e que possui alguns sinais inscritos, murmurando, ao mesmo
tempo, uma forma de invocação. As cinzas, estão, como se diz, imbuídas de vida
e formam suavemente no ar a silhueta apresentada pelo defunto antes da
cremação. Então, pouco a pouco, condensam-se numa espécie de vapor
esbranquiçado que, após algum tempo, forma uma coluna ereta, e
compactando-se mais e mais, transforma-se na contraparte da “dupla”, ou
etérica do morto, que, por sua vez, se dissolve no ar e desaparece da visão
mortal. [21]
* Muito provavelmente a Srta. Nadyezhda Andreyevna de Fadeyev (1829-1919), irmã da mãe de
H. P. B. Era apenas dois anos mais velha que H. P. B. e se corresponderam durante muitos
anos. (N. do Org.)

** É mais provável que H. P. B. tivesse em mente as conhecidas como Wutai Shan ou Wu-t’ai
Shan, na região nordeste da província de Shansi, na China, perto da fronteira da Mongólia
Interior. Elas estão a cerca de trinta milhas a nordeste da torre de Wutai e seu pico mais elevado
tem 9.974 pés. A região é considerada sagrada pelos mongóis e as montanhas possuem muitas
lamaserias frequentadas por peregrinos. Não está claro em qual dessas lamaserias H. P. B.
estava pensando. (N. do Org.)

Os “mágicos” da Cachemira, do Tibete, da Mongólia e da Grande Tartária são


conhecidos demais para que nos detenhamos em comentários. Se eles são
prestidigitadores, convidamos os prestidigitadores mais peritos da Europa e da
América a fazer o que puderem.

O vôo do corpo astral de um lama


relatado pelo Abbé Huc
Se os nossos cientistas são incapazes de imitar o embalsamamento dos
egípcios, quão maior seria a sua surpresa ao verem, como vimos, corpos mortos
preservados pela arte alquímica, de maneira que, após o lapso de séculos, eles
parecem estar dormindo. As compleições estavam tão frescas, a pele tão
elástica, e os olhos tão naturais e tão vivos, que parecia que estavam em pleno
fluxo de saúde e que as rodas da vida só haviam parado no instante anterior. Os
corpos de muitas personagens eminentes estão colocados sobre catafalcos, em
ricos mausoléus, às vezes cobertos de placas douradas ou de ouro verdadeiro;
suas armas favoritas, seus berloques e artigos de uso diário colocados ao seu
redor, e um cortejo de criados, rapazes e moças vistosos, mas ainda cadáveres,
preservados como seus senhores, de maneira que parecem dispostos a servi-
los quando chamados. No convento do Grande Kuren * e num outro situado na
Montanha Sagrada (Bogdo-Ula), diz-se que existem muitas dessas sepulturas,
que foram respeitadas por todas as hordas conquistadoras que invadiram
aqueles países. O Abade Huc recebeu referências a essas sepulturas, mas
nunca viu uma só delas, pois não se permite que as veja nenhum estrangeiro,
nem missionários e nem os viajantes europeus sem o salvo-conduto
correspondente, sendo que estes últimos apenas podem se aproximar dos
lugares sagrados. A afirmação de Huc — de que as tumbas dos soberanos
tártaros estão cercadas de crianças “que foram obrigadas a engolir mercúrio até
se sufocarem”, a fim de conservarem incorruptíveis a cor e a frescura das vítimas
— é uma dessas tantas fábulas idiotas dos missionários que só se impõem aos
mais ignorantes que crêem em tudo o que ouvem. Os budistas nunca imolaram
vítimas, nem homens, nem animais. Isso é totalmente contrário aos princípios de
sua religião e nenhum lamaísta jamais foi acusado disso. Quando um homem
rico desejava ser enterrado em companhia, enviavam-se mensageiros a todo o
país com os embalsamadores de Lama, e crianças mortas de morte natural eram
escolhidas para esse fim. Os pais pobres alegravam-se de preservar dessa
maneira poética seus filhos falecidos, em vez de os abandonar à podridão e à
voracidade das feras.
* O enorme mosteiro Kuren está em Urga (Hurae, em mongol), agora conhecida como Ulan Bator,
uma cidade da Mongólia Exterior, num afluente do Rio Tola. Durante muitos anos, foi uma cidade
sagrada para os mongóis e a residência de um dos chamados “Buddhas vivos” o terceiro em
veneração, após o Lama Panchen e o Taley Lama do Tibete. Foi Djibtzun-damba-Hugutsu quem
se acreditava ser o tulku de Darapata (1573-1635), um mestre budista.

Bogdo-ula é uma montanha sagrada, parte do enorme sistema de Tian-Shan e os mongóis


acreditam que ela seja uma morada de seres divinos. Ulan Bator está no vale do Rio Tola, ao
norte dessa montanha. (N. do Org.)

Na época em que o Abade Huc vivia em Paris, após seu retorno do Tibete, ele
relatou, entre outras maravilhas que não foram publicadas, a um Sr. Arsenieff,
um cavalheiro russo, o seguinte fato curioso que testemunhara durante sua longa
permanência na lamaseria de Kumbum. Um dia, enquanto conversava com um
dos lamas, este parou subitamente de falar e assumiu a atitude atenta de quem
está ouvindo uma mensagem que lhe era transmitida, embora ele (Huc) nada
ouvisse. “Então, preciso ir” — disse de repente o lama, como se estivesse
respondendo a alguém.
“Ir onde?”, perguntou o espantado “lama de Jeová” (Huc). “E com quem
conversas?”
“À lamaseria de...”, foi a resposta tranquila. “O Shaberon precisa de mim; foi ele
quem me chamou”.
Essa lamaseria está a muitos dias de viagem da de Kumbum, onde a
conversação ocorria. Mas o que mais pareceu espantar Huc foi que, em vez de
iniciar sua viagem, o lama simplesmente dirigiu-se para uma espécie de cúpula
situada no teto da casa em que moravam. Um outro lama, depois de ter trocado
algumas palavras, seguiu-os ao terraço por meio da escada e, passando entre
eles, encerrou-se ali com seu companheiro. Após alguns segundos de
meditação, este lama voltou-se para Huc, sorriu e informou ao hóspede que “ele
se fora”.
“Mas como? Por que o encerraste nesta cúpula? A sala não tem saída?” insistiu
o missionário.
“E para que lhe serviria uma porta?” respondeu o custodiador. “Ele se foi e, como
não precisa do seu corpo, deixou-o aos meus cuidados”.
Não obstante as maravilhas que Huc testemunhou durante sua perigosa viagem,
sua opinião era que ambos os lamas o haviam enganado. Mas três dias depois,
não tendo mais visto seu amigo habitual e anfitrião, perguntou por ele e foi
informado de que ele estaria de volta à tarde. Ao pôr do Sol, e justamente quando
os “outros lamas” se preparavam para o recolhimento, Huc ouviu a voz do seu
amigo ausente, que parecia provir das nuvens, dizer ao seu companheiro que
abrisse a porta para ele. Olhando para cima, percebeu a silhueta do “viajante”
por trás da treliça da sala onde estivera encerrado. Quando desceu, foi
diretamente ao Grande Lama de Kumbum e lhe transmitiu certas mensagens e
“ordens” do lugar que “dizia” ter deixado. Huc não conseguiu obter maiores
informações sobre essa viagem áerea. Mas sempre pensou, disse, que essa
“farsa” tinha algo a ver com os preparativos imediatos e extraordinários para a
expulsão polida de ambos os missionários, ele e o Padre Gabet, para Chogor-
tan, um lugar pertencente ao Kumbum. A suspeita do audaz missionário pode
ter sido correta, tendo-se em vista suas curiosidades e indiscrição impudentes.
Se o Abade Huc fosse versado em filosofia oriental, não teria encontrado
dificuldade em compreender, tanto o vôo do corpo astral do lama à distante
lamaseria, enquanto sua forma física permanecia atrás, quanto à conversa com
o Shaberon, que ele não podia escutar. Os experimentos recentes com o
telefone, na América, aos quais se fez alusão no capítulo 5 do nosso primeiro
volume e que foram grandemente aperfeiçoados desde que aquelas páginas
foram impressas, provam que a voz humana e os sons de música instrumental
podem ser transportados a grande distância por um fio telegráfico. Os filósofos
herméticos ensinaram, como vimos, que o desaparecimento de uma chama à
nossa visão não implica em sua extinção total. Ela apenas passou do mundo
visível para o invisível e pode ser percebida pelo sentido interior da visão, que
está adaptado para as coisas desse outro universo mais real. As mesmas regras
se aplicam ao som. Como o ouvido físico discerne as vibrações da atmosfera até
um determinado ponto, ainda não fixado definitivamente e que varia de um
indivíduo a outro, assim também o adepto, cuja audição interior foi desenvolvida,
pode tomar o seu ponto de fuga e ouvir suas vibrações na luz astral
indefinidamente. Ele não precisa de fios, hélices ou mesas sonoras; só o seu
poder de vontade é suficiente. Ouvindo com o espírito, o tempo e a distância não
oferecem impedimentos e ele pode conversar com um outro adepto dentre os
antípodas com grande facilidade, como se estivessem na mesma sala.
Felizmente, podemos reunir numerosas testemunhas para corroborar nossa
afirmação, testemunhas que, não sendo adeptos, no entanto ouviram som de
música áerea e de voz humana quando instrumento e falante estavam há
milhares de milhas do lugar onde estavam sentadas. No seu caso, elas ouvem
interiormente, embora pensem que apenas os seus órgãos físicos de audição
são utilizados. O adepto, por um simples esforço do poder de vontade, lhes dera
por um breve momento a mesma percepção do espírito do som que ele próprio
goza constantemente.
Se os nossos cientistas examinassem, em vez de ridicularizá-la, a filosofia antiga
da trindade de todas as forças naturais, dariam passos de gigante em direção à
verdade estonteante, em vez de se arrastarem como cobras nesse caminho. Os
experimentos do Prof. Tyndall realizados em South Foreland, em Dover, em
1875, desbarataram todas as teorias anteriores relativas à transmissão do som,
e as experiências que fez com chamas sensíveis levaram-no aos umbrais da
ciência arcana. Um passo mais e ele teria compreendido como os adeptos
podem conversar entre si a grandes distâncias. Mas ele não deu esse passo. A
respeito de sua chama sensitiva — mágica, na verdade — ele nos diz: “O menor
golpe dado sobre uma bigorna distante reduz sua altura a sete polegadas.
Quando um molho de chaves é sacudido, a chama agita-se violentamente e
emite um forte ruído. Se se deixa cair uma moeda sobre uma outra (...) a chama
diminui. (...) O rangido de botas coloca-a em violenta comoção. O amarrotamento
ou o rasgar de um papel ou o roçagar da seda fazem a mesma coisa. Segurei
um relógio perto da chama (...) A cada batida a chama subia e descia. O dar
corda ao relógio sobressaltava-a. (...) Um gorjeio emitido a uma distância de
trinta jardas também a fazia subir e descer. Leio um trecho de Spenser [22] A
chama escolhe entre os sons aqueles a que pode responder. Ela se agita mais
ou menos em correspondência com a entonação e as modulações da voz”. [23]
Essas são as maravilhas da moderna ciência física; mas quantos gastos com
aparelhos, e ácido carbônico, e gás de carvão; com assobios americanos e
canadenses, cornetas, gongos e sinos! Os pobres pagãos não possuíam esses
impedimenta, mas — acredite a ciência européia —, não obstante, produziam os
mesmos fenômenos. Uma certa ocasião, em que, num caso de importância
excepcional se exigiu um “oráculo”, vimos a possibilidade da ocorrência de algo
que antes negávamos veementemente — a saber, um simples mendicante
obrigar uma chama sensível a produzir clarões em resposta, sem aparelho
algum. Uma fogueira foi preparada com ramos da árvore Beal e algumas ervas
sacrificais foram espalhadas sobre ela. O mendicante sentou-se junto à fogueira,
imóvel, absorto em contemplação. Durante os intervalos entre as perguntas, a
fogueira ardia com dificuldade, mas, quando o interrogatório recomeçava, as
chamas saltavam, ruidosas, em direção ao céu, bruxuleavam, retorciam-se e
lingueteavam para o leste, para o oeste, para o norte ou para o sul; cada
movimento possuía um significado muito claro num código de sinais bastante
conhecido. Às vezes, uma chama se dirigia para o chão e lambia o solo em todas
as direções, e de repente desaparecia, deixando apenas um leito de brasas
ardentes. Quando a entrevista com os espíritos da chama chegou ao fim, o
Bhikshu (mendicante) voltou para a floresta em que vivia, entoando um canto
monótono e lamentoso a cujo ritmo respondiam as chamas sensíveis, não com
simples movimentos, como diz o Prof. Tyndall, quando lemos Faerie Queene,
mas com uma maravilhosa modulação de silvos e rugidos até que ele
desaparecesse da vista. Então, como se sua vida estivesse extinta, ela se
apagou e deixou um leito de cinzas diante dos espectadores atônitos.
No Tibete Ocidental e Oriental, como em todos os países em que o Budismo
predomina, há duas religiões diferentes, da mesma maneira que no Bramanismo
— a filosofia secreta e a religião popular. A primeira é a dos seguidores da
doutrina da seita dos Sautrântikas [24] que aderiam ao espírito dos ensinamentos
originais de Buddha, que mostram a necessidade da percepção intuitiva e todas
as deduções que dela se pode tirar. Eles não proclamam as suas opiniões, nem
permitem que sejam tornadas públicas.
“Todos os compostos são perecíveis” foram as últimas palavras pronunciadas
pelos lábios do moribundo Gautama, quando se preparavam sob a árvore Sâla,
para entrar no Nirvâna. “O espírito é a unidade única, elementar e primordial, e
cada um dos seus raios é imortal, infinito e indestrutível. Cuidado com as ilusões
da matéria”. O Budismo foi difundido por toda a Ásia e até mais longe por
Dharmâsoka. Ele era neto do milagreiro Chandragupta, o ilustre rei que libertou
o Puñjâb dos macedônios — se é que eles estiveram no Puñjâb — e recebeu
Megástenes em sua corte de Pâtaliputra. Dharmâsoka foi o maior rei da dinastia
Maurya. De libertino devasso e ateu, tornou-se o Priyadarsin, o “amado dos
deuses”, e nunca foi a pureza de suas opiniões filantrópicas ultrapassada por
qualquer outro governador terreno. Sua memória viveu por séculos nos corações
dos budistas e foi perpetuada nos editos humanitários gravados em muitos
dialetos populares nas colunas e nas rochas de Allâhâbâd, Delhi, Gujarât,
Peshâwar, Orissa e outros lugares. [25] Seu famoso avô unira toda a Índia sob
seu cetro poderoso. Quando os Nâgas, ou adoradores da serpente da
Cachemira, foram convertidos pelos esforços dos apóstolos enviados pelos
Sthâviras do terceiro concílio, a religião de Gautama se propagou com a rapidez
do fogo. Gândhâra, Kâbul e muitas das satrapias de Alexandre o Grande
aceitaram a nova filosofia. Sendo o Budismo do Nepal aquele que menos
divergiu da fé antiga primitiva, e porque dele derivam o Lamaísmo da Tartária,
da Mongólia e do Tibete — ele deve ser a forma mais pura do Budismo; o
Lamaísmo propriamente dito é apenas uma forma externa de ritos.
Os Upasâkas ou Upâsikâs, ou homens e mulheres semimonásticos e semileigos,
devem, como os próprios monges-lamas, abster-se estritamente de violar
qualquer uma das regras de Buddha e devem estudar o Meipo e todos os
fenômenos psicológicos. Aqueles que se tornarem culpados de qualquer um dos
“cinco pecados” perde todo o direito de se reunir à congregação. As mais
importantes dessas regras é a de não amaldiçoar nada, nem ninguém, pois a
maldição se volta contra quem a proferiu e frequentemente contra seus parentes
inocentes que respiram o mesmo ar. Amarmo-nos uns aos outros, mesmo que o
outro seja nosso inimigo mais acerbo; oferecermos nossas vidas até mesmo
pelos animais e nos abstermos de armas defensivas; conseguirmos a maior das
vitórias, que consiste em nos vencermos; evitarmos todos os vícios; praticarmos
todas as virtudes, especialmente a humildade e a clemência; sermos obedientes
aos superiores, amarmos e respeitarmos os pais, os anciães, os eruditos, os
virtuosos e os santos homens; provermos de alimento, abrigo e conforto os
homens e os animais; plantarmos árvores nas margens dos caminhos e
cavarmos poços para o conforto dos viajantes — estes são os deveres morais
dos budistas. Qualquer Ani ou Bhikshunî (monja) está sujeita a essas leis.

Escolas de magia nas lamaserias budistas


Inúmeros são os santos budistas e lamaicos que ficaram famosos pela santidade
de suas vidas e de seus “milagres”. Tissu, mestre espiritual do Imperador, que
consagrou Kublai-Khân, o Shâh Nadir, era conhecido em todas as partes tanto
pela santidade extrema de sua vida, quanto pelas maravilhas que operou. * Mas
ele não interrompeu seu trabalho com a colheita de milagres infrutíferos; ao
contrário, fez melhor que isso. Tissu purificou completamente sua religião e, diz-
se, fez Kublai expulsar dos conventos de uma única província da Mongólia
Meridional 500.000 monges impostores que haviam feito de sua profissão um
pretexto para viver todos os vícios e ócios. Mais tarde os lamaístas tiveram o seu
grande reformador, o Shaberon Tsong-Khan-pa, concebido, segundo a tradição,
imaculadamente por sua mãe, uma virgem de Koko-Nor (século XIV), que é outra
realizadora de maravilhas. A árvore sagrada do Kumbum, a árvore das 10.000
imagens, que, em consequência da degeneração da fé verdadeira, deixara de
florescer durante muitos séculos, agora rebrotava e floria mais vigorosamente do
que nunca do cabelo desse avatar de Buddha, como diz a lenda. A mesma
tradição afirma que ele (Tsong-Kha-pa) subiu ao céu em 1419. Ao contrário da
idéia predominante, pouquíssimos desses santos são Hubilgans, ou Shaberons
— reencarnações.
* Há alguma confusão nesta frase que nunca será suficientemente esclarecida. Nadir Shâh, um
governante persa do século XVIII não tem relação alguma com isso e a introdução do seu nome
na frase deve ser considerada um erro óbvio, cuja causa não pode mais ser determinada. (N. do
Org.)

Em muitas lamaserias existem escolas de Magia, mas a mais famosa delas é o


mosteiro colegiado de Sitügtü, que possui cerca de 30.000 monges filiados, o
que quase o transforma numa cidade. Algumas monjas possuem maravilhosos
poderes psicológicos. Encontramos algumas dessas mulheres enquanto se
dirigiam de Lhasa a Kandy, a Roma do Budismo, com seus relicários miraculosos
e suas relíquias de Gautama. Para evitar encontros com muçulmanos e adeptos
de outras seitas, viajam sozinhas à noite, desarmadas, e sem o menor medo de
animais selvagens, pois eles não as molestam. Aos primeiros clarões da aurora,
refugiam-se em cavernas e nos vihâras preparados para elas pelos seus
correligionários a intervalos calculados; apesar do fato de o Budismo ter buscado
refúgio no Ceilão e existir apenas publicamente na Índia Britânica, os Byauds
(Irmandades) secretos e os vihâras budistas são numerosos e todo jainista
sente-se obrigado a auxiliar, indiscriminadamente, os budistas e os lamaístas.
Sempre à espreita dos fenômenos ocultos, ansiosos por visões, um dos fatos
mais interessantes que tivemos oportunidade de presenciar foi produzido por um
desses pobres Bhikshus viajantes. Foi há alguns anos, numa época em que
essas manifestações representavam novidade para a autora destas linhas.
Fomos levados a fazer uma visita a alguns peregrinos por um amigo budista, um
cavalheiro místico nascido na Cachemira, de pais Katchi, mas um budista-
lamaísta por conversão e que geralmente reside em Lhasa.
“Por que carregas esse ramalhete de plantas mortas?” — perguntou uma das
Bhikshunîs, uma mulher emaciada, alta e entrada em anos, apontando um
enorme buquê de flores bonitas, frescas e perfumadas que estava em minhas
mãos.
“Mortas?” — perguntei eu, inquisitivamente. “Se elas acabaram de ser colhidas
no jardim!”
“Sim, estão mortas”, respondeu-me ela gravemente. “Nascer neste mundo não
é morrer? Vê como são essas flores no mundo da luz eterna, nos jardins do
nosso bendito Foh!”
Sem se mover do lugar em que estava sentada, a Ani tomou uma flor do
ramalhete, colocou-a no seu colo e atirou sobre ela grandes punhados de uma
matéria invisível extraída da atmosfera circundante. Rapidamente uma neblina
muito tênue foi adquirindo forma e cor, até que, pousada no ar, surgiu uma cópia
da flor que ela tomara. Fiel até o último matiz e à última pétala, repousava ao
lado do original, mas mil vezes mais resplendente em coloração e maravilhosa
em beleza, como o espírito humano glorificado é mais belo do que sua cápsula
física. Flor após flor foi sendo reproduzida pela monja, até o ramo mais
insignificante, com a particularidade de que apareciam e desapareciam a
impulsos do nosso desejo, não, do nosso pensamento. Tendo selecionado uma
rosa plenamente aberta, seguramo-la com o braço estendido e, em poucos
minutos, braço, mão e flor, perfeitos em cada detalhe, surgiram refletidos no
espaço a duas jardas de onde estávamos. Mas, ao passo que a flor parecia
imensuravelmente formosa e tão etérea como as outras flores astrais, o braço e
a mão pareciam um mero reflexo num espelho, de sorte que se via no antebraço
uma grande mancha produzida pela terra tímida de uma das raízes da flor. Mais
tarde soubemos a razão desse fenômeno.
Uma grande verdade foi proferida há cinquenta anos pelo Dr. Francis J. Victor
Broussais, quando ele disse: “Se o magnetismo fosse verdadeiro, a medicina
seria um absurdo”. O magnetismo é verdadeiro e não contradiremos o erudito
francês. O magnetismo, como mostramos, é o alfabeto da Magia. Será ocioso
tentar entender a teoria ou a prática da Magia, até que seja reconhecido o
princípio fundamental das atrações e das repulsões magnéticas na Natureza.
Muitas das chamadas superstições populares são apenas evidências de uma
percepção instintiva dessa lei. As pessoas incultas aprendem com a experiência
de muitas gerações que certos fenômenos ocorrem sob condições físicas; dadas
essas condições, os resultados são obtidos. Ignorantes da lei, elas explicam o
fato pelo sobrenaturalismo, pois a experiência foi o seu único mestre.
Na Índia, bem como na Rússia e em outros países, há uma repugnância instintiva
em se atravessar a sombra de um homem, especialmente se ele tem os cabelos
ruivos; e, no primeiro país, os nativos são extremamente relutantes em apertar
as mãos de pessoas de outra raça. Isto não é fantasia ridícula. Toda pessoa
emite uma exalação magnética ou aura e um homem pode estar em saúde física
perfeita, mas ao mesmo tempo sua exalação pode ter um caráter mórbido para
outras pessoas sensíveis a estas influências sutis. O Dr. Esdaile e outros
mesmerizadores têm ensinado há muito tempo que os orientais, especialmente
os hindus, são mais suscetíveis do que as raças de pele branca. Os
experimentos do Barão Reichenbach — e, de fato, toda a experiência do mundo
— provam que essas exalações magnéticas são mais intensas quando irradiam
das extremidades. As manipulações terapêuticas o demonstram; o aperto de
mãos é, portanto, um verdadeiro contato magnético que pode conduzir
condições magnéticas antipáticas e os hindus se prendem sabiamente à sua
“superstição” — prescrita por Manu.
O magnetismo de um homem ruivo, observamo-lo em quase todos os países, é
temido instintivamente. Poderíamos citar provérbios da Rússia, da Pérsia, da
Geórgia, do Indostão, da França, da Turquia e até mesmo da Alemanha que
acusam os de compleição ferrugínea de traiçoeiros e de outros vícios. Quando
um homem se expõe ao Sol, o magnetismo dessa luminária projeta as
emanações contra a sombra e a ação molecular aumentada desenvolve mais
eletricidade. Daí que um indivíduo a quem o homem seja antipático — embora
nem mesmo o tenha percebido — fará melhor se, prudentemente, não passar
pela sombra. Os médicos cuidadosos lavam as mãos após tratar de cada
paciente; por que, então, eles não são chamados de supersticiosos, como os
hindus? Os espórulos da doença são invisíveis, mas não menos reais, como
demonstra a experiência européia. Bem, a experiência oriental demonstrou há
cem séculos que os germes de uma epidemia moral podem propagar-se por
comarcas inteiras e que o magnetismo impuro pode ser comunicado pelo tato.
Outra crença dominante em algumas partes da Rússia, particularmente na
Geórgia (Cáucaso), e na Índia diz que, quando não reaparece o cadáver de um
afogado, ele ressurgirá se uma roupa do defunto for atirada à água.
Presenciamos esse experimento num caso em que serviu de móvel o cordão
sagrado de um brâmane. Ele flutuou aqui e ali, traçando curvas sobre a água
como se procurasse algo, até que, lançando-se repentinamente em linha reta
num trajeto de cinquenta jardas, mergulhou no local de onde mais tarde os
mergulhadores retiraram o cadáver. Essa “superstição” subsiste na América. Um
jornal de Pittsburg, de data bastante recente, descreve o resgate do corpo de um
menino, chamado Reed, em Monongahela, por um método semelhante.
Fracassadas quantas tentativas se fizeram para encontrar o cadáver, diz o jornal,
“empregou-se uma superstição curiosa. Uma das camisas do menino foi atirada
ao rio, no local em que ele desaparecera e, dizem, ela flutuou na superfície por
algum tempo e finalmente afundou num determinado ponto que se verificou ser
o lugar em que estava o corpo, que foi então retirado. A crença de que a camisa
de uma pessoa afogada, quando lançada à água, seguirá o corpo é muito
difundida, tão absurda quanto possa parecer”.
Esse fenômeno é explicado pela lei da atração poderosa que existe entre o corpo
humano e os objetos que se coloca sobre ele. Quanto mais velha a roupa,
melhor; uma veste nova revela-se inútil.
Desde tempos imemoriais, na Rússia, no mês de maio, no Dia da Trindade, as
donzelas das cidades e das aldeias seguem o costume de lançar ao rio grinaldas
tecidas de folhas verdes — que cada moça confeccionou — para consultar seus
oráculos. Se a grinalda afunda é sinal de que a moça morrerá solteira dentro de
pouco tempo; se flutua, ela se casará num período de tempo que depende do
número de versos que ela puder recitar durante o experimento. Afirmamos
positivamente que tivemos conhecimento pessoal de muitos casos, dois dos
quais nossas amigas íntimas, em que o augúrio provou ser verdadeiro e as
moças morreram dentro de doze meses. Tentando em qualquer outro dia que
não o da Trindade, o resultado sem dúvida seria o mesmo. O afundamento da
grinalda pode ser atribuído ao fato de ela estar impregnada do magnetismo
doentio de um sistema que contém os germes da morte; esse magnetismo tem
uma atração pela terra do fundo da corrente. Quanto ao resto, deixamos as
explicações aos amigos da coincidência.
A mesma observação geral relativa à base científica da superstição aplica-se
aos fenômenos produzidos pelos faquires e pelos prestidigitadores, que os
céticos empilham na categoria comum da trapaça. Entretanto, para um
observador atento, até mesmo para o não-iniciado, existe uma enorme diferença
entre o kîmiyâ (fenômeno) de um faquir e o batte-bâzî (prestidigitação) de um
trapaceiro e a necromancia de um jâdûgar, ou sâhir, tão temido e tão odiado
pelos nativos. Essa diferença, imperceptível — não, incompreensível — ao
cético europeu, é apreciada instintivamente por todos os hindus de casta alta ou
baixa, educado ou ignorante. A kangâlin, ou bruxa, que utiliza seu terrível
abhichâr (poderes mesméricos) com intenção de injuriar, deve esperar a morte
a qualquer momento, pois todo hindu considera lícito matá-la; um hukkâbâz, ou
prestidigitador, serve para divertir. Um encantador de serpente, com seu bâînî
cheio de cobras venenosas, é menos temido, pois seus poderes de fascinação
só se estendem aos animais e aos répteis; ele é incapaz de encantar seres
humanos, de realizar aquilo que os nativos chamam de mantra phênkna, de
lançar feitiços sobre os homens por meio da magia. Mas com os iogues, os
sannyâsin, os homens santos que adquirem poderes psicológicos enormes por
treinamento mental e físico, a questão é totalmente diferente. Alguns desses
homens são tidos pelos hindus como semideuses. Os europeus só podem julgar
esses poderes em casos raros e excepcionais.
O residente britânico que encontrou nos maidans e nos lugares públicos aqueles
que considera serem entes humanos assustadores e repugnantes, sentados
imóveis a se torturarem pelo procedimento do ûrdhva-bâhu, com os braços
erguidos acima das cabeças por meses, e mesmo anos, ele não deve pensar
que está diante de faquires operadores de maravilhas. Os fenômenos
produzidos pelos faquires só são visíveis com a proteção amigável de um
brâmane ou em circunstâncias peculiarmente fortuitas. Esses homens são tão
pouco acessíveis, quanto as donzelas chamadas nautch, de quem todos os
viajantes falam, mas que poucos chegaram a ver, uma vez que elas pertencem
exclusivamente aos pagodes.

A raça desconhecida dos Tôdas hindus


É surpreendentemente estranho o fato de que, não obstante os milhares de
viajantes e os milhões de europeus residentes que estiveram na Índia e a
atravessaram em todas as direções, tão pouco se saiba sobre esse país e as
terras que o rodeiam. Talvez alguns de nossos leitores se sentissem inclinados
a duvidar da nossa afirmação. Sem dúvida, diriam que já se sabe tudo quanto
se poderia saber sobre a Índia. De fato, já nos disseram isso pessoalmente. Não
é estranho que os anglo-indianos residentes não se ocupem com pesquisas,
pois, como um oficial britânico nos disse certa ocasião, “a sociedade não
considera polido ocupar-se dos hindus e dos seus negócios ou mesmo mostrar
espanto ou desejar informação sobre algo que possa parecer extraordinário
naquele país”. Mas realmente nos surpreende o fato de que pelo menos os
viajantes não tenham explorado, mais do que fizeram, esse país. Há cerca de
cinquenta anos, ao penetrar as florestas das Colinas Azuis ou Nîlagiri, no
Indostão Meridional, uma estranha raça, absolutamente diferente em aparência
e em língua de qualquer outro povo hindu, foi descoberta por dois corajosos
oficiais britânicos que estavam caçando tigres. * Muitas conjecturas, mais ou
menos absurdas, foram feitas a respeito da origem e da natureza dessas
pessoas, e os missionários, sempre dispostos a relacionar qualquer coisa mortal
à Bíblia, chegaram a sugerir que esse povo era uma das tribos perdidas de Israel,
apoiando suas ridículas hipóteses em suas compleições muito brancas e nas
“características judaicas muito acentuadas”. Esta última afirmativa é
completamente errônea, pois os Tôdas, como são chamados, não apresentam
a mais remota semelhança com o tipo judaico; nem em compleição, forma,
costumes ou língua. Eles se parecem muitíssimo entre si e, como um amigo
nosso se expressa, os mais vistosos dos Tôdas se igualam à estátua do Zeus
grego em majestade e beleza de forma, muito mais do que ele vira antes.
* Foram Kindersley e Whish, dois agrimensores ingleses a soldo da Companhia das Índias
Orientais, que, em setembro de 1818, iniciaram em Coimbatore uma viagem de caça. A história
de suas aventuras e os muitos fatos interessantes sobre os Tôdas estão relatados por H. P. B.
em sua história seriada russa intitulada “The Enigmatical Tribes of the Azure-Blue Hills”,
publicada no Russkiy Vestnik (Mensageiro Russo) de Moscou, em 1884-1885 (vols. 174, 175 e
176). Uma tradução inglesa dessa história pode ser encontrada nos Collected Writings. (N. do
Org.)

Cinquenta anos transcorreram após a descoberta; mas, apesar da construção


de cidades naquelas colinas e de todo o país ter sido invadido por europeus, não
se sabe a respeito dos Tôdas muito mais do que antes. Entre os boatos loucos
que correm a respeito desse povo, os mais errôneos são os que dizem respeito
a seu número e à prática da poliandria. A opinião geral sobre eles é a de que,
por causa desse costume, seu número foi reduzido a umas poucas centenas de
famílias e que a raça está em extinção. Tivemos oportunidade de saber algo
sobre eles e afirmamos que os Tôdas não praticam a poliandria e que não são
tão pouco numerosos quanto se supunha. Podemos provar que ninguém jamais
viu os seus filhos. As crianças que foram vistas em sua companhia pertenciam
aos Badagas, uma tribo hindu totalmente diferente dos Tôdas em raça, cor e
língua, e que inclui os “adoradores” mais diretos desse povo extraordinário.
Dizemos adoradores, pois os Badagas vestem, alimentam, servem e consideram
os Tôdas como divindades. São de estatura gigantesca, brancos como os
europeus, com cabelos e barbas extremamente longos e geralmente castanhos
e ondulados, que nenhuma lâmina tocou desde o seu nascimento. Vistosos
como uma estátua de Fídias ou Praxíteles, os Tôdas permanecem inativos
durante todo o dia, como afirmam alguns viajantes que puderam pôr os olhos
sobre eles. Do relato de várias opiniões e afirmações contrastantes que ouvimos
dos próprios residentes de Ootacamund e de outros lugarejos de civilização
erigidos ao redor das Colinas Nîlgiri, destacamos o seguinte:
“Eles nunca utilizam a água; são maravilhosamente vistosos e de aparência
nobre, mas extremamente sujos; diferentemente de todos os outros nativos,
dispensam as jóias e nunca vestem coisa alguma a não ser uma grande fazenda
ou túnica preta de lã com uma lista colorida na parte inferior; nunca bebem nada
que não seja leite puro; possuem rebanhos de gado mas nunca comem da sua
carne, nem fazem suas reses trabalharem no arado; não vendem, nem
compram; os Badagas os vestem e os alimentam; nunca usam, nem carregam
armas, nem mesmo um simples bastão; os Tôdas não sabem ler e nem querem
aprender. São o desespero dos missionários e aparentemente não professam
nenhum tipo de religião, além da adoração de si próprios como Senhores da
Criação.” [26]
Tentaremos corrigir algumas dessas opiniões com informações que
conseguimos de um personagem muito santo, um Brâhmana-guru, que merece
todo o nosso respeito.
Ninguém nunca viu mais de cinco ou seis deles ao mesmo tempo; eles não
conversam com estrangeiros, nem viajante algum entrou em suas cabanas
longas e achatadas, que não possuem aparentemente chaminés e têm apenas
uma porta; ninguém jamais viu o funeral de um Tôda, nem homens idosos entre
eles; nenhum deles foi vitimado pela cólera, ao passo que milhares morriam ao
seu redor durante as epidemias periódicas; finalmente, embora em toda a região
circunvizinha existam tigres e outros animais selvagens, nem o tigre, nem a
serpente, nem qualquer outro animal tão feroz foi visto tocar um único Tôda ou
o seu gado, apesar de, como se disse acima, eles não usarem sequer um bastão.
Além disso, os Tôdas não se casam. Parecem poucos em número, pois ninguém
teve ou terá a oportunidade de contá-los. Tão logo sua solidão foi profanada pela
avalanche da civilização — o que talvez tenha ocorrido por causa da sua
negligência —, os Tôdas começaram a emigrar para regiões tão desconhecidas
e tão mais inacessíveis quanto as Colinas Nîlgiri o eram antes; eles não nascem
de mães Tôdas, nem de estirpe tôda; são filhos de uma determinada seita seleta
e desde a infância são postos à parte para cumprir objetivos religiosos especiais.
Reconhecida por uma peculiaridade de compleição e por outros sinais, a criança
é conhecida como o que vulgarmente se chama Tôda desde o nascimento. A
cada três anos todos eles devem dirigir-se para um determinado lugar por um
certo período de tempo e ali se reúnem; sua “sujeira” é apenas uma máscara, tal
como procede o sannyâsin em público, em obediência ao seu voto; seu rebanho
é, em sua maior parte, guardado para utilização sagrada; e, embora seus lugares
de adoração nunca tenham sido pisados por um pé profano, eles no entanto
existem e talvez rivalizem com os pagodes mais esplêndidos — gopuras —
conhecidos pelos europeus. Os Badagas são seus vassalos especiais e — como
já se observou — os adoram como semideuses: seu nascimento e seus poderes
misteriosos lhes asseguram essa distinção.
Tenha o leitor a segurança completa de que quaisquer afirmações que sejam
feitas a respeito deles e que se choquem com o que acabamos de dizer são
falsas. Nenhum missionário apanhou um deles em sua isca, nem Badaga algum
os trairá, nem mesmo que o despedacem. Eles são um povo que possui uma
missão altíssima a cumprir e seus segredos são invioláveis.
Além disso, os Tôdas não são a única tribo misteriosa da Índia. Nomeamos
muitas delas num capítulo anterior, mas quantas existem além dessas que
permanecerão sem nomeação, sem reconhecimento!
É muito pouco o que se sabe comumente sobre o Xamanismo; e o que se sabe
foi pervertido, como o restante das religiões não-cristãs. Ele é chamado de
“Paganismo” da Mongólia, e completamente sem razão, pois é uma das religiões
mais antigas da Índia. Consiste numa adoração do espírito, ou crença na
imortalidade das almas, e afirma que estas últimas são os mesmos homens que
passaram pela Terra, embora seus corpos tenham perdido sua forma objetiva e
o homem tenha trocado sua natureza física por uma espiritual. Em seu aspecto
atual, é uma derivação da teurgia primitiva e uma fusão prática do mundo visível
com o invisível. Quando um cidadão da Terra deseja entrar em comunicação
com seus irmãos invisíveis, ele tem de se assimilar à natureza deles, isto é,
encontrar esses seres a meio caminho, e, recebendo deles uma essência
espiritual, fornecer-lhes, por sua vez, uma parte de sua natureza física,
capacitando-os às vezes a aparecer numa forma semi-objetiva. Trata-se de uma
troca temporária de naturezas, chamada teurgia. Os xamãs são chamados
feiticeiros porque se diz que eles evocam os “espíritos” dos mortos para praticar
a necromancia. O verdadeiro Xamanismo — do que, características notáveis
prevaleceram na Índia, na época de Megástenes (300 a.C) — não pode ser
julgado pelos seus rebentos degenerados dos xamãs da Sibéria, assim como a
religião de Gautama Buddha pode ser interpretada pelo fetichismo de alguns de
seus seguidores no Sião e em Burma. É nas principais lamaserias da Mongólia
e do Tibete que ele encontrou refúgio; e ali o xamanismo, se assim o devemos
chamar, é praticado até os limites extremos da comunicação permitida entre o
homem e o “espírito”. A religião dos lamas preservou cuidadosamente a ciência
primitiva da Magia e produz agora feitos tão majestosos quanto os produzidos
na época de Kublai-Khân e seus magnatas. A fórmula mística antiga do rei
Songtsen Gampo, o “Aum mani padme hum” [27] * cumpre agora suas
maravilhas, quanto no século XVII. Avalokitêsvara, o mais supremo dos três
Bodhisattvas e santo padroeiro do Tibete, projeta completamente a sua sombra
diante dos fiéis, na lamaseria de Ganden, fundada por ele; e a forma luminosa
de Tsong-Khan-pa, sob o aspecto de uma nuvenzinha de fogo, que se afasta
dos raios dançantes da luz solar, entabula conversação com uma grande
congregação de lamas, que podem somar milhares; a voz que desce do alto,
como um sussurro da brisa por entre a folhagem. Até que, dizem os tibetanos, a
magnífica aparição desapareça nas sombras das árvores sagradas do parque
da lamaseria.
* Uma interpretação bonita e muito adequada desse mantra foi feita por W. E. Garrett no National
Geographic, maio de 1963, p. 686. num artigo sobre o Ladakh:

“OM — Invoco a trilha e a existência da universalidade, de maneira que

MANI — a luminosidade da pedraria de minha mente imortal

PADME — desabroche nas profundezas do centro do lótus da consciência desperta

HUM — e seja soprada pelo êxtase rompendo todos os cativeiros e horizontes”. (N. do Org.)

Em Garma-Kian (o claustro-mãe), murmura-se que espíritos e não-progredidos


são trazidos em determinados dias e são forçados a prestar contas de suas
ações malignas; são obrigados pelos adeptos lamaicos a repararem os danos
cometidos por eles contra os mortais. Isso é o que Huc denomina ingenuamente
de “personificação de espíritos do mal”, isto é, diabos. Se aos céticos de vários
países europeus fosse permitido consultar os relatos impressos diariamente em
Muru, [28] e na “Cidade dos Espíritos”, sobre a comunicação que ocorre entre os
lamas e o mundo invisível, eles certamente se interessariam em estudar os
fenômenos descritos tão triunfalmente nos jornais espiritistas. Em Buddha-la, ou
antes Potala (Monte Buddha), na mais importante dos muitos milhares de
lamaserias daquele país, o cetro do Bodhisattva é visto flutuando, sem apoio, no
ar e seus movimentos regulam as ações da comunidade. Quando um lama é
chamado à presença do Superior do mosteiro, ele sabe de antemão que lhe será
inútil dizer uma inverdade; o “regulador da justiça” (o cetro) está lá e seu
movimento ondulatório, aprovador ou não, decide instantânea e corretamente a
questão da sua culpa. Não pretendemos a tanto. Podemos endossar, entretanto,
a autenticidade dos fenômenos que não vimos com nossos próprios olhos.

O poder da vontade dos faquires e dos yogis


Um grande número de lamas do Sikkim produz meipo — “milagre” — por poderes
mágicos. O último patriarca da Mongólia, Gegen Hutugtu, que residiu em Urga,
* um verdadeiro paraíso, era a décima sexta encarnação de Gautama, um
Bodhisattva portanto. Era famoso por possuir poderes que eram fenomenais,
mesmo entre os taumaturgos da terra dos milagres para excellence. Não se deve
pensar que esses poderes foram desenvolvidos sem custo de alguma espécie.
As vidas da maioria desses homens santos — erroneamente chamados de
vagabundos, mendigos folgadões, que se supõe passem suas existências
saqueando a credulidade de suas vítimas — são milagres em si mesmas.
Milagres, porque mostram o que uma vontade determinada e uma pureza
perfeita de vida e de propósito são capazes de realizar e a que grau de ascetismo
sobrenatural um corpo humano pode ser sujeitado e ainda assim chegar a uma
idade bastante provecta. Nenhum eremita cristão jamais sonhou com tal
refinamento de disciplina monástica; e a habitação aérea de um Simão Estilita
pareceria um brinquedo de criança diante das invenções de testes de vontade
dos faquires e dos budistas. Mas o estudo teórico da magia é uma coisa; a
possibilidade de praticá-la é outra. Em Drepung, colégio mongol ** onde mais de
trezentos mágicos (feiticeiros, como os missionários franceses os chamam)
ensinam a cerca de seiscentos discípulos de doze a vinte anos, estes últimos
precisam esperar muitos anos para a sua iniciação final. Apenas um em cem
chega ao objetivo supremo e, dentre os muitos milhares de lamas que ocupam
quase uma cidade inteira de edifícios preparados para eles, apenas dois por
cento se tornam operadores de maravilhas. Deve-se aprender de memória cada
um dos versos dos 108 volumes do Kanjur [29] e ainda assim exibir uma prática
mágica muito pobre. Há apenas uma coisa que levará ao objetivo final e dela nos
fala mais de um autor hermético. Um deles, o alquimista árabe Alipili, diz o
seguinte: “Advirto-te, sejas quem tu fores e que tentes sondar as partes mais
arcanas da Natureza: se não encontrares dentro de ti o que buscas, tampouco o
encontrarás fora de ti. Se desconheces a excelência de tua própria casa, por que
indagas da excelência de outras coisas? (...) Ó HOMEM, CONHECE-TE A TI
MESMO; EM TI ESTÁ OCULTO O TESOURO DOS TESOUROS”. [30]
* O termo mongol Gegen significa “luz do dia”, “aurora”, “resplendente”, “esplendor”, e “brilho” ou
“sereno”, como um título honorífico concedido principalmente por feitos leigos, mas às vezes
utilizado como termo de reverência por lamas altamente espirituais e, nesse caso, traduzido por
“Serena Santidade”. O termo Hutugtu (também escrito Khutukhtu) significa “santo”, “sagrado”,
“abençoado” (hutugtai) e “ditoso” e é um termo honorífico concedido aos altos membros do clero
por obras devotadas à causa do Budismo. E comumente dado a Hubilgan eminentes. Esse termo
significa muitas coisas, tais como “transformação”, “metamorfose”, “aparição”, “fantasma” e
também é conhecido como tulku, uma condição explicada em nossa Introdução ao vol. I de Ísis
sem véu. O termo é às vezes malpronunciado como Khobilgan.

É provável que H. P. B. tivesse em mente um lama conhecido como Djibtzun-damba-Hugutsu,


que àquela época residia em Urga e do qual se dizia ser o tulku de Darapata (1573-1635), um
mestre budista. (N. do Org.)

** Drepung (pronunciado em tibetano hBras-sPuns) é um dos três grandes mosteiros próximos


de Lhasa. Não é exatamente um Colégio Mongol. Atualmente existem no mosteiro muitos
“colégios” (chamados gra-tshang, em tibetano), onde os monges são agrupados de acordo com
a nacionalidade, e há um que é o “colégio” para os monges da Mongólia, que aprendem os
ensinamentos em tibetano. (N. do Org.)

Num outro tratado alquímico, De manna benedicta, [31] o autor expressa suas
idéias a respeito da pedra filosofal nos seguintes termos: “Por diversas razões
não tenho intenção de falar muito sobre esse assunto já explicitamente descrito,
ao relatar certos usos mágicos e naturais desta pedra desconhecida por muitos
que a possuem. Mas quando contemplo esses homens tremem-me os joelhos,
estremece meu coração e fico pasmado!”
Todo neófito já experimentou mais ou menos esse sentimento, mas, vencendo-
o, o homem se torna um ADEPTO.
Nos claustros de Tashi-Lhünpo e de Si-dzang, esses poderes, inerentes a todo
homem, evocados por poucos, são cultivados até à perfeição extrema. Quem,
na Índia, não ouviu falar de Panchen Rimpoche, o Hutugtu da capital do Tibete
Superior? Sua irmandade de Khe-lan foi famosa em todo o país; e um dos
“irmãos” mais famosos foi um Peh-ling (um inglês) * que lá chegou num dia da
primeira metade deste século, vindo do Ocidente, um budista, que após um mês
de preparação foi admitido entre os Khe-lans. Falava todas as línguas, inclusive
o tibetano, e conhecia todas as artes e ciências, diz a tradição. Sua santidade e
os fenômenos produzidos por ele tornaram-no um Shaberon, após uma estada
por lá, de apenas alguns anos. Sua memória vive até hoje entre os tibetanos,
mas seu nome verdadeiro é um segredo dos Shaberons.
* Em conexão com esse termo Peh-ling, deve-se dizer que rgya-p’i-lin é o nome do país e rgya-
p’i-lin-pa é o nome do povo que pela primeira vez falou aos tibetanos (talvez no começo do século
XVIII) sobre as nações civilizadas do Ocidente; daí o termo ser aplicado à Índia Britânica, para
os ingleses, para os europeus que residiam na Índia e também (às vezes sem rgya) para a
Europa e os europeus em geral. Alguns o derivam de Feringhee, termo corrente, em sua forma
alterada p’e-ran, ou p’e-ran, no Tibete Central. Não é improvável, portanto, que p’i-lin represente
apenas a pronúncia mais vulgar da genuína palavra tibetana p’yi-glin, que significa um país-
estranho, um país estranho distante e especialmente a Europa.

Quanto ao termo Feringhee, aplica-se usualmente a um europeu, especialmente a um português


nascido na Índia; também a um eurasiano, especialmente de sangue indo-português. O
Dictionary of Anglo-Indian Words and Phrases, do Cel. Henry Yule e A. C. Burnell relaciona o
termo em Firinghee e diz: “Pers. Farangî, Firingî; Ár. Al-Faranj, Ifranjî, Firanjî, isto é, um franco.
Este termo para um europeu é muito antigo na Ásia, mas, empregado agora pelos nativos da
Índia, aplica-se (especialmente no sul) especificamente aos portugueses nascidos na Índia, ou,
quando usado mais genericamente, para ‘europeu’, implica hostilidade ou depreciação (...). (N.
do Org.)

O maior dos meipo — o objeto da ambição de todos os devotos budistas — era,


e ainda é, a faculdade de andar no ar. O famoso rei do Sião, Pia Metak, o Chinês,
era conhecido por sua devoção e por sua erudição. Mas ele só conseguiu esse
“dom sobrenatural” depois de se ter colocado sob a tutela direta de um sacerdote
de Gautama Buddha. Crawford e Finlayson, enquanto residiram no Sião,
seguiram com grande interesse os esforços realizados por alguns nobres
siameses no sentido de adquirirem essa faculdade. [32]
Inúmeras e variadas são as seitas da China, do Sião, da Tartária, do Tibete, dá
Cachemira e da Índia Britânica que se dedicam inteiramente ao cultivo dos
chamados “poderes sobrenaturais”. Discutindo sobre uma dessas seitas, a dos
Taossé, Semedo afirma: “Eles pretendem que, por meio de determinados
exercícios e de certas meditações, pode-se reconquistar a juventude e também
alcançar o estado de Shên-hsien, isto é, ‘Beatitude Terrena’, em que todos os
desejos são realizados, embora possuam o poder de se transportarem de um
lugar a outro, por mais distante que seja, com rapidez e facilidade”. [33] Esta
faculdade relaciona-se antes à projeção da entidade astral, numa forma mais ou
menos corporificada, e não ao transporte corporal. Não se pode dizer que esse
fenômeno seja um milagre, pois pode ser comparado ao reflexo de uma pessoa
no espelho. Ninguém pode detectar nessa imagem uma partícula de matéria,
mas ela continua sendo nosso duplo, representado fielmente até mesmo os fios
de cabelo da nossa cabeça. Se, por meio dessa simples lei de reflexão, nosso
duplo pode ser visto num espelho, que prova notável da sua existência não
estaria contida na arte da fotografia! Nada se opõe, pelo fato de os nossos físicos
ainda não terem descoberto a maneira de fotografar à longa distância, a que a
aquisição desse poder fosse impossibilitada àqueles que encontraram essa
maneira no poder da própria vontade humana, libertos do interesse terreno. [34]
Nossos pensamentos são matéria, diz a ciência; toda energia produz mais ou
menos uma perturbação nas ondas atmosféricas. Portanto, como todo homem
— como todos os seres vivos e os objetos inertes — está cercado pela aura de
suas próprias emanações e, além disso, é capaz, por um esforço insignificante,
de se transportar em imaginação para onde quiser, por que será cientificamente
impossível que seu pensamento, regulado, intensificado e guiado por esse
mágico poderoso, a VONTADE educada, possa corporificar-se temporariamente
e aparecer diante de quem queira, na forma do duplo fiel do original? Essa
afirmação, no estado atual da ciência, é mais impensável do que a fotografia e o
telégrafo há quarenta anos, ou o telefone há catorze meses?
Se a placa sensibilizada pode reter tão exatamente a sombra de nossas faces,
então essa sombra ou reflexo, embora sejamos incapazes de percebê-lo, deve
ser algo substancial. E, se podemos, com a ajuda de instrumentos ópticos,
projetar nossos semblantes uma parede branca, às vezes a uma distância de
muitas centenas de pés, então não há razão pela qual os adeptos, os alquimistas
e os eruditos da arte secreta ainda não possam ter descoberto o que os cientistas
negam hoje, mas podem descobrir amanhã, isto é, como projetar eletricamente
seus corpos astrais, num instante, por milhares de milhas no espaço, deixando
seus invólucros materiais com uma certa quantidade de princípio vital animal
para guardar a vida física da qual se desprendem, e agir com seus corpos
espirituais etéreos tão segura e inteligentemente quanto quando estavam
revestidos de carne? Há uma forma de eletricidade, superior à física, que é
conhecida dos experimentadores; mil correlações dessa forma ainda não foram
reveladas aos olhos dos físicos modernos e ninguém pode dizer onde terminam
as suas possibilidades.
Schott afirma que “a concepção chinesa, e particularmente a da seita dos Tao-
Kiao [ou Taossé], deu há muito tempo o nome de Sian ou Shên-hsien às pessoas
que se retiram para as colinas para viver uma vida de anacoretas e que
conseguiram, por suas observâncias ascéticas ou pelos poderes de
encantamentos e elixires, a posse de dons miraculosos e da imortalidade
terrestre” (?). [35] Há exagero, se não erro, nessa referência. O que eles
pretendem é apenas a habilidade de prolongar a vida humana; e podem fazê-lo,
a acreditar no testemunho humano. O que Marco Polo atestou no século XIII
ainda é corroborado em nossos dias. “Há uma outra classe de pessoas
chamadas Chughi” (Yogi), diz ele, “que são na verdade os Abraiaman
[brâmanes?] (...) Têm a vida extremamente longa, cada um deles vive de 150 a
200 anos. Comem muito pouco; arroz e leite principalmente. E essas pessoas
fazem uso de uma bebida muito estranha (...) uma poção de súlfura e argento-
vivo, que eles bebem duas vezes por mês. Isto, dizem eles, lhes dá longa vida;
estão acostumados a tomá-la desde a infância”. [36] Bernier mostra, diz Cel.
Yule, que os iogues são muito hábeis em preparar o mercúrio, “que um ou dois
grãos tomados todas as manhãs restauram completamente a saúde”; [37] e
acrescenta que o mercurius vitae de Paracelso era um composto em que
entravam antimônio e argento-vivo. [38] Essa afirmação é descuidada, pelo
menos, e explicaremos o que sabemos sobre o assunto.
A longevidade de alguns lamas e talapões é proverbial e sabe-se geralmente
que eles usam um composto que “renova o sangue velho”, como eles dizem. E
é igualmente reconhecido entre os alquimistas o fato de que uma administração
judiciosa “de aura de prata restaura a saúde e prolonga consideravelmente a
vida”. Mas estamos preparados para opor as afirmações de Bernier e do Cel.
Yule, que o cita, no sentido de que é mercúrio ou argento-vivo o que os iogues
e os alquimistas usavam. Os iogues; na época de Marco Polo, bem como em
nossos dias, usam realmente algo que pode parecer argento-vivo, mas não o é.
Paracelso, os alquimistas e outros místicos queriam dizer com mercurius vitae,
o espírito vivo da prata, a aura de prata, não o argent vive; e essa aura não é
certamente o mercúrio conhecido dos nossos físicos e farmacêuticos. Não há
dúvida de que a afirmação de que Paracelso introduziu o mercúrio na prática
médica é completamente incorreta. Mercúrio algum, seja preparado por um
filósofo medieval do fogo, seja por um físico moderno, pode restaurar a saúde
perfeita do corpo. Só um charlatão inescrupuloso usaria essa droga. E é opinião
de muitos comentadores o fato de que os inimigos de Paracelso forjaram essa
imputação com a intenção de o apresentarem à posteridade como um
curandeiro.
Os iogues dos tempos antigos, bem como os lamas e os talapões modernos,
usam um certo ingrediente com um mínimo de súlfura e um suco leitoso que
extraíam de uma planta medicinal. Algum segredo maravilhoso devem conhecer
estes homens, pois os vimos curar as mais rebeldes feridas em poucos dias;
restaurar ossos quebrados em tantas horas quantos dias necessita a cirurgia
para obter o mesmo resultado. Perto de Rangoon, em consequência da
inundação produzida pelo transbordamento do Rio Irrawaddy, a autora destas
linhas contraiu uma febre maligna que foi curada em poucas horas com o suco
de uma planta chamada, se não nos enganamos, Kukushan, * embora existam
milhares de nativos que ignoram as suas virtudes e morrem de febre. Quem nos
curou foi um simples mendicante, a quem havíamos prestado anteriormente um
serviço que pouco pode interessar ao leitor.
* O termo kukushan é algo incerto. Em birmanês, ku significa “dar remédio” e kawkutânaw é um
sinônimo. A letra t substitui em birmanês o sânscrito s. Como o contexto fala do rio Irrawady, é
possível que tenha sido empregada uma palavra birmanesa. (N. do Org.)

Também ouvimos falar de uma certa água chamada âb-i-hayât, que a


superstição popular acredita estar oculta a todos os olhos mortais, exceto os dos
santos sannyâsin; a sua fonte é conhecida como âb-i-haiwân-î. É mais que
provável, entretanto, que os talapões se recusassem a revelar os seus segredos,
até mesmo aos acadêmicos e aos missionários, pois esses remédios devem ser
usados em benefício da Humanidade, nunca por dinheiro. [39]

A domesticação de animais selvagens por faquires


Nos grandes festivais dos pagodes hindus, nas festas de casamento de pessoas
de castas elevadas, em todos os lugares onde se reúnem multidões, os europeus
encontram os gunî — ou encantadores de serpentes, faquires-mesmerizadores,
sannyâsin taumaturgos e os chamados “prestidigitadores”. Escarnecer é fácil —
explicar é mais difícil — para a ciência, impossível. Os residentes britânicos da
Índia e os viajantes preferem o primeiro expediente. Mas permita-se que um
desses Tomés relate como esses resultados — que eles não negam — são
produzidos. Quando uma multidão de gunî e faquires aparece com seus corpos
cobertos por cobras de capelo, seus braços ornamentados com braceletes de
coralillos (serpentes diminutas que matam em poucos segundos) e seus ombros
com colares de trigonocephali, o inimigo mais terrível dos pés hindus descalços
e cuja picada mata como um relâmpago — a testemunha cética sorri e começa
a explicar gravemente como esses répteis, lançados em torpor cataléptico,
tiveram suas peçonhas extraídas pelos gunî. “Elas são inofensivas e é ridículo
temê-las.” “O Sâhib acaricia uma das minhas nâg?”, perguntou certa vez um gunî
que se aproximou de nosso interlocutor e que estivera, por cerca de meia hora,
exibindo aos seus ouvintes suas habilidades herpetológicas. O Capitão B. pulou
rapidamente para trás — os pés do bravo guerreiro não se mostraram menos
vivos do que sua língua — e sua resposta irada dificilmente poderia ser
imortalizada pela tipografia. Só a escolta do gunî pôde salvá-lo de um
espancamento sem cerimônia. Além disso, basta dizer uma palavra e, por meia
rúpia, qualquer encantador de serpentes profissional começará a rastejar e a
convocar, em poucos momentos, inúmeras serpentes indomadas das espécies
mais venenosas e conseguirá fazer com que elas se enrolem em seu corpo. Em
duas ocasiões, nas cercanias de Trincomalee, uma serpente estava prestes a
atacar a autora destas linhas, que uma vez quase se sentara sobre sua cauda,
mas, em ambos os casos, ela parou com um assobio rápido do gunî que nos
acompanhava — a poucas polegadas do nosso corpo, como se paralisada por
um raio, e, movimentando lentamente sua cabeça ameaçadora para o chão,
permaneceu imóvel e rija como um galho morto sob o encanto da kîlnâ. [40]
Haverá algum prestidigitador, um domador ou mesmo um mesmerizador
europeu que se arrisque a tentar um experimento que pode ser presenciado
diariamente na Índia se se souber onde se deve ir para testemunhá-lo? Não há
nada no mundo mais feroz do que um tigre real de Bengala. Certa vez toda a
população de um vilarejo não muito distante de Dakha, situado nos confins de
uma jângal, entrou em pânico com o aparecimento, ao raiar do dia, de uma
enorme tigresa. Essas feras nunca abandonam suas tocas a não ser à noite,
quando saem à procura de presas e de água. Mas essa circunstância incomum
deveu-se ao fato de que a fera era uma mãe e fora privada de seus dois filhotes,
que haviam sido levados por um caçador, e estavas à procura deles. Dois
homens e uma criança já haviam sido vitimados por ela, quando um faquir idoso,
inclinado em seu assento habitual, emergindo do portão do pagode, vislumbrou
a situação e a compreendeu num relance. Cantando um mantra, avançou em
direção à fera, que, com olhos flamejantes e boca espumosa, subira a uma
árvore pronta para fazer uma nova vítima. Quando estava a mais ou menos dez
passos de distância da tigresa, sem interromper sua prece modulada, cujas
palavras nenhum leigo compreendia, ele deu início a um processo regular de
mesmerização, como dizemos; ele fez passes. Ouviu-se então um uivo terrível,
que ecoou fundo no coração de todos os seres humanos presentes. Esse uivo
longo, feroz, arrastado, acalmou-se numa série de soluços lamentosos
interrompidos, como se a mãe consternada expressasse suas lamúrias, e então,
para terror da multidão que se refugiara nas árvores e nas casas, a fera deu um
salto enorme — sobre o santo homem, pensaram todos. Estavam errados, ela
estava aos seus pés, rolando no pó, contorcendo-se. Alguns momentos mais e
ela ficou imóvel, com sua cabeça enorme pousada sobre suas patas dianteiras
e seus olhos injetados agora ternos fixos no rosto do faquir. Então o santo
homem das preces sentou-se ao lado da tigresa e acariciou ternamente sua pele
listrada e deu palmadinhas em suas costas, até que seus gemidos se tornaram
cada vez mais fracos, e meia hora depois todo o vilarejo estava ao redor desse
grupo: a cabeça do faquir repousava sobre o dorso da tigresa como sobre um
travesseiro, a mão direita sobre sua cabeça, e a esquerda na grama sob sua
boca terrível, da qual pendia uma longa língua vermelha.
É assim que os faquires domam as feras mais selvagens na Índia. Os domadores
europeus, podem eles, com suas bengalas de ferro incandescente, fazer a
mesma coisa? Naturalmente nem todos os faquires possuem este poder;
relativamente poucos o têm. Não obstante, seu número é considerável. O
procedimento pelo qual eles são treinados nos pagodes será um segredo eterno
para todos, exceto para os brâmanes e os adeptos dos mistérios ocultos. As
histórias, até agora consideradas fábulas, de Krishna e de Orfeu encantando as
bestas selvagens recebem corroboração em nossos dias. Há um fato que
continua inegável. Não há um único europeu na Índia que tenha penetrado, ou
que se vanglorie de ter penetrado, no santuário interno dos pagodes. Nem a
autoridade, nem o dinheiro jamais induziu um brâmane a permitir que um
estrangeiro não-iniciado ultrapassasse os umbrais desses recintos reservados.
Valer-se da autoridade nesses casos equivaleria a atirar uma vela acesa num
barril de pólvora. Os hindus, tão meigos, tão pacientes e tão sofridos, cuja apatia
salvou os britânicos de serem expulsos do país em 1857, levantariam as suas
centenas de milhares de devotos como um único homem, em vista dessa
profanação; sem distinção de seitas ou de castas, eles exterminariam todos os
cristãos. A Companhia das Índias Ocidentais sabe muito bem disso e construiu
sua fortaleza com base na amizade dos brâmanes e pagando subsídios aos
pagodes, e o Governo Britânico é tão prudente quanto seu predecessor. São as
castas e a não-interferência nas religiões predominantes que asseguram sua
relativa autoridade na Índia. Mas devemos recorrer uma vez mais ao xamanismo,
a mais estranha e a mais desconhecida de toda as religiões sobreviventes — a
“adoração do Espírito”.
Seus seguidores não possuem altares, nem ídolos e é com base na autoridade
de um sacerdote xamã que afirmamos que seus ritos, que só são realizados uma
vez por ano, no menor dia do inverno, não podem ser celebrados diante de
alguém estranho à sua fé. Portanto, temos certeza de que não passam de
simples conjecturas todas as descrições publicadas até agora no Asiatic Journal
e em outras obras européias. Os russos, que, apesar de sua relação constante
com os xamãs na Sibéria e na Tartária, seriam as pessoas mais competentes
para julgar sua religião, mas nada aprenderam, exceto a proficiência pessoal
desses homens naquilo que estão inclinados a acreditar ser prestidigitação.
Muitos russos residentes, no entanto, na Sibéria, estão firmemente convencidos
dos poderes “sobrenaturais” dos xamãs. Quando eles se reúnem para adorar,
fazem-no sempre a céu aberto, ou numa colina elevada, ou nas profundezas da
floresta — o que nos faz lembrar os antigos ritos dos druidas. Suas cerimônias
realizadas por ocasião de nascimentos, mortes e casamentos são apenas partes
insignificantes de sua adoração. Compreendem oferendas, a aspersão do fogo
com espíritos e leite, e hinos misteriosos, ou antes encantações mágicas,
entoadas pelo xamã oficiante, e terminam com um coro das pessoas presentes.
As inúmeras campainhas de bronze e de ferro usadas por eles sobre a veste
sacerdotal de pele de gamo, [41] ou de pele de algum outro animal considerado
magnético, são utilizadas para espantar os espíritos malévolos que estão no ar,
uma superstição partilhada por todas as nações da Antiguidade, inclusive os
romanos, e até mesmo os judeus, cujos sinos dourados contam a história.
Possuem bastões de ferro cobertos de sinos, utilizados com o mesmo propósito.
Quando, após determinadas cerimônias, se consegue a crise desejada e “o
espírito falou” e o sacerdote (que pode ser um homem ou uma mulher) sente sua
influência todo-poderosa, a mão do xamã é levada por algum poder oculto até a
parte mais alta do bastão, que geralmente é coberto de hieróglifos.
Pressionando-o com a palma de sua mão, ele então é erguido no ar a uma altura
considerável, onde permanece por algum tempo. Às vezes sobe a uma altura
extraordinária e, de acordo com o guia — pois ele é frequentemente apenas um
médium irresponsável —, emite profecias e descreve eventos futuros. Foi assim
que, em 1847, um xamã, num lugar distante da Sibéria, profetizou e detalhou
exatamente a ocorrência da Guerra da Criméia. Os detalhes do prognóstico,
cuidadosamente anotados pelos presentes, verificaram-se seis anos mais tarde.
Embora geralmente ignorem até mesmo o termo astronomia, e sem nunca a
terem estudado, eles frequentemente prevêem eclipses e outros fenômenos
astronômicos. Quando consultados sobre roubos e assassinatos,
invariavelmente apontam as partes culpadas.
Os xamãs da Sibéria são ignorantes e incultos. Os da Tartária e do Tibete —
poucos em número — são em grande parte homens cultos à sua maneira e não
se submetem ao controle de espíritos de qualquer espécie. Os primeiros são
médiuns no sentido amplo da palavra; os outros são “mágicos”. Não surpreende
o fato de que pessoas piedosas e supersticiosas, após verem uma dessas crises,
declararem que o xamã estava sob possessão demoníaca. Como nos casos de
fúria coribântica e bacântica ocorridos entre os gregos antigos, a crise “espiritual”
do xamã manifesta-se em dança violenta e em gestos selvagens. Pouco a pouco
os espectadores sentem que o espírito de imitação os contagia; tomados por um
impulso irresistível, dançam e entram em êxtase; e aquele que se juntar ao coro,
participará gradual e inconscientemente das gesticulações, até cair exausto ao
chão e às vezes morrer.

A evocação de um espírito vivo por um xamã,


testemunhada pela autora
“Ó terna donzela, um deus te possui! É Pã, Hekatê, o venerável Coribantes ou
Cibele que te agita!” diz o coro, dirigindo-se a Fedra, em Eurípedes. [42] Essa
forma de contágio psicológico é muito bem conhecida desde a Idade Média. O
chorea sancti viti é um fato histórico e se espalhou por toda a Alemanha.
Paracelso curou um número muito grande de pessoas tomadas por esse espírito
de imitação. Mas ele era um cabalista — acusado, portanto, por seus inimigos,
de ter expulsado os diabos pelo poder de um estranho demônio que ele trazia
no punho da sua espada. Os juízes cristãos daquela época de horror
descobriram um remédio melhor e mais seguro. Voltaire afirma que, no distrito
de Jura, entre 1598 e 1600, cerca de 600 licântropos foram mortos por um juiz
piedoso.
Mas, ao passo que o xamã iletrado é uma vítima e durante sua crise às vezes
vê as pessoas presentes, sob a forma de vários animais, e frequentemente
compartilha com elas as suas alucinações, seu irmão xamã, versado nos
mistérios dos colégios sacerdotais do Tibete, expulsa a criatura elementar, que
pode produzir a alucinação, da mesma maneira que um mesmerizador, não com
o auxílio de um demônio mais forte, mas apenas com o seu conhecimento da
natureza do inimigo invisível. Onde os acadêmicos falharam, como nos casos de
Cévennois, um xamã ou um lama colocaria imediatamente um fim ao contágio.
Mencionamos uma espécie de pedra cornalina que está em nosso poder e que
possui um efeito inesperado e favorável sobre a decisão do xamã. Todo xamã
possui esse talismã, que ele traz atado por um cordão e que carrega sob o braço
esquerdo.
“Para que serve esta pedra e quais são suas virtudes?” perguntamos a nosso
guia. Ele nunca nos respondeu categoricamente, mas evitou qualquer
explicação, prometendo que, quando se oferecesse uma oportunidade, e
estivéssemos a sós, ele faria a pedra responder por si mesma. Com essa
esperança infinita, fomos abandonados aos recursos de nossa imaginação.
Mas chegou bastante depressa o dia em que a pedra “falou”. Foi durante as
horas mais críticas de nossa vida; numa época em que a natureza vagabunda
de um viajante levara a autora destas linhas a terras distantes, onde a civilização
não era conhecida, nem a segurança estava garantida por pelo menos uma hora.
Uma tarde, como todos os homens e mulheres tivessem abandonado seus yurta
(tenda tártara), que haviam sido nossos lares por cerca de dois meses, para
testemunhar a cerimônia do exorcismo lamaico de um jedker [43] acusado de
quebrar e dar sumiço à mobília pobre e à cerâmica de uma família que vivia a
duas milhas dali, o xamã, que se tornara nosso protetor naqueles desertos
áridos, foi lembrado de sua promessa. Ele suspirou e hesitou; mas, após um
curto silêncio, levantou-se do pedaço de couro de carneiro em que estava
sentado e, saindo da tenda, plantou junto à entrada uma estaca encimada pela
cabeça de um bode e, abaixando a cortina da tenda, observou que ninguém
deveria entrar nela pois a cabeça de bode era o sinal de que ele estava
“trabalhando”.

NA CÂMARA DE JULGAMENTOS DE ASAR (OSÍRIS) — “A pesagem do coração”


Do Papiro de Ani, Museu Britânico.

CENA FINAL NA CÂMARA DE JULGAMENTOS — HÓRUS LEVANDO ANI ATÉ OSÍRIS


Do Papiro de Ani, Museu Britânico.

Depois, levando a mão ao peito, tirou dali a pedrinha, do tamanho de uma noz,
e, retirando cuidadosamente o invólucro, começou a, segundo me pareceu,
engoli-la. Em poucos momentos seus membros se enrijeceram, seu corpo
endureceu e ele caiu, frio e sem movimentos como um cadáver, a não ser pelo
movimento dos lábios a cada pergunta que fazíamos. A cena era na verdade
embaraçosa — não, assustadora. O Sol estava se pondo e, não fossem as velas
que bruxuleavam no centro da tenda, uma escuridão completa se teria
acrescentado ao silêncio opressivo que ali reinava. Já vivêramos nas pradarias
do Ocidente e nas estepes infinitas da Rússia Meridional; mas nada podia ser
comparado ao silêncio do pôr do Sol nos desertos arenosos da Mongólia; nem
mesmo nos ermos infecundos dos desertos da África, embora os primeiros sejam
parcialmente habitados e estes últimos estejam completamente vazios de vida.
No entanto, ali estava esta autora sozinha com aquilo que parecia um cadáver
no chão. Felizmente, essa situação não durou muito tempo.
“Mahandû!”, disse uma voz, que parecia vir das entranhas da terra, sobre a qual
estava prostrado o xamã. “A paz esteja contigo (...) O que queres que eu faça
por ti?”
Não nos surpreendeu esse fenômeno, por maravilhoso que pareça, pois
estávamos preparados para ele e já havíamos visto outros xamãs em
desempenhos semelhantes. “Quem quer que sejas”, pronunciamos
mentalmente, “procura K. e tenta trazer até aqui o pensamento dessa pessoa.
Vê o que o outro grupo está fazendo e dize (...) que nós estamos fazendo e onde
estamos”.
“Já estou lá”, respondeu a mesma voz. “A velha senhora (cucoana) [44] está
sentada no jardim (...) está pondo seus óculos e lendo uma carta”.
“O conteúdo da carta, rápido”, foi a ordem que ele recebeu, enquanto
buscávamos lápis e papel. O conteúdo foi ditado lentamente, como se, enquanto
o ditava, sua presença invisível desejasse nos propiciar tempo suficiente para a
transcrição correta das palavras, pois reconhecemos a língua valáquia, da qual
conhecíamos a fonética, mas não o significado. Desta maneira enchemos toda
uma página.
“Olha para o oeste (...) para o terceiro mastro do yurta”, pronunciou o tártaro em
sua voz natural que, embora soasse cavernosa, parecia provir de muito longe.
“O pensamento dela está aqui”.
Então, com um movimento convulsivo, a parte superior do corpo do xamã
pareceu erguer-se e sua cabeça caiu pesadamente sobre as folhas desta
escritora, as quais ele tomou em suas mãos. A posição tornava-se cada vez
menos confortável, mas a curiosidade provou ser uma grande aliada da
coragem. No canto ocidental da tenda aparecia, como reflexo do corpo vivo, a
oscilante e nebulosa figura espectral de uma velha e querida amiga, uma
senhora romena da Valáquia, uma mística por natureza, mas absolutamente
incrédula nessa espécie de fenômenos ocultos.
“O pensamento dela está aqui, mas seu corpo está inconsciente. Não
poderíamos trazê-la aqui de outra maneira”, disse a voz.
Dirigimo-nos e suplicamos à aparição que respondesse, mas em vão. Seu
semblante movia-se e ela parecia gesticular com expressão de medo e agonia,
mas nenhum som saiu de seus lábios; apenas imaginamos — talvez fosse
fantasia — ter ouvido de uma longa distância as palavras romenas “Non se póte”
(Não é possível).
Por cerca de duas horas tivemos as provas mais substanciais e inequívocas de
que a alma astral do xamã estava trabalhando em obediência a nosso desejo
não-expresso. Meses depois recebemos uma carta de nossa amiga valáquia em
resposta a uma carta nossa, à qual anexáramos a página transcrita,
perguntando-lhe o que ela fizera naquele dia e descrevendo completamente a
cena. Ela estivera sentada — ela escreveu — no jardim naquela manhã [45]
prosaicamente ocupada em preparar algumas conservas; a carta que lhe
enviamos era palavra por palavra a cópia de uma que ela recebera de seu irmão;
de repente — em consequência do calor, ela acreditava — ela desmaiou e
lembrava-se perfeitamente de ter sonhado que vira esta escritora num lugar
deserto que descreveu exatamente e sentada sob uma “tenda de ciganos”, como
ela se expressou. “De agora em diante”, acrescentava, “não posso mais duvidar”.
Mas nosso experimento provou ser melhor ainda. Havíamos dirigido o ego
interno do xamã para o mesmo amigo mencionado anteriormente neste capítulo,
o Katchi de Lhasa, que viaja constantemente entre o Tibete e a Índia Britânica.
Nós sabemos que ele estava avisado de nossa situação crítica no deserto; por
umas poucas horas ele veio em nosso auxílio e fomos salvos por um grupo de
vinte e cinco cavaleiros capitaneados por um amigo pessoal do Katchi, que era
um Shaberon, um “adepto”, que não havíamos visto antes nem tornamos a ver,
pois está sempre em seu süme (lamaseria), ao qual ninguém tem acesso. Fora
despachado em nosso socorro pelo Katchi, tão logo este soube astralmente da
situação em que nos encontrávamos e, sem contratempo algum, o grupo chegou
ao lugar que ninguém teria podido encontrar por orientação comum.
O que acaba de ser dito provocará naturalmente a incredulidade do leitor comum.
Mas escrevemos para aqueles que querem acreditar; para aqueles que, como
esta escritora, compreendem e conhecem os poderes ilimitados e as
possibilidades da alma astral humana. Nesse caso nós acreditamos de bom
grado, não, nós sabemos que o “duplo espiritual” do xamã não agiu sozinho, pois
ele não era adepto, mas apenas um médium. De acordo com uma expressão
que ele apreciava, tão logo ele colocou a pedra em sua boca seu “pai apareceu,
tirou-o de seu invólucro corporal e o levou por onde quis”.
Quem apenas testemunhou as habilidades químicas, ópticas, mecânicas e
manuais dos prestidigitateurs europeus não está preparado para ver, sem
espanto, as exibições a céu aberto e sem manipulação dos prestidigitadores
hindus, para não falar dos faquires. Não nos referimos à destreza enganadora,
pois Houdin e outros excelem nesse sentido; tampouco nos ocuparemos dos
fenômenos suscetíveis de conveniência, ainda que esta não tenha ocorrido. É
inquestionavelmente verdadeiro o fato de que os viajantes não-peritos,
especialmente os de mente muito imaginativa, exageram excessivamente. Mas
nossa observação baseia-se numa classe de fenômenos que não obedece a
uma hipótese familiar. “Eu vi”, diz um cavalheiro que residiu na Índia, “um homem
lançar para o ar um grande número de bolas numeradas em série natural. À
medida que cada uma das bolas era atirada para cima — e não havia aí nenhum
truque — ela desaparecia nitidamente no ar, ficando cada vez menor, até sumir
completamente da visão. Depois de ter atirado todas elas, vinte ou mais, o
operador pedia a um circunstante que dissesse o número daquela que desejava
ver novamente e então ele gritava ‘número 1’, ‘número 15’, etc., instruído pelos
espectadores, e a bola solicitada caía violentamente aos seus pés, vindo de uma
distância remota. (...) Esses camaradas andam meio desnudos e aparentemente
não utilizam nenhum aparelho. Depois, eu os vi colocar na boca três pós
coloridos diferentes, e então, atirando a cabeça para trás, beberem, à moda
nativa, numa corrente contínua de lotâ, ou botija de bronze, tanta água quanta
podiam e até lhes escorrer pelos lábios. E então esses camaradas, depois de
vomitarem a água que haviam bebido, cuspiam as três porções de pó separada
e completamente secas sobre um pedaço de papel”. [46]
Na parte oriental da Turquia e da Pérsia viveram, desde tempos imemoriais, as
tribos belicosas do Curdistão. Esse povo de origem puramente indo-européia,
sem uma única gota de sangue semítico (embora alguns etnólogos pensem de
maneira diferente), não obstante a sua inclinação guerreira, une em si mesmo o
misticismo dos hindus e as práticas dos magos assírios-caldaicos, em cujo antigo
território se assentaram e o defenderiam se preciso fosse não só contra as
ambições da Turquia, mas também de toda a Europa. [47] Nominalmente
maometanos da seita de Omar, seus ritos e suas doutrinas são puramente
mágicas. Mesmo aqueles que se dizem nestorianos cristãos são cristãos apenas
no nome. Os kaldanys e os seus dois patriarcas são inegavelmente mais
maniqueus do que nestorianos. Muitos deles são Yezîdis.
Uma dessas tribos é notória por sua predileção pela adoração do fogo. No
crepúsculo e no ocaso, os cavaleiros descem dos cavalos e, voltando-se para o
Sol, murmuram uma prece; em cada lua nova realizam misteriosos ritos que
duram toda a noite. Possuem uma tenda preparada para essas ocasiões e o
grosso tecido lanoso negro da cobertura é decorado com sinais estranhos,
bordados em vermelho vivo e amarelo. No centro está uma espécie de altar,
rodeado por três sanefas de bronze, nas quais estão suspensos por cordas de
pêlo de camelo inúmeros anéis que os adoradores seguram durante a cerimônia.
Sobre o altar arde uma curiosa lâmpada antiquada de prata, talvez uma relíquia
encontrada nas ruínas de Persépolis. [48] Essa lâmpada, com três pavios, é um
copo oblongo com uma asa, e pertence evidentemente ao tipo das lâmpadas
sepulcrais egípcias encontradas em profusão nas cavernas subterrâneas de
Mênfis, a acreditarmos em Kircher. [49] Ela se alarga a partir do centro e sua
parte superior possui a forma de um coração; as aberturas para os pavios
formam um triângulo e seu centro está coberto por um heliotrópio invertido, preso
a um talo graciosamente curvo que procede da asa da lâmpada. Esse ornamento
trai claramente sua origem. Era um dos vasos sagrados utilizados na adoração
do Sol. Os gregos deram ao heliotrópio esse nome por causa da sua estranha
propensão de sempre se inclinar para o Sol. Os magos antigos usaram-no em
sua adoração e quem sabe Darius tenha cumprido os misteriosos ritos com essa
luz tríplice iluminando a face do rei-hierofante!
Se mencionamos essa lâmpada com os seus detalhes é porque aconteceu uma
estranha história relacionada a ela. Por referências, apenas, sabemos o que os
curdos fazem durante seus ritos noturnos de adoração da Lua; eles conservam
cuidadosamente os seus segredos e nenhum estranho é admitido às cerimônias.
Mas todas as tribos possuem seu ancião, às vezes muitos, que são tidos como
“homens santos”, que conhecem o passado e podem divulgar os segredos do
futuro. São tidos em alta veneração e geralmente são chamados a fornecer
informações em casos de roubo, assassinato ou perigos.
Viajando de uma tribo para outra, passamos algum tempo em companhia desses
curdos. Como nosso objetivo não é auto-biográfico, omitimos todos os detalhes
que não estão relacionados diretamente com algum fato oculto e, mesmo entre
aqueles que mais de perto nos interessariam, temos lugar para apenas alguns.
Afirmaremos apenas que em certa ocasião foram roubados da tenda uma sela
bastante cara, um tapete e duas adagas circassianas, ricamente montadas e
cinzeladas em ouro, e que os curdos, capitaneados pelo chefe da tribo, vieram
protestar em nome de Alá que o ladrão não pertencia à sua tribo. Acreditamos
nisso, pois este seria um fato sem precedentes entre essas tribos nômades da
Ásia, famosas pela sacralidade com que tratam seus hóspedes, bem como pela
facilidade com que os pilham e às vezes os matam, uma vez transponham os
limites de seus aûl.
Um georgiano que pertencia à nossa caravana sugeriu que se recorresse à luz
do kudian (feiticeiro) da tribo. Isso foi feito em grande segredo e com solenidade,
e a entrevista foi marcada para a meia-noite, quando a Lua estivesse bem alta.
Na hora aprazada fomos conduzidos para a tenda descrita acima.
Um grande buraco, ou uma abertura quadrada, fora aberto no teto abobadado
da tenda e por ele entravam verticalmente os raios da Lua, que se misturavam à
vacilante chama tríplice da pequena lâmpada. Após alguns minutos de
encantações dirigidas, como nos pareceu, à Lua, o conjurador, um velho de
elevada estatura, cujo turbante piramidal tocava o teto da tenda, estendeu um
vidro espelhado redondo, do tipo conhecido como “espelhos persas”.
Desparafusando sua tampa, respirou sobre ele durante dez minutos,
desembaçando-o a seguir com um molho de ervas enquanto murmurava
encantações a sotto voce. A cada esfregação o espelho ficava mais e mais
brilhante, até que seu cristal pareceu radiar refulgentes raios fosfóricos em todas
as direções. Finalmente a operação chegou ao fim; o velho, com o espelho em
suas mãos, permaneceu imóvel como uma estátua. “Olha, Hanoum (...) olha
fixamente!” sussurrou, movendo imperceptivelmente os lábios. Manchas
sombrias e escuras apareceram então sobre o espelho, onde um momento atrás
nada se refletia senão a face radiante da lua cheia. Poucos segundos mais e
então apareceram a sela já referida, o tapete e as adagas, que pareciam estar
saindo de uma água profunda e clara e se delineavam cada vez mais
nitidamente. Depois uma sombra mais escura surgiu sobre esses objetos e se
condensou gradualmente e então, tão visível quanto vista por um telescópio,
apareceu a figura nítida de um homem.
“Eu o conheço!” — exclamou esta escritora. “É o tártaro que veio ontem à noite,
perguntando se queríamos comprar sua mula!”
A imagem desapareceu, como que por encanto. O velho abanou a cabeça em
sinal de assentimento, mas confinou imóvel. Murmurou novamente algumas
palavras estranhas e de repente começou a cantar. O tom era lento e monótono,
mas, após ter cantado algumas estrofes na mesma língua desconhecida, sem
mudar o ritmo, nem o tom, pronunciou, como um recitativo, as seguintes
palavras, em seu russo mal falado:
“Agora, Hanoum, olha bem, se nós o pegarmos — ao ladrão — nós
aprenderemos esta noite”, etc.
As mesmas sombras voltaram a se agrupar e então, quase sem transição, vimos
o homem deitado de costas, numa poça de sangue, atravessado na sela, e dois
homens galopando a distância. Tomados pelo terror, e angustiados com essa
visão, não quisemos ver mais nada. O velho, abandonando a tenda, chamou
alguns dos curdos que estavam do lado de fora e pareceu dar-lhes instruções.
Dois minutos mais, uma dúzia de cavaleiros galopava em grande velocidade pela
encosta da montanha em que estávamos acampados.
Regressaram de manhãzinha com os objetos perdidos. A sela estava coberta de
sangue coagulado e naturalmente fora abandonada a eles. Na história que então
contaram, eles viram dois cavaleiros que desapareciam atrás de uma colina
distante; ao correr em seu encalço, deram com o cadáver do ladrão tártaro,
exatamente como havíamos visto no espelho mágico. Ele fora assassinado por
dois bandidos, cujo desígnio evidente fora interrompido pelo aparecimento súbito
do grupo enviado pelo velho kudian.
Os “sábios” orientais produzem os resultados mais notáveis com o simples ato
de respirar sobre uma pessoa, de intenção boa ou má. Isso é mesmerismo puro;
e, entre os derviches persas que o praticam, o magnetismo animal é
frequentemente reforçado com o dos elementos. Se acontece de uma pessoa
ficar de frente para determinado vento, eles dizem que sempre há perigo; e
muitos dos “entendidos” em matérias ocultas jamais serão persuadidos a andar
na direção de onde sopra o vento no pôr do Sol. Conhecemos um velho persa
de Baku, [50] no mar Cáspio, que gozava da invejável fama de lançar feitiços com
a ajuda oportuna desse vento, que sopra muito frequentemente naquela cidade,
como dá a entender seu nome persa. [51] Se acontecer de uma vítima, contra
quem se excite a cólera de um espírito mau, enfrentar esse vento, o feiticeiro
surgirá à frente dessa pessoa e, como que por encanto, cruzará a estrada
rapidamente e soprará em sua face. A partir desse momento, a vítima estará
afligida por todos os tipos de mal — estará sob o feitiço do “mau olhado”.

Bruxaria pela respiração de um padre jesuíta


A utilização do sopro humano pelo feiticeiro, como um acessório para o
cumprimento dos seus objetivos sinistros, está extraordinariamente ilustrada em
muitos casos terríveis registrados nos anais franceses — notadamente os de
muitos sacerdotes católicos. Na verdade, essa espécie de feitiçaria era
conhecida desde os tempos mais antigos. O imperador Justiniano prescreveu as
penalidades mais severas contra aqueles que se valiam da feitiçaria para
violentar a castidade e para excitar paixões ilegais. [52] * Agostinho (A Cidade de
Deus) adverte contra essa prática; Jerônimo, Gregório de Nazanzius e muitas
outras autoridades eclesiásticas também denunciam que esse crime não era
incomum no clero. Basset [53] relata o caso do curé e Peifane, que ocasionou a
ruína de uma das suas paroquianas mais respeitadas e virtuosas, a Dama du
Lieu, por meio da feitiçaria, e que foi queimado vivo pelo Parlamento de
Grenoble. Em 1611, um sacerdote chamado Goffridy foi queimado pelo
Parlamento de Provence por seduzir no confessionário uma penitente chamada
Madelaine de Ia Palud, por ter soprado sobre ela, lançando-a assim num
pecaminoso delírio de amor por ele.
* Eis o texto dessa afirmação: “Eorum est scientia punienda et severissimis legibus vindicanda,
qui magicis adcincti artibus aut contra salutem hominum moliti aut pudicos animos ad libidinem
deflexisse detegentur”. Uma tradução livre: “Será justamente punido pelas leis mais severas o
conhecimento dos que recorrem às artes mágicas ou que desejam enganar o bem-estar do povo
ou que sejam descobertos a levar as almas castas para a luxúria”. Embora o título desse capítulo
seja “De maleficis et mathematicis et ceteris similibus”, é dos mágicos e dos astrólogos que se
fala, pois na época bizantina a palavra “matemático” significava astrólogo.

O Codex Justinianus pode ser encontrado na coleção de leis intitulada Corpus Juris Civilis,
publicada em muitas edições antes de 1874, e H. P. B. pode ter visto essa passagem na edição
dos irmãos Kriegel, vinda a lume em Leipzig, por obra de Baumgartner, em 1840, onde o trecho
ocorre no vol. II, p. 595. (N. do org.)

Os casos acima referidos estão relatados no informe oficial do famoso caso do


Padre Girard, um sacerdote jesuíta de muita influência, que em 1731 foi morto
diante do Parlamento de Aix, França, pela sedução de uma sua paroquiana, Srta.
Catherine Cadière, de Toulon, e por certos crimes revoltantes ligados a essa
sedução. A acusação estabeleceu que o crime foi motivado pelo recurso à
feitiçaria. A Srta. Cadière era uma jovem notável por sua beleza, sua piedade e
por suas virtudes exemplares. Sua atenção para com seus deveres religiosos
era excepcionalmente rigorosa e essa foi a causa de sua perdição. Os olhares
do Padre Girard dirigiram-se para ela e ele deu início às manobras que a
levariam à ruína. Conseguindo a confiança da moça e da sua família por sua
aparente grande santidade, ele um dia pretextou uma coisa qualquer e soprou
sobre ela. A moça sentiu nascer instantaneamente uma violenta paixão por ele.
Ela teve também visões extáticas de caráter religioso, estigmas, ou marcas de
sangue da “Paixão”, e convulsões histéricas. Ofereceu-se finalmente à tão
esperada oportunidade de sedução e o jesuíta soprou novamente sobre ela e,
antes que a pobre moça recobrasse os sentidos, cumpriu seu objetivo. Durante
meses continuou ele a sugestionar sua vítima com sofisticaria para excitar-lhe o
fervor religioso, sem que ela suspeitasse que fizera algo de errado. Finalmente,
todavia, os olhos da moça foram abertos, seus pais foram informados e o
sacerdote foi processado. O julgamento foi realizado a 12 de outubro de 1731.
Dos seus 25 juízes, doze votaram por enviá-lo ao poste. O sacerdote criminoso
foi defendido por todo o poder da Companhia de Jesus e se diz que um milhão
de francos foi gasto em tentar eliminar as provas aduzidas no processo. Os fatos,
todavia, foram publicados numa obra (em 5 volumes, 16mo), agora rara,
intitulada Recueil Général des Pièces contenues au Procèz du Père Jean-
Baptiste Girard, Jésuite, etc., etc. [54]
Referimo-nos acima à circunstância de que, quando ela estava sob a influência
do Padre Girard e mantinha com ele relações ilícitas, o corpo da Srta. Cardière
foi marcado pelos stigmata da Paixão, a saber: as chagas sangrentas de
espinhos em sua testa, de cravos em suas mãos e em seus pés e de um golpe
de lança em seu costado. Deve-se acrescentar que as mesmas marcas foram
vistas nos corpos de outras seis penitentes desse sacerdote, a saber: Senhoras
Guyol, Laugier, Grodier, Allemande, Batarelle e Reboul. De fato, percebeu-se
comumente que as mais belas penitentes do Padre Girard eram estranhamente
dadas a êxtases e a stigmata! Acrescente-se que, no caso do Padre Goffridy,
referido acima, provou-se, com exames cirúrgicos, que a mesma coisa
aconteceu à Senhorita de Ia Palud, e que queremos chamar a atenção de todos
(especialmente os espiritistas) que imaginam que esses stigmata são produzidos
por espíritos puros. Salvo a ação do Diabo, a quem mandamos repousar em paz
no capítulo anterior, os católicos ficariam desorientados, imaginamos, a despeito
de sua infalibilidade, quanto a distinguir entre os stigmata das feiticeiras e os
produzidos pela intervenção do Espírito Santo ou dos anjos. Os anais da Igreja
estão repletos de casos de imitações diabólicas desses sinais de santidade, mas,
como observamos, o Diabo está fora de combate.
Aqueles que nos tenham seguido até aqui poderiam perguntar naturalmente para
que finalidade prática tende este livro; muito se disse sobre a magia e sua
potencialidade e também sobre muito da imensa antiguidade dessa prática. Por
acaso afirmamos que as ciências ocultas devem ser estudadas e praticadas em
todo o mundo? Deveríamos substituir Espiritismo moderno pela magia antiga?
Nem uma coisa, nem outra; essa substituição não poderia ser feita, nem o estudo
seria realizado universalmente, sem se expor ao risco de enormes perigos
públicos. Neste momento, um espírita bastante conhecido e conferencista sobre
Mesmerismo está preso sob acusação de violar uma mulher que ele hipnotizara.
Um feiticeiro é um inimigo público e o Mesmerismo pode ser convertido
facilmente na pior das feitiçarias.
Não queremos que os cientistas, nem os teólogos e nem os espíritas se tornem
mágicos praticantes, mas desejamos que todos compreendam que existiram
uma ciência verdadeira, uma religião profunda e fenômenos genuínos, antes da
era moderna. Desejamos que todos os que possuem uma voz influente sobre a
educação das massas primeiro conhecessem e depois ensinassem que os guias
mais seguros para a felicidade e a sabedoria humanas são os escritos que nos
foram legados pela antiguidade mais remota e que as aspirações espirituais mais
nobres e uma moralidade mediana mais elevada predominam nos países em
que o povo toma seus preceitos como norma de conduta de suas vidas.
Desejamos que todos compreendam que os poderes mágicos, isto é, psíquicos
existem em todos os homens e que atualizem essas potências aqueles que
sentem verdadeira vocação para esse magistério e estejam dispostos a pagar o
preço da disciplina e do domínio interior que seu desenvolvimento exige.

Porque o estudo da magia é quase


impraticável na Europa
Muitos homens surgiram que tiveram lampejos da Verdade e acreditaram tê-la
possuído plenamente. Eles não fizeram o bem que desejaram e teriam podido
fazer, porque a vaidade os levou a interpor sua personalidade entre os crentes
e a verdade completa que se ocultava. O mundo não precisa de igreja sectária,
seja de Buddha, de Jesus, de Maomé, de Swedenborg, de Calvino ou de
qualquer outro. Havendo apenas UMA verdade, o homem só precisa de uma
igreja — o Templo de Deus dentro de nós, murado pela matéria mas acessível
a todos aqueles que podem encontrar o caminho — os puros de coração verão
a Deus.
A Trindade da Natureza é a fechadura da Magia, a Trindade do homem a sua
chave. Dentro dos recintos solenes do santuário, o SUPREMO tem e não tem
nome. É impensável e impronunciável; não obstante, todo homem encontra seu
deus em si mesmo. “Quem és tu, ó formoso ser?” pergunta a alma desencarnada
no Khordah-Avesta, diante das portas do Paraíso. “Eu sou, ó Alma, teus bons e
puros pensamentos, tuas obras e tua boa lei (...) teu Anjo (...) e teu deus”. [55] O
homem, ou a alma, é reunida a SI MESMO, pois esse “Filho de Deus” é uno com
ele; é seu Mediador, o Deus de sua alma humana e seu “Justificador”. “Deus não
se revela imediatamente ao homem, senão que o espírito é seu intérprete”, diz
Platão, no Banquete. [56]

Conclusão
Além disso, há muitas outras razões para que o estudo da Magia, exceto em sua
ampla filosofia, seja quase impraticável na Europa e na América. Sendo a Magia
o que é, a mais difícil de todas as ciências para se aprender experimentalmente
—, sua aquisição está praticamente além do alcance da maioria das pessoas de
raça branca, embora muito esforço se faça nesse sentido em seus próprios
países ou no Oriente. Talvez não mais de um homem em um milhão de pessoas
de sangue europeu esteja apto — física, moral e psicologicamente — para se
tornar um mago praticante e nem um em dez milhões reuniria todas as três
qualificações exigidas para esse trabalho. Às nações civilizadas faltam os
poderes fenomenais de resistência mental e física dos orientais; faltam nelas as
idiossincrasias de temperamento dos orientais. O hindu, o árabe e o tibetano
recebem como herança uma percepção intuitiva das possibilidades das forças
naturais ocultas sujeitas à vontade humana; e neles estão mais bem
desenvolvidos do que nas raças ocidentais os sentidos do corpo e do espírito.
Não obstante a diferença notável de espessura entre os crânios de um europeu
e de um hindu meridional, essa diferença — resultado climático, devido à
intensidade dos raios solares — não envolve princípios psicológicos. Além disso,
haveria dificuldades extremadas na maneira de adestramento, se assim
podemos nos expressar. Contaminado por séculos de superstição dogmática,
por um inerradicável — apesar de injustificado — sentimento de superioridade
em relação àqueles que os ingleses chamam tão desdenhosamente de “negros”,
o branco europeu dificilmente se submeteria à educação prática de um copta, de
um brâmane ou de um lama. Para tornar-se um neófito é preciso entregar-se de
corpo e alma ao estudo das ciências ocultas. A Magia — a mais imperiosa das
amantes — não tolera nenhum rival. Diferentemente das outras ciências, um
conhecimento teórico das fórmulas sem capacidades mentais ou poderes da
alma é totalmente inútil em magia. O espírito tem de manter em sujeição
completa a combatividade do que erradamente se chama de razão educada, até
que os fatos tenham triunfado sobre a fria sofisticaria humana.
Os espiritistas são os que estão mais bem preparados para apreciar o ocultismo,
embora, apesar do preconceito, até agora tenham sido os maiores oponentes à
sua divulgação pública. Apesar de todas as negativas insensatas e das
denúncias, seus fenômenos são reais. A despeito, ainda, de suas próprias
asserções, são totalmente malcompreendidos por eles. A teoria totalmente
insuficiente da ação constante dos espíritos humanos desencarnados, em sua
produção, tem sido a bandeira da Causa. Mil fracassos mortificantes não
conseguiram converter à verdade sua razão, nem sua intuição. Ignorando os
ensinamentos do passado, eles não descobriram nenhum substituto.
Oferecemos-lhes dedução filosófica, em vez de hipótese inverificável, análise e
demonstração científica, em lugar de fé indiscriminadora. A filosofia oculta
fornece-lhes os meios de encontrar as exigências razoáveis da ciência e os
liberta da necessidade humilhante de aceitar os ensinamentos oraculares das
“inteligências”, que via de regra possuem menos inteligência do que as crianças
que vão à escola. Assim fundamentados e robustecidos, os fenômenos
modernos estariam em posição de comandar a atenção e de reforçar o respeito
dos que dirigem a opinião pública. Sem invocar esse auxílio, o Espiritismo
continuará a vegetar, repudiado igualmente — e não sem causa — pelos
cientistas e pelos teólogos. Em seu aspecto moderno, não é nem ciência, nem
religião e nem filosofia.
Acaso somos injustos? Haverá algum espiritista inteligente que nos acuse de
termos retorcido esta questão? O que poderá ele nos apresentar, senão uma
confusão de teorias, um emaranhado de hipóteses mutuamente contraditórias?
Pode ele dizer que o Espiritismo, não obstante os seus trinta anos de fenômenos,
constitui uma filosofia defensável; não, que possua algo como um método
estabelecido que seja geralmente aceito e seguido pelos seus representantes
identificados?
Não obstante, há muitos escritores profundos, eruditos e entusiastas entre os
espiritistas, espalhados pelo mundo. Há homens que, além de um treinamento
mental específico e de uma fé ponderada nos fenômenos per se, possuem todos
os requisitos de líderes do movimento. Como é então que, salvo a edição de um
volume isolado ou dois, ou de contribuições ocasionais para os jornais, todos
eles se abstêm de tomar parte ativa na formação de um sistema de filosofia?
Não é falta de coragem moral, como atestam seus escritos. Nem por causa da
indiferença, pois lhes sobra entusiasmo e estão convencidos dos fatos. Nem lhes
falta capacidade, porque muitos deles são homens notáveis, podem igualar-se
com os mais esclarecidos talentos. É porque, quase sem exceção, estão
confusos pelas contradições que encontram e esperam que experiências futuras
verifiquem as hipóteses aventureiras. Sem dúvida isso faz parte da sabedoria.
Foi o método adotado por Newton, que, com o heroísmo de um coração honesto
e generoso esperou por dezessete anos a promulgação de sua teoria da
gravitação, só porque ele não a havia realizado de maneira que o satisfizesse.
O Espiritismo, cuja característica é antes a agressão do que a defesa, tem
tendido à iconoclastia, no que fez bem. Mas não considerou que demolir não é
construir. Cada nova verdade substancial que erige é logo sepultada sob uma
avalanche de quimeras, até que todas elas resultem numa confusa ruína. A cada
passo de avanço, a cada nova posição vantajosa de que se apodera no terreno
dos FATOS, algum cataclismo ocorre, em forma de fraude ou de descrédito, que
atira os espiritistas para trás e os reduz à impotência, porque não podem e seus
inimigos inviáveis não querem (ou talvez possam menos ainda) provar suas
afirmações. Sua fraqueza fatal repousa no fato de que possuem apenas uma
teoria para oferecer como explicação dos seus fatos tão combatidos — a ação
de espíritos humanos desencarnados e a sujeição completa do médium a eles.
Os espiritistas atacarão os que divergem em opiniões com uma veemência só
garantida por uma causa melhor; considerarão todo argumento que contradiga
sua teoria como uma imputação sobre seu senso comum e seus poderes de
observação e se recusarão cabalmente a discutir a questão.
Como, então, pode o Espiritismo elevar-se à categoria de uma ciência? Como
mostra o Prof. Tyndall, a ciência inclui três elementos absolutamente
necessários: a observação dos fatos, a indução de leis a partir desses fatos e a
verificação dessas leis por experiência prática constante. Que observador
experiente continuará a afirmar que o Espiritismo apresenta um desses três
elementos? O médium não está cercado uniformemente por condições de teste
que possibilitem uma comprovação rigorosa; as induções derivadas dos fatos
supostos carecem de elementos comprobatórios; e, como corolário, não tem
havido verificação suficiente das hipóteses por parte da experiência. Em suma,
falta o primeiro elemento de certeza.
Para que não sejamos acusados do desejo de expor tendenciosamente a
posição do Espiritismo, no momento da redação desta obra, ou acusados de
negar crédito aos avanços feitos atualmente, citamos algumas passagens do
Spiritualist de Londres de 9 de março de 1877. No encontro quinzenal, realizado
a 19 de fevereiro, ocorreu um debate sobre o tema “O pensamento antigo e o
Espiritismo moderno”. Desse encontro participaram alguns dos espíritas mais
inteligentes da Inglaterra. Entre eles estava o Sr. W. Stainton Moses, M. A., que
havia estudado recentemente a relação entre os fenômenos antigos e os
modernos. Ele disse: “O Espiritismo popular não é científico; avança muito pouco
no caminho da verificação científica. Além disso, o Espiritismo exotérico não vai,
em grande medida, para além da presumida comunicação com amigos pessoais,
ou da gratificação da curiosidade, ou da mera evolução das maravilhas. (...) A
ciência esotérica do Espiritismo é muito rara e tão rara quanto valiosa. Dela
deveríamos extrair os conhecimentos que pudéssemos desenvolver
exotericamente. (...) Imitamos demasiado o procedimento dos físicos; nossas
provas são toscas e frequentemente ilusórias; sabemos muito pouco do poder
protéico do espírito. Nisto estavam os antigos muito mais à nossa frente e muito
nos podem ensinar. Não introduzimos qualquer certeza nas condições — um
pré-requisito necessário ao verdadeiro experimento científico. Isso se deve em
grande medida ao fato de que nossos círculos estão construídos sobre princípio
algum. (...) Não dominamos ainda as verdades elementares que os antigos
conheciam e com base nas quais agiam, como, por exemplo, o isolamento dos
médiuns. Temos estado tão ocupados com caçar maravilhas que mal tabulamos
os fenômenos ou propomos uma teoria que dê conta da produção do mais
simples desses fenômenos. (...) Nunca enfrentamos a questão — O que é a
inteligência? Esta é a grande mácula, a mais frequente fonte de erro, e aqui
podemos aprender proveitosamente com os antigos. Aos espiritistas repugna
admitir a possibilidade da verdade do ocultismo. Nesse sentido eles são mais
difíceis de ser convencidos do que o mundo externo em relação ao Espiritismo.
Os espíritas partem de uma falácia, isto é, de que todos os fenômenos são
causados pela ação de espíritos humanos finados; eles não examinaram os
poderes do espírito humano encarnado; eles não conhecem o campo de ação
do espírito, até onde ele alcança e o que subjaz no seu interior”.
Nossa posição não poderia ser melhor definida. Se o Espiritismo tem um futuro,
ele depende de homens como o Sr. Stainton Moses.
Nossa obra está concluída — oxalá tivéssemos podido fazer melhor! Mas, a
despeito de nossa inexperiência na arte de compor um livro, e da séria
dificuldade de escrever numa língua estranha, esperamos ter dito alguma coisa
que perdure nas mentes dos pensadores. Os inimigos da Verdade foram
contados e passados em revista. A ciência moderna, sem poder satisfazer as
aspirações da raça, faz do futuro um vazio e arrebata toda esperança à
Humanidade. Em certo sentido, ela é como o Baital Pachisi, * o vampiro hindu
da imaginação popular, que vive em corpos mortos e só se alimenta da podridão
da matéria. A teologia da cristandade foi desfiada pelas mentes mais sérias da
nossa época. Descobriu-se que ela é, em conjunto, mais subversiva do que
estimuladora da espiritualidade e da moral sadia. Em vez de expor as regras da
lei e da justiça divinas, ela só fala de si mesma. Em lugar de uma Divindade que
vive para sempre, ela prega o Mal e o faz indistinto do próprio Deus! “Não nos
leveis à tentação”, é a aspiração dos cristãos. Quem, então, é o tentador? Satã?
Não. A prece não é dirigida a ele. É aquele gênio tutelar que endureceu o coração
do Faraó, infundiu um espírito mau em Saul, enviou mensageiros mentirosos aos
profetas e tentou Davi ao pecado; é — o Deus-da-Bíblia de Israel!
* Esse termo é uma corrupção dialetal de Vetâla-pancha-vimsati, ou “Os Vinte e Cinco Contos
do Vetâla”, uma coleção de contos sobre um demônio, conhecido como Vetâla, que se supunha
penetrar em cadáveres. Essas histórias são conhecidas dos leitores ingleses sob o título de
Vikram and the Vampire, traduzidas por Sir R. Burton em 1870, e como The Baital Pachisi,
traduzidas por W. B. Barker e editadas por E. B. Eastwick, Londres, 1855. (N. do Org.)

Nosso exame dos inúmeros credos religiosos que a Humanidade, antes como
agora, professou, indica evidentemente que todos eles derivaram de uma fonte
primitiva. Seriam na verdade apenas modos diferentes de se expressar o anseio
que a alma humana aprisionada sente de se comunicar com as esferas celestes.
Assim como o raio branco da luz se decompõe pelo prisma nas várias cores do
espectro solar, assim também o raio da verdade divina, ao passar pelo prisma
triédrico da natureza do homem foi repartido nos fragmentos coloridos chamados
RELIGIÕES. E, como os raios do espectro, em gradações imperceptíveis,
mergulham um no outro, assim também as grandes teologias que surgiram com
diferentes graus de divergência da fonte original, tornaram a convergir nos
cismas, nas escolas e nos brotos surgidos de todos os lados. Combinados, seu
agregado representa uma verdade eterna; separados, são apenas sombra do
erro humano e sinais de imperfeição. A adoração dos pitris édicos está-se
tornando rapidamente a adoração da porção espiritual da Humanidade.
Necessita apenas a percepção correta das coisas objetivas para finalmente
descobrir que o único mundo de realidade é o subjetivo.
Aquilo que tem sido desdenhosamente chamado de Paganismo foi a sabedoria
antiga repleta de Divindade; e o Judaísmo e seus rebentos, o Cristianismo e o
Islamismo derivaram da inspiração que receberam desse parente étnico. O
Bramanismo e o Budismo pré-védicos são a fonte dupla de que brotaram todas
as religiões; o Nirvâna é o oceano para o qual todas elas tendem.
Para os fins de uma análise filosófica, não precisamos levar em consideração as
monstruosidades que obscureceram o registro de muitas das religiões do
mundo. A fé verdadeira é o invólucro da caridade divina e são apenas humanos
aqueles que a ministram em seus altares. À medida que viramos as páginas
sangrentas da história eclesiástica, vemos que, a despeito de quem tenha sido
o herói e quais tenham sido as roupas usadas pelos atores, o enredo da tragédia
foi sempre o mesmo. Mas a Noite Eterna estava em tudo e sobre tudo e
passamos do que vemos ao que é invisível ao olho do sentido. Nosso desejo
fervoroso tem sido o de mostrar às almas verdadeiras como elas podem correr
a cortina e, no resplendor dessa Noite transmutada em Dia, contemplar
serenamente a VERDADE SEM VÉU.
Notas
[1] [Atribuído por Sanang Setsen, historiador mongol, a Toghon Timur, último soberano da
dinastia Chingîz.]

[2] Em seu sentido geral, Îsvara significa “Senhor”; mas o Îsvara dos filósofos místicos da Índia
era entendido exatamente como a união e a comunhão dos homens com a Divindade dos gregos
místicos. Îsvara-Prasâda significa literalmente, em sânscrito, graça. Ambas as escolas Mîmânsâ,
que tratam das questões mais abstrusas, explicam karma como mérito, ou a eficácia das obras;
Îsvara-Prasâda como graça e Sraddha como fé. As escolas Mîmâmsâ são obra dos dois mais
celebrados teólogos da Índia. O Pûrva-Mîmâmsâ-Sûtra foi escrito pelo filósofo Jaimini e o Uttara-
Mîmâmsâ (ou Vedânta) por Krishna Dvaipâyana Vyâsa, que coligiu os quatro Vedas. (Ver Sir
William Jones, Colebrooke e outros.)

[3] Olympiodorus, On the Phaedo of Plato, nas Select Works of Porphyry, de Thos. Taylor, p.
207, rodapé.

[4] Suetônio, Lives of the Caesars, “Augustus”, § 591.

[5] Cf. Plutarco, On the Face in the Orb of the Moon, § 27-8.

[6] Cf. Plínio, Nat. Hist., XXX, ii e ss.

[7] Sérvio, Comm. on Virgil, Aeneid, p. 71.

[8] Pyârichânda Mitra, “The Psychology of the Âryas”, em Human Nature, março de 1877.
[Também em On the Soul: its Nature and Development, Calcutá, 1881, p. 48-9.]

[9] [Plutarco, On the Cessation of Oracles, § 38, 39.]

[10] O correspondente em Boulogne (França) de um jornal inglês diz que conhece um cavalheiro
que teve um braço amputado no ombro “e é certo que possui um braço espiritual que vê e sente
com sua outra mão. Pode tocar tudo e até mesmo levantar objetos com o braço e a mão
espirituais ou fantasmais”. O litigante nada sabe de Espiritismo. Citamos este caso como o
soubemos sem verificação, apenas como corroboração do que vimos no caso do adepto oriental.
Esse erudito e cabalista praticante pode projetar quando queira seu braço astral e, com a mão,
pegar, mover e carregar objetos, até mesmo a uma distância considerável do lugar onde está
sentado ou em pé. Frequentemente o vimos cuidar dessa maneira do seu elefante favorito.

[11] Resposta a uma pergunta feita na “Associação Nacional dos Espiritistas”, a 14 de maio de
1877.

[12] “A Buddhist’s Opinions of the Spiritual States”, The Spiritualist, 25 de maio de 1877, p. 246.

[13] Cf. Coleman, The Mythology of the Hindus, p. 217; também a carta do Sr. Turner ao
Governador Geral, em Asiatic Researches (1801), vol. I, p. 197-205.

[14] Os súditos russos estão impedidos de atravessar o território tártaro; nem os súditos do
Imperador da China podem penetrar nas fábricas russas.

[15] Antonomásia das personificações da Trindade Budista: Buddha, Dharma e Sangha, que os
tibetanos chamam de Fo, Fa e Sengh.
[16] [Pashi-Buddha?]

[17] A um Bhikshu não é permitido aceitar nada que provenha dos leigos de seu próprio povo, e
menos ainda dos estrangeiros. O mínimo contato com o corpo e até mesmo com a vestimenta
de uma pessoa não pertencente à sua comunidade é cuidadosamente evitado. Assim, antes de
aceitar as oferendas que trouxemos e que compreendiam peças de lã vermelha e amarela que
eles chamam de pu-lu e que os lamas usam frequentemente, tiveram de passar por cerimônias
estranhas. Eles estão proibidos de 1º, mendigar ou pedir qualquer coisa — mesmo que estejam
famintos — e só podem algo que tenha sido oferecido voluntariamente; 2º, tocar ouro e prata
com as mãos; 3º, comer qualquer porção de comida, mesmo quanto presenteada, a menos que
o doador diga claramente ao discípulo “Isso é para seu mestre comer”. Depois, o discípulo deve
voltar ao pazen e oferecer a comida ao seu mestre e dizer “Mestre, isso é permitido; tomai e
comei”, e só então o lama pode pegar a comida com a mão direita e partilhá-la. Todas as nossas
oferendas tiveram de passar por essas purificações. Quando as peças de prata e um punhado
de annas (moedas de quatro centavos) foram oferecidas à comunidade, em ocasiões diferentes,
um discípulo primeiro as tomou e as envolveu num lenço amarelo e, recebendo-as na palma da
mão, atirou-as imediatamente no Badir, chamado em outros lugares de Sabaît, um vaso sagrado,
geralmente de madeira, usado para o recebimento de oferendas.

[18] Essas pedras são grandemente veneradas entre os lamaístas e os budistas; o trono e o
cetro do Buddha são enfeitados com elas e o Taley-Lama usa uma no quarto dedo da mão direita.
Elas podem ser encontradas nos montes Altai e perto do rio Yarkhun. Nosso talismã era um
presente do venerável sacerdote, um Gelong, de uma tribo Kalmuck. Embora sejam tratados
como apóstatas por seu Lamaísmo primitivo, esses nômades mantêm relações amistosas com
os demais Kalmuck, os Khoshub do Tibete Oriental e de Kokonor e até mesmo com os lamaístas
de Lhasa. As autoridades eclesiásticas, todavia, não mantêm relações com eles. Tivemos muitas
oportunidades de nos familiarizar com esse interessante povo das estepes astracânicas, vivendo
nos seus kibitkas nos nossos primeiros anos, e partilhamos da hospitalidade pródiga do Príncipe
Tumen, seu último chefe, e de sua esposa. Em suas cerimônias religiosas, os Kalmuck utilizam
trombetas feitas com os fêmures e os úmeros de governantes e sumos-sacerdotes mortos.

[19] Os Kalmuck budistas das estepes astracânicas estão acostumados a fazer seus ídolos com
as cinzas cremadas de seus príncipes e sacerdotes. Uma parenta da autora destas linhas
possuía, em sua coleção, muitas pirâmides pequenas feitas com as cinzas de kalmucks
eminentes que lhes foram presenteadas pelo próprio Príncipe Tumen, em 1836.

[20] O leque sagrado usado pelos principais sacerdotes, em vez de um guarda-chuva.

[21] Ver Vol. I desta obra, para mais detalhes.

[22] [Edmund Spenser, The Faerie Queene, é citado.]

[23] Ver John Tyndall, Sound, cap. VI, § 12.

[24] Palavra composta de sûtra, máxima ou preceito, e de antika, perto ou próximo.

[25] Parece injusto a Asoka compará-lo a Constantino, como o fazem muitos orientalistas. Se,
no sentido religioso e político, Asoka fez para a Índia o que se crê que Constantino fez para o
mundo ocidental, toda similaridade acaba aí.

[26] Ver “Indian Sketches, etc.”, de W. L. O’Grady; também a New American Cyclopaedia de
Appleton.

[27] Aum (termo sânscrito místico da Trindade), mani (jóia santa), padme (no lótus; padma é o
nome para lótus), hum (assim seja). As seis sílabas da frase correspondem aos seis poderes
principais da Natureza, que emanam de Buddha (a divindade abstrata, não Gautama), que é o
sétimo, e o Alfa e o Ômega de todo ser.
[28] Muru (o puro) é uma das mais famosas lamaserias de Lhasa, situada exatamente no centro
da cidade. Ali o Shaberon, o Taley-Lama, reside durante a maior parte dos meses do inverno;
durante dois ou três meses do verão a sua residência é em Potala. Em Muru está o maior
estabelecimento tipográfico do país.

[29] O grande cânone budista contém 1083 obras em centenas de volumes, muitos dos quais
tratam de Magia.

[30] [Alipili, Centrum naturae concentratum, etc., Londres, 1696, p. 78-80.]

[31] [Londres, 1680.]

[32] J. Crawford, Journal of an Embassy… to the Courts of Siam and Cochin-China, 1828, p. 181-
82.

[33] Semedo, Histoire de Ia Chine, III, p. 114. Cf. Yule, The Book of Ser Marco Polo, vol. I, p.
314-15; ed. 1875.

[34] Havia uma anedota, corrente entre os amigos de Daguerre, por volta de 1838 e 1840. Numa
tertúlia, Madame Daguerre, cerca de dois meses antes da apresentação do famoso processo
daguerriano à Académie des Sciences, por Arago (janeiro de 1839), manteve uma séria conversa
com uma das maiores celebridades médicas da época, sobre as condições mentais do seu
marido. Após explicar ao médico os inúmeros sintomas do que ela acreditava ser a aberração
mental do seu marido, ela acrescentou, com lágrimas nos olhos, que a maior prova da insanidade
de Daguerre residia na firme convicção de que ele conseguiria pregar sua própria sombra na
parede, ou fixá-la em placas metálicas mágicas. O médico ouviu-a com atenção e disse que ele
próprio havia observado em Daguerre ultimamente os sintomas mais fortes daquilo que, para
ele, era uma prova inegável de loucura. Terminou a conversa aconselhando-a a enviar seu
marido calmamente e sem demora a Bicêtre, o conhecido asilo de lunáticos. Dois meses depois
criou-se um profundo interesse no mundo da arte e da ciência com a exibição de um grande
número de quadros tomados pelo novo processo. As sombras foram fixadas, logo após, sobre
placas metálicas e o “lunático” foi proclamado o pai da fotografia.

[35] W. Schott, Über den Buddhaismus, etc., Berlim, 1846, p. 71.

[36] Cel. Yule, The Book of Ser Marco Polo, vol. II, p. 351-52; ed. 1875.

[37] F. Bernier, Voyages de Bernier, etc., vol. II, p. 130; Amsterdã, 1699. Cf. Yule, op. cit., vol. II,
p. 356.

[38] [Paracelsi opera omnia, II, 20; Genebra, 1658.]

[39] Em nenhuma região do mundo se encontram mais plantas medicinais do que na Índia
Meridional, em Cochim, em Burma, no Sião e no Ceilão. Os médicos europeus — segundo uma
prática fortalecida pelo tempo — qualificam a situação de rivalidade profissional, tratando os
doutores nativos como charlatães e empíricos; mas isso não evita que os indígenas obtenham
menos sucesso em casos em que graduados importantes das escolas britânicas e francesas de
Medicina falharam redondamente. As obras nativas sobre matéria médica certamente não
contêm os remédios secretos conhecidos; no entanto, os melhores febrífugos foram aprendidos
pelos médicos britânicos com os hindus. Pacientes houve que, ensurdecidos e inchados pelo
abuso de quinino, estavam morrendo lentamente de febre sob os cuidados de médicos
renomados e que foram curados completamente com cortiça de Mârgosa e erva chiretta — que
agora ocupam um lugar honroso entre as drogas européias.

[40] Denominação hindu para o mantra ou encantamento peculiar contra mordedura de cobra.

[41] Entre os sinos dos adoradores “gentios” e os sinos e romãs da adoração judaica há uma
diferença: os primeiros, além de purificar a alma do homem com seus tons harmoniosos, mantêm
os demônios do mal a distância, “pois o som do bronze puro quebra o encantamento”, diz Tíbulo
(Elegias, I, VIII, 22); quanto aos outros, diz-se que o som dos sinos “será ouvido [pelo Senhor]
quando ele [o sacerdote] se dirigir à presença do Senhor e quando ele chegar, ele não morrerá”
(Êxodo, XXVIII, 35; Eclesiástico, XLV, 9). Assim, um som servia para afugentar os espíritos do
mal e o outro, o Espírito de Jeová. As tradições escandinavas afirmam que os Trole sempre
foram mantidos afastados das casas pelos sinos das igrejas. Uma tradição similar existe na Grã-
Bretanha, em relação às fadas.

[42] [Hippolytus, 141 e s.]

[43] Um daemon elemental, em quem todos os nativos da Ásia acreditam. [Termo mongólico
pronunciado südger.]

[44] Senhora, ou Madame, em moldávio.

[45] A hora, em Bucareste, corresponde exatamente à do país em que a cena ocorria.

[46] Cap. W. L. D. O’Grady: “Indian Sketches, etc.”, em Commercial Bulletin, 14 de abril de 1877.

[47] Nem a Rússia nem a Inglaterra conseguiram, em 1849, forçá-los a reconhecer e a respeitar
os turcos [como distintos] do território persa.

[48] Persépolis é a Istakhr persa, a nordeste de Shiraz; ficava numa planície agora chamada
Merdasht, na confluência dos antigos Medus e Araxes, hoje chamados Pulwâr e Bend-emir.

[49] Oedipus aegyptiacus, etc., vol. III (1654): Theatrum hieroglyphicum, p. 544.

[50] Presenciamos por duas vezes os ritos estranhos remanescentes da seita dos adoradores
do fogo conhecidos como Gheber, que se reuniam periodicamente em Baku no “campo do fogo”.
Essa cidade antiga e misteriosa se localiza perto do mar Cáspio. Pertence à Geórgia russa. A
cerca de vinte milhas a nordeste de Baku está o que restou de um templo gheber antigo, que
consiste de quatro colunas, de cujos orifícios vazios se projeta constantemente uma chama que
dá, dessa maneira, o nome do Templo do Fogo Perpétuo. Toda a região está coberta por lagos
e fontes de nafta. Os peregrinos se reúnem aí, vindos de regiões distantes da Ásia, e um
sacerdócio, que adora o princípio do fogo, é mantido por algumas tribos, disseminadas por todo
o país.

[51] Badkube — literalmente “remoinho de ventos”.

[52] Codex Justinianus, Liber IX, Titulus XVIII, “De maleficis, etc.”, Statutum 4.

[53] [J. - G. Basset, Plaidoyez et Arrests de la Cour de Parlement, etc., Paris, 1645, vol. I, livro
V, tit. 19, cap. 6, p. 108.]

[54] Ver também Magic and Mesmerism, um romance reeditado pela Harpers, trinta anos atrás.
[Londres, 1843.]

[55] [Khordah-Avesta, yasht XXII, § 10 e s.]

[56] [202 E - 203 A.]

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