A DESCELEBRAÇÃO DO DIA DA PANELA
reconhecimento de si é condição para permanência
Afonso Silvestre
Vinte de dezembro de 2015. Fim da primavera, tempo em que costumávamos achar muito
quentes aqueles dias. Nos domingos do Ribeirão do Paneleiro, parecia haver um sol para
cada ser, e o silêncio costumava prevalecer. Árvores sem folhas, as sombras, o chão e a
fartura de sóis. Um ou outro carcará passeia sua sombra pelo chão, sempre em silêncio.
Mas a calma domingueira foi quebrada por um acontecimento potente. A comunidade se
reuniu para discutir a memória e o fazer das panelas de barro. Fruto do legítimo cuidado
com a preservação do nome que define sua identidade desde há cerca de 300 anos, era
realizado o Dia da Panela, sua primeira e única celebração.
Foi uma ação do projeto “Suspiro do Barro”, da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, que juntou os estudos sobre memória da professora Doutora Isnara Pereira Ivo com
os da etnomatemática, desenvolvidos pelo professor Doutor Wallace Teixeira Cunha. O
evento foi conduzido pela paneleira e mestra do ofício Maria Elza. Uma das atividades foi a
formação de novas artesãs entre pelo menos uma dezena de jovens.
No evento foi possível compreender porquês da permanência dos costumes. Mesmo com
apagamento da memória, o afastamento das práticas, as tentativas de invisibilidade, o
aprisionamento da cultura ou a violência física dos encontros iniciais, a comunidade se
manteve em torno da memória. O distanciamento parece ter fortalecido práticas que
asseguraram a transmissão dos costumes e do entendimento de si, geração após geração.
Desde o século XVIII, a relação dessas comunidades, originárias do Planalto da Conquista,
com os invasores portugueses foi conflituosa. Afastados, eram lembrados quando se
necessitava de mão de obra servil. No século XX, houve a transformação desses originários
em trabalhadores urbanos, a migração constante e crescente para a cidade, o trabalho nas
feiras e na construção civil. No Ribeirão, permaneceram as práticas de três séculos, a
cultura da cerâmica, do artesanato das panelas ensinadas por Maria Elza à arte de
referências ancestrais e xamânicas de Gilvandro Oliveira. E o Dia da Panela assegurou, por
pelo menos mais uma geração, a salvaguarda da expressão das paneleiras.
Ribeirão do Paneleiro é uma comunidade de curibocas, indígenas provindos de mistura
ancestral com brancos, mamelucos descendentes de pataxós, imborés, mongoiós e outras
famílias. Esses resistiram e evoluíram para o caboclo, o descendente direto que vive nas
áreas urbanas periféricas. O Brasil colonial usou o termo mameluco para denominar povos
rurais descendentes de indígenas. A origem da palavra, o árabe, um som que quer dizer
“criado”. Assim, justificam-se as atrocidades, inclusive atuais, como relações abusivas de
trabalho, esvaziamento das identidades e negação das referências. É verdade que no
século XVIII era pior, mas isto sequer justificaria. Embora tenham tentado apagar através do
mito a existência, permanência e importância dos povos dos territórios da Batalha e Lagoa
de Maria Clemência, lá estão eles! E não apenas lá, nos territórios rurais, há muito
ganharam a cidade, à custa de trabalho e luta contra o preconceito.
A identidade resistiu às investidas pelo seu apagamento. Eles permaneceram. É inegável a
contribuição que esses habitantes trazem para a cidade, e como esta contribuição evoluiu.
No início do século XX, foram utilizados em trabalhos que permitiram a construção do
casario original da Rua Grande. Nas décadas finais, migraram para continuarem
trabalhando na construção civil. Mas a partir da virada para o século XXI os quilombolas
passaram a frequentar a universidade. Hoje, esses acadêmicos estão se especializando,
mestrando, doutorando, pós-doutorando e retornando para seus lugares de origem e
pertencimento, contribuindo para o desenvolvimento sustentável das comunidades.
Além da qualificação científica, no início do século XXI começaram a se organizar
politicamente. Isto se deu através da formação de associações de pequenos produtores
rurais quilombolas e do Conselho Quilombola, também criado a partir dos resultados das
primeiras organizações. Essas iniciativas geraram práticas que permitiram a continuidade
dos seus costumes de origem, ao mesmo tempo em que se integram ao Município..
Tudo que precisavam era de políticas públicas. Por isso elas têm de ser permanentemente
renovadas, aperfeiçoadas. Porque essas políticas envolvem afetações. Para questões de
afeto, a ausência, o tempo e a distância são destruidores. No entanto, o espírito mostrado
nas atitudes do quilombo parece estar mantido pelo próprio conjunto desses habitantes.
Suas atividades políticas e de organização produtiva permanecem crescendo com grupos
de estudo e trabalho, atividades de formação e planejamento, atenção à juventude. Ações
nascidas de políticas públicas que hoje se desenvolvem de maneira autônoma.
Ao olhar para o trabalho de educação e formação como parte dos processos de certificação
dessas comunidades, é possível perceber quão acertadas foram aquelas iniciativas. Dar
aos processos um tom de humanidade, reconhecer identidades específicas fortalecendo a
autoestima através do conhecimento de si. Mesmo com a memória de opressão e medo, foi
possível suplantar esses limitadores e continuar assistindo, vinte anos depois, atos
afirmativos, grupos organizados e atentos a lutas que não têm fim. Como são os casos da
ampliação das cotas e melhoramento dos seus critérios, a distribuição de renda e trabalho,
o transporte, a saúde, infraestrutura, saneamento, segurança hídrica, assistência técnica e
extensão rural. Apesar de tanta falta durante tanto tempo, os quilombos não sucumbiram.
Voltemos à cena às vésperas do verão, onde o sol sertânico dá a cada ser vivente a
sensação de ter um astro só para si. Mesmo que em 1752 provavelmente não fosse tão
quente como será o próximo verão (que inicia logo após a data do Dia da Panela, que não
será celebrada), a vida era mais difícil para os originais. Naquele ano, chegaram Guimarães
e o jovem João Gonçalves, que viera de Chaves mas se chamava Da Costa, possivelmente
por ser proveniente de Viana do Castelo. Em pouca conversa, mas na força do fogo, do aço
e da corrupção. Menos de um século depois, instaura-se, em 1840, a Imperial Vila da
Vitória, 20 anos após a morte do (não tão mais) jovem João Gonçalves, aos 100 anos.
A força da belicosidade e superioridade técnica, o fogo, a corrupção e o aço, evoluiu-se
eventualmente durante os primeiros cem anos para a força da guerra biológica, a
contaminação dos originais com infecções como varíola ou sífilis. Este processo de
sifilização permaneceu por aquele primeiro século de contatos, com vistas à civilização ao
modo europeu. Não obstante, em 1820 o etnólogo e zoobotânico Maximilian wied-Neuwied
atesta que nada havia de civilizado no lugar, e isto se dava por conta do homem branco e
suas práticas e costumes.
Esses esforços violentos contra os povos que aqui já viviam não destruíram seus saberes,
do século XVIII aos dias de hoje. Devido à persistência da memória, a um esforço coletivo e
inicialmente inconsciente em preservar através da escuta dos mais velhos, dos xamãs, das
memórias ou o conjunto das lembranças lembradas e esquecidas, e reproduzi-las em seu
ofício, seja ele de tradição ou “modernizado”, vestido com os hábitos urbanos.
Conquista, esta jovem senhora, não apagou a memória da maioria dos seus quilombos.
Pelo contrário, eles se expandiram, e, junto com eles, seus costumes. O território da
Batalha, onde existem cerca de uma centena e meia de famílias, um terço delas no Ribeirão
dos Paneleiros, gerou, na época das primeiras lutas contra os invasores portugueses, a
aldeia indígena Aratikum. Localizada em Coroa Vermelha, Bahia, oriunda de sobreviventes
dos diversos massacres promovidos no Sertão da Ressaca no século XVIII. São todos
agentes da gênese da Conquista na mesma medida em que são vítimas da conquista.
Resistiram trabalhando a matéria prima dos seus costumes. No caso do Ribeirão, o barro.
Na ocasião do Dia da Panela, a historiadora Renata Oliveira, autora da obra “Índios
Paneleiros no Planalto da Conquista: do Massacre e o (quase) Extermínio aos Dias Atuais”,
afirmou que a comunidade ganhou, durante o processo de autorreconhecimento
(2004-2006), uma capacidade de resistência muito forte. Ela havia conhecido o local e seus
habitantes no mesmo instante que eu, mais precisamente 11 anos antes, 2004. Porém, por
caminhos diferentes. Ambos historiadores, eu, pelo Município num esforço para incluir as
comunidades identificadas no Programa Brasil Quilombola, e ela pela via da Comissão
Pastoral da Terra, que vinha denunciando conflitos com fazendeiros.
Foi quando a historiadora percebeu entre as reclamações uma específica, que vinha das
mulheres fazedoras das panelas de barro. Com as invasões das terras, elas tinham seu
espaço limitado, impossibilitadas, muitas vezes, até mesmo de coletar a argila necessária
para seu ofício. Em 2010, segundo a historiadora, surgiu o desejo de se realizar o Dia da
Panela. No dia em que o evento ocorreu, cinco anos depois, em 2015, naquele nosso
dezembro quente e demasiadamente iluminado, Renata explicou que, sendo a panela a
cultura material mais significativa do local, era importante ter um marco que celebrasse esta
consciência.
Com Gilvandro Oliveira, também historiador, escultor e nascido na Batalha, passaram a
explorar, a partir de 2010, os arredores em busca de referências ou locais de possíveis
antigos assentamentos de grupos indígenas. O Ribeirão do Paneleiro é circundado pela
Serra da Santa Inês, onde teria havido uma das primeiras chacinas, ainda no século XVIII.
Porém, sem recursos ou equipamentos, não conseguiram nada significativo.
De fato, há a possibilidade de sítios arqueológicos ao redor da Conquista. Em 2019,
trabalhadores de um areal nos limites do Município encontraram uma peça de cerâmica
enterrada a cinco metros de profundidade. O que, segundo a geologia, poderia representar
500 anos, no mínimo, considerando o tipo de solo em que foi achada. Ou seja, uma
civilização anterior aos paneleiros, que estão no local há aproximadamente 300 anos. Seo
Jesulino, descendente nascido em 1937, disse em 2019, aos 82 anos, que “a Batalha
começou dos índios que fugiram da guerra da Santa Inês”. Aprofundando na busca, Renata
e Gilvandro encontraram registros de que o nome teria vindo de uma indígena, Inês, que,
morta, teria passado a se mostrar em aparições para as mulheres. Também há sítios
próximos à Lagoa do Arroz, uma das comunidades do território quilombola da Batalha.
Num local descrito por Seo Jesulino, também foram encontrados cacos de cerâmica. Esses
agrupamentos foram desaparecendo ou simplesmente migrando para outros lugares. Após
tantos massacres, aqueles indígenas, escravizados, foram obrigados a carregar nas costas
a madeira para construir a primeira igreja, em 1783, em homenagem a Nossa Senhora das
Vitórias, em agradecimento pela destruição e expulsão daqueles moradores. O nome da
santa foi utilizado para justificar os diversos massacres, e a quem foi dado o crédito pelas
chacinas. Ao redor da igreja, cresceu o arraial.
Cerca de meia década depois, já no século XIX, o lugar ascende à condição de vila e
freguesia com o nome de Imperial Vila de Vitória, em 1840. Nessa época, a economia era
baseada na pecuária e outras culturas de subsistência, usando-se da mão-de-obra do
indígena e do curiboca escravizados. Construíram a antiga igreja, demolida (como
demolem!), no final do século XVIII, e continuaram construindo até o século XX. Um registro
importante de unidade do casario feita por mão de obra do Ribeirão do Paneleiro é a casa
de Regis Pacheco, de 1918-19.
A jovem senhora, Imperial Vila da Vitória, é nomeada cidade da República em 1891, Cidade
de Conquista, nome que possuiu até a gestão de Regis Pacheco nos anos de 1940, quando
foi nomeada com o redundante Vitória da Conquista. Naqueles tempos, cronistas locais
narravam as riquezas da cidade, enquanto cronistas de passagem mostravam as
desigualdades causadas pela concentração das riquezas.Tudo o que se pode dizer da
história desses povos que aqui estavam quando chegaram os portugueses é o que foi
contado pelos vencedores, os invasores. Não foram encontrados ainda, sequer, registros de
como se chamava este lugar da conquista antes dos portugueses darem este nome.
Gilvandro e Maria Elza são profundos conhecedores do barro do Ribeirão, e das suas
particularidades físico-químicas aprendidas de maneira ancestral e desenvolvidas
intuitivamente. Maria Elza demonstra prazer em ensinar o seu ofício, como moldar aquele
barro que ela conhece muito bem, dá forma e o esconde embaixo da terra, o único forno
possível para domar aquelas moléculas que não se comportam como o esperado em fornos
convencionais. Sabedoria tricentenária, desenvolvida a partir dos conhecimentos que
Gilvandro atestou ao ver os restos do vaso de cerâmica de 500 anos, encontrados numa
escavação. Em sua obra como escultor, Gilvandro expressa uma memória ancestral, que
sincretiza as representações sacras do catolicismo com os elementos sagrados da cultura
ancestral pataxó. Ambos, artistas e mestres, são elementos presentes da persistência da
memória do Ribeirão dos Paneleiros.
Neste “Ano 10” do Dia da Panela, os paneleiros continuam sofrendo violências e ataques da
ignorância conveniente da “cidade”. Mas o Dia continua celebrado em silêncio pelos
indivíduos do Paneleiro, que conhecem a própria memória. Esses remanescentes de
quilombos de ascendência indígena, localizados ao Noroeste de Vitória da Conquista,
preservaram seus costumes e princípios, e eles estão expressos no uso do barro, seja por
Maria Elza em seu ofício de paneleira, e suas sucessoras, seja por Gilvandro como artista,
escultor e tradutor das representações da memória dos curibocas do Panela, Ribeirão que
vai dar no Patipe, renomeado pelos portugueses invasores como Rio Pardo. Mas isto já é
outra história.