Catherine Walsh INTERCULTURALIDADE CRÍTICA E PEDAGOGIA DECOLONIAL
Catherine Walsh INTERCULTURALIDADE CRÍTICA E PEDAGOGIA DECOLONIAL
1
Professora titular e diretora do Doutorado em Estudos Culturais Latino-Americanos, Universidade
Andina Simón Bolívar, Sede Equador.
2
Paulo Freire, Pedagogia da Indignação. Boulder, Colorado: Paradigm, 2004, 18.
3
Frantz Fanon, Os condenados da terra. México: Fondo de Cultura Económica, 1961/2001, 30-31.
quatro
Refiro-me aos sujeitos que eram a preocupação central destes dois intelectuais críticos, conscientes e
comprometidos, e especificamente nomeados assim em seus textos Pedagogia do oprimido (Freire) e Os
condenados da terra (Fanon).
1
O interesse do artigo então é, por um lado, contribuir para a compreensão disso
compleja coyuntura atual, considerando assim e de forma mais específica, o
funcionamento do multiculturalismo neoliberal e uma interculturalidade de corte
funcional como dispositivos de poder que permitem o permanecer e fortalecimento de
as estruturas sociais estabelecidas e sua matriz colonial, que analisaremos aqui a
partir da perspectiva da “colonialidade”. Mas, e ainda mais central, é o interesse de
colocar em cena –pensando a partir e com as lutas acima mencionadas– uma perspectiva
crítica da interculturalidade, a que se encontra ligada a uma pedagogia e prática
orientadas ao questionamento, transformação, intervenção, ação e criação de
condições radicalmente distintas de sociedade, humanidade, conhecimento e vida; é
dizer, projetos de interculturalidade, pedagogia e prática que encaminham para a de-
colonialidade. Neste afã, iniciamos, na última parte deste texto, um diálogo
desde as contribuições de Fanon e Freire.
5
Aníbal Quijano, “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, em Edgardo Lander
(comp.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.
Buenos Aires: CLACSO, 2000, 204.
2
racializada: brancos (europeus), mestiços e, apagando suas diferenças históricas,
culturais e linguísticas, "índios" e "negros" como identidades comuns e negativas. A
a suposta superioridade "natural" se expressou, como diz Quijano, "em uma operação
mental de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, sobretudo
a respeito das relações intersubjetivas"; assim as categorias binárias: oriente-oeste,
primitivo-civilizado, irracional-racional, mágico/mítico-científico e tradicional-moderno
que justificam a superioridade e inferioridade, –razão e não razão, humanização e
desumanização (colonialidade do ser)-, e que se supõem o eurocentrismo como
perspectiva hegemônica do conhecimento (colonialidade do saber).6É tal operação que
faz colocar em dúvida, como sugere Césaire, o valor humano desses seres, pessoas que
por sua cor e suas raízes ancestrais, ficam claramente "marcados";7a lo que
Maldonado-Torres se refere como "a desumanização racial na modernidade [...]", a
falta de humanidade nos sujeitos colonizados” que os distanciam da modernidade, a
razão e de faculdades cognitivas.8
Mas também há uma dimensão mais da colonialidade pouco considerada em sua relação
com as outras três. É a colonialidade cosmogônica ou da mãe natureza, a que tem
que ver com a força vital-mágico-espiritual da existência das comunidades
afrodescendentes e indígenas, cada uma com suas particularidades históricas. É a que se
fixa na distinção binária cartesiana entre homem/natureza, categorizando como não-
modernas, “primitivas”, e “pagãs” as relações espirituais e sagradas que conectam
os mundos de cima e de baixo, com a terra e com os ancestrais como seres vivos. Assim
pretende socavar as cosmovisões, filosofias, religiosidades, princípios e sistemas de
vida, ou seja, a continuidade civilizatória das comunidades indígenas e das
diáspora africana. Como argumentarei depois, é esta dimensão que permite aprofundar
o problema existencial ontológico, particularmente dos descendentes africanos, um
problema enraizado no solo en la desumanização do ser, mas também na negação
e destruição de sua coletividade diásporo-civilizatória e a filosofia que lhe pertence,
como razão e prática de existência.
6
Ibidem, 210-211.
7
Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo. Madrid: Akal, 2006.
8
Nelson Maldonado Torres, “Sobre a colonialidade do ser: contribuições ao desenvolvimento de um conceito”
No giro decolonial. Reflexões para uma diversidade epistêmica além do capitalismo global,
Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (eds.). Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, 133, 144.
3
Esta matriz da colonialidade com quatro dimensões evidencia que a diferença
construída e imposta desde a colônia até os momentos atuais, não é uma
diferença simplesmente assentada sobre a cultura, também não é reflexo de uma dominação
enraizada em questões de classe como eixo central, como tem vindo a argumentar grande
parte da intelectualidade latino-americana, incluindo Paulo Freire. Mais precisamente, a matriz
da colonialidade afirma o lugar central de raça, racismo e racialização como
elementos constitutivos e fundantes das relações de dominação.
Zizek9, entre outros, sustenta que no capitalismo global atual opera com uma
lógica multicultural que incorpora a diferença enquanto a neutraliza e a esvazia de
seu significado efetivo. Nesse sentido, o reconhecimento e respeito à diversidade
culturais se tornam uma nova estratégia de dominação que ofusca e mantém a
veja a diferença colonial através da retórica discursiva do multiculturalismo e seu
ferramenta conceitual da interculturalidade "funcional" entendida de maneira
integracionista. Esta retórica e ferramenta não visam a criação de sociedades mais
equitativas e igualitárias, mas sim ao controle do conflito étnico e à conservação da
estabilidade social com o objetivo de impulsionar os imperativos econômicos do modelo
(neoliberais) de acumulação capitalista, agora fazendo “incluir” os grupos
històricamente excluídos a seu interior.
9
Slavoj Zizek, “Multiculturalismo ou a lógica cultural do capitalismo multinacional,” em F. Jameson e S.
Zizek.Estudios culturais. Reflexões sobre o multiculturalismo.Barcela: Paidós, 1998.
4
Sem dúvida, a onda de reformas10educativas e constitucionais dos anos 90 - as que
reconhecem o caráter multiétnico e plurilingue dos países e introduzem políticas
específicas para os indígenas e afrodescendentes-, são parte dessa lógica
multicultural do capitalismo transnacional. De fato, as re-formas coincidem com as
políticas de neoliberalização, aquelas em que o Estado começa a ceder protagonismo
aos atores do cenário internacional, especificamente aos organismos
multilaterais e as corporações transnacionais. Ao que parece, não é mera
coincidência então que ao mesmo tempo que os movimentos indígenas estavam
despertando, em vários países latino-americanos, uma nova força nacional e regional de
sério questionamento das estruturas e instituições do Estado, os bancos
as multilaterais do desenvolvimento começarão a se interessar pelo tema indígena, incentivando e
promovendo uma série de iniciativas, que deram origem ao processo, projeto e razão de
corte neoliberal.
10
As aspas “-“ servem para enfatizar que mais do que oferecer mudanças substanciais, as modificações
constitucionais e políticas educacionais fazem pouco mais do que reformular (ou re-formar) o mesmo.
11
Cindy Buhl, Um Guia do Cidadão para os Bancos de Desenvolvimento Multilaterais e Povos Indígenas
Washington, D.C.: O Centro de Informação Bancária, 1994, 29.
12
O enfoque do PRODEPINE, detalhado no Convênio assinado com o Banco Mundial, definia quarto
estrategias: (1) el fortalecimiento de la gestión de las organizaciones indígenas y negras; (2) la
intervenção na política agrária, incluindo a defesa dos recursos naturais, a titularização de
terras e o manejo da água; (3) o investimento no campo, e (4) a capacitação indígena em carreiras
intermediárias e de pós-graduação (Almeida e Arrobo, 2005).
5
Tal como tem argumentado a intelectualidade crítica do movimento indígena, mais do que
beneficiar os povos indígenas, o PRODEPINE teve um papel extremamente estratégico,
tanto para o Banco Mundial quanto para o Estado equatoriano:
O fato de ter concebido um projeto específico para os povos
indígenas do Equador, dá conta de que dentro dos cálculos políticos do
Banco Mundial, os índios do Equador, com suas estruturas organizativas e
políticas, podem se tornar o obstáculo mais sério para suas políticas de
liberalização, desregulamentação e privatização. Este projeto replica os
objetivos estratégicos do Banco Mundial, dentro da lógica de um dos
os atores mais importantes do momento atual, o movimento indígena.
[…] A visão modernizante e ligada aos parâmetros neoliberais da
quais são os portadores os tecno-burocratas desta instituição se tornam em
um risco cotidiano para o projeto político das organizações indígenas
e em uma fonte de conflitos permanente. […] O Banco Mundial conseguiu
neutralizar a oposição política dos índios contra ele mesmo
tempo que compromete maiores esforços na reforma estrutural de
caráter neoliberal do Estado Equatoriano.13
13
ICCI, "Banco Mundial e PRODEPINE: ¿Caminho para um neoliberalismo étnico?" (editorial), em Boletim ICCI-
RIMAI, ano 3, No. 25, Quito: Instituto Científico de Culturas Indígenas, abril de 2001, 5-6.
14
Pablo Dávalos, "As notícias secretas do Banco Mundial: poder e violência na reforma estrutural"
Boletim ICCI-RIMAI, ano 7, nº 72, Quito, Instituto Científico de Culturas Indígenas, março de 2005, 10.
É interessante notar que em 1998, o mesmo ano em que inicia o projeto PRODEPINE, o Banco Mundial
começa uma revisão de sua política de 1991 em relação aos povos indígenas. Entre março e julho de
Em 2001, saiu uma série de novos rascunhos sobre políticas operacionais, procedimentos e estratégias,
dirigida a "assegurar que o processo de desenvolvimento fomenta o respeito total pela dignidade, os direitos
humanos e as culturas dos povos indígenas [….] e ao fornecer-lhes uma voz no design e
implementação de projetos, evitando ou minimizando quando possível impactos negativos e
assegurando que os benefícios destinados a eles sejam culturalmente apropriados
Manual Operacional. Políticas Operacionais, rascunho, 23 de março de 2001). A versão mais recente deste
Manual Operativa é de julho-2005
(ver http://wbln0018.worldbank.org/Institucional/Manuals/Opmanual.nsf).
6
As reformas educacionais e constitucionais latino-americanas dos anos 90 podem ser
compreendidas dentro deste interesse e responsabilidade de 'transformação'.
Efetivamente, a diretiva de "Povos Indígenas" incluía elementos relacionados a
educação, o desenvolvimento e os direitos legais - particularmente os direitos de
identidade e à terra-, oferecendo, desta forma, critérios para as re-reformas jurídicas
dentro de um marco direcionado ao projeto neoliberal de ajuste estrutural, dando
reconhecimento e inclusão à oposição dentro do Estado-nação, sem maior mudança
radical ou substantivo à sua estrutura hegemônico-fundante.
Tal lógica pretende reconstruir relações entre o Estado e a sociedade, por meio de
uma inclusão que permite reduzir conflitos étnicos e aumentar a eficiência
económica da ação estatal17dentro de uma ordem não apenas nacional, mas regional e
global. Exemplos adicionais podem ser encontrados nas políticas étnicas do Banco
Internacional do Desenvolvimento-BID dirigidas mais do que tudo e desde os inícios deste século
às populações afrodescendentes, os esforços do Programa de Desenvolvimento de
Nações Unidas-PNUD durante 2006 a 2007 ao incidir no “labirinto” étnico, político
e social boliviano argumentando pela necessidade de gerir o pluralismo étnico,
regional e de movimentos sociais a favor de um modelo de Estado que se assenta
sobre um 'senso comum.18De maneira similar, podemos anotar os recentes mudanças em
a política da UNESCO que busca a identificação de "melhores políticas e
instrumentos de política para assegurar a diversidade cultural, às vezes visto como
15
Armando Muyolema, "Da 'questão indígena' ao 'indígena' como questionamento," em
Convergência de tempos. Estudos subalternos/contextos latino-americanos estado, cultura,
subalternidade, Ileana Rodríguez (ed.). Amsterdã: Rodopi, 2001.
dezesseis
Zizek, op.cit.
17
Norbert Lechner, “Por que a política já não é mais o que era?”, Revista Nexos, 216, 1995.
18
Esforços incluíram entre 2006 e 2007, o financiamento, coordenação e publicação de dois
estudos extensos: O estado do Estado e O estado da opinião, um filme: O estado das coisas. Um
informe nacional sobre desenvolvimento humano na Bolívia, e uma série de televisão intitulada O labirinto.
7
ameaça ou fonte de insegurança”. Também se destacam os planos e programas
emergentes de 'desenvolvimento integral e inclusivo' baseados na coesão social, o
desenvolvimento humano individual -e individualista-, e um modelo econômico mais
competitivo, todos com a ânsia de seguir "o ideal europeu". Essas iniciativas formam
parte das novas políticas do PNUD, BID e EUROsociAL, sendo este último uma
aliança entre a Comissão Europeia, BID, PNUD, CEPAL e com o apoio do BM e o
FMI, com enfoque em uma nova estratégia de desenvolvimento para a América Latina.19
Esses exemplos e perspectivas fornecem uma estrutura para entender que a política multicultural
atual sugere muito mais do que o reconhecimento da diversidade. É uma estratégia
política funcional ao sistema-mundo moderno e ainda colonial; pretende "incluir" os
anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de sociedade regido não por
gente senão pelos interesses do mercado. Tal estratégia e política não busca nem se interessa
transformar as estruturas sociais racializadas; mais precisamente, seu objetivo é administrar a
diversidade diante do que é visto como o perigo da radicalização de imaginários
e agenciamientos étnicos. Ao posicionar a razão neoliberal –por suposto moderna,
ocidental e (re)colonial - como única razão, faz pensar que seu projeto e interesse
apoiam o conjunto da sociedade e uma vida melhor.20Por isso, permanece sem maior
questionamento.
A “interculturalidade” é, cada vez mais, o termo usado para se referir a esses discursos,
políticas e estratégias de corte multicultural-neoliberal. Seguindo Tubino 21, podemos
nomear esta interculturalidade "funcional" porque "não questiona as regras do jogo e
é perfeitamente compatível com a lógica do modelo neoliberal existente.” Esta
a interculturalidade funcional difere substancialmente da interculturalidade
entendida como projeto político, social epistemológico e ético, o que eu denominei e o
19
Os países com maior financiamento e assessoria do EUROsociAL são México, Brasil e Colômbia.
20
O contraste óbvio encontra-se nas novas Constituições e projetos de sociedade emergentes em
Equador e Bolívia, onde o "buen vivir" ou "viver bem" são apresentados como princípios e projeto para o
refundar, tomando distância do bem-estar individual e do arquétipo de Estado e sociedade euro-eua-
céntricos. Ver Catherine Walsh, Interculturalidade, Estado, Sociedade. Lutas (de)coloniais de nossa
época. Quito: UASB/Abya Yala, 2009.
21
Fidel Tubino, “A interculturalidade crítica como projeto ético-político”, Encontro continental de
educadores agostinianos, Lima, 24-28 de janeiro de 2005. http://oala.villanova.edu/congresos/educação/lima-
ponen-02.html
8
que Tubino também se refere, como “interculturalidade crítica”.22Tubino ajuda a esclarecer
a distinção:
Enquanto no interculturalismo funciona-se busca promover o diálogo e a
tolerância sem tocar nas causas da assimetria social e cultural hoje vigentes, no
interculturalismo críticos e busca suprimir-las por métodos políticos não
violentos. A assimetria social e a discriminação cultural tornam inviável o
diálogo intercultural autêntico. […] Para tornar o diálogo real, é preciso começar
por visibilizar as causas da não-diálogo. E isso passa necessariamente por um
discurso de crítica social […] um discurso preocupado em explicitar as
condições [de índole social econômica, política e educativa] para que este
diálogo se dê.23
Interculturalidade crítica
O enfoque e a prática que se desprende da interculturalidade crítica não é funcional ao
modelo societário vigente, mas questionador sério disso. Enquanto que a
a interculturalidade funcional assume a diversidade cultural como eixo central, apoiando
seu reconhecimento e inclusão dentro da sociedade e do Estado nacionais (uni-
nacionais por prática e concepção) e deixando de fora os dispositivos e padrões de
poder institucional-estrutural -as que mantêm a desigualdade-, a interculturalidade
crítica parte do problema de poder, seu padrão de racialização e a diferença (colonial
não simplesmente cultural) que foi construída em função disso. O interculturalismo
funcional responde a y parte de los intereses y necesidades de las instituições sociais;
a interculturalidade crítica, por sua vez, é uma construção de e a partir das pessoas que têm
sufrido uma história de submissão e subalternização.
Esta construção "de baixo para cima" se evidencia de maneira particular no contexto
equatoriano onde a interculturalidade é conceito, aposta e projeto elaborado e
22
Catherine Walsh, “(De)Construir a interculturalidade. Considerações críticas desde a política, a
colonialidade e os movimentos indígenas e negros no Equador, em Interculturalidade e Política, Norma
Fuller (ed.). Lima: Red de Apoyo de las Ciências Sociais, 2002. A interculturalidade crítica a que me
refiro é distinta da que propõe De Souza: “pluri/inter/multiculturais críticas” pensadas para a
pós-modernidade/mundo marcado pela diversidade cultural. Enquanto para De Souza, essa interculturalidade
crítica parte da modernidade, servindo como elemento na luta por sociedades democráticas, a
interculturalidade crítica que parte do projeto político do movimento indígena se concebe do lado
oculto da modernidade, que é a colonialidade. Ver João Francisco de Souza, Atualidade de Paulo
Freire: contribuição ao debate sobre a educação na diversidade cultural, Recife: NUPEP/CIIE, 2001.
23
Tubino, op.cit.
9
significado pelo movimento indígena; princípio ideológico do seu projeto político
que -desde os anos 90- tem vindo a pontuar a transformação radical das estruturas,
instituições e relações existentes. O fato de que seu sentido vem deste
movimento pensado não só para ele, mas para o conjunto da sociedade é
significativo, tanto pela diferença que marca com o projeto hegemônico-dominante
e a sua ideia de que os indígenas só se preocupam consigo mesmos, como pela aposta, proposta e
projeto distintos que sugere. São aqueles que ampliam e envolvem “em aliança”
setores que, da mesma forma, buscam alternativas à globalização neoliberal e à
racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social quanto pela
criação de condições de poder, saber e ser muito distintas. Pensada dessa maneira, a
a interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem também um projeto de
a diferença em si. Mais bem e como argumenta Adolfo Albán,24é um projeto que
aponta para a re-existência e para a própria vida, em direção a um imaginário “outro” e uma agência
Lembrar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes não no Estado
(nem na academia) mas nas discussões políticas encenadas pelos
movimentos sociais, faz destacar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com
relação ao problema estrutural-colonial-capitalista, e sua ação de transformação e
criação. O grupo de trabalho do Fórum Latino-Americano de Políticas Educativas-FLAPE
A Colômbia também faz esta recordação:
Nesta tradição [dos movimentos sociais], a interculturalidade aparece
como parte do discurso político e reivindicativo de populações afetadas pelo
desenvolvimento do capitalismo através do despojo da terra, pela ocupação de seus
territórios por colonos portadores de outras tradições e valores culturais, pelo
deslocamento de seus lugares de origem para outros territórios, particularmente
as grandes cidades, onde se estruturam complexos culturais multiétnicos,
plurirregionais, intergeracionais, de gênero, de ofício etc., que apresentam desafios
difíceis de resolver pelos mecanismos tradicionais da democracia
transformista que caracteriza nosso regime social e político. [...] Tem sido a
localização dessas lutas [emancipatórias e de resistência dos povos
24
Adolfo Alban, “¿Interculturalidade sem decolonialidade? Colonialidades circulantes e práticas de re-
existência”, em Diversidade, interculturalidade e construção da cidade, Arturo Grueso Bonilla e Wilmer
Villa (orgs.), Bogotá: Alcaldía Mayor de Bogotá e a Universidade Pedagógica Nacional, 2008.
10
indígenas e afro na América Latina] e de seus desenvolvimentos nos novos contextos
nacionais e internacionais que atualiza a discussão e nos obriga a precisar
seus conteúdos.25
25
Grupo de Trabalho FLAPE Colômbia. “Inclusão social, interculturalidade e educação”, Fórum
Latinoamericano de Políticas Educativas, IV Foro Virtual. Bogotá: Universidade Pedagógica Nacional,
2005, 2-3.
26
Boaventura de Sousa Santos, O milênio órfão. Ensaios para uma nova cultura política. Madrid:
Editorial Trotta, 2005, 172.
11
tradicionalmente excluídos dentro das estruturas (educativas, disciplinares ou de
pensamento) existentes, ou somente a partir da criação de programas “especiais”
que permitem que a educação “normal” e “universal” continue perpetuando práticas e
pensamentos racializados e excluintes.
implica um trabalho de orientação de-colonial dirigido a tirar as correntes que ainda estão
nas mentes como dizia o intelectual afrocolombiano Manuel Zapata Olivella,
desescravizar as mentes como dizia Malcolm X, e desaprender o que foi aprendido para
voltar a aprender, como argumenta o avô do movimento afroecuatoriano Juan
García. Um trabalho que procura desafiar e derrubar as estruturas sociais, políticas e
epistemológicas da colonialidade – estruturas até agora permanentes – que mantêm
padrões de poder enraizados na racialização, no conhecimento eurocêntrico e na
inferiorização de alguns seres como menos humanos. É a isso a que me refiro
quando falo de lade-colonialidade.
Falar sobre uma política epistêmica da interculturalidade mas também sobre epistemologias
políticas e críticas, poderia servir no campo educacional para elevar os debates em torno
da interculturalidade a outro nível, transcendendo seu fundo enraizado na diversidade
étnico-cultural, ao problema da "ciência" em si; ou seja, a maneira como a ciência,
como um dos fundamentos centrais do projeto da modernidade/colonialidade, tem
contribuído de forma vital para o estabelecimento e manutenção do histórico e atual
ordem hierárquica racial, na qual os brancos, e especialmente os homens brancos
europeus, permanecem em cima Permite considerar a construção de novos marcos
epistemológicos que pluralizam, problematizam e desafiam a noção de um pensamento
e conhecimento totalitário, único e universal a partir de uma postura política e ética, que
sempre mantém como presente as relações de poder às quais foram submetidos
esses conhecimentos. Assim, incentiva novos processos, práticas e estratégias de
intervenção intelectual, que poderiam incluir, entre outras, a revitalização, reavaliação
y aplicação dos saberes ancestrais, mas não como algo ligado a uma localidade e
12
temporalidade do passado, mas como conhecimentos que têm contemporaneidade para
ler criticamente o mundo, e para compreender, (re)aprender e agir no presente.27
27
Considerar os saberes ancestrais como conhecimentos, ciências e tecnologias cuja ensinagem é
válido e importante para o conjunto da população desde a escola até a universidade, é avanço da
nova Constituição equatoriana, aprovada em referendo público em 28 de setembro de 2008. Ver
Catherine Walsh, “Interculturalidade, plurinacionalidade e decolonialidade: as insurgências políticas-
epistémicas de refundar el Estado”, Tabula Rasa (Bogotá), 9, julho-dezembro 2008, 131-152.
28
Falar sobre modos "outros" é tomar distância das formas de pensar, saber, ser e viver inscritas na
razão moderno-ocidental-colonial. Por isso, não se refere a "outros modos", nem tampouco a "modos
alternativos”, senão a eles assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial, incluindo
as da diáspora africana e sua razão de ser enraizada na colonialidade. Ao iniciar no século VI como
parte da expansão imperial/colonial nas Américas, essas histórias e experiências marcam uma
particularidade do lugar epistêmico –um lugar de vida-, que recusa a universalidade abstrata. Ver
Mignolo, op.cit.
13
por meio da estruturação colonial.29Esse sentido tem muito a ver com o expresso por
caribenha Jacqui Alexander:
[...] Pedagogias entendidas de maneira múltipla: como algo dado e revelado;
que faz abrir caminho, transpor, interromper, deslocar e inverter práticas e
conceitos herdados, essas metodologias psíquicas, analíticas e organizacionais
que usamos para saber o que acreditamos saber para tornar possível
conversações e solidariedades diferentes; como projeto tanto epistêmico quanto
ontológico ligado ao nosso ser e, portanto, aliado à formulação que fez
Freire de pedagogia como metodologia imprescindível. Pedagogias [que]
convocam conhecimentos subordinados produzidos no contexto de práticas de
marginalização, para poder desestabilizar as práticas existentes de saber e assim
cruzar os limites fictícios de exclusão e marginalização.30(Tradução minha)
29
Catherine Walsh, Pedagogia e a Luta por Voz. Questões de Linguagem, Poder e Escolarização para
Portorriquenhos.NY: Bergin e Garvey, 1991.
30
Jacqui Alexander, Pedagogias da Transmissão. Meditações sobre Feminismo, Política Sexual, Memória e o
Sagrado. Durham, NC: Duke, 2005, 7.
31
Vale a pena mencionar meu vínculo próximo com Freire durante os anos em que esteve exilado nos Estados Unidos.
Unidos, e minha participação ativa na rede de pedagogia crítica deste país até o início dos anos 90.
Apesar da baixa deste movimento nos anos 90, há autoras como Peter McLaren e Henry Giroux que,
Nos Estados Unidos e no Canadá, mantiveram uma postura de multiculturalismo revolucionário e radical.
32
Para uma análise sobre as "ciências neoliberais" veja Edgardo Lander, "A ciência neoliberal", em
Revista Venezolana de Economia e Ciências Sociais, Vol. 11, N.º 2, Caracas, Universidade Central
maio de 2005, 35-69.
14
pedagógica –o de pedagogias- que se conectem com os projetos e perspectivas de
interculturalidade crítica e de-colonialidade. Pedagogias que dialogam com os
antecedentes crítico-políticos ao mesmo tempo que partem das lutas e práticas de orientação
decolonial. Pedagogias que enfrentam o que Rafael Bautista se referiu como "o mito"
racista que inaugura a modernidade […] e o monólogo da razão moderna-
ocidental33pedagogias que se esforcem para transgredir, deslocar e incidir na
negação ontológica, epistêmica e cosmogônica-espiritual que tem sido -e é- estratégia,
fim e resultado do poder da colonialidade. Ou seja, “pedagogia(s) de-colonial(ais)”.
33
Rafael Bautista, “Bolívia: do Estado colonial ao Estado Plurinacional”, documento inédito, La Paz, 25
de janeiro de 2009.
34
Nelson Maldonado Torres, "A topologia do ser e a geopolítica do saber. Modernidade, império,
colonialidade,” em Caderno 1. (Des)colonialidade do ser e do saber. Buenos Aires: Edições do Signo,
2006, 63-130.
35
Sobre essas atitudes ver Nelson Maldonado-Torres, "A descolonização e a virada descolonial", em
Comentario Internacional, Nº 7, Quito, Universidad Andina Simón Bolívar, 2007, 64-78; Catherine
Walsh, "Interculturalidade e colonialidade do poder: Um pensamento e posicionamento outro a partir da
diferencia colonial", em Interculturalidade, descolonização do Estado e do conhecimento (Catherine
Walsh, Alvaro García Linera e Walter Mignolo), série O desprendimento, pensamento crítico e giro
des-colonial. Buenos Aires: Editorial signo, 2006.
15
modernidade. Contra o racionalismo pós-moderno, afirmamos a "razão do
Outro.36Minha tradução
A intenção aqui é estabelecer um diálogo crítico entre ambas, mais particularmente entre
Paulo Freire e Frantz Fanon, o intelectual frequentemente citado por Freire, mas sem
profundidade em torno da sua postura racial-político-epistêmico-ontológica, e sua
chamada a uma “pedagogia para construir uma nova humanidade questionadora”.
Este diálogo tem o objetivo de ressaltar as contribuições de Freire – mais do que tudo, sua
criticidade e atitude política - como suas limitações - incluindo sua posição humanista e
cegara racial - e, ao mesmo tempo, distinguir as contribuições de Fanon, contribuições que nos parecem
36
Enrique Dussel, "Eurocentrismo e Modernidade (Introdução às Palestras de Frankfurt). Boundary20
(3), 1993, 75.
37
Peter McLaren
16
como um ato político: “sou substancialmente político”, disse, “e apenas adjetivamente
pedagógico38ao mesmo tempo que fez entender a importância da prática educativa como
lugar para intervir e lutar:
Não há prática social mais política do que a prática educativa. De fato, a
a educação pode ocultar a realidade da dominação e da alienação ou pode,
pelo contrário, denunciá-las, anunciar outros caminhos, tornando-se assim em uma
ferramenta emancipatória.39
Para Freire, especialmente nos anos iniciais de sua produção e prática intelectual,
a educação era compreendida em sua perspectiva de "humanizar" o homem na ação
consciente. Foi apenas nos anos antes de morrer e talvez como resultado de seu
experiência na África, particularmente em Cabo Verde e Guiné-Bissau, que Freire
começou a pensar no poder que se exerce tanto a partir da raça e racialização, como
desde a colonização. Essa mudança se evidencia em um dos últimos livros que
escreveu: A pedagogia da esperança, na qual repensa A pedagogia do oprimido,
fazendo, ao mesmo tempo, uma autocrítica a si mesmo por suas próprias limitações em
ver e compreender a complexidade da opressão e da libertação. Neste texto fala
mais da rebeldia, a rebeldia como prática político-pedagógica de existência, re-
existência, de vida exemplificada nos quilombos (palenques) entendidos como:
Momento exemplar daquela aprendizagem de rebeldia, de reinvenção da vida,
da assunção da existência e da história por parte de escravas e escravos que,
Paulo Freire
trinta e oito
39
Ibid.
40
Freire, Indignação, op. cit., 34. Tradução minha.
41
Paulo Freire, Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
17
da "obediência" necessária, partiram em busca da invenção da
liberdade.42
Mas o que nos interessa não é apenas a maneira como Freire repensa seu pensamento,
incorporando mais criticamente alguns elementos de Fanon, senão também a
contribuição pedagógica que faz Fanon, ao vincular o político, o epistêmico e a
existência racializada dentro do marco da descolonização, a (des)humanização, e
a revolução social.44E é com essa intenção que exploro a seguir o pensamento de
ambos, focando nos eixos interconectados da (des)colonização e
(des)humanização.
(Des)colonização - (des)humanização
42
Paulo Freire, Pedagogia da esperança. México: Siglo XXI, 1993, 103.
43
Ibid., 149.
44
De fato, o trabalho de Fanon é muito mais conhecido no contexto da psicanálise e em relação a
a ontologia existencial do sujeito racializado. Prestar atenção à contribuição pedagógica de Fanon, é
considerar como seus trabalhos dão um sentido prático e concreto às lutas de descolonização,
liberação e humanização concebidas em termos tanto individuais quanto coletivos. Nesse sentido e
apresentar a descolonização não simplesmente como um problema político, mas como uma prática
(pedagógica) de intervenção que implica a criação de homens novos, Fanon dá bases verticais para
pensar pedagogicamente o de-colonial como uma aposta de existência-vida.
Nesse aspecto, veja também: Stephan Nathan Haymes, "Raça, Pedagogia e Paulo Freire," em Memórias:
Conferência Internacional sobre Reparação e Descolonização do Conhecimento, Salvador, Bahia:
UFBA/Atitude Quilombola, 2007, 55-66; Kenneth Mostern, “Descolonização como Aprendizado: Prática e
Pedagogia na Narrativa Revolucionária de Frantz Fanon, entre Fronteiras. Pedagogia e a Política do
Estudos Culturais, Henry Giroux e Peter McLaren (eds.), Nova Iorque: Routledge, 1994, 253-272.
18
primeiro como ambos tratam o assunto de (des)humanização como componente central a
seu pensamento-projeto.
45
Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, NY: Continuum, 1970, 27.
46
Ibidem, 74.
47
Freire, Esperanza, op. cit., 95.
dezenove
determinarmos.48Aclara que "a luta de classes não é o motor da história, mas
certamente um deles49; no entanto, é a classe que, para Freire, serve como ponto
de interseção para os outros pontos de opressão e dominação, como raça e gênero,
desatendidos nos textos iniciais.
E embora a preocupação com a existência humana e com "o fazer-se em/do ser" seja
central a este pensamento humanista do Freire, sua aposta pedagógica não é tanto com
a situação ontológica existencial dos oprimidos –nem tampouco com o padrão de poder
instaurado com o capitalismo e a modernidade/colonialidade que cria esta situação e a
racialização inerente a ela - mas com o ato de conhecer: conhecer a realidade para
poder transformá-la. Este ato de conhecer, enraizado no que Freire chama de uma
“curiosidade epistemológica”. Nesse sentido, para Friere a desumanização não é
produto ou resultado da colonização, e é a partir dessa abordagem que podemos ver
sua diferença com Fanon.
48
Ibidem.
49
Ibidem, 86.
50
Freire, Indignação, op. cit., 35.
51
Ibidem, 36.
52
Ibidem, 98.
20
Tanto para Freire quanto para Fanon, o processo de humanização requer estar consciente.
da possibilidade de existir e agir de forma responsável e consciente sobre -e
sempre contra as estruturas e condições sociais que pretendem negar seu
possibilidade. A humanização e a liberação individual requerem a humanização e
liberação social, o que implica a conexão entre o subjetivo e o objetivo; ou seja,
entre o interiorizado da desumanização e o reconhecimento das estruturas e
condições sociais que fazem essa desumanização. A esse respeito, pode-se anotar a
influência crescente de Fanon em Freire, algo que Freire comenta em A Esperança,
quando reconhece que a questão não é tanto com a “adesão” do oprimido ao opressor
senão a maneira que o oprimido toma distância dele, localizando-o "fora de si, como diria
Fanon.53
53
Esperança, 47.
54
Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas. NY: Grove, 1967, 30.
55
Frantz Fanon,Os condenados da terra.México: Fundo de Cultura Económica, 1963/2001, 38. Tal
a perspectiva parece ressoar com a de Freire: “Uma das características fundamentais do processo de
dominação colonialista ou de classe, sexo, tudo misturado, é a necessidade que o dominante tem de
21
E é nesse contexto que a negação da humanidade não é apenas ontológica, mas
também um assunto de (não) existência histórico-racial. “Ontologia –quando é finalmente
admitida por deixar a existência no caminho - não nos permite compreender o ser do
negro.56Visto sob esta perspectiva, a desumanização, no caso do
afrodescendente, requer um entendimento (fenomenológico) do problema ontológico
existencial da opressão racial.57Por isso, a aclamação de Fanon: “não sou o escravo
da Escravidão que desumanizou meus ancestrais,58uma escravidão construída sobre as
espaldas, sudor e cadáveres dos negros incentivando o bem-estar e progresso europeu. Em
um mundo anti-negro regido pela interconexão do capitalismo, eurocentrismo branco-
branqueamento e colonialidade do poder, a desumanização, o racismo e a racialização
estão indubitavelmente entrelaçados. E essa especificidade estrutural - central para
entender a realidade passada e presente latino-americana - que não se encontra em Freire.
invadir culturalmente o dominado…. O que se pretende na invasão cultural, entre outras coisas, é
exatamente a destruição, o que felizmente não se consegue em termos concretos. É fundamental, para o
dominador, triturar a identidade cultural do dominado" (Paulo Freire, Pedagogia da tolerância,
México: CREFAL/Fundo de Cultura Econômica, 2006, 33.
56
Condenados,110.
57
Haymes, “Raça”, op.cit, 57.
58
Condenados.
59
Condenados,31.
22
participar no "despertar": "Educação política significa abrir as mentes, despertar [as
masas] e permitir o nascimento de sua inteligência, como disse Césaire 'é inventar
almas´”.60
O primeiro dever do poeta [mestre] colonizado é determinar claramente o tema
populares de sua criação. Não se pode avançar resolutamente, senão quando se toma
consciência primeiro da alienação. […] Não basta se unir ao povo nesse
passado onde já não se encontra senão nesse movimento oscilante que acaba de
esboçar e a partir do qual, subitamente, tudo vai ser impugnado.61
Em seu texto Pele negra, máscaras brancas, Fanon parece conversar com Freire quando
argumenta sobre a necessidade de educar os seres humanos para serem racionais, ou seja,
60
Fanon citado em Nelson Maldonado-Torres, “Frantz Fanon e C.L.R. James sobre o Intelectualismo e
Racionalidade Iluminada”, en Estudos Caribenhos, Vol. 33, No. 2, Julho-dezembro 2005, 160.
61
Condenados,206.
62
Maldonado-Torres, “Frantz Fanon”, op.cit.
63
Ibid., 157-158.
23
para atuar. Maldonado-Torres faz novamente a relação pedagógica, desta vez
ressaltando a agência ou iniciativa de-colonial:
Quando Fanon nos faz lembrar que o que é importante não é educar [negros]
sem ensinar ao negro a não ser escravo dos arquétipos estrangeiros, Fanon se torna
pedagogo o maestro socrático –uma parteira de agência decolonial- que
pretende facilitar a formação de subjetividade, autorreflexão e a prática de
liberação. O ensino consiste então em capacitar o sub-outro a tomar uma
posição na qual ele ou ela pode reconhecer e fazer as coisas por si mesmos - é
dizer, agir.64
Dessa forma, a sociogenia pode ser entendida como uma pedagogia própria de auto-
determinação e auto-libertação, com quatro enfoques ou componentes centrais: fazer
despertar, alentar a auto-agência e ação, facilitar a formação de subjetividade e
autorreflexão, e fomentar e revitalizar racionalidades político-éticas "outras" que se
distanciar da razão moderno-occidental-colonial, se enraízam e apontam um atuar
em direção à liberdade, em direção à transformação e à criação de estruturas sociais e
condições de existência radicalmente distintas. Conjuntados esses componentes
construem uma pedagogia e prática de libertação, e um novo humanismo fundado em
uma razão “outra”: na razão, esperança, possibilidade e imaginário/imaginacão de-
colonial.65
Mas enquanto essa pedagogia própria é central pelo que permite os descendentes
africanos reconhecer o problema colonial, e decidir e agir sobre e contra ele, a
a transformação das relações e condições sociais também requer uma troca
64
Ibid., 159.
65
Em seu estudo sobre a pedagogia escrava, Haymes também ressalta a esperança (perspectiva
também centrada em Freire): “A esperança afirma a abertura na vida cotidiana onde não é facilmente revelada pela
atitude natural da cotidianidade. Ao fazer isso, a esperança está aberta a possibilidades de apego humano,
expressões e afirmações da liberdade humana. Os escravos, como pessoas esperançosas, agiram com base em possibilidades por
afrouxando e recusando a influência que realidades e rotinas consideradas garantidas tinham sobre a imaginação. Isso
foi essa imaginação pedagógica que lhes permitiu corrigir e resistir às capacidades destrutivas da alma
da aflição. O trabalho simbólico – ou seja, através de suas canções, histórias e rituais de confirmação, para
instâncias - os escravos ensinaram uns aos outros a importância moral e ética de criar um senso de comunidade
pertencimento. Foi na forja de uma comunidade de pertencimento que a cultura escrava funcionou pedagogicamente para
humanizar os escravos ao corrigir seu sofrimento – e, nesse processo, reformulou a negritude, uma ocidental
invenção do supremacista branco europeu, a partir de um ponto de vista de consciência histórica e alavancagem para
mudança” (Stephan Nathan Haymes, “Pedagogia e a Antropologia Filosófica dos Afro-Americanos
Cultura da Escravidão," em Não Apenas as Ferramentas do Senhor. Estudos Afro-Americanos em Teoria e Prática, L.
Gordon e J.A. Gordon (eds.). Boulder, Colorado: Paradigm, 2006, 67).
24
pedagógica que se estende criticamente a outros setores com o afã de facilitar,
também, sua descolonização por meio de uma ação política-ética compartilhada, assumida
e aliada. Aqui, a perspectiva pedagógica político-crítica e de-colonial poderia tomar e
construir novos sentidos.
Desta forma, proponho pedagogias que apontem e cruzem duas vertentes contextuais.
Primeiro e seguindo Fanon, pedagogias que permitem um “pensar a partir de” a condição
ontológica-existencial-racializada dos colonizados, apoiando novas
compreensões próprias da colonialidade do poder, saber e ser e a que cruza o campo
cosmogónico-territorial-mágico-espiritual da própria vida – o que chamei no início de
este texto como a colonialidade da mãe natureza. São essas pedagogias que
excitam a autoconciência e provocam a ação em direção à existência, a humanização
individual e coletiva, e a libertação.
66
Ibidem, 187.
25
Desde ambos vertentes e -retomando o planteamento de Jacqui Alexander- de
pedagogias de cruce, refiro-me a um trabalho que se dirige a desmantelar as
constelações – psíquicas, sociais, epistêmicas, ontológico-existenciais - instaladas por
a modernidade e seu lado oculto que é a colonialidade; pedagogias que incentivam novas
formas de ação política, insurgência e cimmaronagem ao mesmo tempo em que constroem alianças,
esperanças e visões "outras" de estar em sociedade, dando substância e legitimidade do
sonho ético-político de vencer a realidade injusta67, e construir caminhos “outros. .
E é com relação a este sonho e construção - e como forma de conclusão - que faço
ressaltar outro elemento comum em Freire e Fanon: a esperança como uma necessidade
ontológica que urge enfrentar a raiva e construir o amor. Aqui não falo do amor
romântico, mas do amor como um aparelho político e existencial, como componente central
a uma consciência dissidente e criativamente insurgente que pode intervir (ein-surgir)
tanto no eu interior como nas relações modernas/coloniais/neoliberais que
mantêm a dominação e desumanização.
67
Freire, Indignação, op. cit., 19.
68
Chela Sandoval, Metodologia dos Oprimidos. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.
26
Referências
O grito manso
Freire, Paulo
González Velasco, Laura e outros. 2004. Nossa cabeça pensa onde nossos
pés caminham. Buenos Aires: Movimento Bairros de Pé.
27
Grupo de Trabalho FLAPE Colômbia. "Inclusão social, interculturalidade e educação"
Fórum Latino-Americano de Políticas Educativas, IV Fórum Virtual. Bogotá: Universidade
Pedagógica Nacional, 2005.
28
latino-americanos estado, cultura, subalternidade, Ileana Rodríguez (ed.). Amsterdã:
Rodopi, 2001.
Sousa Santos, Boaventura. O milênio órfão. Ensaios para uma nova cultura
política. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
29