0 notas 0% acharam este documento útil (0 voto) 61 visualizações 8 páginas Thomas Sowell - Conflito de Visoes
O documento discute as diferentes visões sobre a natureza humana, classificando-as em visões restritas e irrestritas. A visão restrita, representada por Adam Smith, considera o egocentrismo humano como uma limitação inerente, enquanto a visão irrestrita, defendida por William Godwin, acredita no potencial moral do ser humano para agir em benefício dos outros. Essas perspectivas influenciam profundamente as teorias sociais, políticas e econômicas.
Título e descrição aprimorados por IA
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu,
reivindique-o aqui .
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF ou leia on-line no Scribd
Ir para itens anteriores Ir para os próximos itens
Salvar Thomas Sowell - Conflito de visoes (1) para ler mais tarde 22 | 23
Capitulo 2 | Visées Restritas e Irrestritas
No cerne de todo cédigo moral ha uma imagem da natureza humana, um
rapa do universo e uma verso da historia, Para a natureza humana (do tipo
concebido), em um universo (do tipo imaginado}, depois de uma historia
(assim compreendida), aplicam-se as regras do cAdigo.
‘Walter Lippmann
Visdes sociais diferem em suas concepgées basicas sobre a natureza
humana. Uma criatura de outra galaxia que buscasse informagao so-
bre seres humanos a partir da leitura de Enquiry Concerning Political
Justice, de William Godwin, publicado em 1793, dificilmente reconhe-
ceria o homem, tal como aparece na obra, como o mesmo ser descrito
na obra Os Artigos Federalistas, publicada apenas cinco anos antes.
O contraste seria somente um pouco menor se essa criatura compa~
rasse o homem descrito por Thomas Paine ¢ Edmund Burke, ou, mais
recentemente, por John Kenneth Galbraith ¢ Friedrich A. Hayek. Mes-
mo a pré-hist6r
na natureza, difere drasticamente do set livre, inocente, concebido por
especulativa do homem, como uma criatura selvagem
Jean-Jacques Rousseau, e 0 participante selvagem da guerra sangrenta
de um contra todos, concebide por Thomas Hobbes.
As capacidades e limitagées do homem sao vistas de forma im-
plicita em termos radicalmente diferentes por aqueles cujas teorias
filos6ficas, politicas ou sociais explicitas se baseiam em diferentes
vis6es. A natureza moral e mental do homem sao vistas de formas
tao distintas que seus respectivos conceitos de conhecimento ¢ deConflito de Visdes | Parte |- Visdes Restritas e Irrestritas
instituig6es também necessariamente diferem. A propria causali-
dade social é concebida de maneira diversa, tanto no que se refere
4 sua mec4nica quanto aos seus resultados. O tempo e seus fend-
menos secundarios - tradigées, contratos, especulacdo econdmica,
por exemplo — também sao considerados de forma bem diferente
em teorias baseadas em visdes diversas. As abstracdes que fazem
parte de todas as teorias tendem a ser vistas como mais reais por
seguidores de algumas visGes do que por seguidores de visées opos-
tas. Finalmente, aqueles que acreditam em determinadas visdes se
veem em um papel moral muito diferente daquele papel em que
os seguidores de outras visées veem a si mesmos. As ramificagdes
dessas visdes conflitantes estendem-se a decisdes econdmicas, judi-
ciais, militares, filos6ficas ¢ politicas.
Em vez de tentar a tarefa impossivel de seguir todas essas ramifi-
cages na miriade das visdes sociais, a discussao aqui classificard essas
visdes em duas grandes categorias - a visio restrita e a visGo irrestrita.
Trata-se de abstragGes de conveniéncia, reconhecendo que ha grada-
bes nas duas visdes, que um continuum foi dicotomizado e que no
seridos na
outra de maneira inconsistente, bem como intimeras combinagdes ¢
trocas. Com todas essas ressalvas, agora é possivel pensarmos em um
esbogo das duas visdes e sobre as especificidades da natureza humana,
a natureza do conhecimento e a natureza de processos sociais, tais
como sao vistas na vis6es restrita ¢ irrestrita.
mundo real frequentemente hé elementos de cada uma
A NATUREZA HUMANA
A VISAO RESTRITA.
‘Adam Smith concebeu uma imagem do homem que pode ajudar
a tornar concreta a natureza de uma visio restrita. Ao escrever como24125
filésofo em 1759, quase vinte anos antes de se tornar famoso como eco-
nomnista, Smith escreveu em seu livro Teoria dos Sentimentos Morais:
Suponhamos que o grande império da China, com suas miriades de ha-
bitantes, fosse subitamente engolido por um terremoto ¢ consideremos
como um homem benevolente na Europa, que nao tivesse nenhum tipo
de conexao com aquela parte do mundo, reagiria ao ter conhecimen-
to dessa horrivel calamidade. Creio que primeiramente ele expressa-
ria com muita forga seu pesar pela desgraga desse povo infeliz e teria
muitas reflexdes melancélicas sobre a precariedade da vida humana
€ a vaidade de todos os trabalhos do homem, que poderia assim ser
aniquilado repentinamente. Ele também, possivelmente, se fosse um
homem dado 4 reflexio, desenvolveria varios raciocinios em relagao
aos efeitos que esse desastre poderia produzir no comércio da Europa,
no mercado € nos negécios do mundo em geral. E quando toda essa
refinada filosofia acabasse, quando todos esses sentimentos humanos
tivessem se expressado completamente, ele buscaria seus negdcios
ou prazeres, descansaria ou se divertiria, com a mesma facilidade e
tranquilidade, como se aquele desastre nao tivesse acontecido, O-mais
frivolo desastre que pudesse acontecer provocaria um distirbio real
maior. Se tivesse que perder seu dedinho amanha, nao dormiria esta
noite; porém, se nunca
seguranga sobre a ruina de cem milhdes desses irmao
seus dedos, roncaria com a mais profunda
As limitagées morais do homem em geral ¢ seu egocentrismo
em particular nao foram lamentadas por Smith nem vistas como
coisas a serem modificadas. Foram tratadas como fatos inerentes &
vida, em sua visio, como a restrigéo basica. O desafio moral e social
fundamental consistia em se fazer o melhor possivel dentro dessa
limitagdo, em vez de gastar energias em uma tentativa de se mudar
a natureza humana — uma tentativa que Smith tratou tanto como va
quanto sem sentido. Por exemple, se fosse de alguma maneira possi-
vel fazer com que os curopeus se sentissem tocados pela dor daqueles
‘Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments. Indianapolis, Liberty Clas-
sics, 1976, p. 233-34.Contflito de Visdes | Parte | - Visbes Restritas e Inrestritas
que sofreram na China, esse estado de espirito seria “perfeitamente
sem sentido”, segundo Smith, a no ser para que se sentissem “mal” ,*
sem que isso beneficiasse os chineses de qualquer forma. Smith disse:
“Parece que a natureza, quando nos colocou o fardo de nossos in-
fortinios, pensou que eram suficientes, e, por isso, nao nos mandou
suportar o das outras pessoas, ou seja, mais do que era necessario
para nos instigar a alivia-los” ?
Em vez de considerar a natureza do homem como algo que po-
deria ou deveria ser modificado, Smith tentou averiguar como os
desejados beneficios morais e soci
forma mais eficaz dentro daquele limite. Ele abordou a questao da
is poderiam ser produzidos da
produce e distribuigao do comportamento moral de maneira muito
semelhante & sua forma de tratar, mais tarde, a produgao ¢ distribui-
Gao de bens materiais. Embora fosse um professor de filosofia moral,
seus processos intelectuais ja eram os de um economista. Entretanto,
a visdo restrita nao se limita de forma alguma a economistas. Na po-
litica, um contemporaneo de Smith, Edmund Burke, foi talvez quem
melhor resumiu a visdo restrita a partir de uma perspectiva politi-
ca quando falou de “uma doenga radical em todas as conspiragées
humanas”,‘ uma doenga inerente 4 natureza fundamental das coisas.
Vises semelhantes foram expressas por Alexander Hamilton em Os
Artigos Federalistas:
E proprio de tadas as instituigdes humanas, mesmo aquelas mais per-
feitas, ter defcitos assim como qualidades - tanto propensdes ruins
quanto boas. Isto decorre da imperfeigao do Instituidor, o Homem.S
* Tbidem, p. 238,
3 Ibidem, p. 108.
+ Edmund Burke, The Correspondence of Edmund Burke. Chicago, Univer-
sity of Chicago Press, 1967, v. VI, p48.
5 Alexander Hamilton, Selected Writings and Speeches of Alexander Hamil-
ton. Ed. Morton J. Frisch, Washington, D.C., American Enterprise Institute,
1985, p. 390.26 |27
Voltando ao exemplo de Adam Smith, uma sociedade nao pode
funcionar humanamente, se ¢ que € possivel, quando cada individuo
age como se seu dedinho fosse mais importante que as vidas de cem
milhdes de outros seres humanos. No entanto, a palavra fundamental
aqui é agir. Nao podemos “preferir a nds mesmos sobre os outros
de forma tio desearada e cega” quando agimos, disse Adam Smith,*
mesmo quando esse comportamento se mostra como a tendéncia na-
tural de nossos sentimentos. Na pratica, em muitas ocasides, as pes-
soas “sacrificam seus proprios interesses em beneficio dos interesses
maiores dos demais”, de acordo com ele,’ mas isso decorre de fatores
intervenientes, como devogio a principios morais, conceitos de honra
e nobreza, em vez de amar o outro como a
Mediante esses instrumentos artificiais, seria possivel convencer
o homem a fazer por sua prépria autoimagem ou por necessidades
internas o que cle nao faria para o bem do seu préximo. Resumindo,
mesmo.*
esses conceitos foram vistos por Smith como o caminho mais eficaz
de realizar o trabalho pelo menor custo psiquico. Apesar de ser uma
questo moral, a resposta de Smith foi essencialmente econémica: um
sistema de incentivos morais, um conjunto de ¢rocas em vez de uma
solugdo real para mudar o homem, Uma das marcas da visao restrita
€ que ela lida mais com trocas do que com solugées.
Em seu dltimo trabalho classico, A Riqueza das Nagdes, Smith
foi além. Em sua grande maioria, os beneficios econémicos para
a sociedade nao foram buscados intencionalmente pelos indivi-
duos, mas surgiram sistematicamente de interagées do mercado,
sob presses da concorréncia e impulsionados pela motivagao do
ganho individual.” Sentimentos morais eram necessdrios somente
© Adam Smith, op. cit., p. 235.
* Tbidem, p. 234.
5 Ibidem, p. 135
* Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Na-
jodern Library, 1937, p. 423.
tions. Nova Yor!Conflito de Visdes | Parte | -Visdes Restritas € lrrestritas
para moldar a estrutura geral de leis dentro da qual esse processo
sistémico poderia prosseg!
Esse foi ainda outro caminho no qual o homem, com todas as
limitagées concebidas por Smith, poderia ser induzido a produzir
beneficios pata outros, por razes, no fim das contas, reduziveis ao
interesse proprio. Nao era uma teoria atomistica fazendo com que
interesses préprios individuais se somassem ao interesse da sociedade.
Pelo contrario, o funcionamento da economia ¢ da sociedade exigia
que cada individuo fizesse coisas para as outras pessoas; era simples-
mente a motivagao — moral ou econémica — por tras desses atos que,
no fim das contas, era egocéntrica. Tanto em suas andlises morais
quanto econémicas, Smith confiava mais em incentives do que em
inclinagées para fazer com que © trabalho fosse feito.
AVISAO IRRESTRITA
Talvez nenhum outro livro do século XVIII apresente tamanho
contraste em relagao a visio do homem de Adam Smith quanto En-
quiry Concerning Political Justice, de William Godwin, uma obra
surpreendente tanto por seu contetido quanto por seu destino, Teve
sucesso imediato quando foi publicada na Inglaterra, em 1793; uma
década mais tarde, deparou-se com o efeito assustador das hostis
reagdes britanicas as ideias popularmente associadas 4 Revolugao
Francesa, especialmente depois que a Franga se tornou um inimigo de
guerra. Na época, duas décadas de guerra entre os dois paises termi-
naram em Waterloo; Godwin e sua obra foram relegados a periferia
da vida intelectual - e depois se tornaram mais conhecidos por sua in-
fluéncia sobre Shelley. Contudo, nenhuma obra da “Idade da Razio”
do século XVIII elaborou com tanta clareza e coeréncia e de forma
sistematica a visao irrestrita do homem quanto o tratado de Godwin.
Se na obra de Adam Smith 0 comportamento moral e socialmente
benéfico poderia ser despertado no homem somente por incentivos,28/29
na obra de William Godwin a compreensio ¢ a inclinagio do homem
foram capazes de criar intencionalmente beneficios sociais. Godwin
viu a intengao que beneficia outros como fazendo parte “da esséncia
da virtude”,!” e a virtude, por sua vez, como sendo o caminho para a
felicidade humana. Beneficios sociais involuntarios foram tratados por
Godwin como se mal valesse a pena serem notados."' Era sua a visio
irrestrita da natureza humana, segundo a qual o homem era capaz de
sentir diretamente as necessidades das outras pessoas como mais im-
portantes do que as suas proprias e de agir, portanta, de forma impar-
cial, mesmo quando estavam presentes seus proprios interesses ou os
de sua familia.'? Isso nao significava uma generalizacao empirica sobre
a forma como a maioria das pessoas se comportava no momento. Sig-
nificava uma afirmagao da natureza basilar do potencial humano.
Reconhecer o comportamento egocéntrico do momento nio sig-
nificava que este era uma caracteristica permanente da natureza hu-
mana, visto que a natureza humana foi concebida na visdo irrestrita.
Godwin disse: “Homens sio certamente capazes de preferir um inte-
resse inferior que seja seu a um interesse superior que seja de outros;
no entanto, essa preferéncia vem de uma combinagao de circunstan-
cias e ndo é a lei necessdria ¢ invariavel de nossa natureza™.'? Godwin
referiu-se a “homens como podem ser daqui em diante”,'* ao contra-
rio da opiniao de Burke: “Nao podemos mudar a natureza das coisas €
dos homens, mas devemos agir sobre eles da melhor forma possivel”.!°
Incentivos socialmente fabricados cram subestimados por
Godwin como expedientes desnecessdrios, sendo que era possivel
0 William Godwin, Enquiry Concerning Political Justice. Toronto, University
‘of Toronto Press, 1969, v. I, p. 156.
Thidem, p.433, 435.
® Thidem, p. 421-38,
? Ibidem, p. 434-35.
™ Ibidem, v. I, p. 122.
's Edmund Burke, op. cits, v. VI, p. 392.Conflito de Visoes | Parte I - Visdes Restritas e Irrestritas
alcangar diretamente o que os incentivos de Smith pediam alcan-
gar indiretamente: “Se mil homens devem ser beneficiados, devo
lembrar-me de que sou somente um atomo na comparagao e devo
raciocinar de acordo com isso”."* Ao contrario de Smith, que consi-
derava o egoismo humano uma dadiva, Gedwin via-o como: fomen-
tado pelo préprio sistema de recompensas usado para lidar com esse
egoismo. A verdadeira solugdo em relagao 4 qual esforgos deveriam
ser empreendidos era fazer com que as pessoas agissem corretamen-
te porque era certo, nao por causa de recompensas psiquicas ou
econémicas, ou seja, nado porque alguém “acrescentou a isso uma
grande dose de interesse préprio”.”
Por ter uma visio irrestrita do potencial moral, ainda inexplo-
rado, dos seres humanos, Godwin nao se preocupava como Smith
em saber qual é 0 incentivo mais imediatamente eficaz na situagdo
do momento. © verdadeiro objetivo era o desenvolvimento a longo
prazo de um sentido superior de dever social. Uma vez que incentivos.
jmediatamente eficazes retardavam o desenvolvimento a longo prazo,
seus beneficios cram efémeros ou ilusdérios. O “desejo da recompen-
sa” eo “medo do castigo” eram, de acordo com Godwin, “errados
em si mesmos” e “hostis para o desenvolvimento da mente™.'* Nesse
sentido, Godwin era apoiado por outro exemplar contemporaneo da
viso irrestrita, o Marqués de Condorcet, que rejeitava qualquer ideia
de “transformar preconceitos e vicios em boas causas em vez de ten-
tar dissip4-los ou reprimi-los”. Condorcet identificou esses “erros” na
visio da natureza humana de seus adversdrios — em sua confusao en-
tre “o homem natural” e seu potencial e o homem real, “corrompido
por preconceitos, paixdes artificiais e costumes sociais”.'”
ee
* Ibidem, v. IL, p. 308,
1 Ibidem, v. I, p. 172.
“ Ibidem, p. 171.
Antoine-Nicolas de Condorcet, Sketch for a Historical Picture of the Prog-
ress of the Human Mind. Westport, Conn., Hyperon Press, 1979, p. 52-53.