DIREITOS FUNDAMENTAIS1
Prof. Dr. Edilsom Farias
I – O SIGNIFICADO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ATUALIDADE
A nossa exposição versará sobre os direitos fundamentais, um tema de grande
importância na atualidade. Minha intenção é traçar uma visão geral sobre os direitos
fundamentais, com o objetivo de contribuir para uma compreensão adequada desses direitos.
Com efeito, K. Hesse disse que uma característica relevante de nossa época é a
significação cada vez maior dos direitos fundamentais. Se observarmos outros temas da
agenda-global nós iremos verificar que eles estão relacionados com os direitos fundamentais:
meio ambiente, paz, desenvolvimento sustentável, erradicação da pobreza. N. Bobbio cunhou
uma conhecida expressão para significar a relevância dos direitos fundamentais nos dias atuais:
ele disse que nós vivemos na era dos direitos. G. Zagrebelsky constitucionalista italiano, disse
que hoje o Estado de Direito bem que poderia ser chamado de Estado de Direitos, ou seja,
Estado de Direitos Fundamentais. Assim, podemos afirmar que os direitos fundamentais
significam hodiernamente um sinal de progresso moral da humanidade, embora nem sempre,
como afirma Bobbio, o progresso moral ande lado a lado com o progresso científico, pois se
sobre o progresso extraordinário da técnica não há controvérsia, sobre o progresso moral há
dúvidas. Talvez Bobbio tenha razão ao mencionar as dificuldades de nosso progresso moral:
quem não lembra da invasão ao Iraque ou sobre o permanente conflito entre Israel e os
palestinos. Aliás, Bobbio aponta como uma das dificuldades para o avanço moral da
humanidade o fato de o homem ser um animal violento, um animal passional e um animal
enganador. O homem é um animal violento. Desde sempre explode entre os homens conflitos
que são solucionamos apenas pelo uso da força. Daí porque no mundo humano seja difícil
eliminar a violência. O homem é um animal passional. No mundo das relações sociais
prevalecem as paixões e os interesses particulares sobre as razões universais. O homem é um
animal enganador, ou seja, mentiroso, que mente até para si mesmo, apresentando, com o
objetivo de justificar-se, ou de obter consenso para o próprio comportamento, motivações
distintas das motivações reais. Todavia, adverte Bobbio, não devemos nos resignar ao reino da
força, das paixões e da fraude. Portanto, os direitos fundamentais constituem uma esperança
de que o homem moral poderá triunfar sobre o homem violento, passional e enganador.
Para o direito contemporâneo não existe tema mais importante do que os direitos
fundamentais. Na ciência jurídica atual a linguagem dos direitos tem tomado a dianteira a
qualquer outra linguagem. Os direitos fundamentais consistem na própria razão de ser do
direito constitucional. Aliás, por falar em direito constitucional, entre nós esse ramo do direito
vive uma fase de pujança. O direito constitucional pátrio atravessa um momento de ascensão
científica e política, no dizer de Luis Roberto Barroso. Vale dizer, a Constituição está
conquistando a centralidade política e jurídica em nosso País. Hoje a Constituição constitui-se
na norma fundamental de nosso sistema jurídico. Ou seja, todo o sistema jurídico é filtrado
pela constituição, no sentido que cada vez mais as leis são interpretadas e aplicadas de acordo
com a Constituição. E estamos desenvolvendo um sentimento de constituição, uma crença na
constituição ou uma vontade de constituição como dizia Hesse. Portanto, a idéia de que a
constituição tem força normativa aliada ao desenvolvimento de uma hermenêutica
constitucional constituem aspectos do novo direito constitucional brasileiro.
Se entre nós os direitos fundamentais estão vivenciando o seu melhor momento na
história do constitucionalismo pátrio, há alguns anos atrás a situação era diferente. Eu, por
exemplo, não tive a oportunidade de estudar direitos fundamentais na graduação. Isto porque
a Constituição anterior a de 1988 era uma constituição meramente semântica e o regime
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Anotações para palestra na cidade de Lages/SC.
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militar sistematicamente violava os direitos fundamentais. Só vim a lidar com o tema no
mestrado e no doutorado. A propósito, dentre os seminários promovidos no Doutorado
lembro muito bem de um organizado pelo Prof. Silvo sobre o livro de R. Alexy Teoria dos
Direito Fundamentais, que é sem dúvida uma das obras mais relevantes atualmente sobre os
direitos fundamentais.
Mas felizmente atualmente a situação é favorável aos direitos fundamentais. Na
Faculdade em que sou Professor, os alunos estudam direitos fundamentais em pelo menos
duas disciplinas: uma disciplina chamada direitos humanos (proteção internacional dos direitos
fundamentais) e estudam também na disciplina direito constitucional (os direitos fundamentais
na Constituição de 1988).
II – AMBIGÜIDADE TERMINOLÓGICA
Feitas algumas considerações a respeito da importância dos direitos fundamentais
hodiernamente, passemos para o problema terminológico, um obstáculo para uma
compreensão clara dos direitos fundamentais.
Existe uma variedade de nomes para designar os direitos fundamentais. Direitos
individuais, direitos morais, direitos públicos subjetivos, liberdades públicas, direitos humanos,
etc. Felizmente começa a surgir um certo consenso nessa babel terminológica. Atualmente a
doutrina passou a dar preferência às expressões direitos humanos e direitos fundamentais,
embora essas expressões sejam usadas em contextos diferentes. A locução direitos humanos é
empregada para designar os direitos dos cidadãos assegurados em tratados, declarações e
convenções internacionais, ou seja, ela é empregada no contexto internacional. Já a locução
direitos fundamentais é reservada para o contexto nacional, ou seja, para designar os direitos
positivados na constituição. Assim, os direitos fundamentais são direitos constitucionais ou
direitos humanos constitucionalizados.
A nossa Constituição em vigor chancela essa nomenclatura ao estabelecer como
epígrafe ao título II a locução: dos direitos e garantias fundamentais e ao proclamar no seu art.
4º que nas relações internacionais o Brasil rege-se pelo princípio da prevalência dos direitos
humanos.
III – CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DE DIREITOS HUMANOS
Outro aspecto para uma compreensão clara dos direitos fundamentais é a questão de
seu fundamento ou fundamentos. Para esse objetivo vale mencionar o difundido conceito de
direitos fundamentais formulado pelo jurista espanhol Antonio Enrique Perez Luño:
“conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as
exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas
positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”. Assim,
segundo Perez Luño, a dignidade da pessoa humana, a liberdade e igualdade são fundamentos
dos direitos fundamentais. Nós acrescentaríamos ainda o valor da solidariedade ou da
fraternidade, uma vez que este valor fundamenta os direitos fundamentais de terceira geração
(direito a paz, ao meio ambiente equilibrado, desenvolvimento sustentável, etc).
Outra noção que ajuda na compreensão dos direitos fundamentais é a observação de
Zagrebelsky quando afirma que os direitos fundamentais são direitos que concernem ao
homem como tal, “não ao homem enquanto participa de relações jurídicas particulares com
outros homens, como por exemplos, as relações contratuais”. Assim, dessa afirmação de
Zagrebelsky podemos inferir que os direitos fundamentais estabelecem relações jurídicas que
têm no pólo passivo geralmente órgãos estatais. Ou seja, os direitos fundamentais constituem
obrigações estatais.
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IV – PLURALIDADE DE ABORDAGENS
Convém dizer também que, para uma boa compreensão do tema, os direitos
fundamentais podem ser abordados de diversas perspectivas. As principais formas de abordar
os direitos fundamentais são as perspectivas filosófica, internacional e constitucional.
Na perspectiva filosófica indaga-se sobretudo acerca da natureza e do fundamento dos
direitos fundamentais; se eles são superiores ou anteriores ao estado? Por que os homens têm
direitos e quais direitos (concepção jusnaturalista); se eles são criados e conformados pelo
Estado (concepção positivista); se eles são históricos, frutos de um consenso sobre os valores
compartilhados pela sociedade (concepção intersubjetiva).
Cumpre lembrar que a perspectiva filosófica é importante porque foi ela quem
propiciou a idéia de direitos fundamentais e formulou a reivindicação de direitos
fundamentais. E aqui nós devemos recordar que a história dos direitos fundamentais como
hoje entendidos inicia-se com as revoluções americana e francesa. Ou seja, eles constituem
uma invenção da modernidade. Os antigos desconheciam a noção de direitos humanos ou
direitos fundamentais. Na Grécia, por exemplo, citada como o berço da democracia, os
cidadãos só possuíam deveres e não direitos. O cidadão que não cumprisse seus deveres com a
cidade poderia até mesmo ser condenado à morte, como foi o caso do filósofo Sócrates.
Todavia, nós podemos dizer que a pré-história dos direitos fundamentais teve início na
própria filosofia grega. As primeiras idéias sobre direitos humanos vêm dos estóicos, que nas
suas obras já manifestavam as idéias de dignidade e igualdade. Na antiguidade ainda Cícero, o
grande orador romano, já dizia que qualquer que fosse a definição de homem, essa definição
se aplicaria a todos os homens, o que era uma prova suficiente de que não existe nenhum tipo
de diferença entre homem e homem. Já na idade média, o pensamento cristão, com a noção
de que todos os seres humanos são igualmente filhos de Deus, contribuiu também para a
criação dos direitos humanos. Porém foram principalmente as teorias de Rousseau,
Montesquieu, Locke, Hobes, dentre outros, que propiciaram, no século XVIII, o surgimento
dos direitos fundamentais, proclamados em diversas declarações, especialmente os Bills of
Rights das colônias americanas emancipadas do domínio inglês e a famosa declaração
Francesa dos direitos do homem e do cidadão de 1789.
A perspectiva internacional dos direitos fundamentais encontra-se em franca expansão
na atualidade. Ela surgiu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em
10 de dezembro de 1948 pela ONU. Depois dessa declaração nós tivemos vários pactos
internacionais e convenções sobre direitos humanos, como o Pacto de direitos civis e políticos
e o pacto de direitos econômicos, sociais e culturais, ambos de 1966. A convenção americana
dos direitos humanos, ou seja, Pacto San José da Costa Rica de 1969, etc. Hoje nós temos um
novo ramo do direito chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos (International
Human Rights Law).
A perspectiva constitucional dos direitos fundamentais trata da positivação dos direitos
humanos na constituição. Quando os direitos humanos estão expressos na Constituição eles
passam a desfrutar do status da constituição, ou seja, de lei hierarquicamente superior do
ordenamento jurídico. Essa perspectiva é estudada principalmente por meio do direito
constitucional. Portanto, uma matéria importante no âmbito do direito constitucional é o
estudo dos direitos fundamentais. Todavia, paradoxalmente e de forma incompreensível no
Brasil poucos currículos de cursos jurídicos dão a devida atenção aos estudos de direitos
fundamentais e às vezes também dão até pouca importância aos estudos da constituição em
geral. Portanto, defendo a ampliação dos estudos de direito constitucional nos cursos jurídicos
e especialmente dos direitos fundamentais, uma vez que é importante formar profissionais do
Direito conscientes de que o objetivo principal do Direito é proteger a dignidade da pessoa
humana e efetivar os direitos fundamentais.
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V – REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO
DE 1988
Gostaria agora de falar agora, dentro da perspectiva constitucional, a respeito dos
direitos fundamentais positivados na Constituição Federal em vigor.
Na Constituição vigente os direitos fundamentais estão reunidos principalmente no
título II (Dos direitos e garantias fundamentais) e no título VIII (Da ordem social).
No título II, o art. 5º trata dos direitos individuais e coletivos; os arts. 6º a 11 tratam
dos direitos sociais; e os arts.12 a 17 dispõem sobre os direitos de nacionalidade e políticos.
No título VIII estão disciplinados os direitos a educação, a saúde, a seguridade social,
dentre outros.
A Constituição Federal estabelece um regime jurídico especial aos direitos
fundamentais.
Os direitos fundamentais têm aplicação imediata, isto é, não dependem de
regulamentação por lei infraconstitucional para entrarem em vigor (art. 5º, §1º).
Os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser objeto de
reforma constitucional (art. 60, §4º, IV).
Os direitos fundamentais constituem um sistema aberto na Constituição, podendo ser
complementados por direitos constantes em tratados internacionais assinados pelo Brasil, bem
como por outros direitos extraídos do próprio texto constitucional, por meio do processo de
interpretação de suas regras e princípios (art. 5º, § 2º). Por exemplo, na minha tese de
doutorado, eu extraio das normas constitucionais que proíbem a censura e garantem a
liberdade de expressão artística, o direito fundamental à autonomia moral ou à
autodeterminação moral do cidadão brasileiro.
Há dois elementos do regime jurídico especial dos direitos fundamentais referidos pela
doutrina que não estão explicitamente no texto constitucional, no entanto podem muito bem
ser aplicados entre nós: reserva de lei e o respeito ao núcleo essencial dos direitos.
A reserva de lei significa que qualquer regulamentação aos direitos fundamentais só
poderá ser feita por meio de lei, ou seja, o Poder Executivo não pode dispor sobre os direitos
fundamentais.
O respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais significa que a lei não pode, a
pretexto de regulamentá-los, descaracterizá-los a ponto de torná-los irreconhecíveis ou de
difícil aplicação na realidade social.
VI – CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para uma adequada interpretação e aplicação dos direitos fundamentais é indispensável
notar que os direitos fundamentais consignados na Constituição Federal possuem diferenças
estruturais e cumprem distintas funções.
Os direitos individuais e coletivos (art. 5º) são geralmente direitos de defesa. Têm uma
função de defesa dos cidadãos contra arbitrariedades do Estado. Exigem em regra uma ação
negativa ou uma abstenção dos poderes públicos. Vedam a prática da tortura ou a instituição
da censura por parte do Estado. Os direitos fundamentais de defesa objetivam essencialmente
proteger a liberdade humana. São os direitos de primeira geração, proclamados pelas
declarações americana e francesa do Século XVIII.
Os direitos sociais (arts. 6º a 11 e título VIII) são os direitos de prestação social.
Exigem uma ação positiva do Estado no sentido de que este supra às necessidades materiais
básicas dos cidadãos. Bobbio considera que existem três direitos fundamentais sociais: direito
a educação, a saúde e ao trabalho. A propósito Bobbio considera que o reconhecimento de
alguns direitos sociais constitui o pressuposto para um efetivo exercício dos direitos de
liberdade. Por exemplo, um homem instruído é mais livre do que um homem inculto. Um
homem que goza boa saúde é mais livre do que um homem enfermo e um homem que tem
trabalho é mais livre do que um homem desempregado. Os direitos fundamentais sociais
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visam essencialmente proteger a igualdade humana. São os direitos de segunda geração,
proclamados pelas constituições em meados do século passado.
Os direitos políticos (arts. 14 a 17) cumprem a função de propiciar a participação de
todos na formação do político do Estado. Um dos pais fundadores da Federação norte-
americana John Madison dizia que um dos maiores perigos para a democracia era um povo
inerte.
VII – CITAÇÃO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA
Para encerrar gostaria de citar trecho do Sermão de Santo Antônio pronunciado por
Padre Antônio Viera na cidade de São Luis, capital do Estado do Maranhão, vizinho do
Estado do Piauí. Nesse Sermão Padre Antonio Vieira afirma, com ironia, que já que os
homens não queriam ouvi-lo ele pregaria para os peixes. Diz então Pe. Antonio Vieira:
“Quem olhasse ... para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e
obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotados, que havia de dizer? Poderia cuidar
que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas
em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens
tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão”.
Assim, podemos concluir que o respeito aos direitos fundamentais significa o uso da
razão pelos homens; que a efetivação dos direitos fundamentais evita que os homens se
tornem feras.
VIII – COMPREENSÃO DO TEXTO
1. Qual o significado atual dos direitos fundamentais?
2. Em que consiste a questão da ambigüidade terminológica?
3. Quais os conceitos de direitos fundamentais e de direitos humanos?
4. Em quais perspectivas é abordado o tema dos direitos fundamentais?
5. Qual o regime dos direitos fundamentais na Constituição Federal em vigor segundo
o texto?
6. Qual a classificação dos direitos fundamentais aludida pelo autor?