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Pereira 2019

O livro explora a democracia, governança e finanças das autarquias locais, focando na transparência, participação cidadã e evolução das competências municipais em Portugal. Aborda a relação entre financiamento municipal e endividamento, além de discutir políticas públicas locais em áreas como educação e ação social. A obra também compara modelos de financiamento local em contextos europeus e angolanos, enfatizando a importância da transparência orçamental e dos orçamentos participativos.

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Pereira 2019

O livro explora a democracia, governança e finanças das autarquias locais, focando na transparência, participação cidadã e evolução das competências municipais em Portugal. Aborda a relação entre financiamento municipal e endividamento, além de discutir políticas públicas locais em áreas como educação e ação social. A obra também compara modelos de financiamento local em contextos europeus e angolanos, enfatizando a importância da transparência orçamental e dos orçamentos participativos.

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Autarquias Locais:

Democracia, Governação
e Finanças

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Autarquias locais, democracia governacao e financas.indd 2 15/06/16 22:10
Autarquias Locais:
Democracia, Governação
e Finanças

Coordenação
Paulo Trigo Pereira
Rui Dias
Miguel Almeida

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCR ACIA,
GOVERNAÇÃO E FINANÇAS
coordenação
Paulo Trigo Pereira, Rui Dias, Miguel Almeida
editor
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A.
Rua Fernandes Tomás, n.os 76-80
3000-167 Coimbra
Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901
www.almedina.net · [email protected]
design de capa
FBA.
pré-impressão
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A.
impressão e acabamento

Junho, 2016
depósito legal

As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem neces-


sariamente as posições do Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia
da Serra (IPP), da Universidade de Lisboa, ou qualquer outra instituição a que
os autores ou o IPP estejam associados. Nem o IPP nem qualquer seu repre-
sentante é responsável pelo uso por terceiros da informação aqui contida.
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo,
sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento
judicial contra o infrator.

____________________________________________________
biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação
AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO
E FINANÇAS
Coord. Paulo Trigo Pereira, Rui Dias, Miguel Almeida. – (ARETÉ)
ISBN 978-972-40-6583-0
I – PEREIRA, Paulo Trigo, 1959-
II – DIAS, Rui
III – ALMEIDA, Miguel
CDU 352

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Introdução
Paulo Trigo Pereira, Rui Dias e Miguel Almeida

Este livro aborda a realidade da democracia e da formulação de políti-


cas ao nível local, com enfoque nos temas da transparência, participação
cidadã e finanças das autarquias, bem como das suas funções sociais e
económicas.
Assim, apresenta-se e caracteriza-se a evolução das competências
municipais, bem como das finanças locais, em particular na última década,
do ponto de vista teórico, empírico, bem como em termos legislativos. Isto
só por si, já constituiria uma importante mais-valia no sentido de entender
e compreender a realidade das autarquias locais. No entanto, pretende-
-se ir mais longe e problematizar a forma como estão a ser desenvolvi-
das algumas competências municipais; questionar o modelo de financia-
mento que tem vindo a ser seguido nomeadamente a sua dependência
de receitas do património; analisar a fragmentação institucional, sobre-
tudo nos municípios urbanos, e as implicações sobre os mecanismos de
controlo dos dinheiros públicos. Trata-se ainda de compreender melhor
os incentivos que têm os trabalhadores em funções públicas e final-
mente abordar a questão da transparência municipal e da participação
dos cidadãos em mecanismos de orçamento participativo. Embora a obra
incida preferencialmente sobre o caso português, não queremos deixar
de abordar, ainda que brevemente, a realidade das finanças locais e da
participação cidadã noutros países do espaço lusófono (Angola e Brasil).

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Através de uma visão plural da realidade autárquica, almeja-se que


tanto os eleitos locais, agentes privilegiados da dinâmica democrática,
como os técnicos administrativos municipais, que asseguram o funciona-
mento dos serviços da administração local, bem como outros stakeholders
(cidadãos, empresas, entidades de controlo externo, etc.), compreendam
melhor a realidade onde se inserem.
Tendo em consideração os objetivos acima enunciados, a primeira
parte do livro é dedicada ao enquadramento teórico da atividade finan-
ceira, à evolução do panorama autárquico em Portugal nos últimos 20
anos e ao quadro de incentivos e motivação dos trabalhadores em funções
públicas. Assim, no capítulo 1, Paulo Trigo Pereira aborda, numa perspe-
tiva essencialmente teórica a teoria da descentralização financeira que
pretende responder à questão de saber o que deve ser desempenhado
pela administração central e local; a natureza dos bens e serviços locais;
as diferentes formas de financiamento e as várias modalidades de pro-
dução e prestação. No capítulo 2, Rui Dias e Catarina Segorbe dão uma
visão da evolução do panorama autárquico nas últimas décadas em várias
vertentes: legislativa, institucional, ao nível das receitas e das despesas.
Finalmente, no capítulo 3. Helena Gomes aborda uma temática central
na qualidade dos serviços na administração local e central: a motivação e
os incentivos dos trabalhadores em funções públicas. Numa época de res-
trições financeiras, como a que ainda vivemos, tenta responder à questão:
de que forma podem os trabalhadores em funções públicas ser incentiva-
dos para atingirem o melhor desempenho possível, de forma a assegurar
um bom funcionamento dos serviços públicos?
A segunda parte aborda os temas da governação local e endividamento
municipal. A crescente sobreorçamentação da receita e a desorçamen-
tação operada por alguns municípios (sobretudo urbanos), nas últimas
duas décadas, levou a uma menor transparência e accountability local. Nal-
guns casos, praticou-se uma engenharia financeira que, cedo ou tarde,
se manifestou em endividamento excessivo e à necessidade de recupe-
ração financeira. Daí a importância da análise de Luís Teiga, no capítulo
4, sobre as questões da governação e controlo na presença de desorça-
mentação através da criação de “agências” para a prestação de serviços
públicos locais. Ensaia-se aqui uma resposta às seguintes questões: as
agências criadas podem servir de veículos de financiamento municipal instru-
mentalizados no sentido de contornar os limites de endividamento dos

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INTRODUÇÃO

municípios? Podem potenciar o endividamento oculto e a transferência


de dívidas e compromissos? Será que as instâncias de controlo são efica-
zes no controlo financeiro que exercem sobre os municípios e as respeti-
vas agências? Da resposta a estas questões pode resultar a necessidade de
alterações de natureza institucional ao nível do controlo político, juris-
dicional e administrativo. Uma coisa, porém, é certa, uma gestão menos
responsável, que não seja corrigida pela accountabilidaty democrática,
nem pelas instituições de controlo externo, nem pela sociedade civil ao
nível local leva a um endividamento excessivo, que é uma manifestação
de um fracasso da democracia local. Neste sentido, Miguel Almeida, no
capítulo 5, analisa a problemática do endividamento municipal, procu-
rando ilustrar os principais conceitos relacionados com diferentes aspe-
tos da dívida subnacional, mostrando a evolução das regras e dos limites
de endividamento na legislação portuguesa e a criação de mecanismos de
recuperação financeira, em particular o Fundo de Apoio Municipal.
Numa terceira parte deste livro abordam-se algumas políticas públi-
cas locais propriamente ditas. As funções atribuídas aos municípios por-
tugueses são especialmente importantes e visíveis junto das populações
nas áreas social, económica e ambiental. Das que poderiam ser selecio-
nadas, merecem natural destaque e são abordadas neste livro três. Em
primeiro lugar a educação designadamente em face da descentralização
de competências operada nos últimos anos. No capítulo 6, Carina Pinto
coloca questões importantes: quais as atribuições e competências a descentra-
lizar, como devem estas ser distribuídas na hierarquia administrativa, quais os
contextos mais favoráveis a políticas de descentralização e quais os contextos onde
a implementação de políticas de descentralização é contraproducente? Faz uma
breve excursão histórica sobre a descentralização da educação, clarifica a
dimensão e complexidade do sistema educativo, bem como a existência
de inevitáveis problemas de monitorização. Isto num contexto de assi-
metria de informação entre administração central de um lado e municí-
pios e agrupamentos de escola do outro. Conclui que a resposta àquelas
questões não é linear nem consensual, e é exatamente por essa razão que
importa debatê-las. No capítulo 7, Dora Leitão Pereira aborda as políticas
públicas locais de ação social, com enfoque na articulação dos municí-
pios com o terceiro sector e o privado, em particular no que se refere aos
cuidados de longa duração aos idosos. Num contexto em que a tendência
demográfica nas próximas décadas é a continuação do processo de enve-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

lhecimento da população, a autora reclama para as autarquias locais uma


maior intervenção nas políticas públicas nesse domínio. Esta passará, de
acordo com a autora, não tanto pela gestão direta de equipamentos, mas
sim pela construção de algumas infraestruturas de cariz local e pela cria-
ção de um quadro de incentivos no sentido do mercado, ou do terceiro
sector, colmatarem as carências do lado da oferta de equipamentos para
os mais idosos. Finalmente, no capítulo 8, Isabel Andrade analisa as polí-
ticas relativas ao sector das águas e resíduos. Sem esquecer o enquadra-
mento genérico do quadro teórico do federalismo orçamental, a autora
analisa questões específicas quanto à organização deste tipo de serviços,
nos quais tradicionalmente é relevante a importância dos municípios.
É de particular interesse a explanação da recente evolução operada no
setor, em articulação com os princípios teóricos previamente explanados
pela autora, nomeadamente no que se refere ao desenho das estruturas
tarifárias.
A quarta parte desenvolve uma perspetiva comparada de modelos de
financiamento, no contexto europeu e em Angola. Tem especial interesse
na medida em que a forma e o funcionamento das instituições, aqui enten-
didas no seu sentido mais lato, decorrem em larga medida da cultura,
com elementos de proximidade nas geografias em causa, mas também
com idiossincrasias e modelos próprios que importa conhecer e discutir.
No capítulo 9, Rui Dias aborda, numa perspetiva europeia comparada, os
diversos modelos de financiamento local, propondo uma tipologia tendo
por base uma análise exploratória de dados relativos às finanças locais.
Confirmando Portugal como um país que se enquadra no quadrante dos
países mais centralizados ao nível europeu, e em que o peso dos impostos
sobre o património é dos mais relevantes, são discutidos este e outros
modelos. Daqui se retiram algumas pistas para uma possível evolução
do sistema de financiamento local, no que diz respeito às receitas fiscais
dos municípios. De seguida, no capítulo 10, Carlos Pacatolo aborda a
dinâmica das finanças locais em Angola. O autor enumera diversas difi-
culdades na provisão de bens e serviços de âmbito local, apontando as
limitações do modelo de gestão e administração municipal atualmente
existente. Para este efeito, o autor aborda a estrutura e funcionamento da
administração local angolana, com particular ênfase no que se refere às
relações financeiras com o Estado central, propondo melhorias concretas
no sentido de estas se encontrarem dotadas com os recursos adequados

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INTRODUÇÃO

e, bem assim, com os incentivos necessários para uma maior eficiência e


justiça do sistema de financiamento local naquele país.
Sem transparência orçamental e participação cidadã, torna-se difícil
a avaliação efetiva das políticas públicas locais. Assim, a quinta e última
parte do livro versa sobre a análise da transparência municipal e a apli-
cação dos orçamentos participativos no Brasil e em Portugal. No capítulo
11, Marta Nunes da Costa aborda o orçamento participativo, suas poten-
cialidades e seus escolhos. A autora, partindo da descrição de duas expe-
riências no terreno de orçamentos participativos a nível local, nos dois
lados do Atlântico, discute o impacto deste mecanismo potenciador da
democracia local e aprecia os argumentos a favor e contra o mesmo. Sem
deixar de se mostrar na globalidade favorável ao processo do orçamento
participativo local é, contudo, rejeitada uma visão monolítica, apresen-
tando ainda o capítulo sugestões de melhoria com relevância para quem,
a nível local, decida enveredar por este caminho. Por fim, no capítulo 12,
Sofia Batalha aborda a importante questão da transparência a qual não
se subsume apenas à apresentação e prestação de contas (formal) pelos
municípios. Partindo exatamente da questão conceptual relativa à trans-
parência, da qual é condição necessária, embora não suficiente, a dispo-
nibilidade de informação tempestiva e fiável aos stakeholders relevantes
(em especial aos munícipes), a autora apresenta os principais desenvol-
vimentos ao nível internacional e nacional, nomeadamente de diversos
índices construídos para aferir o grau de transparência. Aborda ainda os
determinantes da transparência ao nível local a partir de dados obtidos
através de um inquérito aplicado aos municípios portugueses dando rele-
vância à dimensão orçamental da transparência municipal.

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AGRADECIMENTOS

Vários capítulos deste livro (2, 3, 4, 7, 9, 10, 12) têm por base dissertações
apresentadas no Mestrado de Economia e Políticas Públicas do ISEG
(Universidade de Lisboa), sob a orientação de Paulo Trigo Pereira. Nes-
ses trabalhos de investigação os autores agradecem todos os contributos
que receberam ao longo do seu trabalho de investigação. Numa socie-
dade em que muitas instituições estão fechadas ao mundo académico,
é de salientar todas aquelas que colaboraram quer na facilitação de dis-
ponibilização de dados quer na resposta direta ou na possibilidade de
realização de inquéritos a terceiros. Assim, gostaríamos de não deixar de
mencionar as seguintes instituições e os respetivos dirigentes: Direção-
-Geral das Autarquias Locais, Associação Nacional de Municípios Portu-
gueses, Autoridade para as Condições do Trabalho e Autoridade Nacio-
nal de Segurança Rodoviária.
Deixamos também um agradecimento especial ao conjunto substan-
cial de municípios que responderam ao inquérito iniciado em setem-
bro de 2015 a propósito do capítulo 12, e cujos serviços dispensaram
tempo e recursos essenciais para a análise que aqui fazemos. Nomeada-
mente: Águeda, Alenquer, Alpiarça, Alter do Chão, Amarante, Angra do
Heroísmo, Arganil, Arouca, Baião, Batalha, Beja, Braga, Bragança, Cal-
das da Rainha, Campo Maior, Cantanhede, Carrazeda de Ansiães, Car-
regal Do Sal, Cascais, Castelo Branco, Chaves, Elvas, Esposende, Ferreira
do Zêzere, Figueira Da Foz, Fundão, Guarda, Guimarães, Ílhavo, Lagoa
(Açores), Lagoa (Algarve), Lamego, Loulé, Loures, Lousã, Marco de
Canaveses, Mealhada, Monforte, Montijo, Mourão, Nordeste, Odivelas,
Oliveira do Bairro, Oliveira do Hospital, Ovar, Paços de Ferreira, Porta-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

legre, Porto, Ribeira Grande, Salvaterra de Magos, São Brás de Alportel,


Sines, Tarouca, Terras De Bouro, Tomar, Torres Novas e Vouzela.
Finalmente, importa referir a preciosa ajuda, o empenho e a paciência
do Henrique Lopes Valença e do Luís Teles Morais, investigadores do Ins-
titute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra, ao longo da viagem.
Não será de esquecer também todos aqueles que, de uma forma ou de
outra, contribuíram com sugestões e comentários. Por fim, há ainda que
relevar o acolhimento deste projeto por parte da Almedina, nas pessoas
da Dra. Paula Valente e do Dr. João Pedro.

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PARTE I

Competências Municipais e Finanças Locais

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1
Autarquias locais: organização, funções, custos
e tarifação de bens e serviços
Paulo Trigo Pereira

Introdução

Se pensarmos a evolução da realidade institucional das entidades que


fornecem bens e serviços de interesse público ao nível local, nos últimos
vinte anos, vemos que não é estática, antes, tem havido alterações signifi-
cativas. Considere-se a área da educação, do ensino básico e do secundá-
rio. Há vinte anos tínhamos escolas, hoje, temos escolas e agrupamentos
de escolas, estes com algumas competências que antes pertenciam ao
Ministério da Educação. Hoje, as autarquias têm que elaborar uma carta
educativa e têm mais competências ao nível da contratação de pessoal
não docente, sobretudo nos primeiros ciclos do básico. Do ponto de vista
das relações financeiras entre níveis de governo há, desde a Lei de Finan-
ças Locais de 2007, revista em 2013, transferências intergovernamentais
que são consignadas à educação, a par das transferências gerais.
Pense-se agora nos serviços de abastecimento de água, no saneamento
de águas residuais e no tratamento de resíduos sólidos. Na altura, uma
parte destes serviços, em muitos municípios, era prestada diretamente.
Em 2015 a empresarialização destes serviços é significativa1 embora per-

1
Como se verá em maior detalhe no Capítulo 8, as entidades gestoras de natureza empre-
sarial representam apenas cerca de um quarto das entidades gestoras. Porém, como se con-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

maneçam vários modelos distintos de fornecimento dos serviços “em


baixa”, isto é, diretamente aos munícipes: a gestão direta municipal, os
serviços municipalizados (água e saneamento), as empresas munici-
pais, as empresas intermunicipais e a concessão do serviço a entidades
privadas.
Na área cultural, quase todas as atividades eram feitas pelo município.
Em 1995, ainda não tinha sido aprovada a lei que permitiria a criação de
empresas municipais com maior facilidade, e que levou a um aumento
significativo destas empresas, sobretudo em meios urbanos, uma tendên-
cia que se acentuou a partir de 1998, como se verá neste livro. Este pro-
cesso de desorçamentação só se reverteu parcialmente com a presença da
troika em Portugal (2011-2014).
Na área social, em particular no apoio aos idosos, quer em termos de
lares quer em termos de animação e ocupação dos seus tempos de lazer,
o papel das autarquias tem sido tradicionalmente diminuto, sendo aqui
relevante a ação das misericórdias e outras instituições particulares de
solidariedade social (IPSS). O papel dos municípios, mas sobretudo da
administração central, tem sido o de apoiar financeiramente estas insti-
tuições na base dos serviços efetivamente fornecidos (dormidas de ido-
sos, refeições prestadas, etc.), mas também aqui tem havido uma evolu-
ção na ação municipal.
Não foi só ao nível organizacional que se verificaram alterações signi-
ficativas na prestação de serviços locais significativas nas últimas décadas.
Também existiram ao nível da autonomia financeira dos municípios e das
relações financeiras intergovernamentais.
Finalmente, a relação que se estabelece entre a atividade municipal e
os munícipes sofreu algumas alterações quer no sentido de maior trans-
parência, que hoje é simultaneamente disponibilizada e exigida aos elei-
tos e administradores locais, quer na capacidade de, em vários municí-
pios, os munícipes poderem participar no Orçamento local através dos
orçamentos participativos.
Se as últimas duas décadas foram de alterações institucionais impor-
tantes, que certamente tiveram implicações significativas na quantidade

centram em municípios urbanos, de elevada população, a proporção de clientes finais por


elas abastecido é significativamente superior.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

e qualidade dos serviços fornecidos às populações, certamente que as


próximas décadas trarão também alterações significativas.
Para perspetivar esse futuro, autarcas, administradores locais, téc-
nicos administrativos locais, reguladores, entidades de controlo finan-
ceiro (Tribunal de Contas, Inspeção Geral de Finanças, Inspeção-Geral
da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território),
governantes, legisladores, devem compreender a realidade presente, a
sua dinâmica, as alterações verificadas, os bloqueios existentes. Compa-
rações internacionais com modelos de outros países são também relevan-
tes. O objetivo deste livro é contribuir para uma melhor compreensão
desta atividade complexa que é exercida ao nível das autarquias, da diver-
sidade de modelos de funcionamento e de financiamento que existem,
dos graus de autonomia na implementação das políticas públicas locais,
dentro do atual quadro organizacional e institucional, mas também das
perspetivas de reforma que se colocam para o futuro.
A figura 1.1 ilustra, de forma estilizada, o quadro institucional em
que se move a atividade municipal local, quer do ponto de vista “verti-
cal” quer “horizontal”. A relação vertical está expressa na relação entre
cada município e o governo da república (no caso dos das regiões autó-
nomas também com o respetivo governo regional), ou seja com os diver-
sos departamentos governamentais (educação, saúde, etc.). Aquilo que,
neste contexto, deverá ser analisado criticamente é aquilo que é e aquilo
que deve ser centralizado, descentralizado e desconcentrado. Neste último
caso, se deve existir maior ou menor autonomia.
A relação “horizontal” estabelece-se entre os órgãos do município e
outras entidades locais que atuam na esfera local, sejam do sector público
(serviços autónomos, ou empresas municipais ou intermunicipais), do
sector privado ou do terceiro sector. Também aqui se coloca a questão
de saber o que deve ser produzido no sector público administrativo, no
sector público empresarial, no sector privado ou no “terceiro sector”.
Na secção 1.1 deste capítulo, após uma breve descrição da realidade
atual e revisão conceptual, analisaremos a questão da descentralização
(ou centralização), da desconcentração (ou concentração) e da maior
ou menor autonomia de entidades desconcentradas. Na secção 1.2 faz-
-se uma incursão à problemática da oferta e da procura de bens públicos
locais, à sua natureza enquanto serviços, bem como aos seus custos. De
seguida, em 1.3, abordaremos o problema do financiamento dos bens e

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

serviços locais (impostos versus taxas, tarifas e preços) e analisaremos a


sua implicação em termos de eficiência e equidade. Na secção 1.4. ana-
lisa-se a problemática “horizontal” da delimitação de sectores, isto é, a
orçamentação com ou sem autonomia, a desorçamentação, a empresaria-
lização pública ou privada e o papel do “terceiro sector”.

Figura 1.1. Quadro institucional da atividade municipal local

Fonte: P. Pereira et al. (2016).


Notas: O Classificador da primeira coluna é o utilizado nas contas nacionais (SEC2010).
* As empresas só pertencem às administrações públicas quando forem não mercantis (SEC 2010)

1.1. Autarquias locais num governo a vários níveis

Vivemos uma economia mista onde, a par de mercados privados, existe


uma importante intervenção do sector público A questão que nos ocu-
pará nesta secção é a de saber a que nível de governo deverão ser desem-
penhadas as principais funções do sector público.2 Esta questão é dife-
rente de outra, que é a de saber hoje, a que nível de governo – central,
regional ou local – são desempenhadas essas funções.

2
O leitor que queira aprofundar esta temática do ponto de vista teórico, poderá consultar
Pereira et al. (2016) cap. 10 e ainda Cabral, N. C. (2015).

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

1.1.1. Enquadramento constitucional e as funções do Estado


e das autarquias locais

A realidade atual num qualquer país depende das vicissitudes da sua


evolução histórica. A maior descentralização ou centralização depende
assim de processos históricos específicos. As instituições da governação
atualmente existentes são dependentes do passado (path dependent) e
existe um forte cunho impresso pela Constituição da República no dese-
nho institucional inicial que se tende a manter no futuro. Isto tanto é
válido para Portugal, como para Angola, Moçambique ou Cabo Verde.
É menos válido para países (como os EUA) em que a Constituição é
muito mais pequena e que tem menos detalhes de natureza institucional
do que a nossa, o que introduz mais flexibilidade na forma de governo.
A principal tradição portuguesa nos últimos dois séculos, em ter-
mos de organização do Estado, relaciona-se com o municipalismo. Tipi-
camente no território continental, Portugal não tem tido organismos
supramunicipais com poder político autónomo. Embora as chamadas
“regiões administrativas” tenham sido previstas na Constituição, elas
nunca foram efetivamente criadas. A Constituição da República de 1976
(CRP76), refere as autarquias locais implicitamente considerando-as
como entidades plurifuncionais, isto é, podendo fornecer uma plurali-
dade de bens e serviços públicos. Não está excluída a possibilidade de
existirem autarquias unifuncionais, mas tal nunca aconteceu entre nós.
Outros países, especialmente na área da educação têm autarquias espe-
cialmente vocacionadas para a educação (os school districts nos EUA ou as
Local Education Authorities no Reino Unido, por exemplo). A arquitetura
institucional da administração pública tem implicações não despiciendas
na quantidade e qualidade dos serviços públicos, tema a que voltaremos
no final do capítulo.
O imprint inicial da CRP76, fez-se sentir, quer ao nível institucional
quer ao nível financeiro e algumas opções tomadas então, podem com-
preender-se politicamente, mas facilmente se verifica não terem qual-
quer racionalidade económica. Apesar disso mantêm-se imunes às várias
revisões constitucionais realizadas desde então.
Saber quais as atribuições e as competências que hoje são centraliza-
das (quer na administração central quer em empresas públicas de capital
maioritariamente ou totalmente estatal) e quais as descentralizadas (na

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

administração local ou no sector empresarial local) é relativamente fácil


em termos gerais.3 A tabela seguinte ilustra, por funções, as principais
diferenças.

Tabela 1.1. Funções centralizadas e funções descentralizadas

Funções centralizadas Funções descentralizadas


(administração central, (administração local, empresas
empresas de capitais públicos municipais, intermunicipais
e outras) e outras)

Sistema Judicial Não tem competências


Funções gerais de
Administração

Defesa Nacional Não tem competências

Segurança Pública

(PSP, GNR, PJ) Polícias Municipais (facultativo)

Educação

Currículos Nacionais Construção e manutenção dos


estabelecimentos de educação pré-
escolar e das escolas do ensino básico
Funções Sociais

Pessoal Docente Pessoal Não Docente (básico)


(básico e secundário)

Pessoal Docente Ação social escolar


(básico e secundário)

Ensino Superior Transportes escolares

Atividades de Enriquecimento
Curricular

3
Há porém casos em que é menos simples a distinção. A separação entre funções centraliza-
das e descentralizadas nas águas e resíduos não é linear porque os municípios, sempre que o
Estado não assuma o serviço em alta, continuam responsáveis por essa fase da cadeia de valor
(através de sistemas intermunicipais em alta ou de sistemas municipais verticalizados). Exce-
cionalmente o Estado também já assumiu serviços “em baixa” que, em regra, estão reservados
aos municípios – a EPAL faz a distribuição de água em Lisboa (embora seja uma exceção).

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Funções centralizadas Funções descentralizadas


(administração central, (administração local, empresas
empresas de capitais públicos municipais, intermunicipais
e outras) e outras)

Saúde

Hospitais, Centros de Saúde Participação e consulta no


planeamento da rede de centros de
saúde

Pessoal médico, de enfermagem


e auxiliar

Segurança e Ação Social

Transferências a favor do Cooperação com instituições de


rendimento solidariedade social e em parceria
com a administração central, em
programas e projetos de ação
social de âmbito municipal,
designadamente nos domínios do
combate à pobreza e à exclusão social

Competência quase exclusiva da


Funções Sociais

administração central

Habitação

Regulação do mercado Disponibilizar terrenos para a


de arrendamento construção de habitação social
(controle de rendas)

Programas de renovação urbana Promoção de programas de habitação


a custos controlados, de erradicação
de barracas e de renovação urbana

Serviços Culturais, Recreativos

Centros de cultura, centros de Construção de Instalações


ciência, bibliotecas, teatros e Desportivas e Recreativas
museus nacionais (IPM)

Património cultural, paisagístico Centros de cultura, centros de


e urbanístico regional ou ciência, bibliotecas, teatros e museus
nacional municipais

Património cultural, paisagístico e


urbanístico do município

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Funções centralizadas Funções descentralizadas


(administração central, (administração local, empresas
empresas de capitais públicos municipais, intermunicipais
e outras) e outras)

Agricultura, Pecuária, Silvicultura, caça e pesca

Incentivos económicos a estes Incentivo Fiscal (e.g. IMI ???


sectores

Indústria e Energia
Funções Económicas

Distribuição de energia elétrica Distribuição de energia elétrica em


em alta tensão, apoios às PMEI baixa tensão; Iluminação pública
urbana e rural.

Transportes e Comunicações

Rede Nacional de Estradas Viadutos, arruamentos e obras


complementares

Portos Rede viária Municipal

Saber, qual deverá ser a distribuição de funções de forma mais deta-


lhada e distinguindo desconcentração de descentralização é algo mais
exigente.
Apesar do imprint inicial das formas de governo sugerido ou imposto
pela CRP76, a estrutura de governo teve nas últimas décadas alguma evo-
lução, pelo que a teoria normativa do federalismo orçamental, ou descen-
tralização financeira, acaba por ser relevante quando se pensa em alterar
o status quo e introduzir reformas institucionais. Esta teoria é essencial-
mente uma teoria normativa e económica desenvolvida na sequência dos
trabalhos pioneiros de Wallace Oates (1972, 1999). Adicionalmente, e
mais recentemente, desenvolveram-se abordagens mais político-econó-
micas da descentralização (Inman e Rubinfeld 2005, Rodden 2002) que
pretendem introduzir uma análise explicativa que incorpora fatores polí-
ticos mais explicitamente. Este tipo de abordagem, designada como teo-
rias de segunda geração do federalismo orçamental (Oates 2005), clari-
fica a importância da dimensão política e os prováveis fatores de bloqueio
ou de mudança associados aos sistemas políticos.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

1.1.2. Aspetos concetuais: descentralização, desconcentração

Antes de se responder à questão do que deve ser centralizado, descentrali-


zado ou desconcentrado é necessário clarificar os conceitos e o contexto
em que são utilizados. A abordagem que utilizaremos neste livro é polí-
tico-económica que é semelhante, mas algo diversa da usada no direito
administrativo.4
Sendo dada uma estrutura de governo a vários níveis, consideremos
para já e para simplificar apenas dois, cada nível de governo terá as suas
atribuições e as suas competências. À transferência de competências com
caráter definitivo de um nível de governo territorialmente mais vasto para
um nível de governo democrático com menor território, e nele incorpo-
rado, designamos de descentralização política ou político-administrativa, o
que no caso português inclui quer a transferências do Governo da Repú-
blica para os Governos Regionais (Açores e Madeira) quer para as Câma-
ras Municipais.
A razão da palavra “descentralização” é clara, estamos a transferir com-
petências verticalmente de “cima” para “baixo”. A nossa preferência pelo
qualificativo “política”, tem a ver com o facto de se tratar de transferên-
cia de competências entre entidades com a mesma legitimidade política
democrática embora face a eleitorados distintos. O governo da República
responde perante a Assembleia da República, ou seja deve ser um agente
das preferências dos cidadãos, mediadas pelos deputados que são eleitos
para tratar de assuntos de âmbito nacional. São “deputados da nação”.

4
É importante deixar claro que a nossa abordagem concetual, que é económica, é ligeira-
mente diferente da utilizada em direito administrativo. Aqui só a descentralização para os
órgãos das regiões é considerada descentralização político-administrativa, sendo a descen-
tralização para as autarquias locais designada por descentralização administrativa. No caso
das autarquias locais o Art. 111 da Lei 75/2013 estabelece explicitamente que “Para efeitos
da presente lei, a descentralização administrativa concretiza-se através da transferência por
via legislativa de competências de órgãos do Estado para órgãos das autarquias locais e das
entidades intermunicipais.” Note-se porém, que a Constituição da República Portuguesa
refere logo no Art. 6 sobre o Estado unitário o princípio da “descentralização democrática”.
A grande desvantagem desta abordagem do direito administrativo é que usa o mesmo con-
ceito “descentralização administrativa” para duas realidades completamente distintas: a des-
centralização que se faz para entidades autónomas dentro da administração central (a também
designada administração indireta) e a que se faz para entidades fora da administração central
(autarquias locais) e com legitimidade democrática direta.

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Os governos regionais da Madeira ou dos Açores, respondem perante as


assembleias legislativas regionais, que aprovam os orçamentos regionais
e respondem perante os eleitorados regionais. Já as câmaras municipais
respondem perante a Assembleia Municipal, os deputados municipais
respondem perante os munícipes de cada concelho em particular. São
entes políticos e administrativos distintos, em que não há uma relação
hierárquica ou de tutela funcional, entre um e outro. A única relação de
tutela que existe é a de legalidade (verificação que os atos administrati-
vos estão conforme com a lei) e mesmo esta é operada por organismos
próprios.5
Reservamos assim o termo de descentralização administrativa para as
situações em que a transferência de competências se faz entre orga-
nismos distintos ambos com personalidade jurídica, mas pertencente
à mesma entidade administrativa. A descentralização faz-se assim por
outorga legal de atribuições a outros entes jurídicos, mas sob superin-
tendência do principal responsável político (geralmente o ministro da
tutela). Aqui existem relações de tutela funcional e, em geral, de depen-
dência hierárquica do poder de nomeação e em geral destituição, por
parte do membro do governo responsável, dos líderes desses organismos
que são criados para desempenhar, com um grau significativo de auto-
nomia (geralmente autonomia administrativa, financeira e patrimonial
pelo menos) as atribuições e competências previstas na lei. Se esses orga-
nismos atuarem numa esfera de atuação territorial intraestadual, tratar-
-se-á de descentralização administrativa territorial (caso das administra-
ções regionais de saúde). Caso tenham uma abordagem mais transversal,
“horizontal”, a partir de atribuições e competências mais alargadas a todo
o território nacional tratar-se-á de descentralização administrativa funcional.
Caso distinto é o da desconcentração administrativa. Aqui a diferença é
dupla. Enquanto a descentralização democrática (ou político-administra-
tiva) é uma transferência de competências “para baixo” entre entidades
jurídicas distintas, a desconcentração relaciona-se com a forma de organi-
zação interna de uma mesma entidade jurídica em que as competências se

5
Usar o mesmo conceito – descentralização administrativa – para realidades diferentes (des-
centralizaçãoo dentro da administração central e desta para as autarquias locais) tem levado
alguns responsáveis políticos a pensar que têm algum poder de tutela sobre as autarquias
locais, que não o estrito controlo da legalidade.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

mantêm no topo da hierarquia da organização, mas certas atribuições são


transferidas “para baixo” para entidades que geralmente não dispõem de
personalidade jurídica e que têm um grau de autonomia limitado (geral-
mente apenas autonomia administrativa). Assim é que, por exemplo, o
XIX Governo Constitucional manteve alguma desconcentração de serviços
periféricos da administração direta do Estado (por exemplo as Direções
Regionais da Cultura na secretaria de Estado da cultura ou as Comis-
sões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, primeiro no Minis-
tério da Agricultura e depois no, posteriormente criado Ministério do
Ambiente)6. Em contrapartida, operou também alguma concentração, ao
extinguir quer as Direções Regionais de Economia (Ministério da Econo-
mia) quer as Direções Regionais de Educação (Ministério de Educação
e Ciência), transferindo as suas atribuições para outros organismos da
administração direta ou indireta do Estado. A concentração ou descon-
centração diz assim respeito à forma como são exercidas as competências
dentro de uma mesma instituição, dentro de uma estrutura hierárquica.
Finalmente, temos o caso da delegação de poderes, que ao contrário da
descentralização tem uma natureza temporária, e se faz sob a forma de
contrato administrativo, caso seja entre duas entidades administrativas.7
Pelas razões acima aduzidas na relação entre a administração central e
a administração local só poderemos ter ou descentralização democrática,
quando existir efetiva transferência de competências que, por lei, deverá
vir acompanhada dos recursos respetivos, ou contratos de delegação. Por
seu turno se as autarquias operarem descentralização administrativa sig-
nifica que estão a transferir competências para outras entidades.

6
De notar que (no XIX Governo Constitucional) direções regionais de cultura apenas têm
autonomia administrativa, mas as CCDR, apesar de serem também serviços periféricos da
administração direta do Estado, têm autonomia administrativa e financeira.
7
O Artigo 44.o do Código do Procedimento Administrativo estabelece sobre a delegação
de poderes que “1 – Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em
determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, atra-
vés de um ato de delegação de poderes, que outro órgão ou agente da mesma pessoa cole-
tiva ou outro órgão de diferente pessoa coletiva pratique atos administrativos sobre a mesma
matéria.”

25

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

1.1.3. As respostas da teoria económica do federalismo orçamental

A teoria do federalismo orçamental pretende responder à questão de


saber, dentro das principais funções do Estado, quais as que deverão ser
centralizadas e descentralizadas.

A eficiência e a função afetação


Comecemos pela síntese dos principais resultados da teoria econó-
mica do federalismo orçamental a partir de uma clarificação conceptual.
A primeira questão – se uma dada função governamental deve ser centra-
lizada ou descentralizada – reside numa comparação entre os custos e os
benefícios da (des)centralização. Porque, é bom que se esclareça desde
já, há sempre benefícios e custos de qualquer opção que se tome quanto
à descentralização.

Tabela 1.2. Papel das Administrações Nacional, Regional, e Local por função

função
função afetação função redistribuição
estabilização

Regulação de
Redistribuição Bens de Mérito e
Atividades Bens Públicos
Rendimento Regulação
Económicas

Nacional Definição do
nacional

Red. Pessoal
(padrões e Bens Públicos tipo de bens, Nacional (produto,
e Regional
standards Nacionais quantidade e dos emprego, inflação)
(Centralizada)
centralizados) beneficiários
regional

Bens Públicos
Pode ser
Regionais Regional (emprego)
desconcentrada
(descentralizada)

Bens Públicos Provisão de


local

Locais bens de mérito


(descentralizada) (desconcentrada)

A ideia central é que podemos analisar esta problemática a partir das


três funções essenciais do sector público definidas desde Musgrave (1989):
afetação, redistribuição e estabilização. A função afetação tem a ver com

26

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

a correção das falhas de mercado na provisão de certos bens e serviços


que as pessoas desejam, na correção de externalidades, e a regulação dos
mercados quando não funcionam de forma competitiva.
A principal razão para a descentralização no sector público tem a ver
com a função afetação, em particular a provisão de bens públicos nacio-
nais, regionais e locais. Transferir a competência sobre bens públicos
regionais para entidades regionais e sobre bens públicos locais para enti-
dades municipais, tem como objetivo ajustar a oferta desses bens às pre-
ferências dos cidadãos quer a uma escala regional quer local. É impor-
tante clarificar que esses bens e serviços não devem constituir aquilo
que se designa por bens de mérito pois esses devem ser centralizados
(ver em baixo e tabela). Trata-se de bens e serviços que são valorizados
pelos residentes mas que, por razões várias, o mercado privado fracassa
em os fornecer na quantidade e/ou na qualidade apropriada. Construir
mais espaços públicos ou construir mais equipamentos desportivos, não
se justifica que seja uma decisão centralizada, mas sim descentralizada.
Uma rede metropolitana de transportes públicos, ou pelo menos a sua
coordenação, deve ser promovida por entidades públicas, pois os priva-
dos, mesmo que operem certas atividades de transporte com sucesso, não
internalizam as externalidades positivas ou negativas da sua atividade.
A regulação é uma das funções importantes do Estado e visa sobretudo
entidades privadas (por exemplo o licenciamento de novas empresas),
mas também entidades públicas (por exemplo a determinação daquilo
que os jovens deverão aprender no ensino público). É importante distin-
guir, no âmbito desta função, aquilo que é o âmbito territorial das normas
que os agentes privados devem cumprir, daquilo que é o nível de admi-
nistração onde a promoção do respeito ou da violação dessas normas deve
ser efetuado. Em relação ao âmbito territorial em que as normas devem
ser aplicadas, facilmente se compreende que elas devem corresponder
ao território nacional (ou europeu). As questões ambientais ultrapassam
assim as divisões administrativas e devem ser uniformes à escala nacional.
Considere-se, porém, que a implementação administrativa de normas de
emissão de poluentes, a que empresas estão sujeitas, fossem diversas entre
o Norte e o Alentejo, sendo mais permissiva no Alentejo. Isso originaria
uma distorção indesejável nos critérios de escolha de localização territorial
das empresas favorável ao Alentejo. Há, assim, um argumento baseado no
critério da eficiência, que justifica que devem ser centralizadas todas as nor-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

mas, cuja aplicação descentralizada e diversa, geraria entorses indesejáveis à


concorrência. A questão seguinte é se poderia ou deveria ser desconcentrada
em departamentos governamentais a uma escala territorial mais pequena.
A desconcentração significaria manter a competência para a determinação
dessas normas a nível nacional, mas do ponto de vista da sua monitorização
e controlo haver organismos sub-nacionais a implementá-lo. Há argumen-
tos favoráveis e desfavoráveis à desconcentração e depende em muito do
funcionamento concreto dos organismos desconcentrados. Como refe-
rido, durante vários anos o Ministério da Economia esteve desconcentrado
em direções regionais, tendo a vantagem de estar mais perto dos agentes
económicos no terreno. A desvantagem, ou o risco, existe se a aplicação
das mesmas normas for feita de forma mais laxista numas direções regionais
e mais estrita noutras, pois aqui está a cair-se no problema da distorção da
concorrência. Para resumir, quanto maior o custo de um desvio na aplica-
ção das normas entre vários territórios, maior o argumento para a concen-
tração, quanto menor o custo maior o argumento para a desconcentração.

A equidade e a função redistribuição

A função redistribuição está associada com a promoção de uma socie-


dade mais justa e que se materializa em duas dimensões distintas, a pro-
moção da igualdade de oportunidades promovida através de uma provisão
gratuita ou quase de bens considerados meritórios (na educação, na
saúde) e a redistribuição pessoal do rendimento operacionalizada sobretudo
quer através do sistema fiscal, em particular os impostos progressivos,
quer da segurança social.
Para além da redistribuição pessoal do rendimento, a existência de
territórios com diferentes condições económicas e diferentes capacida-
des tributárias, levanta a questão da redistribuição regional de rendimento,
operada em quase todos os países entre regiões mais ricas e mais pobres
por imperativos de solidariedade nacional. Se tivermos em conta estas
três dimensões da redistribuição – promoção de igualdade de oportu-
nidades, redistribuição pessoal do rendimento e redistribuição regional
– há várias questões que se colocam do ponto de vista da teoria da des-
centralização financeira.
– Os padrões de provisão de bens de mérito (na educação básica ou nos cuidados
primários de saúde) deverão ser centralizados ou descentralizados?

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Tome-se o caso da educação. No campo da regulação considere-se a


definição do currículo base obrigatório a ser implementado nas escolas,
bem como a monitorização da qualidade do sistema educativo na sua glo-
balidade, através de provas de aferição de conhecimentos. Há um argu-
mento para a centralização, mas por razões de equidade. Aquilo que se
pretende com a provisão pública de ensino nas escolas do ensino público
é contribuir para a igualdade de oportunidades de todos os jovens inde-
pendentemente da sua condição social e económica. Há, assim, ou deve
haver, uma visão nacional das competências curriculares (no português,
na matemática) que qualquer jovem deve ter, bem como a aferição de
conhecimentos deve ser à escala nacional, o que justifica a existência de
exames nacionais. Isto não significa que não haja desconcentração ao nível
dos agrupamentos de escola na prestação desse serviço aos alunos, mas
a avaliação da qualidade do sistema educativo deverá ser centralizada.
– O que é que deve ser descentralizado administrativamente, o que deve ser des-
concentrado dentro da administração central e o que deve ser descentralizado politi-
camente para as autarquias locais?
Tipicamente, se queremos assegurar uma uniformidade de tratamento
à escala nacional, por razões de equidade não deveremos descentralizar
politicamente essas competências para níveis regionais ou locais. O que
não quer dizer que elas não possam ser descentralizadas administrativa-
mente para a administração indireta para uma melhor eficácia. É o caso
das Administrações Regionais de Saúde (ARS). Por exemplo: “A Admi-
nistração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP tem por missão
garantir à população da região o acesso à prestação de cuidados de saúde,
adequando os recursos disponíveis às necessidades e cumprir e fazer cum-
prir políticas e programas de saúde na sua área de intervenção.” As políti-
cas são nacionais, a escala de gestão da rede de cuidados de saúde é vasta
e ultrapassa em muito a dimensão de um município pelo que não faz sen-
tido a descentralização das atribuições relacionadas com esta missão para
os municípios, mas pode fazer para as ARS.
– Deve a função redistribuição pessoal de rendimento ser exclusiva da admi-
nistração central ou partilhada com a administração local? Até que ponto pode ir
a ação redistributiva dos municípios?
Estas questões complementam-se, sendo a primeira do âmbito de
análise normativa e a segunda de análise positiva. A resposta à segunda
condiciona a primeira, e por isso comecemos por esta. Uma ação redistri-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

butiva dos municípios autónoma é sempre limitada, antes do mais, pelos


instrumentos relativamente limitados de que dispõem. No campo da fis-
calidade, a margem de autonomia municipal é pouca. Podem agravar ou
desagravar a tributação do património (IMI) dentro de certo intervalo,
podem dar uma dedução à coleta até 5% a todos os munícipes, o que
significa que para os que pagam IRS essa dedução é proporcional, não
tendo efeitos redistributivos, e podem isentar ou tributar o lucro tribu-
tável das empresas em sede de derrama. Facilmente se percebe que, ao
contrário do Estado, mais concretamente da Assembleia da República,
as assembleias municipais poucos instrumentos têm do lado da receita
fiscal com objetivos redistributivos. Já ao nível das prestações sociais
que pretendam atribuir ou do fornecimento de bens e serviços aos seus
munícipes de forma “gratuita”, pode existir uma política redistributiva.8
Esclarecida a segunda questão importa considerar a primeira. A
redistribuição pessoal do rendimento deve ser essencialmente nacional
e não local, essencialmente por duas razões: primeiro, dado a conceção
de equidade ou justiça social numa comunidade política ser nacional
ela deve ser aplicada de forma nacional. Usualmente usam-se dois con-
ceitos de equidade, que aplicados à capacidade contributiva significam
que deve ser respeita a equidade horizontal – tratar fiscalmente indivíduos
com a mesma capacidade contributiva do mesmo modo – e equidade ver-
tical – basicamente indivíduos com maior capacidade de pagar deverão
pagar mais impostos. Não teria sentido, do ponto de vista da equidade,
que o IRS fosse mais progressivo em Vila Real do que em Lagos, sem
que houvesse algum fator objetivo que indicasse uma desigualdade na
situação de indivíduos desses concelhos. Uma segunda razão prende-se
com as consequências de eventuais políticas redistributivas diferenciadas
ao nível local e o problema do stress orçamental. Imagine-se que durante
alguns anos o município do Porto tinha uma política redistributiva muito
generosa para com as pessoas carenciadas do seu concelho, e taxas de
imposto baixas, mas que Vila Nova de Gaia, em situação financeira mais
problemática, já não tinha essa generosidade. Gaia colocava as taxas de
imposto no máximo (IMI, Derrama), retinha a totalidade dos 5% do IRS
e não dava prestações sociais nem apoios nenhuns aos mais carenciados.

8
Ver mais adiante o impacto redistributivo da provisão gratuita de um serviço, que tanto pode
ser progressivo (onerar proporcionalmente mais os de maior rendimento) como regressivo.

30

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

O efeito esperado desta dualidade de políticas em municípios vizinhos


seria uma atração ao Porto de indivíduos mais carenciados, que benefi-
ciariam destes bens e serviços sem para eles contribuírem. Isto agrava-
ria a situação orçamental do Porto podendo entrar em situação de stress
orçamental. Para fazer face a estas novas necessidades de despesa, o Porto
teria de aumentar as suas receitas fiscais penalizando os que mais pagam
impostos: a classe média e média alta que, caso esta política perdurasse
no tempo, teriam um incentivo fiscal para alterar a sua residência fiscal
para fora do Porto, o que ainda agravaria mais o problema orçamental do
município que seria criado pela fuga de parte da sua base tributária.
Concluindo, a função redistribuição pessoal do rendimento deve ser
essencialmente centralizada, por um lado pela escassez de instrumentos
ao nível das políticas públicas locais para operar essa redistribuição, por
outro pelas consequências eventualmente nefastas de uma redistribui-
ção muito ativa e persistente no tempo nas finanças municipais. Isto não
significa que, temporariamente e a uma escala limitada, não possam e
devam existir medidas de pendor claramente redistributivo a nível local.
– Assumindo que deverá haver redistribuição de recursos entre regiões mais ricas
e mais pobres, qual o grau ótimo dessa redistribuição? Qual é na prática o grau de
redistribuição existente nos vários países?
Também aqui há duas questões a primeira com dimensão normativa e
a segunda positiva. Aquilo que se pode dizer é que a redistribuição regio-
nal de rendimento, operada indiretamente através de impostos canaliza-
dos para a administração central, posteriormente canalizados de forma
diferenciada para as regiões, é que é uma das questões mais sensíveis
politicamente e aquela onde a racionalidade económica e política talvez
mais se distanciem e onde mais relevo tem a distinção entre as teorias
da primeira geração do federalismo orçamental (mais económica) e da
segunda geração (mais político-económica). A Checoslováquia tinha
uma região mais rica (aquilo que hoje é a República Checa) e outra mais
pobre a Eslováquia. Enquanto país uno operava redistribuição entre as
regiões. Hoje constituindo dois países distintos essa redistribuição dei-
xou de existir, sendo os habitantes da Eslováquia mais pobres. Por seu
turno, a Espanha tem regiões ricas como a Catalunha que financiam as
mais pobres como a Andaluzia, e a Itália a rica Lombardia e a relativa-
mente pobre zona de Nápoles. Esta redistribuição é, por um lado, um
fator de coesão nacional mas, por outro, um foco de tensões. A Catalunha

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

quer tornar-se independente de Espanha. A Lombardia tem um partido,


a Liga Norte com forte pendor independentista. Portugal tinha à época
da revolução de abril de 1974, dois arquipélagos (Açores e Madeira) e
regiões do interior Norte relativamente pobres. A CRP76 tem um forte
pendor redistributivo para as regiões autónomas, sendo que uma delas, a
Madeira, é já uma das regiões relativamente ricas no contexto nacional.
Do ponto de vista político-económico, que é aquele em que tem de ser
respondida a questão da redistribuição ótima, é preciso salientar que há
duas dimensões distintas de redistribuição: financeira e de poder. Apesar
de estarem associadas podem ter dinâmicas distintas. Pode haver maior
autonomia política (descentralização de poder político, autoridade tri-
butária, competência legislativa, etc.) com mais ou menos redistribuição.
Durante décadas, em Portugal, considerou-se que as duas dimensões
evoluíam em paralelo e que a mesma autonomia político-administrativa
significava a mesma redistribuição. Assim tratou-se fiscalmente de forma
idêntica as regiões dos Açores e da Madeira. Só recentemente as Leis de
Finanças Regionais vieram reconhecer, e bem, que a Região Autónoma
da Madeira, tendo um PIB per capita superior à dos Açores, deveria ter
menores transferências do continente. Clarificadas as duas dimensões
da questão da redistribuição ótima, saber qual o grau ideal exige pon-
derar os benefícios e custos da redistribuição e encontrar um equilíbrio
político entre ambos. Os benefícios derivam do sentido de solidariedade
nacional territorial e de alguma equalização das condições de vida. Os
custos derivam do eventual sentido de injustiça associada a uma redistri-
buição excessiva e ao possível problema de risco moral das regiões menos
desenvolvidas terem menor incentivo para o desenvolvimento endógeno.
Uma coisa é certa. quanto maior o grau de redistribuição, maior o grau de
tensão política que, em casos extremos, pode levar à secessão, da inicia-
tiva de regiões mais ricas.9, 10

9
Há ainda a importante questão de saber como se articula a redistribuição “territorial” com a
redistribuição pessoal do rendimento. Note-se que podem ter efeitos contraditórios. A redis-
tribuição regional não é dirigida a indivíduos, mas a territórios, pelo que beneficia indivíduos
ricos de regiões pobres, em contrapartida de criar uma sobrecarga fiscal em indivíduos de
classe média e média baixa (pois os pobres não pagam impostos) das regiões mais ricas. Do
ponto de vista da equidade, a redistribuição pessoal do rendimento é assim preferível à redis-
tribuição regional.
10
Há ainda a questão de como medir as desigualdades regionais. É sobretudo através do con-

32

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

A função estabilização
Finalmente, importa esclarecer a que nível deve ser desempenhada
a função estabilização do sector público, i.e., se centralizada se descen-
tralizada. Esta função visa a promoção do desenvolvimento económico
(evitando grandes flutuações cíclicas), do emprego, da estabilidade de
preços e do evitar vários desequilíbrios nas contas externas. Facilmente
se verifica que a maioria destas variáveis tem um caráter nacional, e os
instrumentos que existem para as influenciar são também de natureza
nacional: a política orçamental, a natureza do sistema fiscal, e no caso
dos países com soberania monetária (o que não é o caso português) a
política monetária. Deriva daqui que esta função deve ser centralizada.
A única exceção que merece ser considerada são as políticas de emprego,
que para além de nacionais poderão ser também regionais.
Debatida a questão do nível de administração a que devem ser forne-
cidos os bens públicos ou operadas as políticas de redistribuição e esta-
bilização, iremos agora analisar a natureza desses bens, da sua produção
e provisão.

1.2. A natureza, os custos, a oferta e a procura de bens


e serviços públicos

Em relação a qualquer atividade de um organismo público, existe o


problema de quantificar as realizações ou os resultados da atividade desse
organismo. Como se mede o output ou o outcome do ensino básico? Pela
despesa por aluno do básico? Pelo número de horas de ensino por estu-
dante? Pelos resultados nas provas de aferição nacionais? Pelas taxas de
aprovação?

ceito de posição fiscal ou orçamental, que tanto se pode aplicar a municípios como a regiões
(ver Pereira, et al. 2016).

33

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Tabela 1.3. Recursos e atividades/realizações do Ensino Básico e Secundário


e da Reparação de Estradas Municipais

ensino básico reparação de estradas


e secundário municipais

1 – Recursos Docentes, salas de aulas, Mão-de-obra, alcatrão,


(inputs) equipamentos máquinas de alcatroamento

2 – Resultados/ Numero de kms


Atividades Taxa de sucesso escolar alcatroados, número de
intermédios (outputs) buracos tapados, etc.

Diminuição da
Resultados: qualificação
sinistralidade automóvel.
3 – Resultados finais de mão-de-obra,
(outcomes) crescimento económico, Diminuição dos danos na
melhores cidadãos, etc. suspensão de veículos, etc.

A relação entre 1) recursos e 2) atividades/realizações (Q) é definida


economicamente por uma função de produção:

Q = Q(L, K, X)

Esta traduz que, dada a tecnologia existente, o output (Q) dependerá


dos fatores produtivos, trabalho (L), capital (K) e de outros recursos (X).
O custo de produzir uma certa quantidade C(Q) de atividades, no
sector público, depende da tecnologia de produção e dos preços dos
recursos:

Custo de Q 1 ≡ C(Q 1 ) = wL1 + rK1 + pX1

A despesa pública nacional (ou local) depende então da tecnologia


de produção dos preços dos fatores produtivos (salários w, taxa de juro r
e preços de outros inputs p).
No sector público, tenta-se avaliar em geral o output público através
dos custos dos inputs (ex: vencimentos dos funcionários públicos) o que
é muito impreciso.

34

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Daqui emergem dois tipos de problemas. Ao nível sincrónico, isto é,


se compararmos a despesa municipal num mesmo ano – diferenças na
despesa pública (per capita) de vários municípios no ano t não significa que
forneçam diferentes quantidades de serviços. Na realidade diferenças
na despesa podem resultar de diferenças no custo dos fatores produti-
vos, por exemplo um município com pior notação financeira (rating) que
outro terá um custo do capital superior.
Ao nível diacrónico aumentos de despesa num dado município não sig-
nificam necessariamente aumentos na quantidade de serviços prestados
(ver hipótese de Baumol que abordaremos de seguida).
A relação entre as atividades ou outputs do sector público (Q) e os
resultados para a sociedade (G), isto é para os beneficiários das políticas
públicas é indireta e pode ser definida por uma função de transformação:
G = G(Q, X, N, E)
Em que Q é a quantidade de atividades produzidas no sector público,
X os bens e serviços privados adquiridos pelos indivíduos que afetam a
qualidade do serviço recebido, N a população beneficiária (aqui joga o
fator escala e possível congestionamento) e E outras características da
comunidade ou do ambiente. Os resultados produzidos pelas atividades/
realizações públicas dependem não só destas, mas de um conjunto de
características e atividades da própria população abrangida. Se pensarmos
no ensino básico, as taxas de sucesso e avaliações dos alunos dependem,
em grande medida, dos professores e das condições de aprendizagem dos
alunos (dimensão média da turma, equipamentos escolares, etc.) mas
também das características socioeconómicas dos pais. Se se considerar
o grau de segurança numa cidade, ele não depende apenas dos níveis de
patrulhamento policial, mas também de haver mais ou menos potenciais
criminosos na sua população. Do mesmo modo o sucesso de uma “ope-
ração Natal” da GNR, para reduzir a sinistralidade na estrada, resulta em
parte dos efetivos mobilizados para a operação, da racionalidade da sua
logística (onde são investidos os principais recursos), mas também do
comportamento mais ou menos cuidadoso da população nessa quadra
festiva, nomeadamente do maior ou menor consumo de álcool. Assim, a
sinistralidade até pode aumentar apesar de se terem utilizado mais recur-
sos públicos, desde que o comportamento dos particulares se tenha dete-
riorado significativamente.

35

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

A mais comum fonte de comparações quer entre departamentos da


administração pública central, quer entre municípios baseia-se em com-
parações de despesa. Estas comparações enfermam desde logo de proble-
mas, pois a despesa depende não só da quantidade dos inputs utilizados
mas também do preço.
Diferentes municípios, com diferentes custos salariais, diferentes cus-
tos da terra ou diferente aproveitamento de economias de escala na pro-
dução, podem ter despesa diferente para a mesma quantidade de servi-
ços produzidos (ou inversamente). Mas mesmo municípios com a mesma
estrutura de custos, de preços dos inputs, e de despesa pública (per capita)
poderão ter níveis de resultados muito distintos se as características
socioeconómicas das populações forem significativamente diferentes.
Há, sobretudo, cinco razões pelas quais a despesa pública não é um
bom indicador dos serviços que os cidadãos reconhecem como rece-
bendo dos organismos públicos:
1. Tecnologia de produção;
2. (In)eficiência no uso da tecnologia;
3. Preços dos fatores produtivos (inputs);
4. Características ambientais da comunidade;
5. Padrões de consumo/comportamento privado.

Sendo a medição do produto complicada, a medição da produtividade


também o é. No sector privado sabemos que acréscimos nos preços dos
inputs (salários, taxa de juro, preços de matérias primas) não leva neces-
sariamente ao aumento do preço dos outputs pois os ganhos de produtivi-
dade podem compensar esses acréscimos de preços. E no sector público?
Há ganhos de produtividade? São maiores ou menores que no privado?
E que consequências advêm de diferenças de produtividade no público
e no privado?
Num artigo já clássico, Baumol (1966) respondeu a algumas destas
questões a partir de um modelo simples:
1. A economia está dividida em dois sectores competitivos, um (A)
capital-intensivo, outro (B) trabalho-intensivo (e com dificuldade
de substituição de trabalho por capital)11;

11
Numa atividade económica trabalho-intensiva, a proporção de custos laborais em relação

36

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

2. O sector A regista ganhos de produtividade e o sector B não;


3. O sector A tem procura de trabalho relativamente elástica e os
ganhos de produtividade são acompanhados por subidas salariais.
Contudo, o custo (wLa) por unidade produzida em A baixa;
4. A subida salarial em A provoca a atração de trabalhadores de B e a
subida de salários em B;
5. A procura de trabalho em B é relativamente rígida. O custo por uni-
dade produzida aumenta em B;
6. O que acontece à despesa pública depende da elasticidade da pro-
cura do bem ou serviço B em relação ao seu preço/custo. Com uma
procura rígida (educação no ensino básico, saúde, …) a despesa
pública aumenta.

A conclusão a que Baumol chega é que muitos serviços públicos locais


são de natureza trabalho intensivo, em que há dificuldade de substitui-
ção de pessoas por capital. As pessoas podem ser substituídas por robôs
na produção de carros, mas já não o podem ser em cirurgias ao coração.
A teoria de Baumol sugere que por isso haveria uma tendência de longo
prazo para o aumento da despesa pública. Carros e computadores tor-
nam-se mais baratos pelo progresso tecnológico, as cirurgias ou as aulas
na universidade nem tanto.12
Tem havido vários testes empíricos acerca da hipótese de Baumol
com resultados nem sempre consistentes. Ao analisar variações de despesa
é necessário distinguir:
• Variações nos preços dos inputs (por ex. salário horário médio dos
professores).
• Variações na quantidade de trabalho (por ex. número de horas de tra-
balho médio de professores)
• Variações na qualidade do serviço ou em novos serviços oferecidos.

A dificuldade na análise empírica é que ela é muitas vezes influen-


ciada, mesmo que implicitamente, por fatores ideológicos. Os que favo-

aos custos totais (ou em relação aos custos de capital) é elevada. Numa capital intensiva é o
peso relativo dos custos de capital que é elevado (veja-se a equação 2 acima).
12
Quase cinquenta anos volvidos, Baumol (2012), volta ao tópico dada a crescente despesa,
por exemplo na saúde, no livro The Cost Disease.

37

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

recem o sector público tendem a confirmar a hipótese de Baumol e deste


modo a justificar despesa pública acrescida ao longo do tempo. Os que
são mais críticos do sector público tendem a rejeitar a hipótese de Bau-
mol e deste modo a justificar formas alternativas de intervenção, nomea-
damente desorçamentação, quer pública quer privada.

1.3. O financiamento dos serviços locais: impostos, preços,


tarifas e taxas

1.3.1. Enquadramento

Do ponto de vista económico impostos, taxas, tarifas ou preços não são


apenas fontes de financiamento local, mas também instrumentos de polí-
ticas públicas. A visão tradicional (mais influenciada pelo direito) é que
essas fontes de receita devem ser suficientes para cobrir os encargos, e
devem ser justas. A visão moderna (mais influenciada pela economia)
acrescenta aos objetivos de eficácia e suficiência da arrecadação, os de
justiça (ou equidade) e de eficiência.
Numa perspetiva económica a principal diferença é entre impostos de
um lado e taxas, tarifas ou preços por outro. Isto porque têm uma natureza
diferente e devem aplicar-se a situações diferentes.
Os impostos são coercivos, de carácter unilateral e definitivo. Têm, por
vezes, por base o princípio da capacidade contributiva (e não o princípio
do benefício).13 Não há, em geral, no caso da tributação, relação alguma
entre aquilo que é consumido e aquilo que se contribui em termos fiscais.
No caso dos bens e serviços locais há ainda uma particularidade. Aque-
les que os financiam através de impostos podem ser os cidadãos euro-
peus (se o financiamento for por fundos comunitários), os cidadãos ou
empresas nacionais (se forem fundos recebidos das transferências inter-
governamentais, e.g. Orçamento do Estado) ou os cidadãos residentes ou
empresas localizadas no município (IMI, IMT, derrama, e eventualmente
uma proporção de IRS gerado no município).

13
O princípio da capacidade contributiva é aquele que sugere que os impostos devem ter em
consideração a capacidade económica dos sujeitos passivos de imposto. É o mais utilizado na
prática. O princípio do benefício é o que sugere que os impostos deveriam ser determinados
em função dos benefícios que se retira da despesa pública por eles financiada.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

As taxas, tarifas ou preços são geralmente, voluntárias, e de carácter


bilateral, têm uma relação sinalagmática, isto é, aquilo que se paga tem
a ver com aquilo que se beneficia: seja na forma de um bem ou serviço
que se recebe, na poluição que se realiza (dentro de limites aceitáveis
legalmente), na ocupação de parte do domínio público, ou na remoção
de qualquer obstáculo jurídico ao exercício de certa atividade. Têm geral-
mente por base o princípio do benefício e fundamentam-se sobretudo
em critérios de eficiência, tanto técnica, como na afetação de recursos.
Antes de clarificar a questão do mix do financiamento local desejável14
importa ter presente que dados os graus de autonomia fiscal atualmente
existentes, os municípios podem, em certa medida, basear o seu financia-
mento mais em impostos, ou mais em taxas, tarifas ou preços. Em relação
a esta problemática interessa clarificar desde já algumas coisas.
Como se verá em 1.3.2, a aplicação de impostos ou em alternativa de
um preço (taxa ou tarifa) depende em grande medida do tipo de bem
que se está a financiar (um bem público, um bem privado ou misto) e
do modelo de governação municipal predominante. Se um município A
fornece, em gestão direta, a totalidade dos bens e serviços de que bene-
ficia a população (desde jardins e rede viária até água, saneamento e tra-
tamento de resíduos) provavelmente financiará grande parte dos custos
através de impostos quer diretos (nos agentes locais) quer “indiretos”
(via transferências de capital). Se o município B tiver desorçamentado
(para o público ou privado) um certo número de serviços (e.g. água,
saneamento e resíduos) os munícipes passarão a pagar essencialmente
impostos ao município e tarifas às entidades gestoras desses serviços. Isto
significa que, tudo o resto constante, o município A deve ter impostos
mais altos que o município B, para o mesmo conjunto de esforço fiscal e
não fiscal dos seus munícipes.15 Por outras palavras, ceteris paribus, deve-se
exigir maior esforço fiscal a um munícipe em A que só paga impostos,

14
Neste capítulo aborda-se a questão numa perspectiva de curto prazo, médio prazo, apenas
na opção entre receitas fiscais e não fiscais. O Capítulo 9 ao equacionar diferentes modelos
europeus de financiamento, coloca a opção, mais de longo prazo, em termos de que tipo de
receitas fiscais.
15
Esta ideia simples tem um alcance grande, como se verá neste capítulo, sobretudo numa
perspectiva de médio prazo em que o volume de desorçamentação vai aumentando nuns
municípios e não noutros. Retomaremos esta questão nas conclusões.

39

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

para cobrir a totalidade dos serviços de que beneficia, do que a um muní-


cipe em B que não só paga impostos, mas também tarifas ou preços sobre
parte dos serviços de que beneficia.
Uma outra ideia fundamental, que resulta da teoria económica, é que
por regra quando se utilizam preços (ou tarifas ou taxas), eles devem
sobretudo ser desenhados de forma a contribuir para a eficiência na afe-
tação de recursos (quer alocativa quer técnica) razão pela qual damos
importância a este conceito nas próximas subsecções.16 O argumento
essencial, é que por regra deve lidar-se com questões de equidade, não
através dos preços, mas através quer do sistema fiscal (impostos), quer
através das prestações. Esta é a regra, que obviamente tem exceções que
serão discutidas mais à frente (secção 1.3.5).

1.3.2. Financiamento (in)eficiente na presença de bens públicos


e privados

A regra geral para um financiamento eficiente de um bem é que o preço


deve levar a que o benefício adicional ou marginal (privado ou social)
associado ao consumo do bem iguale o custo marginal (privado ou social)
associado ao consumo de mais uma unidade do bem.17 Esta regra aplica-se
de forma diferenciada consoante se trate de bens privados ou públicos. O
bem privado, é aquele em que o consumo do bem é totalmente rival (duas
pessoas não podem comer o mesmo pastel de nata), em que o benefí-
cio do consumo do bem é exclusivamente para o seu consumidor. Assim,
o preço deve igualar o custo marginal de produzir mais uma unidade do
bem, que corresponde ao custo marginal de consumir uma unidade adi-
cional. Já no bem público, onde o consumo é não rival (2, 5 ou 100 pes-
soas podem usufruir de um mesmo candeeiro público), o custo adicional

16
Como referido em cima, eficiência alocativa (no campo dos bens coletivos) é produzir o mix
de bens e serviços que os cidadãos desejam, e eficiência técnica (que se aplica a cada bem/
serviço) é produzir ao mais baixo custo possível.
17
A ideia subjacente é simples. Se o benefício marginal é superior ao custo marginal, há ainda
um ganho em se consumir mais unidade; se em contrapartida ele é inferior, significa que a
última unidade consumida é excessiva pois já representou um prejuízo. Para mais desenvolvi-
mentos, bem como clarificações conceptuais de muito do que será desenvolvido nesta secção,
ver Pereira et al. (2016).

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

de uma pessoa consumir o bem público, admitindo que ele já é fornecido,


é zero. Note-se que não estamos a dizer que o custo marginal de produzir
um bem público é zero, porque não é. Mas o custo adicional de se consu-
mir, quando ele já é fornecido numa dada quantidade, é zero pelo que se
retira desde já uma importante conclusão sobre impostos versus preços
para uma provisão eficiente destes bens:
– Os bens e serviços locais que tenham características de total riva-
lidade no consumo deverão ser financiados por preços, tarifas ou
taxas que devem igualar o custo marginal de produção.
– Os bens e serviços locais em que não existe rivalidade no consumo
deverão ser financiados por impostos (preço nulo).
Convém perceber porque é que a violação desta regra levaria a situa-
ções ineficientes, antes de dar alguns exemplos. Se um bem privado (na
aceção acima referida) for fornecido a preço abaixo do seu custo, por
exemplo nulo (isto é for financiado por impostos) haverá, geralmente,
um sobre-consumo do bem, pois os agentes económicos não estão a inter-
nalizar o custo do bem que consomem. Se um bem privado for fornecido a
um preço acima do custo marginal, haverá também ineficiência que neste
caso é um sub-consumo do bem pois haveria alguns indivíduos que dei-
xariam de ter acesso ao bem ou serviço dado haver um preço excessivo.
Um exemplo prático de “bem” privado fornecido pela autarquia é uma
licença (alvará) para realização de obras no interior de uma habitação, mas
operando alterações estruturais a necessitar de alvará. Note-se que, assu-
mindo que não há externalidades (positivas nem negativas), só o próprio
indivíduo terá benefícios com esse alvará. Se ele for demasiado alto, em
relação aos custos para a câmara de conceder esse alvará, isso significa que
muitas obras e licenças deixarão de ser feitas por essa razão e se calhar
introduzem-se incentivos para a construção ou reabilitação clandestina.
Se ele for demasiadamente baixo, haverá pedidos de licenças a mais.
Uma outra violação da regra enunciada seria a provisão privada (ter
um preço igual ao custo marginal) quando o bem é público. A introdução
do preço, neste caso, produz um efeito indesejável, irá racionar o con-
sumo, sem que daí derive algum benefício. Recorde-se que o bem é não
rival, pelo que não há benefício nenhum, em termos do critério de eficiência,
em racionar o consumo do bem. Assim, do ponto de vista da eficiência,
não faz sentido colocar um preço para acesso a um parque, a uma piscina,

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

a um museu, ao espaço de estacionamento público numa cidade, desde


que a sua utilização não esteja congestionada. Se houver congestiona-
mento aí haverá rivalidade no consumo e já pode fazer sentido praticar
uma taxa (ver secção 1.3.3).
De que é que dependerá a ineficiência da provisão privada de um bem
público, ou da provisão pública de um bem privado? Basicamente, da
elasticidade da procura, isto é da variação percentual da quantidade con-
sumida, em resposta a uma variação no preço. Se a procura do bem for
completamente (ou muito) rígida, não haverá (ou haverá pouca) inefi-
ciência de um engano na forma de financiamento (financiar por impostos
quando se deveria utilizar preços, ou vice-versa).

1.3.3. Preços (e subsídios) eficientes na presença de benefícios ou


custos externos

Quando o serviço público prestado gera benefícios individuais (Figura


1.2.) e gera benefícios marginais externos para a sociedade (BME), a taxa
ou tarifa deve financiar o benefício marginal privado e os impostos o
benefício marginal externo.

Figura 1.2. Equilíbrio de mercado na presença de externalidades positivas

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

O que a Figura 1.2 mostra é que na presença de externalidades posi-


tivas, a quantidade de equilíbrio de mercado (Qe) fornecida será abaixo
da ótima (Q*).
A forma de alcançar a quantidade ótima é precisamente a atribuição
de um subsídio (pigouviano) à produção igual ao benefício adicional para
a sociedade dessa atividade. Assim, para que haja uma procura de mer-
cado de Q* é necessário que o preço para o consumidor seja Pc*, mas
como o custo para o produtor é Ps* é necessário que este receba um sub-
sídio igual à diferença (s = Ps* – Pc*). Ao nível das funções do Estado
poder-se-á pensar no ensino superior, e como ele deve ser financiado,
para se alcançar a eficiência, quer pelo próprio estudante (propina) quer
pelo Estado (impostos). Ao nível local podemos pensar em obras de
recuperação externa de edifícios em ruas movimentadas de uma cidade,
nomeadamente que envolvam a recuperação e reabilitação urbana de
edifícios. Os beneficiários de tal atividade são, em parte, os proprietários,
mas também todos os que frequentam essa rua. Há assim argumentos
económicos para que nesse programa camarário, haja incentivos fiscais
ou outro tipo de benefícios para esse tipo de investimentos.
A teoria das externalidades fornece ainda uma racionalidade para o
caso de equipamentos coletivos num dado município A beneficiarem
residentes de um município vizinho B (os spillovers). Aquilo que sugere
é que se não houver nenhum tipo de compensação de B para A o nível
de oferta de equipamento será porventura baixo em relação à dimensão
ótima, pois o município A não “internaliza” a externalidade.
Para além das externalidades positivas temos também o caso das exter-
nalidades negativas (tipo 1): poluição atmosférica ou de rios, ruído, ocu-
pação da via pública, excrementos de animais, etc. Também se demonstra
facilmente que sem a aplicação de um imposto ou uma taxa (pigouviana)
correspondente ao efeito marginal dessa poluição ela será excessiva, e
que é necessário que os agentes económicos internalizem, nas suas deci-
sões, os custos para a sociedade das suas atividades. É isso que justifica a
tributação dos combustíveis ou as taxas sobre canídeos, ocupação de via
pública, etc.
Há outro tipo de externalidades negativas (tipo 2) associado a um
consumo excessivo de um bem em relação à capacidade oferecida. Isto
acontece em todos os serviços de rede (energia, água, etc.) e em todos
os equipamentos coletivos (piscinas, pontes, museus) sujeitos a elevado

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

congestionamento. Um serviço congestionado não leva necessariamente


a maiores custos operacionais que um serviço não congestionado. Con-
tudo, por razões de eficiência, pode justificar-se que quando o serviço
estiver mais congestionado haja uma tarifa mais alta e quando estiver
menos, mais baixa ou mesmo nula. Isto pode levar a tarifação diferenciada
ao longo do dia ou da semana, e é o que se verifica quer na energia quer
nos transportes de longo curso em muitos países. Sem congestionamento
e com custos marginais operacionais nulos a taxa deve ser nula, preci-
samente porque o bem tem características de bem público (não rival o
consumo). Com congestionamento a taxa deve ser positiva. A razão pela
qual o estacionamento em cidades fortemente congestionadas passou a
ser pago deriva precisamente da passagem de um recurso que era abun-
dante, para escasso. Sempre que um recurso se torna escasso há sempre
uma forma de racionamento, nem que seja na base do “first come first ser-
ved”, o primeiro a chegar consome. Porém, o racionamento baseado no
preço é mais eficiente.

1.3.4. As taxas: teoria básica (com benefícios individuais)

Grande parte da teoria anteriormente desenvolvida aplica-se às taxas. As


funções gerais das taxas podem ser as de fazer os consumidores supor-
tarem o custo do serviço fornecido; revelarem a procura pelo serviço;
financiarem o serviço e racionar a utilização do serviço. Note-se a diferença
entre racionar e financiar. Uma taxa moderadora de um hospital, não
financia praticamente o serviço, pois é baixa relativamente ao seu custo,
mas introduz algum racionamento na sua utilização. Já noutros casos as
taxas poderão cumprir efetivamente ambas as funções.
No caso particular dos municípios as taxas têm também como função
a prossecução de objetivos de políticas públicas locais, nomeadamente
“finalidades sociais e de qualificação urbanística, territorial e ambiental”.18

18
É assim que o Art. 5.o da Lei n.o 53 E/2006, de 29 de dezembro, estabelece que “1 – A cria-
ção de taxas pelas autarquias locais respeita o princípio da prossecução do interesse público
local e visa a satisfação das necessidades financeiras das autarquias locais e a promoção de
finalidades sociais e de qualificação urbanística, territorial e ambiental.

44

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Para um uso eficiente das taxas, na presença de bens mistos dever-se-á


ter presente que:
1. Quanto maior a proporção dos benefícios marginais que vão dire-
tamente para os utilizadores, mais atrativo se torna o uso das taxas;
2. Assumindo que a maioria dos benefícios vai para os utilizadores
diretos, o financiamento com taxas requer que os utilizadores dire-
tos possam ser facilmente identificados e excluídos a baixo custo;
3. Os custos administrativos de praticar taxas (medir, faturar, rece-
ber) devem ser baixos relativamente ao que é recebido das taxas.
Por outro lado, os custos de cumprimento (do consumidor) são
baixos (ex. custos de filas de espera originadas pela portagem);
4. O argumento, baseado no critério de eficiência, para usar taxas é
mais forte quando a procura é elástica e o serviço está congestio-
nado, pois o efeito da introdução, ou subida, da taxa é de reduzir
esse congestionamento;
5. O valor da taxa deverá considerar a existência de eventuais externa-
lidades (positivas ou negativas) para além do benefício direto para
o particular.19

Ultrapassa o âmbito deste artigo a análise das taxas em Portugal,20,21


mas uma análise de vários regulamentos tarifários municipais mostrou
quer as condições para se aplicar taxas de forma economicamente justi-

2 – As autarquias locais podem criar taxas para financiamento de utilidades geradas pela rea-
lização de despesa pública local, quando desta resultem utilidades divisíveis que beneficiem
um grupo certo e determinado de sujeitos, independentemente da sua vontade.”
19
O Art. 4.o da Lei n.o 53 E/2006, de 29 de dezembro, refere que “1 – O valor das taxas das
autarquias locais é fixado de acordo com o princípio da proporcionalidade e não deve ultra-
passar o custo da atividade pública local ou o benefício auferido pelo particular. 2 – O valor
das taxas, respeitando a necessária proporcionalidade, pode ser fixado com base em critérios de
desincentivo à prática de certos actos ou operações.” (italico nosso). Está aqui a menção implícita à
externalidade negativa.
20
O Art. 3.o da Lei n.o 53 E/2006, de 29 de dezembro estabelece que “As taxas das autarquias
locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na uti-
lização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção
de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das
autarquias locais, nos termos da lei.”
21
O leitor interessado poderá consultar Vasques, S. (2009 e 2013).

45

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

ficada como a lei exige, mas também alguns problemas na aplicação da


atual legislação.22
Para se implementar uma revisão séria e economicamente fundamen-
tada do sistema de taxas municipal é desejável:
1. Ter em consideração o contexto institucional do município (se tem
ou não empresas municipais, etc.);
2. Que o município tenha contabilidade analítica por centro de cus-
tos, sem o qual uma fundamentação económica das taxas é muito
problemática;
3. Fazer uma tipologia de taxas por grandes grupos: taxas associadas a
procedimentos administrativos, taxas associadas a serviços presta-
dos pela autarquia de pequeno valor, taxas associadas a despesas de
infraestruturas (urbanísticas, mas não administrativas);
4. Distinguir as situações onde não se justifica e onde se justifica a
consideração de benefício social ou custo social externo. Se não há
“externalidade” então a taxa deve refletir os custos, se há deverá ser
majorada (custo social) ou minorada (benefício social);
5. Não considerar (logo não incorporar) como “custos indiretos” os
custos gerais de administração autárquica (pois os municípios têm
receitas fiscais para esse fim);
6. Lançar debate público e participação dos cidadãos e agentes eco-
nómicos locais sobre o regulamento de taxas antes da sua imple-
mentação.

1.3.5. Que fazer quando preços eficientes colidem com noções


de justiça social?

Como referimos em cima, pode existir um conflito entre os objetivos


de eficiência e os objetivos de equidade em certas situações. Para isso
importa distinguir duas perspetivas distintas de encarar a equidade.
Em certas situações equidade pode ter a ver com o princípio do benefí-
cio, a ideia de que é justo que seja o beneficiário de certo bem a pagar

22
A legislação é sobretudo a “Lei Quadro das Taxas” Lei n.o 53 E/2006, de 29 de dezembro
(com as alterações introduzidas pela Lei n.o 64 A/2008 e Decreto-Lei n.o 117/2014) e a Lei das
Finanças Locais que tem os princípios gerais.

46

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

por ele.23 Ora se for este o entendimento de equidade, nestes casos, a


teoria anteriormente desenvolvida tem grande aplicação, pois por regra
não haverá conflito entre eficiência e equidade. Usa-se preços ou tarifas
para bens de apropriação privada ou coletiva (com congestionamento)
e isso satisfaz a eficiência e também a equidade (na lógica do benefício).
A teoria necessita apenas de um pequeno ajustamento no caso de bens
de consumo coletivo, não congestionados (logo com características de
bem público), pois aqui a eficiência sugere financiamento por impostos,
mas a equidade de acordo com este princípio, sugerirá que haja algum
pagamento de modo a que se implemente o princípio do utilizador-
-pagador. De qualquer modo isso só fará sentido se a receita associada for
significativa. Não faz sentido num museu, com pouca frequência, estar a
cobrar bilhetes de entrada, só para aplicar a lógica do benefício quando
isso ainda fará mais retrair a, já escassa, procura.
Noutras situações, pode dar-se primazia à equidade ligada ao princí-
pio da capacidade de pagar, isto é a ideia de que a contribuição de cada um
para o bem coletivo deve ter a ver com a sua capacidade de pagar (alguma
variável associada ao rendimento ajustado a necessidades obrigatórias
de despesa). Quem tiver mais capacidade de pagar deverá neste sentido
pagar mais. Dissemos acima que os preços, tarifas e taxas não devem ser
utilizados, por regra, para operar redistribuição de rendimento, pois dis-
torcem indesejavelmente os incentivos dos agentes económicos. Porém,
há um conjunto de bens e serviços aos quais não desejamos deixar de
dar acesso universal (e.g. água ou cuidados primários de saúde). Nestes
casos, se todos tiverem de pagar um preço (eficiente) pelo serviço uti-
lizado, haverá um claro conflito entre eficiência e equidade, enquanto
capacidade de pagar e mesmo de justiça em termos de direitos huma-
nos. A forma como este conflito é solucionado não é fazer uma provisão
pública universal a preço nulo (impostos), mas compaginar a existência

23
Note que a aplicação do princípio do benefício pode ser entendida de duas maneiras con-
soante a natureza do benefício. Pode tratar-se do benefício associado à utilização de um equi-
pamento coletivo (por ex. uma piscina) neste caso usa-se a expressão “utilizador-pagador”.
Mas pode tratar-se do benefício associado à poluição de um recurso comum (ex. emissões de
CO2), neste caso falar-se-á em “poluidor-pagador”.

47

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

de preços ou taxas com isenções para certas categorias de pessoas que


não têm capacidade de pagar.24

1.3.6. O financiamento das despesas de infraestruturas:


equipamentos coletivos, água, saneamento e resíduos

Certo tipo de serviços públicos locais são fornecidos na base de grandes


investimentos que têm de ser recuperados. Uma questão, abordada nesta
secção, é saber como é que devem ser financiados e que implicações isso
tem em termos da fiscalidade local. Outra questão é analisar se esses
grandes investimentos significam uma situação de monopólio natural e,
em caso afirmativo, que soluções existem para esse financiamento, tema
que retomaremos adiante.
A primeira questão que se deve colocar é: quem deve financiar a
infraestrutura? Os custos de construção ou aquisição de uma infraestrutura
devem ser pagos, na lógica do princípio do benefício pelos grupos na sociedade
que beneficiam da existência dessa infraestrutura. Isto engloba três tipos de
situações:
1. Os beneficiários diretos (e.g. os consumidores de água);
2. Os beneficiários potenciais diretos (e.g. os que têm 2.a habitação);
3. Os beneficiários indiretos (os que têm ativos ou atividades “capita-
lizadas” com a infraestrutura).

Em relação às duas primeiras categorias é preciso perceber que a


existência da infraestrutura dá aos indivíduos a opção de a utilizarem no
futuro mesmo que não a usem no presente. Um indivíduo pode ter uma
segunda habitação, que raramente utiliza, e passar um ano sem consumir
água; porém, o facto de ter essa habitação, e de a poder utilizar, obriga
a que a capacidade instalada de abastecimento de água considere a sua
habitação pelo que deverá sempre contribuir para financiar a construção
(ou amortização dessa infraestrutura).

24
É isto que acontece na prática com as taxas moderadoras nos hospitais em que estão isentos
os desempregados os recipientes de RSI, etc. ou na água e eletricidade onde existem tarifas
sociais.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Uma grande infraestrutura vai prestar serviços durante vários anos,


digamos quarenta para simplificar, pelo que quer o financiamento da
sua construção quer a sua amortização poderão ser feitos também nesse
período.
No que toca à construção o financiamento poderá ser por emprésti-
mos precisamente pelo período de quarenta anos, ou inferior, mas nunca
deve ser superior.
Não faz sentido, nem seria economicamente viável, que os consumi-
dores atuais tivessem o ónus total do pagamento da construção. Isso justi-
fica o recurso a empréstimos a ser reembolsados (com juros) durante o
período de vida útil do projeto através quer de receitas de capital muni-
cipais (transferências comunitárias ou do Estado) quer de receitas fiscais
locais.
Para além de financiar o custo do investimento inicial, há que financiar
as amortizações ao longo do período de vida do projeto para ser possível
no final reinvestir. Esse financiamento deverá ser feito através de uma
tarifa fixa a ser repartida por todos os consumidores. Esta tarifa está a
financiar a amortização dos investimentos em relação à capacidade ins-
talada, diretamente relacionada com o serviço prestado (a base de ativos
relevantes).
Depois de instalada a infraestrutura (parque, estrada, sistema de
água ou saneamento), e para além da amortização dos custos fixos, é
necessário cobrir os custos variáveis através de preços (ou tarifas) que
serão função da quantidade do bem ou serviço consumido. Aqui a lógica
do princípio do benefício (direto) justifica-se principalmente se o bem
é divisível e a apropriação é privada, sendo que o preço deve igualar o
custo marginal de curto prazo (com a capacidade dada) de mais um uti-
lizador do bem.
Assim, justifica-se plenamente, no caso dos sectores de água, sanea-
mento e resíduos e de forma muito genérica, três tipos de financiamento
caso se assuma que existe algum co-financiamento supra-municipal:
transferências de capital (nacionais ou União Europeia), impostos locais,
e tarifas. A tarifa deverá ser bipartida: com uma componente fixa, indepen-
dentemente do consumo, destinada a financiar a amortização da infraes-
trutura (com um valor liquido do que tiver sido co-financiado) e uma
componente variável em função do consumo de água, ou da presumível

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

produção de águas residuais a serem tratadas ou da estimada produção


de resíduos.25
Finalmente, como referimos de início, há todo um conjunto de bene-
ficiários indiretos de certos investimentos. Quando um município cons-
trói um jardim, todas as habitações que bordejam esse jardim, vêem o seu
valor aumentado, recebendo uma mais-valia. E mesmo outras habitações
a pequena distância beneficiam (o usufruto será uma função decrescente
com a distância). Mesmo que os residentes nunca frequentem esse jar-
dim, têm a sua casa capitalizada e se frequentarem o seu benefício é maior.
Assumindo que pela natureza do equipamento, ele não será pago, existe
aqui uma dupla racionalidade para o financiamento através de impostos
desse investimento: todos os proprietários beneficiam do equipamento.
Existe uma abundante literatura sobre a forma de encarar os impostos
sobre o património, tipo IMI. Há quem defenda que devem ser encarados
na lógica do princípio do benefício dos proprietários, como acabado de
explicar. Há por outro lado, quem considere que se trata de um imposto
sobre o capital. De uma forma ou de outra existe uma racionalidade para
financiar estes investimentos com empréstimos e impostos, mas não com
preços ou tarifas.

1.3.7. Preços em situação de monopólio natural

Um monopólio natural existe se a produção de um bem ou serviço exibe


rendimentos crescentes à escala, de modo que a curva de custos médios
de longo prazo (Cme) decresce à medida que a produção cresce até ao
limite da procura de mercado (D), precisamente porque cada unidade
adicional de produção é produzida a um custo adicional, ou marginal
(Cmg), sempre inferior ao custo médio. Desde logo um corolário impor-
tante da existência de um monopólio natural é que só deverá haver uma
empresa a operar no mercado para precisamente absorver essas econo-
mias de escala na produção e poder produzir a custos médios mais bai-
xos. Sectores que envolvem elevados investimentos, como por exemplo
as águas ou o tratamento de resíduos, são assim sectores de monopólio
natural onde deverá apenas haver uma empresa a operar.

25
Trata-se de um tema complexo que será ainda abordado no capítulo 8 deste livro.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

Figura 1.3. Preços em situação de monopólio natural

Os monopólios naturais têm vários problemas:


1. Se não forem regulados, o preço que praticam será excessivo (Pm),
e a quantidade insuficiente (Qm), isto porque o monopolista vai
praticar um preço de modo a maximizar os seus lucros.26 Haverá
aqui dois potenciais problemas. O preço excessivo provoca uma
redistribuição de rendimento dos consumidores para o monopo-
lista. Adicionalmente, existe uma perda de bem estar para a socie-
dade como um todo, o que em economia se designa por perda de
bem estar do monopólio;
2. Não é possível praticar-se preços únicos eficientes (sem subsídios).

26
Demonstra-se facilmente que o monopolista maximiza o lucro quando iguala a receita mar-
ginal ao custo marginal (ver Pereira et al. 2016) e percebe-se intuitivamente: se a receita da
última unidade for superior ao custo, haverá lucro marginal; se for inferior haverá prejuízo
nessa unidade. Graficamente, e assumindo procura linear, o equilíbrio do monopolista é dado
pelo ponto de interseção entre a curva do custo marginal e a da receita marginal (Rmg) que
tem o dobro do declive da curva da procura.

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Na realidade, as possíveis tarifações em monopólio são basicamente


as seguintes:
1. Preço igual ao custo marginal, mas com o Estado (ou município) a
subsidiar os prejuízos associados. Se o preço for igual ao custo mar-
ginal, dado que este é inferior ao custo médio, a empresa teria pre-
juízos, pelo que neste caso teria de haver uma solução para cobrir
esses prejuízos, por exemplo através de subsídios;
2. Preço igual ao custo médio. Tem a vantagem, relativamente à solução
anterior, que garante o financiamento dos custos de produção,
mas a desvantagem de que restringe o nível de produção abaixo do
ótimo;
3. Fazer discriminação de preços (de tipo I, tipo II ou tipo III);

O poder de monopólio, que deriva de existir apenas uma empresa no


mercado, pode dar origem a três tipos de discriminação de preços:
Tipo 1 – Diferentes consumidores são tarifados de forma diferenciada;
Tipo 2 – Diferentes quantidades são vendidas a um preço unitário dife-
rente;
Tipo 3 – Diferentes tipos de consumidores são tarifados de forma dife-
renciada (residenciais, comércio, indústria, etc.).

Note-se que para haver discriminação de preços é necessário não ser


possível a revenda do bem ou serviço ou, a existir, ela ser muito cara.
A discriminação de preços pode ter objetivos louváveis ou perniciosos.
No primeiro caso, é quando ela se norteia por objetivos de bem-estar
social. Pode considerar-se que o fornecimento industrial de água (ou de
energia) a preços mais baixos que ao consumidor final doméstico tem,
indiretamente, um impacto benéfico nos consumidores que vão bene-
ficiar de produtos mais baratos. No segundo caso é quando tem como
objetivo apenas maximizar os lucros e apropriar-se do excedente dos
consumidores.
Deriva do que foi dito que em situações de monopólio natural é neces-
sária regulação para melhorar o bem-estar da sociedade. Mas será que
a regulação tem esse efeito? Tem havido abundante literatura sobre a
economia política da regulação, onde se têm confrontado duas perspe-
tivas em relação à sua eficácia: a daqueles que defendem que, na prática,

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

a regulação serve o interesse público e os que defendem que, de forma


paradoxal, serve o interesse das empresas reguladas. Há ainda quem
defenda que a regulação serve os interesses de quem tem maior poder de
lóbi: se forem os consumidores o preço será mais baixo e aproximar-se-á
do custo marginal, se forem os produtores estará mais próximo do preço
monopolista. Para além do poder de lóbi das entidades em presença –
associações empresariais, entidades gestoras, consumidores – existe toda
a questão do sistema de governança e de financiamento da entidade regu-
ladora e dos incentivos individuais dos reguladores. Do ponto de vista do
efeito final da regulação não há dúvidas que o poder de lóbi relativo quer
de associações de consumidores quer de empresas é importante, embora
diferenciado, e que a capacidade e determinação da direção da entidade
reguladora e do regulador em particular, são determinantes na capaci-
dade de prosseguir o interesse público.27

1.4. A governança: empresarialização, privatização e o terceiro sector

Em sectores de monopólio natural, tem sido frequente a desorçamen-


tação sob a forma de empresarialização, isto é a passagem do financia-
mento e provisão de certos bens e serviços locais para fora dos orça-
mentos municipais. Esta empresarialização tem assumido várias formas,
desde a simples passagem do sector público administrativo para o sector
público empresarial (passagem de 1 para 2 ou para 3 na Tabela), ou indo
um pouco mais longe na concessão a privados (casos 4 ou 5) ou na parce-
ria e partilha de risco com privados (caso 6).

27
O autor foi durante alguns anos representante da DECO (Associação Portuguesa para
a Defesa dos Consumidores) no Conselho Consultivo da entidade reguladora – primeiro
IRAR e depois ERSAR onde estava também representada outra Associação de Consumi-
dores a FENACOOP. Do lado empresarial, estavam representadas as empresas, públicas e
privadas do sector. Apesar de muitos interessantes e vivos debates a desproporção do peso
de lóbi dos consumidores vs produtores, reside sobretudo em duas coisas: os representantes
dos consumidores, apenas dois, estão ali graciosamente numa atividade que nem é a sua ati-
vidade profissional principal, nem as suas organizações estão bem equipadas tecnicamente
para esta atividade. Os representantes empresariais são profissionais que trabalham no setor,
que são avaliados e remunerados pelo sucesso da sua atividade empresarial. A desproporção
é assim considerável.

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

Tabela 1.4. Possíveis formas de desorçamentação nos serviços de interesse geral

Definição de
Provisão
Casos Quantidades e Produção
(financiamento)
Padrões de Qualidade

A decisão, o financiamento (impostos) e a


1. Público Público
produção é da administração pública.

A produção por empresa pública, e


2. Público Público financiamento não mercantil (impostos/
transf. CM).

Produção por empresa pública, e


3. Público Privado financiamento mercantil (taxas, tarif.
Preços)

Produção é agora assegurada por empresa


4. Público Público privada, mas financiamento ainda é
sobretudo por impostos (concessão 1)

A produção é assegurada por empresa


5. Público Privado privada, mas financiamento é sobretudo por
tarifas ou preços (concessão 2)

Antes de colocarmos as questões essenciais sobre a melhor forma


de governança, dentro deste largo menu de escolha, interessa perceber
as principais diferenças. Passar da administração pública para empresa
pública tem várias implicações, ao nível dos órgãos de gestão, do esta-
tuto laboral dos trabalhadores, da fiscalidade, dos contratos e da gestão
financeira. Ao nível dos dirigentes é importante distinguir o estatuto
do pessoal dirigente (1) do estatuto do gestor público (2, 3); no pes-
soal uma coisa é o trabalho estar regulado pelas regras do regime geral
dos trabalhadores em funções públicas (1) e outra estar subordinado ao
regime dos contratos individuais de trabalho (2, 3, 4 e 5). Ao nível da
fiscalidade, os fluxos de prestação de serviços dentro da esfera muni-
cipal não estão sujeitos a tributação (em particular o IVA), enquanto
passa a haver custos fiscais quando existe desorçamentação. No que
toca à gestão financeira, a menos que o município tenha uma conta-
bilidade analítica bem desenvolvida, o que muitas vezes não acontece,
a empresarialização melhora claramente a transparência das contas e
potencialmente a gestão.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

A primeira questão que se pode colocar é esta: em que medida pode a


empresarialização pública (EM, EIM, Soc. Anónima (maioria Estado), ou Socie-
dade Anónima de capitais públicos (maioria Município) reduzir os custos?
Há boas e más razões para se criarem empresas públicas, e depende
do peso relativo de ambas. Se o objetivo de criação de empresas públicas,
for dar mais flexibilidade de gestão, melhores incentivos a trabalhadores
e dirigentes, maior transparência e fiabilidade de contas, maior accounta-
bility junto dos cidadãos, então a criação de empresas será benéfica. Nas
duas versões acima referidas (2 e 3), é geralmente preferível a solução
mercantil (caso 3) em que as tarifas aos consumidores cobrem os custos,
pela maior transparência que isso representa, do que situações menos
transparentes em que o financiamento é sobretudo por impostos, mesmo
que seja ao abrigo de contratos programa entre o sector administrativo
e empresarial. Claro que se o objetivo da criação dessas empresas for
apenas beneficiar de regalias de gestor público, se não existirem maiores
incentivos e flexibilidade de gestão, e se essas empresas continuarem a
depender do erário público os custos aumentarão sem nenhum benefício
público.
Em que medida pode a concessão a privados reduzir custos e essa redução tradu-
zir-se em benefícios para os munícipes?
É importante perceber a forma como é formulada a pergunta. A ques-
tão não é apenas a de saber se a alteração na forma de governança de
um dado sector, neste caso a concessão a privados, reduz os custos, mas
também, em caso afirmativo, se esses potenciais ganhos de eficiência se
traduzem numa redução de tarifas para os consumidores.
A competição entre empresas privadas para a obtenção de contratos
relativamente à prestação de bens e serviços claramente identificados e
por períodos de tempo limitados poderá trazer uma redução de custos.
Isto no pressuposto de que não há competição no sector público. Mas
não haverá?
Em teoria existe alguma competição política e orçamental, pois se um
município tem custos mais elevados deverá ter impostos mais elevados
e isso poderá afastar as pessoas desse município, que “votariam com os
pés” (o efeito Tiebout). Na prática este fator não é relevante. A competi-
ção económica é mais forte do que a competição política. Porém, convém
referir que no caso das concessões a competição só existe no momento

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

em que se abre e realiza o concurso para a concessão. Ela não existe no


período de 15, 20, 25 anos durante o qual essa concessão for outorgada.
Há três fontes potenciais de redução de custos de produção por parte
de empresas privadas quando comparadas com públicas:
1. Custos de mão-de-obra mais baixos;
2. Melhor gestão;
3. Mais investimento em investigação e desenvolvimento (R&D) e
maior inovação.

Há assim potencialmente fontes de redução de custos no caso da con-


cessão a privados. Por isso é necessário ver as condições e em que medida
a privatização pode não funcionar? Há três problemas potenciais em qual-
quer processo de privatização:
1. O processo de seleção do fornecedor ou prestador de serviço;
2. A especificação do contrato;
3. O processo de monitorização e implementação do contrato.

No tocante à seleção do prestador de serviço há várias questões que


devem ser colocadas: É o mercado competitivo? Quais os critérios de
seleção? Mais baixo preço? Há possibilidade de revisão de preços poste-
riormente? Em que condições?
No que diz respeito à especificação do contrato, vimos no início deste
capítulo as dificuldades conceptuais associadas à distinção entre recursos,
atividades e resultados que sugere que em certas situações é fácil especifi-
car o bem ou serviço que se contratualiza, mas noutras não. Como avaliar a
qualidade do serviço? É fácil externalizar o serviço de limpeza em edifícios
públicos a privados, pois o serviço contratualizado é facilmente mensurá-
vel e quantificável. Já mais complicado é fazer um contrato de prestação de
serviços com um Hospital privado em que os pagamentos são função da
“produção” (atendimento hospitalar, tipos de intervenção cirúrgica, etc.),
porque se a quantidade pode ser mensurada, já a qualidade é mais difícil de
monitorar. Dados os objetivos de maximização de lucro o hospital privado
pode reduzir o tempo necessário e indicado de recobro de intervenções
cirúrgicas, ou fazer uma forte discriminação negativa de doentes que não
têm nenhum sistema de proteção na doença em detrimento daqueles que
têm os melhores seguros de saúde (do ponto de vista do hospital). Claro

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

que tudo isto pode ser minorado com um contrato apropriado, mas não
pode ser totalmente coberto pois todos os contratos são incompletos e não
só há sempre contingências não especificadas, como existe uma assimetria
de informação entre o Estado (ou a autarquia) e a empresa que presta o
serviço, sendo que esta tem sempre mais informação. Daqui deriva que há
custos de acompanhamento e monitorização dos contratos que se devem
adicionar aos custos de produção. Estes custos (que designamos como cus-
tos de transação) serão tanto mais importantes quanto menos detalhado for
o bem em causa (ver Pereira, 2008).
Qual a experiência concreta de prestação de serviços pelo sector privado?
Não há praticamente nenhum município que não recorra aos serviços
de empresas privadas quer para fornecimento de “produtos finais”, quer
para bens e serviços intermédios. As áreas mais comuns de contratualiza-
ção com privados, são precisamente aquelas em que é mais fácil quantifi-
car os outputs e onde não estão em causa funções de soberania ou serviços
de interesse geral:
– Construção civil: manutenção e construção de edifícios estradas, etc;
– Iluminação pública;
– Serviços de limpeza;
– Manutenção e gestão de frota automóvel;
– Serviços legais;
– Gestão e manutenção de equipamentos desportivos ou culturais.

As áreas menos comuns e mais controversas de contratualização com


privados, são aquelas em que estão em causa funções de soberania ou em
que se trata de bens e serviços de interesse público:
– Bombeiros;
– Ambulâncias e serviços de emergência médica;
– Prisões;
– Educação (sistema de “vouchers”);
– Água, saneamento e resíduos.

Não é correto generalizar a experiência de concessões a privados de


serviços públicos, cada caso é um caso, e haverá bons e maus contratos.
Porém, na presença de situações de monopólio e de elevados investimen-

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

tos a probabilidade do município ser “capturado” pela empresa e fazer


um mau contrato, que por natureza é de longa duração, é elevada.28
Aqui chegados convém reter algumas ideias fundamentais sobre as
diferentes formas de governança na prestação de serviços de interesse
público.
1. Não se pode comparar apenas a produção pública versus privada,
pois se o serviço é parcialmente de interesse público, terá que
haver monitorização (custos de transação) e a comparação rele-
vante é entre custos de produção pública versus custos de produção
privada a que se devem adicionar os custos de transação.
2. Mesmo considerando a análise comparativa da totalidade dos cus-
tos, é preciso não esquecer que aquilo que interessa do ponto de
vista dos consumidores é a tarifa (ou preço) pago. Se um ganho na
eficiência do privado se traduzir não numa redução de custos, mas
num aumento de lucros da empresa a um preço mais elevado para
os consumidores, não serve de muito essa concessão a privados.
Assim, os eventuais ganhos de eficiência deverão ser repartidos entre as
empresas e os consumidores, o que sugere um papel importante da
regulação sobretudo no período pós-concessão.
3. Quando se compara formas de produção pública e privada, um
primeiro aspeto que deve ser considerado é saber se a privatização
(ou concessão a privados) está associada a mais competição, ou se é
apenas a passagem de um monopólio público para um monopólio
privado. É da acrescida competição e não da privatização que poderão
surgir os ganhos de eficiência, a redução dos custos e a repercus-
são positiva nos consumidores. Sobretudo nos sectores de eleva-
dos investimentos em infraestruturas de base (água, saneamento e
resíduos), o facto de estarmos na presença de monopólios naturais,
sugere que ao nível da produção “em alta” (por ex. na água: capta-
ção, armazenamento e tratamento) que irá condicionar as condi-
ções de produção “em baixa” (distribuição), há argumentos econó-

28
Alguns casos de contratos da concessão a privados do serviço de abastecimento de águas
apresentavam tarifas muito elevadas e menos escalões dos que a actual regulação do setor
prevê, mesmo quando a água era adquirida em “alta” a um operador que abastecia outros
municípios. É necessária grande transparência e grande debate público antes de se imple-
mentar este tipo de contrato.

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AUTARQUIAS LOCAIS: ORGANIZAÇÃO, FUNÇÕES, CUSTOS E TARIFAÇÃO DE BENS

micos para que a produção seja dominada por empresas de capitais


maioritariamente públicos.29
4. O interesse público, em relação a certos bens e serviços, não deve
ter em atenção apenas considerações de eficiência mas também de
equidade (por exemplo, não é o caso dos serviços de limpeza, mas
é certamente o caso da educação). Considerações de justiça e equi-
dade podem levar a que certas atividades se mantenham na esfera
pública mesmo que considerações de eficiência, porventura, suge-
rissem o contrário.

Uma coisa é certa, este tópico é importante, mas sujeito a debates


muitas vezes com forte pendor ideológico. Raramente se faz o balanço
das experiências realizadas de empresarialização pública, de privatização
de serviços, de concessões a privados.
O quadro teórico desenvolvido neste capítulo permite enquadrar as
questões essenciais que se colocam no âmbito das políticas públicas locais,
se nos colocarmos numa perspetiva dinâmica de médio e longo prazo.
A primeira tem a ver com a arquitetura institucional desejável das adminis-
trações públicas. Esta é condicionada pela Constituição da República Por-
tuguesa (CRP) e pelos estatutos político-administrativos das regiões autó-
nomas da Madeira e dos Açores que, como sabemos, têm sofrido alguma
evolução. Mesmo no quadro da atual CRP existe margem de manobra
para mudança institucional: eventual implementação de regiões adminis-
trativas no continente, possibilidade de criação de autarquias unifuncio-
nais ou de reforço das áreas metropolitanas, etc.. A segunda diz respeito à
geometria variável da descentralização e desconcentração de competências. Em
qualquer das políticas públicas (e.g. educação, saúde, acção social, etc.)

29
O argumento económico para a privatização mesmo “em alta” só poderia ser sustentado,
parece-nos, num contexto em que se teria uma regulação completamente eficiente dessas
empresas, evitando lucros anormais e preços demasiado elevados, que se repercutiriam ime-
diatamente e de forma indesejada, nas empresas distribuidoras “em baixa”. Apesar da extrema
importância das entidades reguladoras, não temos essa confiança total nessa capacidade das
entidades reguladoras, embora valorizemos e reconheçamos a sua importância. Em tese,
tanto se pode ter um regulador verdadeiramente independente, como se poderá ter um regu-
lador algo capturado pelas entidades reguladas. Isso dependerá, antes do mais de quem for
o regulador e do escrutínio a que for sujeito(a). De qualquer modo, dados os custos de tran-
sação da regulação, opomo-nos à privatização “em alta” e temos sérias reservas “em baixa”.

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AUTARQUIAS LOCAIS: DEMOCRACIA, GOVERNAÇÃO E FINANÇAS

podemos ter um exercício mais ou menos centralizado e mais ou menos


desconcentrado. Para uma dada arquitetura institucional e uma decisão
sobre descentralização ou centralização das atribuições e competências
dos diferentes níveis de administração (central, regional e local) temos
a questão do modelo de financiamento. Na perspetiva de cada município, o
financiamento provém de uma de três vias: impostos, preços ou endivida-
mento. Impostos sobre não nacionais (fundos europeus), impostos sobre
nacionais não residentes no município (transferências da administração
central), impostos locais (IMI, IMT, IRS, derrama) ou taxas, tarifas e pre-
ços sobre agentes económicos residentes. O modelo de financiamento é,
também ele, dinâmico e como veremos neste livro, evoluiu ao longo de
tempo. Também aqui existe alguma margem de manobra municipal, na
utilização de diferentes instrumentos de financiamento, na certeza de
que têm implicações diferenciadas ao nível da eficiência e da equidade.
Finalmente, e obviamente articulado com o anterior, existe o modelo de
governança municipal que responde à questão de saber, em cada município,
o que deve ser realizado por gestão direta municipal, por empresas muni-
cipais, intermunicipais, ou outras sociedades de capitais públicos, aquilo
que pode ser contratualizado com instituições do terceiro sector (e.g.
IPSS) e eventualmente aquilo que pode ser concessionado a privados.

Referências bibliográficas

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