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Artigo Mestrado Epistemologia JoaoCaldas

O artigo analisa a relação entre sociedade e natureza no pensamento geográfico, abordando suas bases epistemológicas e evolução histórica. Estruturado em quatro eixos, discute desde as concepções de natureza na antiguidade até as perspectivas contemporâneas, enfatizando a necessidade de superar dicotomias que ainda permeiam o campo. O objetivo é promover uma compreensão crítica das dinâmicas entre sociedade e natureza, propondo abordagens mais integradas e dialéticas.

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João Pires
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Artigo Mestrado Epistemologia JoaoCaldas

O artigo analisa a relação entre sociedade e natureza no pensamento geográfico, abordando suas bases epistemológicas e evolução histórica. Estruturado em quatro eixos, discute desde as concepções de natureza na antiguidade até as perspectivas contemporâneas, enfatizando a necessidade de superar dicotomias que ainda permeiam o campo. O objetivo é promover uma compreensão crítica das dinâmicas entre sociedade e natureza, propondo abordagens mais integradas e dialéticas.

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DEBATE ACERCA DA RELAÇÃO SOCIEDADE - NATUREZA A

PARTIR DAS EPISTEMOLOGIAS DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

João Pires Albuquerque CALDAS1

Resumo
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a relação entre sociedade e natureza no pensamento
geográfico, analisando suas bases epistemológicas e sua evolução histórica. O artigo estrutura-se em
quatro eixos principais: (1) um resgate histórico das concepções de natureza no pensamento ocidental,
evidenciando sua evolução nas matrizes epistemológicas; (2) uma análise dos paradigmas da
geografia moderna, com foco nas contribuições de Forster e Kant; (3) uma discussão sobre a relação
sociedade-natureza no materialismo histórico e dialético, enfatizando sua manifestação no modelo
capitalista de produção; e (4) uma articulação entre autores para explorar as perspectivas
epistemológicas atuais sobre a relação sociedade-natureza na geografia. O objetivo é promover uma
compreensão mais profunda e crítica das dinâmicas entre sociedade e natureza, destacando a
necessidade de superar dicotomias e hierarquias que ainda permeiam o pensamento geográfico, em
direção a abordagens mais integradas e dialéticas.

Palavras-chave: Relação Sociedade-Natureza; Epistemologias, Geografia.

Abstract

This article proposes a critical reflection on the relationship between society and nature in geographic
thought, analyzing its epistemological foundations and historical evolution. The article is structured
around four main axes: (1) a historical overview of the conceptions of nature in Western thought,
highlighting their evolution within epistemological frameworks; (2) an analysis of the paradigms of
modern geography, focusing on the contributions of Forster and Kant; (3) a discussion on the
society-nature relationship within historical and dialectical materialism, emphasizing its manifestation
in the capitalist mode of production; and (4) an articulation of authors to explore current
epistemological perspectives on the society-nature relationship in geography. The aim is to promote a
deeper and more critical understanding of the dynamics between society and nature, emphasizing the
need to overcome dichotomies and hierarchies that still permeate geographic thought, moving toward
more integrated and dialectical approaches.

Keywords: Society-Nature Relationship; Epistemologies; Geography.

Introdução
​ A construção do pensamento geográfico contemporâneo está diretamente atrelado às
relações entre sociedade-natureza, sendo influenciado por diferentes concepções
teórico-epistemológicas do pensamento ocidental, principalmente as advindas do pensamento

1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio,
Bolsista CNPq.
grego-romano e judaico-cristã (PORTO-GONÇALVES, 2011). Por sua vez, esses
pensamentos influenciaram fortemente a construção do pensamento geográfico de Foster,
Kant, Humboldt, Ritter, Vidal de La Blache, Ratzel, Tricart dentre outros geógrafos
precursores (MOREIRA, 2011).
O debate sobre a relação sociedade-natureza se desenvolve desde a Antiguidade até o
período medieval, atravessando o Iluminismo e se estendendo à sociedade ocidental
contemporânea. Esse percurso é construído a partir das diferentes interpretações sobre o
termo “natureza” e sobre a “relação sociedade-natureza”, sendo, por vezes, abordado dentro
de um espaço ontológico, em busca de um entendimento fundamental do tema, até análises
teórico-metodológicas, que se articulam com direcionamentos mais práticos, os quais se
evidenciam hoje nas relações e contradições da produção capitalista do espaço.
(RODRIGUES et al, 2014).
Neste contexto introdutório, o presente artigo tem como objetivo promover uma
reflexão sobre a relação entre sociedade e natureza no pensamento geográfico, utilizando
como ferramenta analítica as epistemologias abordadas ao longo da disciplina “Teoria e
Epistemologia da Geografia”, ofertada no programa de pós-graduação em Geografia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e ministrada pelo professor Dr. Gustavo
Godinho em 2024. Além da bibliografia abordada em sala de aula, serão também utilizados
autores externos, com o objetivo de enriquecer a discussão proposta neste artigo.
Para isso, o artigo se desdobra em quatro tópicos fundamentais: O primeiro
consistindo em um resgate do pensamento ocidental sobre natureza ao longo do tempo,
buscando demonstrar a evolução das suas concepções dentro das matrizes epistemológicas
ocidentais; o segundo é relativo a abordagem dos paradigmas da geografia moderna acerca da
natureza, usando como base principal o pensamento de Forster e Kant debatido
principalmente no artigo de Ruy Moreira (2006); o terceiro tópico é relacionado relação entre
sociedade-natureza dentro do materialismo histórico e dialético e sua manifestação no
modelo capitalista de produção; e no quarto momento temos uma tentativa de articulação
entre autores sobre as perspectivas geográficas epistemológicas da relação
sociedade-natureza na contemporaneidade.

A evolução do pensamento sobre sociedade-natureza dentro das matrizes do


pensamento ocidental
​ Na perspectiva do pensamento ocidental hegemônico, a dicotomia entre sociedade e
natureza persiste ao longo dos séculos, separando essas duas categorias em esferas distintas e,
em grande parte, opostas. De forma resumida, a natureza é entendida como um conjunto de
elementos — incluindo plantas, animais e recursos não vivos, como água e solo — que o ser
humano é capaz de dominar, enquanto a sociedade é reduzida à capacidade humana de
organização. Nesse contexto, Porto-Gonçalves (2011) corrobora essa argumentação ao
apresentar a seguinte ideia:
“Podemos dizer que a separação homem-natureza (cultura-natureza,
história-natureza) é uma característica marcante do pensamento que tem dominado o
chamado mundo oidental, cuja matriz filosófica se encontra na Grécia e Roma
clássicas. Quanto aos que são o pensamento dominante no Ocidente, queremos
deixar claro que a ação desse pensamento - que opõe homem e natureza -
constitui-se contra outras formas de pensar. Não devemos ter a ingenuidade de
acreditar que ele se afirmou perante outras concepções porque era superior ou mais
racional e, assim, desbancou-as. Não, a afinação desta oposição homem-natureza se
deu, no coro da complexa História do Ocidente, em luta com outras formas de
pensamento e práticas sociais. Ter isso em conta é importante não só para
compreender o processo histórico passado, m, sobretudo, para compreender o
momento presente. Isso porque o movimento ecológico coloca hoje em questão o
conceito de natureza que tem vigorado e, como ele passa a sentir, o pensar e o agir de
nossa sociedade, no fundo coloca em questão o modo de ser, de produzir e de viver
dessa sociedade (PORTO-GONÇALVES, 2011, p.28).”

​ As raízes dessa separação remonta da Grécia antiga, onde uma matriz filosófica se
desenvolve e frutifica com os pensadores Tales, Parmênides e Zenão, dentro de um
entendimento segundo o qual o universo, considerado aqui como natureza, se constitui como
ser único, imutável, imovel e perfeitamente estável (PORTO-GONÇALVES, 2011). Esses
pensadores germinaram para o pensamento contemporâneo o aspecto dualista, fragmentado e
de separação predominante no pensamento atual. Morin (2008) apresenta a gênese da
construção do pensamento grego em relação a divisão dos aspectos elementares que
compõem a natureza:
“O mito grego dissocia cronologicamente o caos original, espécie de universo
monstruoso onde Urano, o Furioso, copula com a mãe. Gaia, e destroi os filhos, do
cosmo, universo organizado onde reina a regra e a ordem. Esquecendo Heraclito, o
pensamento grego clássico opunha logicamente Ubris, a desmedida arrebatada, à
Diké, a lei e o equilíbrio. Nós somos herdeiros deste pensamento dissociativo. Aliás,
esquecemos a Ubris e o Caos. A ciência clássica não sabia que fazer com um caos
original num universo eterno e substancialmente ordenado. Chegara até, no princípio
do século XX, a dissolver a ideia de cosmo, isto é, dum universo constitutivo de uma
totalidade singular, em proveito duma matéria/energia física, indestrutível e incriada,
que se estende até ao infinito. Nesta física, como já disse, a ideia grega de physis rica
de um princípio imanente de organização desaparecera e o conceito de organização
estava ausente (MORIN, 2008, p.59)”.

​ Nesse sentido, como apresentado por Morin (2008) na passagem acima, “Nós somos
herdeiros deste pensamento dissociativo”, condicionados a compreender as relações de forma
separada e objetificando a natureza enquanto unicamente material e objetiva.
​ Com Aristóteles e Platão, tem-se o desenvolvimento inicial do que viria a ser o
pensamento moderno sobre a natureza (PORTO-GONÇALVES, 2011), promovendo uma
compreensão hierarquizada do pensamento humano em relação à natureza, que passa a ser
vista unicamente como recurso material disponível. Nesse contexto, são excluídos os
aspectos naturais, espirituais e de totalidade que compunham a natureza, o que favorece a
percepção de uma separação entre o humano e o natural. Porto-Gonçalves (2011) expressa
essa ideia da seguinte forma: “É com Platão e Aristóteles que se começa a assistir a um certo
“desprezo pelas pedras e pelas plantas” e a um privilegiamento do homem e da ideia.”
​ Durante a ideia média temos o encontro do pensamento grego com o pensamento
judaico-cristã, consequentemente, o encontro de novas abordagens epistemológicas faz com
que o conceito de natureza atravesse um processo de remodelação. Com a força da igreja
católica presente, os novos dogmas do cristinismo perpetuaram a compreensão da separação
entre humano e natureza, caracterizada na doutrina como a separação entre espírito e matéria
(PORTO-GONÇALVES, 2011). Porto-Gonçalves (2011) expõe da seguinte forma essa
dinâmica:
“[...] Mas foi sobretudo com a influência judaico-cristã que a oposição
homem-natureza e espírito-matéria adquiriu maior dimensão. Os cristãos vão afirmar
decididamente que "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança". Note bem: o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Deus aqui aparece com letra
maiuscula e não como para os pré-socráticos). O homem é, assim, dotado do
privilégio. Com o cristanismo no Ocidente, Deus sobe aos céus e, de fora, passa a
agir sobre o mundo imperfeito do dia-a-dia dos mortos. Localizado num lugar
privilegiado, estratégico, do alto, Deus a tudo vê e controla. A assimilação aristotélica
platônica que o crstianismo fará em toda a Idade Média leva à cristalização da
separação entre espírito e matéria [...] (PORTO-GONÇALVES, 2011, p.32).”

Essa nova abordagem epistemológica, promovida a partir de uma remodelagem do


pensamento grego clássico sobre a natureza, reforça a visão antropocêntrica e a ideia de
separação entre o ser humano e o restante do mundo, acentuando a noção de superioridade e
relevância da humanidade no contexto terrestre. O ser humano é, dessa forma, considerado a
imagem e semelhança de Deus na Terra, conforme descrito na passagem bíblica
(PORTO-GONÇALVES, 2011).
A perpetuação dessa ideia é transportada ao longo do espaço-tempo até a
modernidade, tendo em René Descartes seu principal interlocutor. Com Descartes, a
separação entre sociedade e natureza ganha mais robustez e concretude, tornando-se um
elemento central no núcleo do pensamento moderno e contemporâneo
(PORTO-GONÇALVES, 2011). Segundo Porto-Gonçalves (2011):
“Em seu Discurso sobre o Método René Descartes afirma que "é possível chegar a
conhecimentos que sejam muito úteis à vida" e que em vez dessa filosofia
especulativa que se ensina nas escolas, pode-se encontrar numa outra prática pela
qual conhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os
diversos misteres de nossos ofícios poderíamos empregá-los da mesma maneira em
todos os usos para os quais são próprios e assim nos tomar como senhores e
possuidores da natureza (grifos de Porto-Gonçalves) (PORTO-GONÇALVES,
2011, p.33).”


​ A ciência moderna parte desse paradigma para uma forma de desenvolvimento
direcionado para o aspecto pragmático e funcional, e o século XIX constituirá esse momento
de consolidação do pensamento moderno científico ocidental e catalização do processo
capitalista de produção e acumulação através do desenvolvimento técnicas cada vez mais
complexas e artificiais, Santos (2006) discorre que, segundo Simondon (1958, 1989), "quanto
mais próximo da natureza é o objeto, mais ele é imperfeito e, quanto mais tecnicizado, mais
perfeito, permitindo desse modo um comando mais eficaz do homem sobre ele. Assim, o
"objeto técnico concreto" acaba por ser mais perfeito que a própria natureza.”

A abordagem dos paradigmas da geografia moderna sobre a relação


sociedade-natureza, segundo Foster e Kant​
Geógrafo e filósofo que beberam diretamente da fonte iluminista de pensamento
epistemológico, J. R. Forster e Immanuel Kant estruturam a geografia moderna dentro do
arranjo de pensamento iluminista, sistematizando seu aspecto teórico-metodológico e
epistemológico (MOREIRA, 2006).
​ Coube a Forster reformular o pensamento sistemático caracterizado pela geografia na
antiguidade grega, pensada aqui como o estudo das relações que descrevem a paisagem,
formando através das espacialização de seus elementos o contexto espacial do meio. Por sua
vez, esse arranjo espacial pode ser apresentado dentro uma linguagem matemática disposta
através da técnica cartográfica, apresentada de forma mais conhecida por Ptolomeu2
(MOREIRA, 2006). Assim, a ciência geográfica se sistematiza, adequando seu formato aos
tempos modernos, atualizada dentro “da teoria unitária que explica o mundo como um jogo
de escala, de Varenius3” (MOREIRA, 2006). Moreira (2006) apresenta da seguinte forma o
papel desempenhado por Forster:
“Forster vai abraçar o sentido sistemático-regional dessa geografia do passado,
atualizando-a para os parâmetros científicos e filosóficos do século XVIII, pelo lado
da face prático-empírica” (MOREIRA, 2006, p.14).

2
Foi um astrônomo, matemático e geógrafo egípcio, responsável por sintetizar e matematizar a obra de seus predecessores. Criou um sistema cosmológico,
baseado na teoria geocêntrica de Aristóteles, descrito no tratado: "A grande síntese", geralmente citada com o título árabe, "Almagesto", sua mais conhecida
obra (Retirado do Acervo Museológico dos Laboratórios de Ensino de Física da UFRGS. [Consult. 2025-02-02] Disponível em
https://www.ufrgs.br/amlef/glossario/claudio-ptolomeu/
3
Geógrafo holandês, nascido em 1622 e falecido em 1650, foi na Alemanha que publicou Geographia Generalis, obra com grande importância no
desenvolvimento do pensamento geográfico nos séculos XVII e XVIII, onde faz uma distinção clara entre os dois ramos da geografia - a geografia geral e a
geografia regional. Considerado um precursor da geografia moderna, sintetizou os conhecimentos geográficos que se foram acumulando desde os
Descobrimentos e aceitou plenamente a concepção copernicana do Universo (Porto Editora – Bernardo Varenius na Infopédia . Porto: Porto Editora. [consult.
2025-01-14 18:26:01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$bernardo-varenius
​ Forster estabelece o caráter teórico-metodológico da geografia moderna, promovendo
uma “arrumação sistemática”. Seu método se consolida a partir da observação detalhada dos
fenômenos, sua classificação e comparação, estudando minuciosamente a superfície terrestre
e sistematizando as informações dentro de categorias analíticas, dando curso ao projeto
modernizante da geografia dentro de um entendimento epistemológico consolidado entre a
separação homem-natureza. Moreira (2006) aponta que Tatham (1959) resume as ideias de
Forster da seguinte forma:
“Forster considerava a geografia do ponto de vista prático. Despertava-se-lhe o
interesse apenas pelo contato direto com uma variedade de naturezas em diversas
partes da terra, e sua contribuição é o método adotado por ele no tratamento dos
dados arrecadados. Dotado de acurados dotes de observação, assim como científica
tendência de espírito, colecionava fatos, comparava-os e classificava-os, e extraia
dessa classificação generalidades com as quais procurava, então, a explicação da
causa. O tratamento sistemático da matéria é sobejamente demonstrado na
classificação de suas observações no Mares do Sul [...]” (Tatham, 1959, p.204 citado
por Moreira, 2006, p.15).

​ Com Kant temos o desenrolar da outra proposta de modernidade da ciência


geográfica. Amparado na constituição do seu sistema de ideias, a geografia para Kant serve
como plataforma reflexiva para observar criticamente o mundo. Segundo Moreira (2006)
“Kant estabelece as bases epistemológicas da geografia moderna, complementando o trabalho
de sistematização teórico-metodológico de Forster. Interessa ao seu sistema de ideias
descobrir como a geografia pode ajudar na tarefa de constituição do entendimento da
natureza”. Aqui, verifica-se o carácter empírico que Kant destina a geografía, caracterizando
a sensibilidade e o entendimento como os agentes determinantes para a busca do
conhecimento verdadeiro (MOREIRA, 2006).
​ Se apoiando nos sistemas de classificação, como o Systema Naturae de Lineu4
(1707-1778), amplo trabalho de organização e classificação de espécies de plantas, Kant
transporta esse pensamento para geografia, espacializando as informações para o plano
terrestre e localizando os objetos na paisagem de forma sistemática. Dando assim
continuidade ao trabalho metodológico de Forster e partindo da sistematização dos objetos, a
partir da sua noção sensível, para a formulação do conceito de espaço geográfico
(MOREIRA, 2006).

4
Médico e naturalista sueco, estudou na Universidade de Upsala e dedicou-se aos estudos botânicos em primeiro lugar. Membro de diversas academias
científicas, em contato com cientistas holandeses e franceses como os naturalistas do Jardin des Plantes de Paris, celebrizou-se por ter proposto um sistema de
classificação das espécies em sua obra Systema Naturae, cuja primeira versão data de 1735 (Arquivo Nacional. [consult. 2025-02-02 15:53:24] Disponível
emhttp://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/glossario/index.php/verbetes-de-a-a-z/32-verbetes-iniciados-em-l/836-lineu-carl-von-1707-1788
​ Para Kant, o papel da geografia no mundo se focaliza na observação e descrição do
mundo, deslocando seu olhar de forma exclusiva para sua objetividade material. Moreira
(2006) expõe da seguinte forma abordagem kantiana na geografia:
“Daí que para Kant a geografia possa descrever e a história narrar os fenômenos que
formam o mundo: a geografia na ordem da distribuição das coisas na extensão que
nos cerca…Kant relacionada a geografia, portanto, a percepção espacial dos
fenômenos. E por isso a classifica com uma ciência da natureza. Entende-se por
natureza, nos tempos de Kant, algo diferente do entendimento atual. Natureza é todo
o mundo na percepção sensível, o mundo objetivo…”(MOREIRA, 2006, p.19).

A evolução do pensamento geográfico lança seus alicerces na obra desses dois


pensadores da geografia, consolidando seu caráter teórico-metodológico e os objetos de
estudo que serviram de base para seu desenvolvimento nos anos seguintes. Dessa forma,
percebemos que a natureza, para esses pensadores, é concebida como uma externalidade
fenomenológica e sensível, e a principal ferramenta para sua compreensão é a geografia.
Essas perspectivas contribuíram enormemente para o enriquecimento das informações sobre a
natureza e, em certa medida, sobre a relação não dissociada entre o ser humano e o mundo
natural, com a superfície terrestre da qual faz parte. Entretanto, esse mesmo caminho
distanciou fortemente da percepção relacional entre humanos e não humanos de forma não
hierarquizada, puramente objetificada e simbólica.

A relação sociedade-natureza dentro do materialismo histórico e dialético e como isso se


manifesta no modelo capitalista de produção
​ Moreira (2006) aponta que, dentro da ontologia e epistemologia da geografia, à luz do
materialismo histórico-dialético, estreita-se a percepção relacional do homem consigo
mesmo, por meio do processo de trabalho, definido no espaço geográfico. Dentro desse
entendimento, o processo de trabalho consiste na interação com a própria natureza, a partir de
intencionalidades direcionadas por uma troca material que, por consequência, transforma o
próprio sujeito nesse processo. Moreira (2006) cita a seguinte afirmação de Marx (1968,
1993):
“Antes de tudo, o trabalho é um processo em que participam o homem e a natureza,
processo em que o ser humano impulsiona, regula e controla com sua própria ação
seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de
suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo ,braços e pernas
,cabeças e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes
forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a,
ao mesmo tempo modifica sua própria natureza” (MOREIRA, 2006, p.40 apud
MARX, 1968, p.202).
Aqui temos o conceito de metabolismo conforme trabalhado na obra de Marx, que o
define dentro do processo de trabalho, a partir dos recursos disponíveis na natureza. Na
geografia, essa relação é abordada e caracterizada na interação homem-meio, em que ocorre
uma troca energética entre os dois elementos. Esse fenômeno é regido por uma relação social
própria do ser humano. Marx caracteriza esse processo como “hominização”, entendida como
a ação humana sobre a natureza externa e da produção social e material da história humana
(MOREIRA, 2006).
Esse processo é fundado, segundo Marx, pela alienação do ser humano com a
natureza. Benedito (2024, p.218) apresenta que “(...) tais aspectos podem ser sintetizados de
forma abrangente: o estranhamento do homem da natureza e de si, e as manifestações desse
estranhamento na relação ser humano-gênero humano e ser humano-ser humano.
Desvinculando-se dialécticamente das perspectivas filosóficas anteriores, Marx enfatiza que
não é fruto do acaso uma fatalidade da natureza, mas que se trata de uma forma de
autoalienação(…)”. Ao mesmo tempo que fica evidente a relação simbiótica do homem com
a natureza, o próprio processo de alienação conduz a uma forma de relação contraditória,
“desnaturaliza o homem”, causando a condição de estranhamento consigo e com o ambiente
em que vive. Benedito (2024) aponta que Lefebvre (1968) reflete a seguinte questão:
“Os Manuscritos de 1844 esboçam essa antropologia e ao mesmo tempo contém a
sua crítica. A antropologia (e a de Feuerbach é o exemplo típico) tende a imergir o
homem na natureza ou a separá-lo dela. Ao contrário, o que é preciso perceber é a
relação conflituosa entre o homem e a natureza: unidade (o homem mais
desenvolvido não se separa da natureza) e luta (a atividade humana arranca da
natureza a satisfação das necessidades humanas, transformando-a, devastando-a). [...]
O trabalho substitui a necessidade como sinal de impotência, pela necessidade como
capacidade de gôzo, como poder de realizar tal ou qual ato. O ser humano substitui
assim, aquela sua unidade com a natureza – imediata e pouco diferenciada, enquanto
ser natural, – por uma totalidade diferenciada. Sendo múltiplo, ele se arrisca a
mutilar-se pela alienação” (LEFEBVRE, 1968, p.28 citado por BENEDITO, 2024,
p.218).

​ Marx aponta as trocas intercambiáveis que a humanidade promove com a natureza


externa de si, aqui condicionada como a base objetiva da sua existência. Essa reflexão de
Marx constitui uma nova relação sociedade-natureza, compreendendo o humano enquanto
“corpo orgânico” e natureza como inorgânico. Essas duas categorias, para Marx, são
complementares e condicionadas, onde a capacidade humana, através do trabalho, transforma
os elementos da natureza para satisfazer suas necessidades (FOSTER, 2000).
​ As reflexões acerca da natureza se fazem altamente importante no pensamento
marxista, principalmente quando analisamos as condições necessárias para a dominação e
prosperidade do sistema capitalista de produção, como por exemplo a instituição da
propriedade privada dos meios de produção e consequentemente na própria apropriação da
natureza, seu processo de capitalização e o trabalho despendido nessa relação (FOSTER,
1998). Marx discorre que a história da relação sociedade-natureza atravessa um curso
temporal marcado por diversos usos dos elementos naturais, expropriação da terra,
concentração de capital e exploração do trabalho humano e produção desigualdades nesse
processo. Nesse sentido, a história da natureza seria a história social relacionada a divisão do
trabalho (FOSTER, 1998).
O pensamento marxista sobre o processo de interação entre sociedade e natureza
permite uma compreensão complexa dessas interações. Marx destaca a indissociabilidade
entre esses dois elementos e a necessidade intrínseca do processo capitalista de produção em
dominar a natureza para sua perpetuação. O ser humano, a partir da construção social
determinada por influências econômicas e sociais, se apropria da natureza e reproduz as
contradições inerentes ao processo capitalista (MOREIRA, 2006).
O modelo de produção capitalista, analisado historicamente por Marx, concebe a
natureza como algo externo, passivo e não humano, entendendo-a como uma oferta de
matéria-prima gratuita e disponível para ser utilizada no processo produtivo. Ou seja, a
natureza é tratada de forma objetificada, incorporada a uma lógica econômica que a
transforma em valor, a ser exclusivamente para as vontades humanas (FRASER, 2014).
Fraser (2014) faz o seguinte apontamento sobre o tema:
“La naturaleza se convierte aquí en un recurso para el capital, cuyo valor se
presupone y niega al mismo tiempo. Tratada como algo gratuito en las cuentas del
capital, es expropiada sin compensación ni reposición, y se asume implícitamente que
se trata de algo infinito. De ese modo, la capacidad de la naturaleza para soportar
vida y renovarse constituye otra condición de fondo necesaria para la producción de
mercancías y la acumulación de capital.” (FRASER, 2014, p.66).

​ A evolução do processo capitalista condiciona o homem a um distanciamento cada


vez maior da sua natureza e dos processos da natureza exterior a si. Fraser (2014) discorre
desse processo da seguinte forma:
“El capitalismo separó brutalmente a los seres humanos de los ritmos naturales,
estacionales, asignándolos a la fabricación industrial, posibilitada por los
combustibles fósiles, y a la agricultura comercial, inflada por los fertilizantes
químicos. Introduciendo lo que Marx denominó una «brecha metabólica», inauguró
lo que ahora se denomina el antropoceno, una era geológica completamente nueva en
la que la actividad humana tiene un impacto decisivo sobre los ecosistemas y la
atmósfera de la Tierra.” (FRASER, 2014, p.66).

​ A "brecha metabólica" descrita por Marx e retomada por Fraser (2014) evidencia os
impactos profundos e muitas vezes irreversíveis desse modelo de desenvolvimento para a
natureza. Portanto, é necessário direcionar nossos esforços epistemológicos para alternativas
que reconheçam a interdependência entre seres humanos e ecossistemas, valorizando práticas
sustentáveis e saberes tradicionais que promovam uma convivência mais harmoniosa e justa
com o planeta.

Relação entre sociedade - natureza à luz das epistemologias contemporâneas do


pensamento geográfico
​ O pensamento Marxista teve grande influência no decorrer da construção do
pensamento geográfico contemporâneo, principalmente a partir de diversas crises que vão
surgindo dentro das inúmeras contradições inerentes ao processo capitalista de produção,
como por exemplo questões políticas, sociais e ambientais. Temos então, dentro da Geografia
Crítica, fundamentada a partir do pensamento marxista, a busca analítica pelas relações de
poder, exploração e desigualdades na produção do espaço.
Adentrando com maior atenção o aspecto ambiental, nos deparamos com um caos
sistêmico que se manifesta em diversas esferas, onde instituições privadas ascendem a
posições centrais nas tomadas de decisão. Esse cenário nos leva a questionar e refletir sobre
os modelos democráticos de governo consolidados no Ocidente e sua real preocupação com o
bem-estar social. Porto-Gonçalves (2002) aponta que as dinâmicas dos Estados Nacionais não
apresentam possibilidades de superação das contradições, posto que as problematizações do
capitalismo globalizado ultrapassam suas fronteiras, não respeitando os limites territoriais de
qualquer natureza. O autor ainda faz o seguinte apontamento sobre o paradigma enfrentado
pela geografia dentro dessa relação desencadeada :
“Além disso, esse campo ambiental também expõe outras e enormes contradições que
reinam no atual “caos sistêmico” que caracteriza a geografia do mundo
contemporâneo. Destaquemos o fato de 20% da população mundial ser responsável
pelo consumo (produtivo e improdutivo) de cerca de 80% da energia e das matérias
primas manipuladas anualmente em todo o planeta [...]. A ideia de dominação da
natureza, central para o pensamento moderno europeu, é posta em questão não
somente porque se aponta a degradação ambiental ou o esgotamento de recursos
naturais, mas porque junto com a natureza emergem múltiplos sujeitos que até aqui
vinham se mantendo à mantendo nos marcos das territorialidades ora em crise.”
(PORTO-GONÇALVES, 2002, p.242).

Nesse sentido, a partir do exposto por Porto-Gonçalves (2002), emerge uma


perspectiva de compreender as transformações a partir de uma lente socioambiental crítica,
na qual se torna essencial compreender os fatores e as intenções sociais em relação à
natureza. De um lado, o modelo capitalista vê a natureza exclusivamente como recurso
natural a ser transformado em matéria, com grandes corporações e multinacionais atuando em
uma ampla escala nos territórios, direcionadas à maximização da produção e a degradação
ambiental como resultado da lógica de acumulação capitalista, onde a natureza é
mercantilizada e os impactos distribuídos de forma desigual. Em contrapartida, destaca-se a
valorização de outras formas de relação com a natureza, por meio de culturas e práticas que
se conectam de maneira diferenciada e mais sustentável.
Dentro dessa perspectiva, a orientação do pensamento geográfico até então pautado
em matrizes positivistas não possibilita o caminhar para um entendimento de uma realidade
extremamente complexa e multifacetada, resultante da feroz evolução do modelo capitalista e
trazendo consigo todas as contradições, rupturas e transformações sociais, econômicas,
políticas que emergiram e emergem nesse exato momento desses processos. Nessa
perspectiva posta, Mendonça (2001, p.119) aponta para o salto teórico-metodológico que
alguns geógrafos fizeram ao romper com “característica majoritariamente descritiva-analítica
do ambiente natural – ainda muito presente –, passando a abordá-lo na perspectiva da
interação sociedade- natureza e propondo, de forma detalhada e consciente, intervenções no
sentido da recuperação da degradação e da melhoria da qualidade de vida do homem.”
​ Como mencionado anteriormente, vive-se uma crise do modelo científico positivista e
quantitativo, que por muito tempo orientou os estudos geográficos. Essa crise surge da
incapacidade desse modelo em explicar adequadamente os problemas cada vez mais
complexos da modernidade (MOREIRA, 2006). Diante disso, emergem novas epistemologias
como resposta a essas transformações, abordando de maneira distinta as relações entre
sociedade(s) e natureza(s). Entre elas, destaca-se o marxismo, discutido anteriormente, que
deu origem à Geografia Crítica, além de outras vertentes, como a Geografia Cultural, a
Geografia Decolonial e as abordagens pós- estruturalistas que ampliam o olhar sobre essas
dinâmicas. Vejamos um pouco sobre essas outras vertentes do pensamento geográfico
contemporâneo.
​ A Geografia Cultural surge como reação ao determinismo ambiental e positivismo
científico que dominou o pensamento geográfico no início do século XX, propondo a
incorporação da agência humana como fator de transformação da natureza e,
concomitantemente, a cultura como elemento chave nas análises geográficas para caracterizar
a forma de transformação específica de determinada área. Nesse sentido, Para Sauer (1997):
"O último agente que modifica a superfície da Terra é o homem. O homem deve ser
considerado diretamente como um agente geomorfológico, já que vem alterando cada
vez mais as condições de denudação e colmatação da superfície da Terra, e muitos
erros têm ocorrido na geografia física por esta não ter reconhecido suficientemente
que os principais processos de modelagem da Terra não podem ser inferidos com
segurança com base nos processos atualmente vigentes a partir da ocupação do
homem"(SAUER, 1997, p. 3).


​ Para conduzir a análise da transformação entre sociedade e natureza, e as inscrições e
marcas na superfície da terra que emergem desse processo, a geografia cultural saueriana se
apoia profundamente no conceito de paisagem. Suertegaray (2019) aponta que, para Sauer, a
paisagem seria um complexo de influências, resultante de fatores culturais e naturais em
intervenção, derivando em feições materiais, associadas a processos históricos de constituição
(SUERTEGARAY, 2019). A autora ainda ainda discorre que na Geografia Cultural a
concepção de paisagem se relacionada diretamente com a forma, sendo analisada dentro de
uma condição de funcionalidade, estando ligada, nesse sentido, a fatores ecológicos, mas
moldada dentro diversidade cultural a partir dos múltiplos usos e modos de vida existentes
(SUERTEGARAY, 2019).
Na Geografia Decolonial, encontramos uma corrente de pensamento que busca
questionar as bases eurocêntricas e colonialistas que fundamentaram a ciência ocidental.
Surgindo a partir do pensamento decolonial, essa abordagem tem como foco principal a
crítica à colonialidade do poder e a valorização de outras formas de conhecimento e práticas
que emergem de povos historicamente marginalizados, como as populações tradicionais.
Essas epistemologias e modos de vida oferecem perspectivas alternativas para entender e
vivenciar a relação entre sociedade e natureza, desafiando as estruturas dominantes e
propondo a observação de outros caminhos possíveis.
Nessa perspectiva, compreendemos que a crise civilizatória que vivemos atualmente
está diretamente atrelada à crise ambiental. Enrique Leff (2019, p.19) faz a seguinte reflexão:
“A crise ambiental é uma crise do conhecimento: da dissociação entre o ser e o ente à lógica
autocentrada da ciência e ao processo de racionalização da modernidade guiada pelos
imperativos da racionalidade econômica e instrumental. O saber que emerge dessa crise, no
campo da externalidade das ciências, questiona os paradigmas estabelecidos, abrindo as
portas do conhecimento para o saber negado. Desta maneira, o saber ambiental vai
derrubando certezas e abrindo raciocínios.”
A abordagem epistemológica pós-estruturalista, dentro do pensamento geográfico
contemporâneo e das ciências sociais como um todo, tem como emergência uma crítica às
visões estruturalistas e a busca por uma superação dessas estruturas, questionando relações,
os aspectos dicotômicos e valorizando a multiplicidade das relações sociais e naturais. A
abordagem pós-estruturalista percebe a separação sociedade-natureza como algo construído
pela modernidade ocidental, não fazendo sentido para outras culturas que possuem
abordagens mais integradoras.
Um aspecto interessante trazido por essa corrente de pensamento é a ideia de que não
apenas os humanos têm agência, entendida como a capacidade de agir e influenciar. Autores
como Bruno Latour (1996) (na Teoria Ator-Rede) argumentam que não-humanos (animais,
plantas, rios, tecnologias etc.) também têm agência e participam ativamente das redes
socioambientais.
Dessa forma, podemos perceber que as epistemologias contemporâneas do
pensamento geográfico têm avançado na compreensão da relação entre sociedade - natureza
como um processo dinâmico, complexo e interdependente. Essas abordagens desafiam visões
dualistas e destacam a necessidade de integrar saberes científicos, tradicionais e críticos para
enfrentar os desafios socioambientais do século XXI. A natureza não é mais vista como um
recurso passivo, mas como um ativo participante nas redes de vida, exigindo novas formas de
pensar e agir.

Conclusão
​ A reflexão acerca da relação sociedade-natureza é desafiadora em vários níveis,
transcendendo para muito além do debate puramente científico e epistemológico. A
diversidade de interpretações e conceituações torna seu estudo complexo, acrescentado ainda
de um processo atual de intensas transformações advindas do momento antropocêntrico que
vivemos, remodelando e transformando as relações de forma nunca antes vivenciada.
​ Revistar o passado pode ser uma ferramenta valiosa para entender a construção
epistemológica que fundamentou a ruptura entre sociedade e natureza, base do pensamento
moderno ocidental dominante. Essa dicotomia, no entanto, não se limita ao pensamento geral,
ela também se reflete no saber geográfico, manifestando-se na própria divisão da ciência
geográfica ao longo da modernidade, o que acabou ajudando a colocar geógrafos físicos e
humanos em lados opostos.
Compreender como se consolidaram essas perspectivas universalizantes, herdeiras do
positivismo, nos permite identificar rupturas, contradições e problemáticas que impulsionam
a busca urgente por outras abordagens ontológicas e epistemológicas. O pensamento
moderno, em crise, sustenta-se na busca por uma verdade objetiva que exclui o sujeito da
relação, confiando no método científico racional para desvendar e dominar os mistérios da
natureza, colocando o homem dentro de uma postura de superioridade e permitindo sua
dominação frente aos outros seres da Terra (PORTO-GONÇALVES, 2011). No entanto, essa
visão já não dá conta das complexidades que emergem no mundo contemporâneo.
Porto-Gonçalves (2011) aponta para o seguinte direcionamento:​
​É preciso, pois, desenvolver um outro modo de pensar e de agir que incorpore uma
outra relação com a natureza-mulher; a natureza-negro; a natureza-índio; a
natureza-criança; a natureza adolescente; a natureza-velho; a natureza-homossexual;
a natureza operário; a natureza-camponês, enfim, com a natureza-natureza,
sobretudo, com a natureza-homem, que sabemos é independentedependente do seu
ecossistema. Em suma, é de uma outra cultura que falamos, partindo, é claro, da
situação histórico-concreta em que vivemos, com seu conceito de natureza instituída
e instituinte. Eis a questão maior que os movimentos ecológicos apontam ainda que
de maneira diferenciada: como abordar as diferenças da natureza sem transformá-las
em hierarquias? Assim, trata-se de um outro projeto de sociedade; de um outro
sentido para o viver; de uma outra cultura que subordine as técnicas aos seus fins e
não fique subordinada a elas. Afinal, um outro modo de vida exige um outro modo de
produzi-Ia (PORTO-GONÇALVES, 2011, p.135).

​ Portanto, a reflexão sobre a relação sociedade-natureza nos convida a superar as


dicotomias e hierarquias que marcaram o pensamento moderno, abrindo caminho para uma
visão mais integrada. A crise do paradigma antropocêntrico e a insuficiência das abordagens
universalizantes exigem que repensemos não apenas nossas bases epistemológicas, mas
também nossas práticas sociais e políticas. Como propõe Porto-Gonçalves (2011), é
necessário construir uma nova cultura que reconheça a interdependência entre todos os seres
e que promova uma relação mais equilibrada e justa com a natureza. Isso implica questionar
os modelos de desenvolvimento vigentes e buscar alternativas que valorizem a diversidade, a
sustentabilidade e a coexistência harmoniosa.
A geografia, ao superar sua própria divisão interna, pode desempenhar um papel
crucial nesse processo, contribuindo para a construção de um projeto de sociedade que
respeite os limites ambientais e promova a justiça socioambiental. A tarefa é complexa e
urgente, mas essencial para enfrentar os desafios do Antropoceno e garantir um futuro viável
para todas as formas de vida.

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