A Questão Prisional Entre Educação, Reintegração
A Questão Prisional Entre Educação, Reintegração
Sergio Grossi
Università di Padova (Italia) - Universidade Federal Fluminense
[email protected]
https://orcid.org/0000-0003-3737-4869
RESUMO
O presente trabalho problematiza as políticas criminais, abordando um modelo alternativo
de educação pela reintegração social desenvolvido no Brasil, que declara um baixo índice
de reincidência e apresenta um discurso no qual a segurança da sociedade passa pela
recuperação das pessoas privadas de liberdade por meio de uma “pedagogia da presença”.
Esta pesquisa investiga a concepção pedagógica desse modelo, evidenciando os avanços e
as continuidades em relação aos presídios. Trata-se de uma pesquisa etnográfica e
documental voltada para compreender o funcionamento e a autodescrição do modelo.
Nesse sentido, fez-se uso também de entrevistas semiestruturadas para analisar como o
modelo é desenvolvido na prática nas unidades. Pelo que se pôde depreender, observa-se
que os internos estudam e trabalham, em um contexto esteticamente agradável e
aparentemente aberto. Neste artigo, vamos refletir sobre as potencialidades e os problemas
desse modelo, posicionando-o no debate das perspectivas abolicionistas sobre a prisão.
Palavras-chave: Educação na prisão. Recuperação. Ressocialização. Reintegração.
Alternativas à prisão.
ABSTRACT
This paper problematizes criminal policies, addressing an alternative model of education for
social reintegration developed in Brazil, which reports a low rate of recidivism, obtained
through a "pedagogy of presence". This study investigates the pedagogical conception of this
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RESUMEN
El presente trabajo problematiza las políticas criminales, abordando un modelo alternativo
de educación para la reinserción social desarrollada en Brasil, que declara una baja tasa de
reincidencia, obtenida por medio de la "pedagogía de la presencia". Esta investigación
inquiere la concepción pedagógica de este modelo, evidenciando los avances y continuidades
en relación con las prisiones. Se trata de una investigación etnográfica y documental destinada
a comprender el funcionamiento y la autodescripción del modelo. En este sentido, también se
utilizaron entrevistas semiestructuradas para analizar cómo se desarrolla el modelo en la
práctica dentro de las unidades. Se ha podido observar que los reclusos estudian y trabajan en
un contexto estéticamente agradable y aparentemente abierto. En este artículo
reflexionaremos sobre el potencial y los problemas de este modelo, posicionándolo en el debate
sobre las perspectivas abolicionistas de la cárcel.
Palabras clave: Educación en la prisión. Recuperación. Resocialización. Reintegración.
Alternativas a la prisión.
Introdução
Um modelo interessante que quer educar os privados de liberdade — em expansão
no contexto mundial — é o da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).
Focando-se na recuperação dos presos, essa experiência é indicada, atualmente, como
alternativa e inovadora. As APACs, descritas como “‘o fato mais importante que está
acontecendo no mundo hoje, em matéria prisional [...]’” (FRATERNIDADE BRASILEIRA DE
ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS, 2016, n. p.), pela Prison Fellowship International (PFI),
órgão consultivo para assuntos penitenciários da Organização das Nações Unidas (ONU),
estão espalhadas em mais de 20 países: Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica,
Estados Unidos, México, Peru, Uruguai, Alemanha, Bielorrússia, Bulgária, Itália, Hungria,
Coreia do Sul, Holanda e outros (RESTÁN, 2017).
Assiste-se a um interesse crescente por esse modelo de privação de liberdade, que
apresenta índices de reincidência inferiores ao sistema comum, variando entre 8% e 15%,
contra o propagado índice nacional de 70% (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO
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PÚBLICO, 2013)1, além do baixo custo orçamentário do Estado e raríssimos casos de fugas,
indisciplina, rebelião e episódios de violência, contrários aos evidenciados no sistema
prisional tradicional brasileiro.
A APAC, que promove esse modelo, “é uma entidade jurídica de direito privado, sem
fins lucrativos, que busca a recuperação do preso, a proteção da sociedade, o alívio das
vítimas e a promoção da justiça restaurativa” (RESTÁN, 2017, p. 9, tradução nossa), criada
em 1972, em São José dos Campos (São Paulo), sob a liderança do advogado Mario Ottoboni.
Segundo o relatório da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados -
FBAC (2019) sobre as APACs, o número de recuperandos que passaram pela associação
desde 1972 é de 48.501, constituindo-se, então, como uma experiência já bem consolidada.
Existem 129 APACs atualmente no Brasil, 78 em implantação e 51 em funcionamento,
administrando Centros de Reintegração Social (CRS) sem polícia, 43 CRS são masculinos e
oito, femininos, em dez estados brasileiros. De acordo com dados reunidos em 1 de agosto
de 2019, é possível encontrar, nessas APACs, 3.578 pessoas, 3.295 homens e 283 mulheres,
distribuídas nas 4.413 vagas disponíveis, com ocupação de 81,08%, contra a média de 187%
em Minas Gerais e de 197% no Brasil. Desse modo, as APACs querem gerir um sistema que
seja planejado de antemão para a educação e para a reintegração social. Assim, não pode
haver superlotação das unidades, para que não tenha seu projeto inviabilizado com taxas
de ocupação, como no sistema comum, no qual faltam vagas até para dormir. É importante
ressaltar que, no regime fechado, estão 2.078 pessoas, no semiaberto, 1275 e 160 no aberto.
Ao contrário do modelo tradicional, os Centros de Reintegração Social (CRS) da
Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs) são descritos como um
contexto pacífico e esteticamente agradável, com um clima relaxado, não havendo indícios
de mortificação de pessoas nem o nível de raiva presente nos presídios. Os “recuperandos”2
usam suas próprias roupas e são chamados pelo nome, o que colabora para que se mantenha
sua a identidade, são considerados cidadãos cumprindo uma pena. Os espaços não estão
superlotados, são limpos e sem odores desagradáveis, com a arquitetura pensada para as
atividades de educação à reintegração.
Nos Centros de Reintegração Social (CRS) das APACs, segundo as autodescrições,
não estão presentes guardas armados, nem se faz uso de violência física. Isso se obtém por
meio de uma política de segurança fundada nas relações entre os operadores e os presos, o
1
No que tange à questão da reincidência no Brasil, há um problema relativo aos índices de mensuração da
reincidência nos presídios comuns, que vai se traduzir também em dificuldade de mensuração da
reincidência nas APACS e, em seguida, na comparação entre ambos.
2
Nome usado para se referirem às pessoas privadas de liberdade nas APACs.
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que se torna possível por meio do respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas,
conforme regras claras e conhecidas. A construção da confiança passa também pela
cogestão do prédio: os detentos possuem as chaves da prisão e cuidam da limpeza, da
organização, da disciplina e da segurança, em um “trabalho de cogestão com os responsáveis
das APACs, voluntários e pessoal administrativo” (RESTÁN 2017, p. 9, tradução nossa).
As APACs se descrevem como geridas por uma equipe que acredita na educação pela
reintegração social dos presos. São, na maioria, voluntários, formados para se relacionar e
solucionar conflitos sem armas. Todos são considerados educadores por meio de uma
“pedagogia da presença”, ou seja, baseada no exemplo e na vivência compartilhada.
Segundo os relatos, não há ociosidade. Nesse modelo, todos os presos saem da cela
às 7h e retornam às 22h. Os recuperandos trabalham, estudam e têm outras atividades.
Assim, a educação é fundamental na descrição do modelo: além de frequentarem cursos
supletivos e profissionais, os que estão no regime fechado praticam trabalhos
laborterápicos; no regime semiaberto, cuida-se da mão de obra especializada (oficinas
profissionalizantes instaladas dentro dos Centros de Reintegração); no regime aberto, o
trabalho tem como enfoque a inserção social, pois o recuperando trabalha fora dos muros
do Centro de Reintegração. A isso se associam distintas palestras chamadas de “valorização
humana”, que são propostas para promover o reencontro do recuperando consigo mesmo.
Também são importantes os aspectos da educação informal: a coexistência nas
unidades é formativa, utilizando-se diferentes canais abertos de comunicação com a
administração, que vão desde reuniões nos dormitórios a reuniões coletivas. A rotina diária
de convivência entre os presos, que não podem praticar nenhuma forma de violência,
também é descrita como geradora de consciência. Além disso, a educação não é oferecida
somente aos presos: deve formar os voluntários, os familiares e a própria sociedade para
acolher os recuperandos em sua volta ao convívio.
Diante dos desafios colocados pela prisão no mundo contemporâneo e dos perigos
de as reformas propostas tornarem o sistema de justiça penal mais legítimo, é fundamental
recuperar aqui algumas teses oriundas das teorias abolicionistas, a fim de discutir o modelo
APAC, para, enfim, debater como ele pode entrar nessa discussão. As teorias abolicionistas
foram abordadas adentro de uma pesquisa sobre o modelo, sobreo qual se incluiu uma
revisão da literatura acadêmica brasileira e italiana, uma investigação etnográfica que
exigiu cinco semanas de observação participante, com uso um diário de campo e entrevistas
abertas e semiestruturadas, com o objetivo de entender se este modelo proporcionou uma
nova forma de educação ou se representa apenas uma continuidade do modelo tradicional.
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Temos aqui, então, como guia, as sínteses de diferentes autores (DELISLE et al.,
2015; HULSMAN, 1997; MATHIESEN, 2008; NICOLAS; JUSTIN, 2015; RUGGIERO, 2010,
2012, 2015, 2016) que nos introduziram no debate contemporâneo sobre o abolicionismo,
para depois aprofundarmos alguns dos textos de autores-chave na discussão (CHRISTIE,
1982; DAVIS, 2003; MATHIESEN, 1974, 1996). Finalmente questionamos esses autores face
ao modelo das APACs.
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argumentos que exigem uma moderação das penas, indicando também seu custo
econômico, que atinge números importantes com o aumento do número de pessoas
privadas de liberdade. No entanto, essas propostas não consideram que o sistema
econômico é baseado no desperdício das elites, sendo, portanto, a austeridade imposta
apenas nos níveis mais baixos da escala social (RUGGIERO 2015).
Se, como visto anteriormente, o sistema penitenciário é usado como uma maneira
de submeter e punir os pobres que não aceitam as regras do mercado precário
contemporâneo (FOUCAULT, 1987; WACQUANT, 2011), vemos, que o aparente
"desperdício" do sistema penal, do ponto de vista das elites, é, na realidade, um ganho
enorme para elas protegerem e aprofundarem a distribuição desigual dos recursos
econômicos na sociedade.
Sendo assim, as propostas alternativas são necessárias no pensamento dos
abolicionistas: também nos deparamos com a proposta de "utopias concretas", que buscam,
em última análise, não uma justiça abstrata e absoluta, mas uma redução das "injustiças
remediáveis" e a tentativa de reduzir a quantidade de sofrimento no mundo, como nos
lembra Christie (1982). Uma das “alternativas”, para Angela Davis (2003), que deve ser
pensada como questão imediata hoje, é como impedir a expansão da população aprisionada
e, ao mesmo tempo, como trazer as pessoas privadas de liberdade de volta ao mundo "livre".
Os debates sobre a libertação da prisão devem ser o principal objetivo diante da crise
carcerária, o que deve ser feito com cuidado, devido à necessidade de que não sejam
marginalizados por causa da discussão sobre a reforma carcerária (DAVIS, 2003).
Sob essa ótica, é preciso uma descriminalização de distintos comportamentos e uma
redução do espaço ocupado pelo direito penal. Por exemplo, é muito importante que os
esforços sejam feitos para impedir a criminalização do uso de drogas, do trabalho sexual e,
em particular, dos migrantes, constituindo uma estratégia forte para reduzir o uso da prisão
(DAVIS, 2003).
No processo de redução da população apenada é fundamental também a diminuição
da duração das penas, que pode ser alcançada através de uma conscientização dos tribunais
ou de uma redução das penas máximas em um nível legal (MATHIESEN, 1996).
Efetivamente, de acordo com a visão abolicionista, uma reforma técnica simples do sistema
penal não é suficiente se os discursos punitivos espalhados pela sociedade não forem, ao
mesmo tempo, modificados. Como não há "crime", mas apenas uma criminalização de fatos
sociais que são confiscados pela justiça, é preciso elaborar uma nova visão e uma nova
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linguagem correlativa capaz de restituir a complexidade a eventos sociais, com seus atores,
sua história e seu contexto (HULSMAN, 1997).
A prisão realiza o trabalho ideológico de esconder os "indesejáveis", na maioria
pertencentes às comunidades mais marginalizadas, tirando a responsabilidade de nos
envolver nos problemas da nossa sociedade, em particular no que concerne ao racismo e ao
capitalismo global (DAVIS, 2003). Por isso, ainda que a televisão possa ser um obstáculo no
caminho para a abolição, os abolicionistas entendem que não podem ser desencorajados
por coisas que parecem óbvias e duradouras, por exemplo, uma opinião pública que exige
mais punição. Existem várias pesquisas empíricas (MATHIESEN, 2008) que mostram como
a opinião das pessoas se torna cada vez mais flexível quando as pessoas recebem
informações detalhadas sobre o caso em questão, até que elas se tornem relativamente não-
punitivas.
Nesse sentido, é necessário um trabalho de comunicação – "educacional" –, tanto na
mídia quanto no nível microfísico, nos locais de trabalho, no bairro e nas escolas. Devemos
procurar a possibilidade de uma reparação simbólica por meio da expressão da dor, a
restauração de relacionamentos através de entrevistas e reuniões privadas e públicas e
alocações generosas para tratamento das vítimas quando desejado (MATHIESEN, 1996).
Entre as propostas abolicionistas, estão a abertura de prisões à sociedade e o
estabelecimento de uma comunicação entre os internos e aqueles de fora da prisão,
subtraindo a invisibilidade dos privados de liberdade e construindo um diálogo permanente
(RUGGIERO 2015). São medidas educativas e relevantes, pois promovem a conscientização
da sociedade.
Parece-nos, ao final, que o resultado concreto a que as propostas abolicionistas nos
levam no mundo contemporâneo se aproxima do projeto da justiça restaurativa.
Conhecimento, diálogo e proximidade são cruciais no pensamento abolicionista, assim
como a colocação no centro do processo de justiça da vítima e sua centralidade na ação que
envolve processos de mediação ativa. Uma literatura crescente mostra como a reparação,
vendo-se quem cometeu uma infração como devedor em vez de monstro, traz vantagens
tanto para a justiça quanto para a democracia (DAVIS, 2003).
A partir desse enfoque, devemos nos afastar da visão que foca toda a atenção no
"criminoso" e deslocar a atenção para a vítima, como também sugeriu Ruggiero (2010). As
vítimas precisam ser assistidas, mas são realmente ignoradas e não são compensadas de um
ponto de vista simbólico, material ou social (MATHIESEN, 1996a). A modificação das
condições sociais precisa ser enfrentada: não é suficiente apenas falar sobre técnicas para
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reduzir o uso de prisão, sem abordar as condições sociais e econômicas que levam até
muitas crianças de comunidades carentes a serem “atendidas” pelo sistema de justiça
(DAVIS, 2003).
Isso porque, para abolir as prisões, é necessária uma redistribuição decente de
riqueza para reduzir a desigualdade que aumenta o sentimento de injustiça. Além disso, é
necessário que haja uma comunidade que possa apoiar a reintegração e a reabilitação
efetiva de pessoas que, tomadas por fúria ou desespero, cometeram atos ilegais (DAVIS,
2003). Viver em uma sociedade mais solidária, com melhor distribuição de salários,
moradia, educação, condições de trabalho e cultura pode prevenir a exclusão social que, por
sua vez, produz o ambiente propício ao crime (MATHIESEN, 1996b). Nesse sentido, as
escolas podem ser uma alternativa efetiva à prisão, eliminando-se as estruturas de violência
dentro das escolas que devem estimular a alegria de aprender, não expulsando os alunos
considerados “difíceis”, como sublinha Davis (2003).
Os serviços sociais devem ser financiados, tendo um papel preventivo, havendo uma
transferência contínua dos recursos recuperados do sistema prisional. No entanto, os
serviços sociais devem ser impedidos de usar recursos para aumentar as funções de
controle, como é tendência geral para os países inspirados pelos Estados Unidos, como nos
mostra Wacquant (2011). Lar, trabalho e tratamento devem ser as diretrizes para a
superação da prisão e para o retorno à sociedade das pessoas privadas de liberdade
(MATHIESEN, 1996b). Para tal, é preciso
Assim, é necessário enfatizar que há mais pessoas nas prisões que têm sérios
problemas mentais e emocionais do que nas instituições de cuidados mentais. Oferecer
serviços de assistência que levem para além das disparidades de classe é outro veículo para
a libertação da prisão (DAVIS, 2003). Devemos, portanto, abandonar a ideia de que existe
apenas um sistema alternativo que pode ocupar o espaço da prisão, precisamos pensar em
uma constelação de estratégias e instituições alternativas para remover a prisão física e
ideologicamente do espaço social (DAVIS, 2003).
Diante do que chamamos de “alternativas”, devemos nos perguntar se estamos
diante de uma sofisticação do poder ou diante de uma opção que permite diminuir o uso da
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A questão é enfocar que a luta contra o crime não passa por um aumento do número
de privados de liberdades – que atinge geralmente os mais pobres – e, sim, por uma nova
luta contra a pobreza e a insegurança social, fator que aumenta o conflito social e empurra
uma parte para o crime:
A despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a urgência […] é
lutar em todas as direções não contra os criminosos, mas contra a
pobreza e a desigualdade, isto é, contra a insegurança social que, em
todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de
predação que alimenta a violência (WACQUANT, 2011, p. 14).
Estamos frente a uma batalha política fundamental, que vê, no futuro, uma luta entre
um estado social, ainda bem longe de se realizar e sob ataque político, e um estado penal, já
em construção e que avança.
Considerações Finais
Frente ao exposto, podemos ver a APAC como uma proposta alternativa, uma
“utopia concreta” que contribui para uma redução das "injustiças remediáveis", reduzindo
a quantidade de sofrimento no mundo, como nos lembra Christie (1982). Vemos que, ao
final, conforme sugere Davis (2003), é preciso pensar em mais alternativas e na constelação
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É importante lembrar que os abolicionistas podem lutar por reformas pontuais que
melhorem as vidas dos privados de liberdade, as APACs podem ser vistas como uma dessas
reformas. Não obstante, podem representar um projeto “inacabado” no sentido de
Mathiesen (1974), e, assim, abrirem, através das reformas, novos espaços, que demandam
novas reflexões e novas lutas, conectando-se com a visão estratégica para reduzir o
encarceramento.
Vemos que as reformas podem ser aliadas da superação do sistema prisional, se
vistas como tática dentro de uma estratégia global. Nesse sentido, os pensamentos e as
ações não podem se apaziguar com resultados que tenham de ser vistos apenas como um
passo a mais no percurso de afastamento da utilização da prisão. Através da humanização,
as APACs podem contribuir para que a reintegração social e as lutas das camadas populares
por melhores condições de trabalho como problema unitário sejam vistas. Dessa forma,
reintegrar a questão criminal à questão social, como sugerido por Wacquant, pode ser um
incentivo para uma nova luta contra a pobreza e não contra os pobres, com consequente
aumento do estado social em contraposição ao estado penal.
Por isso, seria fundamental evitar o risco de não legitimar o sistema prisional
existente. Vemos que, nesse sentido, as APACs, conquanto critiquem o sistema prisional
brasileiro, mostrando que uma alternativa é possível e vantajosa para todos, não parecem
atacar a ideia da privação de liberdade per si, que se aplica principalmente aos mais pobres.
Dessa forma, tais instituições teriam que evitar construir novos prédios para não
contribuírem com a ampliação do sistema penal. Vemos, porém, que as APACs dependem
do poder judiciário que, nesse sentido, pode decidir utilizá-las além da sua capacidade, para
aumentar as vagas e aprisionar mais pessoas, inviabilizando, assim, os trabalhos de
educação voltados à reintegração social.
As APACs, entretanto, não desafiam o sistema penal como um todo, nem têm uma
crítica marcada ao encarceramento massivo no Brasil e à seleção penal. Nesse sentido, tal
como se apresentam hoje, não podem ser consideradas uma alternativa para as lutas
descriminalizantes (despenalização do aborto, do consumo e posse de drogas, da migração
clandestina etc.) — aquelas que demonstram que alguns acontecimentos simplesmente não
deveriam ser considerados crimes. Nesse sentido, não poderiam ser difundidas sem uma
educação crítica sobre o sistema penal, que inclua uma reflexão sobre as alternativas à
prisão e à seletividade penal desse sistema.
Dentro dessa proposta, que inclui o trabalho obrigatório, algo pode aproximar esse
modelo à prática do trabalho forçado, sendo que as unidades se colocam como possibilidade
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desigual. Uma redistribuição da riqueza precisa ser pautada e isso não pode ser uma função
cumprida por um modelo de execução penal alternativa.
As APACs contribuem para uma visão das reformas obtidas através de uma
autorização generosa das autoridades, a dos apaqueanos, em lugar de serem um resultado
das lutas dos privados de liberdades, tendo, dessa forma, uma postura elitista de pessoas
que defendem e pedem condições de vidas melhores para outras. Assim, contribui-se para
a privação de fala dos privados de liberdade, que são representados pelos “caridosos”
(RUGGIERO, 2015). Até onde pode chegar a caridade, frente às massas de pessoas
desempregadas?
Vemos, nesse sentido, que as APACs, quando falam de envolver a sociedade,
encontram-se pensando principalmente nas organizações cristãs, no método, sendo a ideia
muito mais de convencer os representantes do poder político e jurídico da bondade do
modelo, sem se constituir efetivamente como um movimento que tem poder autônomo de
construir outras realidades possíveis. Nesse sentido, não há uma integração com os
movimentos sociais que lutam por direitos, tampouco integram os egressos a esses últimos.
Dessa forma, torna-se difícil uma mudança social mais profunda, que possa ir além dos
egressos e das famílias, encontrando os problemas estruturais na educação pela
reintegração social, como a falta de trabalho (GROSSI, 2018, 2019).
Nem todos os conflitos podem ser solucionados simplesmente com pedidos de
reconhecimento dos direitos às autoridades constituídas, quando elas próprias não
reconhecem a violação dos direitos e, assim, fortalecem as resistências à proposta de
garantia dos direitos de todas as pessoas, inclusive das pessoas privadas de liberdade.
Referências
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Revisores de línguas e ABNT/APA: Vanusa Maria de Melo, Gabriela Petit, Robert Smith.
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