FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA
DA RELIGIÃO
AULA 4
Prof. Antonio Carlos da Silva
CONVERSA INICIAL
Nesta aula, pretendemos: abordar questões inerentes ao ensino religioso
no Brasil, considerando seu alcance, desde sua introdução no período colonial
e seu desenvolvimento até a presente época; analisar a importância do trabalho
para a vida social e comunitária pela capacitação docente contínua; buscar
entender aspectos legislativos e executivos próprios da legislação brasileira;
e, por fim, estudar como o ensino religioso tem se propagado em meio à
pluralidade de crenças e convicções num mundo globalizado, reconhecendo que
se trata da experimentação de um processo contínuo de ajustes.
Ao longo do século XX, novas vertentes religiosas surgiram e, no
século XXI, constata-se a proliferação das práticas religiosas e seus
ensinamentos em solo brasileiro. Muitas escolas que no passado apresentavam
vínculo direto com instituições religiosas já não se atêm mais a essa realidade.
Um estudo de caso interessante para pensarmos sobre a laicidade do atual
governo brasileiro é o que aconteceu com a França, no seu processo de
aplicação do ensino religioso (Giumbelli, 2004).
Pode-se entender escola como um dos locais onde a educação acontece.
Ela teria como objetivo a formação e a integração em uma sociedade produtora.
Nesse espaço, é possível ir além dos laços étnicos, consuetudinários ou
familiares, criando pertença e identidade (Junqueira, 2016, p. 15).
No caso francês, de fato, a escola desempenhou um papel fundamental
no debate sobre laicidade. No final do século XIX, o propósito do ensino religioso
foi suprimido durante a III República e ao longo do século XX também, por conta
da relação do Estado com as escolas particulares, majoritariamente católicas; e
desde 1989, em consideração a muitos episódios suscitados pelo uso do véu por
alunas muçulmanas em escolas públicas.
No segundo semestre de 2003, a sociedade francesa estava mais uma
vez mobilizada em torno da questão do véu. Em outubro, duas irmãs foram
expulsas de uma escola pública depois de se recusarem a retirar o véu. Ao
contrário da maioria dos casos, as irmãs vinham de uma família não muçulmana.
Em terras brasileiras, o conhecimento religioso apresentava como
expoente os catequizadores portugueses. Em certos momentos, estudavam-se
e até incorporavam-se práticas indígenas e africanas, começando por crendices
oriundas das tradições religiosas.
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O conhecimento religioso na escola
Historicamente, no Brasil Colônia (1500-1815) e no início do Brasil
Republicano (1889), a primazia do ensino religioso ficou sob o comando católico,
mas, à medida que os protestantes foram se estabelecendo no Brasil, a partir da
metade do século XIX, esse ensino passou por transformações.
TEMA 1 – RELIGIÃO, UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA
Em termos científicos, não há precisão absoluta para afirmar quando se
deu o início da vida humana no planeta, mas é possível pensar que, desde então,
o ser humano carrega dentro de si um sistema intrínseco de valores, no qual
estariam incluídos os aspectos religiosos.
Basicamente, a antropologia da religião se propõe a estudar as
instituições religiosas em relação a outras instituições sociais, e a observar como
se pode comparar crenças e práticas religiosas em diferentes culturas. Para
Pires (2010), o estudo antropológico da religião é uma operação em dois
estágios. Inicialmente, é uma análise do sistema de significados incorporado nos
símbolos que formam a religião propriamente dita; em seguida, estuda o
relacionamento desses sistemas em meio aos processos socioestruturais e
psicológicos. Por exemplo, o que é o judaísmo? É uma religião, mas como
surgiu? O que faz parte dele? Como se desenvolveu e como se estabeleceu?
São algumas questões a serem examinadas numa perspectiva antropológica.
TEMA 2 – A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Na história da humanidade, há uma variedade de experiências, desde as
mais abruptas, como um grupo de pessoas que se fecha num ambiente, espera
pelo fim do mundo e, por meio de um pacto, decide pôr fim à vida, gerando um
suicídio coletivo, até experiências mais singelas, como se enclausurar em uma
construção com o intuito de se “separar das impurezas do mundo” e se dedicar
ao serviço da sua divindade, isolando-se dos demais segmentos da sociedade.
No que se refere ao campo religioso, o Brasil é bastante heterogêneo.
Aqui parece haver uma medição de forças entre líderes e seguidores religiosos.
Isso acontece por meio de expressões culturais, isto é, pelo uso de rituais,
signos, tabus etc., e também por se analisar a produção intelectual com esse
enfoque, o que inclui prédicas, sermões, ações pastorais, livros, artigos,
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panfletos, entre outros meios de comunicação. Por exemplo, no calendário
brasileiro há muitos dias dedicados a ícones religiosos (entre outras definições,
homens e mulheres classificados como santos), que em alguns casos também
são identificados como padroeiros.
A análise do campo religioso pode ser feita verificando a influência destes
como “protagonistas do sagrado”, proclamados por “especialistas religiosos” ou
“intelectuais da religião”.
TEMA 3 – A CAPACITAÇÃO DA DOCÊNCIA
Participar da construção do conhecimento é uma missão exigente e
desafiadora, mas enriquecedora. Quando a religião está em questão, sabendo
da presença da subjetividade e do desejo de exercitar a liberdade e expressar
sua devoção, é necessário cautela. Na atual geração, com acesso imediato à
mídia digital, esse processo pode ser acelerado sobremaneira.
O uso das cartilhas nos moldes do século XX é raridade atualmente. O
universo estudantil e acadêmico hoje está voltado à compreensão instantânea
do que se apresenta como conteúdo pelo docente, sob o risco de que o discente
recorra imediatamente a algum recurso que apresente o que ele acredita ser
uma melhor explanação/explicação.
A postura didática atual, para ser coerente, carece de amplo
conhecimento e de uma visão filosófico-pedagógica, que parece ter início na
própria concepção do que realmente importa a cada ser humano e das
finalidades últimas da educação. Não se recomenda prescrever nem padronizar
técnicas, pois, antes de qualquer explanação de conteúdo, toda aplicação
didática tem de se adaptar ao contexto sociocultural, que envolve discentes,
docentes e instituições, dentre elas, com especial valor, as escolas de ensino
fundamental e médio.
A interdisciplinaridade pode ser uma primeira diretriz didática. Aliás, a
temática religiosa é adequada para essa perspectiva, pois envolve história, ética,
filosofia, artes, discute com a ciência e se relaciona com o ser humano
integralmente. Também pode ser considerada uma porta de entrada para a
diversidade cultural e para um melhor entendimento de si mesmo e do mundo.
A busca pela capacitação não deve se voltar apenas para algum tipo
experiência religiosa, mas para a participação contínua, em eventos que visem
aperfeiçoar a prática da docência, e não se restringir a técnicas desatualizadas.
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TEMA 4 – A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O sistema educacional brasileiro tinha em seus primórdios características
que lhe deram um formato rígido. Talvez um bom exemplo seja o que se
praticava nos internatos – algo que, de certo modo, lembra as atuais escolas de
tempo integral. Nessas escolas se ensinavam os primeiros fundamentos sobre
religião. Em termos do que se prescrevia à sociedade brasileira, a Constituição
de 1824 considerava o catolicismo como religião oficial, e as demais práticas
religiosas eram permitidas somente no interior das casas.
Pensando no final do século XIX, mais precisamente a partir de 1891, o
espaço público para manifestação religiosa foi permitido, incluindo cerimônias
fúnebres. Apesar da aparente abertura constitucional, a prática de diferentes
cultos religiosos é tímida; no caso do ambiente escolar, o desinteresse do
governo é observável na descentralização do sistema escolar.
A mesma legislação que permitia manifestação religiosa nos espaços
públicos não contemplava sua regularização na educação pública escolar – algo
que gerou lacunas consideráveis Brasil afora. Segundo Saucedo (2013, p. 246),
isso significa que a Primeira República (1889-1930) desfrutou de muitas
reformas e mínima democratização do ensino, em particular o ensino religioso.
Quando se trata de um país onde o princípio da laicidade esteja em voga,
como o Brasil, o indicado é que haja neutralidade e respeito. Marília Domingos
escreve que:
Estado laico é aquele onde o direito do cidadão de ter ou não ter
religião é respeitado e que assegura a “liberdade de consciência”. As
únicas restrições feitas a esse direito referem-se à manutenção da
ordem pública. Esse direito é assegurado pelo artigo 18 da Declaração
Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem direito à liberdade
de pensamento, consciência e religião”. A laicidade alia, então, a
liberdade de consciência fundada sobre a autonomia individual e ao
princípio da igualdade entre os homens. É a garantia da liberdade de
pensamento do Homem dentro de uma comunidade política, a garantia
de liberdade de espírito, a garantia da liberdade do próprio homem.
(2009, p. 51)
Quanto à neutralidade, deve-se primar pelo tratamento igualitário. Diante
de uma diversidade de crenças e opiniões, cada cidadão deve ter os seus
direitos respeitados, ao mesmo tempo que cumpre com seus deveres. Para
Marília Domingos, é o princípio da neutralidade que permite o acesso de todos
aos serviços públicos (dentre eles, a escola pública e gratuita).
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Esse princípio deve ser seguido para garantir que o ensino religioso
ministrado nas escolas públicas não se detenha a uma formação religiosa
restrita, devendo-se entender que as práticas (usos e costumes) de cada religião
precisam ser apresentadas objetivamente e com a mesma ênfase, por
professores com formação específica nessas áreas. Além disso, as convicções
religiosas precisam ser respeitadas, e sua ausência também (Domingos, 2009).
Observando o Processo Constituinte de 1988, nota-se que o ensino
religioso, disciplina de caráter facultativo, deve ser norteado pelo ambiente
escolar, e não mais por uma ou mais religiões. Essa compreensão é importante,
pois assim o ensino religioso se fundamenta na própria função da escola, que
seria buscar o conhecimento e desenvolver o diálogo.
Assim, o Estado, a escola e a sociedade não podem mais considerar o
ensino religioso como uma simples formação religiosa ou axiológica, nem
considerá-lo como catequese ou uma ação pastoral. É necessário compreendê-
lo como componente curricular, cujo conteúdo seja o fenômeno religioso.
Conforme a Lei n. 9.394/1996 (Lei das Diretrizes Básicas da Educação
Nacional – LDB), o saber em si considera a visão fenomenológica dentro da
disciplina. A alteração do art. 33 garante o respeito à diversidade religiosa no
ambiente escolar. O ensino religioso agora deve ter matrícula facultativa, mas
continua parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando
o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas
de proselitismo (Saucedo, 2013, p. 48).
Além disso, os sistemas de ensino passaram a regulamentar os
procedimentos para definir os conteúdos e estabeleceram as normas para a
habilitação e admissão de professores para essa disciplina (Contreras, 2008,
p. 15159).
TEMA 5 – O ENSINO RELIGIOSO E A PLURALIDADE RELIGIOSA
A religião oficial do ensino religioso no Brasil Imperial era a católica.
Durante a monarquia portuguesa, os exploradores recebiam ordens papais para
escravizar os povos que não se submetessem à confissão da fé romana. A
intenção de homogeneizar a crença religiosa respondia aos projetos econômicos
e políticos de dominação dos povos nativos. Nas escolas do Império, a situação
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religiosa era imposta, e a religião ensinada era o cristianismo, sob a doutrina e o
dogma do catolicismo romano (Saucedo, 2013, p. 245).
A classe religiosa dos jesuítas era a responsável pelo sistema educacional
e primava pelos interesses do regime monárquico. Para fazer triunfar esses
interesses, a Igreja Católica executava uma proposta forçada de unidade
religiosa. Segundo Schögl (2010, p. 84), essa proposta tinha como ideologia dois
objetivos. Primeiro, desqualificar a fé dos povos escravizados, o que permitia sua
dominação pelo enfraquecimento de suas raízes culturais e religiosas. Assim,
cumpria-se o segundo objetivo: oprimir e evangelizar as mulheres, crianças e
homens escravizados, camuflando-se numa aura benevolente.
Mas o tempo passou, o cenário mudou, e o que se compreendia sobre
ensino religioso ganhou novas perspectivas. As práticas religiosas distintas
foram sendo introduzidas na sociedade brasileira e avançaram, gerando
seguidores e simpatizantes, de modo que hoje já se pode ensinar religião mais
livremente.
A diversidade que vem compondo o cenário religioso brasileiro nas
últimas décadas faz surgir comunidades onde se ensina e se pratica crenças
religiosas sem nenhum vínculo ou formação acadêmica. Isso indica que a
sociedade é livre para produzir conhecimento informal, cabendo a cada
segmento religioso elaborar critérios éticos para progredir em seu
aperfeiçoamento, incluindo o conhecimento sobre outros grupos religiosos.
A produção do conhecimento religioso no ambiente escolar e acadêmico
requer responsabilidade em comprometer-se com o aprendizado continuado,
desenvolvendo a maleabilidade nos relacionamentos com docentes e discentes
que apresentarem convicções religiosas divergentes.
NA PRÁTICA
O conhecimento religioso na escola passa pela compreensão do quão
importante é o direito de exercer a laicidade. Se o Estado é laico, é possível
expressar sua convicção religiosa e ao mesmo tempo ouvir a do seu próximo.
Sabe-se que há divergências, violências e intolerâncias, mas, quando se
participa de um aprendizado saudável, surge espaço para uma cosmovisão
tolerante e, por meio do diálogo, vislumbra-se um futuro esperançoso.
Uma prática docente responsável do ensino religioso pode produzir
efeitos a ponto de promover na sociedade a ascensão da harmonia
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sociorreligiosa e o declínio do fundamentalismo. Esse processo também pode
gerar no corpo discente um compromisso com a busca pelo conhecimento,
desde a mais tenra idade. As gerações contemporâneas e futuras têm e
provavelmente terão a seu dispor a tecnologia cada vez mais avançada e
metodologias que atenderão à demanda requerida pela vida social, cada vez
mais conectada. Devemos buscar um conhecimento acessível a todos, sob a
orientação das legislações e cientes dos direitos e deveres de um mundo plural.
FINALIZANDO
O objetivo desta aula foi estabelecer uma proposta de roteiro para
desenvolver o conhecimento, contemplando uma perspectiva antropológica a
respeito da religião, observando a importância das experiências religiosas
homogêneas e heterogêneas. Além disso, enfatizamos a necessidade de
compreender que na sociedade brasileira há legislação específica que
estabelece parâmetros, com o objetivo de valorizar a todos.
A docência desse ensino em meio à pluralidade religiosa pode se preparar
para atender às demandas genéricas e comuns de modo universal, e estar
sempre atenta às peculiaridades locais e regionais, nas quais as questões
pontuais precisarão de especial carinho.
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REFERÊNCIAS
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Curitiba: Faculdade Padre João Bagozzi, 2008.
DOMINGOS, M. F. N. Ensino religioso e estado laico: uma lição de tolerância.
Rever – Revista de Estudos da Religião, São Paulo, p. 45-70, set. 2009.
GIUMBELLI, E. Religião, estado, modernidade: notas a propósito de fatos
provisórios. Estudo Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 47-62, 2004.
JUNQUEIRA, S. R. A. Materiais didáticos para o componente curricular
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revisto na lei 9475/97. (Projeto CNE/UNESCO 914BRZ1009.2). Brasília, DF:
CNE, 2016.
PIRES, F. Tornando-se adulto: uma abordagem antropológica sobre crianças e
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SCHÖGL, E. Ensino religioso. In: GUSSO, A. M. (Org.). Ensino fundamental
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