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Textos Básicos de Ética - de Platão À Foucault

Santo Agostinho, influenciado pelo platonismo, argumenta que o Mal é a ausência do Bem e não uma substância criada por Deus, que é a Suprema Bondade. Ele discute a liberdade humana e o livre-arbítrio, afirmando que, embora a natureza humana seja marcada pelo pecado original, os indivíduos são responsáveis por suas escolhas éticas. A obra 'Confissões' reflete sobre sua jornada pessoal e a resolução da questão do Mal após sua conversão ao cristianismo.

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Textos Básicos de Ética - de Platão À Foucault

Santo Agostinho, influenciado pelo platonismo, argumenta que o Mal é a ausência do Bem e não uma substância criada por Deus, que é a Suprema Bondade. Ele discute a liberdade humana e o livre-arbítrio, afirmando que, embora a natureza humana seja marcada pelo pecado original, os indivíduos são responsáveis por suas escolhas éticas. A obra 'Confissões' reflete sobre sua jornada pessoal e a resolução da questão do Mal após sua conversão ao cristianismo.

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importância para a época de Agostinho.

Se o Deus criador é o Ser


Perfeito e possui entre os seus atributos a Suprema Bondade,
SANTO AGOSTINHO identi cada de certa maneira com a Forma do Bem platônica (ver
p.31-2 deste livro), como é possível a existência do Mal? Teria o
Deus sumamente bom criado o Mal? A doutrina maniqueístaa, muito
forte naquele período, defendia a existência de dois princípios

S
equivalentes, o Bem e o Mal, em luta permanente, com uma
anto Agostinho (354-430) representa na tradição ocidental a
tendência de identi cação de ambos com Deus e o Demônio,
primeira grande síntese entre a loso a grega, em especial o
respectivamente. Santo Agostinho, inspirado em Platão, defende que
platonismo, e o cristianismo. Marcou profundamente o
só o Bem existe, sendo o Mal apenas a ausência, ou privação, do
desenvolvimento da loso a na Idade Média e in uenciou também
Bem. Deus, o Ser Perfeito, é sumamente Bom, mas os seres criados,
o pensamento losó co do início da modernidade (séc. XVII).
inferiores na ordem do Ser, são imperfeitos e nitos, perecíveis. Daí
A ética de santo Agostinho resulta de uma releitura das principais se origina o Mal como falha, imperfeição. Esta é a solução
teorias éticas de origem grega e romana, destacando-se o estoicismo ontológica, e também teológica, para o problema da existência ou
do lósofo romano Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), cujo diálogo De vita da realidade do Mal.
beata (Sobre a vida feliz) in uenciou seu texto De beata vita (Sobre a
A segunda grande questão está relacionada à primeira e diz
vida feliz), e o Hortensius, de Cícero (106-43 a.C.), sobre a nalidade
respeito à liberdade humana. Se a natureza humana é marcada pelo
da loso a, que, segundo o testemunho do próprio Agostinho,
pecado original, a imperfeição originada na fraqueza de Adão, e faz
marcou seu interesse pela loso a. Mas é o platonismo, sobretudo,
com que o ser humano esteja sujeito à tentação e aja contrariamente
discutido à luz da doutrina cristã, que constitui o pano de fundo
à lei moral, então haveria um determinismo que tornaria inevitável
losó co do seu pensamento.
o pecado e, por conseguinte, a ação antiética. Paradoxalmente, os
As principais questões éticas que santo Agostinho discute são, indivíduos não seriam, em última análise, responsáveis por seus
portanto, herdadas da tradição grega e tratadas com base nos atos, já que são levados ao pecado pela própria falha de sua
ensinamentos do cristianismo. O problema da natureza humana e do natureza. Neste sentido, não teriam o domínio de suas ações, pois
caráter inato da virtude, a origem do Mal, o conceito de felicidade, a suas atitudes seriam determinadas por esta falha. O ser humano é,
liberdade e a possibilidade de agir de forma ética. A doutrina cristã assim, compelido a agir contrariamente à ética. Se sua ação é
fornece as chaves para a solução dessas questões: a origem da determinada e ele é compelido, então não tem escolha ou liberdade
virtude na natureza humana criada por Deus, a queda e o pecado e, portanto, não estaria verdadeiramente pecando. O livre-arbítrio,
original como explicações das falhas humanas, a graça divina como ou liberdade individual, é, segundo santo Agostinho, a característica
possibilidade de redenção e alcance da felicidade na vida eterna, e o do ser humano que o torna responsável por suas escolhas e decisões.
livre-arbítrio ou liberdade individual concedido ao ser humano por Por isso, pode-se agir de forma ética ou não. O pecado, ou o mal
Deus, que torna os indivíduos responsáveis por seus atos. moral, resulta assim de uma escolha. A possibilidade de escolher nos
Dentre as questões centrais da ética agostiniana, que marcam as é dada por Deus para que cada um seja responsável por seus atos,
principais doutrinas éticas na tradição cristã até hoje, selecionamos sejam eles errados ou corretos.
duas. A primeira é o problema da origem do Mal, de grande

O LIVRE-ARBÍTRIO
A origem do livre-arbítrio
EVÓDIO: Explica-me, se possível, por que Deus concedeu ao
homem o livre-arbítrio, uma vez que com certeza o homem não
O diálogo sobre o livre-arbítrio (De libero arbitrio) foi poderia pecar se não o tivesse recebido.
escrito por santo Agostinho entre 388, logo após sua AGOSTINHO: Então já tens certeza que Deus concedeu ao homem esta
dádiva, que segundo tua suposição não lhe deveria ter sido dada.
conversão, e 395, após retornar a Tagaste, sua cidade
EVÓDIO: É o que compreendi do livro anterior. Possuímos o livre-
natal, no norte da África. A temática central é o arbítrio e por isso pecamos.
problema do mal moral e da liberdade de escolha, o AGOSTINHO: Lembro-me também de termos chegado a essa conclusão.
livre-arbítrio. Santo Agostinho rejeita o determinismo e Mas agora pergunto o seguinte: como sabes que foi Deus que nos
concedeu essa dádiva que certamente possuímos e por meio da qual
defende a liberdade humana, resultado da vontade livre. pecamos?
O pecado resultaria então da submissão da razão às EVÓDIO: Creio que só pode ter sido, pois Ele nos criou e é Dele que
paixões (Livro I, Cap. 3). recebemos a punição ou a recompensa que merecemos quando
pecamos ou agimos bem.
Essa obra teve grande in uência no desenvolvimento
AGOSTINHO: Mas o que quero saber é se compreendes com clareza esse
da loso a cristã e da teologia moral. No início da último ponto, ou se aceitas o que é dito devido à autoridade de
Reforma houve, inclusive, uma controvérsia entre quem o a rma, mesmo sem compreenderes bem.
Erasmo de Roterdam, que publicou em 1524 um texto EVÉVODIO: Na verdade devo admitir que de início aceitei-o devido à
autoridade. Mas nada poderia ser mais verdadeiro do que as
intitulado De libero arbitrio, tal como o de santo a rmações de que tudo o que é bom provém de Deus e de que tudo
Agostinho, e Martinho Lutero, que respondeu com De o que é justo é bom. Ora, nada é mais justo do que os pecadores
serem punidos e os que agem bem serem recompensados. Daí
servo arbitrio, de 1525.
concluo que é Deus que dá o infortúnio aos pecadores e a felicidade
Nas passagens que se seguem, respectivamente os àqueles que são corretos.
Capítulos 1 e 20 do Livro II desse diálogo, santo AGOSTINHO: Nada tenho contra isso. Mas apresento-te um outro ponto:
como sabes que nossa existência provém de Deus? Não é isso que
Agostinho discute com seu amigo Evódio por que Deus acabas de dizer, mas sim que Deus nos dá o que merecemos, seja a
nos teria dado a liberdade de pecar. punição ou a recompensa.
EVÓDIO: Isso me parece evidente, pois Deus certamente pune os Quando Deus pune o pecador, não te parece que lhe diz o
pecadores, já que toda justiça procede Dele. Ora, do mesmo modo seguinte: “Estou te punindo porque não usaste de teu livre-arbítrio
que é característica da bondade fazer o bem a pessoas estranhas, para fazer aquilo para o que eu o concedi a ti”? Ou seja, para agires
não seria característico da justiça punir a quem não merecesse. É corretamente. Entretanto, se o homem não fosse dotado de livre-
assim evidente que estamos incluídos em Seu seio, não só porque arbítrio, não poderia existir esse bem que consiste na realização da
Ele nos deu Seus dons, mas porque nos pune de maneira justa. Além justiça através da condenação dos pecados e da premiação da ação
disso, conforme a rmei antes e tu concordaste, todo bem provém de correta. A conduta de um homem não poderia ser caracterizada nem
Deus, o que nos faz entender que também o homem provém de como correta nem como um pecado, não fosse pelo livre-arbítrio. Da
Deus. O próprio ser humano, na medida em que é homem, é bom, mesma maneira, tanto a punição quanto a recompensa seriam
uma vez que tem a possibilidade, se quiser, de agir corretamente. injustas se o homem não tivesse o livre-arbítrio. É preciso que a
AGOSTINHO: Se realmente é assim, a questão que propões está resolvida. justiça esteja presente na punição e também na recompensa, porque
este é um bem que vem de Deus. Concluo, portanto, que era
Se é verdade que o homem em si é bom mas não poderia agir bem
exceto por querer, seria preciso que tivesse vontade livre para que
necessário Deus conceder ao homem o livre-arbítrio.
pudesse agir desse modo. De fato, não é porque o homem pode usar
a vontade livre para pecar que se deve supor que Deus a concedeu
para isso. Há, portanto, uma razão pela qual Deus deu ao homem
esta característica, pois sem ela não poderia viver e agir
corretamente. Pode-se compreender, então, que ela foi concedida ao
homem para esse m, considerando-se que se um homem a usar
para pecar recairão sobre ele as punições divinas. Ora, isso seria
O LIVRE-ARBÍTRIO
injusto se a vontade livre tivesse sido dada ao homem não apenas O livre-arbítrio e o problema do Mal
para agir corretamente, mas também para pecar. Na verdade, por
que deveria ser punido aquele que usasse da sua vontade para o m
para o qual ela lhe foi dada?
Perguntando se o livre-arbítrio vem de Deus, conclui que
sim, sendo que quando se age mal é porque se fez a
escolha errada. Santo Agostinho procura assim dar conta
da relação entre a natureza humana criada por Deus, a
vontade livre que Deus deu ao homem e a possibilidade
de o homem escolher entre fazer o Bem e o Mal. Sem a
vontade livre o ser humano não seria responsável por
seus atos.

um defeito, e todo defeito originando-se do não-ser, poderíamos


sem dúvida a rmar que não vem de Deus.
Contudo, se este defeito é voluntário, está sujeito à nossa
A GOSTINHO Tu poderias me perguntar então: se a vontade vontade. Se tiveres receio dele, não o desejarás, e se não o
afasta-se do Bem imutável em direção a um Bem mutável, de quiseres, ele não existirá. A maior segurança consistiria em
onde provém esse impulso de mudar? É claro que essa mudança levarmos uma vida em que nada acontecesse senão o que
é má, mesmo que o livre-arbítrio, sem o qual não se pode viver, desejássemos. Mas aquele que cai por responsabilidade própria,
deva ser incluído entre aquilo que é bom. Essa mudança que pode também voltar a erguer-se da mesma forma.
nos afasta de Deus, nosso Senhor, consiste sem dúvida no Isso acontece porque do céu Deus nos estende a Sua mão
pecado. Mas podemos por isso considerar Deus o autor do direita, que é Cristo. Devemos pegá-la com fé rme, esperando
pecado? Certamente não! Sendo assim, essa mudança não se essa ajuda com toda a con ança e esperança, desejando-a com
originaria de Deus. Mas qual a origem dela? Talvez eu o ardoroso amor.
entristeça ao dizer que não sei, mas a rmo a verdade, já que Mas se crês que ainda falta algo a investigar de modo mais
não se pode saber o que não é. Deves contentar-te por ora em profundo acerca da origem do pecado, o que não creio ser mais
conservar a tua fé inabalável de modo a não aceitares, seja necessário, poderemos retomar o debate em outro diálogo.
pelos sentidos, pela inteligência ou pelo pensamento em geral,
EVÓDIO: Concordo que devemos deixar isso que ainda me
que haja algum Bem que não provenha de Deus.
preocupa para outro diálogo, mas não concordo que a questão
De fato, não pode haver nenhuma realidade que não proceda
de Deus, e em todas as coisas que perceberes haver medida, já esteja, como crês, su cientemente clara.
número, ordem, podes atribuí-las sem hesitação a Ele. E se
retirares de algo esses três elementos, nada restará. Mesmo que
ainda houvesse um princípio de perfeição, sem a medida, o
número e a ordem, que são encontrados sempre que há a
perfeição total, deveria ser eliminado até mesmo esse princípio
de perfeição, ainda que parecesse ser uma matéria a ser CONFISSÕES
trabalhada e aperfeiçoada pelo artí ce. Se a perfeição
totalmente realizada é um bem, o seu começo já é também de Deus é o autor do Mal?
certa forma um bem. Portanto, a consequência da eliminação
total do bem não consiste em algo próximo do nada, mas em
um nada absoluto.
Redigidas por volta do ano 400, as Con ssões compõem
Todo bem vem de Deus, não há nada que possa ter outra
origem. De onde, portanto, poderia vir aquele impulso de uma obra de cunho autobiográ co em que santo
afastamento que reconhecemos ser a fonte do pecado? Sendo Agostinho re ete sobre sua formação até a sua
conversão ao cristianismo. Relata a sua experiência de
vida, as angústias pessoais e intelectuais, e imperfeição, sendo que todas as coisas, enquanto
principalmente os dilemas morais que viveu. Sua adesão existem e porque foram criadas, têm algo de bom.
inicial ao maniqueísmo é examinada, e é nesse contexto
que discute a questão da natureza do Mal, mostrando
como só depois de se converter essa questão foi
resolvida. O Mal, para ele, é falha, queda, desvio, Buscava, ainda que de forma errônea, a origem do Mal.
E não percebia o mal que havia na própria busca. Eram
corrupção, e não uma substância real como o Bem, como
obrigadas a passar pelo olhar de meu espírito todas as criaturas
apregoavam os maniqueus. e tudo que nelas pode ser visto. A terra, o mar, as estrelas, as
árvores, os animais perecíveis e também tudo aquilo que não
A discussão sobre a criação re ete a in uência de vemos, o rmamento, os anjos e os espíritos celestes ….
Platão, sobretudo do diálogo Timeu, acerca da criação do Supunha assim a Vossa criação nita, plena de Vós que sois
Cosmo, e do neoplatonismo de Plotino (205-70), com a in nito. E dizia: “Eis aqui Deus e a criação divina. Deus é bom,
admirável e incomparavelmente superior a tudo isso. Como Ele
sua doutrina do Ser Supremo e dos graus inferiores de é bom, criou coisas boas. E é assim que Ele tudo envolve e
seres que Dele emanam. No Timeu, o demiurgo cria o preenche. Onde está então o Mal? Por onde e de que maneira
conseguiu penetrar? Qual a sua origem e a sua semente? Será
Cosmo organizando a matéria preexistente com base nas
que nada disso existe? Desse modo, por que temer o que não
formas ou ideias. existe? E se tememos em vão, então sem dúvida o próprio medo
é o Mal que nos tortura e oprime inutilmente nosso coração. O
No texto abaixo (Livro VII, Cap. 5), santo Agostinho
Mal é por isso mais opressivo, exatamente por não existir e
expressa suas angústias e questionamentos sobre a continuarmos, mesmo assim, temendo-o. Em conclusão, ou
existe o Mal que tememos, ou então o próprio temor é o Mal.
origem do mal e sobre por que Deus teria consentido a
“Qual a origem do Mal, se Deus, que é bom, é o criador de
existência do mal. Conclui que foi apenas sua fé
todas as coisas? Sendo Ele o Ser sumamente Bom, criou bens
inabalável que o permitiu entender o sentido da criação inferiores a Si, mas o Criador e as criaturas são a nal de contas
todos bons. De onde se origina, portanto, o Mal? Ou será que
divina e perseverar em seu caminho.
tudo isso é devido ao fato de que Deus tudo criou com uma
No Capítulo 12 do mesmo livrob, que aborda o matéria em que já havia algo de mau e ao dar-lhe forma e
organizá-la teria permanecido alguma coisa que não se
problema do Mal, santo Agostinho mostra que este deve
transformou em Bem? Mas por que isso teria ocorrido? Não
ser entendido como privação, diminuição ou poderia Deus, por ser onipotente, ter convertido toda a matéria
de modo a não permanecer nela nada de mal? E por que quis

criar algo a partir da matéria e não preferiu reduzi-la, com sua


onipotência, ao nada? Poderia por acaso a matéria existir No Capítulo 16 das Con ssões esta concepção é
contra a vontade divina? Se a matéria é eterna por que
explicitada, e santo Agostinho então de ne o Mal não
permaneceu tanto tempo no passado, por um período
inde nido, e por que teria Ele querido transformá-la em algo como substância, ou seja, algo real, mas como desvio ou
tempos depois? corrupção.
“Se de repente decidiu fazer algo, por que não reduziu a
matéria ao nada, já que é onipotente, e permaneceu apenas Ele
próprio, totalmente Bom, o sumo e in nito Bem? Se não era
adequado que Aquele que é sumamente Bom nada criasse de
bom, não poderia Ele ter aniquilado a matéria má, criando Senti e não estranhei que o pão tão saboroso ao paladar
outra que fosse boa, a partir da qual então faria a sua criação?
saudável seja enjoativo ao paladar enfermo e que a luz agradável
Não seria o Todo-Poderoso se não fosse capaz de criar algo de
aos olhos que veem bem seja desagradável aos doentes. E a Vossa
bom sem a ajuda daquela matéria que não teria se originado
justiça é desagradável aos maus — o mesmo acontece com a víbora
Dele mesmo?”
e os répteis, que foram criados bons e adequados à parte inferior da
Pensava tudo isso em meu miserável íntimo, oprimido pelo Criação, à qual os seres maus também pertencem —, sendo tão mais
terrível temor da morte e por sentir não ter encontrado ainda a semelhantes quanto são diferentes de Vós. Do mesmo modo, os
Verdade. Contudo, a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso maus são tão mais semelhantes aos seres superiores quanto mais se
Filho e nosso Salvador, conforme professada pela Igreja, estava tornam semelhantes a Vós. Indaguei sobre a maldade e não
rmemente plantada em meu coração. Ainda que me sentisse encontrei uma substância, mas sim a perversão da vontade afastada
inde nido e oscilante quanto ao que é estabelecido pela de Vós, o Ser Supremo, tendendo em direção às coisas inferiores,
doutrina, o meu espírito não abandonava a fé, abraçava-a ainda
expelindo as suas entranhas e inchando-se toda.
mais.

QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO


CONFISSÕES
Onde está o Mal? 1. Como santo Agostinho justi ca que, sendo Deus
sumamente bom, exista o Mal?
2. Qual a de nição do Mal que encontramos nas
Con ssões?
SÃO TOMÁS DE AQUINO
3. Como se pode entender em santo Agostinho a diferença
entre a natureza do Mal como oposição ao Bem e o

A
pecado como mal moral?
ética de são Tomás de Aquino (1224-274) toma como ponto de
4. Qual o sentido ético do conceito de livre-arbítrio? partida a ética aristotélica (ver p.37-49 deste livro),
interpretando-a à luz da doutrina cristã, assim como santo
5. Em que sentido se pode entender que Deus deu aos Agostinho havia feito em relação ao platonismo quase 800 anos
homens a liberdade de pecar? antes. Com efeito, são Tomás foi o principal responsável, em sua
época, por mostrar que a loso a de Aristóteles era compatível com
o cristianismo. Abriu, assim, caminho para a legitimação da leitura
de Aristóteles ao nal do séc. XIII, leitura essa que, em suas várias
vertentes, perdurou até o nal do pensamento medieval, no séc. XV,
e encontrou seguidores ainda durante o período moderno dentre os
escolásticos, sobretudo em relação a questões éticas. A
Contrarreforma elege são Tomás como representante da ortodoxia
LEITURAS SUGERIDAS católica, de modo que sua obra terá grande importância para o
pensamento moderno, embora muitas vezes identi cada, ainda que
erroneamente, com uma visão tradicionalista de loso a e teologia.
BONNARDIÈRE, A.M.L.; MARROU, Henri. Santo Agostinho e o
A ética de são Tomás se contrapõe à visão então predominante,
agostinismo, Rio de Janeiro, Agir, 1957. herdada de santo Agostinho e continuada por pensadores como são
ROCHA, Hylton. Pelos caminhos de santo Agostinho, São Bernardo de Clairvaux (1091-1153), para quem o homem é um ser
imperfeito, marcado pelo pecado original. São Tomás parte da
Paulo, Loyola, 1989. concepção aristotélica de virtude, considerando a natureza humana
WILLS, Garry. Santo Agostinho, Rio de Janeiro, Objetiva, capaz de ser aperfeiçoada. A virtude para ele não é o mesmo,
contudo, que para os lósofos gregos, que a relacionavam
1999. fortemente aos valores da cidade, tais como a amizade, a coragem e
a lealdade. Especialmente importante para são Tomás é a introdução
das virtudes teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade (ou amor, no
a Seita fundada por Mani (210-7 6), originário da região da Mesopotâmia, inspirada no
sentido de amar Deus ou o próximo)a. Por sua vez, o conceito
aristotélico de felicidade (eudaimonia) será interpretado como
zoroastrismo persa e em outras religiões orientais, tendo in uenciado o cristianismo em
beatitude, como culminando na visão beatí ca de Deus tornada
seus primeiros séculos. Prega a existência de dois princípios independentes e radicalmente
possível pela Revelação e pela Graça. Outra diferença importante

entre são Tomás e Aristóteles reside na noção de pecado original, quanto dos lósofos antigos (notadamente Aristóteles) e
que encontramos no lósofo cristão mas está ausente no grego.
Pecado este que só pode ser superado pela Redenção. Apesar disso, é cristãos — por exemplo, nos textos aqui examinados, o
importante notar como são Tomás se refere frequentemente a pseudo-Dionísio —, o que se evidencia pelas citações em
Aristóteles e recorre a conceitos da loso a aristotélica, como a
que se apoia ao argumentar seja contra ou a favor de
distinção ato/potência, a importância da concepção de nalidade
(telos) e o conceito de ente (ens). uma tese.
Além da Suma teológica, sua obra mais importante, são Tomás Na Parte I dessa obra, no tratado intitulado “Sobre o
escreveu também comentários sobre as obras de Aristóteles,
destacando-se o corolário à Ética a Nicômaco, do qual retoma Deus Criador”, são Tomás analisa a natureza do Mal,
questões que desenvolve na Suma. examinando por que o Deus sumamente bom pode ter
criado o Mal e discutindo a tese agostiniana sobre o Mal
como privação (ver p. 53-7 deste livro). São Tomás
SUMA TEOLÓGICA
recusa a concepção segundo a qual o Mal é algo, uma
O mal se encontra nas coisas?
entidade. Ele o entende como parte da natureza, no
sentido da imperfeição ou da corrupção das coisas

A Suma teológica, escrita entre 1266 e 1274, mesmo criadas, que podem ser perecíveis e imperfeitas.

inacabada é a principal obra de são Tomás de Aquino.


Contém, ao estilo das “sumas” da escolástica medieval,
uma síntese, de caráter fortemente sistemático, das
Assim procedemos quanto ao segundo artigo: Parece que o
questões centrais de sua concepção de loso a e de
mal não se encontra nas coisas.
teologia. A Suma se articula por meio de respostas às Objeção 1. Com efeito, o que quer que se encontre nas coisas ou é
principais questões das áreas tradicionais da loso a — um ente (ens) ou é a ausência de um ente, ou seja, um não-ente. Mas
o Ser, o Conhecimento, a Verdade, as Virtudes — e da diz Dionísio b Tratado sobre os nomes divinos, IV) que o mal está
distante do que existe e mais ainda do que não existe. Portanto, o
teologia — Deus, a Criação, a Graça Divina, os mal não se encontra nas coisas de nenhuma maneira.
Sacramentos. Antecipa as objeções mais importantes a Objeção 2. Além disso, o ente e a coisa são conversíveis. Logo, se o
essas respostas e as refuta. É interessante notar que são mal é um ente nas coisas, disso se segue que o mal também é uma
coisa, contrariamente ao que dissemos antes (Artigo 1).
Tomás recorre à autoridade da tradição tanto da Bíblia
Objeção 3. Além disso, como diz o Filósofoc, “a cor branca que não de mau nas coisas, alguns acabaram por a rmar que o mal era uma
possui mistura de negro é a mais branca” (Tópicos, III). Portanto, o coisa.
que é bom sem ter o mal misturado em si é o melhor. Mas Deus, Resposta à terceira objeção. Deus, a natureza ou qualquer outro
mais do que a natureza, faz o que é melhor. Logo, na criação divina agente, faz o que é melhor na totalidade e não considera cada parte,
não há nenhum mal. exceto enquanto ordenada na totalidade, como dissemos
Ao contrário, dessa maneira seriam suspensas as proibições e anteriormente (Questão 47, Artigo 2, Resposta 1). Ora, a totalidade,
punições que existem apenas para os maus. que é o universo das coisas criadas, é melhor e mais perfeita se tiver
Respondo que, segundo o que foi dito acima, a perfeição do elementos que possam deixar de ser bons, e que de fato por vezes
Universo requer que haja desigualdade entre as coisas de modo que deixem de sê-lo, sem que Deus o impeça. Não é próprio da
todos os graus de bondade se realizem. Há um grau de bondade em Providência destruir a natureza, mas sim salvá-la, e segundo
que uma coisa é tão boa que não pode deixar de existir. Há outro Dionísio (Tratado dos nomes divinos, IV) faz parte da natureza que
em que a coisa é boa de modo que pode deixar de existir. E tais coisas que podem falhar algumas vezes falhem. Ou ainda, como
gradações se encontram também no ser. Há coisas, as incorruptíveis, a rma Agostinho (Enchirydion, II), Deus é tão poderoso que pode até
que não podem perder o próprio ser, e há outras, as corruptíveis, fazer o bem a partir do mal. Assim sendo, muitos bens não
que podem perdê-lo. A perfeição do Universo requer que haja coisas existiriam se Deus não permitisse a existência de nenhum mal, pois
incorruptíveis assim como coisas corruptíveis, portanto, que haja o fogo não seria produzido se o ar não fosse corrompido, a vida do
coisas que possam deixar de ser boas, o que de fato por vezes leão não seria preservada se o asno não fosse morto e não se
ocorre. Assim, é evidente que o mal está presente nas coisas, bem elogiaria a justiça punitiva, nem a paciência do que sofre, se não
como a corrupção, que é uma espécie de mal.
existisse a iniquidade.
Resposta à primeira objeção. O mal está distante tanto do ser de
modo absoluto quanto do não-ser de modo absoluto, porque não
existe como hábito ou negação, mas como privação.
Resposta à segunda objeção. Como diz Aristóteles (Metafísica, V), o
ente (ens) pode ser dito de dois modos. Em primeiro lugar, pode
signi car a entidade de algo, dividindo-se assim nos dez SUMA TEOLÓGICA
predicamentos, ou ser conversível na coisa. Neste sentido nenhuma
privação é um ente, e, portanto, o mal também não o é. Em segundo
O homem possui o livre-arbítrio?
lugar, “ente” signi ca a verdade de uma proposição composta e
unida pela palavra “é”, e que responde à pergunta “Isto existe?”d É
neste sentido que dizemos que a cegueira existe no olho, o que No “Tratado sobre o homem”, questão 83, são Tomás
ocorre da mesma forma com qualquer outra privação. Sendo assim,
discute o livre-arbítrio (libero arbitrio) em termos da
o mal pode ser dito um ente. Por ignorar essa distinção e considerar
que algumas coisas são ditas más, ou mesmo que se diz que há algo liberdade do ato voluntário, enquanto escolha racional.
Para ele, o livre-arbítrio decorre da própria

racionalidade humana e é um pressuposto da ética pertence à natureza. É natural, então, nos orientarmos para um m
determinado, e, consequentemente, não o fazemos pelo livre-
enquanto possibilidade de escolha daquilo que é bom arbítrio.
em detrimento do que é mau. Ao contrário, como diz o Eclesiásticoe (15, 14), “Deus criou o
homem no começo e o entregou ao seu próprio arbítrio”; e a Glossaf
acrescenta: “isto é, à liberdade de seu arbítrio”.
Respondo dizendo: o homem possui o livre-arbítrio, caso contrário
seriam vãos os conselhos, as exortações, as ordens, as proibições, as
Assim procedemos quanto ao primeiro artigo: Parece que o recompensas e as punições. Como evidência disso deve-se considerar
homem não possui o livre-arbítrio. que algumas coisas agem sem juízo. Por exemplo, a pedra que se
Objeção 1. De fato, aquele que possui o livre-arbítrio faz o que move para baixo e todas as outras coisas que carecem de
quer. Ora, como diz são Paulo (Epístola aos romanos, 7, 19): “Não conhecimento. Outras agem com juízo, mas este não é livre, como
faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero.” Portanto, o no caso dos animais. Por exemplo, a ovelha quando vê o lobo julga
homem não possui o livre-arbítrio. que deve fugir, mas tal decisão não é livre, pois ela julga não por
Objeção 2. Além disso, quem possui o livre-arbítrio pode querer ou comparação, mas por instinto natural. Isso acontece com todos os
não, agir ou não. Porém, isso não ocorre com o homem, pois juízos dos animais. Porém o homem age com juízo porque, devido a
segundo são Paulo (Epístola aos romanos, 7, 19) “isso não depende sua capacidade cognitiva, julga se deve fugir de alguma coisa ou
nem da vontade nem dos esforços do homem”. Portanto, o homem procurá-la. Mas como seu juízo não resulta de uma aplicação do
não possui o livre-arbítrio. instinto natural a uma ação particular, e sim de uma comparação
realizada pela razão, o homem age de acordo com seu livre juízo,
Objeção 3. Além disso, de acordo com Aristóteles (Metafísica, I, 2),
podendo orientar-se para diferentes decisões. A razão pode, com
“o que é livre é causa de si mesmo”. Por conseguinte, aquilo que é
efeito, em relação ao contingente, seguir direções opostas, como nos
movido por outra coisa não é livre. Deus move a vontade, como
mostram os silogismos dialéticos e os argumentos retóricos. Como as
a rmam os Provérbios (21, 1): “O coração do rei está nas mãos do
ações particulares são contingentes, o juízo da razão sobre elas se
Senhor, ele o dirige para tudo o que lhe compraz.” E segundo a
aplica a diversas ações e não a uma única determinada. Portanto, é
Epístola aos lipenses (2, 13), “é Deus que realiza em vós o querer e o
necessário que o homem possua o livre-arbítrio pelo simples fato de
fazer”. Portanto, o homem não possui o livre-arbítrio.
ser racional.
Objeção 4. Além disso, todo aquele que possui o livre-arbítrio é
senhor de seus atos, mas o homem não o é, pois está escrito em Resposta à primeira objeção. Como já foi dito,g embora o apetite
sensitivo obedeça à razão, pode em alguns casos ir contra ela,
Jeremias (10, 23): “O homem não é dono de seu caminho, o
desejando algo contrário ao que ela determina. É neste sentido que
viandante não determina os próprios passos.” Assim sendo, o
o homem não faz o bem quando quer, ou seja, quando deseja contra
homem não possui o livre-arbítrio.
a razão, segundo o comentário de santo Agostinho a essa passagemh
Objeção 5. Além disso, diz Aristóteles (Ética a Nicômaco, III): “A
maneira como cada um vê os ns depende da maneira como cada Resposta à segunda objeção. O texto do Apóstolo (são Paulo) não
um é.” Ora, não está em nosso poder determinar como somos, isto deve ser entendido como a rmação de que o homem não poderia
querer ou correr de acordo com a sua vontade livre, mas sim de que Quanto às qualidades oriundas do exterior, são como hábitos e
o livre-arbítrio é insu ciente se o homem não for movido e paixões com base nas quais alguém se inclina mais para um lado
auxiliado por Deus. que para outro. Porém, mesmo essas inclinações estão sujeitas ao
Resposta à terceira objeção. O livre-arbítrio é causa de seu juízo da razão. O mesmo acontece com essas qualidades que estão
movimento, pois é através dele que o homem se move para agir. sujeitas à razão, uma vez que está em nosso poder adquiri-las,
Contudo, não é necessário à liberdade que o que é livre seja a causa causando-as ou nos dispondo a elas, ou mesmo rejeitando-as.
primeira de si mesmo, nem que para ser causa de algo, seja a sua Portanto, não há nada nisso que seja contrário ao livre-arbítrio.
causa primeira. Deus é a causa primeira, move as causas naturais e
as voluntárias. Assim como quando move as causas naturais isso não
impede que seus atos sejam naturais, ao mover as causas voluntárias
tampouco impede que seus atos sejam voluntários. Ao contrário,
Deus opera em cada um segundo a Sua própria natureza.
Resposta à quarta objeção. Ao se dizer que “não está no homem o
seu caminho”, isso diz respeito à execução daquilo que ele escolhe e
que pode ser impedido, caso o homem queira. A escolha está em
SUMA TEOLÓGICA
nós, mas pressupõe o auxílio de Deus. Se a virtude humana é um hábito
Resposta à quinta objeção. Deve ser dito que há duas qualidades no
homem, uma natural e outra proveniente do exterior. A qualidade
natural consiste tanto na parte intelectiva quanto no corpo e nas
Na Parte II da Suma teológica, encontramos, na Seção I, o
potências que lhe dizem respeito. Devido ao fato de o homem ser o
que é pela qualidade natural intelectiva, o homem deseja “Tratado dos hábitos e das virtudes”, em que são Tomás
naturalmente o m último, ou seja, a beatitude. Ora, tal desejo é oferece uma de nição dos hábitos e, em especial, uma
natural e não depende do livre-arbítrio, como ca claro no que
vimos anteriormente. Em relação ao corpo e suas potências, o caracterização dos bons hábitos, isto é, das virtudes,
homem, de certa forma, possui determinada compleição ou seguindo a linha aristotélica de entender a virtude como
disposição por in uência das causas corpóreas. Contudo, essas
um hábito (ver p. 40 deste livro).
causas não podem in uir na parte intelectiva por esta não ser parte
de um corpo. E devido à maneira como cada um é, pelas
características corpóreas, tais nalidades lhe parecem ser o m,
porque é com base em tal disposição que o homem se inclina a
escolher ou rejeitar algo. Mas essas inclinações estão sujeitas ao
juízo da razão, ao qual o apetite inferior obedece, como já dissemos Assim procedemos quanto ao primeiro artigo: parece que a
antesi. Portanto, não prejudica o livre-arbítrio. virtude humana não é um hábito.
Objeção 1. A virtude é o último grau de potência, segundo
Aristóteles (Tratado do Céu, I, 11). Mas o último grau de alguma

coisa é redutível ao gênero disso de que é o último grau, como o se indiferentemente para muitas ações e são determinadas em
ponto é redutível ao gênero da linha. Portanto, a virtude é redutível relação a atos por meio de hábitos, como ca evidente pelo que
ao gênero da potência, e não ao do hábito. dissemos antesj. Consequentemente, as virtudes humanas são
Objeção 2. Além disso, diz Agostinho (O livre-arbítrio, II, 19): “A hábitos.
virtude é o bom uso do livre-arbítrio.” Contudo, a utilização do Resposta à primeira objeção. Algumas vezes denominamos
livre-arbítrio é um ato e, por conseguinte, a virtude não é um “virtude” aquilo a que a virtude se dirige, seja o seu objeto ou o ato
hábito, mas um ato. correspondente. Por exemplo, chamamos de “fé” aquilo em que
Objeção 3. Além disso, o nosso mérito não se deve a nossos acreditamos ou o ato de acreditar, bem como o hábito pelo qual
hábitos, mas a nossas ações. Caso contrário, um homem teria mérito acreditamos. Quando dizemos que a virtude é o mais elevado grau
constantemente, mesmo enquanto dormisse. Mas temos mérito de uma potência, “virtude”k é entendida como “objeto da virtude”,
devido a nossas virtudes, portanto as virtudes não são hábitos, mas uma vez que o ponto máximo que uma potência pode atingir é
atos. considerado a sua virtude. Por exemplo: se alguém pode carregar
Objeção 4. Além disso, diz Agostinho (De moribus ecclesiasticus, cem quilos e não mais que isso, a sua virtude é de nida como cem
XV) que a virtude é a ordem do amor e (Questiones quodlibetales, 83, quilos e não sessenta. Mas a objeção considera que a virtude é
30) que a ordenação que é denominada virtude consiste em essencialmente o grau mais elevado de uma potência.
gozarmos o que devemos gozar e usarmos o que devemos usar. Ora, Resposta à segunda objeção. O bom uso do livre-arbítrio é
a ordem, ou ordenação, denomina tanto uma ação quanto uma considerado uma virtude no mesmo sentido da resposta à primeira
relação. Desse modo, a virtude não é um hábito, mas uma ação ou objeção acima, isto é, porque se trata daquilo a que a virtude é
uma relação. direcionada como sendo o seu ato correspondente. Pois o ato da
Objeção 5. Além disso, assim como há virtudes humanas, há as virtude nada mais é do que o bom uso do livre-arbítrio.
naturais. Só que estas não são hábitos, mas potências. Portanto o Resposta à terceira objeção. Pode-se considerar que somos
mesmo se aplica às virtudes humanas. meritórios de duas maneiras. Em primeiro lugar, pelo próprio
Ao contrário, o Filósofo (Categorias, 8) a rma que a ciência e a mérito, assim como dizemos que corremos porque conseguimos
virtude são hábitos. correr. Nós merecemos pelos atos. Em segundo lugar, devido ao
princípio pelo qual merecemos. Assim como dizemos que corremos
Respondo dizendo que a virtude denota certa perfeição de uma
porque temos a capacidade do movimento, podemos dizer que
potência. A perfeição de algo é considerada principalmente em
somos meritórios devido às virtudes e aos hábitos.
relação à sua nalidade, mas a nalidade de uma potência é o ato.
Sendo assim, uma potência é considerada perfeita em relação à Resposta à quarta objeção. Quando dizemos que a virtude é a
determinação do ato correspondente. Ora, há algumas potências que ordem ou a ordenação do amor, estamos nos referindo à nalidade à
por si mesmas são determinadas em relação aos atos qual a virtude é ordenada, porque em nós o amor é posto em ordem
correspondentes, por exemplo as potências ativas naturais. E por pela virtude.
isso as potências naturais são elas próprias denominadas “virtudes”. Resposta à quinta objeção. As potências naturais são por si mesmas
Já as potências racionais, que são características humanas, não são determinadas em relação a um ato, mas não as potências racionais,
determinadas em função de uma ação em particular, mas inclinam-
e portanto, como dissemos, não há comparação entre ambas.

QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO

1. Em que sentido a ética de são Tomás de Aquino pode ser


considerada racionalista?

2. Qual a realidade do Mal, segundo são Tomás de Aquino?

3. Compare a concepção do Mal de são Tomás de Aquino


com a de santo Agostinho, examinada anteriormente
(ver p.54-8 deste livro).

4. Como podemos entender, em são Tomás de Aquino, o


livre-arbítrio como manifestação da razão humana?

5. A concepção de livre-arbítrio de são Tomás de Aquino é


compatível com a de santo Agostinho?
6. Como são Tomás de Aquino relaciona a virtude e o livre-
arbítrio?

7. Compare a posição de são Tomás de Aquino acerca da


natureza da virtude com a de Aristóteles (ver p.41, 43-7
deste livro).

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