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19465-Texto Do Artigo-80000-1-10-20190214

O artigo analisa a representação de imigrantes em Lisboa no documentário 'Lisboetas' e a ficção de António Lobo Antunes, explorando as tensões sociopolíticas do século XX em Portugal. Através de uma leitura crítica, o autor discute a marginalização dos imigrantes e a desilusão dos portugueses em relação à democracia e à política nacional. O texto propõe uma reflexão sobre as experiências de pertencimento e exclusão na sociedade contemporânea portuguesa.

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19465-Texto Do Artigo-80000-1-10-20190214

O artigo analisa a representação de imigrantes em Lisboa no documentário 'Lisboetas' e a ficção de António Lobo Antunes, explorando as tensões sociopolíticas do século XX em Portugal. Através de uma leitura crítica, o autor discute a marginalização dos imigrantes e a desilusão dos portugueses em relação à democracia e à política nacional. O texto propõe uma reflexão sobre as experiências de pertencimento e exclusão na sociedade contemporânea portuguesa.

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Lados de um mundo descoincidente

Alexandre Montaury Baptista Coutinho*

RESUMO:
Este artigo busca confrontar textos de António Lobo Antunes e as imagens do
documentário Lisboetas, de Sérgio Tréfaut, com o objetivo de examiná-los em
tensão com as circunstâncias sociopolíticas em que surgiram. Do ponto de vista
teórico, parte-se da premissa de que a experiência do contemporâneo implica
a presença de zonas de incerteza que podem ser identificadas e analisadas
nos procedimentos narrativos dos autores em questão e terminam por operar
conhecimento acerca de uma ambiência específica que marcou o século XX
português.

Palavras-chave: Narrativa portuguesa. Século XX e cultura contemporânea.


Cotidiano e história.

No centro do velho império colonial português, um jovem imigrante paquistanês percorre


as ruas do Bairro Alto e da Baixa Lisboeta tentando vender flores a casais de turistas. No final do
percurso, noite funda, o jovem se queixa num português confuso. Reclama de dificuldades concretas
a um grupo de pescadores pobres, à beira do rio Tejo. Naquele cenário de grandiosa memória, já
não se veem os valorosos navegadores que abriram os caminhos marítimos para as Índias. Veem-se
homens cansados de esperar o peixe difícil da própria subsistência, todos marginalizados numa terra
que, por muitos, foi imaginada como império.
A cena acima foi pinçada do documentário Lisboetas (2004), dirigido por Sérgio Tréfaut, que,
através de planos-sequências, narra as experiências múltiplas a que estão sujeitos os trabalhadores
imigrantes em Lisboa. São brasileiros, ucranianos, chineses, indianos e romenos que se encontram e
se desencontram à procura da oportunidade imaginada em forma de euros, o que também se converte
numa busca por subempregos provisórios ou por um contrato que possa viabilizar o prolongamento
de uma permanência em Portugal.
Neste contexto, de certa defasagem em relação às condições empíricas do cotidiano lisboeta,
seria possível indagar que espaços estão reservados para esses indivíduos imigrantes; mas, ainda
mais do que isto, é possível questionar qual é precisamente o lugar dos lisboetas portugueses nesse
contexto, assim como o papel desempenhado por eles no âmbito da política nacional. O objetivo deste
trabalho é aproximar as imagens dos trabalhadores imigrantes em Lisboa, tal como aparecem no
documentário Lisboetas, a algumas figurações dos lisboetas portugueses tal como surgiram na ficção
do século XX. A ideia central é a de que, por um lado, os imigrantes em Lisboa ocupam um espaço
periférico na sociedade enquanto parte desses trabalhadores luta para manter a situação regular de sua
permanência em Portugal. Por outro lado, o artigo focaliza a precariedade com que os portugueses
foram representados no que toca a sua participação no campo de forças da política nacional.
Começo por dizer que as imagens do filme contrastam com o que Luiz de Camões escreveu, no
século XVI, pela voz de Vasco da Gama: “Os portugueses somos do Ocidente / Imos buscando as terras
do Oriente”. (Canto I, 50). Na segunda década do século XXI, estes versos parecem invertidos, afinal,
se, num primeiro momento, os portugueses expandiram-se pelo mundo, em momento posterior, o
mundo refluiu para Lisboa. Desde o processo de retorno em massa deflagrado pelas descolonizações
e pelo abandono repentino das posições portuguesas na África, a sociedade portuguesa teve que se
adaptar a um convívio imediato com a experiência diaspórica, inflando as periferias das cidades
grandes e os cinturões de pobreza que se ampliam nesses espaços. Em 1988, Lobo Antunes publicou
o romance As naus, onde narra o movimento de torna-viagem como uma caótica ocupação do
território português (ou daquele império recém-extinto) pelos retornados que aportavam em Lisboa
como escombros de um sonho de Império que nunca chegou a se sustentar. O romance permite
entrever a forma particular com que Lobo Antunes encena o movimento progressivo de pauperização
e periferização de Lisboa, no contexto pós-revolucionário, processo que pôs a nu a ficção-império
engendrada a partir de meados do século XIX.
Partindo da imagem que é a premissa e o ponto de partida deste texto, é possível propor uma
leitura inicial do documentário Lisboetas em tensão com questões associadas à experiência pós-
revolucionária portuguesa. Antes disto, porém, proponho expor alguns argumentos em torno do
processo que, principalmente no contexto pós 74/75, revelou dispositivos discursivos que deram forma
a mitos estruturantes da história de Portugal. Não se trata de propor aqui a reconstituição cronológica
dos ciclos da política portuguesa, mas de supor a existência de culturas estreitamente vinculadas
aos impasses implicados nas lutas políticas da modernidade e aos ajustes sociais postos em prática
para viabilizar o convívio tenso e a administração das diferenças. Essas culturas abrangem tanto os
imigrantes que vivem em Lisboa como os próprios portugueses, violentamente descomunitarizados,
atomizados e à margem dos rumos que a política nacional assumiu e assume nos últimos anos.
Esta é apenas uma das questões que se destacam na produção literária e cultural do século XX
português, que evidenciou, desde os anos 70, uma preocupação constante com a virada política e social
de 74, acentuando, sobretudo, o alijamento de uma importante parcela da sociedade portuguesa dos
núcleos de decisão política. Ao longo desse século e nos últimos quarenta anos, a literatura e a cultura
produzidas em Portugal puseram em questão e propuseram um rigoroso balanço dos legados políticos
da modernidade, tal como se configurou na segunda metade do século.
No campo da produção literária, a ficção de António Lobo Antunes oferece, em diversos
momentos, um balanço pessimista em relação ao processo de democratização portuguesa,
desqualificando muitas vezes as conquistas sociais da Revolução. Ao longo de sua obra, o escritor
evidencia com grande nitidez a separação que se verificou entre as direções políticas do país e a
produção da vida em sociedade. Esta clivagem é possivelmente um dos mais evidentes legados de uma
ditadura que durou por quase meio século e que gerou um afastamento radical entre a sociedade e os
processos políticos que a enformam.
Recorro ao romance Conhecimento do inferno (1980), para dar um exemplo preliminar de uma
visão crítica que parece recair sobre uma adesão, de certo modo, oportunista que a revolução do 25
de Abril ocasionou. De forma sarcástica e desiludida, o narrador médico-psiquiatra relata para a sua
filha, num desabafo imaginário, a covardia de sua classe profissional:

Depois do vinte e cinco de Abril, tornamo-nos todos democratas. Não nos


tornamos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos as guerras
coloniais, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar:
tornamo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos
enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução,
até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo
de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as
famílias, preocupámo-nos com os internados, protestámos contra a alimentação,
os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas,
Joana, por covardia [...] tínhamos pânico de que nos acusassem como os pides,
nos apontassem na rua, pusessem o nosso nome no jornal. E demorámos a

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entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-
nos como respeitam os abades nas aldeias, continuavam a ver em nós o único
auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados
nos sovacos jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra
socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana,
porque haviam abolido a guilhotina (LOBO ANTUNES, 2006, p. 103, 104).

Na terceira parte do romance Fado Alexandrino (1983), surgem críticas ainda mais contundentes
à Revolução de Abril. Na cena do reencontro da tropa que regressara da guerra colonial em Moçambique
em 1972, o capitão ouve as histórias dos regressos dos companheiros. Dos relatos apresentados, apenas
um dos que “narram” – um oficial de transmissões, ativista político desde antes da sua entrada na
tropa – recebeu com alegria a Revolução, ainda que a considerasse insuficiente por se tratar de:

um golpe pequeno-burguês controlado pelos revisionistas de Moscou que


infiltraram o exército com o canto da sereia da social-democracia e não de uma
sublevação popular conduzida pelos camponeses, pela classe operária, pelos
oprimidos em geral, a caminho de um socialismo absoluto (LOBO ANTUNES,
1983, p. 74).

Para os seus companheiros, o 25 de Abril de 1974 constituía um incômodo que destruiu hábitos
e rotinas, que gerou a perda de privilégios ou acontecimentos marginais. Os personagens parecem ter
em comum o desencanto radicado na incomunicabilidade da experiência vivida nas guerras coloniais
e na estranheza mútua entre esses homens e o seu país que, à margem da experiência da guerra, não
os reconhecia. Esse processo fez com que muitos portugueses retornados fossem absorvidos como
imigrantes subtraídos do reconhecimento nacional. A defasagem entre o projeto de virada histórica e
as condições cotidianas dos personagens e, mais que isso, a defasagem entre essa virada e os modos de
reorganização do poder são postas em questão pelo personagem Abílio, um soldado, que se dirige ao
único deles que acreditou na revolução:

Não houve revolução nenhuma, meu tenente, convença disso... à parte menos
dinheiro e mais desordem que diferença se nota de 74 para cá? [...] Desmanchar
tudo para construir do mesmo modo... isso é mudança, meu tenente? [...] quem
manda no país, oiça lá, não são por acaso os mesmos que mandavam dantes?
(LOBO ANTUNES, 1983, p. 423).

As interrogações pretendem convencer o tenente, mas não deixam de situar as perplexidades de


Abílio numa ideia utópica de revolução:

Eu cá julgava que a revolução era para as pessoas viverem melhor, espantou-se


o soldado, não sabia que o importante era ficar tudo na mesma, meu tenente.
(LOBO ANTUNES, 1983, p. 426).

A perplexidade do personagem se traduz ainda na lembrança da fala de um velho que, no dia


25 de Abril, comentava a queda do regime:

A mim nunca me chatearam, meu capitão, era-me igual, tanto me fazia esses
como outros, desde que houvesse trabalho e algum dinheiro ao fim do mês para
convidar a Odete a ir ao cinema ou à praia ou aos bailes do Clube Estefânia.
(LOBO ANTUNES, 1983, p. 424).

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Em sua leitura do romance, Graça Abreu define esta indiferença como uma “espécie de
imparcialidade, radicada na ignorância cultural e política [que] faz do acontecimento um espetáculo
admirável, mas cujo sentido não se apreende” (GRAÇA ABREU, 2008, p. 510). É precisamente
esta incapacidade de apreensão do alcance coletivo de uma revolução, aliada a rancores atávicos
de uma sociedade adestrada ao longo de quarenta e oito anos à lógica do pensamento único, que
alijou segmentos da sociedade portuguesa dos processos de decisão política, tornando os próprios
portugueses como espécies de imigrantes isolados em seu próprio país.
É neste sentido que a referência inicial ao filme Lisboetas funciona como um operador de leitura
de práticas culturais que, se, por um lado, oferecem algumas formas alternativas do “ser em comum”
ou de “ser juntos”1(NANCY, 2007), ao compreender os imigrantes das diásporas africanas, do leste
europeu, do médio e do extremo oriente, num amplo cinturão de comunidades da margem, por outro
lado, também exclui os portugueses das decisões acerca dos rumos da política nacional. Atualmente,
a questão se evidencia nitidamente no noticiário internacional, com as restrições impostas pelo Banco
Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional à política econômica portuguesa, que já não
é determinada pelo governo português.
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2006) afirma que, no contexto dos imperialismos do
século XIX e ao longo do século XX, Portugal não estava no centro dos movimentos europeus, como
não está hoje no contexto da Comunidade Europeia. Através de uma fantasia hiperidentitária pôde
“imaginar-se no centro”. Segundo o sociólogo, Portugal sempre “se imaginou simbolicamente como
Centro”, embora esta imaginação só se tornasse possível a partir da experiência da periferia, duplicidade
que pode ser examinada em função da construção simbólica da identidade portuguesa. Neste sentido,
o conceito de semiperiferia revela a posição ambivalente do país; subalternidade em relação à Europa
e protagonismo em relação às ex-colônias africanas, por exemplo. Para Margarida Calafate Ribeiro
(2004, p. 12), “a dimensão simbólica da política portuguesa que conduz à elaboração de um “império
como imaginação do centro”, encobriu uma “imagem portuguesa ligada à sua realidade vivencial de
periferia que imagina o centro”2.
Tendo sido largamente trabalhados na ficção do século XX, esses impasses tocam o sentido
de comunidade a partir de uma dupla figuração que é a origem de uma genealogia que se constituiu
como sequela ou como uma afecção no plano da cultura portuguesa, legada pelos processos políticos
que marcaram o período. Na próxima sessão, pretendo traçar parte dessa genealogia simbólica que
deu forma a uma sociedade com pouca aderência às linhas de força no plano da política nacional.

O mundo dos outros

Em 1968, Augusto Abelaira afirmou, em artigo de jornal, a presença de certo travo no coração
da cultura portuguesa; certa dificuldade que provoca um desnivelamento de fundo entre os lados de
um mundo descoincidente:

Como perante a nova sociedade tantas vezes nos perturbamos e não conseguimos
compreendê-la, assim também nos é difícil aceitar a arte que procura dar-lhe
expressão. No fim de contas, só poderemos aceder à nova literatura (à nova
música, à nova pintura) se de algum modo a nós próprios nos reformarmos, o
que não é fácil, sombras que ainda somos de velhos mundos (ABELAIRA, 1968,
p. 5).

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Essas “sombras que ainda somos de velhos mundos” tiveram de lidar, desde 1974, com mudanças
climáticas que também foram capturadas pelas mãos dos artistas capazes de senti-las na atmosfera
social portuguesa. Desta forma, como aproximar as figuras humanas presentes no documentário
Lisboetas aos personagens de António Lobo Antunes, por exemplo? Por um lado, o que há em
comum entre eles é, antes de tudo, a ausência de pertencimento a um dado corpo social e a marca
da exclusão e da lateralidade. Por outro lado, a diferença fundamental que os separa é o fato evidente
de uns serem imigrantes sujeitos à experiência múltipla do risco e os outros serem personagens de
ficção, lisboetas sujeitos à margem e à obscuridade do presente. Para Karl Erik Schollhammer (2009,
p. 10), “se o contemporâneo é o intempestivo, pode-se dizer que ser contemporâneo é ser capaz de se
orientar no escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com um presente
com o qual não é possível coincidir”. É precisamente esta descoincidência que norteia os argumentos
que trago a este texto.
Para Agnes Heller, mesmo que fundada num fazer singular, a vida cotidiana será da ordem
da alienação se a sua heterogeneidade não for pressuposto fundamental (HELLER, 2008, p. 32).
Nesse sentido, não parece possível visar a uma noção de comum como formação do mesmo, ou de
massa monolítica, coesa e homogênea, como projetaram os regimes colonialistas europeus do século
XX; como o português, por exemplo. Ao contrário, é necessário compreender o comum numa
constelação de singularidades, multidões multitudinárias com especificidades e diferenças afirmadas
e que, somadas na perspectiva comunitária, possam efetivar o reconhecimento de adversários comuns
e inventar um vocabulário de luta comum (bios), conduzida por homens comuns (NEGRI, 2000, p.
75). Só assim seria possível viver no nomadismo das formas e na alegria das diferenças.
António Lobo Antunes e Sérgio Tréfaut, cada um à sua maneira, pavimentam as suas narrativas
com imagens que são extrações do presente, mediadas por redes de significados e de afetos que
tocam paisagens humanas específicas, traçando panoramas do cotidiano que vêm ao encontro do
que aqui se entende como tal: instrução das potências de vida, grelha transversal e inteligível da
cultura que implica valores, trocas e pactos provisórios, registrados em pequenos gestos e passagens
minimais. O que ocorre é que há uma inquietante semelhança entre a representação do lisboeta na
obra de Lobo Antunes e os novos lisboetas de Tréfaut: ambos parecem vagar pelo espaço da cidade,
desprovidos de um sentido de pertencimento e, mais do que isto, parecem radicados na periferia dos
acontecimentos, isolados e marginalizados.
Vale acrescentar que o documentário Lisboetas é parte de um conjunto de filmes que
tematizam a questão da imigração em Lisboa e da progressiva marginalização a que estão sujeitos
os indivíduos que decidem se arriscar numa cidade da periferia da Europa. A decepção com as
reais condições econômicas portuguesas e com a circunstância específica da imigração é uma
marca recorrente nos discursos dos jovens focalizados no documentário. Aportados em Lisboa
com a expectativa de rendimentos em euros, verificam que o país não oferece as oportunidades
inicialmente imaginadas.
Se, por um lado, Lisboetas é um documento acerca dos modos de produção da vida imigrante em
Portugal, por outro lado, o filme parece remeter também para o papel coadjuvante que os portugueses
desempenham na cena política nacional. Para recuperar uma possível genealogia desse processo de
alijamento social e de constituição de um lugar lateral para os portugueses, recorro ainda a dois textos
fundamentais: O mundo dos outros: histórias e vagabundagens (1950), de José Gomes Ferreira, e Bolor
(1968), de Augusto Abelaira.
Neles, a identificação de traços instalados no coração da cultura, acentuada por uma nítida
demarcação dos seus contemporâneos, aponta para espaços sombrios de uma mentalidade passivamente

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cúmplice de um regime brutal que sujeitou os portugueses à violência de Estado, ao mesmo tempo em
que pregava, em campanhas oficiais, o valor positivo da humildade e da obediência à ordem.
Em O mundo dos outros: histórias e vagabundagens, o narrador do conto “Reportagem do medo”
parte em direção “às tragédias e as farsas dessa multidão diária que cobre de carne humana e de
tumulto os rossios, as janelas, as igrejas, os eléctricos, os cafés e as tabernas”. Neste conto, o narrador,
identificado como “espectador das ruas, espectador sui generis aliás, pois não me limito a assistir à
vida do camarote do meu segundo andar, mas a saltar, de vez em quando, a pés juntos, para o palco
e apresentar também algumas rábulas” (FERREIRA, 2000, p. 161), nas suas digressões indignadas
aponta para o comportamento resignado dos seus semelhantes e, num gesto de ambiguidade, sente
culpa por ter agido como eles, numa farsa coletiva:

resvalei até este cômodo estado de admitir sem indignação todas as mesquinhas
infâmias do dia-a-dia que, em tempos anteriores, segundo garantem os poucos
cavaleiros andantes sobreviventes, provocavam, por via de regra, embates, socos
e mãos de polícia a apartar. Hoje não. Ainda esta manhã, vi um brutamontes
com olheiras de tanguista e ombros de moço de recados, atirar um encontrão
a uma velhota para lhe roubar o lugar no eléctrico, e ninguém soltou um pio.
A pobre senhora, meio tonta, alheada do que se passava em redor, escancarou
os olhos numa fixidez de assombro diante do burburinho do mundo. Pois da
plataforma apinhada de homens válidos como eu, não saiu nenhum protesto.[...]
Mas com grande espanto meu – cheio de comícios por dentro e impossibilidades
por fora – prossegui friamente o meu caminho, a fumar um cigarro abstracto,
com a voz de Dom Quixote entalada na garganta (FERREIRA, 2000, p. 162).

Na sequência do mesmo conto, o narrador prossegue:

Vi, claramente visto, um rapaz com cara de estupidez inchada pregar-lhe um


pontapé nas abas – e não tirei a mão dos bolsos. Não protestei. E tu também
não. Nem tu que és sócio da Liga dos Direitos do Homem. Nem mesmo tu,
da Sociedade Protetora dos Animais. Ninguém protestou. Sorrimos todos,
pingámos todos, sofremos todos teoricamente, e passamos a diante, curvos
de vergonha da nossa raça de dons-quixotes covardes e sem emenda [...] Subi
lentamente a Avenida e parei na ponte dum dos lagos, a olhar para os peixes.
Em baixo, na água, a minha imagem... Desfi-la com um cuspo. Há momentos
em que os homens não têm direito às suas imagens! (FERREIRA, 2000, p. 166)

Não é possível catalogar exaustivamente todas as passagens dos contos de O mundo dos outros,
de José Gomes Ferreira, em que o narrador se demarca de certa ética da desistência, ou virtude da
descrença que pareciam estar inoculadas no cotidiano lisboeta. O meu argumento é o de que as
“zonas obscuras” do contemporâneo, em meados do século XX, prendiam-se a esta passividade, a
este alheamento, tópicos que progressivamente acentuam a acidez empregada na narração dos contos.
No obscuro século XX português, a obediência, o amesquinhamento, o respeito integral à ordem
violenta do Estado legitimaram precisamente uma visão de mundo que imobilizava a sociedade,
descomunitarizando-a e criando uma descoincidência entre política e sociedade, processo que atendia
aos interesses do regime. A indignação do narrador do conto “Um, dois, um dois” culmina no canto
final, com que Gomes Ferreira conclui o seu conto e o seu livro:

Dormia tudo em torno de mim: homens, mulheres, crianças, burros, carroças,


eléctricos, carecas, cabeludos, Teatro Nacional, tabuletas, pedras, estátuas e até o

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céu azul estendido como uma mulher de preguiça. Dormia tudo, sombriamente,
soturnamente, a andar – um, dois, um dois...– como eu naquela famosa tarde
de andróide hipnotizado. Dormia tudo, minha gente. Vejam: lá vão! Uns a
sonhar que estão acordados. Outros, que vivem. Alguns, que falam. Muitos,
que amam. Aqueles, que trabalham. Estes, que sofrem. Outros, que gritam. E
que protestam. E que berram. E que lutam. Mas não. Tudo mentira. Dormem
profundamente com o corpo todo, com a alma toda, nos tremendais dos cafés
e nos cemitérios dos mortos-vivos das ruas. Parece impossível mas dormem,
embora o sol já nascesse, há muito tempo, no mundo. Vamos, meus senhores,
acordem. São horas. (Ah! Que vontade de lhes dar beliscões!) Acordem. Ou,
pelo menos, voltem-se para o outro lado! (FERREIRA, 2000, p. 205)

A conclamação revolucionária do narrador imprime-se nos corpos dos indivíduos ou, mais
precisamente, nas suas sombras. A nebulosa forma de um adversário sem corpo, configurado agora
como certo modo de estar no mundo, torna-se impalpável, abstrata, movente, mera mentalidade.
Cresce numa aliança tácita com o inimigo mais tradicional, já identificado e já reconhecido como
regime de Estado. Agora, mais do que as práticas do já conhecido salazarismo, parece vir à tona
a incômoda sensação de que o conservadorismo e a capacidade de sofrimento, a obediência e a
subserviência à ordem estabelecida, valores construídos também ao longo de séculos de tradição
religiosa, multiplicam a resignação como virtude e a descrença como método.
Quase duas décadas depois, em 1968, surge o romance Bolor, de Augusto Abelaira, arquitetado
em forma de diário íntimo, numa estratégia narrativa que privilegia o embaralhamento de três vozes
principais. A tessitura é labiríntica e caleidoscópica. Estrutura-se a partir de circunstâncias cotidianas
mediadas pela escrita e, sobretudo, por uma constante reflexão acerca dos processos da escrita:

Que queres que escreva? Que não faço o que devia, não luto por aquilo em
que acredito, que assim é vergonhoso acreditar e dizer que acredito? Para mais
aquilo em que acreditamos está em crise de aburguesamento, não é? Argumento
precioso para não fazermos nada... E nós a esfregarmos as mãos com a crise,
porque ela nos põe entre parêntesis, nos dispensa de fazer seja o que for, nos
obriga a aguardar.... Viva a crise! (ABELAIRA, 1978, p. 84).

Nota-se, portanto, também em Abelaira, o sentido do distanciamento, de descomunitarização,


de autoexclusão e de uma razão indolente, que engendra dispositivos mentais que apenas legitimam
a imobilidade:

Descobriste, ao escrever, que és um político. Não é bem. Descobri a razão por


que a minha vida está vazia.
(ABELAIRA, 1978, p. 85).

Há em mim uma certa energia política [...] E que sucede? Não voto, não
posso escrever esses artigos... Se eu fosse verdadeiramente um político ou um
revolucionário a sério ainda poderia tentar essa influência de outra maneira. Mas
não. Efetivamente não sou um político, percebes? (ABELAIRA, 1968, p. 86).

Sinto-me frustrado [...] o mundo faz-se sem mim, sem o meu voto, nem sequer
contra o meu voto. Cortado da vida social, se por vida social entendemos a
construção de uma sociedade nova. Isso destrói-me, torna-me céptico, céptico
até em relação às coisas em que acredito, pessimista.
(ABELAIRA, 1978, p. 86).

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E essa solidão não se vence a escrever diários ou livros, ou a pintar quadros,
compreendes? [...] – Bruscamente: – Não, não escrevo um diário íntimo.
Escreves tu (ABELAIRA, 1978, p. 87).

Nos limites da incomunicabilidade, os personagens do romance se organizam como figuras


teóricas, especulativas, indecisas e, neste sentido, obscuras. As suas vozes embaralhadas acomodam-
se no mal-estar de uma elite cultural que tensiona a experiência da impossibilidade e se endereça a
um mundo que não toca os personagens. Nesse processo, privatizam radicalmente as suas energias
criativas, circunscrevendo-as num diário, colecionando-as como objeto falhado.
A articulação minuciosa de pequenas histórias que determinam os gestos incertos e débeis dos
seus personagens funciona como base de uma antologia de acontecimentos menores, desprovidos
de uma relevância evidente, mas que, em contrapartida, apontam para conjuntos de atos e práticas
simbólicas que particularizam a ambiência do contemporâneo. A franca inapetência pelos processos
democráticos de construção de um comum pautado pela heterogeneidade e a atomização dos
indivíduos contemporâneos parecem encontrar campo fértil na irracionalidade do mercado, que
oferece precários sentidos para a vida:

Somos felizes. Acabámos de pagar a casa em Outubro, fechámos a marquise,


substituímos a alcatifa por tacos, nenhum de nós foi despedido, as prestações do
Opel estão no fim. Somos felizes: preferimos a mesma novela, nunca discutimos
por causa do comando, quando compras a «TV Guia» sublinhas a encarnado os
programas que me interessam, lembras-te sempre da hora daquela série policial
que eu gosto tanto, com o preto cheio de anéis a dar cabo dos Italianos da Mafia.
[...]
Somos felizes. A prova de que somos felizes é que comprámos o cão no
mês passado e foi por causa do cão que tirámos a alcatifa, que as unhas do
animalzinho rasparam de tal forma que já se notava o cimento do construtor por
baixo [...] (LOBO ANTUNES, 1998, p. 153).

Esses precários sentidos, revelados pelo narrador da crônica “A propósito de ti” de António
Lobo Antunes, demonstram uma enganosa conciliação do indivíduo com o seu tempo, expressa na
adesão com que celebra os seus dispositivos de entretenimento egoísta. Nesse sentido, talvez Lobo
Antunes ensaiasse uma resposta preliminar às questões colocadas por Agamben demarcando-se das
armadilhas que dão sentido ao presente e garantem objetividade no convívio com a realidade empírica.
É possível afirmar que a literatura portuguesa do século XX evidenciou a individualidade como
valor, demonstrando, ao mesmo tempo, a formação de uma cultura descomunitarizada e, até certo
ponto, desenraizada. Em sentido diverso, o documentário Lisboetas, ao retratar as condições dos
imigrantes em Lisboa, aponta curiosamente para um processo de não-pertecimentonão pertencimento
e de solidão cotidiana aliado à periferização e à luta imediata pela sobrevivência e pela legalização
em Portugal. Curioso é que esses grupos se encontram à distância de uma organização sistemática,
sem usufruir de um pleno direito à cidade. Todos parecem ser imigrantes: uns, por terem adotado a
imigração como solução para as necessidades mais urgentes da vida; outros, porque se autoexcluíram
da cena política nacional, retirando-se também do exercício cotidiano da cidadania. Estes porque se
habituaram a estar à margem dos acontecimentos ao longo do século marcado pelo regime de Salazar;
aqueles porque aceitaram sobreviver em meio à exploração do trabalho informal e precário, cedendo
também à complexa burocracia de que dependem para permanecer em Lisboa.

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Sides of a discoincident world

ABSTRACT:
This article seeks to confront texts of António Lobo Antunes and the images of
Lisboetas, documentary of Sergio Tréfaut, in order to examine them in tension
with the socio-political circumstances in which arose. From the theoretical
point of view, we start from the premise that the experience of the contemporary
implies the presence of areas of uncertainty that can be identified and analyzed
inside the narrative procedures of the authors in question and that operate
knowledge of a specific ambience that marked the Portuguese XX century.

Keywords: Narrative Portuguese. Twentieth century and contemporary


culture. Daily life and history.

Notas explicativas
*
Professor Adjunto 2 da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / CNPq.
1
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2
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Recebido em: 15 de outubro de 2013


Aprovado em: 29 de janeiro de 2014

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