O despertar da Filosofia
A filosofia surge em meio a um universo inteiramente mítico. É do seio da mitologia
que a razão erguerá suas asas. Não é por acaso que Aristóteles (384-322 a.C.)
define o philomitos – aquele que ama os mitos – como, de certa forma, um potencial
filósofo. Os problemas tratados na mitologia são tão universais quanto os que serão
considerados na filosofia: “De onde surgiu o universo?”; “O que é o homem?”; “Por
que sofremos?”; “Para onde iremos quando morrer?”. Todos esses questionamentos
podem ser notados nas explicações alegóricas dos mitos. De modo geral, podemos
elencar três características comuns entre o mito e a filosofia: (I) a apresentação da
totalidade do real; (II) o puro interesse teórico; (III) o método de explicação racional.
De acordo com o Reale (2009, p. 42), “não há dúvida de que as teogonias possuem
a primeira e a terceira dessas características, mas carecem da segunda, que é
qualificante e determinante. Elas procedem com o mito, com a representação
fantástica, com a imaginação poética, com intuitivas analogias sugeridas pela
experiência sensível, portanto, permanecem aquém do logos, ou seja, aquém da
explicação racional”.
Sendo assim, as teogonias (ou cosmogonias) se diferenciam da filosofia no que diz
respeito ao método. A filosofia exige que todas as explicações sejam demonstradas.
Um filósofo é sedento pela explicação causal da realidade. Para ele, tudo possui
uma causa; toda consequência pode ser entendida até que se atinja o fulcro da sua
origem. Não há nada na realidade que não possa ser perscrutado e explicitado pela
razão. A Physis há de perder, aos poucos, a sua característica sagrada. Doravante,
os fenômenos naturais poderão ser conhecidos a partir dos princípios
demonstráveis. A filosofia não aceitará o obscuro. Um filósofo nunca se deparará
com um problema insolúvel de modo passivo, como se ele pudesse ser aceitável
sem antes passar pelo crivo da dúvida. No entanto, diferentemente das ciências
naturais, a filosofia é somente teorética. Ela não lança mão de nenhum instrumento
para compreender a realidade. Segundo Ortega Y Gasset (2016, p. 79), “o filósofo
faz da possibilidade de seu objeto ser indócil ao conhecimento um ingrediente
essencial de sua atitude cognoscitiva. E isso significa que é a única ciência que
toma o problema como ele se apresenta, sem prévia violenta domesticação. Vai
caçar a fera como ela vive na selva – não como o domador de circo, que primeiro a
entorpece com clorofórmio”. A realidade se manifesta diante dele na sua totalidade
– sem nenhum tipo de intermediação instrumental. Assim, para se compreender
melhor as características da filosofia, pode-se elencar três aspectos básicos: I)
Conteúdo; II) Método; II) Finalidade.
Significados dos conceitos de arché e physis
Arché: Traduzimos Arché por princípio. O primeiro a usar esse conceito foi o filósofo
Anaximandro para denominar aquilo que é o "ponto de partido" e o "fundamento" ou
"causa" de todas as coisas. Entre os pré-socráticos, o princípio elementar de tudo
será a maior das causas de suas investigações – inicialmente, a única delas.
Physis: Traduzimos, comumente, Physis (Φύσις) por Natureza. Esse sentido,
segundo o Ferrater Mora (2001, p. 2271), é correto se mantivermos o sentido
derivado do latim de Natura. Pois Φύσις (Physis) corresponde ao verbo Φύω, que
significa "produzir", "fazer crescer", "gerar", "formar-se" etc. Ainda de acordo com
Mora, "analogamente, natura é o nome que corresponde ao verbo nascor, que
significa 'nascer', 'formar-se', 'começar', 'ser produzido' (...). Daí que Φύσις
equivalha (pelo menos em grande parte) a natura e seja traduzido por 'natureza'
enquanto 'o que surge', 'o que nasce', 'o que é gerado (ou gera)', e por isso também
certa qualidade inata, ou propriedade, que pertence à coisa de que se trata e que
faz que esta coisa seja o que é em virtude de um princípio seu".
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
GASSET, José Ortega Y. O que é filosofia?. Tradução de Felipe Denardi.
Campinas: Vide Editorial, 2016.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia(v. II). São Paulo: Edições Loyola,
2001.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga (vol. I). São Paulo: Loyola, 1993.
Hipóteses e características
(I) Conteúdo
A filosofia não se contenta com o parcial. Ela sempre se atenta para a
totalidade das coisas. Seu olhar se fixa na totalidade das coisas. Diante disso, para
o filósofo, todo restante da realidade é pequeno demais, insuficiente demais. O
historiador Diógenes Laércio dizia que nada interessava a Tales de Mileto
(623/24-546-48 a.C.), a não ser os céus. É com ele que será estabelecido o
nascimento da filosofia. Tales, como bom matemático e astrônomo que era, não
tinha outra pretensão a não ser conhecer os princípios que fundamentam toda a
realidade. Assim, sua pergunta central será “Como surgiram todas as coisas?” –
que, conceitualmente, os filósofos denominam “arché” (que significa origem,
princípio, fundamento). Nota-se que o conteúdo da filosofia é bastante universal. “A
filosofia é o conhecimento do Universo ou de tudo quanto há”, dizia Ortega Y Gasset
(2016, p. 101); “Na filosofia é difícil alguém conhecer um pouco se não conhecer
também quase tudo, ou mesmo tudo”, afirmava Cícero (2012, p. 37). As ciências
naturais que têm a finalidade de se dedicarem exclusivamente aos estudos das
particularidades: os elementos químicos são particularidades da química; o
movimento, da física; os números, da matemática; os fenômenos terrestres, da
geografia; os seres vivos, da biologia, etc. Essas ciências se dedicam ao estudo da
realidade de modo fragmentado. Sobre esse tipo de pesquisa, a filosofia não tem o
mínimo interesse. Daí surge a necessidade de explicarmos o seu método.
(II) Método
A filosofia faz uso da razão pura. Isso significa que o que tem valor é o
argumento lógico, coerente, demonstrado. É isso que significa logos (razão). Ir em
busca da causa, para além das experiências, compreender o princípio (arché). Por
fim, atingimos a finalidade.
(III) Finalidade
A filosofia não tem outra pretensão senão o amor à verdade ou à sabedoria. Esse é
o significado literal do termo que a tradição diz ter sido Pitágoras (570-495 a.C.) o
seu autor. Ela está livre de qualquer uso pragmático ou utilitarista, pois,
essencialmente, o que a move é o amor desinteressando à verdade – é uma
atividade que se resume em si mesma. A problematização está no seu âmago, pois
uma das qualidades do homo theoreticus “[...] é seu dom de converter as coisas em
problemas, em descobrir sua tragédia ontológica latente [ou seja, do Ser e Existir],
não há dúvida de que tanto mais pura será a atitude teorética quanto mais problema
for seu problema” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 83). Buscam-se problemas para
dar explicações acerca deles e, por fim, estabelecer novos problemas. É por meio
desse diálogo entre problema e realidade que o filósofo tenta fazer um resgate da
própria realidade na sua forma, como foi dito acima, mais universal. Assim nascerá
o que compreendemos por filosofia pré-socrática.
REFERÊNCIAS
CÍCERO, Marco Túlio. Textos Filosóficos. Tradução de J. A. Segurado e Campos.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
GASSET, José Ortega Y. O que é filosofia?. Tradução de Felipe Denardi.
Campinas: Vide Editorial, 2016.
Sugestões de leituras sobre os temas indicados:
1. MARÍAS, Julían. História da Filosofia
● Os pressupostos da filosofia grega