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O Homem Que Viu o Disco Voador - Rubens Teixeira Scavone

O documento é uma nota explicativa sobre a obra de ficção científica 'O Homem que viu o Disco-Voador' de Rubens Teixeira Scavone, destacando a popularidade e a evolução do gênero ao longo do tempo. A obra é elogiada por sua combinação de imaginação, ciência e sensibilidade literária, atraindo leitores e contribuindo para o movimento editorial no Brasil. A narrativa inicia com um mistério durante um voo em São Paulo, onde a tripulação enfrenta anomalias inexplicáveis nos instrumentos de navegação.
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O Homem Que Viu o Disco Voador - Rubens Teixeira Scavone

O documento é uma nota explicativa sobre a obra de ficção científica 'O Homem que viu o Disco-Voador' de Rubens Teixeira Scavone, destacando a popularidade e a evolução do gênero ao longo do tempo. A obra é elogiada por sua combinação de imaginação, ciência e sensibilidade literária, atraindo leitores e contribuindo para o movimento editorial no Brasil. A narrativa inicia com um mistério durante um voo em São Paulo, onde a tripulação enfrenta anomalias inexplicáveis nos instrumentos de navegação.
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1

osebodigital.blogspot.com

RUBENS TEIXEIRA SCAVONE

O Homem que viu o

Disco-Voador

Nota explicativa de Maria de Lourdes Teixeira Capa de Vicente di Grado

CLUBE DO LIVRO
3
4

NOTA EXPLICATIVA

FICÇÃO-CIENTÍFICA, GÊNERO CAÇULA

DA LITERATURA UNIVERSAL

Fenômeno notório para quantos acompanham o movimento lítero-editorial


dos diversos países é o prestígio desfrutado, atual-mente, pela ficção-
científica, gênero que exerce verdadeiro fascínio sobre a maioria do
público de todos os idiomas.

Se é verdade, conforme asseguram os especialistas, que essa modalidade


novelística não constitui uma criação desta nossa era atômica, sendo filha
da velha Grécia e contando na antiguidade autores da categoria de
Luciano de Samosata e Plutarco, é também verdade que ela se veio
multiplicando e enriquecendo através dos tempos, cada época lhe dando
sua contribuição específica. Desde Voltaire com o seu Micromegas, onde se
trata da descida dos habitantes de Sírius e de Saturno ao nosso planeta; e
da inglesa Mary Godwin Shelley, criadora do famigerado Frankenstein, tão
explorado pelo cinema; até Poe, Júlio Verne e H. G. Wells, a chamada
science-fiction viu sempre crescer o seu número de adeptos.

Senão os povos de língua inglesa os maiores produtores e os maiores


consumidores dessa nova semântica literária, pode-se, contudo, afirmar
que o seu prestígio é universal, numa coincidência de gostos que abrange
todos os quadrantes da terra.

Prova da seriedade com que já se encara o gênero é o fato de haver nos


Estados Unidos, na Universidade de Harvard, uma cátedra especial de
science-fiction aplicada à engenharia, de que é titular o professor Dwight
Wayne Batteau. Outra prova é o debate 5
que o assunto tem despertado na imprensa de vários países. Há poucos
anos, o jornal parisiense Nouvelles Littéraires promoveu um inquérito entre
os intelectuais franceses sobre a validade da ficção científica como gênero
literário de primeira categoria, ou a sua classi-ficação como gênero menor,
e também sobre os motivos da sua imensa aceitação pelo público.
Opinaram, entre outros escritores, Camus, Giono, Sartre, Cocteau e todos
os membros da Academia Goncourt, tendo os juízos se dividido, não
faltando os mais apaixonados prós e contras. Inclusive a alegação de que a
science-fiction constitui certa forma de romantismo cientificista, em que
tudo aquilo que no velho romantismo se referia à natureza, principalmente
à flora e à paisagem, hoje se refere à aparelhagem, aos produtos técnicos
— aviões, foguetes, robots, plataformas, teleguiados, discos-voadores, etc.
— o que traria em conseqüência a desumanização da novelística, que assim
perderia o contato com as criaturas e com os problemas onto-lógicos.

Enquanto discutem críticos e estudiosos, as edições se suce-dem e os


leitores as devoram com insaciável interesse.

É óbvio que o Brasil não poderia fugir ao imperativo da influ-

ência mundial que vem dia a dia mais difundindo tais obras por meio de
livros, revistas, secções especializadas na imprensa, além de outros meios
de divulgação e pragmática. E o interesse dos leitores encontra
reciprocidade no movimento editorial, onde romances, novelas e contos
desse gênero começam a surgir com freqüência, inclusive sob a forma de
antologias.

Ora, “O Diálogo dos Mundos” — contos de Rubens Teixeira Scavone, que


figuram na coleção de ficção científica das Edições G.R.D. e editado, em
abril de 1965, pela coleção do “Clube do Livro”,

— iniciou milhares de leitores no apaixonante gênero bem represen-tativo


da época da cibernética e da eletrônica.

Ao selecionar a obra em apreço, sem dúvida, acertou a direção da Editora.


Pois nesses contos se unem, com adequação perfeita, a riqueza imaginativa
(indispensável para o gênero), a problemática científica e a sensibilidade
literária, que às vezes, alcança mesmo altitudes de verdadeira poesia, como
por exemplo nas páginas de “O

Menino e o Robot” ou “Flores para uma Terrestre”.

Certamente nestes capítulos de “O homem que viu o Disco-6

Voador” encontrarão os leitores um veículo, não apenas de fuga ao


cotidiano, através da empolgante leitura, como também um acervo de
informações das mais atuais, que se incorporarão aos conhecimentos de
cada um por meio desta história que alia o maravilhoso ao cientifico, o
cósmico ao terrestre, o mágico ao humano. E nessa simbiose, segundo me
parece, consiste a realização da verdadeira obra de arte nesse gênero
caçula da literatura universal.

MARIA DE LOURDES TEIXEIRA

Rubens Teixeira Scavone estreou, literàriamente, em 1958, sob o anagrama


Senbur T. Enovacs, com este romance de ficção-científica, “O

homem que viu o Disco-Voador”, que foi muito bem recebido pelos críticos
e pelo público. Em 1961, lançou um romance do mesmo gênero, “Degrau
para as estrelas”. No referido ano, apareceu “O Diálogo dos Mundos”,
que foi publicado em abril ds 1965 pela nossa rede, em edição revista pelo
autor. Em 1963, Rubens Teixeira Scavone edita “Ensaios Norte-
Americanos”, como súmula de seus conhecimentos acerca da produção
literária des Estados Unidos da América do Norte, tendo em preparo o
segundo volume da mesma série e um novo romance publicado — “O Lírio
e a Antípoda”.

Colaborador de vários e importantes jornais do País, o escritor brasileiro


Rubens Teixeira Scavone é natural de São Paulo, sendo Procurador da
Justiça do Estado e Professor de Direito.

Como verão os nossos leitores, confirma-se o que diz em seu brilhante


prefácio a escritora Maria de Lourdes Teixeira: o autor consegue, em
certas páginas deste palpitante e oportuno romance “O homem que viu o
Disco-Voador”, aliar a riqueza imaginativa, a problemática experimental e
a sensibilidade literária, atingindo aqueles planos superiores e
imponderáveis da criação, sem os quais a narrativa se confina nos estreitos
limites de uma inexpressiva forma gráfica.

São Paulo, 10 de abril de 1966.


7
8

PRIMEIRA PARTE

O MISTÉRIO

“O homem branco riscou na areia um círculo pequeno e falou ao pele


vermelha: Isto é o que os índios sabem. Depois, riscando um círculo maior
em tomo do pequeno, acrescentou: E isto ó o que o branco sabe. O
selvagem tomou o bastão e traçou um círculo ainda maior, abrangendo
ambos os círculos, e disse: Isto é o que o branco e o vermelho não sabem”.

CARL SANDBURG - “The people, yes”

I — CREPÚSCULO SOBRE SÃO PAULO

Tudo começara naquela tarde fria e nevoenta.

Mesmo sendo o início do inverno, um calor anormal manifes-tara-se


durante o dia inteiro e somente quando a tarde principiava a cair a
temperatura se alterara bruscamente em mudança bem característica de
São Paulo. Nuvens baixas e ameaçadoras cobriram a cidade e um vento
frio varreu os arrabaldes mais elevados, antecipando a queda de uma
garoa fina.

O quadrimotor contornava os limites da metrópole.

O comandante Eduardo Germano de Resende vinha cansado.

Manobrava os controles quase mecanicamente, deixando para desligar o


piloto automático o mais tarde possível.

O contato para a aterragem já havia sido mantido há uns quinze minutos


de vôo, quando se inteiraram da existência do teto 9
baixo e ameaçador, com possibilidades imediatas de interdição do
aeroporto. Assim, se quisessem dormir em São Paulo, não tinham tempo a
perder. O problema da aterragem estava resolvido e nenhuma espera havia
proveniente do tráfego.

Com os olhos nos instrumentos e pressão leve sobre os comandos, Eduardo


preparou-se para a aproximação, já enquadrado o aeroporto.

Entravam na reta final.

As nuvens, agora, pairavam sobre a aeronave e já se podia ver o casario


pelas janelas molhadas de garoa.

O mais preocupado com os instrumentos era o primeiro-oficial, vigiando o


altímetro e os tacômetros. O único que descansava por antecipação era o
navegador, já guardando seus mapas e instrumentos, sabendo que mais
aquela missão fôra cumprida com êxito. Ao ser atingida a reta final
marcavam os relógios, precisamente, dezoito horas e quarenta minutos.

Nesse momento exato, é que tudo começou.

Eduardo, concentrado no balizamento da pista, somente prestou atenção ao


primeiro-oficial quando êle começou a agitar-se no assento. Gusmão
curvou-se sobre os instrumentos e pôs-se a dar golpes com o punho fechado
junto ao altímetro.

— Que diabo você está fazendo? Que é isso?

O primeiro-oficial demorou vários segundos para responder, limitando-se a


apontar o painel com ar assustado.

— Veja! olhe que coisa doida está acontecendo!

Eduardo firmou o comando nas mãos e fixou um dos altímetros. Vinham a


mil e trezentos pés. Tudo até a esse instante indicava altitude correta. Mas
o altímetro alterava inexplicavelmente a situação, marcava quase quatro
mil pés e ia, poupo a pouco, registrando altitude mais elevada, em
ascensão assustadora.
O comandante a princípio, não acreditou no que viu.

Numa fração de segundo, examinou o segundo altímetro e, pasmado,


constatou idêntico fenômeno. Reagiu da mesma forma que o primeiro-
oficial, passando a dar golpes nervosos sobre a base do instrumento.

Aparentemente, o vôo não se modificara. A aproximação era 10

normal e a pista já vinha bem perto, a pouco mais de um minuto de


distância, quando a segunda anormalidade aconteceu.

O compasso passou a girar doidamente, como se a aeronave tivesse


entrado em torvelinho descontrolado, solicitadas as agulhas por
magnetismo desconhecido.

Desnorteado com esse segundo fato, Eduardo agiu mecanicamente


interrompendo a aterragem.

Levou as manetes à frente, dando toda a aceleração aos motores, que


responderam com um rugido atroador. Compreendendo a emergência, o
primeiro-oficial levantou os flaps1, ao mesmo tempo que Eduardo ajustava
a mistura e recolhia o trem de pouso. O

violento impulso ascensional dos profundores abalou toda a aeronave, não


demorando a reação os passageiros e da tripulação, surpreendidos com a
manobra inesperada.

A comissária largou seus pacotes e quase caiu sobre uma poltrona. Os


passageiros inquietaram-se e indagaram em voz alta o que havia
acontecido. O navegador e o rádio-telegrafista correram para a cabine,
amontoando-se junto ao segundo-oficial atrás dos assentos de pilotagem.

Desprezando as informações dos instrumentos e procurando ganhar


altitude outra vez, o comandante não deu atenção aos tripulantes e
concentrou-se no exame do que estava acontecendo.

— Que aconteceu? Por que é que arremetemos dessa forma?


Quem respondeu foi o primeiro-oficial, não ocultando certo nervosismo
indisfarçável.

— Olhem! Olhem nos altímetros e no compasso!

— Que é que há com eles? Não vejo nada de mais! É lógico que depois da
arremetida já devemos estar pelas alturas que eles registram, três ou
quatro mil pés! — exclamou o segundo-oficial, após examinar os
instrumentos.

O comandante e o primeiro-oficial tiveram aí a terceira


surpresa.Novamente conferiram os instrumentos e pelas condições de
1Flaps; vocábulo inglês que significa: borda, aba. Consiste na parte móvel,
posterior, das asas das aeronaves, e que tem por finalidade agir como
freios, aumentando a resistência à passagem do ar. (Nota do “Clube do
Livro”).
11
vôo não verificaram mais irregularidade de espécie alguma.

O altímetro indicava quatro mil e duzentos pés, altitude real em que deviam
estar depois da ascensão violenta, e o compasso repousava, tranqüilo,
indicando rumo constante.

Os dois homens trocaram olhares mudos e, sem revelarem o que havia


acontecido, agora de credibilidade duvidosa, limitaram-se a dar
explicações não muito convincentes. Gusmão ficou confuso e Eduardo
explicou titubeante:

— Não foi nada de grave. Tive a impressão de que a torre havia se


enganado nas instruções. E como não via bem a cabeceira da pista com
esse teto baixo, resolvi subir para obter confirmação da ordem de
aterragem. — A seguir, como que dando as explica-

ções por encerradas, em atitude áspera e não condizente com o seu


temperamento, voltou-se para a comissária, ainda pálida, junto à entrada,
e gritou uma ordem:

— Não fique parada aí como uma múmia. Vá dizer aos passageiros que não
houve nada. Que subi para receber novas instru-

ções por causa do teto. Vá logo e feche a porta!

A moça engoliu em seco e não chegou a responder, estra-nhando a atitude


áspera do aviador, concluída a determinação com a batida forte da porta.

O navegador Novais e o rádio-telegrafista Stuck não se deram por


satisfeitos com a explicação. Novais esperou que Eduardo outra vez se
comunicasse com a torre e, depois de ajustadas as novas instruções,
arriscou uma pergunta:

— Como é, comandante! Que foi, realmente, que aconteceu?


Você sabe que nós o conhecemos há muito tempo e sabemos que não
arremeteria assim a não ser em estado de emergência. Que foi que houve aí
com vocês dois?

A essa altura, o navegador, o rádio-telegrafista e o segundo-oficial já


tinham observado pelas fisionomias de ambos que alguma coisa errada
havia acontecido ou estava acontecendo.

Gusmão limitou-se a olhar para o comandante e, como se tivesse recebido


consentimento, não mais se conteve:

— A coisa foi dos diabos! Vocês não podem imaginar. Tudo ia indo muito
bem, lá pelos mil e quinhentos pés, quando os altímetros endoideceram e
passaram a marcar uma altura absurda, sem 12

subida alguma, ou melhor ainda: em plena descida. E não foi só o


altímetro. As bússolas também. Passaram a marcar outra rota, inclusive o
girosin, e no compasso o quadrante começou a rodar feito maluco, como se
tivesse perdido o magnetismo.

O rádio-telegrafista e o navegador olharam os instrumentos e, nada vendo


de anormal, ficaram indecisos perante a explicação.

Eduardo sentiu essa dúvida e veio em auxílio de Gusmão.

— É isso mesmo. Vocês podem pensar que perdemos a ca-beça, mas a coisa
foi assim mesmo. Quando vi a anormalidade resolvi arremeter, pois não
podia prever o que iria sobrevir. Afinal de contas, com este cansaço em que
estou, poderia estar havendo erro de minha parte na localização e tomada
de campo. Os instrumentos não falham e, na dúvida, busquei segurança
aqui no alto. A coisa foi mesmo inexplicável! Imaginem que o defeito se
manifestou nos altímetros e nas bússolas, inclusive o girosin, terminando de
repente, minutos depois da arremetida.

— Mas isso não pode ser! Em todos esses instrumentos no mesmo instante?
Você tem certeza absoluta? Não teria sido uma distração, um equívoco? .
— Tenho tanta certeza quanto Gusmão! Se engano houve, só posso admiti-
lo nos meus cálculos de tomada, mas nunca na leitura dos instrumentos!

Nesse momento da torre veio nova ordem de descida. Todos retornaram aos
seus postos e o comandante concentrou-se mais uma vez na tomada de
campo, depois do grande círculo que realizava. O possante quadrimotor foi
perdendo gradativamente altura, comportando-se agora todos os
instrumentos convenientemente.

Ao entrar na reta final a névoa e a garoa dissiparam-se, dirigida a


aeronave para o balizamento da pista.

Refeito do susto, Gusmão não se cansava de bater e de examinar os


altímetros e os instrumentos de direção, procurando explicação plausível
para o caso. A nenhuma conclusão chegou e no momento resolvera dar
tudo por encerrado, quando lhe falou Eduardo:

— A coisa é muito simples. Relatei pormenor por pormenor, sugerindo o


teste dos aparelhos, tanto em relação aos altímetros 13

como em relação aos compassos. Sei que eles não vão acreditar, mas para
isso invoco o seu testemunho. Foi você quem notou o descontrole em
primeiro lugar e apurei tudo com segurança. Pegue isto, leia com toda
atenção e depois assine.

Gusmão apanhou a prancheta, onde estava o formulário mi-meografado, e


correu os olhos sobre as anotações.

— É exatamente isso. O diabo é que vamos ser tidos como mentirosos. Os


instrumentos devem estar com defeito, ou seria impossível ter acontecido a
coisa!

— Também acho, mas — hesitou um instante — defeito em todos de uma só


vez? Não dá sentido e confesso que estou encabu-lado. Vamos lá!
Entregarei o relatório e procurarei ter calma quando as perguntas irônicas
vierem. Nada mais podemos fazer.
Ao chegar à sala do tráfego o aviador viu logo nos funcionários certo ar de
interrogação, notando que a desobediência das instruções fora observada
por todos. Pouco se deteve na sala, es-quivando-se de comentar a razão da
arremetida.

Estava por demais cansado para considerar o fato e pediu a Gusmão que
também se abstivesse de explicações, limitando-se a entregar a folha de
vôo.

Todavia, ao passar junto do encarregado não pôde furtar-se a um


esclarecimento.

— Sei que vocês estranharam o acontecido, mas não tive culpa alguma. O
meu relatório é completo e amanhã cedo poderei prestar outras
informações, caso o D.A.C. queira saber pormenores. Pedi exame e
substituição de vários instrumentos e amanhã saberemos o que houve com
eles. Gusmão já assinou e poderá também prestar declarações.

Dando assim, provisoriamente, tudo por encerrado, Eduardo afastou-se da


sala do tráfego, procurando a saída do aeroporto. A violência da chuva
amainava, e o vento, cada vez mais frio, ia limpando a atmosfera.

O automóvel ali estava no estacionamento em frente ao aeroporto e em


alguns minutos o aviador guiava com pressa, em dire-

ção ao seu apartamento.


14
*

Nessa noite, sem levar em conta o cansaço que o possuía, o comandante


Eduardo Germano de Resende não conseguia adormecer. A sensação era
de insegurança e envolvia-o como uma teia avassaladora. Irritava-se ao
reconhecer a impossibilidade de encontrar qualquer explicação para o
fato, que se impunha à sua experiência profissional como uma realidade
absurda e ilógica.

A luz de cabeceira estava ligada e os cigarros acumulavam-se no cinzeiro,


ao lado do livro abandonado.

Por mais que se ajeitasse, Eduardo não conseguia encontrar na cama uma
posição que lhe desse tranqüilidade. Compreendeu que o desconforto não
era material, mas sim pura conseqüência de seu estado de espírito.

“Aquilo” teria sido uma ilusão provocada pelo cansaço acu-mulado pelas
vinte e duas horas de vôo?

Sabia que não podia aceitar tal solução.

Quem observara o início do descontrole tinha sido Gusmão.

O primeiro-oficial era um excelente piloto e nunca se desviara um


milímetro sequer de sua conduta.

Esmagando, nervoso, no cinzeiro, o último cigarro que tinha à mão,


Eduardo notou que já estava sendo traído por seu raciocí-

nio. Afinal de contas, que é que tinha que ver a conduta de Gusmão com as
loucuras dos instrumentos de direção e altitude?

O que o desconcertava é que a pane2 se verificara também nas duplicatas


dos instrumentos. Como séria isso possível? Estariam ambos loucos, êle e
Gusmão?
Desistiu de pensar no mistério e afogou-se no travesseiro, disposto a
dormir. Mas durante toda a noite não conseguiu libertar-se da sensação de
insegurança, tendo a impressão, entre a vigí-

lia e o sono, dentro da madrugada, de que se achava à beira de um


despenhadeiro, temendo ser empurrado por mãos. desconhecidas, de um
instante para outro.

Quando acordou, Eduardo ainda sentia o mesmo mal-estar 2Pane, parada,


por defeito do motor de avião, automóvel, motocicleta, etc.

Adaptação do francês, panne. (Nota do “Clube do Livro”).


15
angustiante. Buscando esquecer o incidente da véspera, procurava deixar a
respectiva solução para o momento oportuno, pois tinha certeza de que
seria chamado pelo chefe da manutenção, assim que os instrumentos
fossem conferidos. De antemão, sabia também que os instrumentos estavam
em ordem, pressentimento esse que contribuía para aumentar seu mal-estar.

Voava desde a adolescência. Nascido em uma cidadezinha do interior, nas


proximidades de um campo de pouso, sempre se interessara por aviões, a
ponto de ter deixado os estudos superiores, numa faculdade de engenharia,
para dedicar-se exclusivamente à aviação.

E nem se diga que voasse por necessidade.

Eduardo Germano era filho de pais abastados, de situação sólida, que


poderiam proporcionar-lhe outro meio de vida, talvez mais rendoso e
compensador, administrando a fazenda que possuíam no norte do Paraná.
O moço, entretanto, tinha um encontro marcado. A aviação bem cedo
interferira em sua vida, desde sua infância, manifestando-se das maneiras
mais variadas possíveis.

No princípio, ao tempo da conquista da Abissínia, as revistas, os jornais e


as coleções. Guardava e recortava todas as fotografias de aviões que
estivessem ao seu alcance, sabendo com apenas oito anos, para espanto
dos familiares, distinguir um biplano Fokker de um aparelho de caça
Camel. Depois, os livros e os aero-modelos.”

Começou com uma ensebada história da aviação, presente de um tio


milionário e excêntrico, revoltando-se contra o autor alemão que nem
mesmo mencionava o nome — para êle sagrado — de Alberto de Santos
Dumont. Seus conhecimentos aperfeiçoaram-se. Com doze anos, sabia
dizer quais os recordes de velocidade, descrevia com pormenores os
incidentes da travessia de Lindbergh, discutia os feitos de Bleriot e Balbo,
conhecendo as características dos aviões do almirante Byrd e de Sacadura
Cabral.
Depois, ainda a descoberta de Saint-Exupéry. Seus livros eram os
companheiros de todas as horas, deixados de lado somente pelo manual de
vôo.

Os aero-modelos foram sua última fase. Construiu miniaturas de aviões de


todos os tipos e de todos os sistemas de propulsão.

Desde o clássico modelo de elástico embebido em glicerina, até o de 16

motor a gasolina. Do Demoiselle ao DC-3, do Espírito de São Luis ao


Waco cabine, do Thunderbolt ao Spitfire.

Depois desse período veio a pilotagem. Percorreu toda a escala de


aparelhos que teve ao seu alcance, desde o minúsculo Pi-per até o veloz
Bonanza, só sossegando quando ingressou em uma companhia de
navegação aérea como co-pilôto.

Integrara-se em seu elemento.

De co-pilôto a comandante foi uma trajetória rápida, não faltando mesmo


os invejosos que dissessem que a promoção fora devida aos favores de um
dos acionistas da companhia, amigo de seu pai. Mas, em verdade, todos
sabiam que isso era inexato. A capacidade de Eduardo era bem conhecida,
e dois anos depois das coberturas das rotas internas passou a integrar a
equipe dos vôos internacionais.

Saiu do chuveiro para atender ao toque do telefone, cuidando que era do


aeroporto, e reconheceu o seu mau humor ao bater o fone depois de
verificar que se tratava de engano.

Vestiu-se à pressa, resolvendo enfrentar logo a situação.

Ao chegar, foi diretamente ao departamento de manutenção.

Eram quase dez horas da manhã e os instrumentos já deveriam ter sido


retirados e substituídos, não só em conseqüência do livro de bordo, mas
também de acordo com as anotações feitas na ficha de vôo. Assim que foi
visto por Braga teve a resposta, sem qualquer indagação.
— Os instrumentos que o senhor mencionou foram retirados e eu mesmo os
testei. Examinei peça por peça, desde os diafragmas até à regulagem dos
ponteiros, inclusive os tubos de vácuo. Não notei defeito de espécie alguma.
Em todo caso, tendo-se em conta seu relatório, todos os aparelhos foram
substituídos, conforme o nosso sistema de segurança.

— Já desconfiava do resultado dos testes. Pois embora a alteração tenha


durado mais de um minuto, quando arremeti, segundos depois todas as
indicações voltaram à normalidade. Franca-mente, meu caro: não sei o que
pensar do incidente.

— Estou a par do sucedido, comandante. Além de ver a ficha de vôo e o


livro de bordo, conversei com Gusmão. Êle já esteve aqui 17

bem cedo e demonstrou certa preocupação quando lhe contei que todos os
instrumentos estavam em ordem.

O aviador verificou, então que não era o único obsidiado pelo caso.
Gusmão também deveria estar, pois se assim não fosse não teria se
levantado tão cedo, depois do longo vôo, e vindo para a manutenção, a fim
de saber o resultado dos exames.

O comandante Monteiro, responsável pelo tráfego, saiu de sua sala e


acenou para os dois tripulantes, convidando-os para entrarem.

— Entre, comandante! Entre, que vou lhe contar um fato curioso. Mas
antes quero que me dê uns esclarecimentos. — E, depois de uma pausa: —
Vi a folha de seu vôo de ontem e determinei a substituição imediata dos
instrumentos. Gostaria, entretanto, de ser posto a par de outros
pormenores. Diga-me: foi a primeira vez que isso se verificou em sua
carreira de piloto?

Eduardo hesitou, de início, mas resolveu desabafar:

— Somente aconteceu esta vez. Do contrário eu teria comunicado. Foi o


fato mais inexplicável a que assisti em toda a minha carreira de aviador, e
estou dando tratos à bola para explicá-lo. Se Gusmão não estivesse ao meu
lado, admitiria até que fui vítima de uma alucinação causada pela fadiga.
Gusmão é testemunha e se não fosse isso suspeitaria de minha sanidade
mental. Foi tudo um absurdo, uma coisa ilógica. Como e por que até o
girosin ficou descontrolado?

O comandante Monteiro levantou-se da poltrona giratória, apanhou uns


papéis sobre a mesa e dirigiu-se em atitude confor-tadora para Eduardo:

— Vocês estavam aterrando mais ou menos pelas sete horas, não é?—
Exatamente, dezoito horas e quarenta minutos — informou Gusmão. —
Gravei até o minuto exato.

— Pois bem. Ouçam lá: nessa mesma hora, apenas uns dez minutos antes,
um DC-3 de outra companhia, regressando de um vôo doméstico, registrou
fato idêntico.

Eduardo levantou-se acercou-se da mesa demonstrando agitação, não só


não acreditando no que. acabava de ouvir, mas também julgando que se
tratava de uma brincadeira de mau gosto.
18
— Acalme-se, Eduardo, e leve a coisa mais a sério ainda, pois não se pode
admitir, em condições de saúde mental perfeita, a repetição do mesmo fato,
sobre o mesmo aeroporto, na mesma hora.

Também estou preocupado, pois é coisa extraordinária uma epidemia


contagiosa de defeitos em quase uma dezena de instrumentos da mais alta
precisão, em dois aviões distintos.

Eduardo e Gusmão ficaram sem fala, percebendo que o chefe das


operações não estava brincando.

— Veja a folha de vôo do DC-3. Em coincidência, a sua e a do Renato —


esse é o nome do outro piloto — foram entregues na mesma hora. E as
mesmas anotações surpreenderam os que as viram. A única diferença é que
vocês estavam entrando na reta final, ao passo que o bi-motor estava bem
em cima da cabeceira, a poucos metros do solo, razão pela qual Renato
não arremeteu, completando a aterragem.

Eduardo examinou com Gusmão a ficha de vôo e o espanto estampou-se-


lhes nas respectivas fisionomias, tornando o piloto a sentar-se ao lado do
primeiro-oficial ao fim da leitura.

— E os instrumentos desse DC-3? Foram retirados e examinados?


Apresentavam algum defeito?

— Nada, absolutamente nada! Como no seu caso, foram tes-tados e


substituídos.

— Temos que admitir uma ocorrência idêntica nos dois aparelhos, o que
nos leva desde logo a buscar a mesma causa, que por sua vez não pode ser
encontrada no interior dos aviões. Pela coincidência da hora, é inegável
que ambos os fatos tiveram uma única origem. Mas qual será essa origem?

Gusmão, silencioso até ao momento, resolveu quebrar seu mutismo:


— O senhor falou com o comandante do DC-3?

— Não. Não consegui localizá-lo. Êle apenas reportou o vôo e decolou hoje
bem cedo rumo a Belém. Fiquei sabendo no balcão da companhia que só
regressará daqui a uns dois ou três dias.

— É uma pena — acrescentou Eduardo. — Gostaria de conversar com êle.


Diga-me uma coisa mais, Monteiro. Além de nós, quem mais ficou sabendo
da coincidência?

— Que eu saiba, nós e mais duas ou três pessoas aí do tráfe-19

go. Mas não deram importância alguma, pois desconhecem o


funcionamento dos instrumentos e acham coisa de rotina o relato de
defeitos. Na manutenção, ninguém sabe, pois os serviços da outra
companhia são do outro lado do campo.

— De uma coisa agora estou certo. Podemos firmar um ponto de partida


na pesquisa para a solução. A causa foi única e não deve ser procurada
nas aeronaves. Vocês não acham que estou certo?

— Não tem dúvida, — concordou Monteiro — mas qual a causa externa


que poderia ter agido sobre os dois aparelhos?

— Esse é o mistério. Poderíamos falar em interferência. Interferência


elétrica ou magnética, mas isso não dá o menor sentido.

Todos os instrumentos são blindados e principalmente o girosin é imune de


qualquer interferência, pelo menos conhecida...

— E desconhecida? — aparteou o primeiro-oficial.

II — NOITE SOBRE O ATLÂNTICO

Esse foi o primeiro fato da cadeia misteriosa de incidentes da qual passou


a ser personagem principal o comandante Eduardo Germano de Resende e
que, pela repetição e aspectos absurdos, veio dentro em breve a
transformar-se em uma inimaginável aventura. Os dias passaram-se.
Eduardo considerou o fenômeno — como se habituou a no-mear a
ocorrência — sob todos os ângulos possíveis, não chegando a conclusão
racional de espécie alguma. Conversou com o comandante do DC-3, que
não deixou de estranhar o fato mas não lhe deu maior importância, pois,
envolvido em complicações sentimentais, pouco tempo tinha para tentar a
solução de problemas insolúveis.

Continuando em suas pesquisas, o piloto procurou obter informes


meteorológicos seguros sobre o tempo naquela tarde, inteirando-se de que
tudo era normal, desde a queda repentina da temperatura até à velocidade
dos ventos, não tendo sido verificadas alterações atmosféricas incomuns,
tais como vendavais, tempestades magné-

ticas ou coisas equivalentes. Examinou a seguir todos os informes dos vôos


daquele dia e nada também apurou que pudesse ser tido como
anormalidade. Ao fim de uma semana, resolveu dar tudo por 20

encerrado.

Mas, nos vôos seguintes, passou a prestar atenção invulgar aos altímetros,
aos compassos e ao girosin, procedendo até a um registro metódico das
marcações desses instrumentos, considera-

ção essa fora das regras convencionais.

Todavia, nada mais de anormal se verificou.

O segundo fato, ou o segundo fenômeno — como o nomeava Eduardo —


manifestou-se de forma diferente.

Naquele crepúsculo do mês de junho haviam decolado de Recife, última


etapa continental antes da travessia do Atlântico, com os compassos
ajustados no rumo de Dakar, nas costas africanas.

O aparelho era o mesmo tipo de quadrimotor e deveria cobrir a rota em


mais ou menos oito horas, dependendo da direção do vento e das condições
atmosféricas.
A tripulação compunha-se dos dois oficiais — Nunes e Cardoso — do
navegador Gomes, do rádio-telegrafista Sertório e dos comissários Leila e
Gama.

A aeronave ia lotada, utilizando-se tanques adicionais nas extremidades


das asas.

Os passageiros, quase todos nacionais, eram na maioria mé-

dicos que se dirigiam à Europa para um congresso científico, como


delegados do governo. Além deles e de suas famílias, viajavam também três
figurões políticos, alguns comerciantes e uma conhecida artista de cinema,
que monopolizava os olhares masculinos, inclusive do próprio comandante.

Quanto aos demais, cinco ou seis eram novos-ricos.

O quadrimotor decolou com forte vento pela proa, vencendo a altura já


sobre o mar, com facilidade, não se ressentindo do peso máximo que
levava.

A noite já baixara e as primeiras luzes iam ficando para trás, cedendo


lugar à escuridão do oceano.

Para frente e para cima, tudo se mostrava tranqüilo. As informações


meteorológicas previam tempo frio e estável, com correntes contrárias à
altura de três mil metros. A tripulação conferia os instrumentos e revia a
navegação, procurando Eduardo atingir o mais depressa possível a altitude
de cruzeiro para rendimento máximo dos motores. Quando chegou a quatro
mil metros, estabilizou a ae-21

ronave, tornou a conferir a rota e, depois de uma hora de pilotagem


mergulhado dentro da noite, ligou o piloto automático e foi ter com o
navegador, deixando Nunes e Cardoso vigiando o vôo.

Estavam na quarta hora de vôo oceânico e já tinham deixado para trás,


sem erro algum de navegação e de cálculo da deriva, os rochedos de São
Paulo e, mais para trás ainda, o posto de rádio de Fernando de Noronha,
que confirmara as informações atmosféricas favoráveis.
O piloto automático desempenhava bem suas funções; e Nunes, sempre na
cabine, vigiava os instrumentos, conferia a cobertura da rota e equilibrava
periodicamente a distribuição do combustível.

O recinto reservado aos passageiros estava às escuras, que-brada a


escuridão apenas pelas luzes individuais, como também acontecia no
compartimento da classe turística. Leila, em um dos últimos assentos,
dormitava, enquanto o outro comissário conver-sava no último banco com
a artista de cinema. Eduardo, na parte destinada à tripulação, subira ao
leito superior e procurava repousar, tendo antes pedido a Nunes que o
chamasse quando atingis-sem o ponto de retorno, o meio da travessia.

Foi aí que o segundo incidente começou.

Desta vez, entretanto, a tripulação não foi a única testemunha. Todos os


passageiros viram e sentiram o fenômeno e o pânico só foi evitado pela
pronta interferência de Eduardo que, auxiliado pela tripulação, encontrou
uma justificativa verossímil, mas falsa, a fim de explicar a ocorrência.

A coisa durou cerca de dez minutos, desaparecendo da mesma forma como


surgiu.

Todos verificaram o fato de forma semelhante. Apenas, o comandante e o


primeiro-oficial viram algo mais, também visto pela comissária, sem poder
aquilatar a relação desse pormenor com o fenômeno principal.

Eduardo estava deitado e, depois de tirar o paletó, procurava cobrir-se


com a manta. O frio era intenso dentro da cabine e a pressurização não
melhorava a temperatura.

Fechara os olhos, sentira o embalo confortador e monótono dos motores,


compenetrando-se de que tudo ia bem, quando per-22

cebeu uma claridade, a princípio fraca e depois mais intensa, que começou
a brotar do lado de fora e em seguida invadiu a cabina.

Essa claridade era primeiro pàlidamente azulada e depois foi se tornando


de tonalidade branca, lembrando a luz incandescente do magnésio.
O aviador custou a entender o que estava se passando. Pensou em luar,
mas logo ficou sobressaltado, saltando incontinenti do leito. Entrou na
cabina e já encontrou toda a tripulação afobada, conferindo os
instrumentos. Nunes desligara o piloto automático, segurava os comandos
com firmeza, e procurava localizar a causa da violenta luminosidade que a
essa altura invadira inteiramente o aparelho.

Eduardo tomou o lugar de Cardoso e conferiu num relance todos os


instrumentos: os quatro motores funcionavam em sincronismo absoluto.
Todas as temperaturas e pressões estavam normais, o mesmo sucedendo
com todos os outros instrumentos de navegação.

O rádio-telegrafista e o navegador examinaram seus aparelhos e a posição


foi conferida. Tudo foi encontrado em ordem, não havendo motivo para
pânico.

A luz era de um azul opalescente e não só se infiltrava pelo interior da


aeronave como também iluminava intensamente sua estrutura externa,
como se o quadrimotor estivesse sendo atingido pelo foco de possantes
refletores. A tripulação, perplexa, procurava encontrar a causa externa do
fenômeno, tentando dominar o assombro.

— Deus do céu! Que estará acontecendo?

— Aqui dentro, tudo está em ordem. A luz vem de fora, deve estar se
passando algum fenômeno atmosférico desconhecido!

Curvado sobre o painel e prevendo o pânico entre os passageiros, o


comandante tomou as primeiras providências:

— Vão lá atrás e procurem acalmar os passageiros! Expli-quem que no


avião tudo está em ordem e que não existe nenhum incêndio a bordo.
Inventem qualquer explicação. Leila, diga ao comissário que vá até à
cauda e examine tudo por lá, deixando os extintores de incêndio fora das
braçadeiras. Vamos! Corram! Não percam um segundo, que não sabemos o
que está acontecendo e o 23

que poderá acontecer!


Leila e Sertório saíram precipitadamente da cabina, ouvindo as últimas
recomendações de Eduardo.

— Digam que o que está acontecendo é comum por estas alturas. Que isso
acontece toda vez que um avião em grande altitude e em grande velocidade
penetra em uma camada de ar ionizado.

Digam que isso é comum e que não se assustem!

De fato, pouco faltou para que o pânico desarvorasse os passageiros. No


compartimento central, a situação era pior ainda.

De início, pensaram em luar filtrado pela altitude, mas instantes depois


alguém lembrou a possibilidade de um incêndio, surgindo grande confusão.
Ao manifestar-se a luminosidade, somente uns quatro ou cinco passageiros
estavam acordados. Destes, dois liam e os dois outros jogavam cartas.
Assim que a claridade brotou, quebrando a escuridão da cabina, todos se
atiraram às janelas, procurando localizar sua origem, chamando a atenção
dos demais, que foram acordados perplexos. Quando a claridade atingiu o
auge a idéia de incêndio tinha sido admitida, começando a surgir reações
de todos os tipos.

A velhinha de óculos escuros começou a gritar por socorro, ao mesmo


tempo que muitos homens, completamente descontrolados, puseram-se a
correr pela cabina, ajustando coletes salva-vidas e tentando desamarrar os
botes de ar comprimido que se achavam nas extremidades do corredor. A
ausência momentânea dos comissários contribuiu para aumentar o pavor,
certos quase todos os passageiros de que o quadrimotor já se consumia em
chamas.

A tripulação agiu como devia. Depois de esclarecimentos gerais da


situação, proferidos em altos brados pelo comissário e por Leila, que
pediam calma, esclarecimentos individuais foram dados, procurando
demonstrar que tudo ia bem a bordo.

A velhinha de óculos chegou a ser sacudida por Leila, ao passo que o


comerciante gordo e de gravata borboleta quase teve de ser agarrado pelo
comissário, pois de forma alguma queria largar o extintor de incêndio.
— Mantenham-se em seus lugares, por favor! O avião está em ordem e o
que está se passando é um fenômeno muito comum, devido à ionização do
ar na altitude em que nos encontramos. Não 24

se assustem, que tudo isso é normal, Não há nenhum perigo! Calma, por
favor!

Logo que a explicação foi dada e incutida veementemente no ânimo dos


passageiros mais renitentes, o ambiente retornou à normalidade, sem que
se procurasse entender o fenômeno. Somente alguns sabiam o que era ar
ionizado, e mesmo estes não cuidaram de verificar a exatidão da
justificativa. De uma forma ou de outra a calma voltou à cabina, atirando-
se todos às janelas, a fim de con-templar a luminosidade.

Eduardo e Nunes, atentos aos comandos, não encontraram a causa do


fenômeno.

Mas nessa fase final, quando a claridade parecia diminuir, verificou-se


outro acontecimento inexplicável.

Bem em cima da aeronave, ainda no meio da luz esbranquiçada que


circundava o quadrimotor como uma névoa, impedindo a visão antes nítida
das estrelas, viu-se um círculo de luz mais distinto ainda. Esse círculo não
estava fixo, nem acompanhava o movimento da aeronave. Com um halo
secundário ao redor, des-locava-se com fantástica velocidade
perpendicular, como se viesse em direção ao teto da fuselagem. Eduardo
não teve tempo de examinar a aparição, mal contendo o assombro
segundos depois, quando esse círculo de luz radiante como que estacou
acima e ao lado da fuselagem, e a seguir, numa fração de segundo,
tomando a direção da parte traseira do aparelho, saiu do campo visual dos
tripulantes.

Ao mesmo tempo, sempre em frações de segundo, a luminosidade começou


a decrescer, como se comandada pela ação automática de um reostato3.
Em menos de um minuto, eclipsou-se, dissipou-se a névoa luminosa,
ficando tudo como antes, imerso em escuridão mais profunda ainda e
reaparecendo as estrelas em seus primitivos lugares, como se nada tivesse
acontecido.
Logo que Eduardo divisara o halo de luz mais intensa com a respectiva
movimentação fantástica, sem dizer nada, olhara para Nunes, procurando
verificar se também êle vira a aparição. O pri-3Reostato ou reóstato,
aparelho que permite fazer variar a intensidade da corrente elétrica e que
se utiliza para manter constante o fluxo do circuito; estabili-zador de
corrente elétrica (Nota do “Clube do Livro”).
25
meiro-oficial todavia não dava demonstração de ter notado esse pormenor,
absorto na vigilância dos instrumentos. Ia indagar de Nunes, quando Leila
entrou correndo na cabina:

— Eduardo, eu estava lá atrás, espiando o fenômeno, quando vi uma coisa


incrível...

— Já sei. Não precisa falar. Você viu uma espécie de bola luminosa passar
voando para trás em grande velocidade, não foi?

—- Isso mesmo. Você viu também? Que seria aquilo? Não seria um
cometa? Um meteoro?

Podia ser uma explicação razoável para o caso. Quem sabe se o avião
tinha sido interceptado pela queda de um aerólito? É mais do que sabido
que esses corpos celestes, de origem desconhecida, ao penetrarem na
atmosfera terrestre se incendeiam devido à velocidade e ao atrito com o ar,
provocando apreciável luminosidade até se consumirem. Não teria sido
isso?

Eduardo discutiu essa possibilidade com a tripulação, esquecendo-se


todavia do tempo de duração da luz. Se houvessem passado nas
proximidades da trajetória de um bólido ou de um meteoro, a luz teria sido
momentânea, com duração de fração de segundos e pelo menos com algum
deslocamento do ar. A ilumina-

ção durara, porém, quase dez minutos e não houvera turbulência


atmosférica de espécie alguma, não tendo a aeronave sofrido a mí-

nima oscilação.

Foi aí então que o comandante Eduardo se lembrou do incidente de mais de


um mês atrás, sobre o aeroporto de São Paulo.

Deixou de comentar o fato e ficou quase meia hora impassí-


vel, mergulhado em profundas cogitações, alheio a todos os comentários
desencontrados que surgiam entre a tripulação.

O vôo decorria tranqüilo.

Leila e o comissário preparavam o café e agora a maioria dos viajantes


estava acordada.

Eduardo, acabara de cruzar o compartimento da classe turística, quando


foi chamado por um dos passageiros.

Voltou-se e localizou um senhor grisalho, de aspecto afável e dono de uns


óculos de aro de ouro com uma das lentes bastante espessa.

— Senhor comandante, gostaria de saber uma coisa.


26
O aviador sentou-se na poltrona vizinha, vaga no momento:

— Pois não, estou às suas ordens.

— Bem, o que eu queria saber relaciona-se com o fenômeno a que


assistimos. Aquela luminosidade acontece com freqüência?

Será realmente do ar ionizado?

Antes de responder, Eduardo olhou discretamente para os lados e viu que


apenas os dois meninos, nas poltronas dé trás, prestavam atenção à
conversa. Nos assentos do lado, o casal jogava uma partida de damas e os
ocupantes do banco em frente dormiam.

— Falando com toda franqueza e deixando de lado a explica-

ção que lhe foi dada, confesso que nunca vimos nada igual.

— Então o senhor admite que foi a primeira vez?

— Sim. Foi a primeira vez e confesso mais que não temos certeza da
explicação dada.

Nesse momento, o homenzinho segurou com delicadeza o braço do aviador


e esticou-se todo, buscando altura para indagar em voz baixa, no ouvido do
comandante:

— O senhor acredita na existência de discos-voadores? Houve, apenas,


uma troca muda de olhares. Eduardo nada disse, pois já temia a indagação.
Nada respondeu e tomou a direção da cabina de comando.

Cruzando com Leila que saía com uma bandeja de café, pediu-lhe
discretamente a relação dos passageiros.
Examinou as três folhas seguras na prancheta, tentando identificar o
homenzinho de óculos de aro de ouro. Os lugares eram numerados e fácil
foi a identificação. Lá estava: “Augusto-Michel Vaugirard, professor
universitário, brasileiro, casado, sessenta e dois quilos”.

Com efeito, sua previsão fora exata. O homem era um especialista, como
desconfiara ao ouvi-lo referir-se ao ar ionizado. Falara nesse fenômeno
com absoluta naturalidade. Na certa, deveria ser professor de física ou de
química.

Quase automaticamente, Eduardo sentou-se no lugar de comando, pela


força do hábito ajustou o cinto de segurança, examinou o painel, conferiu a
distribuição do combustível, resolvido a ficar em seu posto até a última
etapa.
27
O vôo continuava orientado pelo cérebro mecânico do piloto automático.

Eduardo, apenas, vigiava o comportamento das agulhas que se sustinham


nos mostradores, impelidas pelos fluxos que ema-navam do avião como se
fosse um monstruoso organismo vivo, ao mesmo tempo que tentava dar um
balanço aos acontecimentos.

Começou relacionando os dois fenômenos que presenciara. Um sobre São


Paulo e agora outro sobre o Atlântico. Dois casos absurdos e sem
explicação. Se no primeiro duas foram as testemunhas, já no segundo as
testemunhas atingiam a quase uma centena. E quanto à segunda parte do
último fenômeno — o aparecimento da bola ígnea — pelo menos quatro
pessoas haviam comprovado o fato. Êle, o professor, Leila, e, ao que
parece, também Nunes. Procurou ligar a luminosidade à passagem do
corpo não identificado. O círculo, ou a bola ígnea, tinha uma luminosidade
mais intensa ainda e podia assim ser tido como a fonte da claridade que
inundara o aparelho.

Era certo que somente vira o círculo durante meio tempo da claridade. Mas
também era certo que a luz começara a perder a força logo depois do
desaparecimento de tal bola ígnea.

O comandante Eduardo dispunha de razoáveis conhecimentos sobre quase


todos os fenômenos atmosféricos, mas não conseguia relacionar o que
presenciara com nenhum dos fenômenos conhecidos, ou pelo menos
convencionalmente descritos.

Através dos estudos de meteorologia, sabia da existência de nuvens quase


luminosas devido a intensa carga elétrica contida em seus bojos. Esses
tipos raríssimos de nuvens tinham sido observados em várias partes do
mundo e seu aparecimento precedia grandes tormentas e até mesmo
terremotos.

Mas — considerava Eduardo, imerso em seu solilóquio —


isso também não explicava o fenômeno que acabava de presenciar.

Não houvera agitação atmosférica nenhuma e nem por um milí-

metro o quadrimotor se desviara de sua rota. Considerou, então, a


possibilidade de uma extraviada aurora boreal, deixando de lado esse
raciocínio ao lembrar-se da passagem do corpo incandescente.
Relacionando esses dois fatos — a luz e a passagem do corpo
incandescente — logo lhe veio à memória a descrição de certo fenômeno
ocorrido em 1860, na India, na localidade de Dhurmsalla.
28
A rigor, foram vários fenômenos consecutivos. Em primeiro lugar, uma
queda demorada de pedras em formas de esferas, de tamanho reduzido.
Depois, uma precipitação de peixes e de certa substância vermelha não
identificada. Ainda em seguida, milhares e milhares de observadores,
apavorados, tinham visto surgir uma nítida mancha escura na superfície do
sol e propagar-se violenta luminosidade — pois tudo se passara ao
entardecer — tida como aurora boreal.Eduardo considerou, examinou e
relacionou todas essas ocorrências, inclinando-se mais para a hipótese da
passagem de um meteoro, sem levar em conta o desvio ilógico de sua queda
ao aproximar-se da aeronave.

Estava bem ciente de que esses corpos celestes, de várias magnitudes, se


projetam aos milhares sobre a crosta terrestre, podendo um observador
atento anotar até a média de dez meteoros por hora nas noites tranqüilas,
calculando-se mesmo que caiam sobre a superfície de nosso planeta mais
ou menos seis mil toneladas, segundo os cálculos dos astrônomos.

Seus tamanhos variam, desde centésimos de milímetros —

raramente atingindo diâmetro de mais de um centímetro — até os de


proporção considerável, não pulverizados ao penetrar na capa protetora da
atmosfera.

Sabia que esses corpos produzem vários tipos de fenômenos luminosos,


devido não só ao atrito violento no rompimento das camadas mais altas da
atmosfera, mas também ao gás vaporizado que envolve o núcleo dos
meteoritos, podendo a luminosidade em alguns casos atingir até quatro mil
velas.

Todavia, Eduardo considerava que a explicação caía pela base. Pois se os


meteoritos produzem extraordinários fenômenos luminosos, isso ocorre nas
camadas superiores da atmosfera, bem acima de cem quilômetros de
altitude, desaparecendo normalmente entre cinqüenta e setenta quilômetros
de altura. Ora, a aeronave estava muito abaixo e não podia assim ter sido
envolvida pela luminosidade, admitindo-se a passagem de um desses
corpos cósmicos.

Restava ainda um ponto que destruía por completo tal hipótese: o


fenômeno durara quase dez minutos, e seria absurdo supor que o meteoro
tivesse seguido o avião.
29
*

O comandante Eduardo resolveu interromper essa ordem de pensamentos.


Compenetrou-se de que não poderia explicar a ocorrência pelo exame dos
fenômenos atmosféricos e celestes conhecidos, apelando para um tipo mais
fantástico ainda de raciocínio.

Ajustou o sincronismo do motor número dois, verificou as pressões e


temperaturas e consultou o relógio. Tinham pouca horas para divisar a
costa africana pela proa. O Atlântico estava sendo vencido.

Acomodou-se melhor na poltrona, soltou o cinto, preparandô-se para


encarar a questão por um prisma absurdo.

O professor de óculos de aro de ouro tinha indagado dele se acreditava na


existência dos discos-voadores.

Não respondera, e agora, pela primeira vez, resolvia encarar friamente a


questão.

O comandante Eduardo Germano de Resende sempre fora cético nesse


assunto. Não que ignorasse — nesse ano de 1958 — o que vinha
acontecendo em todas as partes do globo, mas sim porque considerava
todos os relatos confusos e divergentes, cuidando que tais aparelhos
deveriam ser novas armas de guerra ultra-aperfeiçoadas, não apanágio
exclusivo do ocidente, mas também dos povos orientais.

Reconheceu consigo próprio que o fenômeno poderia ser descrito como a


passagem de um disco-voador e que deveria assim enfrentar essa hipótese,
por mais fantástica que pudesse parecer.

Logo que as aparições de discos-voadores começaram a ser noticiadas, o


moço tratara de analisar e colecionar tudo o que lia a esse respeito. Depois
de certo tempo e pela repetição dos relatos, desinteressara-se da questão.
Contudo, três casos o haviam impressionado sobremaneira, a ponto de
abalarem o seu ceticismo. O primeiro foi exatamente a primeira notícia que
se teve no mundo — pelo menos no mundo moderno — sobre o
aparecimento de tais aparelhos. Os jornais debateram o assunto e a
ocorrência foi descrita milhares de vezes, em todas as latitudes e em todas
as línguas, iniciando-se o que já chamava — a era do disco-voador. Tal
caso fora o ponto de partida 30

e merecia ser relembrado:

Em 21 de junho de 1947, o comerciante Kenneth Arnold, da cidade de


Boise, Estado de Idaho, nos Estados Unidos, voava em seu aparelho
particular nas proximidades do monte Rainier, no Estado de Washington,
costa do Pacífico. Voava de Chehalis a Yaki-ma, desviando-se alguns graus
de seu roteiro, a fim de efetuar pesquisas na região do monte Rainier,
visando a localização de certo avião-transporte desaparecido naquele
ponto. Em dado momento, ao contornar em grande altitude os contrafortes
do maciço gelado, coberto de neves eternas, divisou, destacando-se contra
os flancos brancos da encosta, uma formação estranha de nove objetos que
voavam em linha, com a mesma formação com que se deslocam os patos
selvagens.

Mr. Arnold fixou melhor a vista e observou que os objetos tinham forma
circular, como um pires ou um prato, do tamanho aproximado de dois C-54,
deslocando-se em velocidade fabulosa, por êle calculada em mais ou menos
três mil quilômetros horários.

Mr. Arnold estava na mesma altura dos objetos, a cerca de trinta ou


quarenta quilômetros de distância.

Descrevendo publicamente a visão, o comerciante relatou que os


misteriosos aparelhos eram metálicos e refletiam a luz solar como se
fossem espelhos.

O segundo fato que impressionou Eduardo e constituiu verdadeiro choque


para a humanidade inteira — pois apresentou resultados concretos — foi o
ocorrido a 7 de janeiro de 1948 sobre a base aérea de Godman, no Estado
de Kentucky, também nos Estados Unidos.
Nesse dia, um objeto não descrito foi localizado a grande altitude sobre as
instalações da base, evoluindo em velocidade incalculável, sem emitir um
único som. A aparição foi verificada pelas centenas de pessoas que se
achavam na base e examinada por grande número de instrumentos ópticos,
sem que se chegasse à conclusão alguma sobre sua natureza.

Para identificar a aparição, o coronel Hix, comandante da base,


determinou imediatamente a subida de três aviões a jato. A esquadrilha
decolou sem perda de tempo, sob o comando do capitão Thomaz Mantell,
ganhando altitude e procurando acercar-se 31

do corpo estranho, que permanecia na mesma posição, dando, às vezes, a


impressão de estar parado. Desenvolvendo a máxima velocidade, com toda
a força de sua turbina, o oficial desgarrou-se do grupo, buscando
aproximação maior do objeto não identificado.

Desde a decolagem estava em contato com a torre pelo rádio e ia


descrevendo o que via, à medida que se aproximava.

Informou então o capitão Mantell que a “coisa” era imensa e metálica,


calculando um raio de duzentos a trezentos metros de diâmetro, com
velocidade que avaliou em trezentos quilômetros horários. A seguir,
anunciou que ia acercar-se mais do fantástico engenho, imprimindo ao
avião velocidade superior. Mas, quando tentava aproximar-se, cessou
subitamente o contato pelo rádio, desaparecendo o avião da visibilidade de
terra devido à altitude em que se achava, nos limites máximos do teto
praticável. Não só o rádio silenciou, mas também o aparelho desapareceu,
tendo os outros dois aviões aterrado normalmente.

As pesquisas iniciaram-se em seguida e algum tempo depois, em uma larga


área, foram encontrados os destroços do avião, inteiramente destruído,
dando a idéia de que uma força tremenda e desconhecida lhe desintegrara
a estrutura. Examinaram-se os destroços em absoluto segredo, instaurou-se
inquérito e a morte do piloto foi anunciada oficialmente.

O terceiro caso que perturbara Eduardo e agitara o mundo científico foram


as declarações do inglês F. W. Potter, astrônomo amador, membro da
Associação Astronômica Britânica e da Sociedade Astronômica de
Norwich, relatadas em carta endereçada em 11 de outubro de 1953 ao The
Observer, jornal publicado na cidade de Norwich, na Inglaterra.

Declarou esse pesquisador que, enquanto observava os céus sobre


Norwich, mais ou menos pelas sete horas da noite, a olho nu, localizara
certo objeto vultoso e brilhante que se movimentava para sudoeste. De
início, supôs que se tratasse de uma estrela de grande magnitude, com luz
amarelada, passando, então, a focalizá-la por meio de um telescópio de
três polegadas e meia. Mas se surpreendeu ao apurar que não se tratava de
uma estrela, mas sim de uma espécie de aeronave em forma de disco, com
uma protuberância na parte central. Nessa parte central, viam-se aberturas
como es-32

cotilhas ou janelas, das quais saía intensa iluminação. Informou mais que o
objeto se mantinha sempre na mesma altitude e que não deixara no espaço
traço algum revelador do seu tipo de propulsão. Adiantou ainda que o
objeto permanecera sob a objetiva quase quatro minutos, estando o
firmamento límpido, estrelado, sem traços de nuvens, o que favorecera
sobremodo a observação.

Corroborando tais declarações, indicou Mr. Potter grande número de


habitantes de Norwich que testemunharam a ocorrência.

Mas de todas as notícias que Eduardo colecionara, de todos os fatos que


lhe chegaram ao conhecimento, o mais fabuloso, digno de revistas de
histórias em quadrinho e de filmes de ficção, fora aquele divulgado por
jornais dos Estados Unidos, de uma fantástica aventura nas cercanias da
cidade do México.

Diziam os jornais, em espetaculares manchetes, que certo indivíduo


chamado Roy L. Dimmick, de Los Angeles, ao cruzar uma região desolada
nas proximidades da capital do México deparara com os escombros de um
aparelho que seria um disco-voador. Examinando os destroços, que davam
a idéia de um engenho de pelo menos quinze metros de raio, teria o homem
descoberto os corpos dos tripulantes do disco, inteiramente carbonizados e
do tamanho de apenas vinte e três polegadas. As mesmas notícias
esclareciam ainda que as autoridades militares teriam se apoderado dos
destro-
ços, a fim de encobrir o achado sensacional.

Eduardo, como o resto da humanidade, não tomara a sério a notícia,


levando-a na conta de balela bem engendrada por um indivíduo de
imaginação, ávido de publicidade.

A essa altura, os pensamentos do comandante foram inter-rompidos pela


entrada do navegador, que lhe passou as informa-

ções meteorológicas recebidas de Dakar. Estavam já no fim da travessia e


de um momento para outro a mancha de luz deveria aparecer na linha do
horizonte, pela proa da aeronave.

Os cálculos pareciam exatos e logo mais uma tênue luminosidade destacou-


se junto ao horizonte, quebrando a escuridão em que se fundiam o céu e o
oceano.

Eduardo pediu que chamassem o primeiro-oficial e começou a conferir os


instrumentos para a aproximação e aterragem.

As luzes foram se acentuando e os primeiros pontos princi-33

piaram a destacar-se na mancha luminosa. Não havia tráfego sobre o


aeroporto e, com o vento soprando em direção ao oceano, a aproximação
seria direta.

O aviador foi preparando o quadrimotor para o pouso, redu-zindo a


rotação das hélices, tendo já desligado uma hora antes o piloto automático.

Dakar ia surgindo cada vez mais nítida. Já se distinguiam a ilha Madalena


e a protuberância do cabo Manuel. As luzes do aeroporto acentuaram-se
além da cidade, bem destacadas ao redor do farol giratório, adivinhando-
se a posição das pistas.

A imensa aeronave arrefeceu o ímpeto e foi se acercando da terra como um


pássaro cansado.

Os pneus cantaram na pista e o avião deslizou, agora amparado pelo solo


africano.
III — MADRUGADA EM DAKAR

A escala em Dakar levaria mais de uma hora. O quadrimotor tinha que ser
reabastecido e era hábito um rápido exame dos motores.Os passageiros
desembarcaram e espalharam-se pelo aeroporto, sentindo que as vitrinas
de curiosidades e lembranças, nos corredores internos das instalações,
estivessem fechadas e ausentes os vendedores. O único que ali permanecia,
impassível ante a noite e o sono, era o negrinho das esculturas de ébano,
dos poti-ches misteriosos, dos deformados totens tão característicos da arte
nativa dos africanos. Envolto nos panejamentos brancos de suas vestes,
parecia êle também, com o crânio ovalado, um pequeno deus estático na
penumbra que antecedia o salão de refeições.

O restaurante e o bar funcionavam parcialmente e a maioria dos


passageiros espalhou-se pelas mesas, ressentindo-se do ar morno e
abafado, preferindo a temperatura interna do avião.

Eduardo e Leila escolheram um canto mais vazio do bar e pediram


refrescos, ao mesmo tempo que o aviador examinava as últimas
informações meteorológicas vindas de Casablanca. Absorto no exame do
papel, não notou a aproximação furtiva do professor Augusto-Michel
Vaugirard.
34
Timidamente, perguntou este ao comandante se a demora ia ser longa e
aceitou o convite para sentar-se junto à mesa.

Eduardo dobrou o boletim meteorológico, já pressentindo às verdadeiras


intenções daquela aproximação discreta. Sabia qual o assunto a ser
abordado e, como também queria reexaminar outros aspectos da
ocorrência, provocou a questão sem maiores delon-gas. — O senhor me
perguntou no avião se eu acreditava na existência dos discos-voadores.
Não respondi, mas admito que esse assunto já me preocupou muito. Antes
de responder, gostaria de saber sua opinião. O senhor acredita neles?

O professor foi tomado de surpresa. A pergunta, de início, perturbou-o,


mas, segundos depois, assenhoreando-se da situa-

ção, respondeu, calmo:

— Bem, para um começo de conversa, não direi que acredito e nem que não
acredito. Nós, homens dedicados à ciência, só di-zemos que acreditamos
numa realidade palpável, quando temos conhecimento próprio e direto
dessa realidade; ou então quando encontramos dados sensíveis e racionais
que demonstrem a existência dessa realidade. Do mesmo modo que o
senhor me confessou, posso adiantar também que essa questão já me
preocupou demais e na verdade continua me preocupando. Antes, porém,
devo apresentar-me; dando-lhes pormenores sobre minha pessoa e minha
profissão, explicando-lhes assim porque me interesso e me interessei pelo
assunto.

Fêz uma ligeira pausa, voltou-se como que procurando o gar-

ção, e continuou:

— Sou professor de astrofísica numa universidade de São Paulo e tenho


ultimamente me dedicado a pesquisas no campo de energia nuclear.
Trabalho em estudos reservados, não tornados públicos devido à sua fase
experimental. Minha viagem foi dada como sendo para um congresso. Mas
a verdadeira finalidade dela é a compra de materiais para o
aperfeiçoamento de nosso laboratório atômico.

Parou de falar outra vez e, localizando o garção, pediu um refresco igual


ao que o aviador e a comissária tinham à sua frente.

— Vê pois o senhor que me dedico a vários ramos de pes-35

quisas e, portanto, desde o início, precisamente desde 1948, não poderia


deixar de considerar o fenômeno “disco” como uma das coisas mais sérias
de nossa época. Para mim, tudo começou por simples curiosidade. Depois,
os fatos foram se complicando e ao lado dessa curiosidade inconseqüente
começou a aparecer outro interesse, que eu chamaria de “espírito de
pesquisa”. Depois, ainda, movido por objetivos superiores, passei a
investigar as apari-

ções com ordenação e método, chegando a resultados espantosos.

Não direi que acredito na existência dos discos-voadores. Mas, res-


pondendo à sua pergunta, direi que não elimino a possibilidade de sua
existência. E é por isso que o fato que presenciamos está me preocupando.

— Já me compenetrei de que o senhor é uma autoridade no assunto, disse


Eduardo, e poderá auxiliar-me no esclarecimento do que nos aconteceu.
Que é que nos iluminou daquela forma?

Que foi aquela “coisa” mais luminosa ainda e que desapareceu na


retaguarda do avião?

O professor apanhou de vagar o copo de refresco que o garção colocara à


sua frente, girou a colher espalhando o açúcar depositado no fundo e,
medindo bem as palavras, respondeu pausada-mente:— Não sei dizer-lhe o
que se passou. Conheço várias dezenas de fenômenos atmosféricos, desde
os mais simples até aos mais complexos, mas não conheço nenhum que se
assemelhe ao que assistimos. Como o senhor deve também ter imaginado,
pensei em aerólitos, bólidos, auroras boreais, fenômenos de refração, até
em miragens, mas logo reconheci que nada disso poderia ter produzido
aquela fantástica luz côr de magnésio, e menos ainda a passagem daquela
bola ígnea de trajetória desigual. O fenômeno que mais se assemelha a
essa bola foi o observado pelos aviadores, durante a segunda guerra
mundial, nos vôos de grande altitude. O senhor, como piloto que é, já deve
ter ouvido falar nisso, com certeza.

Eduardo respondeu afirmativamente:

— Sim, por mais de uma vez. Os aviões em missões de grande altitude,


durante a noite, eram acompanhados às vezes por grande número de bolas
luminosas que não produziam dano algum aos aparelhos. Os norte-
americanos passaram a denominar a ocorrên-36

cia de foo-fighters e começaram as tais bolas a ser observadas e estudadas


no fim da guerra. As aparições foram sobretudo verificadas pelos
bombardeadores que em vôo noturno, saindo da Inglaterra, demandavam
os pontos centrais da Alemanha.

— Exatamente — concordou o professor — essas bolas de fogo, de


tamanhos variáveis, surgiam ora como glóbulos ora como manchas sem
rotundidade, acompanhando paralelamente os aviões durante longo tempo.
Foram também observadas sobre o Pacífico, por pilotos que se dirigiam em
missão de guerra às ilhas do Japão. Inúmeros estudos se fizeram e logo se
concluiu que nada mais eram senão produto da refração das próprias luzes
das aeronaves, causadas por certos tipos de camadas de ar que envolviam
as esquadrilhas. Anotados os fatos e elaboradas as estatísticas, comprovou-
se mais que essas aparições seguiam de preferência os aviões danificados
pelos combates aéreos e pelo fogo das baterias de terra. Concluiu-se,
então, que as estruturas desses aparelhos danificados criavam uma
turbulência anormal durante a passagem de certas correntes de ar,
quebrando o perfil aerodinâmico e possibilitando assim a gênese do
fenômeno, também auxiliado pela formação de partículas de gelo nas
grandes altitudes e pela con-densação do ar. Este agia como superfície
refletora.

— No nosso caso não se pode cogitar desse fenômeno — atalhou Eduardo


— a “coisa” que vimos passou por nós. A bola ou disco era uma só e o
avião viajava em condições normais. A temperatura fora era comum e não
havia gelo nas asas. Sinto-me vencido.

Em minha carreira, nunca vi nada igual ou parecido, e não acho


explicação lógica de espécie alguma.

— Sinto desapontá-lo, comandante. Ignoro também as causas do fenômeno


a que assistimos. Não sei se o senhor sabe, mas a Força Aérea Norte-
Americana, estudando seriamente as aparições dos discos-voadores, no
famoso projeto denominado blue-book, examinou mais de mil e oitocentos
casos, concluindo que oitenta por cento dos relatos foram devidos a
fenômenos atmosféricos naturais, ou ocorrências normais não identificadas
pelos observadores. Nessa última hipótese, muitos dos objetos tidos como
discos-voadores nada mais eram senão balões-sondas extraviados nas
grandes alturas, pedaços de papéis e vegetais elevados por cor-37

rentes ascendentes e redemoinhos, ilusões de óptica e defeitos vi-suais,


reflexos de luzes distantes, meteoros e ar ionizado, nuvens lenticulares ou
então simples corpos celestes em condições favorá-

veis de observação, como o planeta Vênus ou as Perseidas, e ainda


enxames de estrelas filantes. Todavia — continuou o professor —

em declarações prestadas em julho de 1952, o general Sanford, porta-voz


autorizado da Força Aérea Norte-Americana, divulgando os resultados dos
exames e inquéritos, afirmou que vinte por cento das aparições
investigadas permaneceram sem explicação plausí-

vel, constituindo mesmo fenômenos misteriosos e desconhecidos.

Penso que o nosso caso está melancòlicamente destinado a aumentar essa


percentagem inquietadora dos vinte por cento, o que vem dar certa
vantagem aos adeptos dos engenhos voadores. Não acha, comandante?

— O senhor mencionou o general Sanford. Sei também que inúmeras outras


personalidades de relevo no campo da ciência não negam a existência dos
discos-voadores. Li em algum lugar que o professor Hermann Oberth,
matemático e físico famoso, responsá-
vel pelos mais avançados estudos sobre navegação interplanetária, num
congresso internacional de astronáutica realizado em Inns-bruck, em 1954,
declarou que estava convencido da existência dos chamados discos-
voadores, não negando a possibilidade de terem origem extra-terrena.

O aviador já havia relacionado o fato recente com aquela primeira


ocorrência no céu de São Paulo. Ligou mais uma vez os acontecimentos e
resolveu contar ao professor, pondo-o a par de todas as minúcias.

Augusto-Michel ouviu silencioso e admirado o relatório e tentou uma


explicação:

— De fato. Mas não deixe de levar em conta que isso já poderia ter
ocorrido com outros aviadores. Existe em torno do assunto uma espécie de
mistério e certo receio muito compreensível, aliás, das testemunhas de tais
ocorrências, quanto à divulgação desses fatos. Receiam naturalmente ser
tachadas de mentirosas, imbecis, anormais ou mesmo pessoas sem
escrúpulos e desejosas de publicidade. Não se esqueça de que muitos
indivíduos alardearam ter visto coisas incríveis, tais como restos mortais de
homúnculos 38

de outros planetas encontrados em escombros de discos-voadores, não


faltando as histórias dos que chegaram a voar nessas naves do espaço. O
senhor já deve, por certo, ter ouvido falar naquele cidadão que garantiu ter
sido transportado pelo disco até o planeta Vênus...

Eduardo consultou o relógio. Vendo que dispunham ainda de muito tempo e


sabendo que Nunes e Cardoso se encarregavam de fiscalizar o
reabastecimento do avião, resolveu provocar o professor para aquilatar o
grau dos seus conhecimentos sobre o assunto, e também para esclarecer
uns tantos pontos que considerava insolúveis:— O senhor falou em
homenzinhos de outros planetas. Diga-me uma coisa, professor. Admitindo-
se a existência desses engenhos, qual poderia ser sua origem, de acordo
com o seu ponto de vista pessoal?

O professor parou de rodar nas mãos o copo vazio.


— Eu não disse que acreditava na existência dos discos-voadores —
retorquiu Augusto-Michel — disse que não afastava a possibilidade de sua
existência. Mas admito a pergunta. Partindo da existência comprovada
desses engenhos, posso declarar por exclusão que eles não vêm de parte
alguma do nosso planeta, não se tratando assim de engenho bélico ou
experimental de propriedade de qualquer povo da face da terra. Quando
faço esta afirmação me baseio em fatos concretos, originários das próprias
descrições que vêm sendo feitas desses objetos. Em primeiro lugar, a
velocidade.

Em segundo lugar, a altitude. E em terceiro lugar, os movimentos do


engenho.

Fêz uma pausa, aprumou-se melhor na cadeira e continuou no mesmo tom


prudente e sereno, como se estivesse desenvolvendo uma tese perante seus
alunos, em uma das aulas na Universidade:

— Como sabe o comandante, em dois pontos identifica-se a totalidade das


descrições, sem discrepâncias. Os discos cruzam o espaço em alturas
elevadíssimas e em velocidade espantosa, sem emitir um ruído sequer. E
contudo, até hoje, até os dias que cor-rem, não produziu a inteligência
humana nenhum aparelho que ul-trapassasse a velocidade de cerca de dois
mil quilômetros horários, 39

capaz de transportar seres humanos. Velocidades mais elevadas já foram


produzidas, mas fora da atmosfera e sem seres viventes.

Existe pois — continuou — antes de mais nada, um problema de velocidade


ligado à questão do material, ligado também ao tipo de propulsão a ser
utilizado. Temos que admitir que a equação não foi ainda solucionada.

À medida que a conversa se ia aprofundando, o aviador come-

çou a perceber que o homenzinho era realmente grande conhecedor da


matéria — mesmo expondo fatos primários — confirmando-se assim as
suspeitas de Eduardo. Este, sempre procurando obter maiores elementos,
simulando ignorância do assunto, limitava-se a provocar o professor,
obrigando-o nas respostas a examinar uma série de questões que só um
especialista poderia elucidar.

Raros passageiros ainda permaneciam no restaurante e muitos passeavam


lá fora, procurando alívio ao calor. Eduardo consultou o relógio. Lembrou-
se de ajustá-lo de acordo com a transposi-

ção dos fusos horários. E, vendo também a mudança de ânimo do professor,


aproveitou o pretexto para mudar de assunto:

— Dizem que a madrugada africana, principalmente na orla do deserto, é


sempre purpúrea e rápida. Esta que começamos a assistir é um exemplo
típico. Nunca vi tonalidade de vermelho assim tão intenso!

— Partiremos logo, comandante?

— Acho que tudo já está em ordem no avião. Se me permite, irei para lá, a
fim de verificar pessoalmente.

O professor levantou-se, acompanhando Eduardo e chamou o garção.


Enquanto o senegalês alto e imponente providenciava a conta, Augusto-
Michel tirou do bolso um livro de cheques de viagem e lançou sua
assinatura numa cédula, antecipando-se ao aviador no pagamento da
despesa.

— Comandante, aqui lhe deixo meu cartão com o endereço em São Paulo.
Ficarei na Europa mais ou menos uns vinte dias e ao regressar gostaria de
vê-lo.

E, sem mais palavras afastou-se, deixando Eduardo e a comissária


perplexos com essa inesperada mudança de atitude.

Quem falou então foi Leila, pela primeira vez:

— Puxa! Que tipo esquisito! Fala à vontade, faz uma infin-40

dável conferência, depois se fecha de repente e se retira como se o


tivéssemos ofendido, ou como se tivesse cometido alguma falta
imperdoável...
O aviador não prestou atenção às palavras da companheira.

Mergulhado em suas cismas, acompanhava com o olhar a silhueta do


homenzinho que se destacava agora na saída lateral do aeroporto contra o
céu que ganhava aos poucos tonalidade avermelhada.

Leila apanhou o cartão de visitas, deixado sobre a mesa, e leu em voz alta,
procurando chamar a atenção do piloto:

— Professor Augusto-Michel Vaugirard. Alameda Arumani, número 3.722


— São Paulo.

IV — O PERSONAGEM DE TOULOUSE-LAUTREC

Durante as duas últimas etapas — Dakar a Lisboa e Lisboa a Paris —


nada mais de anormal se verificou a não ser uma alteração de rota nas
alturas do Rio do Ouro, quando enveredaram mais para o oceano,
desviando-se de violenta tempestade de areia, que vinha do lado do
deserto.

O contato com os passageiros foi o mínimo possível nessas últimas etapas,


mas o suficiente para que Eduardo verificasse que o professor Vaugirard
procurava esquivar-se à continuação da conversa. Todas as vezes que o
comandante passou pelo corredor em direção à parte posterior do avião,
não teve uma única oportunidade sequer de trocar outras palavras com o
professor. Este ou estava dormindo ou estava com o rosto enfiado num livro
enorme de capa vermelha, como absorto pelo seu conteúdo, alheio aos
demais, inclusive ao aviador.

Eduardo, ao notar essa atitude quase ostensiva, não procurou entabular


outras conversas com o homenzinho, não deixando contudo de estranhar
tal procedimento.

No fundo, o comandante buscava outro contato. Tinha se impressionado


com os conhecimentos do professor e alguma coisa dentro de si lhe dizia
que aquele era o homem indicado, que aquela era a pessoa colocada pelo
destino dentro do seu aparelho para solucionar os dois enigmas que lhe
haviam sido propostos. Mas, notando a nova atitude do homem, como que
de retraimento, tal-41

vez arrependido da conversa em Dakar, conteve-se e não mais o procurou.

Em Lisboa, no aeroporto de Sacavem, a parada foi rápida.

E fora do avião Eduardo mal teve tempo de ver o professor numa banqueta
alta, ao fundo do bar, preocupado com um enorme copo, cujo conteúdo
branco contrastava com vários canudinhos vermelhos. Em Paris, logo
depois dos desembaraços alfandegários, o comandante cruzou
inesperadamente com Augusto-Michel. Este preparou então o seu melhor
sorriso e, antes que aquele tomasse qualquer atitude, estendeu-lhe a mão e
proferiu algumas palavras de agradecimento e despedida.

Eduardo chocou-se com tal procedimento e mal pretendia corresponder à


despedida, quando o professor se afastou à pressa, misturando-se com a
pequena multidão que disputava a preferência no recebimento das
bagagens.

Paris, para o comandante Eduardo, era apenas o fim da viagem. No


começo, havia anos, a cidade tinha para êle outro significado. Era a
realização de muitos de seus sonhos da juventude e em si só personificava
toda a Europa. Vagamente se recordava desse primeiro período, do
descobrimento da cidade imensa. Desde o momento em que rodava os
motores em solo brasileiro já tinha o pensamento fixo na meta final. Nas
primeiras vezes, nem mesmo conseguia dormir, tanto a cidade o
impressionava e lhe avassalava a imaginação. Queria conhecê-la
inteiramente, queria reconhecer os locais e ambientes já familiares através
de leituras e fotografias.

Queria, em poucos dias dominar todos os seus segredos e encan-tos,


esquecendo-se dos aviões e dos horários, vivendo intensamente todos os
minutos dessa almejada escala final.
Nesse dia, mais do que nunca, sentia saudades do hotelzinho simples e
burguês da Rue du Bac, escondido ao lado do Boulevard Saint-Germain,
incrustado no meio de edifícios solenes e vetustos que iam até ao Pont-
Royal espiar indiscretamente as águas turvas 42

do Sena.

No fundo, Eduardo era conservador e seu temperamento jus-tificava a


escolha desse hotel, cuja fachada carcomida e modesta ostentava um nome
dos mais imponentes — Hotel Richelieu.

Desde a primeira vez, freqüentava o mesmo hotel. Fora indicado pelas


outras tripulações, que viam na hospedagem da velha Geneviève uma
espécie de pensão, onde o modesto aspecto exterior era bem compensado
por camas macias e pelo trato familiar, tudo isso coroado pelo preço
modesto, aliado a um incrível garção ca-rioca, que há mais de vinte anos
desertara de um navio do Lóide.

Transformado em autêntico parisiense, era agora popular entre as


tripulações que freqüentavam a casa.

Na saída de Orly, Eduardo despediu-se de Leila, não indagando dos


companheiros a que hora iriam para o hotel. Todos ficavam também no
Richelieu, a exceção da comissária que se hospedava num minúsculo
apartamento, mantido pela companhia para a tripulação feminina no
Champs-EIysées, a uma centena de metros da nossa embaixada.

Deviam ser mais ou menos umas três horas da tarde, quando se


despediram. O aviador combinou com Leila um telefonema na hora do
jantar para marcar encontro.

O comandante Eduardo não tinha por hábito a convivência com as


comissárias fora das horas de serviço, ao contrário do que acontecia com
quase todos os outros colegas. Todavia, Leila era um caso especial e desde
há muito tempo êle se convencera de que aquela moça não era como as
demais, e sentia que num futuro bem próximo teria que tomar uma atitude
em relação a ela. A amizade era antiga, nascida não por interesses
sentimentais, mas por afini-dade de temperamentos. Ambos se buscavam
instintivamente, da convivência emergindo uma afeição segura, com
evolução anteci-padamente prevista.

No hotel, o comandante foi recebido com as palavras de sempre. A porteira


pôs a cabeça fora do postigo, ajustou os óculos de aro de tartaruga
remendados com esparadrapo e, estirando um braço fino e enrugado,
passou as chaves do cômodo do segundo pavimento.
43
Um banho de imersão numa banheira imensa e um repouso de poucos
minutos foram suficientes para demonstrar a Eduardo que não podia ficar
só aquela noite, a ruminar os fatos que agora já se iam transformando em
perigosa idéia fixa. Ligava os dois fenô-

menos e sentia-se desamparado no centro dos acontecimentos.

Apanhou a carteira. Revirou-a e tirou do interior o cartão grande de pele


da cabra.

—Hum... hum... Augusto-Michel Vaugirard, Alameda Arumani, 3.722... Que


tipo curioso! Por que será que êle sabe tanta coisa? Parece que sabe, mais
ainda sobre os discos-voadores e não quer contar. Qual será realmente sua
profissão? Será mesmo professor?Não tinha mais dúvidas. Não podia ficar
só. Precipitou-se pela escada, assustou dois gatos no segundo andar e
nervosamente ligou o velhíssimo telefone para o apartamento de Leila.

— Alô, Leila? Escute, vamos sair mais cedo. Não estou cansado e
poderíamos dar umas voltas antes do jantar. Sim? Encontre-me no Rond-
Point, no lugar de sempre, às cinco. Certo. Até já.

Mal largou o aparelho e ouviu a voz fanhosa e desarticulada da porteira de


braços longos e magros. Parou nos primeiros degraus da escada.

— Minutos atrás esteve aqui uma pessoa indagando do senhor. Disse-lhe


que estava no segundo andar e que poderia avisá-

lo, dando-lhe conhecimento da visita. Êle não quis dizer o nome e, mal lhe
dei a informação, saiu rapidamente. Penso que apenas queria saber se o
senhor estava mesmo hospedado aqui.

— Não falou mais nada? Não disse quem era? Não deixou nenhum recado?

— Não, senhor. Não deu tempo para nada. Apenas obteve minha resposta,
foi embora com a mesma rapidez com que entrou.
— Curioso! — retrucou Eduardo. — Não tenho amigos em Paris e nem
outros negócios. Da companhia não viriam indagar se eu estava aqui, pois
sabem meu endereço há muitos anos. Diga-me, como era esse senhor?
Tinha jeito de estrangeiro? Usava óculos de aro de ouro?

— Não, nada disso. Observei que usava chapéu-côco e que tinha um nariz
mal feito e vermelho, anormalmente rubro mesmo.
44
Pela pronúncia não parecia estrangeiro, mas...

— Mas o que? — insistiu Eduardo.

— A voz, a voz tinha um sotaque diferente. Falava com correção, mas tinha
alguma coisa fora do comum que não sei dizer exatamente o que era. Bem,
isso é um pormenor sem importância.

Se precisa falar com o senhor não se preocupe que voltará. Na certa,


retirou-se porque lhe disse que o senhor estava de chegada e repousando.

— Diabo! — exclamou Eduardo, visivelmente intrigado. — É

muito curioso! Quem poderia ser? De uma maneira ou de outra, se êle


voltar, quero que a senhora indague o seu nome ou então o que êle quer
comigo. Isso na hipótese de eu ter saído...

— Fique tranqüilo, senhor! Se voltar, procurarei saber tudo.

Novo ponto de interrogação veio adicionar-se à mente do perplexo aviador.


Não atinava quem pudesse procurá-lo em Paris, poucas horas depois de
sua chegada.

Ganhou a rua e fêz parar o táxi no Boulevard Saint-Germain, demandando


o local onde deveria estar Leila.

Quem visse a comissária naquele instante vespertino, sem o uniforme azul e


sóbrio da companhia, mas com um vestido justo e estampado, bem de
acordo com a primavera que dominava Paris, não diria tratar-se de uma
estrangeira. Muito ao contrário, diria ser uma genuína parisiense, de gosto
apurado, imaginando mesmo, devido ao porte airoso e esguio, que talvez se
tratasse de um modelo profissional de alguma casa de modas da Rue de la
Paix.
Eduardo mesmo, conquanto preocupado com os últimos acontecimentos,
não deixou de notar a elegância da companheira.

— Muito bem. Ótimo! Você não sabe como esse vestido lhe assenta! Não
resta dúvida que é bem mais elegante que o uniforme!

Você está uma parisiense autêntica...

— Deixe de brincadeira e diga logo por que razão está tão impaciente.
Marcamos o encontro para a hora do jantar e mal teve tempo de chegar ao
hotel já me telefonou. Que houve? Alguma coisa de especial ou o programa
de sempre?

— Não, não existe nada de extraordinário, a não ser ainda o tal professor.
Aquele homem me intrigou e reconheço que não posso me conformar com o
incidente havido na viagem.
45
— De fato, o homem é esquisito. Mas não vejo motivos para essa
preocupação. Quanto ao incidente, também não há motivo para
nervosismo. Nada de anormal ocorreu com o avião e você não deve
impressionar-se tanto com o fenômeno.

— Não, Leila, a coisa não é simples como você está pensando.

Existe aquele outro fato. Aquele outro acontecimento também misterioso


sobre São Paulo. Vamos para um local mais sossegado para podermos
conversar. Sinto que necessito de um desabafo. Nem mesmo consegui ficar
sozinho no hotel.

Tomou a comissária pelo braço e ambos enveredaram pela avenida


Montaigne em busca de um restaurante tranqüilo, onde pudessem
conversar à vontade. Detiveram-se em frente ao Café du Théâtre, abriram
caminho entre as mesinhas repletas da calçada, sob os castanheiros, e
descobriram, afinal, uma mesa de canto, próxima à vitrina. Depois de
exame rápido do cardápio, escolheram as mesmas coisas de sempre.

— Em poucas palavras: não posso deixar de relacionar os dois fenômenos.


Sinto-me preocupado, como se estivesse sendo transformado em espectador
e testemunha de fatos misteriosos.

Que será que existe atrás disso tudo?

Leila ficou séria, compreendendo de pronto que o aviador não brincava e


que estava realmente impressionado com as duas ocorrências.

— Sim, mas não se esqueça que no outro avião, no DC-3, também houve
um descontrole dos instrumentos. Logo, você não foi o único espectador
nem a única testemunha. E quanto ao professor, não sei porque o
impressionou tanto. Tudo o que disse é mais ou menos sabido. No fundo,
agiu como um grosseirão, ao sair sem ao menos se despedir de nós lá em
Dakar. Você está superes-timando os fatos, vendo mesmo fantasmas.
— Não sei por quê. Posso estar enganado, mas alguma coisa me diz que
aqueles dois fatos têm relação entre si. Quanto ao professor, tive a certeza
de que sabe mais coisas sobre os discos-voadores e que interpretou a
passagem daquela bola de fogo como sendo mesmo um disco...

Leila de novo começou a rir, apertando levemente uma das mãos de


Eduardo.
46
— Não me diga que você está assim devido aos discos-voadores. Você não é
nenhum leigo em matéria de aviação, e já passou da idade de impressionar-
se com aventuras literárias.

A moça sentiu que os acontecimentos estavam empolgando a fundo o


aviador e resolveu agir com mais cautela, procurando contornar a
situação, analisando os fatos não superficialmente mas com a possível
lógica, não deixando de admitir que a ocorrência fora deveras misteriosa.

— Desculpe-me. Não quis ofendê-lo quando falei em aventuras literárias.


Vimos tudo também e não podemos negar o acontecido. Mas concorde
comigo que tudo não teve conseqüências e que você não tem razões
ponderáveis para relacionar os dois fenômenos. Quanto ao professor
Vaugirard, para mim é apenas um curioso que se aproveitou da
oportunidade para fazer uma demonstra-

ção de conhecimentos pseudamente científicos. E quanto ao disco, que nos


interessa a sua existência?

A essa altura da conversa, Leila parou de repente. Desviou os olhos de


Eduardo e fixou alguma coisa na rua, do lado de fora da porta de vidro,
mais ou menos a uns cinco metros do lugar onde estavam. Eduardo notou-
lhe o desvio do olhar e perguntou o que havia lá fora.

— Curioso. Uma pessoa encostou-se junto ao cristal, passou a mão sobre a


superfície, procurando limpá-lo e ficou olhando em sua direção, de forma
tão fixa que dava a impressão de conhecê-

lo.

Eduardo virou-se na cadeira bruscamente. O ambiente estava mal


iluminado, mas assim mesmo conseguiu vislumbrar pelo vidro um vulto alto
e magro, de chapéu-côco, que, ao sentir-se surpreendido, se afastou rápido
e pôs-se a caminhar ao lado da passagem estreita, junto às mesinhas.
O aviador não perdeu tempo. Levantou-se e correu para a porta, mas teve a
passagem interceptada por um grupo que entrava. Perdeu mais tempo,
esgueirando-se entre as mesinhas, ganhou a rua quase correndo e tomou a
direção seguida pelo personagem de chapéu-côco. Chegou até à esquina da
Rua Bayard, onde perdeu a esperança de localizar o vulto, devido ao
intenso movimento em todos os sentidos. Ficou parado mais de um minuto
e, desanimado, 47

surpreendido, voltou ao local onde se achava a comissária.

— Que foi, Eduardo? Você conhecia aquela pessoa?

— Não consegui alcançá-la. Não sei quem é, mas desse jeito acabarei
maluco. Momentos antes de sair do hotel a porteira me disse que lá tinha
estado à minha procura um tipo de nariz vermelho e de chapéu-côco.
Apenas perguntou se eu estava hospedado lá e foi embora sem dizer quem
era e o que queria comigo. Agora, você dá com esse mesmo tipo me
espiando pelo vidro. Deve ser o mesmo. Não vi o tal nariz vermelho, mas vi
o chapéu. Não tenho dúvidas. Era o mesmo. Se êle me procurava, por que
correu quando levantei?

A moça mudou visivelmente de atitude. O ar irônico e confortador que


irritara o comandante no começo da conversa transfor-mou-se em
preocupação e logo dominou-lhe o rosto.

— É esquisito mesmo. Pelo modo com que o vulto espiava se tinha a


impressão de que estava muito interessado em você. Quem seria?
Terminaram a refeição quase em silêncio, convencendo-se Leila de que o
aviador estava realmente impressionado. Passou a preocupar-se, também.
Sentia pelo companheiro mais do que uma simples amizade e aquele
encadeamento de mistérios passou também a obsidiá-la por ver nos fatos
mais do que uma série de coincidências.

Saíram. O movimento ainda era intenso. A noite estava límpida e agradável


e um ar fresco, e perfumado denunciava a inconfundível primavera de
Paris.
Não tocaram mais no assunto e foram andando devagar em direção ao
Sena. Na praça de Alma, o movimento foi diminuindo e a comissária não
deixou de notar que Eduardo de vez em quando, embora procurando
dissimular, olhava para trás, como se des-confiasse de estar sendo seguido
pelo vulto de nariz vermelho e chapéu-côco.

Embora o desejassem, ambos não conseguiam evitar o assunto.— Acho


melhor levá-la para o apartamento e voltar para o hotel. A tal pessoa
talvez ainda esteja me procurando e o melhor que devo fazer é regressar ao
Richelieu e ficar lá. Êle sabe que me 48

hospedo lá e logicamente irá procurar-me. Assim pelo menos des-cubro o


que êle quer e fico de uma vez sossegado.

Leila previa essa atitude. Muito a contragosto já tinha sentido que a noite
estava estragada e prejudicado o passeio. Reconhecia que Eduardo estava
sobremaneira preocupado e no fundo o des-culpava. Não viu outro remédio
senão concordar, arranjando até uma desculpa para não desapontá-lo.
Procurou, pois, não demonstrar sua decepção:

— Você tem razão. Além disso, estou muito cansada, pre-cisando de um


bom repouso, tanto ou mais do que você. Não faz mal. Só partiremos depois
de amanhã à tarde e faremos o nosso programa amanhã. Vamos.

Em frente ao apartamento, Eduardo nem mesmo desceu do táxi. Esperou


que Leila tomasse o elevador e deu ordem ao motorista que o conduzisse, o
mais depressa possível, ao hotel da Rue du Bac.

Ao localizar a porteira, foi de pronto interrogando:

— Alguém tornou a procurar-me?

— Procurá-lo, propriamente, não. Assim que o senhor saiu, vi outra vez o


tal homem de nariz vermelho. Encostou-se ali em frente, na vitrina daquele
antiquário, e ficou um bom tempo parado, como se estivesse esperando
alguma coisa. Depois, saiu.

Eduardo mostrou-se mais aflito ainda.


— A senhora não falou com êle? Não perguntou o que queria?

Êle não disse nada, não deixou nenhum recado?

Quem agora não gostou foi a velha. Empertigou-se toda e respondeu de


má-vontade, ferida em seu amor-próprio de porteira, replicando como se
tivesse sido censurada pela sua discrição:

— Absolutamente, Senhor, absolutamente. Êle não chegou até aqui e nada


me perguntou. Nada tinha eu, pois, que indagar.

Afinal de contas, eu nada tenho que ver com seus assuntos particulares. Se
êle indagasse de mim qualquer coisa, então, sim, eu poderia ter perguntado
quem era e o que desejava. Caso contrário, como sucedeu, não. Eu não
tinha obrigação de saber coisa alguma! O aviador caiu em si e reconheceu
razão nas palavras da velha. Deu dois ou três passos em frente ao postigo,
acercou-se da 49

escada, alisou o corrimão, esperou alguns segundos e justificou-se em voz


baixa:

— Desculpe-me. Não quis censurá-la e nem tampouco ofendê-la. A senhora


nada tem que ver com minhas preocupações.

Desculpe-me.

Começou a subir os degraus e, no quarto, um tanto decep-cionado, depois


de tirar o paletó, atirou-se na larga cama de ferro, de fofos colchões.

Como naquela primeira noite, em São Paulo, viu-se possu-

ído pela mesma sensação de medo, de insegurança e de pavor. A


perseguição avassalou-o, dominou todos os seus sentidos, mesmo
inconsciente. Periodicamente, Eduardo acordava e consultava o relógio,
tornando outra vez aos pesadelos, após um ou dois cigarros nervosos, que
iam sendo depositados no cinzeiro de propaganda no criado-mudo ao lado.
E nos intervalos curtos em que o moço conseguia dormir via o personagem
de nariz vermelho, a persegui-lo em silêncio.
Ah!... Já sabia agora onde tinha visto o indivíduo parecido com o
homenzinho de chapéu-côco. Já conhecia aquele tipo.

Lembrou-se de um cartaz de Henri de Toulouse-Lautrec, aquele que


representava uma cena de dança no velho Moulin-Rouge, e onde se vê de
perfil, no primeiro plano, em um passo desordenado de cã-cã, uma figura
alta e esguia, de nariz grotescamente recurvo, ensaiando passos com uma
dançarina — a famosa La Goulue.

Sim, o seu perseguidor tinha o aspecto da figura do desven-turado artista.


Só não sabia exatamente qual a côr do nariz do modelo, mas devia
certamente ser vermelho, mais do que isso —

rubra, incandescente.

As coisas tocavam as raias do absurdo no pesadelo: o comandante


Eduardo Germano de Resende estava sendo caçado por um homem
foragido de um cartaz de Henri de Toulouse-Lautrec!

Pela madrugada, somente, quando os sinos da igreja de São Tomás de


Aquino marcaram as primeiras horas do dia, é que Eduardo conseguiu
dormir, escapando à perseguição, aos dois misté-

rios, esquecendo tudo, mergulhado em sono profundo, embora por pouco


tempo.
50
V — O VISOR-TRANSMISSOR

O novo episódio da incrível aventura que cada vez mais ia as-soberbando o


comandante Eduardo decorreu mais ou menos uns quinze dias depois de
seu regresso da Europa, de retorno daquela viagem que deu azo ao
“segundo fenômeno” — conforme passara a designar tais fatos.

De volta a São Paulo, como aconteceu pela primeira vez, não comentou
com ninguém as ocorrências.

Eduardo procurou esquecer a perseguição e o enigma da luminosidade.


Mas, mesmo se impondo essa auto-disciplina, andava com todos os
sentidos atentos, observando tudo o que lhe acontecia, como se temendo
outras ocorrências extraordinárias.

Naquele mês, ia entrar em férias. Havia deixado, depois do último vôo à


Europa, a linha internacional e estava ministrando um curso de navegação
na escola de pilotagem mantida pela companhia.

As aulas eram dadas no aeroporto de Congonhas, em um local amplo, nos


fundos do hangar principal, e se prolongavam dia-riamente até as sete
horas da noite.

Era uma segunda-feira. Momentos antes, Leila havia chegado de um vôo


doméstico e foi até à sala das tripulações, a fim de encontrar-se com
Eduardo para aproveitar a condução até ao apartamento.

Quando saíram, a garoa fina começou a cobrir a cidade, di-ficultando o


trânsito e deixando uma camada escorregadia sobre o asfalto. A
visibilidade tornava-se quase nula e todo o movimento se processava
devagar, sob as luzes dos faróis, antes de escurecer completamente.
Já havia deixado Leila no Jardim Paulista e estava a quadra e meia do
apartamento, quando um automóvel vindo em sentido oposto, sem
necessidade aparente, ligou os faróis altos, desviando-se em direção ao
carro do comandante, como se pretendesse atingi-lo.
51
Ofuscado pela luz alta, Eduardo instintivamente freou, ao mesmo tempo em
que desviou a direção o mais que pôde para a direita, quase vindo a
alcançar o meio-fio.

O automóvel que vinha em sentido contrário — um carro preto de modelo


antigo — sempre de farol ligado, retornou à sua mão e passou a menos de
um metro do lado esquerdo do carro do aviador. O comandante irritou-se
com a manobra absurda, perigosa-mente intencional, e voltou-se para o
motorista do carro preto, a fim de verberar-lhe o procedimento.

Tudo se passou em segundos.

De repente, Eduardo engoliu em seco e reteve na garganta metade dos


impropérios que pretendia dizer ao motorista. Arregalou os olhos e voltou-
se, acompanhando a passagem rápida do automóvel preto: lá estava o
homem mais uma vez. Sim, tinha absoluta certeza. Não se enganara. O
motorista era o sujeito de nariz vermelho, o homenzinho saído do cartaz de
Toulouse-Lautrec!

Perplexo, Eduardo parou e tentou fazer a volta, iniciando a sua


perseguição. O movimento era intenso nas duas vias e o carro preto já se
perdera no tráfego em alta velocidade, contornando a fila de veículos, sem
levar em conta o chão escorregadio.

O aviador teve que desistir. Qualquer tentativa seria inútil e perigosa.

Tudo se passara num abrir e fechar de olhos, mas fora o suficiente para
deixar-se vislumbrar o nariz grotesco, vermelho, gros-seiramente talhado,
como se pertencesse a um rosto caricatural esculpido em madeira, a
emergir da face semi-oculta por uma capa de chuva.

Eduardo tinha também certeza de que o homem o vira. No momento em que


os dois veículos se cruzaram, a menos de um metro de distância, o homem
voltara-se para seu lado num movimento brusco que nada tinha de
acidental.

Deus do céu! — considerava Eduardo, atônito — as coisas estavam se


complicando terrivelmente! Da Rue du Bac até ali a distância era enorme.
Como é que fora localizado em São Paulo?

Que pretendia o seu perseguidor? Como e por que teria vindo da Europa a
São Paulo? Por que não aparecia logo frente a frente e não 52

esclarecia o que desejava? A manobra fora perigosa. Se não fosse o desvio


rápido, seu carrinho teria sido atingido. Teria o vulto agido com intenções
de abalroá-lo?

Foi com tais indagações fervilhando na cabeça que subiu até ao seu
apartamento, localizado num oitavo andar.

A última indagação foi a mais problemática. O carro preto vinha em


marcha forçada, talvez em segunda ou mesmo em primeira. Dava a
impressão de que estava estacionado nas imediações do apartamento, do
lado oposto à mão em que Eduardo trafegava, e que de lá tinha se
deslocado ao pressentir a chegada do Volkswa-gen. Seria isso possível?
Como poderia seu carro ser identificado através da garoa? De que forma o
homem conheceria seu automó-

vel? O enigma era, de fato, desconcertante e desafiava a inteligência do


mais experimentado detetive.

À entrada de seu apartamento, na mesinha de canto próxima à porta, junto


ao telefone, Eduardo deu com um embrulho de papel preto. Não se conteve
e exclamou em voz alta:

—-Que será isso?

Apanhou o pacote e procurou abrí-lo, antes mesmo de tirar a capa


respingada da chuva.
O embrulho era do tamanho de uma caixa de sabonetes e Eduardo
estranhou-lhe o envoltório. A coisa estava acondicionada numa espécie de
papel elástico, que foi se encolhendo à medida que ia sendo retirado. O
comandante custou a completar a opera-

ção e não observou o invólucro que, depois de liberto do conteúdo, ficou


reduzido ao tamanho duma caixa de fósforos. Dentro, havia uma espécie de
estojo metálico, de aparência compacta.

O aviador segurou o bloco nas mãos, empurrou a porta com o pé até que
ela se fechasse, entreabriu a capa e acercou-se do sofá para examinar
melhor o objeto.

A aparência era de uma pequena caixa ou de um estojo. O

metal, branco e leve, com um brilho ligeiramente azulado. Eduardo


verificou que havia uma fenda horizontal, cortando a peça, indicando que
ela se abria. Mas não se localizava dobradiça alguma. Apenas, uma
saliência num dos lados. Não esperou mais.
53
Comprimiu com força o ponto saliente e tentou remover a parte de cima,
que seria a tampa do estojo. Esta se deslocou com um leve estalido e
apareceu o interior do objeto. A metade era toda furada, com orifícios do
tamanho de uma cabeça de alfinete, e, na outra metade, via-se uma
superfície polida, como se fosse de vidro grosso e translúcido, inteiramente
facetada, dando a idéia de um grande brilhante engastado na base do
estojo. Eduardo procurava melhor examinar a peça, quando um zumbido se
espalhou pelo quarto, como se um aparelho elétrico tivesse sido ligado. Sua
reação foi a mais lógica possível. Atirou a caixa sobre o sofá e colocou-se
de pé, assustado e sem compreender o que estava acontecendo.

Assistiu a tudo o que se seguiu, estático, como que petri-ficado: depois do


estalo e do zunido, uma voz partiu da caixa e espalhou-se por todo o
apartamento. Revela-se como uma espécie de transmissor ou gravador, de
tipo e aspecto desconhecidos.

Sem fazer inúteis preâmbulos, a voz passou a desenvolver este insólito


convite:

— Comandante Eduardo, não se assuste. Não se assuste.

Isto nada mais é senão um transmissor, coisa já conhecida aí por vocês na


superfície do planeta. Não se assuste e procure ter calma. Não se trata de
nenhuma brincadeira. Ao contrário. É a coisa mais séria que poderia ter
acontecido em sua vida. Foi este o melhor meio que encontramos para a
comunicação. Antes, o nosso contato foi prenunciado por vários outros
acontecimentos. Lembra-se, comandante? Instrumentos desgovernados
sobre São Paulo. Incandescência sobre o Atlântico. Lembra-se,
comandante, de nosso enviado em Paris? Sim. Esse homem foi o portador
desse visor-transmissor, o mesmo que investiu hoje contra o seu carro.

Lembra-se, comandante?

Eduardo estava gelado. Ouvia a mensagem, pasmo, de lá-


bios semi-abertos, de olhos esbugalhados e garganta seca, fazendo o
possível para manter o controle e entender aquela voz clara, mas que
parecia vir de um outro mundo. O suor não se limitava a escorrer-lhe pela
testa. Sentia a camisa molhada e em torno do colarinho a umidade criava
uma sensação quase sólida, como se tivesse uma corda áspera atada ao
pescoço.

Pela primeira vez em sua vida, reconheceu que estava des-54

controlado, paralisado pela emoção. Nos momentos que se seguiram não


agüentou mais ficar em pé e deixou-se cair sobre uma das poltronas,
enquanto a voz, estranha e imperturbável, continuava a apresentação da
mensagem:

— Poderíamos ter-lhe feito este convite por intermédio do nosso emissário.


Mas essa maneira poderia causar complicações.

O comandante poderia ter exigido pormenores, fazer indagações


prematuras e perigosas. Poderia desconfiar e, em conseqüência, criar
embaraços ao emissário e ter reações indesejáveis. Além disso,
comandante, justificamos seu estado, depois das duas primeiras provas a
que foi submetido. Sua reação poderia ser violenta e por todas estas razões
escolhemos este meio para o convite.

O aviador foi pouco a pouco se identificando com a situação e recobrando


o controle. Afinal, a caixa era uma espécie de transmissor, ou então a
mensagem era gravada. O aparelho nada tinha de fantástico. Fantástica
era a mensagem que ouvia. Mais calmo, foi se concentrando e procurando
reter tudo o que lhe dizia a voz.

— Comandante, o senhor foi um dos escolhidos. A razão disso ser-lhe-á


comunicada em tempo oportuno. Agora, tome um lápis e um papel.
Atenção. A mensagem não será transmitida outra vez.

Isto é um visor-transmissor. Também nós o vemos neste momento e


observamos os seus mínimos movimentos.
Eduardo novamente se levantou, surpreendido com as revelações do
aparelho. Seria verdade que estava sendo visto? E de onde? A primeira
resposta não se fez esperar:

— Pegue aquele lápis junto ao telefone. Use o bloco que está na estante.
Vamos!

O aparelho via tudo! A voz não mentia. Estava sendo visto! Lá estavam o
lápis ao pé do telefone e o bloco na estante. Apanhou-os nervosamente, e
tornou a sentar-se.

— Pronto. Atenção, comandante Eduardo. Nosso encontro será em pleno


Atlântico. Atenção! Anote, por favor. Vinte graus e trinta minutos de
latitude, e vinte e nove graus e vinte e dois minutos de longitude a oeste do
meridiano de Greenwich. Repetimos: vinte graus e trinta minutos de
latitude, e vinte e nove graus e vinte e dois minutos de longitude oeste. O
comandante poderá levar duas ou três pessoas de confiança. Mas cuidado
na escolha. Não pode-55

mos correr nenhum risco. Esteja lá no dia 8 de julho. Repetimos: 8 de


julho. O resto fica a nosso cargo. O convite lhe proporcionará uma grande
revelação. Não tenha medo. Como já lhe dissemos, o senhor foi um dos
escolhidos. Não levem armas, porque serão des-necessárias. Atenção!
Repetimos: escolha bem seus companheiros.

Pessoas que estejam a par dos acontecimentos anteriores e que não sejam
incrédulas. Anotou a posição certa e a data?

Eduardo levantou os olhos das anotações e balançou a ca-beça


afirmativamente, sem pronunciar frase alguma, certo de que realmente
estava sendo visto.

— Muito bem. O visor-transmissor ficará em seu poder como um traço


material deste primeiro contato. Por enquanto, digo —

por enquanto — não servirá para nada, dependendo seu funcionamento


exclusivamente de nós.
Fêz-se um silêncio momentâneo e breves palavras antecederam o silvo
final, ficando a caixa silenciosa em seguida.

— Confira as notas. Latitude vinte graus e trinta minutos.

Longitude oeste, vinte e nove graus e vinte e dois minutos, dia 8

de julho.

O aviador não se moveu durante vários minutos. Não se levantou da


poltrona e nem consultou as anotações. Voltou à realidade, como após um
transe hipnótico.

Apanhou a caixa, agora inerte. Sim, como dissera a voz, o misterioso


aparelho era uma prova material de que não tinha en-doidecido.
Examinou-o mais uma vez. Sacudiu-o junto ao ouvido.

Tentou remover a semi-esfera translúcida e facetada. Não localizou um só


parafuso, um só encaixe, um ponto sequer que demons-trasse a maneira
pela qual poderia ser desmontado. Era uma peça inteiriça e de grande
resistência. De que material seria feito?

Não tinha ainda pensado na aquiescência ao convite. Mas sentia


necessidade de desabafar, de contar tudo-a alguém, de exi-bir a caixa.

Largou o visor-transmissor sobre o sofá e discou para o apartamento da


comissária.

— Leila? Sim, é Eduardo. Que é que você está fazendo? Precisamos nos
encontrar urgentemente. Quando? Já, incontinenti.

Passarei dentro de meia hora por aí. Como? Que aconteceu? Nem 56

queira saber! Pessoalmente lhe contarei. Quem está aí com você?

Hummm... A conversa é reservada. Desça e espere na porta do pré-

dio. Conversaremos dentro do carro.


Desligou, apanhou a caixa metálica, destacou e enfiou no bolso a folha de
papel com as anotações das coordenadas do ponto marcado.

No andar térreo, procurou o zelador. O responsável pelo pré-

dio estava no saguão perto do elevador, limpando um aquário.

— Boa noite, José. Cheguei do aeroporto e encontrei lá em cima um pacote


preto. Foi você que o recebeu?

— Sim, comandante. Há cerca de meia hora esteve aqui uma pessoa, um


sujeito alto e magro, com um chapéu esquisito, de cara comprida, e pediu
que lhe entregasse o pacote. Não disse quem era e não quis esperar,
recomendando apenas muito cuidado. Abri o quarto do senhor e pus a
encomenda perto do telefone. O senhor a encontrou? Estava tudo em
ordem?

— Estava, obrigado. Foi uma coisa que um amigo havia pro-metido.

Fora, a chuva continuava. As ruas estavam agora completamente


encharcadas e os veículos, passando pelo chão escorregadio, produziam
um chiado característico.

A noite descera e os perfis dos arranha-céus iam se diluindo aos poucos


dentro da garoa, que assumia as proporções duma chuva fina e contínua.

Antes de entrar no carro o aviador espiou para os lados. Não viu nenhum
carro preto nas proximidades e muito menos o homenzinho. Apertou a
capa, sentiu a caixa no bolso e pôs o carro em movimento.

De longe, distinguiu a comissária parada à porta do prédio, sob a


marquise, toda encolhida dentro de uma capa vermelha. Eduardo fêz a
curva, estacionou e abriu a porta, já localizado por Leila.

A moça entrou correndo no carro, sem esperar o guarda-chuva que


Eduardo ia levar-lhe.

— Que aconteceu? Conte logo, pois quase tenho certeza que sei do que se
trata. O homem de Paris apareceu de novo, não é?
— Adivinhou. E mais do que isso ainda. Apareceu de novo e largou no
prédio para mim, com o zelador, esta lembrança aqui —
57
disse Eduardo, revirando-se no assento estreito e tirando do bolso da capa
a caixa de metal.

Leila olhou com atenção o objeto.

— Que vem a ser isso? Você chegou a falar com o tal homem de nariz
vermelho?

— Não. Mais uma vez êle me escapou. Quando cheguei ao apartamento dei
com esta coisa embrulhada, perto do telefone, e que havia sido deixada lá
pelo meu perseguidor. Imagine só que isso aí é um transmissor que capta
também as imagens ao redor, agindo como uma espécie de câmera de
televisão.

A comissária escutava boquiaberta. Tão impressionada estava que nem se


apercebia da chuva que entrava pela janela do carro, ensopando-lhe o
braço direito e espalhando-se por todo o assento.

— Quando abri essa coisa — prosseguiu o aviador — ela ligou e começou


a transmitir uma espécie de mensagem. Primeiro, falou nos dois incidentes
com o avião internacional, sem entrar em pormenores, esclarecendo
apenas que os fatos que presenciei foram intencionais, provocados, e
explicando mais que a caixa foi o melhor meio que eles acharam para se
comunicar comigo.

— Mas — interrompeu Leila — quem são “eles”?

— Aí é que começa novo mistério, minha cara. Esse ponto a mensagem não
esclareceu. Falou em poderes ilimitados, na escolha que havia recaído
sobre mim para um encontro em pleno Atlântico, dizendo ainda que eu
poderia levar dois ou três companheiros de minha inteira confiança.

— Mas qual a finalidade desse encontro? Por que não se encontram aqui
mesmo?
— Disso sei eu tanto quanto você. Nada me foi esclarecido.

A voz declarou que dentro de pouco tempo eu estaria a par de tudo, mas
somente depois do tal encontro. Marcaram a data de 8 de julho e deram-me
os dados geográficos para a localização do ponto combinado. Veja, aqui,
anotei as coordenadas nesta folha de bloco. Preciso pegar um mapa do
Atlântico Sul para localizar esse ponto, pois não me recordo da existência
de ilha nenhuma nessa latitude.

A moça voltou-se e procurou fechar a parte aberta do vidro do carro, afinal


dando pela entrada da chuva.
58
— E agora, Eduardo, que pretende você fazer? Não vai ao encontro dessa
gente, não é? Sabemos lá o que pretendem de você?!...

— Sei lá! Estou desorientado completamente. Se não tivesse ficado em meu


poder esta “coisa” diria que tudo não passou de mais um pesadelo ou
alucinação, dos muitos que me vêm atormentan-do ultimamente. Este
instrumento, entretanto, dissipa quaisquer dúvidas. Não tenho alternativa
senão acreditar em tudo e esperar o desenrolar dos acontecimentos. Não
posso deixar de admitir que todos esses fatos são elos de uma só cadeia.

— Escute aqui, Eduardo, você se lembra do professor? O

moço estava tão absorvido pela questão que não se recordou de pronto do
companheiro de viagem.

— Que professor?

— Aquele professor de óculos de aro de ouro que ia para a Europa e com o


qual tivemos aquela conversa em Dakar.

Eduardo recordou-se então prontamente.

— Sim, lembro-me muito bem, como não! Já estou compreendendo sua


idéia.

— É isso mesmo, Eduardo. No começo, duvidei, mas acho que êle deve ser
mesmo um grande cientista. Por aquela conversa, logo vimos que entende
muito de aviação e que sabe inúmeras coisas sobre os discos-voadores.
Pareceu-me, e isso reconheço agora, um homem correto e honesto. E se
fôssemos procurá-lo? Mostrou-se seu amigo e chegou a convidar você para
uma visita aqui em São Paulo. Êle não lhe deu um cartão?

— De fato. O cartão deve estar guardado no apartamento.


Acho ótima a idéia. Vamos procurá-lo. Contar-lhe-ei todas as ocorrências e
levarei esse transmissor para um exame nos laborató-

rios da Universidade. Um exame completo! De que material é feito, como


funciona, enfim, tudo o que fôr possível saber. Depois, então, numa
segunda etapa, consideraremos a possibilidade ou não de ser aceito o
convite. Sua idéia foi ótima. A mim também o professor pareceu uma
pessoa de confiança. De que não gostei na atitude dele foi o rompimento
brusco da conversa. Depois de todos os esclarecimentos que me prestou,
calou-se de repente, como que se tivesse tocado em assunto proibido. Em
todo caso, vou procurar 59

o cartão e saber se já regressou da Europa, pois me lembro ter êle


declarado que ia ficar poucos dias. Veremos se faço isso ainda hoje.

Depois telefonarei a você.

O local escolhido para o encontro com a comissária não era dos mais
próprios. O interior do carro estava abafado e a água penetraria se os
vidros fossem descidos. Leila abriu a porta e combinaram os passos que
deveriam ser dados no dia seguinte. O aviador procuraria localizar o
professor Vaugirard e telefonaria para a moça contando o resultado da
entrevista. Isso se ela não pudesse também ir.

Despediram-se e a comissária ficou ainda algum tempo na porta do prédio,


vendo o carro sumir no meio da chuva.

VI — ALAMEDA ARUMANI, 3.722

Não foi difícil a Eduardo encontrar o cartão de visitas dado pelo professor.
Estava ainda em sua carteira e, ao retirá-lo, o aviador leu o nome do
personagem: “Augusto-Michel Vaugirard, Alameda Arumani, número
3.722”. Não havia número telefônico e Eduardo consultou a lista, a fim de
ver se conseguia comunicar-se com aquele que ora considerava uma
espécie de tábua de salvação, pois poderia auxiliá-lo a elucidar o enigma
obsidiante. Percorreu a lista e logo encontrou o número desejado. Em
poucos segundos, obtinha a ligação.
— Pronto! De onde falam? É da residência do professor Vaugirard? Êle
está? E, depois de um silêncio: — Gostaria de falar-lhe pessoalmente. É
favor dizer-lhe que é o comandante Eduardo, piloto do avião que o
conduziu à Europa no mês passado. — Calou-se e aguardou: — sim, pois
não.

Depois de vários minutos reconheceu, afinal, a voz do professor Augusto-


Michel, através dos fios:

— É o comandante Eduardo? Como está o senhor?

— Não queria mais incomodá-lo, professor, mas trata-se de assunto muito


sério. Poderíamos marcar uma entrevista? Seria possível?

— Pois não, comandante. Estou inteiramente às suas ordens e terei imenso


prazer em recebê-lo.
60
Eduardo não deixou de surpreender-se com a boa acolhida e combinou a
visita, inteirando-se de que a Alameda Arumani ficava para os lados de
Santo Amaro.

— Ótimo. Amanhã às nove horas, então. Gostaria de agradecer-lhe a


gentileza...

Bem cedo, comunicou-se com Leila. Contou-lhe que havia marcado o


encontro, combinando apanhá-la meia hora antes da hora aprazada, a fim
de levá-la em sua companhia.

Não foi coisa difícil localizar a residência do professor. A alameda saía de


local não muito distante do aeroporto e prolongava-se por vários
quilômetros em direção a Santo Amaro e Interlagos.

Ao contrário da véspera, estava uma noite límpida e clara, e mesmo na


parte final da alameda, onde não havia iluminação, encontraram logo o
número 3.722.

Ao ver a casa, Eduardo teve uma decepção. Metido em toda essa série de
acontecimentos misteriosos, tinha imaginado a mo-radia do homenzinho
ilustre como alguma coisa de fantasmagóri-co. Fantasiava um solar em
ruínas, escondido em meio a imenso parque, cercado por muros altos, com
pesado portão de ferro na entrada, ocultando dentro de seus limites
parcelas imponderáveis de mistério. Nem mesmo teria estranhado se
surgissem à porta

— que deveria ter necessariamente pesada aldraba — um par de mastins


dignos do criador de Sherlock Holmes; e que, ao ressoar das batidas,
surgisse um mordomo corcunda, de rosto deformado, com uma lanterna nas
mãos.
Sentiu verdadeira decepção. A residência do professor Augusto-Michel
Vaugirard era a coisa mais despida de mistério deste mundo; uma casa
moderna e funcional, cercada, não por árvores tétricas e frondosas, mas
sim por lindíssimo gramado. De fora, do lugar onde Leila e Eduardo se
achavam, podiam ver a grande piscina e uma sala de estar toda
envidraçada, dando para a frente, e cujas luzes se refletiam no jardim.

Somente numa coisa acertou o aviador: realmente, havia ca-chorros. Não


molossos de histórias policiais, mas um par de ultra-61

civilizados bassets, que nem mesmo latiram ao dar com a presença dos
estranhos.

O aviador não chegou a fazer uso da campainha. Augusto-Michel já os


esperava na porta, e, assim que viu o carro estacionar, apressou-se em
direção ao portão.

À medida que se aproximavam da casa os recém-chegados iam observando


requintado bom gosto. Tudo na residência era o mais apurado possível. A
disposição do jardim, as flores, os desenhos formados pela grama, o cordão
de ferro ao redor da piscina, tudo se equilibrava harmônicamente,
demonstrando um inequívoco toque feminino.

Ao ver a comissária, o professor demonstrou algum constran-gimento:

— Se o comandante houvesse me prevenido de que a senhori-ta também


viria eu teria avisado minha filha e minha esposa. Elas saíram e fico assim
impossibilitado de recebê-la de modo condigno.

Foram a um cinema, mas creio que não demorarão.

— Não se preocupe, professor. Esteja inteiramente à vontade.

Não faça cerimônia de espécie alguma e não se esqueça de que estou


envolvida nesse assunto tanto quanto Eduardo — apressou-se a tranquilizá-
lo a moça.
Foram ter à sala-de-estar, compenetrando-se os visitantes de que o bom-
gôsto não era apenas no exterior. Tudo era de um moderno sóbrio,
equilibrado em cores harmônicas. As cortinas largas, com desenhos
abstratos; a mesa de cristal azul, no centro de um dos ambientes; as
estantes ao fundo; os móveis de linhas funcio-nais e discretas; o quebra-luz
sustentado por uma raiz autêntica, tudo era, de fato, duma beleza discreta,
apanágio de estudo minucioso.O comandante e a comissária correram os
olhos pelo ambiente, não escapando ao comandante uma grande
reprodução de uma tela de Toulouse-Lautrec. Felizmente, não se tratava
daquela cena de baile no Moulin-Rouge, ausente portanto o vulto de nariz
vermelho...

Augusto-Michel conduziu-os até a um dos ângulos da sala.

Sentaram-se junto a uma mesinha de laca, onde se viam cinzeiros e caixas


de cigarros. O dono da casa iniciou a conversa, sem mais 62

preâmbulos:

— Antes de mais nada, comandante, devo-lhe uma desculpa.

Reconheço que fui meio grosseiro no fim de nossa conversa no restaurante


de Dakar. É curioso. Não sei esclarecer o que se passou comigo naquele
instante e devo tê-los chocado, com razão, por meu procedimento
injustificado.

O aviador confessou com lealdade o que sentira:

— Em verdade, ficamos sentidos. Não que tivéssemos inter-pretado sua


atitude como demonstração inamistosa. Não. Longe disso. Sentimos porque
ficamos privados de obter novos conhecimentos sobre um assunto que o
senhor conhece com tamanha profundidade.

Vaugirard cortou as palavras de Eduardo, procurando melhor justificar-se:

— Contei-lhes muita coisa superficial e depois de alguns momentos fiquei


na dúvida, e é aí que encontro explicação para minha conduta. Fiquei na
dúvida se o senhor estaria ou não levando a sério a conversa. Por
instantes, temi ser tomado por um maníaco.

Afinal de contas, o senhor não me conhecia e calei-me com receio de cair


no ridículo. Cortei a palestra bruscamente, e em vez de derivar para outro
assunto inconseqüente e mais. palpável, errei quando me levantei, deixando
de procurá-lo pelo resto da viagem.

Mais uma vez, reconheço que fui um grosseiráo e agora me peni-tencio


pedindo-lhe desculpas. — Parou por momentos e logo voltou a falar,
mudando de rumo, como que impedindo Eduardo de tecer outras
considerações sobre o incidente:

— A respeito daquele nosso fenômeno sobre o Atlântico, tenho uma


novidade que deverá interessá-lo muito. Veja só. A coisa se passou pela
madrugada, não foi? Na madrugada do dia 18 de maio. — Sim. Não
marquei a hora exata, mas me recordo que foi depois da meia-noite.

— Pois bem. Cinco dias depois, em Paris, encontrei esta notí-

cia em um jornal. Aqui está. Veja.

Tirou um recorte meticulosamente dobrado de dentro da carteira, e passou-


o a Eduardo. Antes que êle chegasse a ler, anteci-pou-se:
63
— A notícia veio de uma aldeiazinha localizada na costa atlântica da
África, na Mauritânia, chamada El Memrhar. Descreve a passagem por ali
de certo objeto não identificado, em alta velocidade e de forma circular,
dado como sendo um disco-voador, tomando a direção do oceano. Veja que
as testemunhas do fato falam em duas horas da madrugada mais ou menos.
Informa ainda a notícia que quase todos os habitantes do lugarejo
assistiram à passagem desse objeto, por ter sido dado alarme pelo primeiro
que o localizou. Esclarece mais o recorte que o disco ficou parado algum
tempo sobre a aldeia antes de deslocar-se rumo ao mar, havendo até um
começo de pânico, falando a maioria dos habitantes em fim do mundo. Isso
não lhe sugere nada, comandante?

Eduardo acabou de ler o recorte e passou-o a Leila, olhando Vaugirard e


balançando a cabeça afirmativamente:

— É deveras extraordinário! Tudo leva a crer que foi esse mesmo objeto,
essa coisa tida como sendo um disco-voador, aquilo que passou junto a nós
sobre o Atlântico!

— Exatamente — concordou Vaugirard. — Essa notícia de certa forma me


confortou e, por mais absurdo que pareça, acho que fomos testemunhas de
mais uma aparição dos discos-voadores. Assim, acho que não poderemos
mais duvidar da existência desses engenhos. Não lhe parece certo meu
raciocínio, senhor comandante?

— Por incrível que pareça, não vejo outro remédio senão admitir que
aquela coisa era mesmo um disco-voador. Aliás, confesso que já tinha
elementos para não duvidar da existência deles. E

minha visita se prende a essa questão.

Eduardo não se conteve mais. Em troca da notícia que lhe fora dada por
Vaugirard passou a relatar-lhe todos os acontecimentos de Paris, contou-
lhe em seguida o aparecimento do homenzinho em São Paulo, o
recebimento da caixa metálica com a respectiva mensagem e o insólito
convite. Em seguida, tirou do bolso o visor-transmissor bem como o
invólucro elástico preto e depositou-os sobre a mesa de laca, provando
assim a veracidade de sua história.

Augusto-Michel ficou estupefato. Não interrompeu a narrativa um instante


sequer e por várias vezes retirou e limpou os óculos, como que procurando
concentrar-se mais. Ao fim da história, apa-64

nhou com extrema delicadeza o transmissor, examinou-o detida-mente,


chegando mesmo a tentar riscar a superfície do metal com uma faca de
papel.

— Espantoso, incrivelmente espantoso! Ante tais acontecimentos vejo que


tudo o que sei sobre os discos-voadores passa para plano secundário.
Desde já, com sua aquiescência, solicito e mesmo exijo o privilégio de
assistir a esse encontro.

O aviador foi apanhado de surpresa.

— Mas, professor, eu não disse se aceitarei ou não o convite.

Não sei o que pensar disto tudo. Vim aqui para obter uma orienta-

ção, pois já estou ficando meio doido no centro dessa atrapalhada toda.
Que acha o senhor disso tudo? Com franqueza.

— Que acho, meu filho? Que acho? Acho que isso é a coisa mais rara e
mais fantástica que aconteceu até hoje a um ser humano! Não tenho
dúvidas. Será o primeiro contato efetivo de um habitante da Terra com
seres racionais de outras partes do universo!

Veja. Veja este metal e este invólucro. Isto não lhe diz nada?

Eduardo, meio assustado com a reação explosiva e entusias-ta de


Vaugirard, de novo apanhou o transmissor.

— Veja esse metal. Sem mesmo necessidade de exame de laboratório,


arrisco-me a afirmar que tal tipo de material não foi ainda produzido pelo
engenho humano. Observe, veja! Quando procuro riscá-lo com a faca de
papel êle afunda-se pela pressão, voltando em seguida ao estado inicial,
não ficando marca nenhuma. Observe! É um metal elástico. Só esse detalhe
revela a existência de seres dotados de inteligência superior à nossa. Se o
senhor me permite, amanhã bem cedo tentarei nos laboratórios da
Universidade abrir esta caixa e examiná-la em seus mais ínfimos detalhes.
Eu no seu lugar não hesitaria um minuto. Esqueceria e largaria tudo, dedi-
cando-me única e exclusivamente aos preparativos da expedição, na qual,
como disse, solicito o privilégio de tomar parte, O comandante não deixou
de impressionar-se com a euforia incomum do professor, que continuou:

— Tudo é fantástico demais para ter sido forjado. Começo a perder o medo
de parecer um imbecil ao admitir a existência dos discos-voadores e de
uma categoria superior de seres que estão tentando entrar em contato com
a Terra.
65
Augusto-Michel procurou ser mais convincente pondo-se de pé.

— Meu filho. Os discos existem desde longa data. As provas da existência


acumulam-se às dezenas e centenas. A coisa não é de hoje. Dia a dia, as
aparições renovam-se e o homem não acredita por comodismo, por ter a
pretensão imbecil de que é, êle próprio, a coisa mais genial do universo.
Mas, por favor, passem para aquela sala. Vamos até ao escritório.

Eduardo e Leila levantaram-se e foram conduzidos a uma sala contígua,


cuja presença não tinham antes notado devido à existência de pesado
reposteiro.

O cômodo era amplo e bem iluminado. Aspecto geral de imensa biblioteca,


cujas paredes eram inteiramente revestidas de estantes repletas. Os raros
vãos eram ocupados por várias reproduções de telas famosas e alguns
troféus de caça.

— Estão vendo aquela estante menor, lá no fundo? Junto ao arquivo? Todos


aqueles volumes e todo o arquivo se referem exclusivamente ao fenômeno
“disco-voador”. Há vários anos, desde antes de 1947, dedico-me ao estudo
da questão. Cartas, depoimentos, fotocópias de documentos oficiais,
relatórios, fotografias, livros, impressões, certidões de notários, fraudes,
equívocos, solu-

ções propostas, teorias certas ou erradas, de insanos e de sábios,


depoimentos de crianças e estadistas, tudo, tudo tenho aqui cata-logado,
estudado e valorizado. Creia que isso gerou em mim uma convicção
inabalável: os discos-voadores existem! Não são, como querem muitos, um
mito ou a fábula do século vinte. Ao contrário.

São uma realidade terrível. E considere-se, assim, ter o senhor em suas


mãos a chave do problema!
Eduardo compreendeu como a questão vinha apaixonando Vaugirard e,
deixando de lado as reservas que ainda mantinha, foi pouco a pouco se
sentindo atraído pela personalidade do professor. Augusto-Michel abriu
então a parte superior do arquivo e, apanhando uma pasta de couro,
extraiu dela duas grandes fotografias cheias de anotações no verso.

— Veja com cuidado esta primeira fotografia, comandante.

O aviador pegou a maior das duas e começou a examiná-la com 66

atenção.

Tratava-se de uma ampliação de trinta por quarenta centí-

metros. A imagem estava borrada, mas a falta de nitidez não pre-judicava a


visão integral do objeto. O que estava ali evidente era o que se
convencionou chamar de disco-voador: um engenho de forma ligeiramente
cônica, com a parte mais aberta voltada para baixo e coroado por uma
espécie de cúpula circular no plano superior. Mesmo com a imagem
tremida, podiam ser claramente dis-tinguidas na parte central e superior,
onde devia ser a cabina de comandos, várias aberturas circulares, de onde
se projetava intensa luminosidade, prejudicando os contornos dessas
escotilhas.

O aparelho estava meio inclinado e na parte de baixo viam-se três semi-


esferas, como se fossem um tipo desconhecido de trem de pouso. No
primeiro plano da fotografia, apareciam galhos de árvores e, pelo tamanho
dos mesmos, podia calcular-se mais ou menos a distância do disco e suas
proporções, talvez pouco maior que um avião DC-3.

— Essa fotografia, comandante, foi tirada no dia 13 de de-zembro de 1952,


em Palomar Gardens, no Estado da Califórnia, às nove horas e dez minutos
da manhã, por certo personagem que o senhor já deve conhecer de nome,
George Adamski, aquele astrônomo amador que mora nas proximidades do
Observatório de Monte Palomar. Quando os jornais anunciaram a tomada
das fotografias — e existem outras tiradas pelo mesmo cidadão, todas em
meu poder — escrevi ao mesmo e obtive estas ampliações. Posteriormente,
Adamski escreveu também um livro, onde as fotos foram reproduzidas e os
discos bem descritos. Bem, anote com aten-

ção os pormenores. O disco tem a forma de um ligeiro cone com a cabina


na parte central e com várias escotilhas redondas. Estas semi-esferas aqui
de baixo funcionam como trem de aterragem e estão bem visíveis.

Interrompendo a explicação, Vaugirard passou às mãos de Eduardo uma


segunda fotografia, pouco menor que a primeira. Era mais tremida ainda, e
revelava ter sido tirada com uma câmara de qualidade bastante inferior, de
lentes primárias, provavelmente um menisco. Mas, mesmo tremida e fora de
foco, podia distinguir-se um engenho semelhante ao da fotografia anterior.
67
— Examine, comandante. As duas fotografias não mostram dois aspectos
do mesmo objeto?

— Sim, não há dúvida. Veja esta, Leila. A linha geral é idêntica, o mesmo
acontecendo com o perfil, bem como os pormenores.

Os da segunda coincidem em tudo com os da primeira, da maior.

Não tenho dúvidas em afirmar que são dois flagrantes de um só objeto.—


Pois é isso, meu caro comandante — concluiu calorosa-mente o professor
— essa é uma das provas materiais mais sérias da existência dos discos-
voadores. Escute. Essa segunda chapa não foi tirada, nem pelo famoso
Adamski e nem mesmo nos Estados Unidos. Foi obtida por um menino de
treze anos de idade, Stephen Darbishire, no dia 15 de fevereiro de 1954, na
localidade de Coniston, em Lancashire, na Inglaterra. Esse menino,
acompanhado de outro — seu primo Adrian Myers — de oito anos de
idade, naquele dia estava no alto de uma montanha de pouco mais de
oitocentos metros, o Coniston Old Man, para onde ambos tinham subido
em busca de passarinhos, quando viram o disco. Logo que este foi avistado,
sem saber o que seria, o menor não perdeu tempo e comprimiu o
disparador de sua máquina, uma câmara do tipo inferior, denominada
vulgarmente “caixão”. Aqui está o resultado.

A milhares de quilômetros de distância, em outro continente, com grande


diferença de tempo, obteve-se imagem idêntica à de Palomar Gardens.
Tudo foi investigado com cuidado. O menino nunca tinha ouvido falar nas
fotos de Adamski; não estava a par do que diziam os jornais sobre os
discos, e entregou o filme para ser revelado a um laboratório comum, na
localidade em que residia. Ficou comprovado que não houve fraude
alguma. A conclusão só pode ser uma, insofismável. Ou foi o mesmo
engenho ou então outro análogo o fotografado por essas duas pessoas,
evidenciando-se que os discos andam rondando misteriosamente o nosso
planeta.
— O senhor obteve outras informações sobre o menino? Informou-se bem
sobre a revelação do filme? Tem certeza de que Stephen Darbishire não
sabia da existência dos discos e não tinha visto as fotos de Adamski?

— Sim, examinei tudo, ponto por ponto, como já lhe disse comandante.
Pensei mesmo ir a Lancashire. Mantive correspon-68

dência com os pais do menor e com uma casa de fotografias de um certo


Mr. Pattison, na vila de Coniston, onde a película foi mani-pulada. Toda a
possibilidade de fraude e contrafação está afasta-da. Aqui faço um
parêntese: lá naquelas outras pastas, naquelas de couro vermelho, tenho
perto de trezentas fotografias exibindo discos, todas elas falsas e forjadas.
Vão desde o truque ingênuo e grosseiro, até ao truque tecnicamente bem
realizado, como aquela série, publicada por certo periódico, de um disco
sobre o Estado do Rio de Janeiro. Esse tipo de material eu o coleciono por
curiosidade e para valorizar o que pode ser considerado autêntico. Veja.
Truques às dezenas. Miniaturas fotográficas com fundos pretos depois
montadas sobre paisagens, duplas exposições, veladuras intencionais, e até
erros não provocados, cujo efeito pode apresentar um disco-voador. O
senhor não calcula como a imaginação humana é fértil nesse sentido. De
quase um milheiro de fotografias recebidas de todas as partes do mundo,
posso assegurar-lhe que pelo menos oitenta por cento são mistificações, na
maioria primárias e gros-seiras. Estas que lhe exibi, de Coniston e
Palomar Gardens, são autênticas. Tenho certeza de que foram obtidas sem
truques de espécie alguma. A de Adamski foi obtida com uma câmera
miniatura, acoplada ao visor de um telescópio, justificando-se a
abundância de detalhes. Mais um argumento ainda: o senhor já ouviu falar
nas observações do astrônomo inglês Potter, de Norwich?

O aviador, que já conhecia o caso, limitou-se a mover afirmativamente a


cabeça.

— Pois então. Esse astrônomo observou um disco por seu telescópio e deu
em linhas gerais a mesma descrição dos objetos fotografados por Adamski
e Darbishire. A única diferença é que viu a imagem do disco de cabeça
para baixo, e isso porque o telescópio, devido ao tipo óptico de construção,
dá as imagens celestes invertidas. Então, comandante? Foram três
observações honestas e independentes, no tempo e no espaço, do mesmo
objeto. Não é convincente?

Eduardo ainda tinha em mãos as duas fotografias obtidas nos Estados


Unidos e na Inglaterra, e percebia-se claramente por sua fisionomia que
aceitava a argumentação de Vaugirard. Este, cada vez mais empolgado,
como se procurasse convencer um júri, 69

ia pondo em revista os argumentos com que contava.

— O senhor deve ter ouvido falar de certo questionário distribuído pela


Força Aérea Norte-Americana. Esse documento é do domínio público e a
sua simples publicação demonstra o interesse que têm as forças armadas
norte-americanas no fenômeno “disco”.

Naquela gaveta, ali, tenho um livro com uma fotografia desse questionário.

Abriu uma segunda gaveta do arquivo e, remexendo inúmeras outras pastas


numeradas, tirou debaixo da última um volume de capa azul.

— Olhe, aqui. É a célebre instrução número 200-2, de 12 de agosto de


1954, dispondo a respeito das comunicações sobre os objetos aéreos não
identificados. Examine os itens. Não só define quais seriam os objetos não
identificados — objetos com comportamento e características
aerodinâmicas diversas dos conhecidos —

mas também determina como devem as aparições ser reportadas, quais os


dados que devem, ser estudados, quais os objetivos da investigação,
explicando até como devem ser enviadas as fotografias eventualmente
obtidas e as cópias dos gráficos das telas do radar, caso tenham sido os
discos localizados por esse instrumento.

Fechou o livro e tornou a colocá-lo em seu lugar primitivo.

Continuou:

— Eu também imprimi um questionário e passei a enviá-lo a todas as


pessoas que disseram ter visto no espaço corpos não identificados. Veja
aqui estas quatro pastas menores. Tenho aí colecio-nadas, em ordem
cronológica, mais de mil respostas. Essa providência tomou-me um tempo
enorme, mas obtive dados incríveis.

Verifique o senhor mesmo. Vieram respostas de todas as partes do mundo.


Do norte da África, do Brasil Central, dos Estados Unidos, da França, das
ilhas Majorca e até mesmo de países da cortina de ferro. Só de uma região
da África, na orla do Sahara, nas proximidades de Tessalit, em outubro de
1951, vieram na mesma semana oito relatos idênticos! Vi as primeiras
notícias num semanário francês e enviei os questionários incontinenti, pois
as notícias mencio-navam os nomes das testemunhas. As respostas não se
fizeram esperar. Somente um não foi devolvido. Todas as testemunhas fa-
laram na aparição de um disco sobre o deserto, a grande altura, 70

durante três dias, e aparentemente imóvel. Examinado com auxílio de


instrumentos ópticos, comprovou-se que estava animado de incrível
velocidade circular, sobre seu próprio eixo, emitindo reflexos de várias
cores. Esse tipo de aparição foi observado na Sibéria, em vários locais da
Índia e até aqui no Brasil, num campo de aviação no Rio Grande do Sul,
como o senhor deve ter visto nos jornais.

— Nunca fui cético a esse respeito, professor, e agora não tenho mais
dúvidas quanto à existência de tais objetos. Não posso, entretanto, ocultar
uma grande preocupação: por que fui eu escolhido para esse encontro?
Por que só eu recebi esse fantástico convite?

O professor recolocou as pastas e fotografias no arquivo, meticulosamente,


e pegando pelo braço Eduardo e Leila reconduziu-os ao sofá, onde antes se
achavam, junto à mesinha de laca repleta de utensílios para fumantes.

— Vamos por partes, comandante. Veja que tudo, desde aquela tarde em
Congonhas, vem tomando rumo normal...

— Normal? — estranhou Eduardo, reagindo à calma e pe-remptória


afirmativa do seu interlocutor.

— Sim, não se espante, normal dentro da anormalidade que cerca tais


fatos, se assim me posso exprimir. Normal porque o senhor vem sendo o
centro de todos esses acontecimentos inexplicá-

veis. Pouco a pouco, vai-se aprofundando mais e não é de espantar que


“eles” — pois também não sei e nem faço idéia de quem “eles”

sejam — apareçam naquele ponto marcado no Atlântico e lhe fa-

çam revelações espantosas. Um pouco mais de paciência e tudo se


explicará.

— O senhor tem aí um mapa do Atlântico Sul? Antes de qualquer


resolução, quero localizar o ponto que “eles” me deram. —

Eduardo tirou a carteira do bolso de dentro do paletó. Procurou a anotação


e passou-a ao professor.

— Hum... hum... Vinte graus e trinta minutos de latitude, e vinte e nove


graus e vinte dois minutos de longitude oeste. O senhor deve ter razão.
Deve ser ao largo das costas do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo. Não
tenho nenhum mapa do Atlântico Sul.

Tenho vários mapas, mas nenhum alcança essa porção central do Atlântico,
entre a América do Sul e a África. Além do mais, precisa-71

mos é de uma carta de navegação, com as profundidades, correntes, e


outros dados, para considerarmos uma viagem a esse ponto por via
marítima.

O professor custava dissimular sua impaciência a respeito da decisão de


Eduardo. Por várias vezes, tirava e recolocava os óculos, percebendo o
aviador que esse gesto era típico de seu nervosismo.

— O senhor deve decidir o quanto antes. Não podemos perder um momento


sequer. Não estamos muito longe da data marcada e uma expedição dessa
natureza não se improvisa. Há que se descobrir embarcação adequada,
tripulação...

O comandante interrompeu tal raciocínio em voz alta:


— Não se esqueça da parte financeira, professor. Esse é para mim um dos
pontos de maior importância. Um empreendimento desses não custa pouco.
Não sabemos nem mesmo qual a distância que devemos percorrer. Vamos
ver um mapa. Lá no aeroporto tenho um, completo, com todos os
pormenores. Esperemos mais uns dias, pois tudo isso deve ser muito bem
examinado.

— Meu caro amigo, a parte financeira não deve preocupá-lo.

Com sua permissão, no caso da ida e de sua anuência em minha


companhia, colocarei ao seu dispor os recursos necessários ao
empreendimento. A questão financeira não é problema. Ficará inteiramente
ao meu cargo.

Augusto-Michel pôs-se novamente em pé. Encostou o isqueiro no cigarro


apagado, soltou uma profunda baforada e mais uma vez repetiu o que já
era uma constante. Tirou os óculos de aro de ouro e examinou-os contra a
luz.

— Vou anotar as coordenadas do ponto no Atlântico. Amanhã, bem cedo,


providenciarei o mapa para a localização.

— Não se preocupe, professor. No aeroporto, tenho uma carta completa do


Atlântico Sul. Está no meu armário. É a mesma que uso nos vôos da
Europa. Logo cedo lhe darei um telefonema.

A comissária consultou o relógio e sugeriu a Eduardo que deveriam dar


por encerrada a visita. O professor não mais insistiu em obter uma decisão
imediata e acompanhou-os até ao portão do jardim.

Depois que o carro saiu, Vaugirard retornou em passos vaga-72

rosos à sua residência.

Quase na porta de entrada, parou. Tornou a retirar os óculos e lançou o


olhar para o céu profundo e estrelado. Não havia iluminação alguma fora e
a luz do interior ali chegava fraca e difusa.
Pôde assim observar bem o firmamento. Correu os olhos pelo manto tênue
da Via Látea e deteve-se ao localizar o brilho incomparável de Sírius.
Ficou parado alguns minutos em atitude atenta, os olhos cheios de intenso
brilho, como se estivesse notando alguma coisa de anormal no manto de
astros que recobria a terra.

Logo a seguir, penetrou na casa com o semblante vincado, imerso em


raciocínios absorventes e complexos, certo de que se aproximava, afinal, a
grande oportunidade e, talvez, mesmo a razão de ser de sua vida.

VII — 20 GRAUS E 30 MINUTOS DE LATITUDE,


29 GRAUS E 22 MINUTOS DE LONGITUDE
OESTE
No íntimo, o comandante Eduardo Germano de Resende havia tomado uma
decisão. Já que estava envolvido nessa cadeia misteriosa de
acontecimentos, não via razões para que não devesse continuar na trilha
enigmática dos fatos, chegando assim a um ponto que possibilitasse
conclusões positivas. O principal era libertar-se do estado de angústia em
que se encontrava. Em muitos momentos, tinha a impressão de que havia
perdido o juízo; mas depois, ao lembrar-se das inúmeras testemunhas,
esquecia esse raciocínio perigoso e procurava deduzir a conclusão das
premissas já ordenadas.

Conquanto soubesse que todos os acontecimentos eram prismas de uma só


realidade, não conseguia, nem podia imaginar qual fosse essa realidade.

Mais uma vez assoberbado por tais raciocínios, acordou na manhã


seguinte e dirigiu-se ao aeroporto. Ali chegando, abriu seu armário na sala
das tripulações e imediatamente procurou o mapa do Atlântico Sul.

Era bem cedo e a sala estava vazia. O dia surgia magnífico como a noite
anterior prenunciara, e todos os aviões partiam dentro dos horários
normais.
73
Eduardo apanhou a carta e desdobrou-a sobre a mesa maior da sala. Em
poucos momentos, com a régua de cálculos na mão, localizou o ponto
determinado. Mais uma vez se surpreendeu. As coordenadas transmitidas
pela caixa metálica cruzavam-se exatamente sobre uma ilha conhecida. Lá
estava ela. Um pontozinho insignificante perdido no mapa, afogado na
imensidão do Atlântico, entre as costas do Brasil e o litoral africano — a
ilha da Trindade.

A localização não deixou de assombrá-lo.

Mais uma vez, os fatos completavam-se com exatidão absoluta, como peças
bem medidas de um brinquedo de armar. Mais um fato verídico lhe havia
sido transmitido, pois temia que as coordenadas fossem dar em pleno
oceano, suscitando dúvidas quanto ao atendimento ao convite.

O ponto geográfico existia. Existia e era conhecido, não sendo afinal de


contas de tão difícil acesso.

Fechou o armário, dobrou o mapa, guardou-o no bolso e dirigiu-se ao


balcão para saber a que horas Leila chegaria do Rio de Janeiro.

Enquanto esperava não conseguiu dominar a impaciência.

Àquela hora mesmo resolveu ligar para Augusto-Michel e falar-lhe a


respeito da ilha. Aproveitaria o telefonema o já marcaria novo encontro
para os primeiros entendimentos, agora que havia resolvido a problemática
aventura.

Sua impaciência encontrou eco na atitude do professor. Mal obteve a


ligação, nem teve a oportunidade de informar qual o local apontado pelas
coordenadas.

— Sim, meu caro amigo. Já sabia que o local coincide com a ilha da
Trindade, aquela ilhazinha brasileira jogada em alto mar nas costas do
Estado do Espírito Santo. Não foi difícil obter algumas informações
preliminares. Todos os mapas que consultei de início nada serviram. A
costa do Brasil era registrada apenas até certo ponto, não abrangendo a
zona onde estava a ilha. Lembrei-me, então, de um amigo que trabalha no
Instituto Geográfico e ainda ontem falei com êle. Não só obtive um mapa
adequado, como também inúmeras informações de interesse, ficando ainda
de dar-me um mapa completo de Trindade. Veja uma coisa, comandante.

A travessia não é fácil, mas também não é coisa impraticável. O


74
senhor mediu a distância?

O aviador limitou-se a grunhir no aparelho, concordando com a afirmativa


do professor. Este, pelo tom da resposta, de pronto percebeu que Eduardo
se mostrava desanimado ao considerar a quase dois mil quilômetros de
distância compreendida entre a ida e a volta.

Procurou encorajá-lo, temendo a desistência do plano.

— Reconheço que a viagem não é fácil, caro amigo, mas che-garemos a


uma conclusão. Repito mais uma vez, como já lhe disse, aqui, em casa, que
a parte financeira não constitui obstáculo de espécie alguma.

Eduardo estava realmente desanimado. Queria e pretendia ir, mas ao ver a


distância a ser vencida em alto mar e ao considerar os riscos de uma
empresa de tal ordem, logo se viu tomado de pessimismo. Espírito
comunicativo, incapaz de esconder suas emoções, não pretendeu ocultar ao
professor seu estado de ânimo.

— Não se preocupe — continuou Vaugirard — não fique pes-simista que


arranjarei tudo...

— Não se trata bem de pessimismo, professor. A coisa é que...Não chegou


terminar a frase. Augusto-Michel interrompeu-o, sugerindo um encontro
imediato para meticuloso exame da questão. O aviador olhou o relógio e
não teve outra alternativa senão aceitar a nova entrevista, marcada para
depois do almoço. Nada sabia ainda sobre a chegada de Leila, mas
combinou encontrar-se com Vaugirard às duas e meia, em sua residência.
Despediu-se, sem todavia deixar-se contagiar pela animação do
interlocutor.

Leila só chegou ao meio-dia.

Durante esse intervalo, Eduardo ficou vagando pelas instala-


ções do aeroporto, conversando com amigos, folheando livros e revistas na
banca de jornais, não conseguindo, em momento algum, alhear-se do
pensamento dominante.

Na banca de jornais, viu até mesmo muitos livros sobre discos-voadores.


Alguns, eram seus conhecidos, mas descobriu pelo menos meia dúzia de
outros recentes, que ainda não lera. Apanhou-os e começou a folheá-los.
75
Havia literatura para todos os gostos. Desde a divulgação honesta e bem
intencionada até ao folhetim cheio de segundas inten-

ções e de moralidade duvidosa, onde se descrevia a aparição de um disco a


um casal de namorados.

Leila veio correndo. Cruzou a passagem do pátio, deteve-se um minuto no


balcão, desincumbiu-se de suas obrigações entre-gando a relação dos
passageiros e apressou-se mais ao ver Eduardo perto da livraria.

— Bom-dia. Está esperando há muito tempo? No Rio, o tempo estava


fechado e a volta atrasou mais de uma hora. Então, como é, já localizou o
lugar?

— Sim. Imagine só que o tal ponto marcado por “eles” coincide com a ilha
da Trindade, nas costas do Espírito Santo.

— Você já se comunicou com o professor? Contou-lhe isso?

— Telefonei-lhe e marcamos um encontro depois do almoço, às duas e


meia. Você pode ir também?

— Acho que sim. Vamos fazer o seguinte: almoçaremos aqui mesmo e


desmarcarei por telefone o encontro que tinha na cidade com a Ruth. Daqui
para a casa do professor, é mais perto e assim teremos tempo de sobra para
a refeição, pois já é quase meio-dia e trinta.

Eduardo aceitou a sugestão e, pegando Leila pelo braço, encaminharam-se


para o restaurante.

Quando entraram pela segunda vez na residência do professor o relógio da


sala marcava duas e meia.
Dessa vez, foram recebidos pela filha de Augusto-Michel Vaugirard. Se a
Eduardo não passaram despercebidos os dotes físicos da jovem e seus
belíssimos olhos azuis encimados por sobrance-lhas negras, Leila observou
logo o bom gosto com que a moça se apresentava. Calça comprida preta,
bem justa, realçando suas formas esguias, blusa decotada em proposital
desalinho e sandálias vermelhas de brilho chocante.

— Sou Diana. Queiram fazer o favor de entrar. Papai está lá em cima e não
tardará a descer. Já os conhecia de nome. Papai me 76

contou tudo e confesso que estava ansiosa para conhecê-los


posteriormente. Estejam à vontade, que vou chamá-lo.

Eduardo acompanhou-a com o olhar e seu interesse não deixou de ser


notado por Leila que, ao ver a moça desaparecer no alto da escada,
assobiou significativamente, desapontando o aviador.

Augusto-Michel não se fêz esperar.

Com um chambre pomposo, um grosso volume debaixo do braço e um


sorriso dos mais acolhedores, conduziu os visitantes à biblioteca, ao mesmo
tempo que, voltando-se para a filha, lhe pediu que providenciasse um café.

— Meu caro comandante, as coisas talvez não sejam tão misteriosas assim.
O diabo é bem menos feio do que parece. O local indicado existe, o que
torna verídica a mensagem que lhe enviaram.

Além disso, a ilha da Trindade não é no fim do mundo.

O comandante escolheu uma posição melhor na poltrona, fixou o professor


e não pôde disfarçar seu desânimo.

— O senhor sabe que tudo isso me intriga. De dias para cá, ando doido
com tudo isso e não consigo pensar em outra coisa. É

uma verdadeira mania, uma obsessão. Mas essa ilha está tão longe, que
não sei se valerá a pena o sacrifício.
— Nem pense nisso, comandante. Imagine se não valerá tal sacrifício! O
senhor está subestimando sua posição. Veja só seu papel nisso tudo. Sem
explicação alguma viu-se envolvido nessa trama fantástica e agora, no fim,
quando a explicação se aproxima, quando surge a chave, fica desanimado,
achando que o sacrifício não compensa! Ora, ora, meu amigo! Que é isso?

Eduardo tornou a mudar de posição na poltrona. Vaugirard prosseguiu,


convincente:

— O caso deve ser examinado não como satisfação de mera curiosidade,


mas como uma grande, uma imensa, experiência científica. Considere que
esse problema há mais de dez anos vem preocupando a humanidade. O
senhor tem agora nas mãos a chave do enigma, o que não só constitui um
privilégio fabuloso, mas também poderá contribuir para verdadeira
revolução na história do homem.

Considere o que representará para a ciência um contato com outra


civilização mais adiantada. Considere os novos passos, os novos rumos, as
novas perspectivas que serão desvendadas. Acha então 77

que não valerá a pena? Ou não leva mais a sério a existência dos discos-
voadores?4

— Não é bem isso, professor, é que...

Não chegou a concluir a frase. Vaugirard não lhe deu tempo de falar,
procurando afogá-lo na maré crescente de seus argumentos. O aviador
respondeu, insistindo no assunto:

— Não nego a existência desses engenhos. Faço questão de frisar isso.


Depois do que me aconteceu, depois do que testemu-nhei, seria a última
pessoa no mundo a não acreditar nos discos-voadores. Mas uma viagem a
tal distância, por via marítima, requer tempo. Tempo e dinheiro, além de
uma série de providências difíceis, que vão desde o encontro da
embarcação adequada até à escolha duma tripulação de confiança.

Augusto-Michel não se deu por achado. Compreendeu que Eduardo se


referia também aos gastos e mais uma vez esclareceu suas intenções:
— Comandante, com relação ao lado financeiro, reafirmo que não há
obstáculos. Não fui bem claro ainda. Caso me permi-ta, todos os gastos
correrão por minha conta. Considere-se meu convidado e leve consigo as
pessoas que quiser; pois, custear o empreendimento será o menor tributo
que pagarei em retribuição ao privilégio de participar da expedição. Afinal
de contas, os gastos não serão elevados. Um bom barco oceânico, uma
tripulação pequena e treinada, algum equipamento, certos instrumentos e
uns dez dias de férias. O que temos a dar é insignificante em proporção ao
que iremos receber. Não se preocupe, comandante. Deixe tudo por minha
conta, insisto. Sua parte será a navegação, que não será das mais fáceis.
Trindade é um ponto perdido no mar. Como o se-4Sobre a fascinante
história dos “discos-voadores” que mostrou este belo livro do escritor
brasileiro, Rubens Teixeira Scavone do qual editamos, com grande aplauso,
em abril de 1965. “O Diálogo dos Mundos”, recomendamos a obra de Des-
mond Leslie e George Adamski, “Discos Voadores — A história de suas
aparições

— Seu enigma e sua explicação”, Editora Globo, Porto Alegre, 1957, na


tradução de Fernando de Castro Ferro e Alzira Vallandro, em que os
autores estudam esse assunto desde a lendária Atlântida, com os seus
“vimanas”, carros celestes, até à reunião dos oficiais da Reserva da Força
Aérea, em Washington, realizada a 1 de junho de 1953. (Nota do “Clube do
Livro”).
78
nhor sabe melhor do que eu, navegar no oceano é bem mais difícil do que
navegar no espaço. Vamos examinar todos os aspectos da questão e ajustar
os mínimos pontos.

Apanhou o livro grosso que estava sobre a mesa e que trou-xera em baixo
do braço ao descer as escadas. E puxando a mesa para junto de si, afastou
os cinzeiros e as caixas, abriu o volume e procurou uma das páginas.
Eduardo, Leila e Diana acercaram-se, debruçando-se sobre o mapa que ia
sendo aberto pelo professor.

— Aqui, está a ilha da Trindade. Mais ou menos a mil e cem quilômetros do


litoral do Espírito Santo. Uma pequena ilha rochosa, destituída de
qualquer interesse, com três milhas de noroeste a sudeste e um perímetro de
mais ou menos seis milhas. É o ponto mais elevado de um estreito platô
submarino rodeado por grandes profundidades oceânicas variáveis entre
mil e duzentos e mais de três mil metros. Observem aqui. Este lado possui
uma praia alvíssima, segundo dizem, um dos raros pontos onde um
desembarque é possível.

Vaugirard interrompeu-se. Escolheu pachorrentamente um cigarro na caixa


de cima da mesa, apertou-o a fim de amolecer o fumo, acendeu-o devagar
após batê-lo umas três vezes, deixando a piteira de âmbar de lado. Tirou
uma baforada, e continuou em tom de conclusão:

— O resto para o leigo em geologia não tem mais interesse.

Rocha íngreme e escalvada, de origem vulcânica, onde predomina o


piroxênio e a fonolita, com rara vegetação rasteira, sem árvores de maior
porte.

— Mil e cem quilômetros de travessia, — interrompeu Eduardo — é uma


boa distância, professor. Não entendo muito de embarcações, mas uma
travessia dessa natureza exige uma embarcação de casco duplo, um bom
motor com velas auxiliares, de preferência Diesel, com força de quase cem
cavalos, além de reservas especiais de combustível.

— Isso tudo não é difícil — ponderou, o professor, sempre pronto a


contornar as dificuldades previstas pelo aviador, bem como a responder-lhe
às objeções. — Basta uma viagem a Santos e uma volta pelo porto. Esse é o
tipo comum dos barcos de pesca de alto-mar e não faltará quem se
interesse em aceitar o transpor-79

te. Se não achar, farei um anúncio nos jornais. Prometerei bom pagamento
e tenho certeza de que os interessados aparecerão às dezenas. Que acha?

Leila, que até então assistia calada à conversa, apresentou uma sugestão:

— Escutem. Tenho uma idéia que poderá ser aproveitada.

Eduardo, você sabe que o rádio-telegrafista Santos tem uma barca?

Parece que não é só dele. É uma espécie de sociedade entre alguns


tripulantes. Sei disso porque o Santos, que é doido por pescarias, passa
todos os dias de folga metido nessa embarcação correndo o litoral. Não sei
que tipo de barca é, mas creio que é grande e sólida, porque no ano
passado eles fizeram um cruzeiro até o norte. Por que você não conversa
com êle?

— De fato, — concordou Eduardo — de fato. Já ouvi o pessoal falar várias


vezes nessa embarcação. É um cúter movido a motor Diesel. Mais de uma
vez em vôo tive que agüentar as conversas intermináveis e repetidas do
Santos, do Américo e dos outros, contando as pescarias nesse barco. Sua
idéia foi ótima, Leila. O senhor não acha, professor?

— Também acho ótima a lembrança. Sendo o barco de um conhecido e


possuindo as características indispensáveis para a travessia, creio que os
gastos serão bem menores. Além disso, assim, a viagem não terá
publicidade alguma. A questão é saber se esse moço ou o grupo nos
emprestará ou alugará a embarcação. Quais são suas relações com esse
rádio-telegrafista, comandante?
— Não é dos meus amigos mais chegados, mas tenho certeza de que não
fará objeção ao meu pedido. Isso se a barca servir, é claro, mas tenho
ainda outra idéia. Penso até que o Santos poderá ser um dos participantes
da expedição. O professor faz alguma objeção?

— Comandante, não se esqueça de que o senhor será o chefe da expedição,


e nessa qualidade é quem determinará quais os seus coparticipantes. A
mensagem do transmissor deixou tudo ao seu cuidado, facultando inclusive
a presença de dois ou três amigos pessoais, ao seu critério. Não faço
objeção alguma a quem quer que o senhor escolha para tomar parte na
travessia. Sendo esse moço um dos proprietários da embarcação, é de
presumir-se que 80

conheça bem a navegação oceânica e o manejo do barco, o que é de capital


importância para nós.

Cada vez mais à vontade agora e demonstrando crescente entusiasmo,


Eduardo ia pouco a pouco superando seu pessimismo anterior,
empolgando-se com a idéia.

— Tenho certeza de que Santos é o homem indicado... Quanto aos discos,


não direi que êle acredite na sua existência, mas tenho a impressão de que
não é inteiramente cético. Mais de uma vez o apanhei discutindo o assunto
e, mesmo sem ter prestado atenção ao que dizia, vi que seus argumentos
não eram dos mais primários.

Além disso, parece-me bastante inteligente. É doido por pescarias e só por


esse motivo, pela oportunidade de grandes pescas, acabará aderindo.

Augusto-Michel de novo debruçou-se sobre o mapa.

— Veja. A ilha tem poucos lugares para uma ancoragem fá-

cil. Nossa embarcação, além de ser valente, precisará de um piloto exímio,


conhecedor dos segredos do alto-mar, capaz de abordar em pontos difíceis.
Veja. Todos estes contornos são altas rochas, escarpas íngremes, na
maioria de puro basalto. Pois, segundo afir-mam os especialistas, Trindade
é constituída quase exclusivamente de rochas vulcânicas. Neste local, na
Ponta do Paredão, dizem que existe a cratera de um vulcão extinto. Nessas
encostas abrup-tas bate sempre um mar revolto. E ainda não é só. À
violência das águas adicionam-se areias movediças, recifes ocultos, rochas
móveis, tudo isso fazendo com que a aproximação seja coisa realmente
difícil fora da costa norte. Precisamos conversar com o tal Santos,
examinar com êle todos esses pontos e saber antes de tudo as
características da embarcação.

O aviador levantou os olhos da superfície do mapa e, vendo que Vaugirard


estava bem informado sobre a ilha, resolveu saber outros pormenores.

— Como é a superfície da Trindade, professor? Existe boa água? E caça?

— Trindade é uma ilha incomum. Desabitada, a não ser durante os raros


períodos em que para lá se dirigem expedições científicas, esteve ocupada
somente ao tempo da última guerra, consi-derada como ponto estratégico.
Ao que me consta, foi descoberta 81

em 1501, por um navegador espanhol chamado João da Nova. Seu clima,


segundo li, é dos mais sadios, semi-úmido e tropical, com temperatura
média de vinte e três graus. A vegetação é rasteira, do tipo denominado
alpino. A água potável é abundante e, afora as aranhas e tartarugas, que
infestam a ilha, o que lá existe com fartura são os porcos selvagens e
cabras. Além de caranguejos de todos os tipos.

A filha do anfitrião não mais se conteve. Até então se limitara a escutar a


conversa, arriscando de vez em quando um olhar mais demorado para o
aviador, o que não passava despercebido à comissária.

— Ora, papai! Por que “eles” escolheram esse ponto? Não é preciso ser
cientista para responder! Uma ilha assim desconhecida e longínqua
deveria mesmo ser o local indicado. Devem querer o maior mistério
possível. A pista de Congonhas é que não iria servir, não acham?

Augusto-Michel surpreendeu-se com a intromissão da filha.

Limpou um pigarro expressivo, mas não deixou de concordar com a


explicação.
— Deve ser isso mesmo. Um lugar desconhecido de quase todo o resto do
mundo e relativamente perto de nós. Afastado das rotas marítimas e aéreas.
Que haverá por aquelas bandas?

— Vamos deixar para cogitar disso depois — atalhou Eduardo. — Confesso


que nem durmo direito mais, sempre procurando resposta para todas essas
dúvidas. Já acertamos que iremos e como iremos. Agora, se me permite,
vou meter mãos à obra. Irei direto ao Santos, explicarei em linhas gerais o
caso, pedirei absoluta reserva e examinarei as possibilidades do barco.
Depois, estudaremos os demais pontos. Instrumentos, materiais, víveres,
combustível, enfim, tudo o que fôr necessário para a travessia. Se o cúter
servir e o Santos concordar, êle poderá auxiliar-nos nesses cálculos, pois
deve ter bem mais experiência do que nós. Assim que souber alguma coisa
de positivo lhe telefonarei.

— Nesse meio tempo, comandante, de minha parte providenciarei o


material científico necessário na ilha e mesmo a bordo, e tomarei as
medidas financeiras que se fizerem necessárias. O

senhor tem carta-branca para os gastos, fazendo tudo sem ser pre-82

ciso consultar-me.

Leila e Eduardo levantaram-se. E quando saíam, ao atra-vessarem o


jardim, a comissária não se conteve e comentou, com indisfarçável
azedume o interesse ostensivo da filha de Augusto-Michel pelo aviador:

— Puxa! Aquela menina quase devorou você com os olhos!

Eduardo sorriu, não sem discreto prazer e, puxando Leila pela mão,
entraram no carro.
83
84

SEGUNDA PARTE

A ILHA

VIII — O CÍRCULO MAIOR

Não foi coisa fácil localizar o rádio-telegrafista Santos. Nesse dia êle
partira em vôo para o sul e somente no dia seguinte, pela tarde, Eduardo
conseguiu encontrá-lo. Convidou-o para um jantar e, durante a refeição,
explicou-lhe todo o plano, pondo-o a par dos acontecimentos em linhas
gerais, sem chegar a minúcias.

Santos desde logo se interessou vivamente pela expedição.

Quis saber se na ilha havia pesca em abundância, entusiasmando-se mais


por esse aspecto do que pelo encontro misterioso. Quanto à embarcação,
era de fato adequada para a viagem. Pertencia a mais seis tripulantes e era
do tipo cúter, com um motor Diesel de noventa cavalos, além de velas
auxiliares. Media doze metros de comprimento por quatro de boca,
dispondo de acomodações para seis pessoas, além duma pequena cozinha e
instalações sanitárias.

Contava dois tanques laterais de duzentos e cinqüenta litros cada um e


havia além disso, espaço de sobra no convés para quatro ou cinco
tambores de duzentos e cinqüenta litros, para serem utilizados na volta.
Eduardo ficou sabendo, também, que o casco era reforçado, preenchendo a
embarcação todos os requisitos para uma travessia oceânica do tipo da que
iam empreender. A velocidade, em condições normais e com vento de popa,
usando-se a bujarrona e a vela mestra, podia atingir a mais de trinta e
cinco quilômetros 85

por hora, o que possibilitaria a travessia em cerca de dia e meio a dois


dias, no máximo.
O rádio-telegrafista ficou de conversar com os demais proprietários da
embarcação, aceitando, porém, o convite.

Quanto ao aviador, marcaria em seguida um encontro, na residência do


professor Vaugirard, a fim de ultimarem os planos e pormenores da
expedição.

Desde o primeiro dia, no mar, não tinham ainda assistido a um pôr-de-sol


tão magnífico. O céu estava, aquela tarde, absolutamente límpido e uma
tonalidade de azul, que ia do mais claro ao mais profundo, rivalizava com o
tom de turquesa que o oceano adquiria naquele momento.

Do local em que se encontravam, divisavam grande parte da costa norte.


Embora não sendo elevado, o local permitia uma vi-são ampla que ia desde
a Ponta da Pedra até à Pedra do Tubarão, enquanto desta se avistava a
extremidade norte da ilha — a Ponta da Crista do Galo — próxima ao
Monumento, rocha de mais de quatrocentos metros de altura.

O local onde se encontravam não podia ser considerado precisamente uma


praia. A areia grossa misturava-se com rochas e seixos de todos os
tamanhos, que se espalhavam desde a orla marí-

tima até às elevações interiores. A areia era áspera e avermelhada,


esparramada em faixas ou depositada no fundo de pequenos man-gues. Ali
onde estavam havia uma diminuta praia com três ou quatro coqueiros,
quebrando a monotonia da paisagem rude. Armaram as barracas no ponto
em que a faixa costeira começa a inclinar-se em rampa, a uma distância de
cerca de seiscentos metros dum platô que abria caminho para as escarpas
interiores.

A tarde caia rapidamente e a lua-cheia já se entremostrava sobre a linha do


horizonte, impondo pouco a pouco seu brilho e lançando reflexos
cambiantes sobre o oceano e sobre a marola agitada em espuma nas rochas
e nos seixos, que iam adquirindo uma tonalidade de carvão.

Não havia uma única brisa sequer e o barulho rítmico e ime-86


morial do mar em choque com as rochas criava uma atmosfera de
irrealidade selvagem.

Estavam ali instalados há mais de doze horas.

A travessia, depois do mar grosso encontrado logo na saída, se fizera em


condições normais e de acordo com os planos prees-tabelecidos.

O “Alcíone” desincumbira-se bem de sua tarefa. Tinham zar-pado do Rio


de Janeiro, para onde havia sido conduzido o cúter, aproando para o Cabo
Frio, enveredando em seguida para o alto-mar. O rumo e a declinação
foram meticulosamente estudados e os três tripulantes revezaram-se na
roda do leme durante o percurso.

Logo de saída tiveram o auxílio de ventos fortes, que aumentaram de vários


nós a potência do motor, para logo entrarem numa zona de mar agitado.
Depois do Cabo Frio os ventos haviam deixado de soprar e o barco
enfrentara uma longa faixa de mar espelhado, onde os expedicionários
passaram a contar apenas com o motor.

Toda a navegação ficou a cargo de Eduardo. A deriva foi mí-

nima e aproaram afinal na ilha na hora esperada, com diferença


insignificante de cálculos. Chegaram pela madrugada e aguarda-ram o
raiar do dia para a ancoragem, buscando a Enseada dos Portugueses
depois de contornarem a Ponta do Paredão e a Ponta das Tartarugas, na
parte sul da ilha.

Logo de manhã escolheram o local para as barracas e desembarcaram os


instrumentos e víveres. Pois, conforme os planos, ficariam em Trindade
pelo menos até ao dia 9, caso nada viesse a acontecer naquele imprevisível
8 de julho.

Armadas as barracas, do tipo militar, os três homens pre-pararam durante


o dia inteiro uma tenda para os instrumentos e a grande fogueira que
poderia arder durante toda a noite. Num círculo largo em volta do
acampamento foram ainda colocados quatro lampiões de querosene. Ao
centro, perto da barraca de Leila, instalaram a luneta de trinta aumentos e
ao lado, fora do estôjo e devidamente preparada para qualquer
emergência, a câmara-miniatura, com filme ultra-rápido e tele-objetiva.
Um contador Geiger de radiação estava a postos desde os primeiros
momentos do desembarque, e durante todo o dia o professor correra vários
pontos da ilha procurando medir a radioatividade, sem obter efeitos posi-
87

tivos. Mesmo atarefados nas instalações, os homens não deixavam um só


momento de vigiar o espaço e os horizontes. Não se esquece-ram de que
estavam no dia marcado e, assim, tudo poderia acontecer a qualquer
instante.

A expectativa aumentava minuto a minuto, criando uma atmosfera de mal-


estar e ansiedade entre os membros da expedição.

Só Augusto-Michel Vaugirard não deixava aflorar tal estado de espírito.


Desde que se fizera ao mar vinha se revelando o mais ativo e dinâmico
membro da expedição. Infatigável no preparo dos instrumentos, incansável
no registro das condições meteorológicas, pensava até em realizar um
levantamento do litoral da ilha, ocupando boa parte da tarde em registros
topográficos.

Já os demais mantinham atitude de reserva.

Eduardo não estava totalmente convencido do acerto da expedição. É


verdade que pensara muito no assunto e resolvera atender ao insólito
convite, sendo certo também que acreditava na existência dos discos-
voadores. Todavia, o que ainda o preocupava era a razão pela qual fora
envolvido nessa estranha aventura. No fundo, sua atitude era ditada mais
por natural curiosidade do que por espírito especulativo, como se dava
com o professor. Assim, mesmo admitindo a existência dos discos, mesmo
acreditando na existência de seres superiores vindos de outras partes do
universo, Eduardo não se sentia atraído pela verificação desse fato. O que
o intrigava, o que desejava esclarecer mais do que tudo era a razão da sua
escolha e os motivos que levaram tão fantásticas criaturas a envolvê-lo nas
malhas desse episódio inacreditável. Em duas palavras: estava possuído de
um misto de ceticismo e credulidade e deixava a sua opinião final sobre os
fatos para depois desse dia 8
de julho.

Com a comissária a situação era a mais diversa possível. Não seria


necessário raciocínio profundo e nem conhecimento de psico-logia para se
aduzirem as razões que nortearam o procedimento da moça. Não fora ter
àquela ilha deserta, com aspectos de paisagem lunar, por motivos de ordem
científica, por curiosidade ou espírito de aventura. Não. As causas eram
mais primárias e humanas: queria estar ao lado de Eduardo, pois há muito
tempo, como também 88

acontecia com o aviador, sabia que seus destinos estavam ligados para
sempre.

Dessa forma, de todos os componentes do grupo era ela quem menos se


interessava pelo disco-voador e por seus tripulantes, pouco se importando
com o que na ilha viesse a acontecer, desde que não pusesse Eduardo em
perigo.

Quanto ao rádio-telegrafista, sua posição também era diversa. Santos


conhecia a questão dos discos. Sua informação a respeito era, todavia,
bastante primária. O que sabia fora lido no notici-

ário de jornais e revistas, jamais tendo êle se preocupado em obter


conhecimentos mais profundos ou mais exatos sobre o assunto.

Quando recebeu o convite, em verdade, não se impressionou muito. Aceitou


o pacto de silêncio e viu na expedição, antes de mais nada, boa
oportunidade para tomar parte num passeio com ares de aventura. No
fundo era uma criança grande, que seguia filmes se-riados e se
impressionava com histórias em quadrinhos. Recebeu o convite, arranjou a
embarcação e viu em tudo aquilo um bom meio de gozar suas férias.

Para o rádio-telegrafista, a questão dos discos-voadores era um pretexto,


pouco também lhe importando, como à comissária, que os misteriosos
engenhos surgissem ou não sobre as escarpas da ilha. Sentia-se já mais do
que compensado com os dias bem aproveitados sobre o mar, com a visita à
ilha desconhecida, e com a coleção de peixes que ia sistematicamente
arrancando do fundo das águas e espalhando pelo convés, ao lado dos
tambores de óleo. Augusto-Michel desconfiava às vezes, que Santos não
levava a sério a expedição; mas não conseguiu jamais apanhá-lo em
demonstração evidente desse estado de espírito.

Do lugar em que se encontravam, viam bem a embarcação ancorada. O


“Alcíone” estava ao largo, seguro, com a âncora de en-golir, e tinham
chegado à terra com o emprego do bote de borracha de ar comprimido, do
mesmo tipo dos utilizados nos vôos transo-ceânicos. Em duas viagens,
tinham transportado todo o equipamento, ficando o barco de borracha
guardado debaixo da barraca de instrumentos.

Às seis e vinte da tarde, o sol acabou de desaparecer. No ho-89

rizonte marítimo, restou, apenas, uma larga cortina de luz, que se


assemelhava à claridade zodiacal. A tonalidade vermelha foi cedendo a
cores róseas, descambando para o azul e o violeta.

Com o desaparecimento do sol, uma leve brisa começou a soprar e o frio,


já intenso, aumentou mais ainda, razão pela qual Santos lançou mais lenha
na fogueira, cujas labaredas bailavam na semi-obscuridade.

Leila, debruçada ao lado de um fogareiro de querosene, preparava uma


cheirosa sopa em lata, enquanto Eduardo, depois de ligar o rádio de
bateria, procurava uma estação que estivesse irra-diando música.

As notas alegres e claras da música de jazz inundaram o acampamento e


perderam-se pelos rochedos. Todos eles tinham quase certeza de que aquela
era a primeira vez que sons musicais se faziam ouvir na ilha. A música
como que os reanimou e logo mais se agruparam junto ao fogo para a sopa
reconfortante.

— Meus amigos, chegamos com a noite à etapa final dé nossa espera —


anunciou solenemente o professor Vaugirard, enquanto esfregava as mãos,
procurando esquentar-se, depois de já ter enfiado um sueter vermelho de
lã.

— Logo a coisa vai acontecer! Sinto que a viagem não foi em vão! Quem
respondeu foi Eduardo:
— Já estou ficando melo desapontado. Ainda há pouco disse a Leila que
estava com a impressão de quem espera muito por uma festa a qual no
momento exato é transferida...

O rádio-telegrafista apanhou seu prato de sopa e, enquanto procurava


esfriá-lo com a colher, indagou:

— Que é que vocês esperam que aconteça? Isso vocês não me esclareceram
ainda. Como é que vocês acham que “eles” vão aparecer?

— Não sabemos bem o que irá ou o que poderá acontecer —

respondeu o aviador. — O convite nada esclareceu a esse respeito.

Apenas me foi dito que viesse para encontrar aqui a explicação dos
fenômenos que venho presenciando ultimamente. Também aqui em
Trindade com certeza saberei a razão de minha escolha. Tudo está por
pouco. Ou testemunharemos fatos extraordinários ou se-90

remos logrados e a nossa expedição será transformada em ridícula viagem


de recreio forçado...

O professor encarou seriamente os dois e ponderou em tom seguro, que


chegou a perturbá-los:

— Não se preocupem. Tenho absoluta convicção de que dentro em pouco


assistiremos a coisas sensacionais. Esqueçam-se de tudo por algum tempo,
tomem a sopa e depois me auxiliem na vigilância do espaço. Pressinto que
a “coisa” está para aparecer!

Convém que não percamos tempo. O comandante não perderá um segundo


sequer com a máquina fotográfica. Assim que surgir alguma coisa de
anormal fotografe imediatamente. Use foco para o infinito e a abertura
máxima do diafragma, empregando uma velocidade média que congele
qualquer movimento sem prejudicar a sensibilidade do filme. Eu me
encarregarei do teodolito, registrando a posição, ao passo que Santos se
encarregará da observação com a luneta. Quanto a você, Leila, não se
afaste de nós, haja o que houver.
A comissária trocou olhares com Eduardo e com Santos, sentindo um
calafrio percorrer-lhe a espinha dorsal e uma ainda não sentida sensação
de medo. Acercou-se de Eduardo e procurou-lhe o braço como em busca de
proteção, indagando de Vaugirard:

— Mas, afinal, que poderá suceder, professor?

— Não sei, minha filha. Mas o certo é que estou começando a ficar
arrependido de não ter trazido alguma arma de fogo.

Ouvindo a afirmativa, Santos não pôde reprimir um sorriso dúbio.— Vocês


me desculpem. Mas não pude resistir. É um velho hábito e não deixa de ser
dos bons, principalmente em determina-das circunstâncias...

— Que quer você dizer com isso, Santos? — interrompeu Eduardo.

O rádio-telegrafista não se conteve. Levantou-se e foi ter à sua barraca.


Depois de remexer na sacola de viagem, regressou para junto do fogo com
dois enormes revólveres, de calibre trinta e oito.— Vejam. Uma dessas eu já
tinha. É minha velha companheira desde antes da campanha da Europa.
Quanto à outra, meu 91

caro amigo Eduardo, é um presente que lhe faço neste momento.

Balas eu tenho à vontade. Ponha-a na cintura e verá logo que esse frio não
será tão intenso assim. Que tal?

Eduardo, Leila e o professor, que estavam a par da recomendação de não


levarem armas, regozijaram-se com a lembrança, mas no fundo passaram a
sentir algum receio de ter sido a recomenda-

ção burlada. Afinal de contas, sentiam-se desprotegidos; pois não sabiam


ao certo o que iam deparar e não calculavam nem mesmo que valor
poderia ter uma arma de fogo perante a natureza desconhecida dos
esperados visitantes.

— “Eles” recomendaram que não trouxéssemos armas — advertiu Eduardo


— mas esconda bem a sua, que procurarei fazer outro tanto com a minha.
Elas são um tanto volumosas, mas se as enfiarmos na cinta, debaixo da
camisa, dificilmente serão notadas em virtude da escuridão. Porque será
que fizeram esse pedido?

— Ótimo, ótimo — concordou Augusto-Michel. — Guardem isso bem


escondido. Na ilha pode haver animais selvagens, cobras, e outras coisas...

— Que outras coisas? — interrogou Leila, manifestando visí-

vel temor.

— Outras coisas... Isto é, feras, cobras...

A esse ponto da conversa o rádio, que permanecia ligado, passou a


produzir uma série de ruídos incômodos de estática. De início estalidos
rápidos e curtos, depois barulhos fortes que supe-raram totalmente a
música que vinha sendo captada.

Eduardo levantou-se e procurou mudar de estação. Correu toda a faixa e


não obteve melhores resultados. A interferência tornava-se cada vez mais
violenta e o barulho cada vez mais freqüente.

— Bem, isto já é uma novidade — exclamou o professor, encaminhando-se


para o rádio, colocado sobre um caixote de mantimentos. — Não desligue,
comandante, não desligue. Vamos ver o que é isso.

Foi aí que o contador Geiger começou a emitir sons pausados e estridentes


que foram aumentando até se transformarem num chiado ininterrupto.

— É a “coisa”! — murmurou entredentes o professor. — Aten-92

ção! Cada um em seu posto!

Leila sentia-se presa de crescente pavor e procurava acercar-se mais do


comandante, quase lhe tolhendo os movimentos. Este apanhou a máquina
fotográfica, desprendeu-a do tripé e colocou-se longe da fogueira,
perscrutando o espaço sobre a ilha.
Santos mudou de atitude. Largou o prato de sopa e aproximou-se da luneta,
sem saber o que devia fazer, limpando desajeita-damente as mãos na calça
amarrotada.

Augusto-Michel Vaugirard era o único que se mostrava à vontade. Como se


fosse executar um trabalho conhecido e de rotina, acercou-se do lugar onde
se achava o teodolito e destampou a ocular, puxando antes para junto de si
o medidor de radioatividade, que estalava de forma inconcebível.

— Vejam! É espantoso! Nunca vi coisa assim. A emanação é incrível! Não


sei de substância alguma capaz de emanar tanta energia!

O que se passou a seguir foi coisa das mais fantásticas.

Um ponto luminoso destacou-se sobre a linha do horizonte, vindo do lado


Este, como se fosse uma estrela que se separasse de sua constelação.
Movimentou-se em direção à ilha em menos de um minuto, aumentando
assustadoramente de tamanho.

Seu formato foi logo observado. Era um disco perfeito, animado de grande
movimento circular em torno de seu próprio eixo, e de tamanho superior a
duas vezes a lua no plenilúnio.

O objeto voador — indiscutivelmente um disco — expandia forte


luminosidade de várias cores, com um ponto central vermelho na parte
superior. Deslocou-se em rápido movimento circular sobre Trindade, como
se procedesse a um reconhecimento. Depois, retornou, aproximando-se do
lugar, onde se encontravam os quatro assombrados espectadores,
estabilizando-se a cerca de quinhentos metros de altura, como se estivesse
seguro à abóbada celeste por um fio invisível.

Não emitia um ruído sequer e deixava em torno de si uma leve


fosforescência que desaparecia em segundos. Parado, animado apenas de
movimento circular sobre o respectivo eixo, o misterioso engenho assumia
aspecto nebuloso, sem contornos nítidos, como se fosse um objeto sem
consistência.
93
Os quatro imóveis assistentes presenciavam à cena e às evoluções,
transidos de pavor. Eduardo não se moveu e esqueceu de obter as primeiras
chapas, limitando-se a abraçar â comissária num gesto instintivo de
proteção. Santos não chegou a ajustar a luneta. Deixando o aparelho de
lado, postou-se estático ante as manobras do objeto luminoso. Augusto-
Michel também não se lembrou de utilizar o teodolito, o que seria mesmo
impossível devido ao movimento rápido do disco-voador.

Este se estabilizou por alguns minutos, sempre girando sobre si mesmo, e


pairou acima do pequeno platô existente há mais ou menos quatrocentos
metros do local onde estava o acampamento.

Parecia indeciso, sem saber ainda qual o deslocamento que adota-ria.


Ninguém pronunciou uma só palavra.

A aparição do disco-voador — pois aquilo só podia ser o que se


convencionou chamar por tal designação — deixou inertes os quatro
observadores. Pairando ainda, suspenso, como se contives-se uma força
misteriosa aniquiladora da força da gravidade, o disco não cessava de
girar, destacando-se apenas em sua parte superior um ponto de luz
vermelha, que se acendia e apagava de forma intermitente.

Eduardo foi o primeiro a mover-se. Separou-se delicadamente de Leila, sem


deixar de fixar um só momento o objeto, e levantou a câmera-miniatura.
Enquadrou a imagem no visor e disparou —

uma, duas, três vezes — automaticamente, sem dar-se conta do número de


disparos, agindo como hipnotizado.

Vaugirard era o único que não se descontrolava. Seu mutismo escondia um


raciocínio intenso, procurando analisar a apari-

ção em seus mínimos pontos. Foi o primeiro a falar, sem despregar os olhos
do objeto, que continuava em seu giro assombroso.
— Vejam! Vejam! Um disco-voador! Um disco-voador! Não disse! Não
disse! Não tinha razão?

Mesmo aparentemente controlado e procurando dominar a situação, não se


apercebia que gritava mais do que falava e seus brados, perdendo-se pela
orla marítima e pela encosta junto ao platô, ecoavam nas rochas lá no
fundo, deixando transidos de terror os outros espectadores.
94
— Vejam! Vejam! Vejam à vontade! Lá está êle! Ai dos incré-

dulos! Ai dos céticos!

A voz chegava a ser mórbida e histérica, mas em suas atitudes e gestos o


professor continuava a demonstrar perfeito controle da situação.

— Atenção, comandante Eduardo! Não se esqueça da máquina! Não perca


um instante!

Eduardo pouco a pouco foi saindo do torpor que o possuíra.

Apenas Leila e Santos, de olhos esbugalhados e presos no espaço,


continuavam alheios a tudo que ao redor se passava.

A visão assombrava, de fato, justificando o impacto geral.

Era, efetivamente, o que se convencionou chamar um disco-voador. Ali


estava êle, parado naquele momento, naquela ilha deserta, exposto aos
olhos de quatro espectadores. Deixava de ser um mito, amálgama de lenda
e realidade, de fantasia e ciência.

Suas linhas não fugiam a muitas das descrições feitas por dezenas de
testemunhas: um disco de diâmetro ainda não bem calculado devido à
distância, tendo ao centro, na parte superior, uma espécie de cabina
circular com várias escotilhas, que já tinham sido vistas pelo professor por
meio do binóculo e por Santos através da luneta.

Nos momentos que se seguiram, Eduardo esgotou o rolo do filme e foi


puxado por Augusto-Michel, que lhe colocou o binóculo nas mãos.

— Veja, comandante! Dê uma espiada através das lentes e examine o disco!


É inacreditável!
O aviador não pôde esconder seu espanto. O disco era exatamente igual às
fotografias de Adamski e de Coniston. Lá estavam as semi-esferas que
serviam de trem de pouso. Lá estavam, bem recortadas, as portinholas que
deixavam escapar uma luz interior bem branca. Não conseguiu reprimir
uma exclamação ao observar outros detalhes:

— Por Deus! Dentro daquilo existem tripulantes! Tome, veja

— disse, passando o binóculo novamente às mãos de Vaugirard.

— É fantástico! Estão lá dentro! Movem-se! Vejo duas silhuetas que se


mexem!

Pela primeira vez, Santos rompeu o mutismo, dando sinal de 95

vida, sem tirar os olhos da ocular da luneta.

— Não tem dúvida alguma. Não é um teleguiado, como pensei desde o


começo. Tem gente lá dentro! Vi, claramente, os vultos se movimentarem.
Que vamos fazer?

— Vamos nos aproximar e examinar melhor. Acho melhor Leila ficar aqui
enquanto nós nos avizinhamos dele. Vamos tentar um contato com os
tripulantes.

A comissária movimentou-se do lugar, onde estava e reuniu todas as suas


forças para conseguir articular algumas palavras:

— Não fico aqui sozinha! Se vocês forem para lá, também vou. O aviador
lembrou-se então de um ponto:

— Professor! E a radioatividade? Não será perigosa a aproximação?

Só nesse instante se lembraram do contador Geiger. Este, entretanto, estava


agora tão silencioso como se a fonte que antes o excitara tivesse se
extinguido por completo.

Augusto-Michel acercou-se do aparelho, movimentou os botões e examinou


os ponteiros. Cientificou-se de que nenhuma radioatividade era agora
acusada, tudo fazendo crer que as emanações registradas deveriam ter
vindo da fonte propulsora do disco-voador.

— Não acusa mais nada. A agulha está inerte. Não vejo perigo em nos
aproximarmos. É chegado o momento de nos entendermos com eles, afinal.
Vá na frente, comandante. Nós o seguiremos. Vamos dar uma espiada bem
de perto.

Santos e Eduardo pegaram as duas lanternas de mão e os quatro puseram-


se a caminho do platô, onde pousara o aparelho.

À medida que venciam a distância, tropeçando pelo solo irregular e


pedregoso, iam observando melhor o disco, tendo uma idéia mais exata do
seu tamanho.

Deveria ter pelo menos uns vinte metros de diâmetro.

Quando se achavam a uns dez metros, os quatro pararam.

Cada vez mais procuravam examinar o engenho, lançando sobre a


superfície polida os raios das lanternas. Logo verificaram que a parte
inferior, onde se ajustavam as esferas de pouso, dava a idéia de uma
grande peça autônoma, com movimento independente do 96

resto do bloco.

O disco estava inerte e nenhum movimento denunciava a presença de seres


vivos em seu interior. Mas de súbito, um zunido, a princípio fraco e depois
mais forte, começou a sair de dentro do objeto.Os quatro personagens
continuaram imóveis, possuídos de intensa apreensão. Eduardo e Santos
apagaram as lanternas e es-peraram, pois havia chegado o grande
momento.

Assim que o zunido aumentou abriu-se uma lenda de alto a baixo num dos
bordos do disco e surgiu em seguida uma espécie de entrada que se foi
abrindo, dando a idéia de um bolo do qual tivesse sido retirada uma fatia.

Não foi só.


Do lado direito desse vão, onde antes se via uma superfície compacta, esta
deslizou, dando lugar a uma segunda passagem, que se comunicava com o
interior do disco e por onde se libertou uma réstia de luz branca.

Os quatro olharam perplexos e viram surgir nessa segunda abertura,


contra a luz, o perfil alto e fino de uma figura com aspectos humanos.

IX — “CHAMO-ME ALIK”

Durante alguns momentos, permaneceram imóveis.

O aparecimento da figura alta e esguia na fenda que se abriu no disco-


voador veio coroar o fantástico dos acontecimentos.

Mais uma vez, Augusto-Michel foi o primeiro a recuperar-se.

Depois da parada momentânea, continuou a caminhar em direção à


aeronave, sem demonstrar o menor receio.

Santos afastou-se um pouco, chegou a enfiar a mão dentro da camisa onde


se achava a garrucha, mas não chegou a completar o gesto. Logo que viu o
professor encaminhar-se em direção à silhueta, Eduardo acompanhou-o,
puxando consigo a comissária, que relutava, em segui-lo.

A cena era de fato impressionante.

O disco, bem no centro do pequeno platô, refletia fortemente o luar, como


se toda a sua superfície fosse espelhada, e a silhueta 97

do tripulante, destacando-se na abertura, quebrava a linha aerodinâmica


do engenho. Na parte superior, sobre a cabina, o ponto vermelho
continuava a acender-se de forma intermitente, espalhando seus reflexos na
parte superior da estrutura.

Augusto-Michel Vaugirard estava fascinado. Como que atra-

ído pela presença da aeronave se aproximava cada vez mais, não


demonstrando temor algum.
Leila e Eduardo continuavam a segui-lo, sempre de olhos fixos na estranha
silhueta que continuava impassível. O rádio-telegrafista não se movia e de
longe aguardava, em atitude defensiva.

Quando estavam bem próximos, a silhueta moveu-se. Sem sair do lugar,


levantou um dos braços, como se saudasse os homens da terra que se
aproximavam.

Eduardo, Leila e o professor pararam mais uma vez, procurando melhor


observar a figura.

Não restava dúvida que sua aparência era humana. Do lugar onde se
achavam podiam distinguir alguns pormenores.

Seu aspecto era normal, a não ser o tamanho da cabeça, excessivamente


larga na fronte. O traje era branco, de uma algi-dez metálica, refletindo
também os raios do luar, como se fosse recoberto por uma camada de tinta
fosforescente. Nessa segunda parada, uma voz fêz-se ouvir:

— Chamo-me Alik. Aproximem-se. Não tenham medo. Nossas intenções são


pacíficas.

A voz não era inumana, contrariando a expectativa das quatro perplexas


criaturas.

O professor, como que automatizado, deu mais alguns passos à frente,


enquanto o comandante e a comissária hesitavam.

— Aproximem-se. Nada lhes sucederá. Compreendemos sua posição e seu


espanto. Nossa missão, porém, é de paz.

Com estas palavras, o local onde o personagem se encontrava apoiado,


uma espécie de plataforma, deslocou-se em direção ao solo, como se fosse
um elevador. O tripulante saiu de onde estava e, ganhando a terra,
encaminhou-se para o professor e estendeu-lhe a mão.

Vaugirard não hesitou. Aceitou o cumprimento e teve na sua mão pequena e


ossuda uma palma — longa, fria, musculosa, ines-98
quecível. Não pronunciou uma só palavra e, sempre com os olhos
esbugalhados, procurou analisar nos menores traços a aparência daquela
estranha personalidade.

Face a face, à luz do luar, via-se que o personagem era de fato humano. Lá
estavam os olhos, a boca e as orelhas. Havia, contudo, algumas diferenças:
os olhos eram maiores e mais brilhantes, desprovidos de cílios; os cabelos,
de um branco prateado, da côr aproximada do vestuário; o nariz, afilado e
longo; os lábios, inteiramente lisos, sem comissuras.

O tripulante do disco-voador suportou, imóvel, a análise atô-

nita do professor. Continuou onde se achava, em silêncio, subme-tendo-se


ao exame. Com a mão trêmula, Vaugirard tentou ligar a lanterna, sem
coragem de focalizá-la sobre êle. O outro também compreendeu o gesto.
Delicadamente retirou o farolete das mãos do professor e o apontou em
direção de sua própria pessoa, colo-cando-se debaixo do foco de luz.

Augusto-Michel deu um passo para trás, agora mudo e trê-

mulo. Viu que a pupila do outro era enorme, quase do tamanho do globo
ocular, não se retraindo debaixo da luz. Viu que a pele era incrivelmente
branca, como se nunca tivesse sido tocada pelos raios solares. Além de
branca, era de brilho invulgar. Parecia lubrificada por cosmético. Parecia
mesmo revestida por esmalte brilhante.

O traje, todo liso, era quebrado, apenas, por um cinto onde se ajustava
certo objeto circular de côr azulada. Como sapatos havia qualquer coisa
inteiriça e branca.

Enquanto o professor procedia, boquiaberto, ao exame, Leila e Eduardo


começaram a aproximar-se, também, convencidos de que não os ameaçava
nenhum perigo.

O rádio-telegrafista imitou-os. Deslocou-se do lugar onde estava e foi se


acercando, com a lanterna ligada.

De novo, ouviu-se a voz:


— Não tenham medo. Viemos em missão de paz. Vocês são nossos amigos e
aqui estamos para um primeiro contato. Aproximem-se, que nada lhes
sucederá.

Augusto-Michel, satisfeito com os resultados da inspeção, quebrou o


silêncio por fim. Suas primeiras palavras demonstraram porém o seu
descontrole. Titubeava, visivelmente perturbado por 99

todas as questões que lhe assaltavam a mente:

— Quem é você? De onde veio? Que deseja de nós? Como consegue falar a
nossa língua?

O tripulante do disco estendeu a lanterna em direção ao aviador, que


timidamente a recolheu.

— Compreendo a situação e a estranheza. Tudo isso não pode deixar de


parecer-lhes fantástico, em verdade. Mas vamos por partes. A noite
terrestre é longa e teremos tempo de conversar. —

Voltou-se a seguir para o comandante como se já o conhecesse,


continuando em tom ameno:

— Comandante Eduardo, o senhor foi um dos escolhidos. Já o conhecemos


a fundo e o recebemos como amigo, o que também fazemos em relação aos
seus companheiros. Mantenham-se, pois, calmos, que pouco a pouco hei-de
satisfazer a curiosidade de todos antes de entrarmos propriamente no
motivo deste encontro.

O professor, sempre de olhos esbugalhados, com os óculos na mão, insistia


em suas perguntas, agitando-se ao redor do personagem.

— Por Deus! Diga-me de onde vieram e o que pretendem!

Compreendendo o pânico que se apossara de Vaugirard, o tripulante fêz as


duas primeiras e sensacionais revelações:

— Viemos da terra mesmo. O seu planeta é também o nosso... Eduardo


interrompeu-o, falando pela primeira vez:
— De que país procedem? Como é que fala português?

— Não se perturbem. Repito: o seu planeta é também o nosso abrigo na


galáxia solar, mas de uma forma diversa. Nossos domí-

nios são outros, desconhecidos pelos habitantes da Terra.

Augusto-Michel e Eduardo entreolharam-se, perplexos. Não compreendiam


o que o estranho personagem queria dizer.

— Vocês têm por plataforma a crosta terrestre, ao passo que nós nada
temos que ver com a superfície. Nossa civilização é subterrânea. Nosso
habitat fica no interior do planeta. Não se espan-tem. Esta é uma
informação provisória, para responder às primeiras perguntas.

Eduardo e Vaugirard não podiam mais esconder o espanto.

Viviam dentro de um pesadelo. E aquele personagem fantástico 100

era certamente um produto onírico que não podia ser tomado em


consideração.

Alik calou-se e esperou que Santos se aproximasse. Sujeitou-se ao mesmo


exame, em silêncio e, depois de novo pedido de calma e confiança,
convidou-os a penetrar no interior do disco para continuarem a conversa.

Os quatro entreolharam-se, como que procurando resposta ao convite.


Eduardo não titubeou. Sempre puxando a comissária pela mão e seguido
por Santos e Augusto-Michel, encaminhou-se para a plataforma debaixo do
aparelho. O tripulante guiou-os.

Assim que os quatro ocuparam a plataforma, com um zunido quase


imperceptível ela se deslocou, elevando-se à altura do disco e parando em
frente à fenda lateral. O tripulante continuou a indicar-lhes o caminho e
todos ingressaram no interior da aeronave. Aquele esperou que alguns
minutos se passassem, a fim de que os quatro habitantes da superfície da
terra pudessem examinar à vontade o compartimento onde se achavam.
Procurava, assim, incutir-lhes confiança.
O compartimento tinha forma quase triangular, como se fosse uma seção, a
terça parte da circunferência que constituía o corpo do aparelho. Não
havia duvida: estavam na parte superior do engenho, na protuberância que
seria a cabina. Todo o revestimento era metálico, de um branco polido,
idêntico ao metal do exterior. Ao lado da passagem oval, em relevo na
parede, firmava-se um painel repleto de instrumentos, quase todos feitos de
material transparente, onde se agitavam agulhas e líquidos. Como
mobiliário, havia no centro três peças com aspecto de camas ou divas,
inteiramente lisas, sobre pés metálicos, cercadas de alavancas e
comutadores, lembrando mesas cirúrgicas.

— Fiquem à vontade. Não são os primeiros habitantes da superfície a


penetrarem em nossa nave do espaço. Mas é justo que, ao ingressar pela
primeira vez, sintam curiosidade, principalmente se tratando de um
aviador, de um professor de astrofísica e de um rádio-telegrafista.

Mais uma vez, os três entreolharam-se significativamente, desconcertados


ante as informações exatas do tripulante sobre suas profissões.
101
Leila foi a única que não se interessou pelo exame minucioso da cabina.
Recostou-se naquilo que lhe pareceu um diva embora não muito ajeitado, e
não conseguia despregar os olhos do absurdo personagem.

Sentindo que chegava o momento das explicações, procura-ram acomodar-


se, à exceção de Santos que se encostou numa das paredes da cabina,
sempre demonstrando atitude de receio e auto-defesa.— Como já lhes disse,
viemos das profundidades da terra.

Antes que me submeta às suas perguntas darei alguns esclarecimentos


provisórios: a superfície da terra não é, conforme vêem e como todos
pensam, o único campo de um tipo de vida superior, racional, representado
pelo espécime denominado “homem”. Não.

A vida, — condição de atividade contínua, comum aos seres or-ganizados


— é também possível no interior da crosta e em várias profundidades. O
globo terrestre, como sabem, não é uma massa compacta, inteiriça.
Milhares e milhares de vazios, de bolsas, existem em seu interior. Nessas
bolsas é que se situam as nossas sete cidades.

Fêz uma pausa, correu aqueles olhos imensos e desprovidos de cílios pelos
quatro espectadores atônitos, e continuou no mesmo tom: — Meu nome,
como já lhes disse, é Alik. Venho com meu veículo espacial da terceira
cidade de Agarta e empreendo um dos vôos de rotina na parte exterior,
como sempre em missão de paz e reconhecimento. — Parou por segundos,
deu alguns passos pelo compartimento e continuou: — Sei que tudo isso
lhes parece absurdo e que seria mais fácil admitir uma origem extra-
terrena para nossa nave espacial, que vocês chamam de “disco-voador”.
Assegu-ro-lhes, porém, que milhares e milhares de habitantes da superfí-

cie já estiveram conosco em contato idêntico, e suas reações foram iguais


às vossas. Logo esclarecerei tudo. O senhor aí, comandante Eduardo, foi o
elemento escolhido para esta missão. Através de nossos contatos
anteriores, com as ligações com outros homens da terra, periodicamente
elegemos novos iniciados. Escolhemos os que julgamos dignos de conhecer
a nossa civilização, procurando assim, por um processo lento e constante,
obter a ligação total com 102

a superfície. Depois então, conseguida a pacificação e a paz integral, a


conquista da Suprema Harmonia, passaremos às demais etapas do Grande
Bem, com destino aos demais corpos do nosso sistema, para depois ainda
rumarmos para as novas galáxias. Sinto que estou sendo prolixo. Tentarei
ir mais devagar, não me afastando de um esquema lógico. — Fêz uma
pausa, com certeza para dar tempo a que seus assombrados interlocutores
se refizessem e se pusessem em estado de raciocinar e reter sua exposição.
Depois continuou:

— Sim, comandante Eduardo Germano de Resende, o senhor foi um dos


escolhidos. Recorda-se do descontrole dos instrumentos de seu avião sobre
a cidade de São Paulo? Recorda-se da nossa passagem junto ao seu
antiquado aparelho sobre o Oceano Atlântico? Eduardo não respondeu,
limitando-se a balançar afirmativamente a cabeça.

— Esses dois fatos, que lhes pareceram misteriosos e feno-menais, foram


provocados por nós, por esta mesma nave espacial que vocês chamam de
“disco-voador”. Os instrumentos de seu avião foram descontrolados pela
criação de um campo magnético gerado intencionalmente por esta nave.
Sobre o oceano, como demonstração de nosso poderio, nós nos
aproximamos de seu avião e o inundamos com luz projetada por nosso
engenho. Esses dois primeiros passos, como nos contatos anteriores com
outros homens da superfície, antecedem habitualmente o encontro e servem
como preparação espiritual e material. Criam um clima favorável à
aceitação do nosso convite. Comandante Eduardo, lembra-se do
homenzinho de Paris? Da perseguição que lhe foi movida?

Mais uma vez o aviador não respondeu, pasmado ante o que ouvia.—
Aquele personagem era uma criatura terrena idêntica a vocês, já
incorporado à nossa civilização como acontece com milhares e milhares de
outros, e que nos vêm ajudando em nossos altíssimos desígnios. O visor-
transmissor foi um dos tipos de comunicação que escolhemos e que
achamos mais próprios para seu caso. Quanto à escolha dos outros
companheiros — declarou Alík, correndo os olhos sobre Leila, Vaugirard e
Santos — já é trabalho 103

seu, risco que não podemos deixar de correr.

O professor agitou-se todo em seu lugar, dando demonstra-

ção de que pretendia começar a formular perguntas.

— Um pouco mais de paciência, professor. Preciso ainda esclarecer outros


pontos. Como vêem, falo a mesma língua dos homens da superfície neste
ponto da crosta denominado “Brasil”. Se é certo que nossa civilização está
lá em baixo, completamente ig-norada, já conosco sucede o contrário.
Conhecemos toda a crosta terrestre e a humanidade que a povoa, pois
estamos em contato permanente com ela. Os nossos homens confundem-se
com vocês.

Isso faz parte de nossos planos, que vêm sendo desenvolvidos há séculos,
desde períodos imemoriais. Nossa civilização teve origem na crosta. Há
milênios, o grupo primitivo, por circunstâncias que por enquanto não posso
esclarecer, desgarrou-se da superfície do planeta com a descoberta
acidental da primeira passagem. Surgiu assim a primeira cidade no grande
vazio. Criou-se Agarta. Nosso progresso foi depois uma questão de tempo.
As outras cidades apareceram e logo conseguimos um avanço
incomensuràvelmente superior ao conseguido pelo homem da superfície.
Mas, deixando de lado esse aspecto material, mais longe foi ainda nosso
avanço espiritual. Se a vossa humanidade marchava sempre em função da
destruição e do mal, nós progredíamos em função da Fraternidade e do
Bem Supremo. Progredíamos para criar, ao passo que vocês da superfície
progrediam para destruir. Agora neste século aproxima-se a intervenção,
de uma forma ou de outra. O homem da superfície já não se contenta em
dominar a crosta. Vai se atirando ao espaço. Esse progresso é lento em
comparação com o nosso, mas admitimos que já se avizinha o dia em que o
homem da superfície se desgarrará de sua plataforma sideral em busca de
outras moradas cósmicas. Isto seria a antecipação de nossos planos para o
Supremo Bem. Os homens da superfície, sem terem ainda encontrado
solução para os males que os afligem e os destroem, buscam novos limites
no espaço, para onde consequentemente levarão os mesmos problemas, os
mesmos males. Só uma humanidade perfeita poderá emigrar para o espaço.
Essa não é a humanidade da superfície, evidentemente. Tal missão cabe a
nós, exclusivamente, e não podemos permitir que os homens da crosta
terrestre se antecipem aos 104

nossos planos, obtendo resultados negativos e prejudiciais.

Alik calou-se, mais uma vez, aguardando a reação dos seus assombrados
convivas. Como estes permanecessem calados, incapazes de qualquer
refutação, prosseguiu a sua estranha e calma exposição:

— Creio que ainda estou sendo confuso. Tentarei outra vez ser mais claro.
Vejamos. A humanidade da superfície tem ainda em sua formação a
semente do mal e da destruição, simbolizada pela guerra. Todo seu
progresso na ciência tem por objetivo a destruição, isto é, o mal e não o
bem. A conquista do espaço nessas circunstâncias seria, apenas, mais um
passo no caminho do ani-quilamento. Nós seguimos por caminhos diversos.
Nossa civiliza-

ção subterrânea desconhece o mal. Constrói e progride em função do bem.


Desconhecemos doenças e guerras, ódios e perseguições e, com um sistema
político perfeito, criamos o que vocês nomea-riam — um Estado Ideal. —
Agora, queremos a conquista pacífica da Terra para o bem. Para isso,
devemos impor-lhes nossas idéias.

Esse é o primeiro passo da passagem de milênios de intervenção lenta e


segura, temos que nos apressar. Poderíamos interferir vio-lentamente.
Nossas naves do espaço comprovam o nosso poderio.

Mas repudiamos a força e só agiremos pacificamente. Antes que o homem


da superfície atinja qualquer planeta irmão, do mesmo sistema, ou mesmo
antes que se fixe na órbita do seu primeiro satélite artificialmente
construído, como primeiro marco de suas conquistas exteriores, é preciso
que haja paz, que haja unidade, que haja compreensão, banindo-se do
planeta todos os ódios e preconceitos.

Que sucederia ao resto de nosso sistema se vocês saíssem da terra?


Que aconteceria se dessem esse passo sem terem primeiro obtido o controle
sobre vocês mesmos?

Esperou por segundos qualquer resposta ou objeção. Ninguém falou e Alik


mesmo respondeu à sua pergunta:

— O mal expandir-se-ia fora da terra e iria instalar-se também em outros


mundos, destruindo o nosso ideal. Estamos tentando impedir isso, o que
justifica as nossas aparições e as nossas interferências cada vez mais
freqüentes.

Augusto-Michel não se conteve mais. Levantou-se, deu alguns passos como


se estivesse medindo o comprimento, inteira-105

mente à vontade e, sem pedir licença, lançou a primeira pergunta:

— Antes de mais nada, quero saber duas coisas primárias sobre essas
cidades subterrâneas. De onde provém o ar que vocês respiram? Como
resolvem o problema da luz?

— Tudo é mais simples do que o senhor imagina. As cidades não estão em


pontos muito profundos. Dentro dessas bolsas, de centenas e centenas de
quilômetros, já havia uma atmosfera de gases aprisionados, onde se incluía
o oxigênio. Não se esqueça de que todas as cidades possuem saídas
secretas por onde, além de nós sairmos, circula o ar por um sistema que
reputamos perfeito.

Muitas das cidades têm mais de uma saída, tanto naturais como feitas por
nós. Quanto à luz, como cientista o senhor sabe que luz é vibração. Essa
luz que no momento nos ilumina é idêntica à das nossas cidades. Nós a
produzimos por meio de aparelhos especiais, que, futuramente, o senhor e
seus companheiros conhecerão.

— Diga-me, quais as dimensões dessas bolsas de ar onde estão as suas


cidades? São todas iguais? Que tipos de construção possuem?

— Vamos por partes, professor. As dimensões variam segundo as


profundidades. Não estou ainda autorizado a informá-los sobre a
respectiva localização e a profundidade, mas posso esclarecer que a maior
delas tem mais de cinqüenta quilômetros de largura por mais de vinte de
altura. Vê o senhor que temos praticamente uma atmosfera. Nossas
construções são bem diversas das da superfície. Não enfrentamos o
problema do sol e da chuva, bem como do desgaste e variação da
temperatura. Nossa luz é uniforme e dosada de acordo com as necessidades
vitais, produzindo-se o ciclo do dia e da noite artificialmente, também de
acordo com os nossos imperativos biológicos, diferentes das exigências da
superfí-

cie. Nossa água vem das correntes e oceanos subterrâneos. Nossos


materiais vão desde os mais leves e transparentes até os terrivelmente
resistentes, não encontrados na crosta e temperados pelas altas pressões
interiores. Exemplo desses materiais são as paredes deste aparelho.
Resistem a impactos de qualquer natureza, e ven-cem as condições das
barreiras sônicas e térmicas, problema esse ainda não superado por vocês.
Nossas construções são na maioria translúcidas. Aproveitamos a fonte
geral das nossas usinas lumi-106

nosas. Podem esses materiais translúcidos aumentar ou diminuir a refração


da luz externa, uniformemente espalhada.

Eduardo viu que era tempo de entrar na conversa a fim de dissipar suas
dúvidas:

— Fale-nos, agora, sobre este aparelho, por favor. Como foi construído,
como se desloca no espaço, qual seu meio de propulsão, como é
comandado. Como aviador que sou, essas questões me intrigam.

— Este aparelho é o tipo mais comum de transporte de que nos utilizamos


fora de nossas cidades, dentro da atmosfera terrestre. Sua invenção data de
centenas de anos, e tipos ainda mais aperfeiçoados existem, com outras
formas. Os homens da superfí-

cie de há muito vêm verificando a nossa presença, localizando nossos


aparelhos, pois nem sempre é possível cumprir nossa missão sem sermos
vistos. Porém vocês de cima são incrédulos. Felizmente, a maioria nunca
levou a sério nossas aparições, e somente em poucos casos fomos
obrigados a tomar atitude violenta ao sermos pressentidos. Repito: a
violência nos repugna. Mas quando ela é necessária em função da Grande
Missão, não temos alternativa senão utilizá-la. Nossas bases ficam junto às
sete cidades e nossas saídas são feitas pelas comunicações secretas, cuja
localização nenhum sêr da superfície jamais chegou ou chegará a saber. O
disco é a síntese de um grande número de pesquisas e de estudos dos
nossos sábios. É construído de um minério especial, centenas de vezes mais
resistente do que o níquel, e não encontrado na superfí-

cie da terra: a mesma substância indestrutível de que são formados os


centros dos meteoros. Este aparelho tanto pode voar na atmosfera quanto
fora dela, sendo-lhe possível o vôo na órbita elítica ou parabólica, pois
escapamos ao campo de gravidade da terra.

— Diga-me uma coisa. Vocês já conseguiram chegar a outro planeta?

— Infelizmente, não posso ainda responder a essa pergunta.

Este é o nosso primeiro contato e muito cedo ainda para abor-darmos


aspectos secundários. Por enquanto, só direi que nestes aparelhos é
possível escaparmos à atração da terra. Veja aqui. Estamos aparelhados
para o vôo cósmico. Estes leitos onde vocês es-tão sentados são os
acomodadores de aceleração. Deitados sobre 107

eles, os nossos passageiros e tripulantes obtêm todas as posições possíveis


e necessárias para diminuir sobre o corpo humano os efeitos do
deslocamento inicial, à entrada das grandes velocidades de libertação para
o avanço sideral.

O comandante, como o professor, mostrava-se cada vez mais impaciente em


suas indagações.

— E a propulsão? Como se dá o deslocamento do disco no espaço?

— Nosso aparelho, em linhas gerais — pois não devo ainda entrar nos
pormenores — utiliza-se de dois tipos de propulsão.
Uma para o deslocamento horizontal e outro, que não chega bem a ser um
sistema, para o deslocamento vertical e que constitui um dos pontos mais
elevados de nossa ciência, uma das descobertas responsáveis pelo nosso
progresso. Conforme declarei, conseguimos dominar e vencer a força da
gravidade.

Augusto-Michel, ante essa afirmativa, arregalou os olhos ainda mais.


Levantou-se do lugar onde estava, agitou-se todo, não conseguindo sufocar
a exclamação:

— Dominar a gravidade! Mas como?

— Professor, tudo é uma questão de se aceitar uns tantos princípios não


descobertos ainda por vocês, sábios da superfície.

Como o senhor sabe tão bem quanto eu, grande número de radia-

ções espalham-se pela superfície do planeta. Essas radiações vão desde as


conhecidas até às desconhecidas e propagam-se por meio do movimento
que vocês, intuitivamente, denominam ondas. Vão desde as cores do
espectro solar, incluindo as ultra-violetas e infra-vermelhas, até às ondas
elétricas, magnéticas, passando pelo que vocês denominam de raios X, e
raios Gama, até os raios cósmicos, alta energia integrada de corpúsculos e
raios Gama, com vários biliões de elétrons-volts em aceleração, que
varrem os espaços si-derais dentro dessa ficção que vocês denominam éter.

Alik continuou, depois de ligeira pausa, procurando medir o efeito de suas


explicações:

— A força da gravidade, força que atua sobre todos os corpos de modo a


atraí-los para o centro da terra, é também, de acordo com a nossa teoria,
uma radiação. Age, pois, através de raios cuja fonte é o centro do planeta,
propagandose uniformemente em to-108

dos os sentidos.

Nesse ponto da explicação Vaugirard não se conteve e aduziu alguns


argumentos, reforçando a tese exposta por Alik:
— A teoria não deixa de ter certa base. Recordo-me de que, por volta de
1700, o sábio Laplace formulou a teoria da existência dos raios de
gravidade, acentuando que havia certa analogia entre o comportamento
dos raios de luz e a força da gravidade. Se a luz perde seu poder de
iluminação e sua intensidade à medida que o objeto se distancia do foco
luminoso, o mesmo acontece com a gravidade. Quanto mais se distancia
um astro do outro menor é a atração exercida.

— Exatamente — concordou Alik. — Ora, se assim é, e se é possível


interromper o avanço da luz e do calor pela interposição de um corpo
opaco, não seria possível também descobrir um corpo, uma substância, um
anteparo, que não fosse cruzado pelos raios da gravidade? E se isso fosse
possível criar-se-ia uma espécie de zona neutra, de zona de sombra, onde a
gravidade deixaria de atuar, entrando o corpo assim protegido dentro de
um cone e surgindo o que vocês na superfície denominam levitação. Este é
o princípio do movimento vertical do disco. Todo o nosso aparelho repousa
sobre um material que, além de não poder ser varado pelos raios da
gravidade, gera, quando devidamente excitado por um sistema especial,
uma força anti-gravitacional que aumenta ou não, de acordo com o
deslocamento pretendido. Professor, recorda-se do efeito que vocês
chamam de foto-elétrico?

Vaugirard não respondeu, mas, pela sua fisionomia sentia-se que


compreendia bem aonde queria chegar o tripulante do disco.

Alik continuou, impassível:

— Dessa maneira o disco, por sua base, torna-se um anteparo que corta a
ação dos raios da gravidade, ficando suspenso sobre uma espécie de
coluna invisível onde a atração não se exerce. Não lhes parece claro?

— E o movimento horizontal? — indagou o aviador.

— Esse é mais simples ainda. Toda a parte inferior do disco tem um


movimento giratório que produz um deslocamento na dire-

ção que se tem em vista, orientando-se o fluxo de escape no mesmo sentido


desejado. Esse movimento, aliado à ausência de gravidade, 109
possibilita ao aparelho velocidade tremenda e maneabilidade inconcebível.

Novamente Vaugirad aduziu um argumento favorável ao tripulante do


disco, já convencido do acerto de suas explicações:

— E isso sendo possível, sendo possível anular-se a atra-

ção da terra, será fácil o deslocamento fora da atmosfera terrestre,


atingindo-se com facilidade a velocidade circular, elítica ou mesmo
parabólica. A questão foi fabulosamente bem resolvida. Que não diriam
nossos cientistas!?

Eduardo arriscou uma pergunta que desde o começo trazia na ponta da


língua. Aproximou-se de Alik e indagou em voz baixa, como que receando
sua reação:

— Seria possível voarmos no disco?

— Isso faz parte de nossos planos. Antes de qualquer outro passo, tínhamos
essa idéia, como já fizemos com outros habitantes da superfície. Queríamos
antes dar-lhes as noções gerais, não só para colocá-los à vontade, mas
também para melhor compreende-rem o que daqui em diante venha a
suceder. O disco tem mais dois tripulantes. Estão lá, como já devem ter
visto, na cabina dos comandos, do outro lado daquela passagem. Somente
lhes peço que fiquem aqui, nesta sala reservada aos passageiros.

Encaminhou-se em direção à porta oval de material translú-

cido, que automaticamente se abriu pela sua aproximação, como se


acionada por uma célula foto-elétrica.

— Que lhe parece tudo isso, professor? — indagou Santos, quebrando por
fim o seu mutismo.

— Fabuloso! Inacreditável! Fantástico! Não lhes dizia? Não tinha razão?

— Será que tudo o que êle nos contou é verdade? Será que vamos voar
neste aparelho? Vocês acreditam que a missão deles é mesmo de paz?
— Pssst... — segredou Eduardo. — Lá vem êle de novo. Fiquem quietos;
depois, conversaremos.

De novo, a passagem abriu-se e fechou-se.

— Vamos fazer um pequeno vôo, dentro da atmosfera terrestre, em


velocidade reduzida. Não haverá aceleração, pois sairemos em velocidade
mínima.
110
Alik aproximou-se de um dos acomodadores de reação, abai-xou-se e tirou
de baixo do mecanismo, junto ao chão, uma caixa que antes não tinha sido
notada. Abriu-a e extraiu da mesma quatro pares de um tipo de sapato
idêntico ao que usava, de um branco brilhante e de solas grossíssimas.

— Peço-lhes que calcem estes sapatos. São leves, não causam incômodo
algum e são necessários para que os efeitos da não gravidade não os
atinjam. Não se esqueçam de que dentro da atmosfera terrestre, graças à
interrupção da gravidade, tudo se comporta dentro do disco como se
estivéssemos no espaço sideral, dentro daquela zona que vocês chamam de
“queda livre”. Estes sapatos res-tituem a gravidade ao corpo de cada um,
impedindo a flutuação.

O professor foi o primeiro a pegar o seu par, examinando-o atentamente


antes de calçá-lo.

— Ficarei aqui, para explicar-lhes os pormenores do vôo. Vejam! — Ao


mesmo tempo que chamava a atenção de todos para certo ponto no chão,
onde havia uma espécie de moldura, próxima a uma das ogivas, comprimiu
dois dos botões no painel de relevo, ao lado da passagem oval.

Logo em seguida, abriu-se no chão, dentro da moldura, junto ao lugar onde


se achava a comissária, uma abertura de quase um metro quadrado,
revestida por material transparente idêntico ao das portinholas, ficando
como uma tela ajustada sobre o solo que ainda tocavam.

— Esta é uma abertura inferior de observação direta. Destina-se mais aos


passageiros e não tem função técnica, pois lá na cabina existem outros
recursos mais perfeitos para obtenção de completa visibilidade em torno.
Por aqui, poderão ver o solo durante a subida e a descida. Poderão,
também, observar a paisagem vertical.

Nesse momento, a luz esbranquiçada que vinha dos orifícios da parte


superior, como se fossem produtos de determinado tipo de
eletroluminescência, diminuiu de intensidade, até ficar reduzida ao mínimo.
Leila inquietou-se, aproximando-se mais de Eduardo e do professor. Intensa
expectativa envolveu os quatro.

— Não se assustem. Vamos decolar na vertical e está havendo a


concentração de energia para a provocação inicial da anti-gravidade.
111
Um zumbido propagou-se pelo ambiente. Aumentou rapidamente, depois
estabilizou-se num limite tolerável. Em seguida, sentiram que estava se
dando forte movimento ascensional.

Os quatro correram para as ogivas e tiveram ainda tempo de ver, sob a luz
intensa do luar, a paisagem áspera da ilha, que ia ficando para baixo
celeremente e desaparecendo do ângulo de visibilidade.

A sensação de subida era agora mais violenta, mas ainda suportável.


Saindo das escotilhas, rodearam a espécie de tela aberta no chão. Em
menos de um minuto, viram os contornos integrais da ilha da Trindade,
cercada pela massa oceânica azulada pelos reflexos do luar. Dois minutos
depois, Alik anunciou:

— Estamos a oito mil metros,

— E a presssão interna? O ar? A sensação nos ouvidos? —

indagou Eduardo.

— Temos pressurização absoluta, bem mais perfeita do que os seus aviões.


Nenhum de vocês sentiu nada, nem um ligeiro zumbido no ouvido sequer,
não é? Observem que tudo é perfeito.

Depois da violenta ascensão vertical, o disco estabilizou-se e passou ao


movimento horizontal, disparando em direção ao continente.— O segundo
elemento propulsor entrou agora em ação. Estamos já em alta velocidade.
O sistema de pressurização mudou automaticamente. Observem pelas
escotilhas, deste lado. A ilha da Trindade não tardará a desaparecer na
linha do horizonte.

Eduardo e Leila quase colaram o rosto nas escotilhas e viram a mancha


escura da ilha se perdendo na imensidão do oceano, que reverberava lá na
profundidade, sem uma nuvem sequer a toldar a visão verdadeiramente
onírica.
Os vinte e dois minutos que se passaram quase não os sentiram os
passageiros, recordando-se nesse meio tempo o professor a teoria famosa
de que não se pode escapar do tempo a não ser que se escape do espaço ou
— em outras palavras — que se deixe de existir. Citava a afirmação de
Einstein de que o tempo vai se tornando mais vagaroso à medida que nos
aproximamos da velocidade da luz.

No instante seguinte, Santos, da escotilha do lado oposto, 112

chamou a atenção de Eduardo e do professor para a aproximação do


litoral, nitidamente demarcado por extensa faixa de praia.

— Inacreditável! Inacreditável! — exclamou o aviador.

— Estão vendo aquelas luzes amontoadas lá? — apontou Alik pela


escotilha.

— Custo a acreditar, mas parece o Rio de Janeiro!

— Parece, não. É o Rio de Janeiro — atalhou o rádio-telegrafista. Vejam os


contornos da baía! Parece que estamos baixando!

— Sim, baixamos nos últimos três minutos quase dois mil metros, para que
vocês pudessem ver melhor. Alguém sentiu alguma coisa? Alguém sentiu a
perda de altitude?

Todos estavam absortos na contemplação da magnífica paisagem. A cidade


estava aos seus pés. Milhares e milhares de pontos de luz,
despersonalizados pela altura como se estivessem pai-rando sobre uma
ilha-universo, sobre uma galáxia com sistemas e planetas de todas as
categorias, perdidos no espaço a centenas e milhares de anos-luz.

Alik, à direita, sentado num dos acomodadores de acelera-

ção, olhava em silêncio aqueles quatro homens da superfície. Deixava que


se maravilhassem com o espetáculo, que tirassem suas próprias conclusões
e se humilhassem com a pequenez e a insignificância de seus
conhecimentos. Deveriam lembrar-se de que aquele aparelho, aquele disco,
era apenas uma amostra, uma parcela, uma pequena demonstração do
saber e do poderio dos habitantes das cidades subterrâneas de Agarta.

O disco pairou alguns minutos sobre a cidade e de novo ele-vou-se.


Descreveu uma curva ampla em direção ao oceano, tomando o rumo este.

Assim que o engenho se imobilizou sobre o solo vulcânico, o zumbido


extinguiu-se por completo.

Antes que alguém proferisse alguma palavra, a passagem que dava para a
cabina abriu-se. Um segundo tripulante, com trajes idênticos ao de Alik,
apareceu. E fazendo-lhe um sinal como a chamá-lo, desapareceu de novo,
sem dar tempo de ser suficientemente observado.

Alik levantou-se, atendendo ao chamado e penetrou na cabina, sem nada


dizer aos seus convidados.
113
114

TERCEIRA PARTE

A AMEAÇA

X — O TELEGUIADO

Assim que Alik se retirou, depois de ter trocado olhares misteriosos com seu
companheiro, Eduardo acercou-se do professor, ladeado pela comissária e
pelo rádio-telegrafista.

Antes de pronunciar qualquer palavra, espiou pela ogiva translúcida, que


se comunicava com o outro compartimento, procurando ver se o tripulante
do disco não os espreitava junto à passagem. Divisou, apenas, três vultos
debruçados sobre uma espécie de mesa, não podendo notar outros
pormenores.

— Professor, desde que entramos em contato com o disco e seus tripulantes


esta é a primeira vez que ficamos a sós. Não temos tempo a perder,
considerando o assunto e tudo o que vimos. Que será que houve? Êle
retirou-se sem dizer nada e com ar meio preocupado. Terá acontecido
alguma coisa?

Augusto-Michel levantou-se, acercou-se da passagem de material


translúcido e concordou com o aviador:

— Não estou gostando disso. De fato, êle saiu meio apressa-do, depois do
sinal que lhe fêz o companheiro, e, sem cerimônia alguma, deixou-nos a sós
aqui neste aparelho fabuloso...

O rádio-telegrafista resmungou monossílabos ininteligíveis, ajeitou o cinto


onde trazia oculta a pistola e aproximou-se, também, da passagem para a
cabina de comando.
— Não estou gostando deste negócio. Tudo foi bem até agora, 115

mas parece que houve alguma novidade fora do programa.

De novo, a sombra de Alik projetou-se sobre a passagem, porém, com


maior nitidez, indicando que regressava ao compartimento, onde estavam
os personagens.

— Afastem-se! Depressa! Sentem-se de novo! Êle vem vindo

— advertiu Eduardo. — Não deixemos que eles notem que percebe-mos


qualquer anormalidade.

— Meus amigos, desculpem-me a saída. Tive que atender a um assunto


importante.

Os outros entreolharam-se, ante a confirmação das suas suspeitas, mas não


ousaram proferir qualquer indagação, pressentindo que Alik lhes daria o
esclarecimento.

Em verdade, este não se fêz esperar:

— O fato que exigiu minha presença na cabina motora liga-se a outros


acontecimentos anteriores, que ainda não lhes rela-tei. Para nós,
componentes da humanidade subterrânea, é a parte mais desagradável da
nossa missão. Mas essa parte é inevitável e foi prevista.

Este prólogo misterioso e confuso serviu para aguçar mais ainda a


curiosidade dos convidados. Eduardo acomodou-se melhor, onde se
achava. Augusto-Michel retirou os óculos, preparando-se para limpá-los.
Santos aguardou impassível, sem afastar a mão da cinta. E a comissária,
como sempre fazia quando via aproximar-se o medo, buscou a proximidade
do comandante.

— Como desde o início lhes expliquei, temos uma missão a cumprir. Essa
missão é de paz e de concórdia e objetiva, antes de mais nada, o bem-estar
e a felicidade integral da humanidade. Já lhes contei que nossa
interferência tem sido paulatina e incisiva.
Nossos aparelhos já vêm rondando a superfície da terra há mais de vinte
séculos, e por milhares de vezes nossos homens se confun-diram com os
homens terrenos, influindo até em algumas de suas resoluções nas fases
mais críticas de sua história, como em outras oportunidades poderei
demonstrar. Já lhes falei, também, que milhares e milhares de homens da
terra já nos conhecem, e sabem nossa missão, transformando-se em ativos
cooperadores. Assim como eu e meus companheiros com esta nave do
espaço vasculha-mos a superfície e promovemos novos contatos, dezenas
de naves 116

idênticas desempenham missão igual, obtendo relativo êxito.

Como um hábito observado todas as vezes que falava, Alik fez uma pausa
de alguns segundos. Procurava, assim, notar a reação de suas palavras
sobre os habitantes da crosta terrestre, ao mesmo tempo que lhes dava uma
pausa para assimilarem a complexidade dos seus raciocínios.

— Êxito relativo, disse eu. Relativo, porque nem sempre fomos bem
recebidos. Nem sempre nossos contatos tiveram êxito.

Principalmente porque este nosso meio usual de transporte fora das nossas
cidades foi mais de uma vez pressentido por forças hostis e, em muitos
casos, ante a recepção belicosa que tivemos, vimo-nos forçados a usar de
violência, mesmo esta sendo contrária aos nossos princípios.

Ao ouvir a palavra “violência” o comandante alongou o olhar em direção


ao professor, olhar esse que não passou despercebido a Alik.— Sim,
“violência”, eu disse, mas não se assustem. Procurarei explicar em outras
palavras. Acontece que, localizadas as nossas naves do espaço muitas
vezes, fomos alvos de ataques imprevistos com todas as armas de que vocês
dispõem. Não creio que essas armas pudessem destruir-nos. Vocês já
conhecem alguma coisa do nosso engenho e viram seu poder sob muitos
aspectos. Mas, infe-lizmente, em tais casos fomos obrigados a reagir para
demonstrar-mos desde logo nossa infinita superioridade. Nunca
pretendemos impor nossas idéias com emprego da força. Mas fomos
obrigados a revidar esses ataques injustificados. Vocês devem ter ouvido
falar em aviões misteriosamente desintegrados, em embarcações
desaparecidas. Devem ter ouvido referências a pessoas e expedições
desaparecidas sem deixar vestígios. Sim, lamentavelmente, mais de uma vez
fomos obrigados a usar outros métodos, levando-se em conta nossos
altíssimos desígnios. Anulamos, também, os que não souberam ser dignos
de nossa confiança e todos os que poderiam ter prejudicado nossos planos
milenares para a conquista do Bem Supremo, do nosso sistema e das
galáxias.

Vaugirard levantou-se agitado, procurando demonstrar que pretendia fazer


perguntas.

— Não, professor, continuou Alik. Desculpe-me, mas ago-117

ra, neste momento, não pergunte mais nada. Já não dispomos de muito
tempo. Temos que nos movimentar, restando-nos apenas alguns minutos
deste primeiro encontro. Limitem-se a escutar. Futuramente, esclarecerei
todas as demais perguntas. Escutem. Fui avisado por Ikal que um grupo de
belonaves de certa potência da superfície aproxima-se a grande velocidade
da ilha. Desde ontem, desde o momento em que nos projetamos da terceira
cidade e cru-zamos o Atlântico em direção ao norte, antes de demandarmos
esta ilha, já havíamos pressentido as belonaves hostis, cuja presença foi
assinalada no localizador universal. O grupo era composto de vá-

rias naves de guerra, do tipo mais moderno de que vocês dispõem,


preparadas para a missão especial de destruir-nos. São movidas por
energia nuclear, com um tipo de propulsão que abandonamos há mais de
duzentos anos. Como vêem, mais uma vez a sede de destruição, a ânsia da
força e da violência. O nosso localizador universal vem seguindo a
aproximação dessas belonaves inimigas.

Estão agora a menos de quinhentos quilômetros de distância e, como não


sabemos que atitude vão tomar, e como não nos convém correr mais esse
risco, vamos logo nos deslocar, frustrando assim a perseguição.

Eduardo não se conteve mais. Levantou-se e tentou uma pergunta,


esquecendo-se da advertência de Alik.

De quem são os navios? Quantos são? Que vão fazer vocês?


— Nada mais posso esclarecer-lhes no momento. Vou desembarcá-los em
seguida, e aconselho que se escondam para não serem localizados pelas
belonaves que por certo chegarão até aqui.

Poderia adotar outra solução. A um simples comando meu, poderí-

amos nos deslocar a grandes altitudes onde jamais seríamos localizados e


de lá faríamos atuar parte do nosso poderio. Poderíamos destruí-los com o
auxílio de outras naves do espaço. Poderíamos anulá-los. Porém, esse
procedimento contraria nossos princípios.

Não nos sentimos ameaçados. Nosso deslocamento será uma medida


preventiva no próprio interesse dos terrestres.

Alik procurou um botão junto à série de comutadores, ao lado da passagem


para a cabina dos comandos, e comprimiu-o.

Ao lado, como já acontecera quando da entrada, a parede movimentou-se e


a parte móvel inseriu-se dentro da outra, como 118

se ambas as superfícies se fundissem. De novo, surgiu a fenda com aspecto


de corte num bolo, e imediatamente divisaram lá fora uma nesga da ilha.

— Homens da superfície. Esta é uma despedida temporária.

Logo mais nos encontraremos, ocasião em que continuaremos a lançar-lhes


as sementes da nossa alta finalidade universal.

Com um gesto rápido estendeu a mão a Eduardo e passou-lhe uma espécie


de cartão, cuja presença não tinha sido notada.

— O nosso visor-transmissor ficou em seu poder. Será daqui por diante o


nosso meio de comunicação. Nesse apontamento, que lhe dei, estão
anotados três novos contatos pelo visor-transmissor.

Vejam as datas, reúnam-se. Basta que abram a caixa e logo,


automaticamente, nos colocaremos em contato. Assistam às novas
comunicações apenas os quatro. Não se esqueçam de que estaremos
também vendo tudo ao redor. Apenas, exigimos em retribuição uma coisa:
silêncio absoluto. Nem uma palavra sequer aos demais, haja o que houver.
Tudo o que se passou nesta ilha deve ser mantido no mais profundo
segredo. Se falarem — e fiquem certos de que isso saberemos — temos
elementos para anulá-los.

Deu uns passos para trás, fixou insistentemente Eduardo, empurrou com os
pés os sapatos que haviam sido deixados no chão pelos quatro, e repetiu
com voz grave, agora em tom de ameaça:

— Sim, se falarem poderemos anulá-los. Não se esqueçam disto jamais.

Alik tornou à extremidade da plataforma, enquanto os quatro visitantes


eram reconduzidos pelo degrau móvel ao solo da ilha.

Durante a descida, o aviador não deixou de fixar o rosto branco e brilhante


de Alik.

Momentos depois distinguiram o mesmo zumbido, ao mesmo tempo que a


superfície externa do disco se unia, como se feita de uma só peça. As
paredes começaram a adquirir um brilho azulado e, antes mesmo que o
engenho se deslocasse do solo, foi todo envolvido numa espécie de gaze
luminosa, que lhe ocultou o perfil.

Nesse mesmo instante, um segundo fato surpreendeu os espectadores.

A par do ligeiro ruído, produzido pelo disco ao entrar em ação, um rumor


atordoante inundou o espaço.
119
Instintivamente, Eduardo puxou Leila pelo braço e gritou ao rádio-
telegrafista, que estava paralisado, advertindo também Vaugirard, que não
despregava os olhos do disco, alheio a tudo o que se passava.

— Vamos! Corram! Deitem-se debaixo daquela pedra! O grito surtiu o


efeito desejado. Sem procurar saber o que sucedia, sem indagar a causa do
ruído, os quatro buscaram abrigo junto a uma formação rochosa ali
existente, colando-se ao solo, possuídos de pânico.

Duas das lanternas foram largadas, uma delas indo espati-far-se aos pés de
Leila.

Santos, mais do que aterrorizado, atirou-se entre as reen-trâncias da rocha,


junto a uma inclinação, ferindo o braço com a violência da queda.
Augusto-Michel deitou-se sem mesmo procurar as pedras e Eduardo,
arrastando Leila, foi o que melhor se abrigou, sempre tentando descobrir a
causa daquele estrondoso barulho.

Lançou os olhos para cima e viu um traço enfumaçado cortando a porção


mais escura do céu, bem junto ao zênite, e que com grande velocidade
demandava o oceano.

Não tiveram tempo de trocar uma só palavra, nem de fazer um único gesto.

O auge do espanto foi atingido, quando um estampido frago-roso reboou


por toda a ilha. O solo de Trindade chegou a tremer com a intensidade da
explosão. Uma fração de segundo antes, lá na extremidade do traço
enfumaçado que corria em direção a leste sobre o mar, surgiu uma
claridade vermelha seguida de denso fumo, da qual partiu o estrondo. A
claridade vermelha expandiu-se, lan-

çando reflexos intensos sobre a superfície do oceano. Depois, pouco a


pouco, perdeu a intensidade e cedeu lugar à fumaça.
Nem uma exclamação sequer. O comandante pensou que fora o único que
vira o traço a deslocar-se em direção ao mar e assistira à explosão nas
alturas. Tratava-se de um projétil e deveria andar pelo menos a mais de mil
metros de altitude e a uns dois ou três mil metros de distância. Ou mais
ainda.

Esqueceram-se momentaneamente do disco. Apenas o professor se


preocupava mais com a nave do espaço do que com a explosão. Em dado
momento levantou-se e gritou em voz alta, como 120

se estivesse fora de si.

— Lá vai êle! Vejam! Vejam!

A comissária e o rádio-telegrafista nem chegaram a levantar o rosto,


transidos de pânico.

O comandante, com a testa banhada em suor e todo sujo de terra, levantou-


se também e teve tempo de ver ainda o disco, em plena ascensão vertical,
envolto na fosforescência azulada que, à medida que o espaço ia sendo
vencido, adquiria um tom averme-lhado. Em menos de um minuto, o
aparelho perdeu-se nas alturas, cruzando para o centro da ilha, em direção
ao Pico Desejado.

Tudo retornou ao silêncio, como se nada houvesse acontecido. Do disco,


não ficara nenhum traço ao passo que da explosão sobre o mar restava,
apenas, um amontoado de nuvens escuras que se destacavam sob a luz forte
do luar e que se iam espalhando e diluindo em todas as direções.

Contudo, ninguém se movia. Durante mais de cinco minutos, os quatro


permaneceram silenciosos, gelados pela emoção, desorientados, banhados
em suor e sujos de terra, sem coragem para encarar a realidade e sem
disposição para procurar entender a causa da explosão.

A comissária tinha os lábios trêmulos e ofegava. Santos permanecia de


bruços, com a cabeça enterrada nas mãos. Vaugirard encostou-se nas
rochas, sempre a olhar o céu, enquanto Eduardo procurava sentar-se junto
de Leila, a fim de ampará-la.
O primeiro que ousou falar foi o professor:

— Vocês viram e sentiram o mesmo que senti? Eduardo abai-xou os olhos,


respirou fundo e custou a responder depois de reto-mar o fôlego.

— Santo Deus! Tudo tem um limite! O que vem acontecendo conosco já


ultrapassa tudo quanto a imaginação pode sonhar.

Nem sei se estou vivo ou morto...

Augusto-Michel aprumou-se melhor. Bateu a terra aderida à calça e ao


pulover vermelho e lançou os olhos para Santos, que não se movia.
Procurou a lanterna em volta, ergueu-a e focalizou-a sobre o rádio-
telegrafista.

— Que é isso, moço? Vamos!. Olhe seu braço, está escorrendo sangue. Que
lhe aconteceu?
121
O rádio-telegrafista, como que voltando dum transe, agitou-se todo,
procurando ver o que havia em seu braço. Com a agitação e o nervosismo
nem mesmo sentira o ferimento recebido ao atirar-se sobre as rochas.
Ficou de joelhos e arregaçou a camisa, para localizar o ferimento donde
corria sangue em abundância.

Vendo a lesão, a comissária deu sinal de si. Levantou-se, am-parada por


Eduardo, sacudiu os cabelos cobertos de torrões de terra, procurou limpar
a blusa, e aproximou-se de Santos para ver-lhe o braço.

— Não é nada grave. A escoriação foi superficial, apesar de abranger uma


área grande. Vamos para o acampamento para fazer um curativo. Deixe
que o sangue escorra, Santos. Até é bom.

Todos se encaminharam para o local, onde estavam as barracas,


tropeçando nos seixos e rochas, sob as luzes da lanterna, que não se
danificara, desconcertados ainda pela sucessão violenta dos
acontecimentos, exaustos por tantas emoções imprevistas.

Mais uma vez, Vaugirard foi o primeiro a falar:

— Não tenho dúvidas quanto à natureza da explosão. Primeiro, o silvo


agudo e atroante, depois a detonação. Não foi evidentemente libertação de
energia nuclear ou coisa parecida, pois se assim fosse a estas horas
estaríamos de há muito torrados com as radiações. Algum de vocês
observou o que se passou antes da explosão?

— Sim, professor — respondeu Eduardo, ao mesmo tempo que remexia os


bolsos, procurando o maço de cigarros — vi a explosão e o traço
enfumaçado que o projétil deixou no espaço. Não tenho dúvida de que foi
um teleguiado o responsável pelo distúrbio.

— Também não tenho dúvidas — arrematou Augusto-Michel.


— Foi um teleguiado com explosivo comum. E tudo indica que foi lançado
em direção ao disco.

— O tripulante não mentiu. Estavam mesmo sendo perseguidos. E


decolaram no momento exato! Os perseguidores, como nos disse Alik,
estavam a menos de quinhentos quilômetros e um lançamento a essa
distância é coisa comum.

No acampamento, tudo foi encontrado em ordem. A fogueira central já se


extinguira e das brasas que restavam elevava-se um tênue fio de fumo. Os
lampiões permaneciam acesos, clareando o 122

limite das barracas.

Santos, devidamente medicado, estendido na cama de vento e com o braço


enfaixado, entrou na conversa, depois de acender um cigarro.

— Tudo isso é o fim do mundo. Custo a crer no que vi. O

disco! Os homens lá do fundo! O vôo! Aquelas histórias o explica-

ções meio confusas! A explosão! Nunca na minha vida senti medo, mas
desta vez arredei! E eu, meus amigos, e eu que não acreditava nessa
história de disco-voador! Que aceitei a viagem somente pensando na minha
vara de pescar! Que dirão os meus amigos? Naturalmente, vou ganhar
fama de mentiroso ou de maluco...

— Seus amigos — interveio Eduardo — seus amigos não dirão nada, pois
nunca virão a saber da aventura. Que houve, Santos?

Não se lembra do que disse Alik? Não viu que êle chegou a amea-

çar-nos? Ameaçou, sim, não precisa ficar assustado. Ameaçou-nos falando


em anular-nos, anular-nos, caso abríssemos a boca para contar a aventura.
Nossos amigos não saberão nunca. Nunca, está ouvindo? Não se esqueça
que embarcamos para a ilha da Trindade em férias para uma viagem de
pesca, aproveitando esta bela época do ano.

Santos retraiu-se todo, reconhecendo seu erro.


Leila continuava agitada e não muito convencida com a opinião de
Eduardo e do professor, relembrando a necessidade do regresso imediato.

— Não tem dúvida, comandante — apoiou Vaugirard — vamos zarpar o


quanto antes. A madrugada não tarda. Vamos come-

çar as arrumações assim que clarear. Descansem enquanto isso, que vou
aproveitar o que resta da noite para fazer uma coisa, caso não se
incomodem.

Augusto-Michel já estava com o cartucho do filme nas mãos e carregava a


câmara com outra película.

— Tudo está muito bem, mas quero tirar uma cisma. Não pensem que
enlouqueci. Mas gostaria de revelar o filme antes de irmos. Temos todo o
equipamento para a revelação, inclusive o tanque. Dissolverei as drogas
em poucos minutos e usarei um revelador enérgico para poupar tempo.
Estou curiosíssimo para ver os resultados.
123
— Ótima idéia — concordou Eduardo. Nem me lembrava mais do filme.
Acho que bati pelo menos umas vinte chapas. Usei a tele-objetiva de nove
centímetros, foco no infinito e cento e cinqüenta avos de segundo, com a
abertura no máximo. Não se preocupe conosco, professor. Vamos descansar
um pouco e, quando amanhecer, começaremos a providenciar o
reembarque.

Vaugirard, sem pressa alguma, com a característica paciência de fotógrafo


veterano, alheou-se a todos, concentrando-se no trabalho, como que
protelando o prazer final que lhe ia proporcionar a revelação.

Juntou dois caixões de mantimentos ainda não abertos, colocou sobre o


menor um dos lampiões de querosene e ajustou a chama, procurando obter
a maior claridade possível.

Pegou os vidros, envelopes e cálices, mediu a água potável, escolheu os


preparados. Diluiu o hipossulfito, filtrando o fixador.

Dissolveu as drogas do revelador e, indo para o fundo escuro de sua


barraca, retirou a película do respectivo invólucro e ajustou-a no tanque de
material plástico. Após onze minutos, deslocou o car-retei de encaixe e
desenrolou a película. Antes de examinar, chamou os companheiros:

— Atenção, atenção! Está pronto! Venham ver os resultados.

Eduardo aproximou-se logo, seguido de Santos que, acendendo a lanterna,


encaminhou-lhe o foco em direção ao filme es-ticado nas mãos do
professor. Vaugirard não teve pressa, Pediu a Leila um grampo e ajustou-o
numa das extremidades do rolo, procurando esticá-lo. Aproximou-o do foco
de luz, incerto ainda quanto aos resultados.

— É inacreditável!

Lá estava êle com toda a nitidez e perfeição! Não se tratava agora de


fraude ou de brincadeira de pobres de espírito, mas sim de um documento
assombroso. Nas pequenas imagens de tons in-vertidos, podia-se ver
claramente os contornos do disco em todas as fases da aterrissagem. Sua
forma destacava-se como uma mancha preta sobre a superfície branca de
cada um dos quadros.

Augusto-Michel passou a película às mãos de Eduardo e não mais se


conteve. Sentia-se que ia desabafar.

— Até que enfim! Até que enfim! Vejam! Vejam! Não é pesade-124

lo, loucura ou alucinação! Eu não dizia?! — Ao mesmo tempo que


exteriorizava a euforia que vinha sendo calcada desde a aparição do disco-
voador, quase pulava, rodeando com passos agitados o filme, que agora
estava sendo examinado por Santos.

— Não dizia?! Não foi alucinação! — exclamou Vaugirard. —

Vivemos mesmo todos esses episódios! Calculem só! Farei uma ampliação
bem grande que colocarei em todas as paredes de minha casa! Distribuirei
a todos os jornais e revistas! Ficarei famoso em todo o mundo! O primeiro
ser humano que viu e revelou fotografias de um disco-voador em
circunstâncias tão excepcionais!

O comandante afastou-se para melhor observar a inesperada reação do


professor. Era a primeira vez que o via assim. Olhos brilhantes e
esbugalhados, sem os óculos que tinha agora nas mãos trêmulas, sempre
rodeando o filme em passadas grotescas, como se estivesse fora de si,
rompendo de súbito toda a composta sereni-dade de seu comportamento
anterior.

Antes de falar, Eduardo esperou que Vaugirard se aquietas-se. Trocou


olhares com Leila, que também se mostrava chocada com aquele
incongruente procedimento. Somente o rádio-telegrafista nada notou,
absorvido pelo exame da película que mantinha nas mãos, elevada contra a
linha do horizonte que já clareava, pre-nunciando a madrugada.

— Professor! Professor! — interferiu Eduardo, quase aos ber-ros, de tão


irritado. — Não se esqueça das ameaças do tripulante.
Das ameaças de Alik, da nossa promessa, do nosso acordo inicial.

Não vimos nada. Não fotografamos coisa alguma. Não vamos dar a
ninguém nenhuma ampliação. Ninguém saberá de nossa aventura.

Não se esqueça, professor, de que viemos pescar em férias. Pescar,


entendeu? Pescar tubarões e meros.

Augusto-Michel reagiu às palavras como se tivesse levado uma descarga


elétrica.

Parou de saracotear ao redor do filme, em volta de Santos.

Recolocou os óculos e seus olhos despiram-se do brilho metálico.

Os dedos pararam de tremer-lhe e buscou os bolsos, como se procurasse


qualquer coisa. Ficou alguns momentos parado, respirou fundo, limpou um
longo pigarro e fitou de frente o comandante:

— Sim, é verdade. Agora me lembro. O nosso trato. A promes-125

sa. A ameaça. — Parou de novo, respirou outra vez ruidosamente, deu mais
alguns passos, parou de revolver os bolsos e continuou, como que caindo
em si depois de sua agitação descontrolada.

— Sim, perdoe-me. Agora me lembro bem. O tripulante do disco disse que


poderia anular-nos. Como vocês vêem, fiquei agitadíssimo perante esse
filme extraordinário. Afinal de contas, meu sonho realizou-se. Minhas
teorias se comprovaram. Que mais poderia exigir do meu destino?

Mais uma vez a comissária e o aviador entreolharam-se, passando esse


gesto despercebido por Vaugirard, que se foi encaminhando para sua
barraca.

— Ei... professor! Professor! — gritou o rádio-telegrafista, com o filme


molhado nas mãos. — Que faço com êle agora? Não entendo nada disso.
Como se faz para secar?

Augusto-Michel parou repentinamente e voltou-se.


— Que se faz? Espere um pouco.

Tornou ao local, onde estavam os dois caixotes e os líquidos, pegou uma


garrafa de álcool e esvaziou parte do conteúdo num dos cálices vazios.

— Que se faz? Vejam só.

Tomou a película das mãos de Santos e mergulhou-a várias vezes no álcool.

— Vejam agora. Aqui está a grande prova irrefutável que aba-laria a


humanidade. Vejam só!

Inesperadamente, sem que nenhum dos companheiros ten-tasse impedir-lhe


o gesto, acendeu o isqueiro e levou a chama junto ao filme. Uma língua de
fogo enroscou-se na fita escura, transformando-a em menos de um minuto
numa tira de carvão malcheiro-so e lambuzado.

— Por que fêz isso, professor? — bradou Eduardo.

— As ameaças, comandante, as ameaças! Não se lembra?

Não vimos; nada e não fotografamos nada. Discos? Quem falou em discos-
voadores? Viemos aqui para pescar badejos e pirás.

Lembram-se? — finalizou, correndo os olhos pelos três espantados


companheiros.

Depois de tais palavras, tornou a enfiar o isqueiro no bolso e voltou-se em


direção ao teodolito, procurando ajustá-lo no estojo, 126

como que ignorando a presença dos amigos.

O aviador nada mais disse. Acompanhou Leila até a entrada da barraca, e


ao voltar-se viu o rádio-telegrafista que procurava apanhar no chão os
restos do filme carbonizado.

*
Os primeiros sinais do dia iam cercando a ilha. Os contornos abruptos, os
picos eriçados como agulhas, as aglomerações escuras das rochas pouco a
pouco emergiam da obscuridade. A luminosidade crescente tornava o
cenário irreal. Dir-se-ia que estavam em outro mundo, que haviam
despertado em outro planeta, ou então que haviam retrocedido no tempo,
lançados numa época pré-histórica.

Eduardo parou em frente de sua barraca, esquecido do sono e da fadiga.


Acendeu um cigarro e acompanhou com os olhos uma grande tartaruga
que se arrastava pela orla oceânica.

O sol emergia do seio das águas e a atmosfera surrealista foi se dissipando


com a invasão da luz.

XI — O CÍRCULO MENOR

Era pleno meio-dia, quando se fizeram ao mar. Um calor forte,


contrastando com o frio da noite anterior, bafejava toda a ilha e a
luminosidade reverberava sobre a areia avermelhada da praia, dando ao
Atlântico, não mais o azul profundo, mas um amare-lo opalescente. Ao
contrário do que acontecia com freqüência as águas ao redor da ilha
estavam calmas e espelhadas, facilitando o carregamento da embarcação.
O pequeno barco de borracha amarela já tinha feito três viagens da praia
ao “Alcíone”, completando-se assim todos os preparativos para a partida.
Quem primeiro embarcara fora Santos que, às voltas com os tambores de
óleo, providenciara o reabastecimento dos tanques, experimentando e
esquentando o motor.

Mal a âncora foi levantada, o rádio-telegrafista — a quem ca-bia o


primeiro turno na roda do leme — imprimiu toda a rotação ao motor.
Eduardo, orientado por Santos e auxiliado por Leila, aquar-127

telava a bujarrona e a vela-mestra, a fim de aproveitar o vento que soprava


favoravelmente para auxiliar o impulso da hélice e obter alguns
quilômetros a mais na velocidade. Augusto-Michel, por sua vez, com a
carta sobre a prancheta, reconferia os elementos da rota, calculando a
declinação.
Os quatro estavam silenciosos, animados da mesma inten-

ção: afastarem-se da ilha o quanto antes e na velocidade maior possível.


Afinal de contas, não se sabia o que poderia ainda acontecer, e depois
daquela noite terrível os ânimos estavam abalados.

Eduardo sentia agora o cansaço. Não tinha sono e não queria falar com
ninguém, assoberbado por nova preocupação. Acendeu um cigarro,
acomodou-se melhor junto à calheta e voltando-se lan-

çou o olhar para Trindade, que se ia diluindo na distância. Não, não era
mais a ilha vulcânica de píncaros ásperos e aglomerados.

Vista dali, a cerca de cinqüenta quilômetros, parecia uma imensa catedral


gótica com um amontoado de flechas lançadas para o céu.

Buscou posição melhor e para não ser incomodado cerrou os olhos,


simulando um sono incoercível. Ao mesmo tempo, mediante o exame
retrospectivo dos fatos, procurava tirar conclusões da aventura fantástica
que acabavam de viver.

Alik fora bem claro ao recomendar e impor segredo absoluto.

Aceitando-se as premissas, tinham forçosamente de aceitar o sigilo


integral. Pois, embora independente da ameaça, o sigilo era uma das
condições para os contatos e revelações futuras. O tripulante da nave do
espaço em verdade tinha proferido uma terrível advertência. Falara em
“anulá-los”, caso divulgassem o ocorrido. Anular queria dizer — silenciar.
Seria talvez tornar sem efeito, qualquer denúncia... Mas, também podia ser:
destruir, matar, desintegrar...

O aviador ficou gelado com o rumo tomado por seus pensamentos. Agora,
depois de tais reflexões, passava a considerar a gravidade dos fatos. Que
sucederia a cada um individualmente se um deles revelasse os fatos a
terceiros? Que queria dizer Alik com a expressão anular? Caso as
ocorrências fossem delatadas, como agiriam os homens das cidades
subterrâneas?
Já nas últimas conseqüências de seus raciocínios, lançou a indagação
final: se um dos quatro denunciasse a espantosa ocorrência, a reação
recairia sobre todos, ou somente sobre o delator?
128
Exausto, nervoso, perplexo, Eduardo resolveu pôr um ponto final em suas
cogitações. Não adiantava preocupar-se. Não tinha alternativa alguma
senão esperar o desenrolar dos acontecimentos. Levantou-se, pois, atirou o
segundo cigarro pela calheta e resolveu quebrar a pesada atmosfera de
inquietação que envolvia seus companheiros.

— Como vamos, Santos? Qual a nossa marcha?

— Até aqui, íamos muito bem. Mas agora o mar ficou picado e perdemos
um pouco a velocidade com que saímos. O odógrafo até há pouco marcava
mais de trinta e cinco quilômetros. De uma hora para cá, diminuímos
bastante essa velocidade,

— Quando estiver cansado, avise-me, que ficarei em seu lugar. Não estou
com sono e se você quiser posso ficar no leme até bem tarde.

— Obrigado. Não estou cansado também. Se o sono vier, avi-sarei.


Augusto-Michel abandonou o binóculo que pegara e agora, coaptado ao
seu procedimento habitual, bem longe da reação im-pulsiva de momentos
antes na ilha, aproximou-se de ambos:

— Desisto. Vasculhei toda essa parte de cá de Trindade e todo o horizonte.


Tudo está calmo como ao chegarmos. Nem sinal de discos, navios ou
teleguiados. Até parece um sonho o que nos aconteceu!

Eduardo sentiu que todos os ânimos retornavam à tranqüilidade e que,


afinal, poderiam trocar impressões sobre a aventura.

— Professor, de todos nós é o senhor o melhor informado sobre a questão


dos discos. E não só sobre eles, mas também sobre física, astronáutica,
geologia e outras especializações. Diga-nos, portanto: qual foi a sua
impressão sobre tudo isso? Afinal, não tivemos ainda oportunidade de
considerar a questão com a devida calma.Augusto-Michel não se fêz de
rogado:
— Quanto ao disco, como vocês sabem, mesmo antes eu não tinha dúvidas
sobre sua existência. O que me assombrou foi a origem dele. Poderia
admitir tudo. Da Lua, de Vênus, de Marte, da face desconhecida do nosso
satélite, de planetas desconhecidos 129

chamados Clarion ou Etária, enfim de todos os lugares, inclusive da


própria face da terra. O que não poderia jamais sonhar é que eles viessem
das profundidades, dessas tais cidades subterrâneas.

— O senhor fêz tantas perguntas quanto eu e todas foram, ao que me


pareceu, respondidas satisfatoriamente. Diga-nos agora: podemos admitir
a existência dessas cidades debaixo da terra?

— Sim. Penso que isso é possível. E dar-lhe-ei em poucas palavras os


motivos de minha convicção. Como sabem, a Terra teve sua origem, há
milhões e milhões de anos, de um fragmento do Sol, como querem uns; ou
de uma nebulosa primitiva, como querem outros; ficando presa ao sistema
chamado solar, pela força da gravitação. Com o decorrer desses milhões e
milhões de anos foi se processando um resfriamento da massa ígnea até se
formar essa crosta sobre a qual vivemos, casca superficial de um grão de
poeira minúsculo que rola pelo espaço cósmico. Com esse resfriamento,
ocorreu toda uma série de fenômenos, desde o aparecimento da vida, com
aquele tão discutido protoplasma primitivo.

Se hoje a superfície do globo é inteiramente conhecida, inclusive as calotas


polares, o mesmo não acontece com seu interior. O homem é curioso e já
pensa em sair de sua morada apoiando-se em primeiro lugar nos satélites
artificiais, mas nunca se preocupou como devia em saber o que vai no
porão de sua casa. Geralmente se afirma que o centro da Terra é uma
massa ígnea. A expressão é equívoca e pode dar margem a muitas
interpretações. Massa ígnea significa metais em combustão, gases
comprimidos, enfim, massa idêntica à encontrada na superfície, quando do
tempo da criação, tudo aí pela casa aproximada dos seis mil graus
centígrados. Todavia, hoje é notório que, segundo tudo indica, o centro da
Terra não é só fogo e gases, mas também massa sólida, com muitos dos
minerais encontrados na superfície. Mas vamos por partes, pois não quero
aborrecê-los com uma aula complicada de geologia. É
verdade que à medida que nos aprofundamos no interior da Terra vai
aumentando progressivamente o calor. Assim nas grandes profundidades
conhecidas, no interior das mais fundas galerias, como nas minas de
diamantes da África do Sul, a temperatura eleva-se a mais ou menos um
grau centígrado para cada cento e oito pés. Se 130

esse ritmo fosse mantido nessa proporção, no centro, no núcleo, depois das
várias camadas existentes, encontraríamos uma temperatura inimaginável,
de mais de cem mil graus. Mas isso não está bem demonstrado. Tudo indica
que nas camadas mais profundas a temperatura não se eleva a mais de seis
mil graus, dependendo da localização inferior. O interior do nosso planeta
é um dos mistérios ainda insolúveis. Outro mistério é a questão da
densidade.

Fora, na superfície, a densidade é uma, ao passo que no interior, devido à


tremenda pressão exercida no centro — dois milhões de toneladas por pé
quadrado — é outra, aumentando de cima para o centro, gradativamente,
numa proporção de mais ou menos três gramas e meia por centímetro
cúbico abaixo da crosta até o manto.

Nas partes centrais eleva-se mais ainda, calculando-se que ande pela casa
fabulosa dos quatro milhões de atmosferas, bem no âma-go do planeta.
Mas se deixarmos de lado esse aspecto, muitas provas e observações
demonstram que o interior da Terra é sólido e não em estado de fusão. Os
terremotos são disso uma demonstra-

ção evidente. Assim, produzida a convulsão inicial, suas ondas se


propagam dentro de um meio sólido por vastas regiões, o que não seria
possível em outro meio sem consistência ou maleável. O estudo dos centros
e propagação dos tremores revela que pelo menos lá pelos mil e oitocentos
quilômetros de profundidade tudo é sólido.

Destroem-se assim as crenças antigas.

Augusto-Michel fêz um pausa, tirou e tornou a colocar os óculos e


continuou a explicação preliminar para responder à pergunta do
comandante:
— Vêem portanto vocês que o calor lá dentro não é progressi-vo e que o
interior não é chama, lavas, fusão, pelo menos até os limites dos dois mil
quilômetros, por onde campeiam os terremotos.

Ora, todo corpo em fusão ao resfriar-se não consegue libertar-se das


porções de gases contidas em seu interior. Sabem vocês que, por exemplo,
quando se processa o resfriamento de uma lente ou de um bloco de aço,
ficam em seu interior pequenas partículas de ar, de gases, que permanecem
como ilhas dentro do corpo sólido, A Terra foi se esfriando com o fluir dos
séculos e não é nada impossível, é mesmo muito razoável, que tenha
abrigado dentro de si essas bolsas vazias, imensas bolhas de ar, que
ficariam retidas no 131

interior, criando enormes cavernas.

Eduardo e Santos entreolharam-se sem trocar palavra, com tal silêncio


estimulando o prosseguimento da preleção de Vaugirard. — E essa coisa de
cidades no interior da Terra não é novidade. Muitas civilizações
antiquíssimas, como a da India por exemplo, registraram a existência
dessas cidades. O mesmo acontece com muitas das civilizações pré-
colombianas, como a dos astecas e dos incas. Vocês alguma vez ouviram
falar em Atanasius Kircher?

Não? Pois bem. Esse ilustre cavalheiro, espécie de sábio seiscentis-ta,


precisamente em 1665, certa ou erradamente, traçou um mapa do interior
da Terra, muito divulgado na época. No âmago, lá estava o clássico fogo
central, em volta um complicado sistema de rios e lagos e enormes vazios,
onde bem poderiam ter sido localizadas as sete cidades de Agarta do nosso
anfitrião Alik. Em nossa época mesmo, um escritor-aventureiro chamado
Ferdinando Ossendo-wski, nascido em Vitebsk, depois da primeira guerra
mundial in-ternou-se pela Sibéria atingindo regiões inexploradas do Tibet.
Em seu livro, publicado em 1923, fala das cidades subterrâneas e de um
chefe-supremo que denomina de “Rei do Mundo”. A meu ver, a coisa não é
tão absurda assim. Seguirei todas as instruções recebidas, com licença do
comandante, para poder, como disse o homem do disco, adquirir o direito
de conhecer uma dessas cidades...
— Deus do céu! — exclamou Santos — que diriam meus amigos se
soubessem disso tudo? Reconheço que sou bem pouco culto, mas depois
dessas explicações quase que começo a acreditar na história do tal Alik.

— Você começa? — interferiu Eduardo — Eu, desde o momento em que vi o


disco e sua velocidade deixei de lado o pouco que ainda tinha de ceticismo.
Não ponho em dúvida mais nada. Ficarei calado, seguindo as instruções,
para ver no que vai dar tudo isso.

Não tenho dúvida alguma. Passamos bons dias de férias e a pescaria foi
magnífica!

O professor riu, demonstrando agora mais uma vez que rea-dquirira a


calma.
132
XII — TRÊS HOMENS E UMA AMEAÇA Duas semanas depois da viagem
e daqueles fantásticos acontecimentos, nada mais havia surgido que
alterasse o curso normal dos fatos. Cada qual com suas próprias
conclusões havia retornado aos seus afazeres, depois da reunião realizada
na residência de Augusto-Michel, logo no dia seguinte à chegada. Essa
conferência veio acentuar certa circunstância que Eduardo, desde o
contato com o disco, vinha comprovando: se ao traçarem os planos da
viagem, nos trinta dias mais ou menos que a antecederam, havia entre
todos acentuado espírito esportivo, revelador de confiança e camaradagem,
esse espírito inicial desaparecia pouco a pouco, sem a existência de
qualquer causa justificável.

O aviador há muito raciocinava sobre semelhante fato. Somente na


comissária nenhuma transformação havia se operado, ou, se isso tivesse
ocorrido, não fora sentido por Eduardo, talvez pela existência de laços
mais íntimos que os ligavam. Um afeto profundo há muito substituía entre
ambos a amizade.

Examinando todos os pontos da questão, somente podia atri-buir a


mudança ao aparecimento do engenho voador. A impressão e o trauma
causado tinham sido tão fortes a ponto de provocarem reações
imprevisíveis e desencontradas. O próprio rádio-telegrafista não mantinha
uma linha firme e coerente de conduta. Às vezes, mostrava-se leviano,
resolvido a revelar tudo, visando mais os baixos interesses, ou mergulhava
em enigmático mutismo; às vezes, ainda, proclamava fidelidade ao
compromisso assumido.

A viagem, o aparecimento do disco, as revelações espantosas do homem


das cidades de Agarta, a explosão do projétil teleguiado, as promessas dos
contatos posteriores, as intenções e planos ainda não muito bem
delineados, todos esses acontecimentos desper-taram nos três personagens
reações profundas e desiguais, cujas conseqüências não poderiam ser
previstas.
Além disso, havia a ameaça. Cada um reagia conforme seu temperamento e
seu caráter. Todos esses fatores, levados para o comportamento coletivo da
equipe, criavam um ambiente de mal-estar, de insegurança, de receio, de
desconfiança recíproca.

É certo que havia o compromisso inicial, anterior à expedi-133

ção, para ser mantido, fossem quais fossem, as conseqüências da viagem. O


segredo ajustado visava, não só a verificação dos fatos concretos, mas
também a possibilidade de um fracasso, afastando-se uma publicidade
ridícula. Mas, depois da aventura, o rádio-telegrafista Santos já se
mostrara hesitante, falando repetidas vezes em lucros, dinheiro e vantagens
de toda ordem.

Eduardo não deixava de penitenciar-se pela escolha desse companheiro.


Lamentavelmente não deixava de reconhecer que fa-lhara no conhecimento
do homem. Talvez, devido à excitação dos preparativos, da dúvida nascida
da adesão ao insólito convite, ao nervosismo geral e ao interesse na
obtenção do barco, tinha supe-restimado as qualidades do colega de
serviço.

Reconhecia agora seu erro.

Devia ter conversado longamente com Santos antes de diri-gir-lhe o convite


e a proposta. Devia ter procurado medir suas rea-

ções e conhecer-lhe a índole, a fim de poder aferir qual seria a sua conduta
após os resultados da viagem. Porém, nada disso havia feito e, duma
amizade que sempre fora superficial e contingente, deduzira um caráter
forte e adequado para enfrentar todas as pe-ripécias da inédita aventura.
Nada havia dito a Vaugirard, tendo comentado apenas com Leila sua
decepção, não escondendo seus temores, que aumentavam dia a dia, à
medida que se aproximava a data marcada para o novo contato, de acordo
com as quatro anotações entregues por Alik.

Quanto a Augusto-Michel, o aviador não deixava de reconhecer que


também lhe estranhara o procedimento em dado instante dos episódios.
Desde o início, desde a primeira conversa no avião, sobre o Atlântico,
pareceu-lhe o professor um caráter sólido, sincero a toda prova, amparado
por cultura incomum, qualidades essas a que a idade adicionava grande
respeitabilidade. Nesse encontro inicial, não notara desequilíbrio ou
variação alguma na conduta do professor, a não ser na atitude repentina
assumida no aeroporto de Dakar, quando cortara a conversa
precipitadamente. Mas a justificativa apresentada eliminava o deslize.
Afinal de contas, o professor ainda não o conhecia e não deixara de ter
certa razão receando não ser levado a sério. Vaugirard era no fundo um
obcecado. Acreditava nos discos-voadores com a mais obstinada
convicção. Toda-134

via, a seu ver, não chegava a ser um fanático, porque alicerçava a sua
crença em motivos individuais, baseados na experiência e no
conhecimento. Sempre se mostrara sincero e honesto. Desviara-se dessa
conduta, apenas, uma vez, voltando logo em seguida ao comportamento
anterior, com mostras de ter-se punido pelo deslize. Esse instante fora na
ilha, logo em seguida à revelação do filme com as imagens do disco.
Augusto-Michel descontrolara-se. Sua fisionomia, sempre compenetrada e
serena, capaz de aceitar e analisar todos os tipos de ocorrências,
transformara-se por minutos, evidentemente sem controle.

Aliás, Eduardo não contava elementos para afirmar se o professor


aparentava exagerada capacidade de auto-censura ou se possuía
exagerada dissimulação, capaz de esconder suas reações mais profundas,
encarando tudo com idêntica passividade. O problema era complexo
demais, e demandava a opinião de um psicó-

logo e não do aviador, por mais aguçado que fosse o seu senso de
observação. Mas, mesmo descontrolado momentaneamente, falando em
glórias advindas do encontro com o disco, triunfo de suas incansáveis
pesquisas, mesmo ao recordar-se de seus passos ao redor do filme nas
mãos de Santos e de seus olhos esbugalhados, distorcidos pelas lentes
grossas dos óculos, não se assustou Eduardo com a reação. Afinal, haviam
testemunhado acontecimentos inacreditáveis e somente um anestesiado ou
um débil mental ficaria indiferente e apático perante a importância das
ocorrências.
O nervosismo era geral e o descontrole em tais condições não se afastava
da normalidade.

Já em relação ao comportamento do rádio-telegrafista Santos sua atitude


era outra. A grande incógnita, a grande questão agora, cujas
conseqüências seriam imprevisíveis, era a atitude de Santos.

Até que ponto o homem ficaria calado? Qual a reação dos habitantes das
sete cidades subterrâneas de Agarta se êle desse com a língua nos dentes?
E, principalmente, Eduardo não se cansava de rememorar a indagação
mais séria: a ameaça de Alik recairia somente sobre um ou sobre todos?

*
135
Depois da chegada, no dia seguinte, haviam se reunido na casa de
Vaugirard. Num ambiente frio, notado por todos, onde cada um falou o
menos possível e nada demonstrou do que lhes ia no íntimo, renovaram a
promessa de sigilo absoluto, lembrando-se não só das palavras de Alik,
mas sobretudo esperando a continua-

ção dos contatos e da fantástica viagem prometida.

De acordo com as instruções fornecidas pelo tripulante do disco, o próximo


contato pelo visor-transmissor seria dali a onze dias. Nesse intervalo, não
mais se encontraram, a não ser Eduardo e Leila, que intencionalmente
combinaram não discutir o assunto entre si.

O único que não aguardava com ansiedade o correr dos dias era o rádio-
telegrafista. Na reunião na casa de Augusto-Michel, sempre demonstrando
ilógico ceticismo, depois de reiterar suas dúvidas sobre a origem do disco,
teimara em afirmar que o aparelho deveria pertencer a uma potência
terrestre. Afirmava, teimo-samente, que não haveria nenhum outro encontro
e que a ameaça não passava duma “conversa”.

O professor e Eduardo não mais comentaram suas dúvidas quanto ao


procedimento de Santos; mas começaram a convencer-se de que o homem
não teria a necessária compostura para calar-se.

Eduardo havia discutido com Leila e esta, sempre que havia oportunidade,
investigava das tripulações e dos amigos do rádio-telegrafista se este nada
tinha relatado sobre a “pescaria” na ilha de Trindade. Nenhuma
informação foi obtida, e assim, aparentemente, tinha-se a impressão de que
por enquanto — como dizia Eduardo — Santos estava calado, ruminando
sua inquietação. As apreensões do aviador passaram-se pois a concentrar-
se nas ocorrências posteriores à data do novo contato.

Nesse dia, todos estavam de folga. Eduardo terminando suas férias, Leila
apenas de plantão para vôos domésticos, e Santos na véspera de um vôo na
linha da Europa.

Não houve nenhum aviso posterior, visto a data marcada estar bem nítida
na memória de cada um.

O contato havia sido previsto para a noite. Exatamente para a meia-noite.


Era uma quinta-feira e desde as quatro horas da tar-136

de chovia a cântaros.

O professor não saíra nesse dia e providenciara tudo de forma a que


nenhuma visita inesperada ou qualquer compromisso viesse atrapalhar o
recebimento da mensagem. Sobretudo, não se esqueceu da recomendação
de que só os quatro deveriam estar presentes. Despediu os criados mais
cedo e não teve preocupações com a esposa e a filha, pois estavam na
Praia Grande, numa casa de veraneio de sua propriedade.

Com o cair da tarde chuvosa e melancólica, não pôde mais Augusto-Michel


conter sua crescente impaciência. Suspendera os estudos a que se
entregava para uma aula na Universidade no dia seguinte, e nada mais
conseguia fazer a não ser andar pela casa deserta, consciente do seu
nervosismo. Não que receasse qualquer coisa. Mas temia que não viesse
comunicação alguma. Para êle, os fatos ainda eram um prólogo. A meada
principiava a desenrolar-se e daria tudo o que estivesse ao seu alcance — a
própria vida se necessário fosse — para atingir as últimas conseqüências
da aventura, isto é, visitar uma das cidades subterrâneas. Desde que
chegara tinha revisado todos seus conhecimentos sobre geologia e
espeleologia, relendo tudo o que possuia sobre as lendas das sete cidades
de Agarta, do continente perdido de Lemúria, dos mundos inferiores das
lendas do alto Tibet e das tradições milenares dos toltecas e astecas sobre a
origem desconhecida daquele quase deus que foi o lider Quetzalcoatl, sábio
de pele branca que se opunha a atos de sangue e violência. Seu nervosismo
decorria do pavor de uma decepção. Não aquilatava qual seria a sua
reação se o visor-transmissor, quando os ponteiros se juntassem na meia-
noite, não desse sinal de vida como da vez anterior.

Encostado à vidraça, com todas as luzes da casa apagadas, olhava a chuva


cair sobre o gramado do jardim, quando notou a aproximação do carro de
Eduardo. O aviador foi o primeiro a chegar, com antecedência exagerada
que também demonstrava a sua impaciência.

Vaugirard não esperou o toque da campainha. Desligou a rádio-vitrola, que


espalhava uma melodia suave, em surdina, e quebrou a escuridão,
acendendo todas as luzes da sala.

— Viemos cedo demais — disse Eduardo assim que entrou, 137

ao mesmo tempo que auxiliava Leila a tirar a capa de chuva


completamente encharcada.

— Nada disso. Fizeram bem em ter vindo cedo. Estou sozinho desde depois
do almoço, e de algumas horas para cá não consigo suportar a expectativa
— respondeu o professor, apanhando a capa da comissária e o guarda-
chuva do comandante.

— Vínhamos mais cedo ainda. Quando passei pelo apartamento de Leila


eram ainda oito horas. O trânsito estava dificílimo devido à chuva, e penso
que levamos quase uma hora de lá até aqui. Diga-me, professor, o senhor
está sozinho?

— Não se preocupe. Vamos passar para o escritório. Minha mulher e minha


filha estão em Santos com uns parentes, e despedi os empregados, alegando
uma reunião reservada dos membros da congregação da Universidade.
Tudo está bem preparado. Vamos para a outra sala.

Ao entrar na biblioteca, Augusto-Michel foi diretamente ao bar e, não


vendo objeção alguma por parte das visitas, foi logo misturando umas
bebidas.

— Estiveram hoje com o rádio-telegrafista? — perguntou o professor.

— Eu, não — respondeu Eduardo. — Desde ontem que não vou ao campo.
Cedo estive na agência da cidade para pegar a correspondência, mas nem
me lembrei de saber do Santos. Dias atrás, Leila examinou a escala e me
disse que hoje êle estaria em São Paulo.— Sim — confirmou a moça — êle
vôa amanhã para a Europa. Hoje cedo estive no aeroporto de plantão até
às duas horas, mas não vi o Santos por lá.

— O senhor acha que êle virá, comandante?

— Não tenho dúvida. Se não viesse teria nos avisado. Não chegará tão
cedo como nós, mas aposto que não faltará.

— Não sei, não — resmungou o professor. — Desde o nosso último


encontro me convenci de que êle não leva a coisa muito a sério. Acredita
que o disco pertence a uma nação não identificada e creio que só está
quieto, sem ter espalhado aos quatro ventos o que se passou, em seu
interesse próprio, para acumular mais dados que lhe tragam
posteriormente proveito maior. Não é essa também 138

sua impressão?

— É. O senhor está com a verdade. Vamos ver como procederá depois do


contato de hoje. Seja lá o que estiver tramando, acho que não ficará quieto
por muito tempo. Antes disso, nada poderemos fazer.

Augusto-Michel depositou o cálice sobre a bandeja de prata,


encaminhando-se para o canto da biblioteca, onde estavam os arquivos.—
Quase ia me esquecendo. Tenho aqui uma noticia bem significativa,
relacionada com a nossa viagem de pesca. — Folheou a pasta azul e
retirou um recorte de jornal, passando-o ao aviador.

— Vejam. É o recorte de um jornal do Rio de Janeiro, publicado três dias


depois que chegamos. Guardei-o para lhes mostrar e ia me esquecendo.
Leiam.

Eduardo correu os olhos pelo papel e leu, em voz alta:

— “Estranho objeto visto à grande altura e em fantástica velocidade.


Encontro com unidades de guerra não identificadas”.

O comandante, perplexo, passou ao texto da notícia: — “Pescadores


vindos do alto-mar ao chegarem à Ponta de Monsaras, na foz do Rio Doce,
Estado do Espírito Santo, declararam ter visto sobre o oceano, à grande
altura, uma estranha aeronave circular, que se movimentava com
impressionante velocidade. Informaram mais que, horas depois, viram à
distância uma formação de vasos de guerra com numerosas unidades. A
notícia causou sensação na capital do Estado, tendo sido levada ao
conhecimento da Marinha”.

— Que lhe parece, comandante? Mais uma vez se repete a coincidência


daquela cidadezinha do norte da África, que viu o disco depois de nossa
passagem.

— Não tem dúvida. Esses pescadores assistiram ao final do nosso


espetáculo. Veja aqui. A notícia foi publicada no dia onze, mas o telegrama
é do dia nove, portanto, do dia em que saímos da ilha. Isto vem comprovar
que o tripulante do disco não mentiu, quando disse que estavam sendo
perseguidos. Aliás, nunca tive dúvidas. A explosão já confirmara suas
palavras, Leila consultou o relógio, dando demonstração de impaciência.
Os minutos custavam a passar, tornando-se cada vez mais longos à medida
que a hora marcada ia se aproximando.
139
— Onde está o visor-transmissor?

Vaugirard levantou-se. Foi em direção a um quadro de Re-noir que havia


na parede maior, ao lado duma pequena discoteca.

Segurou a tela com ambas as mãos e deslocou-a para a esquerda.

Em baixo, viram, então, surgir a tampa de um cofre-forte, em nível inferior


à parede. O professor girou durante alguns segundos os discos do segredo
e, com ligeiro estalido, acionou o trinco. Inseriu a mão, direita no
esconderijo e com todo o cuidado retirou do interior a pequena caixa
envolta por um pedaço de veludo vermelho.

Tornou á fechar o cofre e recolocou o quadro no lugar.

— Aqui está. Como vocês sabem, este aparelho foi examinado de todos os
modos possíveis. É feito de material desconhecido. É

impossível de abrir-se, e é ignorado o seu funcionamento, portanto.

Eduardo apanhou a caixa nas mãos e depositou a solenemente na mesinha


de laca, à sua frente.

— As duas últimas horas estão custando a passar — lasti-mou-se o


professor, ao mesmo tempo que se dirigia para a vitrola

— vocês gostam de Debussy?

Antes que obtivesse resposta ligou a rádio-vitrola, espalhando-se os sons


em surdina.

— Assim é melhor. O tempo passa mais depressa.

Eduardo levantou-se, acendeu um cigarro e acercou-se da janela, a fim de


ver a chuva que continuava a cair, sempre com a mesma intensidade.
Todos estavam sob forte tensão e a meia-hora seguinte passou-se em
silêncio, absorvidos pela música e por seus pensamentos. Meia hora antes
da meia-noite, o rádio-telegrafista chegou.

A chuva passara e Santos tocou insistentemente a campainha, depois de


despedir o carro de aluguel.

— Cheguei em cima da hora, não? Foi difícil encontrar condução. Jantei


com uns amigos na cidade e quase errei no cálculo do tempo que levaria
até aqui. Eduardo e Leila já chegaram?

— Sim, há algum tempo. Faça o favor de dar-me sua capa...

Santos, meio atrapalhado, esquivou-se ao pedido do professor.


140
— Não, muito obrigado. Prefiro ficar de capa mesmo. Sei que é falta de
educação, mas ela não está molhada e estou com uma gripe incubada,
sentindo um frio incrível. Deixe-me acostumar com a temperatura. Se sentir
calor, tirarei.

Vaugirard não deixou de estranhar essa conduta, ao condu-zir Santos para


a biblioteca.

— Boa noite, como vão?

— Como vai, Santos? Estávamos com medo de que você não viesse, de que
tivesse esquecido o nosso encontro.

— Não deixaria de vir de forma alguma. Mas vocês vão ver que eu é que
tinha razão. Acho que não vai acontecer nada.

O rádio-telegrafista sentou-se na poltrona em frente ao sofá onde estavam


Leila e o aviador. E ao ver a caixa sobre a mesa de laca tomou-a nas mãos.

— Sou o mais curioso e mais cético de vocês três. Não assisti a caixa
transmitir coisa alguma. Diga-me, Eduardo, como é que ela irradia? A
comunicação é em voz alta ou baixa?

O comandante, sentindo certa ironia nas palavras de Santos e não


interpretando bem o que pretendia êle com tal atitude, respondeu
lacônicamente:

— Transmite como um rádio comum. Logo mais você verá.

— Ouve-se bem? Pode graduar-se o volume?

— Não. Acho que não. Ouvi claramente. Não existe nenhum botão ou
controle por fora.
Augusto-Michel retirou delicadamente a caixa das mãos do rádio-
telegrafista, como se pretendesse examiná-la, e depositou-a novamente
sobre a mesa, bem ao centro, procurando disfarçar seu gesto.— Quer
tomar alguma coisa, Santos?

— Obrigado. Não faz nem uma hora que acabei de jantar.

Mais tarde, talvez.

Santos e o professor sentaram-se também ao redor da mesa de laca,


ficando os quatro em torno da caixa.

— Como é? Mudou de ponto de vista a respeito do que nos aconteceu? —


indagou Eduardo, para provocar o companheiro e forçá-lo a definir-se.

O rádio-telegrafista, como no “Alcíone”, não se fez de rogado, 141

mais uma vez demonstrando seu temperamento extrovertido.

— Vocês é que deveriam ter mudado de opinião. Vou ser claro e dizer com
toda franqueza o que penso de tudo isso. O disco existe, mas, como já lhes
disse aquela noite na ilha, não creio que seja verdade a história do
homenzinho. Afinal de contas, êle é uma criatura igual a nós e os motivos
pelos quais nos pediu silêncio devem ser mais simples do que os alegados.

Vaugirard aparteou veementemente:

— Quais seriam os motivos? Você, como nós, ouviu toda a conversa e não
pode deixar de pôr em dúvida que o motivo apontado pelo tripulante foi
bastante razoável.

— Não. Não acredito na história. O disco-voador só pode pertencer a uma


potência não identificada que busca o domínio total do mundo. Acho que
para a própria segurança nacional devíamos divulgar o que nos aconteceu,
não nos esquecendo de que o aparelho é uma arma poderosíssima, que não
pode ser subestimada ou levada em brincadeira. Pessoalmente, digo-lhes,
poderíamos ter bons lucros com essa divulgação.
Eduardo, que até então vinha apenas escutando e medindo as reações de
Santos, não se conteve mais. Levantou-se, apertou o que restava do cigarro
dentro do cinzeiro e interpelou o amigo, fitando-o bem de frente:

— Que quer dizer com a palavra “lucros”? Já é a segunda ou terceira vez


que você vem com essa história. Será que pensa que estamos interessados
em ganhar dinheiro com a publicidade dos fatos? Seu procedimento tem
sido bem estranho! Esqueceu-se do nosso acordo?

Meio constrangido, Santos revirou-se na poltrona, desviou os olhos do


aviador, puxou para si a capa de chuva como se estivesse com frio e
respondeu, quase procurando uma justificativa para sua atitude:

— Não me julguem mercenário ou uma pessoa somente in-teressada em


dinheiro. Desculpem-me, se causei essa impressão.

Em duas palavras, o que penso é o seguinte: acho que o disco representa


uma pavorosa ameaça contra as nações livres e por isso devíamos
denunciá-lo. Ao mesmo tempo, os jornais, o rádio e a televisão muito
poderiam nos dar pelas informações. Imaginem o 142

furo que seria, o maior furo do século! Vocês já imaginaram por quanto
poderíamos ter vendido as fotografias, caso o professor não as tivesse
queimado? Não podem deixar de admitir que foi uma pena. Augusto-
Michel, ao ver relembrado o episódio da queima do filme, não perdeu a
oportunidade para justificar-se:

— De fato, em parte concordo com o senhor. As fotografias não deviam ter


sido destruídas. Agi irrefletidamente, por impulso incontido, temendo por
nosso procedimento uma vez na posse das cópias. Elas nos seriam úteis,
não para publicidade, mas somente para estudos, análises e confrontos.
Penitencio-me pela conduta impensada.

O rádio-telegrafista, por mais que pretendesse, não conseguia desviar suas


palavras da verdadeira intenção que o avassalava:

— Para mim, elas representavam dinheiro. Somente isso.


O comandante estava cada vez mais impaciente e irritado com a atitude de
Santos. Leila compreendeu esse estado de irritação e, conhecendo o
temperamento explosivo do aviador, segurou-o pela mão como a pedir-lhe
que nada mais dissesse, pois uma discussão com outras conseqüências
poderia advir da troca áspera de palavras. Procurou desviar a atenção do
comandante das últimas palavras do rádio-telegrafista.

— Vamos até à vitrola. O disco está terminando. Vamos escolher outro.

Ambos se levantaram e foram de mãos dadas para o canto da sala,


enquanto Augusto-Michel se encaminhava para o bar e se servia de outra
bebida.

Longe do rádio-telegrafista, Leila falou em voz baixa a Eduardo: — Não dê


importância ao que êle está dizendo. Está obcecado pela idéia do lucro e de
nada adiantará qualquer discussão. Vamos ver o que vai acontecer.

— Desculpe-me, querida, mas quase não me contive. O homem é um


imbecil completo. Não sei onde estava com a cabeça, quando o convidei
para a nossa viagem. Mas o melhor mesmo é não ligar. No ponto em que
êle chegou, os argumentos não mais adiantam, somente a força.
143
— Acalme-se. O tipo é mesmo um ignorante completo. No fundo, sinto-me
culpada por tudo...

— Você? Culpada? Por quê?

— Não fui eu que sugeri o empréstimo do barco deles?

— Ora, isso é bobagem. Nem pense nisso. Culpado fui eu.

Não se esqueça de que sou o responsável por tudo. Eu é que tive os


primeiros contatos com eles e eu é que fui o escolhido. Tudo o que de
errado aconteceu deve ser-me atribuído. Eu é que me afobei na escolha de
Santos. E se êle falar, se alguma coisa acontecer, sinto-me preocupado
como o inteiro responsável pelo fracasso. Se isso acontecer, ajustarei com
Santos minhas contas...

— Não pense mais nisso, meu bem. Alguma coisa me diz que no fim tudo
dará certo. Vamos aguardar os acontecimentos. Se êle falar, isso é com êle.
Você não pode ser responsabilizado por atos alheios. Vamos escolher outra
gravação ...

O professor consultou o relógio e vendo o casal que procurava colocar


novo disco na vitrola, procurou fazer uma “blague”, risonho, a fim de
desanuviar o clima opressivo que se formara.

— Acho que não teremos mais tempo de ouvir outra música.

Vejam aqui. Faltam dez minutos para meia-noite e, ao que parece, vamos
entrar em contato com outra espécie de disco que não o de vitrolas...
Vamos, tomemos outra vez nossos lugares em volta da mesa.Santos não se
havia movimentado de seu lugar. E, ao escutar as palavras de Vaugirard,
acomodou-se melhor na poltrona, abrindo um pouco a capa de chuva que
continuava a envergar. O
professor esperou alguns minutos em silêncio e depois, como se procedesse
a um ritual, apanhou a caixa metálica, abriu-a e depositou ao centro da
mesa, equidistante dos quatro.

O silêncio era absoluto e podia distinguir-se o barulho da chuva, que


recomeçara, nas janelas da biblioteca. Santos aproximou-se mais,
esticando o punho fechado para junto da mesa. Leila, a mais
impressionada dos quatro, afundou-se no sofá e segurou o braço do
aviador. Vaugirard tirou os óculos e começou a limpá-los, enquanto
Eduardo mastigava um cigarro entre os dentes.

Cinco minutos passaram-se, quando, como da vez anterior, um zumbido


começou a sair do interior do objeto. A expectativa 144

atingiu o auge e nenhum dos quatro fêz um único gesto. O zumbido


diminuiu e uma voz clara, nítida e de timbre metálico esparramou-se pelo
cômodo, como se proveniente de uma quinta pessoa ali presente, ao lado
deles mas invisível.

— Vejo que tudo decorreu bem até agora. Todos estão aí e de novo estamos
aqui cumprindo nossa promessa.

Os quatro estavam perplexos e imóveis, a não ser Santos, que se revirava


na poltrona, demonstrando intensa emoção.

— Hoje, como da primeira vez, seremos breves. Um segundo encontro será


possível. Nossos entendimentos deverão continuar para que a missão
recíproca seja coroada de êxito. Desta vez, o lugar será bem mais acessível.
Já somos amigos e podemos pôr de lado um pouco da nossa cautela inicial.
Professor, pegue o mapa do Estado de São Paulo.

Augusto-Michel sentiu-se apanhado de surpresa. Ao ouvir seu nome


levantou-se bruscamente, deixando cair os óculos no tapete.— Não se
assuste, professor. Primeiro pegue seus óculos que caíram e depois o mapa.
Não se assuste.

Todos estavam transidos. A caixa via tudo. Era idêntica a um organismo


vivo que estivesse sobre a mesa. Falava, via e sentia.
Vaugirard foi em direção à escrivaninha, abriu uma das gavetas e voltou
com um mapa dobrado.

— Aproxime-se, professor. Abra o mapa em frente a mim.

Assim mesmo, bem próximo ao visor. Agora, escutem com atenção.

Estão vendo lá em cima o rio Grande, na divisa do Estado de São Paulo


com Minas Gerais? Lá em cima, onde o rio descreve essas duas fortes
curvas, estão vendo? Lá existem inúmeras ilhas de tamanho pequeno. São
todas desertas e em torno, num vasto círculo, não existem habitantes. Vejam
bem. O próximo encontro será aqui nesta ilha maior que o mapa assinala.
Estejam lá, daqui exatamente a trinta dias, à meia-noite. Nesse segundo
encontro, novas revelações serão feitas, sempre necessárias à nossa
Grande Missão. Entenderam bem? Daqui a trinta dias, à meia-noite nessa
ilha maior do rio Grande. Mais uma vez, recomendo-lhes silêncio absoluto
sobre todos os fatos. Não se esqueçam de que podemos vigiá-

los. Sou forçado a mais uma vez declarar-lhes que, se divulgarem o 145

que está acontecendo, poderemos anulá-los. Sim — declarou a voz em tom


mais incisivo e metálico ainda — poderemos anulá-los.

Inesperadamente, a voz calou-se, propagandose outra vez pela biblioteca o


zunido inicial, ao qual sucedeu um silêncio completo. O primeiro a falar foi
professor:

— Que tal, meus amigos? Que tal?

Foi Eduardo quem respondeu:

— Nunca duvidei do recebimento da segunda mensagem.

O rádio-telegrafista embrulhou-se mais uma vez na capa como se o frio


tivesse voltado e tomou o visor-transmissor nas mãos.

— Vocês examinaram bem isso? Do que é feito? Como funciona?— Não


sabemos — respondeu o professor. — É de um material desconhecido na
face da Terra, praticamente indestrutível.
Você acha que algum povo da superfície poderia fazer uma coisa dessas?

Santos não respondeu. Pôs-se em pé.

— Agora que pretendem fazer?

Foi ainda Eduardo quem respondeu:

— Eu e o professor pretendemos continuar. Tencionamos ir ao segundo


encontro. Você é que deve explicar às claras o que pretende — concluiu
Eduardo em tom de desafio.

— Não quero discutir mais o caso — replicou Santos, esqui-vando-se à


provocação. — Acho que vou largar essa história toda.

Estou cansado de tudo isso e não quero continuar nessa brincadeira, como
joguete nas mãos de homens que não sabemos quem são e de onde vêm...

O professor e o comandante continuaram calados, à espera de que o rádio-


telegrafista continuasse a explicação.

— Estou cansado de tudo isso e não quero mais discutir hoje o assunto.
Sinto-me gripado e, com licença de vocês, já vou indo.

Amanhã, pensarei melhor e direi a Eduardo o que pretendo fazer.

Santos levantou-se, cingiu bem o impermeável, ensaiou uma tosse frustrada


como se a ocultar certo vexame, e foi se dirigindo para os lados da porta
de entrada, seguido por Vaugirard, que permanecia mudo frente à nova
atitude do rádio-telegrafista, agora de 146

absoluta falta de boas maneiras.

Eduardo encaminhou-se também para a porta seguido de Leila, mostrando-


se ambos também dispostos a retirar-se.

— O melhor é todos irmos, professor. Deixemos que êle reflita bem sobre o
caso e durma pensando no significado das palavras pronunciadas por
“eles”. Escute, aqui, Santos, você sabe o que significa a palavra anular”?
Santos não se deu por achado. Parou bruscamente, voltou-se, revirou o
chapéu na mão e respondeu com displicência e visível má-vontade:

— Não tenho medo de ameaças. Sempre agi de acordo com a minha


cabeça.

Eduardo ia insistir, aceitando o desafio, mas Leila, prudente-mente,


apertou-lhe a mão, de novo procurando evitar o atrito.

— Vejam, a chuva parou. Vamos aproveitar e ir também, Eduardo. Você


amanhã procura o professor para traçarem os novos planos, pois dessa vez
não precisamos de nenhum barco.

O rádio-telegrafista despediu-se de Vaugirard, apertou mais a capa e,


fingindo não ter escutado as últimas palavras da comissária, saiu a toda
pressa pelo jardim alagado.

— Bem, professor, hoje não devemos mais comentar o assunto. Também


estou cansado e amanhã lhe telefonarei para mar-carmos novo encontro.
Quanto ao nosso homem, não se preocupe.

Acho que êle já se decidiu. Irá amanhã de tarde para a Europa e antes
disso obterei sua palavra final no aeroporto.

Despediram-se e também apressadamente tomaram a dire-

ção do carro, estacionado do outro lado da rua.

XIII — O VÔO 412

No dia seguinte, como naquela primeira manhã depois do descontrole dos


instrumentos sobre São Paulo, Eduardo acordou com a mesma sensação de
insegurança e mal-estar. Não dormira grande parte da noite, e todos os
jornais e revistas que adquirira na banca da esquina acumularam-se ao
lado da cama sem que tivessem cumprido a função de conduzi-lo ao sono.

Saindo da residência de Augusto-Michel, depois de ter levado 147


a comissária, viera diretamente para seu apartamento. Estava cansado. Em
seu cérebro fervilhavam os últimos fatos e, de tal ordem eram suas
preocupações, que nem mesmo conseguira desprender-se delas e entregar-
se à leitura dos magazines.

Previa, agora, grandes acontecimentos. O segundo encontro certamente


proporcionaria revelações mais profundas e, como o professor, estava
decidido a ir até ao fim, fossem quais fossem as conseqüências.

Nos poucos instantes, que conseguira dormir, tivera um sonho agitado.


Vira-se amarrado no interior do disco-voador, em pleno vôo no espaço
sideral, enquanto era torturado pelo personagem de chapéu-côco, pelo
agente dos homens das cidades subterrâneas, sempre com aquela
aparência do dançarino de Toulouse-Lautrec.

Várias vezes, acordou, acompanhando a passagem das horas pela consulta


repetida do relógio de pulso colocado no criado-mudo.

Quando despertou, quase ao meio-dia, sentiu-se mais cansado do que ao


deitar-se e ficou ainda muito tempo na cama, seguro pelos prolongamentos
perigosos do sonho.

Fêz a barba, à pressa, acabou de vestir-se e fechou a porta do apartamento


só com o trinco, pois de novo subiria assim que tomasse um café no bar, em
baixo. No elevador, continuou a sentir o mesmo mal-estar, chegando a
suspeitar de que estivesse doente.

O bar ficava no mesmo prédio, junto ao jornaleiro. Quando passou pela


banca de jornais Eduardo não observou a aglomeração em volta de certo
periódico afixado na parede. Entrou no bar, sentou-se no banco alto junto à
máquina registradora e pediu ao garção, já seu conhecido, somente uma
xícara de café, sempre mais preocupado com suas idéias do que com o que
se passava em torno.

Foi aí que o homem da caixa, baixo e gordo, barbudo como um ouriço, lhe
dirigiu a palavra:
— Bom dia, comandante. Que acha o senhor na notícia do jornal?O
aviador respondeu distraído, sem prestar muita atenção à pergunta:

— Bom dia, José. Notícia? Que notícia?

— Como? — Então, o senhor não viu ainda? Não viu toda essa história do
disco-voador?
148
Eduardo teve um sobressalto e largou a xícara sobre a mesa.— Notícia
sobre disco-voador? Onde está isso? Deixe-me ver esse jornal — disse,
levantando-se e aproximando-se mais do lugar ocupado pelo caixa.

— Sim. Notícia sobre o aparecimento de um disco-voador.

Deve interessá-lo muito. Olhe, aqui, veja a primeira página. Já li duas ou


três vezes! Pode ver.

Num segundo, o comandante inteirou-se de tudo. Lá estava.

Tudo viera por água abaixo. Santos, aquele imbecil, aquele cretino, dera
com a língua nos dentes. E muito mais do que isso: tinha chegado ao
máximo em suas declarações à imprensa.

Eduardo pegou o jornal, afastou-se sem dizer nada ao homem da caixa e


foi sentar-se junto a uma mesinha de canto. Custava a acreditar no que lia.
As manchetes imensas tomavam todo o cabeçalho da primeira página,
cheia de subtítulos também em letras garrafais. Tratava-se de um segundo
clichê de última hora.

Foi lendo devagar, procurando entender linha por linha, tão atônito se
sentia:

“Esclarecido o mistério dos discos-voadores. Rádio-telegrafista de uma


companhia de aviação narra a espantosa aventura que viveu, juntamente
com um professor da Universidade, quando esteve em contato com um
desses objetos que aterrissou na ilha da Trindade. Entre as inúmeras
provas apresentadas, exibiu o rádio--telegrafista Santos a gravação
completa duma entrevista obtida ontem com os tripulantes do disco, por
intermédio de um aparelho misterioso chamado visor-transmissor”.

Então, o homem tinha falado mesmo. E mais do que isso: tinha gravado a
conversa com Alik na casa do professor. Imediatamente, o aviador lembrou-
se do impermeável de Santos. Lembrou-se de sua teima em não ter querido
tirá-lo, bem como do cuidado com que se envolvia nele, como se estivesse
com frio. Sim. Santos ocultara no bolso da capa de chuva um desses
gravadores portáteis de pouco menos de um palmo. O microfone era
pequeno e 149

fácil também tinha sido ocultá-lo nas mãos, com o fio entrando pela
manga. Sim, o rádio-telegrafista fora deveras esperto. Planeja-ra bem
todos os pormenores do golpe que pretendia desencadear.

Tudo agora estava perdido, e, principalmente, qual seria a conseqüência


dessa patifaria?

Eduardo continuava a ler, agora com mais calma.

A entrevista falava apenas da viagem e do vôo no disco, men-cionando


somente o nome do professor. Não deixou de estranhar esse fato. Por que
Santos não mencionara Leila e êle, Eduardo?

Mencionava o professor como a pessoa que recebera o convite e que


providenciara a expedição. Falava, em linhas gerais, sobre o disco, sua
origem e sua tripulação, relatando o segundo contato, indicando até o
lugar em que se daria o novo encontro. Sim. Não restava dúvida. Tudo se
tinha desmoronado. Santos deveria ter entrado em dinheiro graúdo. A
notícia informava que o rádio-telegrafista ven-dera ao jornal a gravação e
os direitos da reportagem e informava que uma grande expedição seria
preparada, sob o patrocínio de conhecido deputado, para ir ao encontro do
disco, quando da aparição anunciada na ilha do rio Grande. Só não se
fazia referência ao nome de Eduardo e de Leila. Qual seria a intenção de
Santos ao esconder esse pormenor? Teria sido proposital a omissão? Se
procurava a todo custo provar a veracidade da aventura e de sua palavras,
seria lógico que houvesse indicado o maior número de testemunhas
possível, citando êle — Eduardo — e Leila. Que teria acontecido?

Não havia mais tempo a perder. Um antídoto deveria ser encontrado.


Eduardo levantou-se precipitadamente e devolveu o jornal ao caixa,
dirigindo-se ao jornaleiro. O homem da máquina registradora não deixou
de estranhar essa atitude.
— Leu, comandante? Como aviador, que acha o senhor dessa história?
Será verdadeira?

— Depois conversaremos José. Agora, estou com muita pressa.

Adquiriu dois exemplares na banca, onde uma pequena multidão já


comentava a notícia, e subiu para o apartamento.

Viu que suas suspeitas tinham sido confirmadas. Santos pla-nejara tudo
muito bem. Se não obtivera as fotos, tinha pelo menos 150

obtido a gravação. A rigor, esta não chegava a provar muita coisa para
quem não estivesse a par de todos os fatos. Mas significava alguma coisa
de sensacional que lhe deveria ter dado boa recompensa. Com esse
episódio compreendeu o caráter do homem que considerara bom o leal
companheiro. Dissimulara tudo desde o princípio e certamente desde então
já vinha tramando o golpe sórdido e traiçoeiro. Que pensaria disso tudo o
professor? Seu nome em manchete, indicado como testemunha? Augusto-
Michel Vaugirard era um cidadão respeitável sob todos os aspectos e como
rece-beria a notícia tão espalhafatosamente lançada? Não havia tempo a
perder. Os acontecimentos precipitaram-se. Tinha que localizar Santos e
tirar tudo a limpo, nem que fosse necessário empregar a violência.

Entrou no apartamento e discou o número de Leila. A ligação não durou


um minuto e ficou sabendo que a comissária havia saído, sem ter dito para
onde ia. Ligou em seguida para o professor.

Augusto-Michel também não estava. Informaram que bem cedo o professor


saíra para a sua aula na Universidade. Eduardo olhou o relógio. Quase
uma hora. Restava apenas localizar Santos. Tentou uma terceira
comunicação para o aeroporto, chamando a seção do tráfego.

— Quem? Com quem o senhor deseja falar? Com o rádio-telegrafista


Santos? Êle não está no momento. Esteve aqui há mais ou menos uma hora
e foi para a manutenção, pois sai dentro de mais ou menos uma hora para
o vôo da Europa. Se êle volta? Não sei.

Só lhe posso informar que esse é o décimo telefonema para Santos.


Todo mundo parece que hoje quer falar com êle.

Desligou apressadamente e tentou uma última ligação com a manutenção.


Se pegasse o carro e corresse ao campo, por mais depressa que fosse
levaria pelo menos uma hora e o avião já teria partido.

— Alô! É da manutenção? Quem está falando? É o Spinelli?

Escute, aqui, quem fala é o comandante Eduardo. A coisa é urgente,


chame-me o Santos. Sim, o rádio-telegrafista, preciso falar com êle. —
Comandante, Santos já esteve aqui e foi com o aparelho e o resto da
tripulação para o pátio de embarque. O senhor leu a entre-151

vista que êle deu? O senhor não sabe como aquela historiada toda foi
recebida por aqui! Ninguém levou a sério e o chefão está danado com o
homem. Disseram até que êle vai ser despedido. Como? Se posso chamá-lo
na torre? Acho que não. É muito difícil e não dá tempo. Está certo. Às
ordens, comandante. Obrigado.

Desanimado, Eduardo largou o fone e recostou-se na cama.

Acendeu um cigarro, tirou uma longa baforada e procurou ordenar os


acontecimentos. Que sucederia agora? Imediatamente, chegou a uma
conclusão: o segundo encontro estava de antemão fracassado.

Depois do acontecido, jamais poderiam ir ao local. Chegariam a saber os


homens do disco?

O melhor era esperar. O professor logo chegaria e antes de qualquer


contra-medida a ser adotada deveriam trocar idéias e estudar o que fariam
para evitar as conseqüências da leviandade de Santos.

Tornou a ler a notícia. Em muitos pontos, afastava-se da realidade do que


haviam presenciado.

Nisso, a campainha da porta soou com insistência. O moço saltou da cama


e deparou com Leila, com o jornal amassado nas mãos.— Você já leu? Viu
a notícia?
— Sim, não fique assustada, vi tudo agora pouco. O procedimento do
homem foi de um cão! Se eu tivesse encontrado com êle não sei o que teria
sucedido. Mas liguei para todas as dependências do aeroporto e não o
localizei. A estas horas já deve estar saindo.

— Você não pode calcular como a reportagem estourou lá no aeroporto!


Quando chegaram os jornais, foi um Deus nos acu-da. Os exemplares
esgotaram-se em poucos minutos e toda aquela multidão que esperava
embarque ficou apavorada e a comentar o assunto. Alguns passageiros
chegaram mesmo a não querer mais embarcar, com medo de encontrar o
tal disco durante o vôo. Quando dei com a notícia, procurei falar com o
Santos, mas não consegui. Choveram repórteres de todos os lados, mas êle
se escondeu no próprio avião. Não foi visto por ninguém de fora e todo o
pessoal da companhia, logo que êle apareceu, começou a ridicularizá-lo e
a indagar onde é que tinha sido a farra e quantos litros de bebida havia
engolido.
152
— Se eu o apanho! Se eu o apanho teríamos que acertar nossas contas! O
imbecil pôs tudo a perder. Você acha que “eles”

vão agora aparecer lá no rio Grande? Nunca mais! Nunca mais! E

as conseqüências? Não quero assustá-la, mas não posso deixar de


acreditar nas palavras de Alik, quando falou naquela coisa de

“anular” os que falassem.

— Que poderá acontecer? Tudo isso já me vem apavorando tanto! E agora


ainda mais esta. Que acha você que poderá acontecer? — Desculpe-me,
Leila, não quis assustá-la. mas não posso esconder que temo a reação dos
homens das cidades subterrâneas.

Santos contou tudo, infringindo todas as sanções. Revelou de onde vêm os


aparelhos, contou a história de Alik, falou sumariamente sobre o sistema de
propulsão do disco, envolveu o professor em tudo e só não entendo porque
não nos mencionou. Isso deve também fazer parte de seus planos. O diabo
do homem não dá ponto sem nó. O que me preocupa agora é o que poderá
acontecer...

— Vamos procurar, o professor, Eduardo. Êle poderá, sugerir alguma coisa.

— Esperaremos por enquanto. Já liguei para lá e êle ainda não tinha


voltado da aula.

— Ligue para a Universidade. Temos que agir com urgência para ver se
podemos fazer alguma coisa.

— Ótima idéia. Não tinha pensado nisso. Veja a lista telefôni-ca aí na mesa
de cabeceira, em baixo.

Em segundos, a ligação estava feita.


— Sim, é da Universidade, sala dos professores. O professor Augusto-
Michel não poderá atendê-lo. Além de estar em aula, deixou ordens
expressas a respeito. Não atenderá hoje a nenhum telefonema, seja lá de
quem fôr.

Desanimado, Eduardo colocou de novo o fone no gancho.

— Está vendo? O professor está a par de tudo. Se deu instruções para que
não o chamassem é porque já deve estar sendo perseguido pelos
representantes de todos os jornais do Brasil. Não se esqueça de que êle é
conhecidíssimo, muito considerado nos meios universitários e científicos, e
foi mencionado nominalmente como testemunha da aparição do disco.
153
Mal o aviador acabara de pronunciar a última frase o telefone tocou.—
Alô! Sim, sim. Aqui quem fala é o comandante Eduardo.

Quem? Professor Vaugirard! — não se conteve, tapou o fone com a mão e


quase gritou para Leila: — é o professor! É o professor! —

Acabei de telefonar-lhe. Liguei antes para sua casa e depois para a


Universidade. Já leu o jornal? Sim? Onde é que o senhor está?

Ótimo! Ia pedir-lhe. exatamente isso. Moro bem perto de onde está, mais ou
menos a duas quadras. Sim. Oitavo andar, apartamento três. Até já, então.

Recolocou o fone no lugar e esfregou as mãos de puro desa-fogo. — Êle


nem terminou a aula! Não conseguiu, de tão nervoso!

Está aqui perto e vem para cá. Que sorte! Já sabe de tudo e parece
apavorado com as conseqüências da notícia. Disseme que está sendo
procurado por uma legião de repórteres do rádio, da imprensa e da
televisão, e que nem mesmo pode ir para sua casa.

Telefonou antes para lá e ficou sabendo que estão à sua espera mesmo na
porta.

— Com razão o coitado deve estar apavorado! Foi citado como testemunha
e, bem mais do que isso, como elemento de ligação entre o disco e os
homens da terra! Imagine só como os repórteres devem estar à sua
procura, dando-lhe caça!

— E mais do que os jornalistas, a entrevista de Santos deve ter preocupado


as forças armadas. A esta hora, o rádio-telegrafista já deve andar longe e
todos os interessados irão cair sobre o pobre professor, como abutres
ávidos por carniça. Imagine se aquele tratante nos tivesse mencionado na
entrevista! Como é que estaríamos a esta hora? E veja só que o salafrário
se safou de fininho, deixando Augusto-Michel bem no meio da fogueira!
— Por que será que não nos citou?

— Já procurei encontrar uma causa para essa atitude, mas não achei. Na
certa ficou com medo de minha reação, ou então tudo faz parte de seus
planos de patife. Só queria saber quanto ganhou e por quanto vendeu a fita
com a gravação!

Momentos depois, a campainha da porta tocou duas vezes.

Eduardo deu um pulo da poltrona.


154
— Ótimo! ótimo, o professor está aí! Augusto-Michel Vaugirard mal viu a
porta abrir-se embarafustou rapidamente pelo cômodo a dentro, como se
acuado procurasse um refúgio seguro depois de estafante perseguição.
Entrou, tirou o sobretudo, jogou o jornal sobre a mesa, deixou-se cair numa
poltrona ao lado do telefone. Ficou bem um minuto quieto, sem ser
perturbado pelo aviador, respirando fundo e descompassado, inflando as
narinas grotescamente, procurando ganhar forças para a primeira frase.

Depois, ainda antes de falar, tirou e tornou a colocar os óculos, aprumou-


se melhor e não mais se conteve:

— Então? Viram o que o miserável fêz? Nossos prognósticos realizaram-se,


mas confesso que nunca esperaria que êle chegasse ao extremo de gravar
em minha residência a conversa que tivemos.

E de mais foi capaz ainda esse miserável! Contou tudo. Tudo! Com todos os
pormenores que sua inteligência obtusa pôde compreender. Que acham
vocês?

— A nossa reação foi idêntica. Antes da divulgação dos acontecimentos, já


me penitenciava pela escolha desse homem e agora me considero culpado
pelo que aconteceu, professor. Não tive a devida calma para escolher um
companheiro adequado. E, ao convidar Santos, somente pensei no barco e
naquele episódio do acidente, quando êle se revelou bom companheiro.
Sinto-me o responsável por tudo, repito, principalmente por ter envolvido o
senhor nesse escândalo que está acontecendo e que só não é ridículo para
nós.

— Não o culpo por nada e nem me considero uma vítima. O

que me atormenta nisso tudo não é a caçada que os jornalistas estão me


movendo por todos os cantos de São Paulo. É não mais podermos
continuar os contatos, vindo assim a saber a verdade completa sobre o
mundo subterrâneo. E, principalmente, por ter-mos perdido a oportunidade
de fazer alguma coisa em prol da desgraçada humanidade aqui de cima. O
resto não me interessa de maneira alguma. Reconheço que estou acuado,
fugindo dos que me procuram para obter dados e esclarecimentos. Santos
fêz muito bem a coisa, mas essa perseguição não me incomoda. Só não en-
frentei meus perseguidores porque não sei ainda que atitude devo tomar.
Não me esqueço de que entrei para a equipe — o que para 155

mim foi um privilégio, repito — por suas mãos e consideraria grande falta,
análoga à do rádio-telegrafista, tomar qualquer atitude sem antes
conversarmos.

Aqui estou para isso e não por medo de ser encontrado. Que devemos
fazer?

Vendo-o embaraçado e ao mesmo tempo lhe admirando a hombridade e a


coragem, Eduardo foi em seu auxílio:

— Uma atitude precipitada em verdade viria complicar tudo mais ainda. O


senhor observou que êle não mencionou nem a mim nem a Leila? Que teria
pretendido com isso? Não lhe ocorre nada?

— Não sei também. Logo verifiquei essa circunstância, mas não encontrei
explicação alguma.

— Para nós foi ótimo, mas alguma coisa me diz que essa omissão faz parte
dos planos diabólicos do homem. Diga-me, professor, quando o senhor
resolver avistar-se com os jornalistas, o que é inevitável, que dirá sobre a
notícia? Negará tudo ou admitirá sua participação na viagem e no
encontro?

— Bem, esse é o ponto central que me toca. Queria antes encontrar Santos
para saber precisamente seus desígnios. Já sei que o miserável,
provavelmente com uns bons dinheiros no bolso, ba-teu asas para a Europa
e só escalará pela primeira vez em Dakar.

Já que não posso saber o que êle pretendeu, a bem da verdade e arrostando
todas as conseqüências, penso que não negarei os fatos. Ao contrário, serei
mais exato e divulgarei tudo, sem envolver sua pessoa.
— Mas, professor, e as ameaças? Já pensou no que poderá acontecer? O
senhor não levou a sério o que Alik nos disse? Aquela coisa de “anular”
quem falasse? Não seria melhor esperarmos um pouco para ver no que
tudo isto vai dar?

— Não me esqueci das ameaças, não. Uma vez que Santos falou, tenho a
impressão de que todos somos responsáveis pela delação. Que nos
adiantará querer ocultar alguma coisa se a esta hora o Brasil inteiro
comenta o acontecido? Você acha que depois disso “eles” irão ao local do
segundo encontro? Acho que tudo está perdido e que nunca mais darão
sinal de vida, a não ser que... — A essa altura o professor interrompeu a
frase e ficou momentaneamente calado. Eduardo insistiu, curioso: 156

— A não ser o quê, professor?

— A não ser que apareçam de novo para anular-nos. Não foi isso que Alik
prometeu?

A frase suspendeu por minutos a conversa. O aviador calou-se e mudou de


poltrona procurando no bolso um maço de cigarros amassado. Leila não
escondeu mais o nervosismo e, pondo-se em pé, aproximou-se da janela,
fingindo observar o movimento da rua. O aviador quebrou o silêncio.

— E a caixa, professor? Onde está o visor-transmissor?

— Está aqui comigo. Quando saí de casa automaticamente a coloquei no


bolso. Não tive tempo de devolvê-lo ao cofre, pois o deixei ontem a noite
inteira sobre a mesa, para o caso de alguma comunicação...

Leila não se conteve mais. Voltou-se da janela, largou frené-

ticamente o cordão da cortina que segurava e dirigiu-se, veemente, para


Eduardo:

— Se existe o perigo de alguma coisa nos atingir, porque não entramos em


contato com “eles”? Contaremos o que aconteceu e salvaremos assim a
nossa responsabilidade.
O comandante concordou com a idéia.

— Estava pensando exatamente nisso, quando perguntei pela caixa. Mas


como faremos para entrar em comunicação com o disco ou então com as
cidades lá de baixo?

Augusto-Michel tirou o aparelho do bolso, desembrulhou-o do veludo


vermelho e abriu-o, como havia feito na véspera. Colocado com cuidado
em cima da mesa, ficaram todos em silêncio, possuídos por intensa
expectativa. Mas os minutos se escoaram e o visor-transmissor não emitiu
um único som. Nem um chiado.

Nem uma palavra. Ali estava, inerte como se fosse uma pedra ou um
cinzeiro, absolutamente sem vida e sem função.

— Estão vendo? A coisa só funciona quando “eles” querem, nas horas por
“eles” prefixadas. Não sei como poderemos nos comunicar com Alik —
declarou Vaugirard, jogando o corpo como que vencido sobre a poltrona
forrada de plástico.

— Professor, acho que o melhor por enquanto é mesmo esperarmos. O


senhor não deve dizer nada. Deve mesmo evitar a im-157

prensa. Escute, tenho uma idéia. O senhor fica alguns dias instalado aqui
m meu apartamento. Minhas férias acabam amanhã e devo voar
imediatamente, amanhã mesmo à tarde. O senhor ficará aqui.

Irei à sua casa com Leila, explicarei à sua esposa e à sua filha, e traremos
de lá tudo o que lhe fôr necessário para essa estada. Tenho certeza de que
nesse meio tempo as coisas se aclararão. Vou tentar comunicar-me com
Santos e assim, de uma maneira ou de outra, teremos mais tempo para
pensar e para achar uma solução adequada. Que lhe parece minha idéia?

Vaugirard reanimou-se.

— Não me interprete mal, professor, mas acho que o senhor, caso resolva
contar tudo, terá uma série de grandes aborrecimen-tos. Não se esqueça de
que esse assunto “disco-voador” não é ainda levado a sério como devia, e
que muitas das pessoas que declararam publicamente tê-lo visto cairam no
ridículo, ganhando fama de desequilibradas. Hoje em dia a busca do disco-
voador eqüivale à invenção do moto-contínuo, ou mais remotamente à
descoberta da fórmula do ouro pelos alquimistas, ou seja: qualquer coisa
inatingível e insana como esse mito medieval. O senhor deverá considerar
muito bem esse aspecto da questão. Se Santos é um imbecil que nada tem a
perder, e mesmo eu além do meu emprego nada tenho a perder, o mesmo
não acontece com o senhor. Seu nome é internacionalmente conhecido e
não será coisa agradável uma reação negativa em torno dessas
ocorrências, prejudicando o seu conceito.

— Quem está sendo cético é o senhor. Com base em meu nome e nesse meu
prestígio, que não posso deixar de admitir embora sem vangloria, tenho
certeza de que serei levado a sério. Afinal de contas, não sou nenhum
ignorante. Não se preocupe por mim, comandante. Seu nome e o de sua
companheira não serão citados, pois não vejo a essa altura outra solução
senão confirmar e esclarecer melhor as declarações daquele indivíduo, um
leigo na matéria.

Repito que só sinto uma coisa: duvido que apareçam novas mensa-gens e
outros contatos. Quanto à ameaça, é um risco que deverei correr. Enfim,
sua solução foi ótima. Aguardaremos uns dois dias para ver o que
acontece. Para mim é melhor ainda, pois poderei antes de uma tomada de
posição saber qual a atitude da imprensa 158

e qual a reação das declarações de Santos. Esperemos.

Em seguida, pegou o telefone e ligou para sua residência.

Leila desencostou-se novamente da janela e perguntou a Eduardo:

— Como é que você pretende entrar em comunicação com Santos?

— Não sei bem ainda. Hoje é sexta-feira e nesse vôo a primeira escala é
Dakar. Somente no vôo de sábado, que será provavelmente meu, é que
Recife é a primeira parada. Irei ao aeroporto e mandarei um rádio em
caráter reservado, pedindo a Santos, via Recife, que nada mais declare
sobre esses acontecimentos. Falarei com o chefe do tráfego e direi que a
mensagem é um pedido do professor.

Augusto-Michel já havia recolocado o fone no gancho.

— Já acertei tudo lá em casa. Disse que ia para a praia e pedi ao Cesário


que me preparasse a mala pequena com o essencial para alguns dias.
Informou-me que continua uma romaria de repórteres de todos os jornais
de São Paulo à minha procura. Muitos não acreditam em minha ausência e
tentam invadir a casa.

Os automóveis acumulam-se na porta, estando lá até mesmo uma rádio-


patrulha e um carro da televisão. Disse que o trânsito está difícil e quase
impedido em frente à minha residência. Foi ótima a idéia do comandante!

— O senhor ficará aqui inteiramente à vontade. Tenho ali um rádio de


cabeceira e naquela estante encontrará revistas e livros.

Não saia, de forma alguma.

Despediram-se. Eduardo e Leila desceram, apanharam o carro e


encaminharam-se para o aeroporto de Congonhas.

Ao chegar, Eduardo foi diretamente ao tráfego. Ficou logo sabendo da


partida de Santos, como havia sido prevista pela escala, três horas atrás,
no vôo número 412, com destino a Paris e primeira etapa em Dakar. Tinha
esperança ainda que a primeira etapa fosse Recife. Para Dakar a remessa
da mensagem seria mais difícil.

Todavia, tentaria.

Quando entrou na sala do tráfego e procurou saber de Santos, logo


percebeu os resultados da malfadada entrevista. Todos os funcionários da
companhia ridicularizavam a notícia, tachavam o homem de doido varrido,
exibicionista, cabotino, e procuravam 159

encontrar razão para tamanho sensacionalismo.


Um dos funcionários, amigo íntimo de Santos e um dos donos do
“Alcíone”, sabedor da viagem, perguntou a Eduardo se êle não tinha visto
o disco, pois também estava na expedição descrita.

O aviador respondeu com duas palavras e não teve outra saída se-não
admitir, como os outros, que o rádio-telegrafista devia ter tido alguma
alucinação.

O chefe do tráfego não estava e somente uma hora depois é que Eduardo
conseguiu falar com esse encarregado. Explicou-lhe que conhecia
ligeiramente o professor e que este lhe pedira que se empenhasse com
Santos para calar-se. Disse mais que o professor nada tinha a ver com os
fatos descritos na notícia e que atribuía tudo a um desequilíbrio mental do
operador.

— Pode tentar, comandante, mas a coisa não vai ser fácil. O

avião não escala em Recife e mensagem direta não será possível.

Terá que ser via Rio e Recife e creio que não chegará em tempo.

A esta hora, já levam umas cinco horas de vôo e o controle, como você
sabe, já passou por várias estações.

Eduardo não se deu por satisfeito e, obtendo a permissão desejada,


encaminhou-se para o centro das comunicações.

XIV — QUE SIGNIFICA “ANULAR”?

A noite já havia caído e o apartamento de Eduardo permanecia às escuras,


como se estivesse vazio.

Augusto-Michel Vaugirard, sentado em frente à janela, completamente


absorto em seus pensamentos, observava o intenso trá-

fego que se congestionava pela rua abaixo e pela praça adjacente. O

frio úmido e intenso da véspera diminuíra e a atmosfera começava a


limpar, dissipando-se as nuvens baixas que pela tarde pairavam sobre a
cidade.

Uma hora antes, o professor havia descido. Fora ao jornaleiro e comprara


a segunda edição do matutino que divulgara a entrevista de Santos.
Comprara, além disso, todos os jornais da tarde. Tudo estava sfe
desenrolando como havia previsto. Os jornais espalhafatosamente
comentavam a entrevista e já informavam o “estranho desaparecimento do
conhecido professor universitário que depois 160

dos fatos não fora localizado em sua residência”. Um dos periódicos, o


mais sensacionalista, verificando a ausência do professor, chegava mesmo
a sugerir que a polícia tomasse providências, pois as notícias divulgadas,
“estavam a exigir melhores esclarecimentos e, se confirmadas pelo
professor Vaugirard, providências concretas deviam ser tomadas, a bem da
segurança nacional”. Outro, mais honesto e cético, limitava-se a tecer
ligeiros comentários sobre a notícia estampada no outro diário, e
reproduzia considerações dos entendidos sobre o disco, manifestando não
só dúvidas sobre a veracidade das informações do rádio-telegrafista, como
também sugerindo que o mesmo fosse submetido a um exame psiquiátrico.

Quanto ao jornal responsável pelo furo, reproduzia mais uma vez na


íntegra todas as informações de Santos e anunciava uma reunião de peritos
para a audiência pública da gravação, onde a conversa com o tripulante do
disco fora captada. Esse mesmo jornal, como já alardeara na primeira
edição, organizaria uma expedição

“fortemente armada” para receber a nave do espaço, quando da aterragem


na ilha do rio Grande.

Augusto-Michel estava desconcertado com o curso dos acontecimentos.


Sem mais nem menos, via-se como centro de toda essa complicação,
caçado por um número incrível de repórteres que já chegavam de todos os
pontos do Brasil, dado como desaparecido ou raptado, e sem saber ainda
ao certo qual seria sua atitude. Tudo era bem mais grave do que pensava.
Que estariam a essa hora pensando seus amigos? Como seus colegas da
Universidade encara-riam os fatos? Já saberia sua família de todos esses
acontecimentos inacreditáveis? Fizera bem em esconder-se no
apartamento? E, principalmente, a indagação que o afligia: qual seria a
reação dos habitantes do mundo subterrâneo?

Depois de ler e reler os jornais, estava ali junto à janela há muito tempo,
alheio ao transcurso das horas. Parecia interessado no movimento lá em
baixo, mas em verdade nem mesmo notava o que se passava, esquecendo-se
da fome e do regresso do comandante. Quase tinha achado a solução, mas
hesitava ainda, pensando e analisando todos os ângulos do procedimento
escolhido.

Às sete e meia, Leila chegou. Vaugirard assustou-se com o toque da


campainha e abriu a porta sem acender as luzes, depois 161

de ter espiado pela fresta, como se temesse algum estranho. Após a entrada
da moça, acendeu os dois quebra-luzes.

— Estava dormindo, professor? Estava tudo às escuras...

— Não. Ali da janela observava o movimento lá de baixo. Já viu os


jornais?

— Li às pressas alguns e os trouxe para o senhor, juntamente com o lanche.

— Obrigado, não precisava incomodar-se. Quebrei minha promessa e fui


até lá em baixo comprar os jornais da tarde. Não posso deixar de admitir
que as coisas estão cada vez mais complicadas, Você viu que já me dão
como desaparecido, como seqüestra-do? Sabe Deus no que irá dar tudo
isso!...

A comissária colocou sobre a mesa da cozinha o pacote que trazia e


começou a preparar a refeição do professor.

— Não se preocupe. Venha comer alguma coisa que eu lhe trouxe e depois
esperaremos por Eduardo. Desde a hora em que saímos, não tive mais
notícias dele. Foi ao aeroporto e já deve estar chegando. Vamos ver se
conseguiu comunicar-se com Santos e quais as outras novidades.

— O senhor quer ovos fritos ou quentes, professor?


— De qualquer modo, não se preocupe. Não estou com ape-tite algum —
respondeu Augusto-Michel, ao mesmo tempo em que ligava o rádio de
cabeceira.

— Às sete e meia, várias estações transmitem noticiário. Vamos ver se há


alguma novidade.

Correu a faixa da onda devagar e deteve-se quando a voz pausada do


locutor esparramou pelo quarto uma série de informa-

ções políticas, de mistura com anúncios e resultados de futebol.

— Está aqui. Vamos esperar.

Minutos depois, vieram as notícias aguardadas. Inegavel-mente, o


acontecimento era a sensação do dia. O locutor anunciou o assunto,
reproduzindo em linhas gerais tudo o que os jornais diziam e informou que
a divulgação de tais notícias já causava inquietação nos altos círculos
militares e já produzia efeitos internacionais, alarmando grande parte da
população. Terminava por informar que o professor Augusto-Michel
Vaugirard — celebridade científica internacional — estava sendo
procurado pela reportagem.
162
E, por fim, mencionava uma notícia ainda sem confirmação: a polícia
estaria auxiliando a localização do sábio, em face de fundadas suspeitas de
rapto.

Vaugirard desligou, mal-humorado, o aparelho e dirigiu-se à comissária:

— Não sei se fiz bem em esconder-me. Essa ausência está causando mais
sensação ainda. Minha família já deve estar a par de tudo. De uma forma
ou de outra, cheguei a uma resolução. Não tenho outra alternativa: vou
esperar Eduardo e depois irei à reda-

ção do jornal. Contarei tudo, com todos os pormenores possíveis, e ficarei


assim pelo menos livre dessa perseguição ao que parece até policial.

Eduardo chegou no momento em que o professor acabava de tomar a


sumária refeição. Abriu a porta sem bater e logo contou o que estava
acontecendo e que veio trazer nova parcela a ser acres-cida ao já
fantástico desenvolvimento das ocorrências.

Vaugirard e Leila ouviram-no estáticos.

— A situação complica-se cada vez mais. Não consegui nenhuma


comunicação com Santos e, o que é pior ainda, há mais de quatro horas
que não se tem notícia alguma do avião da linha da Europa. Imaginem só
que as estações de controle perderam o contato com êle há várias horas e
nenhuma comunicação veio da aeronave. As coisas na torre estão sérias!
Há um corre-corre tremendo e esperam por notícias das estações do norte
minuto a minuto.

— Que poderia ter acontecido, comandante?

— Não sei, mas a falta de contato somente pode prenunciar coisa grave.
Como o senhor sabe, o aparelho em vôo está em contato permanente com
os pontos de controle. Não só transmite dados sobre sua posição e
condições do vôo, como também recebe informes meteorológicos sobre a
rota, altitude a ser mantida, e outras informações eventuais. O quadrimotor
saiu de São Paulo diretamente na rota de Dakar, sem escala alguma no
Brasil. Essa rota não é uma reta perfeita, como acontece quase em todos os
vôos.

Vai costeando o litoral até mais ou menos à altura de Pernambuco, e então


se desvia e entra na reta sobre o oceano, rumo à África.

Tal procedimento é o mais aconselhável devido às alternativas, aos campos


de pouso no continente em caso de uma emergência.
163
— Qual foi o último contato?

— Foi na altura do Espírito Santo. Depois um silêncio integral envolveu o


vôo número 412. O avião não expediu nenhuma mensagem e não respondeu
aos chamados. A última chamada relatou vôo normal, cobertura perfeita da
rota e condições atmosféricas excelentes. Depois o silêncio, um silêncio que
já excede a esta altura mais de cinco horas. Logo mais telefonarei ao
aeroporto para saber se há novidade. O tráfego já considerou a situação
como de emergência e, sem publicidade alguma e com toda a discrição
possível, estão sendo expedidos avisos de buscas e localização a todas as
estações de controle e ao barco-farol para cima de Fernando de Noronha,
se é que o avião atingiu esse ponto...

— É comum acontecer isso?

— Não, de maneira alguma. Pelo tempo decorrido, mesmo que tivesse


havido desarranjo nos rádios, o avião já devia estar em Dakar. Além disso,
se ambos os rádios estivessem defeituosos o comandante tinha obrigação
de descer na primeira alternativa, que seria Vitória ou Salvador ou mesmo
Recife. A última mensagem foi das costas do Espírito Santo. Depois o
silêncio... A coisa não está bem e não se pode deixar de admitir que alguma
coisa grave aconteceu.

Augusto-Michel ia se compenetrando da seriedade da situação, procurando


inteirar-se de outros pontos. — O avião estava lotado, comandante?

— Inteiramente lotado. Além da carga e da tripulação completa, levava


setenta passageiros, todos com destino a Paris e Lisboa.

Leila, visivelmente perturbada, pediu os nomes dos tripulantes e sugeriu a


Eduardo que telefonasse mais uma vez ao tráfego.

Mas durante mais de quinze minutos a linha estava sempre ocupada, até
que foi conseguida a comunicação.
Eduardo ficou um bom tempo escutando as informações, que lhe davam da
companhia. Depois, em atitude desanimadora, dirigiu-se a Leila e ao
professor:

— Não resta dúvida. A coisa é mesmo séria. Depois que o avião passou por
Vitória desapareceu completamente. De acordo com a última comunicação,
tudo ia muito bem e não havia dificuldade de espécie alguma. O
quadrimotor já foi dado como perdido e 164

todas as providências foram e estão sendo tomadas. Assim que o dia


clarear a força aérea e a companhia iniciarão a limpeza integral da rota,
auxiliadas pela Marinha, que já está a par dos fatos. A coisa é lamentável!

— Se tivesse havido algum incidente com os motores o avião não poderia


ter descido?

— Poderia, mas quando acontece alguma coisa com os motores, o que aliás
é freqüente e não obriga a descida imediata pois aquele tipo de avião vôa
até com dois motores, a primeira providência é comunicar-se com a
estação mais próxima. Depois, então, conforme a distância do campo
imediato, as condições do motor e do avião, é que se resolve se é preferível
descer de qualquer maneira, com todos os riscos, ou continuar até a
próxima alternativa.

Permanece no entanto o contato com as estações de rádio, que ficam a par


de todos os pormenores, sabendo de antemão qual a providência a ser
tomada. Só em casos absolutamente imprevistos, em que se exige ação
imediata, é que o rádio não é usado. Mas, mesmo assim, depois da
operação as informações são divulgadas.

A coisa é bem grave. Não veio nenhuma comunicação e o aparelho não foi
visto em nenhum ponto previsto no plano do vôo.

— E se tivesse descido no mar? Quais seriam as possibilidades? — Não


existe regra sobre a amerissagem. Tudo depende do estado do mar, das
condições de pouso. Assim como o avião pode flutuar por horas e horas
sem perigo para os seus ocupantes, pode também submergir em poucos
minutos. Tudo depende das condi-
ções do contato com a superfície e, sobretudo, das condições do mar. Em
águas calmas e espelhadas a descida tem noventa por cento de
probabilidades; ao passo que num mar agitado a situação se inverte.

O professor encaminhou-se de novo para a janela. Espiou para fora por


segundos e retornou à poltrona, ao lado da qual estavam os jornais. Olhou
demoradamente Eduardo e lembrou um novo ponto a ser adicionado ao
fato, ponto esse que lhe pareceu de suma importância.

— O senhor não acha muito estranho o desaparecimento do avião em que


viajava Santos? A coincidência não é aterradora?
165
— Já relacionei os dois fatos, mas não quero tirar qualquer dedução antes
de saber o que aconteceu. Com desastre ou sem desastre, logo saberemos o
paradeiro do quadrimotor. Um avião daqueles, novo, de grande autonomia
de vôo e grande segurança, não pode desaparecer sem mais nem menos.
Logo algum indício surgirá. Depois, então, pensaremos nessa coincidência.
Mas, professor, o senhor acha que teria havido alguma interferência do
disco?... — indagou Eduardo, em voz tensa e baixa, não resistindo ao fluxo
do seu próprio pensamento.

Augusto-Michel desde a primeira notícia do desaparecimento do avião já


estabelecera a relação entre os fatos. Santos, o delator, estava a bordo, e a
aeronave desaparecera em condições misteriosas. — Também não quero
chegar a nenhuma conclusão precipitada. Mas considero a coincidência de
fato aterradora! Não nos esqueçamos das ameaças de Alik. Consideremos
que Santos divul-gou o que deveria ser mantido em sigilo até ao momento
oportuno, e que o homenzinho falou em “anular”. Desgraçadamente,
parece que o avião sofreu algum desastre. Santos estava a bordo, logo...

— Logo — concluiu o aviador — logo, deve também a esta hora estar


destruído, ou melhor, usando a linguagem do tripulante do disco, deve ter
sido “anulado”.

Leila, ante tais fatos, não conseguia esconder o pavor que a possuía.

— E nós então? Que irá acontecer-nos? Também seremos destruídos! Que


faremos, Eduardo? Não tenho coragem de entrar mais num avião. E nós
que amanhã à noite vamos voar! Não suporto mais tudo isso! Tudo tem um
limite. Que faremos, diga, pelo amor de Deus?

— Calma, calma! Não sabemos ainda nem mesmo o que aconteceu com o
avião. Estávamos apenas exagerando o pessimismo dos nossos
prognósticos. Qualquer conclusão é precipitada antes que se saiba o que
realmente aconteceu durante o vôo número 412. — Que faremos agora? —
indagou o professor.
— Acho que o senhor deve continuar a pernoitar aqui. Levarei Leila para o
apartamento dela e depois irei outra vez ao aero-166

porto em busca de notícias. Depois, então, conversaremos sobre a atitude


final a ser tomada, principalmente pelo senhor, em face dos jornais e de sua
família.

— Não será melhor avisar a polícia e dizer que estou aqui?

— Acho que não. Durante a noite pouco eles poderão fazer e antes que
amanheça já estaremos com a nossa resolução firmada.

Eduardo e Leila despediram-se do professor e este foi mais uma vez postar-
se junto à janela.

Augusto-Michel Vaugirard já havia chegado a uma decisão.

Não tinha dúvidas de que o avião fora destruído pelo disco, destruído ou
“anulado” de qualquer maneira, e tinha certeza de que a destruição visava
o cumprimento das ameaças. Santos pagara a sua leviandade arrastando
consigo quase oitenta vidas inocentes.

Alguma coisa dizia a Vaugirard que nunca mais seria encontrado traço
algum do quadrimotor, cujo misterioso desaparecimento iria, como em
inúmeros casos semelhantes, figurar nos anais da histó-

ria da aviação como acontecimento inexplicável. Era preciso agir


rapidamente, pois temia agora também por sua vida. A decisão era
simples: arcaria com todas as conseqüências. Esperaria comunicação de
Eduardo e depois iria à redação do jornal que divulgara a história.
Contaria todos os acontecimentos, revelaria tudo o que sabia sobre os
discos e os seus tripulantes, entregaria os seus arquivos aos interessados,
enfim, nada mais seria mantido em segredo. Não revelaria, apenas, a
participação de Eduardo e Leila.

Quanto àquela caixa de transmissão, não lhe pertencia. Havia sido enviada
a Eduardo e com êle a deixaria. Essa era a única atitude a tomar. Depois,
depois, então aguardaria as conseqüências. Se preciso, solicitaria proteção
policial e somente tinha certeza de uma coisa: os fatos relatados por êle,
professor universitário, cientista de renome, teriam conseqüências bem
mais sérias do que relatados pelo obscuro rádio-telegrafista. Seu prestígio
estaria em jogo e talvez conseguisse ainda abrir os olhos da humanidade e
salvá-la do fim pavoroso que a ameaçava. Disso tinha certeza. Ninguém
ousaria duvidar de seu prestígio, de sua ética científica e de suas palavras.
Talvez pudesse ainda fazer alguma coisa antes que as sanções de Alik
desabassem sobre a sua pessoa. O essencial era cumprir o seu dever de
homem de ciência. Com a decisão tomada, 167

o professor passou a sentir algum alívio e nova sensação de bem-estar


invadiu-lhe o corpo. Ajeitou-se melhor na poltrona, cerrou as persianas e
procurou dormir por algumas horas.

Eduardo deixou Leila em seu apartamento e dirigiu-se à pressa ao


aeroporto. No fundo, já desvendava toda a tragédia do vôo 412 e dava o
quadrimotor como destruído. Não quis dizer nada ao professor, sobretudo
para não amedrontar a comissária, mas tinha certeza de que uma força
imponderável devia ter atuado sobre a aeronave e provocado o seu
desaparecimento. As ameaças tinham se concretizado. Como piloto, mais
do que ninguém sabia o que representava uma perda de contato por
algumas horas. Quando isso ocorria era um prenuncio de desastre.

Ao subir à sala do tráfego, viu que a confusão era grande. A imprensa já


estava a par do desaparecimento do avião e tinha assim um segundo
grande assunto para as edições matutinas. Eduardo fêz ligeiras indagações
a vários funcionários seus conhecidos e viu que a situação estava cada vez
mais complicada. A aeronave tinha sido dada como perdida e as buscas
oceânicas já haviam co-meçado por parte da Marinha, mas até agora sem
resultado algum.

Felizmente, ninguém tinha até o momento estabelecido relação entre a


presença de Santos na tripulação e a história do disco-voador.

Procurou contornar a multidão que ali estava, inclusive dezenas de


parentes de passageiros, e penetrou na sala do encarregado do tráfego.
Uma vez lá dentro, não teve coragem de aproximar-se da mesa ao redor da
qual estava grande parte da diretoria da empresa.
Encostou-se ao canto, ainda em tempo de escutar as últimas palavras do
encarregado aos diretores:

— Todas as providências foram tomadas. Até agora, quase uma hora da


manhã, nada de novo soubemos. Infelizmente, penso que a aeronave pode
ser dada como perdida, embora as buscas devam intensificar-se com o
clarear do dia. Consulto os senhores se devo fazer o clássico comunicado à
imprensa, pois lá fora eles já sabem de tudo.

Eduardo não quis ouvir mais nada. Considerava o caso encerrado. O que o
preocupava agora era o seu vôo no dia seguinte, bem como qual o fim que
tivera o rádio-telegrafista. Se antes de decolar soubesse pelo menos o que
acontecera à aeronave! Pelo 168

menos que tipo de acidente sofrerá! Onde caíra ou onde descera!

Resolveu ficar no aeroporto até ao amanhecer. Sua preocupação era tanta


que não tinha sono algum. Iria para a sala do plantão, tomaria um
comprimido e procuraria dormir um pouco.

Assim, pelo menos, se houvesse alguma novidade saberia imediatamente.


Ao contrário do professor que com a sua resolução firmada encontrara a
calma, o aviador estava agora possuído de intensa agitação. Pensava no
seu vôo. Iria dentro de vinte e quatro horas cobrir a mesma rota. Santos
havia delatado e tivera a recompensa.

Êle também integrara a expedição. E, de mais a mais, era o responsável


por tudo. Que lhe sucederia? Como surgiria a destruição no espaço?

Tomou um sedativo, deitou na cama desmontável, na sala de plantão, mas


não conseguiu pregar os olhos, esperando que as primeiras luzes da
madrugada produzissem reflexos na linha de aviões que lá fora repousavam
cobertos pelo sereno da noite, agora fria e úmida.

Nada mais restava senão uma longa espera.

*
O dia custou a surgir. Primeiro, uma leve claridade lá pelo fim da pista
número um, a qual foi pouco a pouco aumentando e delineando os
contornos indecisos de nuvens escuras acima da linha do horizonte. O frio
aumentara e uma névoa rasteira escondia os aviões espalhados pelo pátio
de manobras, junto aos hangares e em linha paralela à pista principal.

As estruturas emitiram os primeiros brilhos, com seus contornos duvidosos,


como se fossem monstros metálicos dissimula-dos na penumbra. Eduardo
acomodou-se melhor na cama de vento e dali de onde estava não podia
deixar de contar os aviões que via esparramados por todos os cantos. O
enorme quadrimotor era o que mais brilhava e, à medida que a luz ia
aumentando, já se podiam distinguir suas asas molhadas, escorrendo
orvalho pelos bordos de fuga, como se acordando de um grande sono. Os
BC-3, pequenos esguios, contrastavam com os Curtiss-Comando e os
Convairs, e os três ou quatro quadrimotores logo se destacavam 169

pelo porte alto e majestoso.

De fato, o aviador passara a noite sem dormir. O comprimido só lhe


produzira certa letargia, graças a qual conseguiu esquecer a fantástica
realidade que tinha a enfrentar. Mas logo que tomou consciência da
realidade, Eduardo recordou-se dos fatos e, erguen-do-se, foi ao cômodo ao
lado para uma ablução sumária. Quando chegou ao tráfego, somente
encontrou os operadores.

— Tiveram alguma notícia do vôo 412?

— Nada, comandante. Nenhuma notícia. As buscas continu-am, mas já


perdemos as esperanças de uma aterrissagem bem su-cedida. Penso que
até ao meio-dia teremos novidades. A força aérea já iniciou as buscas e três
aparelhos nossos, do Rio e de Recife, estão vasculhando a rota.

Eduardo encaminhou-se para o bar semi-deserto e de luzes ainda acesas e


resolveu ir para o apartamento. Nada mais poderia fazer ali e poderia
esperar em qualquer lugar. Logo mais, pela tarde, teria que decolar e devia
tomar antes algumas providências. Estava quase resignado. A sensação que
sentia não era bem de medo. Era como se estivesse no escuro, perseguido
por um inimigo invisível que o atingiria inapelavelmente. Não havia como
defender-se.

Até àquele momento não sabia que Leila, a comissária, estava escalada na
mesma tripulação. Se o soubesse, estaria ainda mais aturdido.

Esquentou o motor do carro e quando procurou a saída do aeroporto já os


primeiros aviões da madrugada começavam a movimentar-se. Roncos
surdos e cavernosos vinham da cabeceira da pista, como que vaticinando
ao aviador tenebrosos acontecimentos. Fêz o trajeto automaticamente. Ao
chegar, abriu a porta do quarto sem fazer barulho.

Antes de despertar Vaugirard pretendia tomar um banho e barbear-se. A


janela filtrava já uma luz forte e não conseguiu ver o professor em parte
alguma do apartamento. Estranhou o fato e chamou em voz alta. Nada.
Abriu a porta do banheiro e, como resposta, encontrou um bilhete colado
no espelho sobre a pia.

Leu:
170
“Caro amigo. Não se preocupe por mim. Já tomei minha decisão. Seu nome
e o da sua companheira não serão jamais mencionados. Irei a todas as
redações de jornais agora à noite e contarei tudo, sim, tudo o que nos
aconteceu. Não tenho dúvida de que serei bem recebido e que, graças ao
meu nome e ao meu prestígio científico, não serei tido como louco. Não
encontrei outra solução. Arcarei com as conseqüências de meu ato e, haja o
que houver, sentir-me-ei bem recompensado por ter revelado à humanidade
o mistério dos discos--

voadores. A caixa, o visor-transmissor, deixo ern seu poder.

Ela lhe pertence e só o senhor poderá dar-lhe destino. Deixo, também, a


relação das outras comunicações, que ficarão ao seu critério. Repito: não
revelarei seu nome em hipótese alguma. Em troca só lhe peço um favor:
nada também revelar a meu respeito e nada divulgar sobre sua
participação na aventura. Declaro solenemente que assumo inteira
responsabilidade de meu ato, o que deve deixá-lo tranqüilo”.

Por essa Eduardo não esperava! Eram mais de seis horas da manhã e não
tinha dúvida de que todos os jornais daquele incrível sábado publicariam
sensacional relatório do professor. Estava tão aturdido que nem podia
raciocinar. Sentou-se e mais uma vez ficou inerte, aguardando o decorrer
das horas.

Nesse segundo repouso, viu-se surpreendido por um sono profundo.

Às nove horas, tornou à realidade com o tilintar insistente do telefone.


Meio sonolento, ainda, compreendeu que era Leila.

— Alô, Eduardo? Eduardo? Viu os jornais? Que aconteceu com o


professor?

— Já sei de tudo, Leila. Acalme-se. Não vi os jornais, mas sei exatamente o


que aconteceu. Vaugirard saiu daqui logo depois que fomos embora, deve
ter sido lá pela uma hora, e foi a todas as redações. Deixou um bilhete
explicando a razão desse procedimento, dizendo que enfrentaria todas as
conseqüências de seu ato. Os jornais dão alguma novidade do avião?

— Nada. Sabem apenas que está perdido e que são mínimas as esperanças
de ser encontrado. O pior de tudo é o que estão di-171

zendo a respeito do professor...

— Que é que estão dizendo?

— Você nem calcula! Você tinha razão quando disse a êle que suas
declarações poderiam não ser levadas em consideração. O

coitado, se já viu os jornais, deve estar arrasado! Nenhum dos três jornais
que comprei levou a coisa a sério. Um deles fala mesmo que

“continua a epidemia de loucura em torno dos discos-voadores”,


acrescentando que a mania atacou agora, lamentavelmente, um professor
íntegro, conceituado e honesto. Imagine que outro, como fizera com Santos,
aconselha um exame mental na pessoa de Vaugirard e sugere que a
Universidade providencie sua interdição. Outro jornal, então, o mesmo que
deu a notícia de Santos, passou a levar tudo no ridículo, chamando o
professor de “gênio alucinado”.

Um deles chama-o de “professor de história em quadrinhos”.

Eduardo mal podia crer no que escutava. Despediu-se de Leila, marcou um


encontro para o almoço e dirigiu-se ao chuveiro para um banho
reconfortador.

Sim. Não se enganara. O professor evidentemente tinha ca-

ído em desgraça. Para êle, para um homem do seu temperamento e com a


sua honestidade, a reação do público era uma sentença condenatória final.
Bem que advertira Augusto-Michel. O nome, a capacidade, o prestígio
científico, o cargo que ocupava não eram elementos suficientes para
convencer a opinião pública e dar um mínimo de credibilidade à fantástica
aventura. Se, pelo menos, restasse o filme! — lamentou Eduardo. —
Augusto-Michel Vaugirard fora crédulo demais. Saindo de dentro de sua
honestidade, superestimara a honestidade alheia e ali estava agora, livre de
seu segredo e em paz com a sua consciência, mas caído em desgra-

ça, acossado por uma legenda de ridículo. Sua história aniquilaria todo o
seu passado e destruiria sua vida. Eduardo deteve-se neste pensamento.
Sim, destruiria sua vida. Depois de tais entrevistas, quem mais poderia
levar a sério o eminente professor da Universidade? Lembrou-se num
relâmpago das palavras de Alik, em pé, com aquele perfil esguio e
luminoso, junto à porta de entrada do disco. O professor tinha sido em
verdade arrasado, destruído.

Não seria essa, porventura, uma forma positiva e moral de anulação?


172
Lendo os jornais no café inteirou-se do que lhe havia afirma-do Leila.
Ninguém levara o homem a sério. Lá estavam as notícias lançando o
professor num purgatório de irrisão e chacota.

“Professor alucinado declara que viajou no Disco-Voador. Aumenta a


epidemia dos contagiados. Quem será o outro a aparecer? O professor da
Universidade deve ter sofrido uma alucinação. Recado ao governador:
providencie-se imediatamente um exame mental nos professores da
Universidade”.

Não havia dúvida. A ameaça de Alik caíra sobre a segunda vítima. Nada
mais seria preciso. A desforra fora inteira e perfeita.

Crime bem planejado, sem traço algum da respectiva autoria. O

honesto e ilustre professor Augusto-Michel Vaugirard fora aniquilado,


destruído como homem e como ser pensante. Em duas palavras — caíra no
ostracismo — fora “anulado”.

E agora, que mais aconteceria?

Dois dos personagens da fantástica aventura já se encontravam fora do


cenário, como castigo pela traição. Que aconteceria agora aos dois
restantes?

A essa altura final dos acontecimentos, o comandante Eduardo Germano


de Resende já chegara, também, à sua resolução definitiva e, portanto, não
mais queria pensar no assunto. Enquanto andava em direção ao carro, com
a maleta de mão já preparada para o vôo, não mais pensava em discos e
nem no destino do avião da linha internacional, mas somente acariciava no
bolso o visor-transmissor dentro de seu invólucro de veludo vermelho.

No decorrer do dia, nenhuma novidade se soube a respeito do quadrimotor.


As buscas tinham sido infrutíferas e era já oficialmente reconhecido que o
aparelho número 1.853, das Linhas Aé-
reas Reunidas, desaparecera sobre o oceano, com perda de muitas vidas. A
companhia distribuíra o comunicado oficial e as buscas visavam agora os
destroços da aeronave.

Cada vez mais consciente da sua resolução, Eduardo contou a Leila o que
pretendia fazer. Era o que lhe restava, rompendo-se inevitavelmente todos
os traços de ligação com a aventura.

O vôo dessa tarde vinha mesmo a calhar e poria um fecho nos 173

malfadados acontecimentos.

Era a única solução possível. Sozinho, nada mais poderia fazer. De que
valeria sua palavra contra o resto da humanidade?

Os homens que esclarecessem por si mesmos o grande mistério ou, então,


que pagassem com o final pavoroso o penhor de seus reiterados desatinos e
crueldades. Êle nada poderia fazer. A humanidade haveria de descobrir, um
dia, por si mesma, o grande mistério e, se antes não se autodestruísse,
talvez desse crédito ao ultimato dos discos-voadores e retornasse ao
caminho do bem.

Quanto a êle, Eduardo, estava resolvido: quando voassem em pleno


oceano, romperia o derradeiro laço que o ligava aos habitantes das cidades
subterrâneas.

Depois da última escala, estavam já na quarta hora do vôo, nas alturas do


ponto de retorno. A tripulação inteira dormia, a exceção do navegador e do
segundo-oficial. Tudo decorria dentro da mais absoluta normalidade. As
agulhas equilibravam-se em seus pontos exatos, os quatro motores rugiam
harmônicamente, e pelos trezentos e sessenta graus ao redor da aeronave, a
dois mil metros de altitude, uma redoma azul profunda, recamada de astros,
pre-nunciava tempo magnífico.

Eduardo ligou o piloto automático e comprimiu o botão, chamando a


comissária. Leila não se fêz esperar. Estava a par de tudo.
Passou devagar ao lado dos companheiros adormecidos e foi ter à cabina,
na ponte de comando, onde só Eduardo se encontrava.

Quando entrou, Eduardo não pronunciou uma só palavra. Esprei-tou o


navegador e executou rapidamente o plano: tirou o visor-transmissor do
bolso, desembrulhou-o do veludo vermelho e abriu parte da escotilha
lateral, por onde se viam lá um pouco para trás os dois motores estrugindo,
com os escapamentos em brasa. Olhou um segundo para Leila e, com um
impulso forte e resoluto, atirou no espaço a, caixa metálica.

O último laço havia sido rompido. A aventura pertencia agora ao passado


e o mistério retornara sobre a última prova material do fantástico episódio.

O comandante apertou bem o braço de Leila e rumou para fora da cabina,


deixando que o quadrimotor mergulhasse cada vez mais na escuridão
hiante da noite.
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