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Educação para Além Das Aparências

O documento discute o retrocesso nas questões políticas e sociais que afetam a educação, destacando a desintelectualização do trabalho pedagógico e a superficialidade na formação educacional. Propõe a importância da dialogicidade e da autonomia intelectual no processo de ensino-aprendizagem, criticando a mercantilização da educação e a imposição de métodos simplificados. Enfatiza a necessidade de um ensino que vá além das aparências, promovendo uma formação crítica e emancipatória.
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Educação para Além Das Aparências

O documento discute o retrocesso nas questões políticas e sociais que afetam a educação, destacando a desintelectualização do trabalho pedagógico e a superficialidade na formação educacional. Propõe a importância da dialogicidade e da autonomia intelectual no processo de ensino-aprendizagem, criticando a mercantilização da educação e a imposição de métodos simplificados. Enfatiza a necessidade de um ensino que vá além das aparências, promovendo uma formação crítica e emancipatória.
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EDUCAÇÃO PARA ALÉM DAS APARÊNCIAS

Bruno S. Friestino e Júlia Boemer

Introdução

Estamos em um momento de intenso retrocesso nas questões políticas e sociais,


que vem se aprofundando nos últimos anos e trazendo a tona de maneira muito mais
agressiva e opressiva o conservadorismo e a violência ideológica que já existiam no país
e no mundo, mas não se manifestavam de maneira tão escancarada e massiva como
agora.
No campo da educação, a ofensiva empresarial ao serviço público tem investido
em várias práticas que vem desestabilizar ainda mais o trabalho crítico que resiste à
lógica de mercado. Um dos efeitos desses ataques é o processo de desintelectualização
do trabalho pedagógico, o qual está gradualmente se aprofundando, minando a
qualidade educacional e aplicando a lógica do trabalho flexível tanto aos professores
quanto às/aos estudantes trabalhadores. Isso implica em incentivar métodos
simplificados, de rápido atendimento a um número maior de estudantes, com fórmulas
de aprendizagem superficiais e padronizadas, com tecnologias ditas inovadoras e que
supostamente irão dar mais autonomia de estudo às/aos estudantes. Ao promover uma
formação que se limita ao universo das aparências e que se restringe ao básico para que
se possa efetuar rapidamente funções de pouca complexidade e que exigem pouca
capacitação, sabemos que estas não fazem mais do que manter a desigualdade de
classes. Isto vai totalmente na contramão do nosso trabalho, que acredita em criticidade,
dialogicidade, questionamentos e em um processo mais elaborado e capacitado de
educação/trabalho, por conseguinte, acredita numa formação humana integral.
Ao defendermos o processo de “intelectualidade”, não estamos trazendo a lógica
intimidatória, excludente e elitizante que muitas vezes os estudiosos acadêmicos
propagam, mas sim o trabalho mental que exige aprofundamento, reflexão, construção
de conhecimentoe capacitação para os profissionais, e em conseqüência para os
estudantes.
Nesse sentido, este texto tem a intenção de ir contra essa maré, contra naturalizar
a opinião do senso comum como algo mais valioso que qualquer saber científico, contra
transformar a educação e a pedagogia em uma simples produção de vídeo aulas, contra
reduzir idéias construídas ao longo de muitos anos em simples frases soltas, citadas
incansavelmente em inícios e finais de reuniões e redes sociais.Para isso, nossa proposta
é levantar algumas questões que acreditamos essenciais de serem refletidas nesse
momento. Justamente para atacar essa tendência à superficialidade – que a situação está
nos obrigando – convidamos para que cada pessoa que leia essas linhas se sinta
provocada e desafiada a estender suas leituras, reflexões e debates sobre as questões
aqui pontuadas de maneira breve e resumida. Afinal, não faz sentido prática sem
reflexão, assim como reflexões sem colocá-las em prática.

Complexificação da oralidade: do senso comum à emancipação do pensamento

Mikhail Bakhtin e Paulo Freire nos ensinam sobre a importância da


dialogicidade no trabalho pedagógico, especialmente quando buscamos alcançar uma
“pedagogia da autonomia” (FREIRE, 2004). Para eles, o diálogo é mais do que um
conjunto de perguntas e respostas, são “falas” dialéticas.
Partimos do pressuposto que a oralidade é um dos pontos centrais da Educação
de Jovens e Adultos, em diversos contextos e concepções pedagógicas. Paulo Freire
com os “círculos de cultura”1 possibilitava não apenas o desenvolvimento da fala
espontânea dos/as educandos/as, mas, sobretudo, fazia desse espaço de diálogo um
meio para fomentar debates, problematizar as questões apresentadas, conscientizar
sobre o lugar que a pessoa ocupa no mundo e as relações estabelecidas numa sociedade
de classes.
A partir dessa ideia de construção de conhecimento por meio de diálogos, nos
questionamos: Como fazer para que nossas compreensões de mundo não sejam apenas
“decoradas” pelas pessoas educandas? Com base nos ensinamentos de Bakhtin (2000;
2015), entendemos a necessidade em cuidarmos para não transmitir nossos discursos
para as pessoas educandas, pois isto as colocam num lugar de passividade – o qual

1
Os Círculos de Cultura se caracterizam por espaços de diálogos e aprendizagens em que é possível
praticar a horizontalidade na relação entre educadores/as e educandos/as, valorizando os conhecimentos já
existentes e complexificando-os por meio da oralidade. A própria organização do Círculo buscar romper
com a estrutura da sala de aula e dispor as pessoas num formato em que todas possam se olhar, se
perceber, se comunicar.
historicamente já é imposto pelas instituições educativas e por muitas/os docentes – em
que só é construída uma reprodução do discurso, sem reflexão, concordância, nem
tampouco, compreensão.
Nesse mesmo sentido, Álvaro Vieira Pinto (2000, p. 84) nos alerta que a
compreensão que o ser humano constrói de si e do mundo não pode ser transferida
mecânica e autoritariamente, pois “estaria violando os direitos de liberdade de
pensamento de um ser humano”. Essa compreensão deve partir então de um método
crítico e dialético. Vale salientar que para o autor, a consciência que o ser humano
constrói sobre seu papel social pode existir sem estar alfabetizado2.
Contudo, tanto Pinto (2000) quanto Freire (2004) acreditam que esses momentos
de diálogo, de desenvolvimento da oralidade, de (re)conhecimento de mundo através da
fala e da escuta não podem ser o limite da formação humana para jovens e adultos em
processo de alfabetização. A apropriação dos códigos de leitura e escrita permitem o
desenvolvimento da intelectualidade individual, por conseguinte, possibilita a
emancipação do pensamento. Assim, a alfabetização pode ser compreendida como “um
saber para chegar a saber, para o mais saber.” (PINTO, 2000. p. 85).
Se compreendermos que a própria apreensão da leitura e da escrita já são frutos
de um processo criador da pessoa alfabetizanda, como tirar essa característica de autoria
dela? (FREIRE, 1989). Em meio ao distanciamento físico com os estudantes é que
sentimos como a falta de autonomia e de auto-organização estudantil prejudica a
aprendizagem.
Partindo desse pressuposto, acreditamos que para haver realmente o
desenvolvimento da autonomia intelectual das pessoas estudantes é necessário que as/os
professores/as desçam realmente dos pedestais de detentores de todo o conhecimento e
controladores de todas as manifestações estudantis. Possibilitar que os/as estudantes
aprendam a ser autônomos/as deveria ser um dos princípios pedagógicos que compõe o
processo ensino-aprendizagem para além dos documentos legais e dos discursos,
fazendo parte de todo o cotidiano escolar. E para isso, não basta deixar que o/a
estudante fale, opine, tampouco basta desenvolver atividades específicas para serem
realizadas individualmente e/ou sem direcionamentos. Isto é o mínimo que precisa fazer

2
Assim como Paulo Freire, utilizaremos o conceito de “alfabetização” compreendendo-o como processo
indissociado do letramento e não apenas como codificação e decodificação dos signos. Portanto, a
alfabetização no sentido pleno que envolve tanto a compreensão do mundo quanto da palavra.
parte do trabalho docente. Investir no desenvolvimento da autonomia vai além,
desestabiliza o plano concreto e rígido, questiona o que já estava definido, rompe o que
parecia indestrutível, muda a estrutura. Estamos preparadas/os para isso ou apenas até
certo ponto?
Com base nisso, compreendemos como é imprescindível não determinarmos,
nem tampouco, limitarmos os conhecimentos que as pessoas educandas podem aprender
no espaço escolar. Se defendemos que o processo ensino-aprendizagem não pode
acontecer a partir de relações autoritárias, descontextualizadas, sem valorizar tanto o
conhecimento que já existe quanto os interesses pessoais, como podemos definir o que e
como vai ser aprendido? Se as pessoas educandas mostram necessidades reais de
aprendizagem, como podemos ignorar por não se encaixar numa ou noutra proposta
pedagógica? Será que nossa prática condiz com o que defendemos em relação a
formação humana ou se esbarra em questões metodológicas que (de)formam e
(de)limitam a aprendizagem? Tais questões não significam que não acreditemos na
importância do método e da metodologia, mas que questionamos o engessamento que
estes podem desencadear no processo formativo.
Contudo, sabemos que a questão do desenvolvimento da autonomia, não se
restringe à prática docente. A própria organização da escola capitalista dificulta e, por
vezes, impossibilita a formação das múltiplas habilidades, capacidades e dimensões
humanas. Quando pensamos no universo adulto isto se evidencia mais fortemente para
além do espaço escolar por conta das relações de trabalho. À classe trabalhadora: o
silêncio, a passividade, a submissão, a ignorância. Como lutar contra um sistema que há
muitas décadas forma os seres humanos nessa perspectiva? Quais ações pedagógicas e
organizativas podemos realizar para contribuir com a desconstrução dessas
personalidades submissas e possibilitar o direito à indignação, à revolta, à contestação?
Pensar nisso, significa que não podemos, por exemplo, querer que automática e
autoritariamente o estudante desconstrua a visão de escola como o único lugar de
formação humana. A ideia ingênua de “quero estudar para ser alguém na vida” precisa
ser superada, por meio das críticas que reconheçam as limitações que esse espaço
educativo apresenta numa sociedade de classes, e não apenas pela reprodução do
discurso docente “messiânico e libertador retido nas mãos do mestre”.
Entendemos que a linguagem é um cenário de lutas ideológicas que, conforme o
tempo e o espaço, carrega conteúdos e sentidos determinados hegemonicamente. É
nesse momento que nos encontramos, na contradição entre a autonomia do pensamento
e a linguagem do senso comum, produzida essencialmente para a classe trabalhadora,
mesmo que todas classes tenham seus sensos comuns.
Nesse período atual, a individualidade das pessoas e suas crenças tem se
misturado muito com as relações profissionais e educacionais, pois o trabalho – que
antes era coletivo, incluindo o espaço em comum da escola – agora tem as interações
feitas quase somente com as pessoas estando no espaço privado de suas casas, o que às
vezes faz com que muitas não usem o “filtro social” que antes era um freio para
algumas falas ou atitudes que pudessem causar incômodos ou até desrespeito. Parece
que, “já que o trabalho está invadindo meu espaço pessoal, não preciso mais me
relacionar de maneira tão moderada quanto a relação direta presencial exigia”, na
maioria dos casos. E isso está aprofundando um mecanismo que já precisávamos lidar
bastante, mesmo antes, que são os sensos comuns e uma oralidade que se foca apenas
em opiniões construídas a partir de informações sem filtro de veracidade ou de ética.
O processo pedagógico que fazemos, se inicia com a socialização dos pontos de
vista pessoais de cada um/uma e muitas vezes se restringe a acolher essas opiniões, para
não correr o risco de afetar nosso vínculo com os/as estudantes ou quando muito tenta-
se usar a opinião de maneira didática, pedindo pesquisas de significado de palavras e
ideias. Este é realmente o início do processo de aprendizagem, mas a parte mais
importante que seria repensar preconceitos e atitudes, esbarra no temor de se contrariar
as opiniões. Conhecimento cotidiano é o ponto de partida, mas não pode ser o ponto de
chegada, já dizia Demerval Saviani (2011).
Ao mesmo tempo em que entendemos a legitimidade do senso comum enquanto
instrumento de comunicação, compreendemos também a característica – quase
predominantemente – não-crítica que ele representa, no sentido de não ter
aprofundamento e comprovação dos fatos. Informações tidas como verdade absoluta,
sem contestação, nem averiguação, precisam ser aprofundadas e problematizadas no
âmbito escolar. Partimos dos interesses das pessoas educandas para conseguir sair da
aparência e alcançar a essência dos fenômenos. Grosso modo, podemos dizer que a
aparência é determinada por aquilo que acontece e a essência, pelas causas do
acontecimento e tudo o que o envolve (KOSIK, 2002).
O senso comum é construído a partir de uma ideologia e disseminado,
especialmente, pelos meios de comunicação dominante. Assim, ao defendermos uma
educação emancipatória precisamos desconstruí-lo e permitir que as pessoas educandas
construam seu próprio pensamento, sua visão de mundo e suas reflexões com base em
fatos aprofundados. Ou seja, tenham autonomia em relação a sua consciência. Como
nos ensina Freire (1989) a leitura do mundo não apenas precede a leitura da palavra,
mas representa possibilidade de transformação social por meio de práticas conscientes.
Como educadoras/es cabe a nós não apenas “mostrar a face visível da lua, isto é, reiterar
o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os aspectos essenciais das
relações sociais que se ocultam sob os fenômenos que se mostram à nossa percepção
imediata”.(SAVIANI, 2012. p. 03).
Revisar o vocabulário, repensar e recriar falas, é bastante válido e necessário,
mas isso precisa motivar mudanças de atitude, afinal não adianta falar diferente e agir
igual. Então, que isso seja o início de um processo real de desconstrução de
preconceitos, de falas discriminatórias e de opiniões superficiais, elevando assim a
oralidade a um nível pedagógico que promova aprendizagens e vá além da reprodução
de informações. Assim, essa oralidade que carrega tantas histórias e saberes, se
conscientizará de que compartilha e garante a continuidade de conhecimentos, tais como
as tradições afro-brasileiras e indígenas nos oferecem como herança cultural. Afinal,
sabemos que a grande maioria dos nossos estudantes leva consigo essa ancestralidade.
É nesse contexto de contradições e desafios que nos propusemos a refletir
coletivamente sobre possíveis ações pedagógicas capazes de contribuir com a
autonomia intelectual dos/as estudantes, por meio de indagações críticas e da
complexificação do conhecimento. Olhar para além das aparências e compreender a
essência dos fenômenos, precisa fazer parte tanto de nossa profissionalização quanto de
nossa ação docente. Daí a importância dos processos formativos e as pessoas envolvidas
serem constantemente avaliadas e auto-avaliadas.
Com base nisso, apresentamos breves reflexões sobre o que está por trás da
educação pública em tempos de pandemia.

Desmonte da educação pública e desintelectualização docente

Pensando nessa desconstrução do senso comum, avaliamos o discurso acrítico


que afirma que a tecnologia movimenta o tempo histórico. Entendemos que a
tecnologia, bem como toda construção cultural, não é neutra, assim não podemos
classificá-la como boa ou ruim, mas sim compreender quais interações são possíveis a
partir dos diferentes usos que podem ser feito dela.
Alguns estudiosos atuais afirmam que nesse momento de pandemia,
erroneamente, está sendo disseminado que o grande desafio agora é a apropriação dos
artefatos tecnológicos, especialmente por parte dos/as profissionais da educação. Com
base na fala dos professores Roberto Leher e Ricardo Lamosa (2020)3 entendemos que
esse movimento ao invés de ser “natural” – como muitos acreditam – é um movimento
totalmente articulado que faz parte do projeto de desmonte da educação pública e da
desintelectualização docente, no qual a individualização e a invisibilidade dos/as
trabalhadores/as da educação está sendo intensificado. Dentro desse processo ocorre não
apenas a expropriação das pessoas trabalhadoras, mas também do próprio saber.
De acordo com Leher e Lamosa (2020), esse processo de mercantilização e
terceirização da educação, mesmo que as vezes não sejam explícitas, impedem o
desenvolvimento das efetivas relações pedagógicas e isso é um grande golpe na
profissão docente, pois além de enfraquecer a relação docente/discente, grandes projetos
neoliberais como “Todos Pela Educação” e “Escola Sem Partido” intensificam a
precarização da escola pública e também a desigualdade trabalhista.
Vale lembrarmos que é o Banco Mundial, por meio do Todos pela Educação,
que está definindo as políticas educacionais em tempos de pandemia. Esse trabalho que
vem sendo realizado, independente das diferentes denominações que está recebendo
(ensino remoto, ensino híbrido, tele trabalho, entre outros) favorece as corporações
privadas, as quais dominam as tecnologias de informações e as empresas que trabalham
com vendas de produtos, as quais são chamadas de tecnologias educacionais. Os
pacotes de gestão e de ensino entram nas escolas de forma abrupta com a chegada da
pandemia.
Esse projeto que começa no Brasil no início dos anos 2000 e retoma com força
após 2016, segue o mesmo modelo de reforma que foi aplicado no ensino público dos
EUA nos anos 1990, com a lei neoliberal do No Child Left Behind (conhecido no Brasil
como “nenhum aluno a menos”), o qual apresentou resultados catastróficos à educação
em um curto período de tempo naquele país. Esse movimento empresarial aplica a
lógica de responsabilização/culpabilização dos/as educadores/as pelos resultados
(accountability), padronização de currículos (Parâmetros Curriculares Nacionais- PCN,
Base Nacional Comum Curricular- BNCC), avaliações ranqueadoras de estudantes,
instituições e profissionais (Sistema de Avaliação da Educação Básica- SAEB, Exame

3
Falas realizadas durante a live “A intensificação e a desintelectualização do trabalho docente no
contexto da pandemia de Covid-19” no dia 01 de julho de 2020.
Nacional de Desempenho dos Estudantes- ENADE), e agora a última instância é a
infiltração empresarial via tecnologias e capacitação para atendimento não presencial.
(FREITAS, 2015; 2018).
Nessa lógica, o papel docente é retirado do/a professor/a, uma vez que este/a
transforma-se em tutor/a, mediador/a e entregador/a do conhecimento digital (nos
termos de Lamosa: “ifood da educação”). Vale salientar que esse conhecimento não é
mais produzido dentro da escola, o que fomenta a desintelectualização da própria
atividade escolar, já que não há mais espaço para elaboração e criação dentro da
instituição educacional.
Assim como os professores Leher e Lamosa (2020), compreendemos que o
problema não está nos artefatos tecnológicos, mas sim em seu uso. Precisamos,
enquanto profissionais, nos apropriarmos dessas habilidades e conhecimentos, mas sem
deixar que a escola se transforme em mercado consumidor enquanto nós consumimos
essa tecnologia que aparentemente é neutra, mas carrega em sua essência os interesses
privados das corporações.
Nesse sentido, se acreditamos que nossa tarefa é possibilitar a autonomia
intelectual dos estudantes, então precisamos lutar pela autonomia do trabalho docente e
pela retomada da sua intelectualização. Questionar as formas de (re)produção do
trabalho à distância é o início desse processo. Não podemos deixar as amarras do capital
nos separarem de nossos objetivos formativos, por isso a necessidade de
compreendermos os processos avaliativos que envolvem a educação, por conseguinte,
nossa formação.

Avaliação e inclusão: avaliar o que e incluir onde?

Fazemos parte de uma educação que assume a proposta de ser progressista,


popular, engajada e com caráter de construção histórico-cultural e coletiva. É
fundamental nessa ideologia, submeter nossa prática a uma constante reavaliação,
autocrítica sem pudores e a uma aguda franqueza, que nos permita e nos faça estar
sempre conscientes e alertas com relação à coerência entre discurso e prática. É isso que
significa ter voz ativa.
É muito fácil e comum cair nas armadilhas da romantização da educação, que
acaba transformando as práticas em algo muito genérico, baseada em frases feitas com
pouco aprofundamento teórico, o que impossibilita a construção de uma estrutura sólida
e segura de sua prática. Quando entramos nesse tipo de fazer, é inevitável que acabemos
evitando de tocar realmente nas feridas, olhar criticamente para nós mesmas/os,
identificar, assumir e se dispor a trabalhar nas fraquezas, dificuldades, inconsistências e
fragilidades das nossa ações e intervenções. Assim, é muito comum circular pelos
extremos: por um lado, sempre transitando pelas questões que atingem toda sociedade,
mas deixando carente de atenção sua aplicação na prática cotidiana, que deveria propor
ações diretas e pontuais; por outro, quando se foca apenas nas avaliações pontuais de
casos ocorridos na experiência de cada pessoa, deixa-se de debater as idéias envolvidas
na questão e no contexto mais amplo, o que também provoca uma prática sem propostas
de ações coletivas.
Nesse sentido é relevante pensarmos um pouco no que significa avaliação e
inclusão, especialmente emnosso contexto escolar de EJA enquanto espaço de
Educação Popular.
Faça a si mesma/o estas perguntas e observe também nas/os profissionais
próximas/os à você:
 Como você lida com alguém que fala de um assunto que você sabe
bastante?
 Como você lida com alguém que tem uma opinião e um ponto de vista
que você discorda muito?
 Como você lida com alguém que critica algo que você acredita
intensamente?
 Como você põe em prática os princípios e métodos educacionais e éticos
em que acredita?
Sem intenção de acusação, estas perguntas nos ajudam a refletir sobre nossa
postura ética, mais do que como educadores/as apenas. Uma interessante reflexão feita
pelo professor Luiz Carlos de Freitas (2010) nos chama atenção para o caráter
meritocrático, que mesmo as escolas progressistas se utilizam e se fundam,
historicamente. Em uma conversa com o professor Miguel Arroyo, Freitas descreve:

[...]ao definirmos o outro como ‘excluído a ser incluído por nós’,


terminávamos vendo ao futuro incluído como um ser caracterizado
pela “negatividade”, desprovido de cultura, história, personalidade e
de território...Ao vermos os que deverão ser incluídos como
“marginalizados” os vemos como estando “na outra margem” os quais
para serem incluídos precisam cruzar “uma ponte” para vir ao nosso
território e, então, serem considerados incluídos, não marginalizados.
Alertava ainda, para os mecanismos de avaliação neste contexto –
uma espécie de pedágio para transitar pela ponte da inclusão.”
(FREITAS,2010, p. 90).

Quando citamos inclusão, não se trata de considerar apenas o acesso a direitos


básicos e transitar pelo que é chamado genericamente de cidadania, mas sim com
questões que vão desde a realidade cultural até questões de condições de trabalho.
Isso se aprofunda quando pensamos na lógica de comparação, a qual, ainda que
inconscientemente, a escola acaba em várias situações incentivando e utilizando:
competição, premiação, valorização apenas daquele que se destaca, do que é o primeiro,
do que é o mais avançado em algo... Essas questões surgem implicitamente, em muitos
momentos da nossa educação, mesmo que não se perceba nem se tenha deliberadamente
a intenção dessas práticas. E isso não nos deve trazer culpa, mas sim a consciência que
fazemos parte da escola capitalista, a qual não se propõe a formar construtores de um
novo mundo, mas preocupa-se em produzir a “inclusão” e a “conformidade” ao mundo
existente – o mundo do consumo e da desigualdade social (KRUPSKAYA, 2017). Um
mundo, como diz Bauman (2001) que não se identifica mais pela “carteira de trabalho
assinada”, como no passado (já que o trabalho está em parte inexistente ou num nível de
precarização em que não há a estabilidade da carteira assinada), mas que se identifica
pelo “cartão de crédito” e pela sua fugacidade nas relações, onde a obsolescência é um
mecanismo de alimentação do eterno consumo (seja em relação às mercadorias, seja em
relação às pessoas).
A proposta e o alerta aqui é que possamos rever e repensar não só a relação entre
as pessoas que compõem a nossa comunidade escolar, mas também que realmente seja
respeitada de maneira horizontal as realidades dos diferentes grupos que as integram.
Pessoas estas que erroneamente nomeamos “sujeitos”, já que todas elas são pessoas
pelas quais estamos lutando para que não sejam sujeitadas à violência dessa “inclusão”
na desigualdade, que já estão inseridas. Incluir no consumo, no trabalho exploratório, no
acesso a cultura burguesa defendida pela classe média como supostamente
superior? Esse questionamento não é uma questão simplesmente ideológica ou política,
mas também um princípio ético da Educação Popular.
Nessa auto-avaliação estrutural de escola que estamos buscando fazer, é
importante lembrarmos o lugar em que estamos e que mesmo que continuemos lutando
contra, nossa escola reafirma a estrutura de classes sociais, pois ainda é um espaço de
reprodução da ética, cultura e hábitos impostos pela classe média, que por sua vez,
assume e representa os ideais da burguesia.
Bell hooks (2017) nos fala sobre esse assunto de maneira bastante profunda e
que demonstra esse mecanismo ao relatar o choque que a atingiu quando acessou a
universidade e sentiu que enquanto mulher, negra e pobre, a discriminação mais
imediata, profunda e institucional que pôde notar foi a que atingia todas/os estudantes
da classe trabalhadora. Afinal todo padrão comportamental e intelectual exigido e
praticado, inclusive nas escolas ditas politizadas, acaba por voltar a se apegar na lógica
de hierarquias, tanto de conhecimento, como na prioridade das falas e no peso
diferenciado, por vezes ilusório, das decisões ditas “coletivas”. Ela cita vários
exemplos, desde os cotidianos (quase imperceptíveis), quanto mecanismos e atitudes
mais profundas e estruturais. Algumas das questões que a autora aponta são: A
imposição violenta do silêncio como algo sagrado, contrastando com a alegria
barulhenta e efusiva dos debates que a cultura popular tem; o silenciamento de pessoas
que são consideradas com pouco a contribuir e a falta de interesse de professores/as
nessas pessoas; a falta de aceitação à discordâncias quando se está questionando algum
“cânone” do conhecimento (quase sempre algum homem branco).
É muitíssimo interessante quando ela cita sua relação com Paulo Freire, em um
capítulo todo dedicado a essa reflexão. Hooks (2017) relata que mesmo com todo
universo de ideias transformadoras de sua obra, ela tinha críticas quanto ao caráter
sexista de Freire nos seus escritos iniciais. Quando teve a oportunidade de encontrar o
consagrado educador numa ida dele aos EUA, os organizadores, primeiramente,
buscaram afastá-la do evento e depois tentaram silenciá-la quando quis argumentar para
expor seus pontos de vista. O próprio Paulo Freire interviu para que ela tivesse a
oportunidade de dialogar. Após suas considerações, ele humildemente reconheceu as
críticas e se comprometeu a tentar promover mudanças na sua maneira de posicionar
com relação às lutas femininas e realmente incorporou em seus escritos uma nova forma
de lidar com as questões de gênero.
Freire tem um outro exemplo de situação que ilustra bem essa postura de bom
senso e coerência com relação às críticas. Ele não fez côro ao pensamento tão difundido
de desvalorização do legado que a pedagogia dos educadores da Escola Nova
desenvolveram desde os inícios do século XX. Muitos educadores engajados
politicamente diminuem a importância e criticam severamente a falta de preocupação
dos educadores dessa Escola em promover mudanças e transformações sociais. O que
não deixa de ser verdade, porém, como deixar de lado todos os avanços pedagógicos
que deram a base a muito do que utilizamos hoje, idealizados por Dewey, Montessori,
Piaget, Claparède e outros? Essas bases serviram de ponto de partida para Escolas
ultrapolitizadas como a soviética e a própria Freiriana, que soube reconhecer os pontos
positivos e utilizá-los como ferramentas para agregar à sua proposta.(GADOTTI,1999).
Isso é um chamado para que se repense nossa relação com o conhecimento, com
a educação e também sobre qual é a finalidade da educação que fazemos e queremos. E
isso tudo perpassa pela maneira que pensamos em avaliação num sentido mais amplo,
pois nos permite questionar quais as intenções e práticas das nossas avaliações, como
também refletir sobre os aspectos instrumentais que orientam nosso trabalho, seja
oficialmente, como instituição, seja nas nossas relações diárias com nossos estudantes.
As críticas radicais de alguns pensadores como Newton Duarte (2010), mesmo
que as vezes generalizem qualquer tipo de ação progressista, considerando que todas
pedagogias modernas que negam a pedagogia tradicional agem em favor do
neoliberalismo, no fundo tem razão quando apontam que muitas pecam em não
promover reais mudanças sociais.Apenas como um exemplo: a prática recorrente de se
investir em que as mudanças nas relações de trabalho dos/as educandos/as seja baseada
quase sempre em alcançar profissões mais valorizadas, ao invés de também promover
uma luta para que as profissões de base sejam ressignificadas e alavancadas ao mesmo
status de importância e valorização das profissões elitizadas; ou, ainda para
exemplificar, a constante reprodução que existe, de um espaço escolar que exige um
conjunto de padrões de comportamento e de conhecimentos (mesmo que não se assuma)
que precisam ser validados e aceitáveis por essa mesma classe média, representada
pelas equipes de profissionais escolares. Isso não se trata de tirar a importância do/a
professor/a e sua capacidade de mediação, nem implica em negar todo conhecimento
especializado ou negar acesso à toda construção científica desenvolvida pela
humanidade. Mas sim, abolir essa prática de eleger padrões de conhecimento aceitáveis
ou não de acordo com nosso ponto de vista pessoal que no fundo representa essa
estrutura social. O que queremos dizer com isso é que precisamos evitar essa
polarização que fique nos extremos, ou seja, não tornemos o conhecimento como uma
barreira excludente e até inatingível para muitas pessoas; mas também que não
deixemos as pessoas simplesmente como estão, aceitando uma imobilidade intelectual e
social, como se assim estivéssemos respeitando suas realidades.
Então, em um modelo de avaliação que materialize essa intenção toda que
descrevemos, é necessário priorizar que a prática educacional garanta que haja
aprendizagem e também responsabilize o/a professor/a em promover essa prática de
maneira efetiva e responsável. Para se pensar em desenvolvimento intelectual e
consequentemente humano e social, é extremamente importante que a educação seja
engajada em criar uma comunidade de aprendizagem, que responsabilize todas as
pessoas envolvidas nessa tarefa de construir juntos o fazer educativo. Dessa maneira, as
características individuais de cada pessoa se transformam em mais que apenas
peculiaridades de cada um, mas em um grupo em que seja inevitável o respeito a toda
diversidade de raça, gênero, idade, ideologia, experiência e capacidade. Assim, essas
características serão valorizadas como potencialidades de contribuição de diferentes
pontos de vista para essa comunidade, a qual tem como objetivo principal aprender em
coletivo e atacar as desigualdades de condições de vida. É nesse ponto que a classe
social entra como algo relevante na definição do ambiente escolar, pois falando de
Educação Popular, é inevitável que o espaço social da comunidade se reproduza nesse
espaço proletário que é a escola pública.

Reflexões finais

Acreditamos que a Educação de Jovens e Adultos de Florianópolis preocupa-se


com a formação integral do ser humano, assim, propõe-se a trabalhar numa perspectiva
que não só respeita os saberes das pessoas educandas, mas que se compromete em
complexificá-los, buscando desenvolver autonomia intelectual através do trabalho
dialógico, coletivo, reflexivo, auto-avaliativo. Desta forma, compreendemos a
necessidade de compartilhar essa proposta pedagógica e aprofundar seu estudo não
apenas entre os docentes atuantes, mas entre todas/os que são comprometidos com uma
educação emancipatória. Para além da concepção político-pedagógica da EJA, as
questões metodológicas e, especialmente, os desafios desse trabalho no momento atual
precisam ser socializados.
Sabemos que o “princípio da leitura” é o que fundamenta a alfabetização dos
jovens e adultos, mas esse termo é muito amplo e permite várias interpretações
metodológicas. Diante disso, vemos como essencial para a continuidade e para o avanço
da proposta pedagógica, a produção e socialização de materiais que reflitam essa
prática.
José Saramago nos ensina que “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes
acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa.”
O registro é a memória do vivido, então que deixemos essa experiência atual
compartilhada, não apenas para estar registrada, mas sobretudo, para ser avaliada,
refletida, ampliada e avançada coletivamente.
Ao finalizar este texto, identificamos limites e potencialidades tanto em relação
ao momento atual, quanto ao trabalho docente e a educação pública. As contradições
que fazem parte de uma sociedade capitalista se intensificam nesse tempo singular no
qual estamos vivendo, afetando a vida em suas diversas dimensões.
Podemos imaginar os impactos que a pandemia trará na educação, sobretudo, na
educação escolar. O que já existe, sob o peso do sucateamento, só continuará por uma
urgente resistência. Esta, por sua vez, está nesse cotidiano virtual e midiático que
engendra nosso atual trabalho pedagógico. Que a distância física, a montanha-russa de
emoções, as dores e cansaços que este tempo está nos impondo não nos faça desprender
de nossos objetivos e valores formativos. Sobretudo, que a recusa em fazer parte do
circo empresarial não seja vista como incapacidade profissional, mas sim como
desobediência à essa (des)ordem e (de)formação humana.
Freitas (2020) denomina esse momento como “Pandemia meritocrática”, em
que a segregação social se intensifica e as desigualdades sociais são mascaradas como
“desigualdades de mérito”. Há meritocracia até para permanecermos vivos. Nossas/os
estudantes são trabalhadoras/es. Estão trabalhando e lutando diariamente para se
manterem vivos. Este é um dado que nenhuma proposta educacional atualmente se
preocupa. Este é um dado que não podemos esquecer!
REFERÊNCIAS

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