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Virginia Fontes - Capital Imperialismo

O capítulo analisa a posição do Brasil como um país capital-imperialista, destacando a subordinação econômica e a concentração de capital que perpetuam crises sociais e expropriações. A autora argumenta que a dinâmica atual do capitalismo, marcada pela concentração de capital e suas consequências sociais, demanda uma compreensão mais profunda das relações sociais e políticas no Brasil. Além disso, discute a falta de uma revolução burguesa no país e como isso afeta a democracia e as lutas sociais contemporâneas.

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Virginia Fontes - Capital Imperialismo

O capítulo analisa a posição do Brasil como um país capital-imperialista, destacando a subordinação econômica e a concentração de capital que perpetuam crises sociais e expropriações. A autora argumenta que a dinâmica atual do capitalismo, marcada pela concentração de capital e suas consequências sociais, demanda uma compreensão mais profunda das relações sociais e políticas no Brasil. Além disso, discute a falta de uma revolução burguesa no país e como isso afeta a democracia e as lutas sociais contemporâneas.

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Copyright @ 2010 by Virgínia Fontes

Catalogação na fonte
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Biblioteca Emília Bustamente

F683b Fontes, Virgínia


O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. / Virgínia Fontes. - 2. ed.
Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.

388 p. : il. ; - (Pensamento Crítico, 15)


1. Imperialismo. 2. Ciências Políticas. 3. Sociedade Civil. 4. Movimentos
Sociais. 5. Conflito de Classes. 6. Brasil. I. Título. II. Série.
CDD 325.32

ISBN 978-85-98768-52-6 (EPSJV)


978-85-7108-354-7 (Editora UFRJ)

Revisão
Luciana Duarte
Capa, Projeto Gráfico
Ana Carreiro
Editoração Eletrônica
Marcelo Paixão

Direitos desta edição reservados à:

Editora UFRJ Escola Politécnica de Saúde Joaquim


Av. Pasteur, 250 / salas 100 e 107 Venâncio / Fiocruz
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CAPÍTULO VI
O BRASIL CAPITAL-IMPERIALISTA

Neste capítulo, procuro apresentar uma síntese do painel


histórico que nos permite considerar, na atualidade, a atuação
econômica, social e política brasileira como integrando – de maneira
subalterna – o grupo dos países capital-imperialistas.
Retomo aqui as linhas mestras que entreteceram meu
argumento, conectando-as neste capítulo, que assinala a urgência de
pesquisas e debates rigorosos quanto à caracterização do mundo
contemporâneo. Ao longo deste trabalho, procuramos demonstrar que
estamos diante de uma profunda transformação no capitalismo, sob o
predomínio atual do capital-monetário, ou da forma mais concen-
trada do capital. Essa concentração impulsiona relações sociais de tipo
capitalista, exasperando suas contradições fundamentais a patamares
dramáticos, através de uma enorme variedade de formas de
expropriação, tornando a própria humanidade, em seu sentido mais
literal e biológico, refém da propriedade do capital e de sua imperiosa
necessidade de tudo converter em mercadoria, de maneira a assegurar
sua própria existência. Massas incontroláveis de capital fictício,
estreitamente coligadas com as demais formas do capital, promovem
intensa destruição social, ambiental e humana ao perseguirem e
inventarem maneiras de converter a atividade humana em trabalho,
ou seja, em forma de extração de mais-valor. Corroem a vida social de
inúmeras formas, inclusive através da banalização das atividades mais
corrompidas e violentas, desde as máfias e os tráficos diversos, até a
corrupção, intrafirmas ou entre firmas, instituições e governos.
Não é possível nem desejável reduzir o conjunto da existência
social contemporânea a essa dupla e perversa dinâmica da concen-
tração/expropriação. Se ela não permite compreender (felizmente)
todos os aspectos de nossa vida atual, sem sua compreensão, en-
tretanto, as forças fundamentais que regem nossa existência parecem
escapar de nosso alcance, submergindo-nos em sucessivas ondas de
crise e escasso alívio sem que consigamos alcançar seu sentido e
significado.
304 u V IRGÍNIA F ONTES

O Brasil, desde há muito integrado subalternamente no


circuito internacional da divisão de trabalho capitalista, também
experimenta na sua dinâmica interna o predomínio do capital-
monetário, convertendo-se em país capital-imperialista. Sob a
ditadura civil-militar de 1964, ocorreu impactante impulso à
monopolização da economia, ao lado da implantação de um sistema
financeiro. Não houve ruptura ou quebra de continuidade nesse
processo de concentração monopólica e dependente, desde então.
Nem a chamada década perdida, nem a abertura de mercados
promovida pelo governo Collor e seu aprofundamento sob o governo
Fernando Henrique, assim como as duas fortes crises econômicas em
2000 e 2008, reduziram o impulso concentrador do capital no país.
Ao contrário, quanto mais dramática foi a crise social, mais parecem
ter saído fortalecidos os setores mais concentrados. Sem negar o
impacto econômico de tais crises, vale lembrar que elas atuaram como
facilitadoras para massivas expropriações, em todos os setores da vida
social (terras, águas, direitos laborais e outros, etc.).
Dito de maneira direta, a megaconcentração de capitais parece
cavar continuamente o solo da crise social, para, em seguida,
transformar a tragédia humana em base para sua lucratividade,
convertendo a penúria que provoca em mercado para os bens que
produz. A crise se torna ameaça permanente e sempre mais grave,
inclusive, porque as escassas redes de proteção que os direitos
asseguravam continuam a ser sistematicamente minadas.
O argumento que segui, apesar de basear-se quase que
integralmente nas relações sociais sob o capitalismo, e não nas
relações econômicas em sentido estrito, parece a muitos excessiva-
mente econômico. Ora, em que pese o predomínio a cada dia mais
avassalador do econômico sobre os rumos do planeta, os comporta-
mentos dos governos, a existência das famílias e mesmo a vida
cotidiana dos seres singulares, há como que uma blindagem atual
segmentando esferas da existência que são, de fato, inseparáveis e
constituem uma unidade fundamental. Assim, tal segmentação
fragmentadora reforça a suposição peculiar de uma profunda
separação entre nossa vida cotidiana, nossos impulsos afetivos, nossa
cultura, nossa existência, nossas crenças e o mundo no qual
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 305

aprendemos a ser, a ter impulsos, a viver na cultura, a crer e a existir.


Desde Marx, sabemos que não se trata de uma “escolha econômica”,
mas de um modo histórico peculiar de organizar a vida social que
impõe o econômico como sua dimensão central, como se fosse o
móvel central e o fulcro da existência humana. Iniciei tanto a pesquisa
quanto este livro pelas relações sociais na produção concreta da vida –
a concentração de recursos sociais e a expropriação da maioria da
população desses mesmos recursos produzindo seres “livres”,
disponíveis para o mercado – que configuram nossa existência em
todos os níveis e em todos os países, ainda que de maneira
crescentemente desigual. O crescimento assimétrico da concentração
impeliu a acumulação e sua necessidade múltipla de valorização,
forjando novas expropriações e dramáticas crises sociais.
Ora, que desdobramentos tais relações sociais geraram no
mundo da política? Esse foi o esforço realizado nos dois capítulos
seguintes. Neles, não enfatizei os grandes personagens, nem as
terríveis opções com as quais foram confrontados os indivíduos
singulares ou entidades coletivas, o que muitas vezes se espera de uma
historiadora. Procurei compreender de que modo a generalização
desse processo no início do século XX, resultado de múltiplas tensões
– o imperialismo –, impulsionou correlatamente a invenção de novas
formas para a própria expressão política, abrindo novas contradições.
Há quase um século, Lenin e Gramsci aportaram elementos
extraordinários ao pensarem as condições nas quais se desenvolvia
então a luta de classes. Para nosso propósito, impunha-se um duplo
movimento: aprender o máximo de suas categorias e conceitos, e
acompanhar a própria elaboração de seu pensamento, participando,
por assim dizer, do desafio em que se colocavam. Ambos partiam da
mesma base teórica e procuravam, por caminhos próprios, explicitar
as formas radicalmente novas revestidas pela mesma velha expansão
do capital. Foi, portanto, com esse espírito que iniciei a análise do
capital-imperialismo contemporâneo, contando com os materiais
teóricos preciosos herdados. O longo transcurso e as profundas
reviravoltas ocorridas no século XX ao mesmo tempo evidenciam a
justeza de suas teses e nos afastam daquele mundo no qual viveram,
exatamente por seu aprofundamento.
306 u V IRGÍNIA F ONTES

A interrogação central – o que significam as transformações


contemporâneas no Brasil? – não admitia resposta unicamente no
âmbito das relações internas, embora partisse delas e a elas precisasse
retornar. Procurando entender o processo de transformação
capitalista de países retardatários precedentes, para auxiliar na
compreensão da situação brasileira atual, enveredei para uma
averiguação inicial de dois elementos: a correlação desigual e
hierárquica entre os diferentes países centrais, com ritmos de ingresso
no capitalismo e no imperialismo diversos e cujos graus de concen-
tração de recursos também era desigual; e a questão da democracia
(ou da política contemporânea) a qual, de certa maneira, expressa o
movimento de rebatimento da expansão capital-imperialista sobre os
próprios países centrais.
Com relação ao primeiro ponto, a correlação entre os países
centrais, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria estabeleceram
um ponto de não retorno diante das condições de acumulação pre-
cedentes, inaugurando um novo modo de expansão, capital-impe-
rialista, promovendo um entrelaçamento pornográfico entre as
diferentes funções do capital. Nenhum país capitalista ou imperialista
retardatário realizou efetivas revoluções democráticas burguesas1,
nem sequer próximas daquelas originais, ocorridas na Inglaterra ou
na França, embora neles as lutas de classes tenham sido acirradíssimas
e a questão nacional tenha figurado em primeiro plano. As lutas
interimperialistas das duas grandes guerras mundiais se soldaram por
um impasse atômico que, até o momento, impeliu a um profundo
rearranjo, característico do capital-imperialismo. Ele resultou de
processos não necessariamente planejados, mas que levaram a uma
íntima articulação entre capitais de origens nacionais distintas, ainda
que permanentemente tensionada pela concorrência, profunda-
mente desigual e implementando novas hierarquias e subordinações
entre os próprios países capital-imperialistas, sob o predomínio dos
Estados Unidos. Nascia, então, um padrão bifurcado para a atuação
política: altamente internacionalizada e hierárquica para o capital e
fortemente fragmentária e desigualitária para o trabalho, encapsulado
pelos Estados nacionais.
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 307

Sabemos que a plena expansão do capitalismo no Brasil


ocorreu sem a interveniência de uma revolução burguesa de cunho
nacionalista ou democrática. Sua posição de dependência econômica
diante dos capitais estrangeiros e, em especial, dos Estados Unidos,
permitiu porém longa persistência da dúvida sobre o efetivo caráter do
capitalismo aqui implementado. Ora, é exatamente a clarificação da
composição heteróclita do capital-imperialismo que nos leva a
admitir que no bojo de sua expansão se tenham constituído novos
polos também capital-imperialistas, embora subalternos. Tais
resultados não foram necessariamente desejados ou fruto de uma
atuação intencional de capital-imperialistas singulares, eventual-
mente mais propensos a modalidades neocoloniais. A expansão capi-
tal-imperialista ocorreu na medida em que o país reunia algumas de
suas condições econômicas fundamentais: um ciclo avançado de
industrialização e monopolização do capital, com a existência dos
diferentes setores econômicos complexamente entrelaçados; um
Estado plasticamente adaptado ao fulcro central da acumulação de
capitais e com razoável autonomia diante das pressões emanadas por
capitalistas singulares ou por um único setor econômico, capaz de
garantir a manutenção complexa da acumulação expandida através
de uma atuação externa consequente; formas razoavelmente estáveis
de contenção das reivindicações igualitárias populares.
Em outros termos, a situação atual do Brasil parece resultar de
novos processos de incorporação de países retardatários ao capital-
imperialismo, ainda que agudizando-se antigas contradições, como o
escasso suporte popular interno para tais voos, tanto pela penúria de
grande parte da população brasileira, quanto por uma peculiar
sensibilidade popular que, culturalmente avassalada, sobretudo, pelos
modismos estadunidenses, a eles opõe um sentimento anti-
imperialista. Algumas contradições intraburguesas filtram-se aqui e
acolá, dado o controle estatal das burguesias internas contraposto ao
poderio externo e interno dos capitais estrangeiros e de suas formula-
ções políticas, culturais e ideológicas. O contorcionismo realizado
pelas burguesias brasileiras e suas associadas forâneas, entre a
obediência à dependência subalterna e sua própria reprodução
308 u V IRGÍNIA F ONTES

enquanto classe capital-imperialista com base no Brasil, volta a se


constituir em fonte de contradições entre setores burgueses,
expressos, por exemplo, nos debates que cercam a condução da
política exterior brasileira. Tais debates tendem, entretanto, a
configurar-se como oposições fictícias, isto é, como uma disputa de
posições no interior do mesmo terreno, constituindo-se uma direita
dura para fora, mas com algum alívio social no contexto interno, e
uma esquerda para o capital, mais maleável e plástica no trato com os
países periféricos, embora olvidada de suas próprias origens ou das
reivindicações igualitárias. Tornam-se, assim, apenas a face esquerda e
direita do mesmo processo.
A democracia, definida como processos eleitorais nos quais
entram em jogo os direitos civis, políticos e sociais, mas não a
existência do capital, embora resulte de conquista significativa das
lutas sociais desde o século XIX, foi desde seus primórdios fortemente
domesticada e domesticadora. Sob o capital-imperialismo travou-se
uma enorme batalha em torno de sua adequação às condições da
expansão internacional do capital durante a Guerra Fria, o que
permitiu período de prolongado alívio às classes trabalhadoras dos
países centrais e seu aceno distante aos demais países. Uma vez
consolidadas tais condições – internacionalização da propriedade do
capital, de um lado, e encapsulamento dos trabalhadores, de outro – as
pressões expropriatórias voltaram a incidir, sempre de maneira
desigual, mas agora voltadas também contra as populações dos países
centrais.
Gradualmente, as exigências de socialização da política nos
âmbitos nacionais deixavam de corresponder à socialização efetiva do
processo produtivo, posto que este tendia a ocorrer crescentemente
em âmbitos inter, trans e multinacionais. Esse fator opera como
potente limitador do alcance das lutas dos trabalhadores e dos setores
populares e como fermento de racismos e de xenofobias.
Não obstante, a questão democrática continuou atravessando
todo o século XX e persiste no século XXI como elemento ideológico,
político e cultural fundamental, como aspiração das grandes massas
populares nos mais diferentes quadrantes. Ora, suas condições
fundamentais se transformaram. Em lugar de uma ampliação
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 309

internacional do escopo democrático, ocorreu seu enrijecimento nos


quadros estatais, inclusive nas situações de unificação entre países,
como a da União Europeia. Reafirmava-se a luta eleitoral como a única
possível e legítima, ainda que essa via jamais tenha sido respeitada,
como se observa através dos inúmeros precedentes abertos quando
eleições geraram situações inadmissíveis para o capital (casos, por
exemplo, na América Latina, como Granada, Chile, Haiti e, mais
recentemente, Honduras).
O que Gramsci analisou para os Estados Unidos e a Europa de
seu tempo, a constituição de aparelhos privados de hegemonia se
tornaria a forma cosmopolita por excelência da política do capital,
organizada tanto nos diferentes planos nacionais quanto em agências
e entidades internacionais. Verdadeiras frentes móveis de ação
internacional se multiplicavam, ao mesmo tempo procurando
capturar as reivindicações igualitárias no plano internacional e
reconvertê-las em formas anódinas ou, mais grave, em espaços de
atuação lucrativa. Já mostramos, nos capítulos precedentes, como se
acirrou a luta social no Brasil contemporâneo, e quais são as
modalidades pelas quais vem sendo reconvertida e reconfigurada.
É, pois, no contexto das lutas de classes que atravessaram nossa
história, que procuraremos compreender a configuração capital-
imperialista do Brasil contemporâneo.

Burguesia nacional?

Já vimos como se complexificou o teor da sociabilidade


dominante no Brasil contemporâneo, tanto no que concerne às lutas
populares e suas transformações, quanto com relação às múltiplas
formas de ação burguesa no Brasil atual. A abordagem adotada
enfatizou as formas de organização da dominação burguesa e discrepa
de muitas análises que ora enfatizam a inorganicidade burguesa no
Brasil, insistindo sobre sua ligação direta com o Estado (sublinhando,
por exemplo, as noções de patrimonialismo ou clientelismo), ora
acentuam unilateralmente o aspecto truculento da dominação no
Brasil, o que, embora real, não é suficiente para dar conta dos
processos atuais. Como demonstraram as pesquisas de Sonia Regina
310 u V IRGÍNIA F ONTES

de Mendonça, que apresentamos no capítulo 4, a teia de organizações


burguesas no Brasil atravessou todo o século XX, assim como seu
entrelaçamento no Estado, cuja ampliação foi extremamente seletiva.
Tal processo teria configurado uma classe burguesa no Brasil? Ora, já
nos primórdios do século XX, a Sociedade Nacional de Agricultura,
entidade associativa privada, cobria praticamente todo o território
brasileiro. Perduravam legítimas dúvidas sobre se tais atividades
agrárias, na produção de gêneros primário-exportadores ou voltados
para o consumo interno, eram capitalistas. Sua íntima conexão com a
produção industrial resultou de tortuoso processo histórico, esvaindo
na década de 1960 as dúvidas sobre o caráter da vida social brasileira.
Ressaltamos a importância dessa entidade, pois ela evidencia que a
estrutura da associatividade então empreendida remete às formas
características da dominação burguesa e da formação do Estado
capitalista. A associatividade burguesa ali exemplificada promovia a
formação técnica e política dos quadros dominantes, disseminava o
adestramento de mão de obra, difundia valores ligados tanto à
propriedade quanto ao mercado e apresentava como nacionais os seus
interesses particulares, incrustando-os no Estado como aparelhos
“técnicos”.
Complementando a já longa trajetória das atividades de enti-
dades patronais, René Dreifuss desvendou as formas mais contem-
porâneas dessa associatividade burguesa, desde a preparação do golpe
civil-militar (DREIFUSS, 1987) até o processo pelo qual, a partir da
Constituinte, intensificou-se a implementação de uma extensa rede
constituída por associações e entidades de proprietários, da mídia e de
entidades associativas internacionais, em especial estaduniden-
ses, em densa malha cobrindo todo o território brasileiro. (DREIFUSS,
1989)
Dreifuss ressaltava como, naquele momento, voltados para o
agenciamento, formação de consciência política e o estabelecimento
de táticas de atuação:
os empresários se organizariam a distância geográfica, isto é,
se afirmariam nacionalmente – como classe nacional –, e não
como oligarquia regional, agrupamento caudilhesco ou
camarilha coronelícia, pois visavam à direção da estrutura
societária em gestação. (DREIFUSS, 1989, p. 10, grifo do autor)
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 311

Atento à seletividade dessas formas organizativas,


Dreifuss destacava ao mesmo tempo que os requisitos funda-
mentais de sua constituição classista seriam, por sua vez, negados aos
agrupamentos sociais subalternos e subordinados.
Precocemente, as diversificadas expressões burguesas (rurais e
urbanas) encontravam-se organizadas no plano nacional, inclusive
através de processos generalizados de formação de mão de obra, ou de
preparação de uma sociabilidade adequada para o capital, como o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), de 1942. Uma
classe nacional, que abrange o conjunto do território, configuraria
uma burguesia nacional?
A existência da burguesia como classe “nacional”, atuante e
impondo sua ordem, de maneira unificada (embora contraditória)
em todo o território, não a converteria na famosa “burguesia
nacional”, da qual se esperava um processo revolucionário de cunho
democratizante e fortemente anti-imperialista, disposta a enfrentar a
grande propriedade rural e a dirigir um processo de incorporação
republicana dos setores subalternos. Como fartamente demonstrou
Florestan Fernandes, a burguesia aqui forjada estava articulada
socialmente em bases nacionais, sendo pois sua fraqueza apenas
relativa, premida pelas injunções de uma dupla articulação promotora
de permanente tensão entre o desenvolvimento desigual no interior
do país e o que ele designava como imperialismo total. Não mais
havendo espaço histórico e internacional para um perfil burguês con-
quistador, essas burguesias se converteram em formas internalizadas
de defesa do capitalismo tout court:
As burguesias nacionais dessas nações converteram-se,
em consequência, em autênticas ‘fronteiras internas’ e em
verdadeiras ‘vanguardas políticas’ do mundo capitalista (ou
seja, da dominação imperialista sob o capitalismo monopo-
lista). (...) Elas querem: manter a ordem, salvar e fortalecer o
capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o controle
burguês sobre o Estado nacional se deteriorem. (FERNANDES,
1975, p. 294-295, grifos do autor)
O argumento de Florestan consolida nossa hipótese de uma
burguesia brasileira, integrada de maneira heterogênea, sobretudo por
312 u V IRGÍNIA F ONTES

nativos, mas também por fortíssimos interesses originados em outros


países, em especial nos Estados Unidos, aqui implantados.
Essa burguesia brasileira remói, resulta e promove contra-
dições. No ruminar de antigas contradições, atualiza as heranças das
formas de dominação pregressas, das quais se instaura como herdeira.
Assim, retoma os traços de uma colonização que a independência
política jamais intentou seriamente ultrapassar, como as formas
persistentes de racismo e a recriação de sua subalternidade no âmbito
cultural, permeável e porosa a todas as expressões do lixo cultural
internacional (do fast food às televisões, onde se destaca o Big Brother),
ao lado de uma pujante cultura brasileira, repetidas vezes estropiada e
caricaturada. A burguesia brasileira resulta diretamente de outras
tantas contradições, a começar pela dupla articulação assinalada por
Fernandes, que conecta setores econômicos nativos profundamente
desiguais a uma subordinação ao capital-imperialismo. O risco de
ver-se fragmentada e reduzida a uma burguesia-tampão reaparece na
atualidade sob vários formatos, como, por exemplo, quando se
encontra premida entre a cobiça imediata da associação subalterna,
mas lucrativa, na exploração das imensas jazidas de petróleo do pré-
sal e o temor de se ver reduzida a mera coadjuvante num país reduzido
a exportador de carburante.
Finalmente, promove novas contradições, por levar a um
ponto extremo sua ambivalente situação, de impotência prepotente,
com enorme crescimento da produção de commodities adequadas à
posição subalterna, ao lado do estímulo e da expansão de empresas
transnacionais, procurando aproximar-se da ponta dominante do
capital-imperialismo. As burguesias brasileiras derivam do leito
cavado pelo capital-imperialista e precisam permanentemente a ele
adequar-se para manter sua dominação na escala do território
nacional.
Para Florestan Fernandes, coexistia uma dupla expectativa
histórica, ambas lastreadoras de uma estratégia política francamente
socialista. Na primeira, a de que uma revolução contra a ordem
pudesse, finalmente, atuar como fermento fundamental para a
produção de uma burguesia nacional, impondo uma autonomização
do desenvolvimento capitalista contra o imperialismo e uma
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 313

republicanização das formas de existir. Resultaria, nesse sentido, uma


efetiva revolução dentro da ordem. Porém não havia ilusões em seu
raciocínio:
Os de cima não se abrem sequer para a revolução dentro
da ordem, a revolução que se sustentaria em transformações
capitalistas necessárias, embora tardias. (...) Revolução,
para eles, é revolução: tanto faz que seja dentro da ordem ou
contra a ordem. Cumpre estancá-la e impedir que uma
fomente o aparecimento de condições favoráveis à outra.
(FERNANDES, 1986, p. 26, grifos do autor).
Assim, na segunda expectativa, mais realista, Fernandes
assinalava que uma revolução contra a ordem, uma vez iniciada, não
deveria estancar, atemorizando-se diante de uma ordem burguesa
autocrática e truculenta. Para ele, escrevendo sob o período do governo
Sarney, a revolução da “gentinha sem eira nem beira” estaria
desabrochando aos nossos olhos, como um florescimento
rico e fecundo, que engata o Brasil na história convulsiva
dos povos pobres e da América Latina rebelde. De pronto,
observa-se que tal revolução democrática não é burguesa.
(...) É uma revolução que eclode dentro da ordem, mas que
se aninha na parte excluída e ignorada dessa mesma ordem.
(...) Os de cima tentam domesticá-la, canalizá-la institu-
cionalmente, enquadrá-la em uma República burguesa de
democracia relativa ou de segurança nacional. (FERNANDES,
1986, p. 58)
O processo histórico ulterior, iniciado com Fernando
Henrique Cardoso e continuado sob os dois mandatos de Lula da Silva
expressaram uma recuperação da capacidade burguesa de, aprofun-
dando ainda mais seus vínculos de dependência, conservar seu
predomínio no âmbito nacional, através agora de um formato
democrático-representativo, típico do enquadramento burguês das
reivindicações populares. Não se pode ignorar a efetiva irrupção de
lutas populares significativas no Brasil, mas elas não romperam a
ordem autocrática, embora tenham gerado sua extensa recon-
figuração.
As burguesias brasileiras mantêm (e exportam) suas tradições
truculentas, a elas adendando uma amplíssima rede de conven-
314 u V IRGÍNIA F ONTES

cimento no âmbito da sociedade civil, convertida em política de


Estado. Aderiram, à sua maneira, à forma da política capital-
imperialista dominante no cenário internacional. Dada a estreita
imbricação de seus interesses com os demais capital-imperialistas,
em contexto histórico no qual a constituição de burguesias em
espaços nacionais passa por uma intensa cosmopolitização, a
expectativa de um comportamento autonomizante e republicano
dessas burguesias está fadada ao fracasso. Inexiste pois uma burguesia
nacional no Brasil e inexistem condições históricas para a emergência
de algo similar. Essa constatação de forma alguma reduz o peso e a
complexidade organizativa dessas burguesias brasileiras.
O caminho que conduziu ao formato atual de seu poder,
entretanto, ocorreu através de intensas lutas intraburguesas e de
resistências variadas. Não derivou apenas de opções ideopolíticas
imediatistas e míopes de seus intelectuais. Apenas à guisa de exemplo,
há 20 anos, Bresser Pereira sugeriu a adesão imediata aos acordos
propostos pelos Estados Unidos, recusando-se a uma política de
integração latino-americana que, segundo ele, reduziria o país a
“primeiro dos últimos”. Para ele, mais valeria ser o “último dos
primeiros” (PEREIRA, 1991, p. 69-78). Por ironia da História, a
derrota da via preconizada por Bresser Pereira, que endossava a adesão
imediata à ALCA sob a batuta dos Estados Unidos, conduziu de forma
mais eficaz ao resultado que almejava...
A complexificação da dominação capitalista no Brasil forjou
também a complexificação das condições de formulação política,
ainda que mantida a seletividade associativa, agora sob o formato de
uma “pedagogia da hegemonia” acrescida da criminalização dos
movimentos contestadores.

Revoluções passivas e fuga para a frente:


lutas de classes e democracia

O’Donnel (1988, p. 75-77) com razão, espantava-se de uma


“peculiar presença” burguesa, geradora de uma história eternamente
realizada pelo alto e de cima para baixo, ao lado de um “hiato” ou
“ausência relativa” das classes dominadas no processo político. Ora, o
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 315

cerne do processo que culmina no século XXI e no capital-impe-


rialismo brasileiro não seria compreensível, ao contrário, sem as im-
portantes lutas de classes, ocorridas em condições extremamente
desiguais, e a repressão seletiva que sofreu o conjunto da classe
trabalhadora brasileira.
O século XX inteiro foi marcado por fortes lutas sociais, rurais
e urbanas, cujo teor se modificaria no compasso das transformações
econômicas que os trabalhadores sustentaram (com seu suor) e que
sofreram política e socialmente. Três períodos cruciais para a história
do Brasil foram de intensas lutas com crescente teor explicitamente
classista, impulsionadas por forte reivindicação igualitária e
democratizante: 1920-35, 1955-64 e 1975-89. Somente levando tais
lutas em consideração é possível compreender que a violência da
reação proprietária – como a ditadura em 1937 e o golpe de Estado
civil-militar de 1964 – seria impotente para conter a incorporação
popular nos quadros estreitos dos momentos precedentes, a menos
que ocorresse um recuo da própria acumulação capitalista. Nos três
casos, embora com graus diversos, a repressão se abateu tanto mais
violentamente quanto maior foi a tendência a uma aproximação en-
tre os setores urbanos e os rurais. Após a degola das lideranças
populares, os setores dominantes precisariam entretanto “pacificar”
tais setores populares, o que se realizou através da formulação legal de
direitos, ainda que amputados da capacidade socialmente transfor-
madora que originalmente continham. Para sustentar a dominação
nos novos patamares que a própria luta social impunha, era preciso
realizar seguidos saltos para a frente em termos da acumulação de
capitais, de maneira a assegurar tanto a coesão interelitária, através de
um aumento na escala da concentração e da acumulação de capitais,
quanto o controle e a adesão, para além do silenciamento, de seg-
mentos populares.
No primeiro período, as décadas iniciais do século XX
caracterizaram-se pela expressão pública e difusa em âmbito nacional
de uma premente questão social. Inúmeras greves, movimentos
sociais diversos e reivindicações democratizantes eclodiram nas
principais cidades (VIANNA, 1999; MATTOS, 2004). Nos anos 1920,
a Coluna Prestes e o Bloco Operário e Camponês demonstraram o
316 u V IRGÍNIA F ONTES

quanto o universo rural, com suas violentas revoltas, ainda escas-


samente organizado do ponto de vista nacional e pouco conhecido
pelo mundo urbano, figurava como elemento crucial, mesmo se ainda
à sombra, para as principais organizações de trabalhadores, quase todas
urbanas. E foram essas lutas que geraram, sob uma ditadura
implementada exatamente para contê-las, a primeira legislação geral
do trabalho que, não por acaso, segregava cuidadosamente traba-
lhadores rurais e urbanos (SANTOS, 1979; OLIVEIRA, 2003).
Consolidava-se o processo de intensificação da industrialização
brasileira, de caráter “substitutivo de importações”, inicialmente
restrito, mas que se ampliaria a partir da década de 1950. O caráter
“substitutivo” indicava estar prioritariamente voltado para o mercado
interno. A Carta do Trabalho do Estado Novo não só desmantelava
conquistas anteriores, a começar pela autonomia organizativa, que
seria permanentemente bloqueada pelo viés corporativista então
imposto e até hoje não desfeito, como carreava para o Estado os
recursos provenientes de parcela do imposto sindical, das caixas e das
associações mútuas precedentes, favorecendo, ainda que em escala
incipiente, sua política industrializante.
No segundo período, de 1955 a 1964, a situação se comple-
xificaria, uma vez que a industrialização se completava e os grandes
capitais brasileiros alçavam de patamar, integrando subalternamente
a monopolização já vigente nos países preponderantes e aqui
presentes através da estreita dependência que os ligava. Com a
persistência da grande propriedade agrária e das expropriações de
trabalhadores rurais, crescera o contingente de trabalhadores urbanos
e muscularam-se suas lutas, visíveis pela vigorosa participação
sindical, apesar dos óbices que pesavam contra ela2. As reivindicações
dos trabalhadores e das lutas populares rurais e urbanas, ainda que
expressas em termos democráticos, chegaram a configurar uma
situação pré-revolucionária, não porque se organizassem para tanto,
mas porque defrontavam-se com a truculência organizada dos setores
dominantes e colocavam em risco o restritíssimo pacto proprietário
em vigor (FERNANDES, 1975, passim e MELO, 2009). Mais uma vez,
reuniam-se setores politicamente expressivos dos trabalhadores
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 317

urbanos e rurais, sob a reivindicação de Reforma Agrária ao lado das


demais reformas de base, impulsionados pelo crescimento organi-
zativo das Ligas Camponesas e sua aproximação com o sindicalismo
urbano.
Uma Revolução na Ordem, que assegurasse um teor de
incorporação democrático compatível com a complexificação da
sociedade brasileira de então, foi destroçada pelo golpe de Estado,
como caracterizou Florestan Fernandes (1975). Mais uma vez,
entretanto, a truculência ditatorial seria insuficiente para conter, em
médio prazo, a expressão sociopolítica que era produto da própria
complexificação do capitalismo da qual resultava a ditadura e que ela
estimulava. Promovia-se o crescimento acelerado de uma classe
trabalhadora urbana exasperadamente desigual, impulsionada pela
monopolização da economia e pela continuidade da expropriação
rural, aprofundada agora por políticas agressivas de abertura e
adentramento de fronteiras rurais, escancaradas ao grande capital,
sobretudo a partir dos anos 1970. Grandes investimentos nessa nova
fronteira agrária modernizavam o campo, reincidindo na mono-
cultura (caso da soja e da cana, por exemplo), mas agora sob o controle
de capitais fortemente concentrados e tecnificados. Alterava-se o perfil
da composição interburguesa e a própria composição da classe
trabalhadora. No âmbito rural, na qual cresceu o assalariamento
direto ou sazonal, a pressão econômica impulsionava levas de
migrantes internos, expropriados em suas regiões de origem, para
colonizar e fornecer os braços necessários à expansão agrária. Os
camponeses e pequenos proprietários remanescentes, numerosos,
passariam a defrontar-se com o grande capital monopolista, ao lado
dos velhos latifúndios. Fomentavam-se as condições para a comple-
xificação da monopolização do capital no país, pela abertura da
economia para a participação ainda maior de capitais estrangeiros,
consolidando o famoso tripé (Estado/multinacionais/grandes
empresas nacionais). Adubava-se um sistema financeiro, capturando
recursos dos trabalhadores através do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço- FGTS (VALENTINO, 2008), do Sistema Financeiro da
Habitação - SFH e do estímulo às bolsas de valores; realizaram-se
318 u V IRGÍNIA F ONTES

gigantescas obras de infraestrutura e de suporte ao grande capital, que


se aproveitaram da enorme mobilidade territorial dos trabalhadores,
politicamente jugulados.
Afirmava-se na mesma década de 1970 o processo de expor-
tação de capitais a partir do Brasil, configurando o que Ruy Mauro
Marini (1977) definiria como o subimperialismo brasileiro. Marini
sublinhava a complexificação do processo industrial brasileiro (sua
alta composição orgânica) e agregava, como condição para tal
subimperialismo, o exercício de uma política expansionista de Estado
relativamente autônoma. Sua análise lastreava-se no crescimento das
exportações de manufaturados brasileiros para a América do Sul,
potencializadas pelas acanhadas dimensões do mercado interno. Mais
adiante retomaremos as proposições de Marini.
O processo de monopolização fermentara o crescimento de
uma extensa, variada e heterogênea massa trabalhadora urbana e ru-
ral, à qual se acenavam possibilidades futuras quando chegassem os
resultados da “modernização” empreendida. Tais acenos apontavam,
sobretudo, para o consumo, somente possibilitado através da difusão
dos crediários, em troca do espezinhamento dos direitos adquiridos e
salários conquistados no período anterior. Mesmo após o golpe de
Estado, sob condições de longa e especial truculência, os efeitos de
lutas anteriores se faziam sentir, através, por exemplo, da proposição
de uma tímida Reforma Agrária, logo abalroada pela Sociedade Rural
Brasileira, estabelecendo programas pífios de participação no
aumento da produtividade, como o Programa de Integração Social
(PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público
(PASEP) e algum reconhecimento de direitos para os trabalhadores
rurais, dentre outros.
Sob a ditadura, paralelamente ao forte impulso na escala da
concentração de capitais, incubaram-se e fortaleceram-se mais
entidades organizativas das classes dominantes agora lideradas pela
fração monopolista, industrial e bancária (nesta última predominava
o capital brasileiro) e associada a grandes capitais internacionais. Em
que pese, porém, a exacerbação ditatorial da repressão seletiva sobre os
trabalhadores, ainda sob intensa repressão as lutas operárias
retornariam com intenso vigor: pipocavam embates de trabalhadores
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 319

rurais e lutas populares diversas, convivendo com o surgimento de


novas reivindicações próprias de uma sociedade já amplamente
urbanizada e dramaticamente desigual.
Chegamos ao terceiro e crucial período. Irresolvidas nos dois
períodos históricos precedentes, as reivindicações democratizantes
reapareciam na década de 1970/1980, com um perfil de requeri-
mentos bem mais extenso e complexo e exigiriam um período mais
longo e um processo mais tortuoso para sua contenção. As mais
significativas expressões nacionais dessas lutas foram a fundação do
Partido dos Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Mesmo sofrendo importantes derrotas, estas lutas conduziram
à conformação de uma nova Constituição, em 1988, que asseverava,
ao menos em alguns de seus pontos, uma incorporação mais ex-
pressiva de amplos segmentos da população, através da regula-
mentação jurídica futura dos direitos genericamente prometidos. O
feito popular mais significativo residia exatamente numa nova
capacidade organizativa de âmbito nacional, que reatualizava o pânico
das classes dominantes brasileiras, profusamente difundido pela
mídia e ecoado por permanentes ameaças militares.
Como em cada um dos períodos assinalados anteriormente,
procurava-se assegurar o adiamento ou esterilização das conquistas
populares, porém isso pressupunha enorme salto para a frente na
acumulação, dando fôlego econômico para uma incorporação
minorada e assegurando que o exercício contumaz da violência se
apresentasse como necessidade momentânea para o crescimento fu-
turo. De maneira violenta, tíbia e subalterna, o movimento
empreendido pelas pontas mais concentradas dessas burguesias
atuaria em duas direções: assegurar um salto na concentração de
capitais e reduzir as reivindicações populares a uma gestão de conflitos
negociáveis, despindo a democracia de sua capacidade igualitária.
Tratava-se, pois, de controlar as rédeas eleitorais, de destroçar o caráter
igualitário das reivindicações populares, adequando-as à “moder-
nidade” (como vimos no caso paradigmático da Força Sindical) através
de intensas expropriações, de velhos e de novos formatos.
320 u V IRGÍNIA F ONTES

A principal inflexão nas lutas sociais dos anos 1980 – e sua


derrota principal – não decorreria da imposição de mais uma ditadura,
mas de uma complexificação do padrão da dominação burguesa no
Brasil, que agregaria à autocracia burguesa e à truculência no trato
social novas modalidades de convencimento. A democracia, fruto da
conquista popular, enfrentaria uma regular e sistemática redução de
seu teor igualitário, crescentemente sinonimizada aos mecanismos
eleitorais e parlamentares, o que se inicia com a eleição de Fernando
Collor de Mello em 1989.
Aqui há uma questão histórica e sociológica delicada, pois
envolve circunstâncias externas, envolve uma dimensão externa-
interna, pela conexão interna das formas da imposição política capi-
tal-imperialista, e finalmente envolve circunstâncias propriamente
internas, que, jamais sendo isoláveis das precedentes, conservam,
entretanto, uma dinâmica própria. Já apontamos anteriormente para
a constituição do agenciamento político característico do capital-
imperialismo no plano internacional, através das frentes móveis de
atuação internacional, compostas por instituições oficiais inter-
nacionais, entidades governamentais, empresariais e de tipo funda-
cional, que de longa data penetravam na conformação da organicidade
dos diferentes setores burgueses no Brasil e avançavam sobre
elementos organizativos importantes dos setores populares. Agora,
porém, interessa-nos o fenômeno, em sua versão interna, das lutas
específicas aqui travadas que, embora conservando relação com os
âmbitos externos, mostra o quanto elementos fundamentais do capi-
tal-imperialismo foram incorporados internamente, passando a
integrar as pautas de demandas e as ferramentas de organização
elaboradas internamente.
Trata-se de transformações mais ou menos moleculares,
impulsionadas pela própria experiência de processos até então
inexistentes na história brasileira: processos eleitorais de massa, com
uma importante base associativa – sobretudo sindical – e com
possibilidade efetiva (posteriormente concretizada) de rotação de
partidos no poder.
A questão fundamental para a compreensão do fenômeno
envolve definir o jaez político do capitalismo brasileiro que emerge
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 321

das entranhas da ditadura e dos posteriores constrangimentos


econômicos impostos à maioria da população brasileira na década de
1990. Que relação se travou aqui entre capitalismo e democracia? A
longa sequência de revoluções passivas que enfim desembocava, no
Brasil, na generalização de uma forma legal e estável na qual os
conflitos sociais (na e contra a ordem) poderiam se expressar e
impulsionar, com sua dinâmica especificamente democrática, a
própria dominação burguesa, civilizando-a? Embora a resposta a tal
questão seja necessariamente nuançada, é preciso lembrar que o capi-
tal não é civilizável, da mesma forma que nenhuma burguesia pode
conservar-se como tal, a não ser convulsionando toda a existência
social para assegurar uma incontrolável acumulação de capital.
Porém, tais convulsões sociais produzem efeitos e provocam reações.
Lutas de classes podem assumir caráter reativo ou defensivo, exigindo
incorporação, ou podem avançar para proposições eticopolíticas con-
tra-hegemônicas, revolucionárias.
Como insistiu Florestan Fernandes, a trajetória da dominação
burguesa no Brasil conservou, adequou e adaptou, emasculando-os,
todos os grandes desafios burgueses colocados pela expansão da
industrialização e, em seguida, do capitalismo monopolista que,
ainda que subalternamente, essas mesmas burguesias brasileiras
capitaneavam. Longe, portanto, de qualquer processo revolucionário-
ainda-que-burguês de cunho nacionalista ou democrático, as bur-
guesias brasileiras procuraram deprimir e comprimir as reivindica-
ções, as aspirações e os direitos das classes dominadas. (FERNANDES,
1975, p. 343)
Alterando-se para assegurar a continuidade da autocracia, a
estabilização política pós-ditatorial sob a forma eleitoral (democrá-
tica) foi recheada de retóricas altissonantes (como a Nova República),
de propostas de conciliação pelo alto e de “mudancismos”, procurando
bloquear uma aproximação entre diferentes setores populares que
reinaugurasse a história e resgatasse a “gentinha” como protagonista
política. Para Florestan Fernandes, o mudancismo, desmobilizando a
prática democrática dos movimentos populares, conduzia à cooptação
(FERNANDES, 1986, p. 20). A autocracia burguesa, incrustada na
própria ossatura do Estado, resistia ao formato pretensamente univer-
salizante proposto pela Constituição de 1988.
322 u V IRGÍNIA F ONTES

Imediatamente após a derrota da primeira candidatura Lula,


no contexto de um partido efetivamente classista e popular,
recomeçaria um longo período de esterilização de recém-conquis-
tados direitos, impostos pela avassaladora imposição, que apenas na
aparência era unicamente externa, da “globalização” e do “neolibe-
ralismo” e que teve como respaldo o esboroamento da União Soviética.
No entanto, esse não foi um processo linear nem conduzido apenas
pelos setores privados. Sua grande estreia foi realizada inicialmente,
no caso brasileiro, no âmbito público, através de grandes vagas de
demissões e da preparação das privatizações. Dado o perfil tradicional
da ampliação seletiva do Estado brasileiro e, em especial, o caráter do
governo Collor, é de supor que tais políticas tenham sido elaboradas
com intensa participação empresarial.
A nova esterilização das reivindicações sociais se realizaria,
porém, doravante sob outro formato, de cunho parlamentar, no qual a
retirada de direitos atuava sob a normalidade eleitoral democrática. A
autocracia herdada não era suficiente para separar massa e classe. Era
preciso estabelecer novas formas de conciliação de classes que, embora
contidas pelo alto, abrissem espaço para incorporar segmentos
precisamente recortados entre os grupos sociais aderidos à “revolução
dentro da ordem”3, passíveis de incorporação através de formas de
conciliação de novo tipo. Já havia as experiências prévias de conversão
mercantil-filantrópica na década de 1980, embora em sua grande
maioria seguissem imantadas pelo PT.
Vista com o recuo que quase 30 anos permitem, a década de
1980 e seus desdobramentos nos primeiros anos 1990 evidenciam
uma importante inflexão na trajetória histórica brasileira, que,
conservando inúmeras de suas tradições, encontrava-se diante de uma
conjuntura de novo tipo, na qual conjugavam-se lutas populares
fortes com a necessidade burguesa da estabilização de um formato
político de tipo democrático-representativo 4. Vários elementos
precisam entrar aqui na linha de conta: a crise econômica, com o
crescimento explosivo da dívida externa; a inflação galopante, que
cobrava seu custo, sobretudo dos setores mais pauperizados da
população, exatamente num período no qual a ditadura entrara em
crise e ascendiam os movimentos populares pela democracia; a tensão
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 323

no interior dos movimentos populares, que crescia no sentido de uma


superação da ordem até então dominante, ainda que confusamente
diluída no bojo de reivindicações que primavam por um conteúdo
“democrático”, mas carreavam um teor socializante.
As intensas lutas de classes contribuíam para o acirramento
das disputas intraclasse dominante e para a redução de seu poder
unificado de impor nova solução ditatorial, ao mesmo tempo em que
no contexto internacional o degelo da Guerra Fria fazia recuar os
argumentos ideopolíticos esgrimidos anteriormente. Crescia um
pragmatismo estreitamente coligado à expansão de capitais ocidentais
no então chamado (e agonizante) “mundo comunista”, dando vez à
difusão dos pós-modernismos variados. Os grandes capitais aqui
implantados – qualquer que fosse sua origem nacional – disputavam
acidamente a condução do processo, o que se traduzia, por exemplo,
em grosseiros textos publicados na revista Veja desqualificando a
própria burguesia brasileira (SILVA, 2009, p. 34-46), sob o predomínio
econômico dos setores mais internacionalizados, isto é, mais
subalternos com relação ao grande capital multinacional, porém
integrado também por fortes interesses brasileiros.
Muitos já assinalaram o descompasso político brasileiro desse
período, com um ascenso das lutas dos trabalhadores e de sua
organização na mesma década em que, no cenário internacional, estas
enfrentavam um processo de jugulamento pelos governos neoliberais.
Aquilo que até então figurava como uma espécie de modelo social-
democrata de universalidade de direitos, através da sinonimização
entre capitalismo avançado e bem-estar social, se esboroava sob os
deslocamentos de empresas, as reestruturações e reengenharias e o
desemprego nos países predominantes, crescentes já na década de
1980. A queda do muro de Berlim e o melancólico final da URSS
operaram como o cortejo fúnebre de um estado de bem-estar, já
agonizante há vários anos.
A prática do capital-imperialismo e sua generalização não
atuam apenas no sentido centro-periferia, mas também no sentido
inverso. Em outros termos, as experiências autocráticas desenvolvidas
em outros países e a manutenção de organizações refinadas voltadas
para a dominação social experimentadas nos países capital-im-
324 u V IRGÍNIA F ONTES

perialistas secundários ou periféricos reverteram-se contra as classes


trabalhadoras dos países centrais. O que Fernandes designou de
“mudancismo”, ou seja, a adoção pelo adversário da linguagem oposta;
a criação de novos conceitos para designar e escamotear velhas
realidades; o uso de práticas de conciliação que visam apenas a
preservar e fortalecer a ordem dominante (FERNANDES, 1986, p. 70-
71) – a ordem do capital – passavam a vigorar amplamente nos países
centrais e, em especial, na Europa. (GUILHOT, 2004, p. 26-31;
BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999, passim)
Nos países predominantes, essa prática, agregando coerção
econômica aberta, mudancismo e processos eleitorais, partia de um
alto grau de adesão social e de confiabilidade no sistema eleitoral,
forjados ao longo das décadas anteriores e que favorecia o encapsula-
mento dos trabalhadores, sob a batuta da social-democracia. As
principais transformações operadas nos países europeus e nos Estados
Unidos conjugaram violência econômica (demissões), jurídica
(expropriação de direitos), social (penalização crescente das
populações vulneráveis, como os imigrantes), e mercantil-filan-
tropização cosmopolita de formas de organização. Realizaram-se
através de procedimentos juridicamente legais, inclusive, a enorme
violência exercida contra os sindicatos mais combativos. Os tra-
balhadores de tais países ficaram encurralados diante da mobilidade
crescente e cosmopolita do capital.
Os caminhos e formas sociais percorridos no Brasil foram
múltiplos e variados. No entanto, podemos apontar traços comuns,
adotados de maneira mais ou menos coerente ao longo dos últimos 20
anos. Em primeiro lugar, segmentar os setores mais fortemente
organizados dos trabalhadores, através da concessão de benefícios
parciais, caso da Força Sindical, que já apresentamos. Em seguida,
angariar e reverter a confiabilidade popular adquirida por certos
setores da antiga oposição à ditadura, em especial com perfil
esquerdizante (os “radicais” da revolução dentro da ordem, como os
designava Florestan Fernandes), cujo primeiro sucesso foi alçar
Fernando Henrique Cardoso à condição de presidente da República
por dois mandatos, em nome de uma suposta “social-democracia”. As
políticas regressivas adotavam uma linguagem “reformista”, desfi-
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 325

gurando o sentido socializante (universalizante) das reivindicações e


apelando fortemente para a denúncia de “privilégios” (TEIXEIRA,
2006, passim). A crise social gestada pelo desemprego abalava as
entidades sindicais, tornando-as mais permeáveis à adoção de práticas
emergenciais que, pouco a pouco, as conduzia a abandonar as práticas
mais combativas: ora se fechando em trincheiras defensivas, ora
aderindo às novas práticas que desmantelavam as conquistas
históricas dos trabalhadores, mas acenavam com algum alívio
imediato. Esse percurso seria trilhado também por diversas correntes
do PT e suas correlatas tendências sindicais, resultando num trans-
formismo quase clássico no qual grande parcela da esquerda, em sua
prática e em seu discurso, atuaria pro-ativamente para o capital
(COELHO, 2005).
Sua resultante confirmaria a nova centralidade da institu-
cionalidade democrático-representativa, com o predomínio de um
Estado de direito sob o formato democrático-eleitoral. Não houve salto
ou ruptura, mas mudança gattopardiana, garantidora da conservação.
Porém, mesmo neste caso, ocorreram modificações relevantes. A
incorporação de uma esquerda para o capital não resultou apenas de
uma estratégia maquiavélica e só pôde ocorrer pela importância
efetiva que assumiram as lutas populares no período, o que explica a
legitimidade adquirida pelo PT e pela CUT nos processos de luta
popular nos quais estiveram engajados. Mesmo as correntes internas
do PT e da CUT que atuaram em diversas ocasiões refreando a
combatividade popular conservavam uma fala pública de cunho
vagamente socializante, de maneira a se assenhorearem do prestígio
que o partido angariou em seus primeiros anos. A eleição de Lula da
Silva em final de 2002, ainda que com um programa muito distante
das lutas históricas e universalizantes que marcaram os primeiros
tempos do PT, expressava, enfim, o reconhecimento mínimo da
existência infrapolítica da classe trabalhadora e de setores subalternos.
O padrão de dominação aqui implementado sob a ditadura,
nos moldes da dependência e fazendo convergir para o Estado o núcleo
do poder de decisão e de atuação da burguesia, levou Florestan
Fernandes a alertar que “a largo prazo, a alternativa é óbvia. Ou a
dominação burguesa se refunda, ajustando-se às pressões de baixo
326 u V IRGÍNIA F ONTES

para cima e ao ‘diálogo entre as classes’, ou ela se condena a desaparecer


ainda mais depressa.” (FERNANDES, 1975, p. 309, grifos do autor).
Não houve uma desconexão, sequer relativa, frente ao capital-
imperialismo internacional por parte das burguesias brasileiras, como
Florestan Fernandes supunha ser condição para a redução da
“alienação das classes burguesas” brasileiras, que tolhiam sua própria
capacidade econômica, sociocultural e política. Não se instaurou um
efetivo “diálogo” entre as classes sociais (o que envolveria uma efetiva
revolução contra a ordem), mas implementou-se no Brasil um duplo
fenômeno: uma integração pelo alto entre segmentos das diferentes
classes sociais, realizada através das novas posições sociais, eco-
nômicas e políticas galgadas pelos altos escalões sindicais (inclusive
em fundos de pensão), e uma extensa política público-privada de
alívio a situações emergenciais de pobreza, sem configurar direitos
universais. Este foi o grand finale da revolução burguesa no Brasil,
coerente com o momento capital-imperialista e suas novas formas de
incorporação de países retardatários, nos quais o acesso à democracia
ocorre através da redução de toda a política à pequena política, limitada
a administrar o existente, segundo a expressão de Gramsci. Os direitos
universais são reduzidos à sua expressão mínima; bloqueia-se
qualquer processo de universalização substantiva e igualitária.
Coutinho sugeriu que as opções com as quais se defrontara o
processo de consolidação do Estado de direito no Brasil oscilavam
entre uma democratização nos moldes dos processos europeus, na
qual haveria uma disputa sobre a grande política, categoria de Gramsci
para a luta em torno dos fundamentos estruturais da sociedade, ou
uma democracia menor, exacerbando-se aqui o modelo estaduni-
dense no qual predomina a pequena política. Entretanto, a democracia
europeia, ele próprio assinala, não resultara das políticas implemen-
tadas pela social-democracia, mas de fortes lutas de classes, e, a partir
das duas últimas décadas do século XX, na própria Europa passara a
predominar o modelo estadunidense. Coutinho acrescentava, ainda,
que “transformar toda a política em pequena política é grande política:
é precisamente o modo pelo qual a burguesia luta hoje pela
hegemonia”. (COUTINHO, 2007, p. 126)
Em outros termos, o processo transcorrido no pós-ditadura
correspondeu ao rebaixamento das exigências revolucionárias ou
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 327

contra a ordem e, em médio prazo, a internalização, por duas das mais


importantes e expressivas organizações nacionais de origem popular,
de sua proscrição. Não significou, entretanto, o desaparecimento da
questão, seja pela combatividade de outras associações que se
defrontam mais diretamente com o grande capital transnacio-
nalizado, como o MST, seja por novos partidos, seja ainda pela
irresolução das velhas questões que a fuga para a frente capital-
imperialista reatualiza, ou pela emergência de novas pulsões sociais
igualitárias.

Dependência, concentração de capitais e mercado externo

As bases da monopolização consolidadas no período ditatorial


e asseguradas pela dívida pública (através dos gigantescos investi-
mentos estatais para assegurar infraestrutura e produção de base para
os setores monopolistas) seguiam o padrão anterior, voltadas para o
mercado interno, ao lado de permanentes incentivos às exportações.
A plena agregação das empresas multinacionais, ao lado do cresci-
mento paralelo das empresas brasileiras, se traduziu em experiências
de exportações de produtos industrializados ou, mesmo, de expor-
tações de capitais (sobretudo no setor da construção civil, cf. CAM-
POS, 2008), em momentos de crise do mercado interno5. Ao longo da
década de 1980, nova série de empresas brasileiras se lançava no
mercado internacional, indo além das exportações de bens e
estabelecendo depósitos, subsidiárias, adquirindo plantas locais
preexistentes ou implantando suas próprias unidades de produção
em países vizinhos6. A amplitude e variedade dos interesses burgueses
e a intrincada rede de organizações patronais e empresariais geravam,
certamente, novos conflitos entre as frações que pretendiam dirigir o
processo, mas estas contavam com uma multifacetada gama de
articulações e de foros internos de deliberação, assim como áreas de
refúgio econômico proporcionadas pela extensão de empresas de
diferenciados portes, permitindo a diversificação de aplicações no
plano interno e externo, para além de fusões e incorporações.
Esboços de internacionalização de capitais brasileiros já
haviam ocorrido desde a década de 1960, inclusive através de
328 u V IRGÍNIA F ONTES

iniciativas capitaneadas pela ditadura militar, como a construção da


Hidrelétrica de Itaipu, juntamente com o governo ditatorial do
Paraguai. A partir da década de 1990, entretanto, alterava-se a escala de
concentração de capitais com base no território brasileiro, poten-
cializada tanto internamente quanto pelo suporte externo, através do
gigantesco crescimento de Investimentos Diretos Estrangeiros (IDEs)
na economia brasileira, concentração estimulada através das
privatizações e da centralização (fusões e aquisições) de empresas,
perpetuando o padrão das associações entre capitais brasileiros e
estrangeiros. Vale mencionar o importante papel cumprido pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
ao realizar substantivos aportes, direcionando algumas privatizações,
favorecendo certos grupos de capitais brasileiros. Assim, o setor
público financiava o desmantelamento das empresas públicas através
de formidáveis doações de capital nos governos Fernando Henrique
Cardoso. Pode-se dimensionar a concentração pelo crescimento do
fluxo de capitais provenientes do exterior para investimento direto,
ou seja, de capitais que não se limitavam ao circuito imediatamente
especulativo.
Fluxos de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) em países selecionados (US$ milhões)

Países e regiões 1990-1995* 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Mundo 225.321 386.140 478.082 694.457 1.088.263 1.491.934 735.146

Países desenvolvidos 145.019 219.908 267.947 484.239 837.761 1.227.476 503.144

Argentina 3.458 6.951 9.156 6.848 24.134 11.152 3.181

Brasil 2.000 10.792 18.993 28.856 28.578 32.779 22.457

O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 329


Chile 1.499 4.633 5.219 4.638 9.221 3.674 5.508

México 8.080 9.938 14.044 11.933 12.534 14.706 24.731

China 19.360 40.180 44.237 43.751 40.319 40.772 46.846

Índia 703 2.525 3.619 2.633 2.168 2.319 3.403

(*) média anual.


Fontes: Bacen, Cepal e Unctad.
(Dados extraídos de Sarti e Laplane, 2003, p.16)
330 u V IRGÍNIA F ONTES

Como se observa, o fluxo de IDE mantém-se centralmente en-


tre os países definidos como desenvolvidos. Quanto ao Brasil, este
passou a concentrar parcela crescente dos IDEs destinados à América
Latina, recebendo mais recursos entre 1996 e 2000 do que o México,
apesar da proximidade deste país com os Estados Unidos e de sua
incorporação desde 1994 ao Tratado Norte-Americano de Livre
Comércio (Nafta), envolvendo Estados Unidos, Canadá, México e,
subsidiariamente, o Chile. Analisando dados das 500 maiores
empresas privadas em atuação no Brasil, Sarti e Laplane concluem ter
ocorrido uma profunda desnacionalização do setor produtivo bra-
sileiro, uma vez que tais IDEs destinaram-se, sobretudo à aquisição de
empresas já aqui instaladas, em especial no período das privatizações.
Os mesmos autores enfatizam a diferença do caráter da
internacionalização realizada no Brasil perante a ocorrida na Coreia e
no México. Nestes,
a internacionalização foi um processo de extroversão da
produção, seja pelos investimentos das empresas nacionais
no exterior, seja pela exportação da produção doméstica.
No caso brasileiro, a internacionalização teve como alvo o
mercado interno, tanto pela maior presença das empresas
estrangeiras, como pelo aumento do conteúdo importado
da produção. No Brasil, o processo pode ser caracterizado
como um processo de internacionalização do mercado
doméstico, como uma introversão do capital estrangeiro.
(SARTI e LAPLANE, 2003, p. 50, grifos meus)
Desse processo, resultaria a manutenção da característica de
grande país exportador de produtos primários e de produtos com uso
intensivo de recursos naturais para os países desenvolvidos, ao lado da
exportação de produtos de “escala intensiva”, especializados ou com
maior índice de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para a América
do Sul. Aprofundava-se a complexidade da estrutura produtiva
brasileira, mas permaneceriam, segundo os autores, dois obstáculos
“sistêmicos”: “a deficiente capacidade de gerar inovações e a
fragilidade de mecanismos de financiamento de longo prazo”. (SARTI
e LAPLANE, 2003, p. 52-53)
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 331

Comparando os anos de 1989 e 1997, Maria L. Silva analisou as


90 maiores empresas nacionais, observando uma migração de parte
dos grandes grupos brasileiros para os “setores commoditizados e/ou
fortalecimento de atividade dos que já pertenciam a essa área” (SILVA,
2003, p.110). As empresas industriais foram forçadas, pela exposição à
concorrência internacional decorrente da abertura comercial e da
desregulamentação dos anos 1990, a uma maior capacitação
tecnológica e à obtenção de escalas mais competitivas, procurando se
inserir em nichos de mercado, em geral, intensivos em recursos
naturais. Entre os dois anos observa-se um crescimento na partici-
pação das exportações dessas empresas nacionais, sobretudo calcadas
na escala da produção, no acesso a recursos naturais e no uso de
instalações tecnologicamente atualizadas. Essas características,
entretanto, não correspondem a uma internacionalização avançada,
que somente atingiria um grupo pequeno de empresas, sendo que
“algumas, inclusive, com importantes investimentos no exterior.”
(SILVA, 2003, p. 157-158)
Os dados citados anteriormente justificam reafirmar a extensa
desnacionalização e perda de soberania popular sobre o plano
econômico, confirmando a manutenção do país como plataforma de
expansão do capital multinacional aqui sediado. A desnacionalização,
acoplada à dependência e à subalternização da burguesia brasileira
em escala internacional não foi revertida e, ao contrário, se aprofun-
daria7.
Não obstante, não se pode analisar este processo como uma
subordinação mecânica e automática, inclusive porque a generali-
zação da forma da existência social, em seu conjunto, como relações
plenamente capitalistas, alterava as condições políticas nas quais
precisavam intervir as diferentes frações da classe dominante
brasileira e nas quais processavam-se as próprias lutas entre as classes.
Assim, vale considerar alguns de seus elementos mais de perto. Em
outros termos, dimensionar a efetiva subalternidade da burguesia
brasileira precisa levar em conta a nova escala em que ela também
concentrou capitais, sua capacidade de controle político do mercado
interno e a expansão de sua influência ideológica. Já examinamos o
332 u V IRGÍNIA F ONTES

último aspecto anteriormente, quando tratamos das lutas de classes


na sociedade civil e da incorporação pela burguesia brasileira dos
parâmetros internacionais predominantes, ao mesmo tempo em que
conservou as características truculentas e autocráticas que marcaram
o processo histórico brasileiro desde a colonização.
Em primeiro lugar, é preciso destacar as condições econômicas
fundamentais, sempre relacionadas ao chão social no qual se
constituem. Completou-se o ciclo da industrialização no Brasil, que
avançou celeremente em direção à assim chamada terceira revolução
industrial (OLIVEIRA, 2003, p. 134). Ademais, ocorreu a consoli-
dação de vasto mercado interno, alvo prioritário tanto dos investi-
mentos externos quanto dos capitais de origem nacional, impondo
novas exigências à capacidade organizativa do conjunto da classe
dominante no país.
Não se trata de um mercado idealizado, que seria voltado para a
satisfação das necessidades reais do conjunto da população, mas, ao
contrário, de um mercado resultante de intensa expropriação rural,
traduzida no percentual de 75,47% da população residindo em áreas
urbanas pelo censo de 1991, contra 67,59% do censo anterior, de 1980
(MARTINE, 1994), atingindo em 2000 o índice de 81,3%. Aliás, a
preocupação do mercado não é, e jamais o foi, o da satisfação de
necessidades humanas, mas sim prioritariamente o de assegurar a
realização do mais-valor extraído nos diferentes setores de sua
produção. Para tanto, decerto satisfará certas necessidades, sendo a
primeira delas a contínua produção de trabalhadores despossuídos,
cuja existência e reprodução somente poderá ocorrer através do
próprio mercado, quer o trabalhador encontre um emprego formal ou
não.
As profundas desigualdades sociais brasileiras não obstaculi-
zaram a expansão do mercado, embora tenham, segundo os períodos,
hierarquizado mais ou menos rigidamente o acesso a determinados
bens. Desde a década de 1970, entretanto, com a difusão do sistema de
crédito, ampliou-se o espectro social do consumo de bens duráveis,
configurando um acesso segmentado, porém continuamente
ampliado. Aliás, o consumo de novas gamas de bens tende a ser
apresentado como “democrático”, de forma excessivamente redutora8.
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 333

Na década de 1990, o controle da inflação tornava-se prioritário e uma


de suas razões era assegurar a extensão do crédito, impulsionado após
o Plano Real. Este, aliás, foi elaborado por equipe organizada por
Fernando Henrique Cardoso que, em seguida, se ocuparia central-
mente das privatizações e da adequação legal aos formatos impostos
pelo predomínio do capital portador de juros (GRANEMAN, 2006).
Não por acaso, posteriormente praticamente toda esta equipe estaria
convertida em novos banqueiros ou em gestores de setores financeiros
não bancários. (GUIOT, 2006, passim)
Com relação à capacidade organizativa interburguesa, esta
reagia a um conjunto de processos contraditórios, com interesses
diferenciados quanto à generalização das práticas próprias do novo
patamar internacionalizado de concentração de capitais, sob o
predomínio do formato “capital portador de juros” (o chamado
neoliberalismo). Inteiramente de acordo, em seu conjunto, com a
desregulamentação das relações de trabalho e com a liquidação dos
direitos sociais e trabalhistas (muitos ainda sequer implementados),
as burguesias dividiam-se no grau e ritmo a implementar, como
mostrou Décio Saes (2001). A Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo (Fiesp) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI)
expressavam reticências quanto a uma abertura total e incondicional
da economia ao capital estrangeiro, pelo risco da conversão dos
industriais em importadores de similares estrangeiros. Os bancos
nacionais eram favoráveis às privatizações, mas contrários à abertura
do sistema financeiro nacional a novos bancos estrangeiros, e
contaram com ativa atuação da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), pressionando pela proibição de capital estrangeiro novo
no setor. Os grandes proprietários fundiários apoiavam a maior parte
do programa neoliberal, porém procuravam preservar os subsídios
públicos à grande propriedade. As diferenças entre os setores
expressaram-se em resistências dentro dos partidos e no interior do
próprio governo (divergências interministeriais), reduzindo o ritmo
da neoliberalização brasileira comparado ao dos demais países da
América Latina (SAES, 2001, p. 90), ou, em outros termos, mais
controlado pelo contraditório jogo entre instâncias do grande capital
de origem brasileira, que via no processo, também, uma possibilidade
334 u V IRGÍNIA F ONTES

de alçar-se, ainda que de maneira dependente, ao novo patamar


internacional de concentração.
Em segundo lugar, porém não secundariamente, tratava-se de
garantir o novo salto no patamar da concentração através da captura
de todos os recursos sociais, destinando-os à valorização do valor, no
mesmo padrão predominante no cenário internacional. Aqui, o
fenômeno econômico é, ao mesmo tempo, político, social e
ideológico e atravessa integralmente o terreno das lutas de classes.
Ocorreria uma severa investida patronal e empresarial na reorga-
nização da própria classe trabalhadora, em diferentes dimensões. Em
condições de representação eleitoral, era preciso fragmentar de
maneira profunda as ativas organizações dos trabalhadores, a partir de
seu próprio interior, interessando-as e comprometendo-as com os
processos de acumulação capitalista, golpeando-as por um lado e, por
outro lado, levando-as a consentir, por razões pragmáticas, no próprio
processo de fragilização de suas condições de existência, tema
trabalhado no âmbito político de forma magistral por Eurelino Coelho
(2005) e recolocado por Sara Graneman (2006) no terreno econô-
mico. No bojo da derrota eleitoral de Lula frente a Collor em 1989,
com a contribuição inesperada do desmantelamento das experiências
protossocialistas, a primeira grande cartada – evidenciando seu novo
teor “democrático” – da burguesia brasileira foi, como já vimos, o
decidido apoio à criação da Força Sindical, em 1991, voltada para a
conciliação entre capital e trabalho e para resultados imediatos
(GIANNOTTI, 2002, passim). A introdução dessa cunha no movi-
mento sindical foi fundamental para os passos seguintes, por meio
dos quais a própria CUT seria neutralizada através de sua participação
subalterna em agências do Estado, como o FAT, e de assentos em
conselhos de fundos de pensão. Se a ala mais combativa da Central
lutou contra as privatizações, outros integrantes da CUT atuavam
como partícipes compradores de leilões privatizantes, integrando os
conselhos dirigentes dos Fundos de Pensão (GARCIA, 2008).
A previdência privada, sobretudo para alguns segmentos do
setor público, havia sido introduzida pela ditadura civil-militar,
quando do primeiro impulso de implantação de um sistema
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 335

financeiro de larga escala no país. A criação de fundos com base nos


recursos laborais fora precoce sob a ditadura, como o já mencionado
FGTS, que abolia a estabilidade no emprego.
Observa-se, portanto, que a questão de um novo padrão capi-
tal-imperialista, se se tornava mais evidente em finais da década de
1990, já compunha o espectro brasileiro anteriormente. Desde 1977, a
revista Visão – expressando os interesses de certas frações da classe
dominante – empreendeu campanha pela transformação das
fundações de seguridade em fundos de pensão segundo o modelo
norte-americano, o que ocorreu em 1979, explicitamente sugerindo
sua conversão em base para a expansão do mercado de capitais e de-
fendendo uma nova forma de relacionamento entre o capital e os
trabalhadores detentores de parcelas de tais fundos. As condições
ditatoriais suscitavam, porém, excessiva desconfiança dos traba-
lhadores, inviabilizando a plena mobilização de tais recursos
(GRANEMAN, 2006, cap. 3).
Capturar tais massas de recursos, como se pode imaginar,
envolvia um novo modus operandi, tanto do conjunto da classe
dominante, quanto do próprio Estado. Não se tratava de lutar contra a
gestão, por representantes de assalariados (os “proprietários”) de tais
fundos, mas de convertê-los em “parceiros” na acumulação e
valorização do capital, seduzindo-os pelo atributo direto do capital,
isto é, a lucratividade. Baseando-se em argumentos de Peter Drucker,
Henry Macksoud, proprietário da revista Visão, sugeria uma
reviravolta ideopolítica, embora a ditadura dela não pudesse se
aproveitar. Abria o espaço não para o combate aberto contra a esquerda
ou o marxismo, mas para sua conversão lucrativa:
Nos Estados Unidos, portanto, os trabalhadores detêm
“posições de comando” no sistema econômico de que
nenhum país “comunista”, “trabalhista”, “socialista”,
“democracia popular”, “social-democracia”, “socialismo
democrático” ou qualquer Welfare State conseguiu nem de
longe se aproximar. Parece, pois, que Marx não se equivocou
quando, em seu “Manifesto Comunista”, em 1848, enaltecia
a burguesia como classe revolucionária (...) O que Marx
talvez não tivesse imaginado é que com o “capitalismo” que
336 u V IRGÍNIA F ONTES

ele acreditava vir a sucumbir por suas próprias contradições


tivesse tanta vitalidade que superaria os próprios dogmas
marxistas, atingindo ideais “socialistas” (no sentido de
justiça e bem-estar sociais e propriedade dos meios de
produção pelos trabalhadores) sem quebra dos princípios
da livre-iniciativa, preservando a propriedade privada e
mantendo todas as liberdades individuais essenciais que
nenhuma outra experiência “socializante” “conseguiu sequer
vislumbrar”. (REVISTA VISÃO – 10 /01/1977 – v. 50, n. 1,
p. 09 apud GRANEMAN, 2006, p. 183)
Na década de 1990, os fundos estavam, principalmente, em
poder de trabalhadores públicos ou de autarquias estatais, muitas em
processo de privatização. Combinou-se, aqui, a truculência,
característica tradicional da maneira de lidar com setores subalternos
no Brasil, e o convencimento, tão mais fácil de exercer quanto mais
fragilizados estivessem os trabalhadores. Faziam seu ingresso na
política brasileira os argumentos democratizantes com base na
rentabilidade “partilhada”. Pela truculência, através do esmagamento
emblemático das greves de Volta Redonda, em 1989, ainda no governo
Sarney, quando o Exército assassinou barbaramente três traba-
lhadores, e da Petrobras, em 1995, no governo Fernando Henrique
Cardoso, quando, também com o recurso ao Exército, intentou-se a
castração, por longo tempo, do sindicato dos petroleiros; além de
assassinatos recorrentes de militantes do MST, em luta pela Reforma
Agrária. Em outra dimensão da violência, pela velocidade da
imposição de mudanças legais concernentes à previdência privada e
pela introdução acelerada de fundos de pensão privados (previdência
complementar), ampliando a privatização da previdência e a captura
de parcela do salário dos trabalhadores para fomentar o impulso ao
mercado acionista, como mostra detalhadamente o trabalho citado de
Sara Graneman (2006).
Seria com a legitimidade aportada pelo governo Lula da Silva
que, utilizando-se do mesmo mix truculência/sedução, se apro-
fundaria o papel de alavanca à concentração de capitais, desem-
penhado pelos fundos de pensão e pelos fundos de investimento (ou
pelos investidores institucionais) e se concluiria a desfiguração das
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 337

direções do movimento sindical no Brasil. Os fundos de pensão


convertem-se em controladores de empresas e em impulsionadores
da centralização e concentração de capitais no país, como se observa
no quadro a seguir, com seus ativos atingindo 17% do PIB. O
montante de recursos captados crescia mais rapidamente do que a
capacidade imediata de valorização, impulsionando a tendência à
exportação de capitais. Ademais, os fundos evidenciaram a possi-
bilidade de capturar não apenas recursos, mas gestores qualificados
forjados no movimento sindical, como elementos fundamentais no
apassivamento dos trabalhadores pelo capital. Tais ex-sindicalistas
ocupam o local da propriedade do grande capital portador de juros, no
qual a separação entre a propriedade e a gestão direta se aprofunda.
Nas condições da atual escala de concentração, porém, essas funções
passam a se confundir, com importante influência recíproca. Os
gestores de tais fundos contribuíram diretamente para a imposição,
através dos conselhos de acionistas dos quais participam, de profundas
reestruturações empresariais visando a aumentar a produtividade,
reduzir o tempo de retorno dos capitais à sua forma-dinheiro e
distender as taxas de lucro.
338 u V IRGÍNIA F ONTES

Ativos dos Fundos de Pensão 2004/05 (em US$ bilhões)


Países Ativos % do PIB
América do Norte 11.536 93%
Estados Unidos 11.090 95%
Canadá 446 52%
América do Sul 263 30%
Argentina 22 13%
Brasil 137 17%
Bolívia 2 22%
Colômbia 16 13%
Chile 75 65%
Peru 9 14%
Uruguai 2 13%
Europa 2.619 71%
Alemanha 104 4%
Dinamarca 73 30%
Finlândia 84 45%
França 123 7%
Holanda 545 106%
Irlanda 77 43%
Itália 44 3%
Noruega 10 7%
Reino Unido 1.175 65%
Suécia 23 13%
Suíça 361 112%
Ásia 1.171 38%
Japão 661 14%
Austrália 465 73%
China - Hong Kong 45 17%
Total 15.589 84%
Extraído de elaboração de Graneman, 2006, p.37, com base em dados
divulgados na Gazeta Mercantil, Suplemento Especial - Fundos de Pensão,
9 de outubro de 2006.
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 339

Capital-imperialismo brasileiro: manifestações

Menos do que uma análise diretamente econômica da acumu-


lação capitalista brasileira, este livro procurou compreender as bases
sociais das transformações contemporâneas. Por essa razão, não
entraremos em detalhes sobre as estratégias econômicas e políticas de
expansão capital-imperialista brasileira ou sobre o processo de
transnacionalização de empresas brasileiras, estreitamente associado
com capitais internacionais.
Vejamos brevíssimos elementos que confortam a hipótese de
uma fuga para a frente capital-imperialista das burguesias brasileiras,
com dados exemplificadores e não exaustivos. Houve uma inflexão
expressiva a partir da década de 1980, quando cresceu a exportação de
capitais voltados para a extração de mais valor no exterior (investi-
mentos diretos brasileiros no exterior) ao lado das exportações de
mercadorias ou de commodities. Ocorria, então, uma mudança
qualitativa importante, em três direções. A primeira, a de assenhorear-
se de fontes de matérias primas nos demais países do continente
(CECEÑA, 2009). Na segunda e que me parece a mais indicativa,
socialmente, da modificação em curso, trata-se da exploração da força
de trabalho em outros países (IRLS, 2009, passim): não se trata mais de
mera exportação de produtos, mas da submissão de trabalhadores de
outras nacionalidades à truculência característica da expansão
burguesa brasileira, com o uso de milícias, informações privilegiadas,
aplicando no exterior as práticas que aqui conhecemos, tanto da parte
de empresas brasileiras quanto de multinacionais aqui implantadas9.
Finalmente, essa expansão capital-imperialista favorece as políticas de
alívio por gotejamento a determinadas pressões sociais internas, assim
como se constitui em novo fator ufanista e obscurecedor das relações
de exploração reais, internas e externas.
O processo de exportação de capitais brasileiros e de
transnacionalização de empresas está especialmente voltado para
países da América do Sul (BANDEIRA, 2008). Segundo o Informe
Mercosur nº 12, do BID-INTAL, 2006-2007, a totalidade dos
investimentos no exterior dos países do Mercosul alcançou a soma de
340 u V IRGÍNIA F ONTES

US$30,3 bilhões, dos quais 93% eram originados no Brasil. Mesmo


em setores com menor tradição de internacionalização, cresce o
apetite de empresas de origem brasileira. Depois da expansão do
Grupo Gerdau, na década de 1990, e da Ambev, em 2003, empresas
como Marfrig e Bertin (posteriormente reunidas na JBS Friboi, com o
apoio do BNDES), controlavam um terço da produção uruguaia de
carne bovina. Em 2007, a produtora de arroz Camil, brasilei-
ra, comprou a maior processadora de arroz uruguaia, responsável
por 45% da produção e exportação do produto. (BID-INTAL, 2007,
p. 36-37)
Em 2009, Novoa chega a falar de uma “brasileirização” do
investimento externo direto na Argentina. A Petrobras comprou a
Pecom, passando a segundo grupo econômico no setor de petróleo e
gás. A Camargo Correia comprou a maior fábrica de cimento do país,
a Loma Negra. A Friboi comprou as unidades da Swift na Argentina e
a norte-americana Pilgrim’s Pride, tornando-se o maior polo
frigorífico do mundo (NOVOA, 2009, p. 198).
No Peru, já tendo a instalação da Petrobras desde 2002 (através
da compra da Perez Companc, empresa petrolífera argentina, com
ramificações em outros países), a expansão de capitais brasileiros se
intensificou em 2004, com a implantação da Companhia Vale do Rio
Doce e através da aquisição, pela Votorantim Metais-VM, da Refinaria
de Zinc Cajamarquilla, seguida em 2005 pela compra de
participação acionária de 24,9% no controle da Companhia
Mineira Milpo, a quarta maior mineradora de zinco no país.
As duas aquisições projetaram a VM como o 5º maior
produtor mundial de zinco. Em 2007, o grupo anunciou um
investimento adicional de 500 milhões de dólares. A
finalidade principal destes investimentos do Grupo
Votorantim no Peru é fornecer matéria-prima para suas
atividades industriais no Brasil. Considerando que a VM
importa do Peru 40% do concentrado de zinco utilizado em
suas plantas processadoras do Brasil, a conquista de fontes
a baixo custo dota a empresa de vantagens competitivas
perante concorrentes. Segundo cálculos da revista Exame, a
VM estaria controlando hoje 62% da produção de zinco no
Peru. (LUCE, 2007, p. 86, grifos meus)
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 341

Também o Grupo Gerdau iniciou atividades no Peru,


arrematando a privatização da Siderperú, tendo o apoio direto do
governo brasileiro (Lula da Silva). Essa forte presença econômica
brasileira conduziu a gestões políticas no sentido de garantir tais
investimentos (LUCE, 2007, p. 88).
No Equador, a Odebrecht participa de grandes empreen-
dimentos desde 1987. A Petrobras passou a atuar no país em 2002,
após a compra da Perez Companc, pesando entretanto sobre essa
transferência de ativos a suspeita de irregularidades, além de ocupar
áreas protegidas (ALMEIDA, 2009, p. 27-42). Inúmeras denúncias
ocorreram, levando a uma política brasileira de tipo indutivo, pela
qual a liberação de créditos do BNDES para obras de infraestrutura
dependeriam da contratação de empreiteiras brasileiras, e atuava
como “condicionalidade para os financiamentos” do Banco (LUCE,
2007, p. 90). Em finais de 2008, realizou-se uma Auditoria Integral do
Crédito Público no Equador, denunciando a “ilegalidade e a
ilegitimidade da dívida comercial, multilateral, bilateral e interna
contraída por governos equatorianos entre 1976 e 2006”, questio-
nando abertamente o Estado brasileiro, o BNDES, o Banco do Brasil e
a Odebrecht. (LANDIVAR, 2009, p. 116)
Quanto ao Paraguai, para além das formas particularmente
duras e jamais completamente cumpridas pelo governo brasileiro do
acordo referente à Hidrelétrica binacional de Itaipú (IRLS, 2009, p.
141-158), há ainda o fenômeno dos brasiguaios, impulsionado tanto
por uma política oficial expansionista brasileira, quanto por
migrações massivas de brasileiros, em muitos casos expropriados em
território nacional e deslocando-se para a colonização do país vizinho.
No primeiro caso, figura a situação de Geremias Lunardelli, grande
cafeicultor de São Paulo e grande comprador de terras no Paraguai.
“Em 1958, ele já possuía um milhão de pés de café no país vizinho”
(SILVA e MELO, 2009, p. 4). No segundo caso, importante emigração
brasileira ocorreu para o Paraguai, cujo contingente de brasiguaios
(...) alcança a cifra de 380 mil habitantes (10% aproxi-
madamente da população paraguaia). Atualmente eles pos-
suem 1,2 milhões de hectares, o que representa 40% de am-
342 u V IRGÍNIA F ONTES

bos os departamentos e mais de 80% da soja local. Graças


ao bom desempenho desta produção, criou-se uma classe
de fazendeiros de porte médio com propriedades rurais cujo
tamanho em média é de 500 hectares, aquelas que se tor-
naram os principais promotores da modernização agrícola
dos departamentos suborientais. (HIRST, 2005-2006, p.11-
21 apud LUCE, 2007, p. 94-95)
No caso da Bolívia, desde a criação da Petrobras Bolívia em
1996, a Petrobras era a maior empresa em atividade naquele país,
detendo 45,9% das reservas provadas e prováveis de gás e 39,5% das
reservas de petróleo, controlando várias etapas da cadeia produtiva,
como 100% do refino. Em 2006, ocorreu a nacionalização dos
hidrocarbonetos pelo governo Morales e a postura governamental
brasileira oscilou entre um endurecimento e uma atitude “generosa”.
O encaminhamento levado a efeito foi de estilo negociador, embora
assegurando-se a contrapartida da realização de duas enormes usinas
hidrelétricas no Rio Madeira, integrantes do projeto Iniciativa para a
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).
(LUCE, 2007, p. 95-98)
Também para a Bolívia ocorreu intensa emigração brasileira
com compra de terras no país, especialmente voltada para a produção
da soja, a partir de um financiamento para tanto aberto pelo Banco
Mundial. (SILVA e MELO, 2009, p. 5)
Existem cerca de 200 mil brasileiros em terras bolivianas
(...). Porém, apenas 100 famílias brasileiras entre as que re-
sidem no país respondem por 35% das exportações de soja
feitas pela Bolívia, produção que se concentra praticamente
no Departamento de Santa Cruz. (LUCE, 2007, p. 98)
A expansão de capitais sediados no Brasil não se limita,
entretanto, a esses exemplos sul-americanos, embora a região con-
dense a maior parcela dos investimentos das transnacionais
brasileiras. À guisa de exemplo, a Vale está presente nos seguintes
países, de acordo com publicação sobre Multinacionais Brasileiras,
resultado de pesquisa conjunta realizada pelo Valor Econômico e
Sobeet: Africa do Sul, Alemanha, Angola, Argentina, Austrália, Barba-
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 343

dos, Brasil, Canadá, Cazaquistão, Chile, China, Cingapura, Colômbia,


Congo, Coreia do Sul, EUA, Filipinas, Finlândia, França, Guatemala,
Guiné, Índia, Indonésia, Japão, Moçambique, Mongólia, Noruega,
Nova Caledônia, Omã, Peru, Reino Unido, Suíça, Tailândia e Taiwan.
Emprega 29,9 mil trabalhadores no exterior. Comprou em 2006 a
Inco, canadense; aumentou seu capital em meados de 2008, através
do aporte de recursos próprios de US$ 3bilhões e de linha de crédito
especial do BNDES de R$ 7 bilhões, o que lhe forneceu “um colchão
de liquidez para tornar-se maior gigante de mineração mundial”
(VALOR ECONÔMICO, 2008, p. 36-37).
Já a gigante Coteminas, controlada pela família do vice-
presidente da República José Alencar (ONAGA, 2005) e atualmente
presidida por seu filho, Josué Gomes da Silva (VALOR ECONÔMICO,
2008, p. 33), realizou uma fusão com a americana Springs em 2006,
mantendo o controle da Springs Global com 58,95% de seu capital.
Tornou-se a maior fabricante de cama, mesa e banho do mundo,
detendo 7% do mercado mundial, concentrado nas Américas. O
grupo vem transferindo as fábricas dos Estados Unidos para Brasil,
Argentina e México, sob o argumento de que nestes países os “custos
de produção e de mão de obra [são] mais baixos” (VALOR ECONÔ-
MICO, 2008, p.32), e neles vem realizando extensa reestruturação,
diminuindo o número de fábricas de 31 (16 estavam nos Estados
Unidos), para 20 – 12 no Brasil e três na Argentina e México,
garantindo redução de despesas administrativas e gerais de US$ 200
milhões para US$ 95 milhões. (Id. ibid., p. 32-33)
As grandes empresas construtoras brasileiras – Odebrecht,
Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Querioz Galvão
e OAS – iniciaram seu processo de transnacionalização na década de
1970, com forte apoio governamental, ainda sob a ditadura.
Hoje, essas companhias, juntas, estão presentes em 35
países do mundo e têm boa parte de suas receitas prove-
nientes do exterior. A empresa-líder desse processo, a cons-
trutora Norberto Odebrecht, já teve obras em 30 países do
mundo e, atualmente, tem 80% de todas as suas receitas
oriundas de atividades no exterior. (CAMPOS, 2009, p. 110,
grifos do autor)
344 u V IRGÍNIA F ONTES

A Odebrecht cresceu com relação ao ano de 2007, como se


pode verificar na tabela a seguir.
Em 2008, um ranking promovido pelo Valor Econômico e
Sobett identificava as 50 empresas mais internacionalizadas do país,
porém incluía apenas as que responderam a questionário enviado
pelos organizadores da pesquisa. O índice de internacionalização foi
calculado pela participação de empregos, ativos e receitas das
companhias no exterior em relação aos números globais de cada
empresa. Na tabela a seguir, extraímos as 25 empresas mais
internacionalizadas deste ranking, apresentadas na ordem do grau de
internacionalização definido pelo Valor Econômico e Sobeet. Vale
observar a proporção de trabalhadores no exterior diante daqueles
empregados no país, assim como a quantidade da receita no exterior
com relação à auferida internamente.
As 25 empresas mais internacionalizadas:
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 345

Empresa Setor Proporção no Proporção no


exterior em exterior em
relação ao total - relação ao total -
Receitas - 2007 - % Empregos -
2007 - %
JBS-Friboi Alimentos 81,0% 64,6
Construtora Odebrecht Construção e engenharia 70,4% 47,0
Gerdau Metalurgia e siderurgia 57,7% 49,4
Coteminas Têxtil, couro e vestuário 85,7% 34,5
(Springs Global)
Ibope Serviços especializados 38,9 57,3
Vale Mineração 37,5 25,21
Sabó Veículos e peças 41,2 28,3
AMBev* Bebidas 36,6 38,7
Metalfrio Eletroeletrônica 26,6 43,6
Artecola Química e petroquímica 24,5 20,3
Marfrig Alimentos 32,6 33,7
Gol Transportes e logística 9,3 3,8
Camargo Correa Grupo econômico 19,3 18,0
(conglomerado)
WEG Mecânica 34,0 10,0
Itautec TI – tecnologia 28,0 6,7
da informação
Colmex Trading Comércio exterior 41,4 8,1
Embraer Veículos e peças 1,4 10,5
Marcopolo Veículos e peças 22,7 19,4
Mahle Metal Leve* Veículos e peças 6,0 10,4
DHB Veículos e peças 29,2 0,2
G Brasil Veículos e peças 27,7 1,9
Tupy Metalurgia e Siderurgia 12,1 0,5
TAM Transportes e Logística 30,0 3,3
ALL América Transportes e Logística 6,3 23,1
Petrobras Petróleo e Gás 11,4 9,8
Fonte: Valor Econômico, 2008, p. 24
(*) capital internacional, não mais brasileiro. Segundo o Valor Econômico,
ambas as empresas, “embora de capital internacional, têm origem no Brasil e
aqui mantêm o centro de decisão”. (id. ibid., p. 22)
346 u V IRGÍNIA F ONTES

Se a atuação capital-imperialista brasileira se intensificou nos


últimos anos, ela tem origens mais remotas, tanto na expansão das
empresas, quanto na configuração de uma política de Estado em seu
apoio, como já fora ressaltado desde a década de 1960 por Marini. Um
ponto de virada fundamental foi a conversão do BNDES em alavanca
para a transnacionalização de empresas brasileiras. Sob o governo
Sarney, o BNDES apresentou o “Plano Estratégico 1987-1990”,
incorporando cenários de integração competitiva entre as empresas.
Em junho de 1990, no governo Collor, novo programa “elencava a
desregulamentação, a abertura comercial e as privatizações como
ferramentas básicas para a ‘reestruturação competitiva’ da economia
brasileira”, convertendo-o num banco de “abordagem e abalroamento,
para identificar e facilitar as “privatarias” (NOVOA, 2009, p. 189-190).
No final do governo Cardoso realizou-se uma reforma nos estatutos
do BNDES de forma a permitir o financiamento a operações de capital
brasileiro no exterior. No governo seguinte, de Lula da Silva, em 2005,
implementou-se no mesmo banco uma linha de crédito para a
internacionalização de empresas brasileiras (LUCE, 2007, p. 81). Na
atualidade, este Banco vem protagonizando uma impactante
dinâmica de centralização e concentração de capitais no Brasil.
O movimento de concentração e centralização de capitais,
sobretudo após a crise de 2008, é vertiginoso, assim como a criação de
novos megaconglomerados brasileiros, aptos a enveredar por rápido
processo de transnacionalização, com suporte público. Pequeno com
relação aos investimentos transnacionais mundiais, pois “entre 2002
e 2006, o país foi responsável por 171 projetos de investimento no
exterior, apenas 0,4% do total mundial” (VALOR ECONÔMICO,
2008, p. 66), trata-se de processo em andamento e cujas transfor-
mações internas e no conjunto do subcontinente já envolvem o
conjunto da vida social.

No compasso da política capital-imperialista –


apassivamento e democracia

Como vimos, o terceiro movimento de fuga para a frente e


adequação burguesa ao formato capital-imperialista contemporâneo
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 347

se iniciou de maneira hesitante em finais da década de 1970,


aprofundou-se nos anos 1980 para encontrar sua formatação política
mais explícita a partir da década de 1990: a conversão mercantil-
filantrópica de alguns movimentos sociais, muitos com origens
populares, favorecido pelo autoproclamado “apoliticismo” de
entidades associativas (sociedade civil), do que resulta uma crescente
profissionalização de parcela da militância. Ao se expandir na década
de 1990, esse padrão de associatividade se coliga cosmopolita e
subalternamente à internacionalização que também marca a
economia, tanto pela origem internacional dos financiamentos,
quanto pela adesão às formas de luta pulverizadas que predominavam
no cenário internacional. Deslocava-se a articulação entre as lutas,
que até então mantinham uma unidade tensa em torno da configu-
ração das classes sociais no Brasil, para o terreno mercantil-
filantrópico, já de longo tempo preparado no cenário internacional
por entidades similares e cujo teor voltado para a pobreza era
defendido e difundido pelo Banco Mundial (PEREIRA, 2009). A
pobretologia – e não um estudo da relação entre as classes e destas com
as formas específicas da acumulação de capital – se difundia, como
vimos no capítulo 5, culminando numa espécie de grande acordo
nacional em torno da cidadania contra a fome ou a miséria,
extremamente tímida, entretanto, para apontar as razões da produção
da fome ou da miséria. Limitava-se aos efeitos. Ocorria um salto que,
da conversão mercantil-filantrópica de segmentos da militância so-
cial, avançava doravante para um empresariamento direto de setores
populares, sobretudo os mais fragilizados e que, rapidamente, seria
convertido em “responsabilidade social empresarial” e em “volun-
tariado”, disseminando uma subordinação massiva de trabalhadores,
totalmente desprovidos de direitos mas necessitados do pagamento
que tais formas de “empregabilidade” asseguravam. Aprofundava-se
um ativismo estéril ao lado do apassivamento diante da precarização
das condições de trabalho, aumentando o contingente de traba-
lhadores por projetos, sem direitos, ou o trabalho sem formas, na
expressão de Francisco de Oliveira10. Não por acaso, mostramos como
a década de 1990 assistiu a um enorme salto de associatividade das
Fundações e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil), que já contam
348 u V IRGÍNIA F ONTES

com dois censos do IBGE. Esse processo responde a uma tripla


injunção: 1) colabora para a expropriação de atividades até então
públicas (bens coletivos), “libertando-as” para a extração de mais-
valor, ao passo que naturaliza a expropriação de direitos; 2) organiza-
se sob a forma de um discurso incorporador e democrático da
população, que acena para o reconhecimento das necessidades
imediatas (tanto no âmbito das políticas públicas, quanto na
dimensão cultural), reconfigurando o teor do próprio processo
político; e, 3) finalmente, mas não menos importante, segrega e
criminaliza as entidades associativas que denunciam o caráter de
classe preponderante, assim como as lutas difusas de setores populares
que não se amoldam aos formatos propostos.
Constitui-se uma nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2005
e MARTINS, 2009) que, sob direção empresarial, procura reconfi-
gurar a classe trabalhadora e a própria sensibilidade social nacional
para as novas condições psicofísicas da divisão internacional do
trabalho, nas quais o Brasil passa a atuar como “parceiro” do capital-
imperialismo.
De maneira similar à incorporação de capitais estrangeiros no
país, essa pedagogia da hegemonia não resultou apenas de uma
imposição externa, mas contou com enorme mobilização e iniciativa
empresarial nativa, aprendendo com e incluindo os capitais externos,
expressando uma nova capacidade empresarial (organizativa e
mobilizadora de recursos) voltada para dentro. Consolida a extração
exacerbada de mais-valor no plano interno e se volta para o exterior,
impulsionando novas e diversificadas atividades produtivas de mais-
valor, como a industrialização do setor de serviços (cf. BOITO, 2005),
enquanto silencia extensas camadas de trabalhadores. Os trabalha-
dores são silenciados pelo alto, através da associação de sindicalistas à
gerência do capital, e por baixo, através do emaranhado de entidades
mercantil-filantrópicas, configurando políticas generalizadas de
gotejamento para as camadas sociais mais fragilizadas ou dissemi-
nando práticas laborais totalmente desprovidas de direitos. Resulta
num apassivamento contido no formato de uma democracia restrita
que, ao menos por enquanto, vem liberando de peias o comporta-
mento predatório do capital transnacional brasileiro e seus asso-
ciados.
O B RASIL E O CAPITAL - IMPERIALISMO u 349

Notas

1 Pode-se admitir, ao contrário, que algumas revoluções socialistas


desembocaram em ingresso retardatário no capital-imperialismo, como é o
caso da China e da Rússia, embora não trabalhemos o tema neste livro.
2
Dentre tais óbices, as dimensões do contingente de trabalhadores informais
e, portanto, sem direitos trabalhistas ou sindicais. (Cf. MATTOS, 1998)
3
Como vimos, assim Florestan Fernandes designava “a revolução que se
sustentaria em transformações capitalistas necessárias, embora tardias” e
que, capitaneada pela unificação entre massa e classe trabalhadora, abriria
um efeito momento de “revolução contra a ordem”. (FERNANDES, 1986,
p. 26 e passim).
4
Vale ressaltar que tal necessidade não pode ser considerada como garantia
de sua permanência, o que se verifica inclusive pela tutela interna concedida
às Forças Armadas, em nome da manutenção de uma “ordem” vagamente
definida.
5
Esse é o caso, por exemplo, do setor calçadista gaúcho, que, na década de
1980, exportou mais de US$ 2 bilhões, em período de recessão do mercado
interno. Com a retomada do mercado brasileiro, tal setor reduziria sua
participação internacional. (GOULART, ARRUDA e BRASIL, 1994, p. 37)
6
Nomeadamente, são exemplos disso as Cia. Vale do Rio Doce, Metal Leve,
Cofap, Prensas Schuler, Toga, Gerdau, Gradiente, Odebrecht, Andrade
Gutierrez, Mangels, Sadia, Duratex, Embraer, Toga, Staroup, Aços Vilares,
Cotia Trading, Embraco, Forja Taurus, Hering, citadas por Goulart, Arruda
e Brasil. (1994, p. 37)
7
Ver os Censos de Capitais Estrangeiros no Brasil, realizados nos anos de
1995, 2000 e 2005 pelo Banco Central do Brasil, pelos quais sobe a
participação internacional na economia brasileira de 23,7% do PIB, em
1995, até 45,9% do PIB em 2005. Disponível em http://bcb.gov.br/?
CENSOCE, acesso em 15/08/2009.
8
De maneira sarcástica, Francisco de Oliveira comentaria que “essa capacidade
de levar o consumo até os setores mais pobres da sociedade é ela mesma
o mais poderoso narcótico social”. (OLIVEIRA, 2003, p. 144)
9
Ver as denúncias de assassinatos de trabalhadores e de corrupção promovidos
pela Odebrecht no Equador em Landivar (2009, p. 116-126) e, sobretudo,
o impressionante dossiê elaborado sobre os impactos e violações da Vale no
mundo, resultado do I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale,
realizado no Rio de Janeiro, em abril de 2010. Disponível em http://
atingidospelavale.wordpress.com, acesso em 01/05/2010.
10
“O trabalho sem-formas inclui mais de 50% da força de trabalho e o
desemprego aberto saltou de 4% no começo dos anos 1990 para 8% em
2002 (...), entre o desemprego aberto e o trabalho sem-formas transita 60%
350 u V IRGÍNIA F ONTES

da força de trabalho brasileira (...) É o mesmo mecanismo do trabalho


abstrato molecular-digital que extrai valor ao operar sobre formas
desorganizadas do trabalho”. (OLIVEIRA, 2007, p. 4-5)

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