Habitus e ação social: articulações entre Pierre Bourdieu e Max Weber
A sociologia, enquanto campo de saber voltado à análise crítica da vida em
sociedade, produziu diversas ferramentas teóricas para compreender como os indivíduos
agem, pensam e se relacionam dentro de determinadas estruturas sociais. Dentre essas
ferramentas, destacam-se o conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu, e a teoria
da ação social, desenvolvida por Max Weber. Embora oriundos de tradições intelectuais
diferentes, ambos os autores dedicaram especial atenção à relação entre indivíduo e
estrutura, buscando superar o dualismo entre objetivismo e subjetivismo. Neste ensaio,
propõe-se uma aproximação entre as ideias centrais desses dois autores, tendo como foco
o entrelaçamento entre habitus e ação social, de modo a compreender como as disposições
incorporadas moldam as práticas sociais e como estas se inscrevem em formas de
dominação e racionalização da vida social.
O conceito de habitus, em Bourdieu, refere-se a um sistema de disposições
duráveis e transponíveis, socialmente constituídas, que orientam percepções,
pensamentos e ações dos indivíduos. Trata-se de um mecanismo gerador de práticas, que
funciona de maneira incorporada, moldando gostos, valores, escolhas e estratégias de
vida. O habitus não é uma consciência reflexiva, mas um conjunto de esquemas práticos,
construídos historicamente a partir da posição ocupada pelos sujeitos nos diferentes
campos sociais. Ele permite compreender como as estruturas sociais se tornam estruturas
mentais e corporais, reproduzindo-se de forma aparentemente espontânea. Assim, o
habitus é o elo entre a estrutura objetiva e a ação individual, uma mediação que internaliza
a história e a transforma em natureza.
Por sua vez, Max Weber se propõe a compreender a ação social por meio de seu
sentido atribuído pelos agentes. Para Weber, a sociologia deve buscar a compreensão
interpretativa da ação orientada ao outro. Ele classifica as ações sociais em quatro tipos
ideais: ação racional com relação a fins (zweckrational), ação racional com relação a
valores (wertrational), ação tradicional e ação afetiva. Essas categorias permitem
compreender os diferentes modos pelos quais os indivíduos orientam sua conduta,
levando em conta tanto os valores subjetivos quanto os condicionamentos históricos e
culturais. Embora Weber reconheça a importância das estruturas, sua ênfase está na
capacidade de ação consciente e significativa dos sujeitos, o que o aproxima de uma
abordagem compreensiva.
A aproximação entre habitus e ação social exige, portanto, um olhar cuidadoso.
Em um primeiro momento, pode-se notar que Bourdieu parte de uma crítica à dicotomia
entre estrutura e agência, propondo o habitus como categoria que ultrapassa esse
binarismo. Diferentemente de Weber, cuja teoria ainda preserva uma separação analítica
entre sujeito e estrutura, Bourdieu vê o social como incorporado, vivido e naturalizado.
No entanto, ambos os autores partem da premissa de que as ações humanas têm um
fundamento social e histórico, e que sua compreensão exige uma análise contextualizada
dos sentidos e das práticas.
Ao considerar o habitus como princípio de geração das práticas, Bourdieu se
aproxima da proposta compreensiva de Weber, ao reconhecer que as ações dos sujeitos
não são meramente reflexos das estruturas, mas envolvem esquemas de percepção e
avaliação construídos socialmente. Ainda que não se trate de uma racionalidade
consciente, como nos tipos ideais weberianos, o habitus produz condutas coerentes com
a posição ocupada no espaço social. Nesse sentido, a racionalidade incorporada do
habitus pode ser lida como uma forma prática de orientação da ação, que dialoga com a
racionalidade tradicional ou mesmo com uma racionalidade de valores, tal como definida
por Weber.
Além disso, a teoria dos campos em Bourdieu pode ser pensada em paralelo com
a concepção de dominação legítima em Weber. Para Weber, a dominação se exerce
quando há aceitação da autoridade por parte dos dominados, podendo assumir formas
tradicionais, racionais-legais ou carismáticas. Em Bourdieu, a dominação simbólica opera
por meio da imposição legítima de significados e classificações, o que só é possível
porque os dominados compartilham os mesmos esquemas de percepção que os
dominadores — justamente por terem o habitus estruturado pelas mesmas condições
sociais. Assim, ambos autores convergem na percepção de que a dominação só se sustenta
quando há adesão, seja por fé, tradição ou disposição incorporada.
Essa adesão subjetiva às estruturas de dominação é um ponto crucial de diálogo.
Enquanto Weber destaca a crença na legitimidade como elemento central da dominação,
Bourdieu mostra como essa crença é o resultado de uma história social que foi
internalizada pelos sujeitos. O habitus, portanto, torna os agentes cúmplices involuntários
da dominação simbólica, reproduzindo práticas e visões de mundo que reforçam a ordem
existente. A escola, por exemplo, é vista por Bourdieu como espaço central na reprodução
da dominação: ela universaliza padrões culturais específicos — como a linguagem
formal, os gostos estéticos e os modos de expressão burgueses — e os transforma em
critério de mérito. Essa imposição simbólica funciona porque os sujeitos internalizam o
habitus escolar como legítimo, o que se relaciona com o conceito weberiano de
dominação racional-legal, baseada em normas impessoais e técnicas, mas que exigem
aceitação subjetiva.
Outro ponto de articulação entre os autores se dá na compreensão da modernidade.
Weber, em suas análises sobre a racionalização da vida social, vê o mundo moderno como
progressivamente dominado pela lógica instrumental, burocrática e formal, em que a
racionalidade com relação a fins ganha protagonismo. Esse processo de desencantamento
do mundo afeta todas as esferas da vida social, impondo uma organização fria e calculista
às relações humanas. Bourdieu, embora não adote essa terminologia, analisa como os
campos sociais — como o político, o educacional e o artístico — passam por processos
de autonomização e profissionalização, em que o capital simbólico se torna uma forma
específica de poder, sujeita a regras próprias. A luta por legitimidade em cada campo não
se dá de maneira neutra, mas segundo estratégias moldadas por um habitus que se ajusta
às exigências específicas daquele espaço. Em ambos os casos, observa-se um movimento
de racionalização, seja pela formalização das instituições, seja pela codificação implícita
das práticas sociais.
Em suma, o conceito de habitus, embora particular à obra de Bourdieu, encontra
ressonâncias importantes na sociologia compreensiva de Max Weber. Ambos os autores
reconhecem que a ação social é atravessada por condicionantes históricos e estruturais,
mas que não pode ser reduzida a esses fatores. O sujeito age de maneira situada, orientado
por disposições incorporadas ou por valores subjetivos, mas sempre em relação com o
mundo social. A articulação entre habitus e ação social permite, assim, uma compreensão
mais densa e complexa da vida em sociedade, superando as simplificações dicotômicas
entre liberdade e determinação, indivíduo e estrutura. Trata-se, enfim, de uma sociologia
que reconhece a historicidade do social, a força da dominação e a agência situada dos
sujeitos, sem cair nem no determinismo estrutural, nem no voluntarismo idealista.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
Brasília: UnB, 1999.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. São Paulo: Cultrix, 2004.