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LIBRARY
I
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MADISON
MARIO DE ALENCAR
DA ACADEMIA BRASILEIRA
Contos
e Impressões
EDITORES
ANNUARIO DO BRASIL-RIO DE JANEIRO
RENASCENÇA PORTUGUESA - PORTO
RSITY
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O I
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LIBRAR
Y
Reservados todos os direitos de reproducção nos
paizes que adheriram á Convenção de Berne ;
Brasil Lei n.º 2577 de 17 de Janeiro de 1912 ;
Portugal : Decreto de 18 de Março de 1911.
CONTOS E IMPRESSÕES
OBRAS DO AUTOR :
Lagrimas, 1888
Versos, 1902
Versos, 1909
Alguns escritos, 1910
O que tinha de ser, novella, 1912
Se eu fosse politico, 1913
MARIO DE ALENCAR
DA ACADEMIA BRASILEIRA
Contos e Impressões
EDITORES
ANNUARIO DO BRASIL —RIO DE JANEIRO
RENASCENÇA PORTUGUESA - PORTO
ANTHOLOGIA UNIVERSAL
VOLUMES PUBLICADOS
1- MANUEL BERNARDES - Historias varias .
2- SOROR MARIANNA — Cartas de Amor, nova res-
tituição e esboço critico de Jaime Cortesão.
3 JOSÉ DE ALENCAR - Iracema, edição prefaciada
por Mario de Alencar.
4- ALMEIDA GARRETT - Frei Luiz de Sousa.
5- GONZAGA - Lyricas (Da Marilia de Dirceu ), pre-
facio e notas de Alberto de Faria.
6- FERNÃO MENDES PINTO - Em busca do Corsario.
7 - CARLOS DICKENS - Canto do Natal, traducção de
D. Virginia de Castro e Almeida.
Mx ASL 1855
91697
A54
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1920
AO QUERIDO
DOMICIO DA GAMA
HOMENAGEM DA MINHA
GRANDE ADMIRAÇÃO .
CONTOS
7
TIA LULÚ
OI TADA da tia Lulú !
OITADA
-Co Tia Lulú era a senhora, alta, e quasi
esbelta, que nesse momento ia trans-
por o portão do jardim. Descêra de um bonde,
e ficara voltada a olhal- o já distante, com uma
das mãos sobre o batente entreaberto . O seu
olhar estendido , como a buscar e attrahir al-
guma cousa, é que tinha motivado a excla-
mação da sobrinha, que ao ouvir a sineta do
portão , interrompêra o penteado e fôra es-
piar pela veneziana. Respondia assim indirec-
tamente ao marido, recostado na cama, em
mangas de camisa para o seu cochilo do costu-
me antes do jantar, e a quem o movimento
curioso da mulher fizera abrir os olhos inda-
gativos. Mas Alice continuava á espreita.
Coitada porque ?
Alice afastou- se da janella, sorrindo :
Algum passageiro que a olhou por
acaso, e tia Lulú já está imaginando ter acha-
do o seu noivo. Com que olhos seguia o bon-
de, coitada !
124
CONTOS
Ridicula, é o que é.
-
Ridicula, porque ? É a sua unica fra-
queza ; no mais é tão direita e respeitavel !
Pode ser ; mas basta essa mania, que
é irritante ; eu só a tolero por causa de você.
Você não se lembra do que ella faz
pelos meninos !
Mas podia deixar- se desse ridiculo de
namorada sem ventura ; uma cincoentona ! E
ainda se fosse bonita ...
Tambem V! Isso é já implicancia sua !
Que quer ? Irrita-me : tenho - lhe antipa-
thia.
Finja que não a vê, Pedro . Eu lhe re-
levo tudo , porque é boa , e é minha tia.
Pedro sentiu que essa conversa ia estra-
gar- lhe o cochilo , e achou melhor não prose-
guir.
A esse tempo tia Lulú já transpuzera o
portão, e depois de abraçar e beijar cada um
dos tres sobrinhos , que haviam corrido ao seu
encontro, distribuia - lhes balas. As creanças , ve-
rificando que nenhuma tinha recebido menos
que as outras, retornaram ao seu folguedo ; e
tia Lulú entreteve-se então a acariciar Dick,
um cachorrinho de meia raça , que á voz da
dona tinna abalado do interior da casa, e em
alvoroço pulava em torno della, disputando
ás creanças a sua vez de carinho . Tia Lulú
estalidava os dedos, appellidando- o , contente
de o ver contente e ancioso por ella ; e por
fim agachou- se para pôr a face ao alcance da
cabeça do animal. Esquecia-lhe que os estou-
vamentos de Dick podiam amarrotar e sujar-
lhe o vestido ; e consentia deleitada em rece-
ber e retribuir as festas, tão calorosas como
TIA LULU 133
se a ausencia fôra de dias, e não de poucas
horas.
Dick acompanhou - a aos pulos até o quar-
to, e aquietado a um canto , com a cabeça so-
bre as patas dianteiras, seguia com os olhos
os movimentos da dona, que se occupava em
mudar o vestido de sahir pelo de casa.
O quarto era pequeno , ao fundo do pre-
dio . Tinha pouca mobilia : a cama, uma com-
moda, o lavatorio de armario e espelho, e
uma mesa ; mas duas malas, alguns caixotes.
e cestas atravancavam o espaço . Á janella pen-
diam quatro gaiolas de passaros, e a um canto
uma caixa rasa servia de cama para Dick.
Antes de tirar o véo tia Lulú olhou- se
ao espelho, tomando posições para se contem-
plar de frente e de tres quartos, ora a uma
ora á outra face. Os seus movimentos eram
demorados , segundo a attenção intermittente
que se applicava á imagem ou retrocedia ao
bonde e a um senhor que mais de uma vez
parecêra que a olhava com interesse. Sentira-
se vaidosa de ser observada com sympathia e
talvez admiração, e no resto da viagem pro-
curara ver se elle tinha annel de alliança .
Seria solteiro ? Era a sua duvida e a sua es-
perança ; e essa perplexidade não lhe consen-
tira acolher sem disfarce aquelles olhares cu-
riosos, que lhe faziam uma doce trepidação
interior. Considerava agora no espelho a im-
pressão que teria dado , e achou-se bonita : ia-
lhe bem o chapéo , e foi muito lentamente que
se resolveu a desatal -o e tiral-o ; e guardando- o
na caixa, quasi o acariciava agradecida pelo
contentamento que lhe devia. A mudança do
14 CONTOS
vestido foi tambem pausada , entre reflexões
e a contemplação de si mesma.
Dick, do seu canto , parecia entender a
dona, pois não lhe interrompia os gestos e
os cuidados ; absorto em seguil - a com os olhos.
espertos, apenas os da senhora incidiam neile,
agitava a cauda, como a dizer- lhe que espe-
rava o seu aceno e não tinha outros desejos
senão o de estar alli a admiral- a .
Dick era um dos muitos objectos da affe-
ctividade instinctiva e imperiosa de tia Lulú.
Era o quinto cachorrinho na serie dos que
ella creara ; e a todos tinha dado o mesmo
nome, por inspiração de saudade, que illudia
no costume do appellido a descontinuidade da
existencia dos seus preferidos. E assim tam-
bam amava os seus passarinhos , e amava toda
creatura que acceitasse a necessidade do seu
sentimento expansivo .
O destino della era querer bem ; e como
não reclamava retribuição , nem tinha exclu-
sivismo, o seu affecto descia no apreço alheio
á trivialidade do que não requer esforço e é
commum.
II
No seu tempo de menina era a mais ami-
ga dos irmãos : tudo fazia por elles pronta-
mente, sem enfado e sem preferencia ; harmo-
nizava- os quando desavindos , era a intermedia-
ria delles junto aos paes ; e ao cabo a sua
solicitude, por acostumada, era como um de-
ver de officio, que não se agradecia. Os ou-
TIA LULU 15
tros irmãos tinham predilecções entre si , mas
não por ella, que não sabia distinguil - os no
seu affecto. Pela mesma razão não tinha ami-
gas , como eram as amigas das irmãs , asso-
ciadas em segredos , com absorventes dedica-
ções reciprocas. Aos paes ella não dava ne-
nhum desprazer ; tambem na sua obediencia
normal não dava surpresa ; e até só lhe repa-
rariam na devoção de filha, se esta faltasse ;
mas as desigualdades de humor dos irmãos , oṣ
imprevistos de procedimento, eram causa de
uma demonstração effusiva do sentimento dos
paes para com elles ; e tamanha ás vezes que
Lulú notava e resentia- se, como de uma in-
justiça. Renovava-se a miudo a recompensa
do filho prodigo ; e só a ella não tocava o
vitello festivo da volta arrependida. O reparo
porém não lhe descia dos olhos , e ainda ahi
era breve, dissipado das lagrimas de sua sym-
pathia pelo prazer dos outros .
Não sendo menos bonita que as irmãs ,
deveria mais do que ellas impressionar para
o amor : a sua meiguice não tinha reservas ,
e era de surprehender que só apparentemente
se enamorassem della os rapazes , como pre-
texto para o namoro das outras. De cada vez
fôra para ella uma decepção , logo desvanecida
pelo noivado, que não era o seu, mas que ella
festejava quasi como se o fosse. E todas casa-
ram ; e Lulú ia addiando as esperanças de ca-
sar, contente de ser a companheira dos paes
e ser a tia, dentre todas, a que mais po-
dia affeiçoar - se aos sobrinhos que iam sur-
gindo, porque tinha amor disponivel e capaz
de repartir-se com largueza. Depois a enfer-
midade e a velhice dos paes occuparam-lhe
16 CONTOS
todas as horas e o sentimento . Foi a devotada
enfermeira de ambos ; e quando os viu mor-
rer, cada um a seu tempo , Lulú tinha como
consolo a segurança de que fizera por elles
tudo , sem nenhuma falha de carinho e dedica-
ção . Desfeita a casa paterna, ella, que era
a unica solteira da familia, acceitou a hospe-
dagem dos irmãos, e para não parecer que
tinha preferencia, ou pensando que devia
agradar a todos, não quiz moradia definitiva,
senão successiva em casa de cada um .
III
O tempo, as viagens, a morte foram dis-
persando e diminuindo os grupos da familia.
Impaciencias e impertinencias domesticas fo-
ram tambem restringindo as alternativas da
hospedagem ; e afinal tia Lulú se installara
com tenção de permanencia em casa da so-
brinha, que parecia ser a mais amiga della.
O luto pela recente morte de um irmão de
tia Lulú, a breve intervallo seguida da morte
do sogro de Alice , absorveu e incapacitou du-
rante algum tempo o vagar da attenção para
as asperezas que formam, combinadas com os
trechos lisos, a superficie dos sentimentos e
actos pessoaes, como a das cousas. Aquellas
duas mortes obscureciam a vista para os ou-
tros cuidados ; e temporariamente se desvane-
cia a percepção dos defeitos mutuos.
Tia Lulú era como que a principal pes-
soa, emquanto a necessidade maior foi para
TIA LULU '17
todos de consolo e carinho . Estava na funcção
espontanea da sua natureza ; e multiplicava-
se e repartia- se na sua actividade affectiva.
Até Pedro, o marido de Alice , motejador ou
aspero, segundo as quedas do seu humor, e
sensivel só ás imperfeições alheias, agora não
as via em tia Lulú , que assomava a seus
olhos num aspecto total de bondade.
Mas os creados e as creanças tinham ou-
tra impressão ; por muito que ella abran-
dasse o exercicio do mando provisorio , em
que a investia a situação domestica, a pro-
pria acção da autoridade de emprestimo era
mal acolhida pelos creados ; e como tia Lulú,
ora a attenuava por condescendencia, ora a
apertava por timidez de zelo, o seu prestigio se
desmoralizava na alternativa , e ao cabo era
nenhum. Creados e creanças, ou não faziam
caso das suas ordens, ou recusavam-nas sem
disfarce ; e foi preciso recorrer á dona da
casa, que retornou ao governo, e teve então
de ouvir as queixas sem base dos filhos e
as intrigas aleivosas dos creados.
Tia Lulú soffreu assim a malevolencia de
intrusa ; não lhe aproveitara, antes desservira
a sua indole amorosa. Applicou a então mais
assiduamente ás suas aves e ao seu cachorro ;
mas não lhe bastava a reciprocidade delles ,
quasi automatica. Pedia - lhe o coração um affe-
cto que lhe contentasse o pendor nativo de
esposa e mãe ; e lhe desse a posição de dona
de casa. A condição de hospede havia occa-
siões em que se desvendava na sua contingen-
cia de favor e subordinação humilhantes . E
era ainda um incentivo á sua bondade inge-
nua e credula.
2
18 CONTOS
Discernimento ella o tinha para as cou-
sas alheias , não para o que tocasse á sua pro-
pria pessoa, e á sua acção e edade. Não se
via ao espelho differente do que fôra, e fal-
tando -lhe um ponto de referencia ou uma cau-
sa de mutação, qual teria sido o casamento
e a maternidade, contemplava a sua imagem
com os olhos de adolescente . Esqueciam- lhe
os annos , ou não lhe pesava o numero delles
no coração esperançoso . E a esperança leva-
va- lhe o olhar de vulto a vulto de homem,
que se lhe affigurasse um possivel marido.
Era uma interrogação directa e breve ;
podia parecer simples movimento de curiosi-
dade , se não o acompanhasse um quê indefi-
nivel de ternura : mas não passava de ternura
apenas activa ; nenhuma idéa de engano , nada
que se assemelhasse a attitude ou ardil de ca-
çada. Canto de passaro solitario ; tibio lume
nunciativo de pouso ; esboço de abraço sem
alvo, como o vai- vem lento de um ramo de
arbusto ; assim era a expressão em tia Lulú
do seu amor, ou antes da sua capacidade de
amor innocente, e por isso nunca desilludido ,
e só transferido indefinidamente. Alguns pas-
savam sem vel- o ; alguns ouviam-no , indiffe-
rentes ; outros paravam a escutar aquelle canto
de voz sozinha, attentavam áquella promessa
de felicidade, e iam adiante, divertidos de ha-
verem logrado com um motejo a espectativa
do amor. A bondade de tia Lulú não perce-
bia o motejo , e por isso é que a julgavam ri-
dicula os que a olhavam, como o marido de
Alice, a esmo, sem procurar entender-lhe a
força nativa do sentimento e as circumstancias
da existencia incontentada . Pedro conhecera- a
TIA LULU 19
como pessoa feita para solteirona ; e no seu
parecer a simples idéa do casamento della
era um contraste com o seu destino , e por-
tanto causa de ridiculo, a que não escaparia
o homem que a desposasse . E como a bondade
ingenua, e para os outros simploria, é o the-
ma que mais se presta ao engano, Pedro achou
em tia Lulú a figura central da comedia do-
mestica que elle improvisava nas horas de
bom ou de mau humor.
IV
Naquella tarde o humor de Pedro era me-
nos folgazão que agastadiço, ou porque elle
não tivesse cochilado bastante, ou só porque
a sôpa lhe soube mal . Fosse o que fosse, de-
pois de acenar ao copeiro que retirasse o pra-
to, correu os olhos á roda da mesa, e pou-
sou- os em tia Lulú , que tinha o seu logar de-
fronte delle , á esquerda de Alice.
Essa collocação fixada desde o principio
da hospedagem, como devida á parenta mais
velha e hospede nova, fôra com o tempo e
ao acaso das circumstancias , motivo de displi-
cencia para Pedro , principalmente quando ha-
via outras pessoas a jantar ; tornava- se ás ve-
zes difficil a acommodação de todos. Se não
eram convidados de cerimonia, Alice não con-
sentia em deslocar a tia, mas Pedro enfada-
va- se daquella solução de continuidade no agru-
pamento que formava á cabeceira para a pa-
lestra animada e solta : entre moços dispostos
20 CONTOS
á jovialidade , a figura da tia, por mais que
ella fizesse por abstrahir- se ou annullar- se no
silencio , era um constrangimento ao expan-
sivo dialogo . Ás vezes por tenção de polidez ,
ella intervinha na conversa ; e era preciso es-
tar a responder- lhe ás perguntas sobre pessoas
e factos, que no grupo só ella ignorava ; e a
conversa geral tinha de interromper- se com
aborrecimento para os outros . Pedro atalha-
va-a ao fim de algum tempo desceremoniosa-
mente ; ou fazia commentarios reticentes , com
que os mais se divertiam.
O pico das observações indirectas preva-
lecia sobre os apartes de admoestação de Alice
ao marido ; e não raro fazia - lhe a ella mes-
ma rir-se. Notava tia Lulú o riso ; não o attri-
buia porém a motejo proposital, e culpando - se
a si propria de algum equivoco , sem queixa
calava - se embaraçada.
Não ha como o amor para abrir appe-
tite , disse Pedro á mulher olhe a sua tia
como lambe essa sopa desenchabida.
Tia Lulú sorvia justamente a ultima co-
lher, com um semblante de paladar deliciado ,
as palpebras descahidas na absorpção do gos-
to satisfeito . Abriu-as ás ultimas palavras de
Pedro, sem lhe ter ouvido a allusão.
-Desenchabida esta sopa ! Tão saboro-
sa ! não achou, Alice ? Tambem eu estava com
muito appetite, porque hoje não tomei lunch .
Não ha de ser por isso, observou Pe-
dro. Foi o passeio na rua do Ouvidor : viu
gente bonita, sentiu- se admirada ... quem sabe
se não viu o passarinho verde ?
Que idéa ! Ora essa ! Como se eu fosse
uma menina ...
TIA LULU 21
Indecisa, enleiada , não percebeu logo a
malicia de Pedro , e sorriu, como a um gra-
cejo sem segunda intenção. No seu intimo .
echoava ainda aquella sensação com que des-
cêra do bonde e se contemplara ao espelho
despindo - se.
Foi Alice que notou o seu ar feliz ...
de noiva, quando a senhora chegou da cidade.
Historia de Pedro , tia Lulú . E Alice ,
ao mesmo tempo que fazia ao marido um si-
gnal dissuasivo de cabeça, tocava-lhe insisten-
temente com o joelho no joelho .
Pedro continuou :
Eu não sabia de nada. Foi ella que me
disse que a senhora parecia ter achado afinal
o seu noivo .
Desculpe-me, Pedro ; eu não ando pro-
curando noivo ; Alice não podia ter dito isso .
De certo, tia Lulú confirmou Alice.
E como o marido fingisse não entender os
toques repetidos do joelho : - Basta, Pedro !
Tia Lulú não gosta desses gracejos . Para que
V. teima ? Tia Lulú não é uma creança .
― Mas não é gracejo ; é a verdade. En-
tão sua tia é capaz de negar que não pensa
em casamento ?
Ih ! Você ! que implicancia ! murmurou-
The Alice em voz baixa.
Eu nunca disse a ninguem que pensava
em casar- me. Mas creio que podia pensar,
porque não sou uma velha. Outras de mais
edade que eu, teem-se casado. Tambem não
sou tão feia ...
Pedro folgou de sentil-a melindrada.
Feia a senhora, tia Lulú ! Quem falou
nisso ? Só quem não tivesse olhos ... E por isso
22 CONTOS
mesmo é que eu me espanto de que a senhora
não se tenha casado ha muito tempo ; não fal-
tarão pretendentes ...
Não sei de nenhum.
Pergunte a Alice.
Outra vez , Pedro ? Basta ! Você está
com vontade de implicar com tia Lulú , mas
não metta o meu nome.
A essa advertencia de Alice , susteve tia
Lulú a resposta ; e sem mais dissimular o seu
enfado, desviou os olhos de Pedro para a ou-
tra parte da meza, e intencionalmente poz- se
a mirar ora as paredes, ora o tecto da sala,
como quem não queria conversa.
Pedro observava a sorrindo ; aprazia- lhe
aquella irritação , e pensou em alimental - a :
Tia Lulú então já se esqueceu do de-
sembargador Azambuja ?
O desembargador era um velho viuvo que
frequentava a casa. As creanças riram- se. Tia
Lulú voltou- se para Pedro com magua :
- Acho bom mudar de assunto, Pedro .
Vê que os meninos já estão a rir- se. Eu não
sou uma creança , nem uma boba, para ser-
vir de caçoada .
Era justo o reparo, e porque o sentiu, Pe-
dro desconcertou : ia desculpar- se ; mas Alice
balançava a cabeça com um aceno de contra-
riedade e reprovação ao marido ; e este logo
impertigou o tom da voz :
Melindrou- se por pouca cousa. Não é
a primeira vez que os meninos se riem da se-
nhora. Eu é que não tenho culpa de que a
senhora seja uma solteirona ... Se eu fosse o
desembargador Azambuja ...
As creanças dispararam a rir.
223
TIA LULU
- Por favor, Pedro. Sou uma senhora,
sou tia de Alice ; creio que mereço ser respei-
tada diante dos seus filhos.
Pedro insistiu Alice .
Ora, respeito ! Quem a desrespeitou ? E
para que esses ares agora ? Pretende por acaso
censurar-me e reprehender-me !
Pedro ! repetiu Alice .
Bolas ! Não gosto desses ares altivos
commigo . Um gracejo á tôa, e sahe- se com
essas empafias.
E como Alice continuasse a fazer- lhe si-
gnaes e acenos :
- Parece que ainda sou o dono da casa.
Não admitto que fallem mais alto do que eu,
nem tolero observações na minha casa.
Tia Lulú não respondeu. Por vexame das
creanças e dos copeiros , continha o choro que
The apertava a garganta. Não tocou mais em
nenhum prato, e conservava os olhos baixos
sobre o bordo da mesa, que machinalmente
ia alisando com a ponta dos dedos. O jan-
tar acabou em silencio . As creanças comiam
caladas, ou apenas cochichando , curiosas, na
espectativa de outra discussão . Tia Lulú espe-
rou que Alice terminasse a sobremesa e le-
vantou- se dirigindo - se para o seu quarto. Quan-
do entrava no corredor, ouviu Alice dizer ao
marido :
Que cousa desagradavel ! Tanto pedi a
você, Pedro ! Mas você estava no proposito de
aborrecel- a, de implicar com ella. Que gosto
o seu !
Pedro, consciente do seu desaso, respondeu
desabrido :
—
Mas que vem a ser isso agora ? Quer
24 CONTOS
ralhar commigo ! Ora não faltava mais nada !
E depois de uma pausa , como respondendo
desta vez a si mesmo :
-Tenho lá culpa de que ella seja ridi-
cula ! E aquellas attitudes commigo ! Aquelles
ares de impor - me respeito ! De outra vez faço
uma estralada ; e ella ha de comprehender
qual o E logar . ê
seuboa!
Voc bole com ella, irrita- a,
e quer que ella se sujeite a tudo , como uma
creança ! Ella tem toda a razão de se ma-
goar. Mas afinal em que é que tia Lulú foi
menos delicada com você ?
Sabe que mais ? Não e aborreça ! Fa-
ço o que quero, e não dou explicações dos
meus actos .
- Isso tambem, não, Pedro !
com ella.
- Pois supponha que implico
ada sem
Acho- a ridicula, idiota ; uma namor
ventura, na edade de ser avó!
haria ,
Alice reflectiu que a replica arran
em vez de abrandar aquella irritabilidade ba que
ra
procurava objecto . Era mais acertado ir 1 do
junto de tia Lulú , e attenuar a impressão ar-
procedimento de Pedro . Encontrou- a no qua 0-
to chorando . A presença e as palavras da s
brinha confortaram -na, e a sua magoa ador
meceu sob a meiguice dos abraços e descul
pas que recebia . Era- lhe mais penoso parecer
insensivel aos carinhos do que abafar o re-
sentimento de uma grosseria . Admittiu credu-
lamente que nas impertinencias de Pedro não
havia senão rabugices de molestia ; era sem-
pre assim em vesperas de congestão do figado :
e Alice já se habituara a esses destemperos bi-
liosos . Podia - se lá então suppor que elle não
TIA LULU 25
estimasse a sua mulher ? Pela mesma razão
não era de concluir que tia Lulú fosse menos
prezada por elle . Tia Lulú acabou concordan-
do, e dissipou - se a resolução , que já tinha de-
lineado de ir para a casa de ... de quem ? ...
Ficara indecisa ante as difficuldades, que pa-
reciam menores que o aluguel de um quarto
em casa extranha . Mas fôra uma offensa á
amizade de Alice ; e já lhe doia a saudade
della e dos sobrinhos pequenos .
V.
No dia seguinte foi como se não tivesse
occorrido a scena do jantar. Pedro, tanto pelo
pedido de Alice , como pelo seu proprio hu-
mor de momento, procedeu durante alguns dias ,
ou com indifferença , que não causava reparo ,
ou com amabilidades occasionaes , que a sensi-
bilizaram .
As creanças, porém não esqueceram a sce-
na ; as creanças e os creados . Ouvindo , sem
intervir, tinham attendido mais, e depois en-
tre si fizeram o commentario ; os creados em
desfavor de tia Lulú, que era a intrusa ; as
creanças, com innocencia, mas concluindo que
ella, se havia chorado , é porque tinha menos
razão . Sentiam pena de tia Lulú , o que não
mpedia acharem graça na inticação do pae.
Lembraram- se dos risos por causa do desem-
argador Azambuja, e riram- se de novo . Não
tinavam bem de que se riam ; nem o desem-
argador era ridiculo, senão respeitavel ; e a
26 CONTOS
idéa do casamento nada lhe tirava á gravi-
dade. O riso provinha do ar do pae , ao fazer
a referencia, com um piscar de olho , e do
effeito da palavra em tia Lulú.
E agora, quando o velho vier, como
vae ficar ella ? inquiriu no grupo Luizinha.
Se papai estiver na sala, duvido que
tia Lulú appareça, disse Julinho.
Eu fico espiando atraz da porta ac-
crescentou Esther.
Mas o desembargador não apparecia, e as
creanças improvizaram - lhe a visita, por gra-
ça, uma tarde em que não tinham brinquedo.
Pedro e Alice haviam sahido ; choviscava ; e
tia Lulú não deixava que os sobrinhos fossem
ao quintal, de onde mais de uma vez os tinha
feito voltar, já um tanto zangada pela teimo-
zia. A contrariedade insinuou a vingança . Dei-
xaram-se estar quietinhos algum tempo ; e de-
pois que tia Lulú recolheu ao quarto, Julinho
incumbiu- se de ir tocar a campainha electri-
ca da porta. Simularam o dialogo, no corre-
dor ; e antes que o copeiro acudisse, Luizinha.
foi correndo para o interior a gritar que era
o desembargador.
Tia Lulú, de dentro do quarto, disse que
o fizessem entrar para a sala de visitas . Mas
commentou em voz alta :
Que horas ! E Pedro ainda não chegou,
nem Alice ! Que massada ! Virá jantar ?
Aprontou-se mais depressa, e seguiu para
a sala. Quando transpunha a porta, as crean-
ças desataram a rir. Tia Lulú atinou com a
maldade e teve impetos de bater em todos tres.
As duas meninas desculpavam- se com a men-
TIA LULU 27
tira do irmão ; Julinho simulava ter se enga-
nado com o toque usual do velho .
→ Vocês o que são , é muito ruins ra-
lhava a tia , e ingratos. Mas não admitto ,
ouviram ? Puxo -lhes as orelhas, se me falta-
rem ao respeito . E já de castigo, cada um
numa cadeira, até chegar Alice . Ella é que ha
de dar-lhes o resto do castigo que vocês me-
recem .
Mas tia Lulú não contou nada a Alice.
Os pequenos sujeitaram - se á punição , e como
pareciam arrependidos , serenou- se a zanga da
senhora. Dissiparam-se os ultimos signaes de
ameaça, quando Luizinha, esgueirando se da
cadeira em que estava presa, até á da tia,
envolveu- a com os braços , e procurava bei-
jal- a :
- Perdoa, tia Lulú!
A tia quiz ainda mostrar enfado ; mas já
Esther e Julinho tinham imitado a irmā ;
os tres porfiavam nas caricias, e tia Lulú , do-
minada, desvanecida, sorria de não poder des-
vencilhar- se dos braços que a atavam , e das bo-
quinhas que lhe beijavam as mãɔs , ou se er-
guiam abicadas para tocar- lhe o rosto . Ao fim
estavam encantados os quatro , e só tia Lulú
se havia esquecido da pulha que soffrêra.
As creanças, não lhes esquecia a indul-
gencia della. Estavam certos de que o cas-
tigo por qualquer traquinada contra a tia, não
passava de ameaça, ou quando muito se reali-
zava em ralhos de zanga breve como bolhas
de ar, ás vezes em uma estação forçada em
cadeira como aquella tarde. E era tudo ; e a
primeira a fatigar-se do constrangimento era
a propria tia, que parecia partilhar do cas-
28 CONTOS
tigo, e na verdade o partilhava, sentada perto
delles para os conter. Nunca lhes batêra, nem
mesmo fizera a menor tentativa disso, senão
em palavra por mero effeito de exclamação .
Poderia queixar - se delles a Alice, e nesse caso
o castigo não falharia ; mas essa possibilidade
estava desmoralizada pelas muitas vezes que
deixava de cumprir-se. Ao contrario era tia
Lulú quem desfazia as iniciativas de Alice ,
quando esta desconfiava de alguma falta dos
filhos .
Na consciencia das creanças a causa da-
quelle procedimento eram em grande parte
a bondade da senhora e o bem que lhes que-
ria a elles ; mas em parte era tambem fraque-
za : tia Lulú dependia dos donos da casa, e
receiava desgostal- os . Chegavam a essa indu-
cção pelo raciocinio humano , que não con-
sente á bondade um valor absoluto ; incerteza,
imprevisto, autoridade e favor é que lhe fazem
o apreço . Constancia tira- lhe o merito e até
a retribuição do agradecimento.
Não advertia nisso tia Lulú, pois que era
inconscientemente boa ; as creanças pelo seu
lado só cuidavam dos seus momentos de pra-
zer; e pouco importava que fosse á derisão da
boa senhora ; justamente por ser boa é que
tinha mais graça a caçoada com ella.
Agora aquella referencia de mero
feita por Pedro ao desembargador Azambuja
dava pretexto mais frequente á brincadeira,
e tinha o sainete de fazer coincidir o ridiculo
sobre duas pessoas de obrigatorio respeito. E
estavam mais attentas á occasião , porque lhes
falhara a espectativa da presença do velho
na primeira semana.
TIA LULU 29
VI
O desembargador costumava apparecer nas
quintas - feiras para jantar, havia perto de um
anno, desde que chegara de Parahyba do Nor-
te. Era viuvo e aposentado ; fôra amigo dos
paes de Pedro, e isso equivalia a parentesco ;
fez- se logo a familiaridade . Azambuja tinha
a indole expansiva e confiada , e Pedro o sen-
timento superficial. Em pouco tempo o velho
era como antigo habituado da casa, agradavel
e desejado, porque para tudo estava oem dis-
posto : parceiro de jogo, e conversador pronto
e fertil em casos e anedoctas.
Era homem de sessenta e cinco annos ; e
tinha dois filhos casados . Viera ao Rio em via-
gem de recreio para se consolar da viuvez ;
o consolo foi mais efficaz do que previa o pro-
vinciano. A sua validez, maior do que appa-
rentavam a physionomia e os bigodes cinzen-
tos, achou logo incentivos de prova, e uma liber-
dade que não lhe permittiam lá no Norte a
presença dos dois filhos , a sua condição de
viuvo e a compostura de magistrado .
Tinha sido sempre um magistrado grave.
No Rio era como um solteirão extranho, allivia-
do de um peso que por honra do officio car-
regara durante muitos annos. E o que mais
o embevecia era o novo ardor, que lhe pa-
recia agora ter estado adormecido desde a
adolescencia ; seria o de segunda mocidade ,
ultimo clarão do sol poente ; mas o alvoroço
da sensação lhe dava o engano de uma ju-
ventude perpetua , e a vaidade e o gosto de re-
30 CONTOS
velações. Pedro era um dos confidentes das
suas aventuras. A differença de edade que
devia ser um embaraço á expansão, era an-
tes um estimulo . Como a um neophyto surpre-
so, embotara-se ao velho desembargador o sen-
so das conveniencias . Fazia praça de ser assi-
duo nos pequenos theatros de dançarinas e
cançonetistas, e ter a sua roda de moças para
a qual insistia em convidar Pedro , com um
quasi inconsciente desejo de corrompel- o . Pe-
dro acompanhava - o ás vezes, mas sem grande
prazer daquella exhibição de lubricidade se-
rodia. Presumiu que era demasiada para ser
real, e não tardou em penetrar o verdadeiro
segredo da vida intima do velho , e era uma
ligação com uma cabocla nortista, que lhe fa-
zia todo o serviço domestico . Percebeu-o logo
depois de algumas idas á casa de Azambuja.
Não occultou a supposição : negou-a o velho a
principio , mas acabou segredando que em tudo
era nativista, e que ao seu paladar de serta-
nejo só contentavam as fructas brasileiras, so-
bretudo as agrestes ; as estrangeiras eram mais
para a vista, e quando muito, pela variedade
abriam o appetite. E concluiu com desplante
que não havia comparal- as. Pedro entendeu
que a unica razão dessa preferencia era a eco-
nomia, e aquella ambiguidade domestica de-
preciou a seus olhos o caracter do desembar-
gador ; mas gostava delle, divertia - se com a
sua palestra, e por fim já nem reparava na
mesquinha situação do velho amigo.
TIA LULU 31
VII
Nessa quinta- feira o desembargador che-
gou em companhia de Pedro, com quem sé
tinha encontrado no ponto dos bondes . Era
dia de annos de Julinho . Estava a me-
sa aumentada de uma taboa e tinha mais
alguns vasos de flores. O festejado convidara
os amigos da vizinhança, e vaidoso da sua
data, que lhe dava a primazia e privilegios,
attentava nas pessoas que iam chegando, me-
nos por ellas que pelo presente que deviam tra-
zer-lhe.
Desde a vespera que elle observava o mo-
vimento do portão, a ver se chegava algum
embrulho. As irmãs ajudavam - lhe a curiosida-
de ; e commentavam com elle as conjecturas.
Dormira com o pensamento deliciado pela es-
pectativa do seu dia de festa ; acordara muito
cedo, e saltando logo da cama começou a al-
voroçar a casa, despertando as irmãs, indo
bater ao quarto dos paes e de tia Lulú. Entra-
vam os tres, e Julinho, beijado e risonho, vol-
tava sobraçando os seus brinquedos ; segui-
am - no as irmãs, tocadas de uma pontinha
de inveja, mas interessadas , blandiciosas , di-
vertidas, compartiam do regalo, depois que Ju-
linho se fartava da primeira contemplação .
O presente de tia Lulú havia sido, como
sempre, o mais notavel : o dos paes era adqui-
rido nas vesperas , por inspiração do momen-
to ; o della porém era pensado com muita an-
tecedencia, e não consistia num objecto sin-
gular e somenos ; dessa vez eram dois vo-
32 CONTOS
lumes de historias de fadas, um trem de fer-
ro de corda, e uma caixa de jogos variados .
Esther e Luizinha receberam cada uma seu
presente de consolo . Naquelle instante affigu-
rou- se ás tres creanças que tia Lulú era a me-
lhor pessoa e a mais intelligente , porque en-
tendia e accrescentava o prazer dellas .
De olhos arregalados para os presentes
que a tia entregava e cada qual alli mesmo
ia desembrulhando, davam exclamações , pal-
mas e vivas : Dick, excitado , pulava e latia, e
o bando pueril desembocou do quarto, e guiou
pelo corredor até o dos paes, depois á cozinha
para fazer alarde dos mimos . A algazarra ma-
tutina impacientava Pedro, que ralhou recla-
mando socego para poder dormir. Despejaram
então as creanças para a chacara, esquecidos
do seu café ; e toda a manhã corrêra naquelle
inebriamento de festa nova.
Durante o dia ficaram os presentes arru-
mados na cama de Julinho, em exhibição : di-
vertiam -se com um delles, e depois de al-
gum tempo, enfadados ou indecisos na escolha,
voltavam para substituil- o ; ás vezes queda-
vam ao pé da cama imaginando as visitas que
haviam de vir e as que trariam presente . Pou-
co brigaram nesse dia ; Julinho gosava uma
regalia de superioridade e mando , que as duas
meninas porfiavam em reconhecer. Era por
elle que havia dia santo e se tinha matado o
perú, e aumentava- se a mesa ; e não se ra-
lhava com elle ; e era a elle que primeiro
saudavam os que iam chegando . Julinho era
como um heroe, como o dono da casa . Vestia
roupa nova, e tinha o ar differente , de con-
vicção de ser maior e unico.
TIA LULU 33
Quando entrava o desembargador, corre-
ram as creanças ao seu encontro ; mas vendo-
lhe as mãos vasias, foi um desapontamento . Es-
ther, a quem elle fazia um affago, palmeando-
The as faces, exclamou em tom de aviso ou
de censura :
Julinho faz annos hoje !
- Ah ! faz annos o Julinho ? Quantos faz ?
Venha dar-me um abraço . Meus parabens !
Não fallou em presente, nem ao menos
se desculpou de não o ter trazido por não se
lembrar da data. Não comprehendiam os peque-
nos outra linguagem de parabens que não
aquella, visivel e palpavel. Chocou- os a indif-
ferença do velho ; o logrado então era só Ju-
linho, mas as irmãs sentiam o seu proprio lo-
gro, por antecipação e recapitulação . Foi pron-
ta a solidariedade do desaggravo ; sem combi-
narem, apenas o desembargador se afastava,
fizeram - lne as creanças pelas costas os seus
momos de desprazer ; e entreolhando -se e rin-
do-se com desdem, cochicharam a reflexão do
momento . Vá que outro não trouxesse um mi-
mo ; mas o desembargador vinha jantar, ia
comer do perú e dos doces de Julinho . Era um
velho sovina, é o que era esse barbicha.
A reflexão mais se avivou em cada um,
quando Azambuja entre risos de guloso con-
tente , repetiu, sem ser sollicitado , a sua larga
dose de perú. Era um garfo afamado e en-
tendido o desembargador. Deante de um bom
prato , accendiam- se- lhe os olhos, em geral
amortecidos ; e como que se ouvia a lingua ti-
tillar- lhe tacteando o céo da boca e distenden-
do-se de goso por entre os beiços comprimi-
dos, antes do estalo da antegostação .
3
34 CONTOS
Todo o seu semblante operava como o
esophago e o estomago . Na combinação das
varias partes do seu prato, movimentavam - se-
The as feições ; e o talher era menos um
utensilio que a proeminencia das mãos, de tal
modo ellas lhe imprimiam o sentido do tacto ..
Os olhos , alargados , saltavam, abrangiam a
mesa, mediam as doses ; e concertado o pra-
to , entrecerravam - se alguns instantes. Havia
nelle então um recolhimento ritual ; o comedor
officiava absorto, obediente ao senso intimo ;
nenhuma palavra lhe tolheria o proseguimen-
to concentrado de um daquelles actos de ple-
na beatitude ; poderia talvez durante a inges-
tão de um bocado, acudir a um appelo, respon-
der em palavra , abrir um riso, oppor um olhar,
mas era tudo automatico , vago, abstracto , sem
realidade, porque a sua pessoa inteira, alma
e corpo , estava aquelle momento na sensação
do bocado, que a lingua moldava e acariciava,
e os gorgomilos palpavam, e o esophago chu-
pava, cnuchurreando , pipillando , apertando até
o desvanecimento no estomago, que se dila-
tava contente , como um rio manso sob um
affluente vagaroso . Seria talvez mais exacto
o simile de um lago, pois que havia um li-
mite de capacidade intransponivel, o qual se
annunciava sempre por uma eructação sono-
ra. Era ao tempo em que o desembargador pa-
litava os dentes um a um com pachorra e mi-
nucia ; bebia um gole de agua, que demorava.
na boca em ablução bulhenta ; desprendia o
guardanapo pendurado sobre o peito como um
babadouro de creança ; retirava-o com vagar,
estendia-o na mesa, e dobrava-o , alisando - o .
Era um habito caseiro de muitos annos ; e
TIA LULU 35
alli em casa extranha era um actɔ ɑe puro
automatismo.
Feita essa operação final, amorteciam- se-
lhe de novo os olhos : e o seu organismo re-
pousava, cerca de um quarto de hora, como
de um grande esforço . Era já fora da mesa ,
em uma cadeira de encosto ; calado, parecen-
do attender á conversa, piscava de quando em
quando, em cochilo, e se não havia outras
pessoas extranhas, desabotoava o collete so-
bre o ventre crescido . Uma segunda eructação
era o signal de que elle tinha acordado ; vol-
tava - lhe a disposição de fallar, e conversava
com humor até a hora do pocker.
Era assim todas as quintas - feiras ; e já
ninguem reparava nessas desalinhadas manei-
ras de convivio. Apenas, se havia gente de
fóra, em primeira visita, Alice, mais do que
Pedro constrangia-se com a inconveniencia do
seu conviva habitual.
VIII
Nesse ultimo jantar Julinho , porque fa-
zia annos , occupava ao lado de Alice, o lo-
gar de tia Lulú ; em frente desta e junto a
Pedro sentara- se o desembargador. Ao princi-
pio deleitou- se o menino com a honra da col-
locação entre a gente grande ; mas depois
achava preferivel ter ficado entre as irmãs e
os amigos no outro extremo da mesa . Esta-
vam alli mais a gosto ; palestravam entre si ,
de assunto que não era ouvido pelos da outra
36 CONTOS
ponta, e que elles sublinhavam com um riso
contagioso, que percorria em escala as cabe-
cinhas inquietas. Olhava- os curioso , indagan-
do com os olhos o que é que os fazia rir.
A certa altura comprehendeu que elles se
riam do velho Azambuja, por causa da sua vo-
racidade ; os convidados de Julinho , era a
primeira vez que jantavam em companhia do
desembargador. Esther e Luizinha lembraram-
se então da sovinice delle ; e a repetição do
prato de perú foi o explosivo da troça . Rom-
peu a gargalhada dos meninos ; e Julinho ,
entalado entre a mãe e a tia Lulú , ria, por
contagio e pelo proprio esforço de não rir.
Percebendo a tia pelos acenos das creanças
o motivo da risada, sussurrou a Julinho que
não continuasse, e aos outros fez um gesto
reprovativo : Como porém elles não attendes-
sem, inclinou- se a geito de ser ouvida por Es-
ther que lhe estava mais proxima, e ralhou :
É muito feio o que vocês estão fazen-
do, caçoar assim de uma visita ! Se continuam,
chamo a attenção de seu pac.
Não sou eu só, é Julinho tambem ; é
elle que está fazendo a gente rir .
De facto o irmão nesse momento aponta-
va- lhes com esgares a figura do velho , imi-
tando - lhe a mastigação extatica . Tia Lulú vol-
tou- se e ainda lhe apanhou o gesto .
Julinho ! contenha-se, ou eu digo a seu
pae para fazer você sahir da mesa !
Hoje é o dia dos meus annos !
Os meninos que fazem annos, portam-
se bem. Isso é muito feio , muito feio.
Julinho não podia suffocar o riso, de olhos
postos nos outros, que dissimulavam. Tia Lulú
TIA LULU 37
por baixo da mesa beliscou -lhe a perna. Doeu-
lhe.
Ah! tia Lulú ! tambem! resmungou elle.
A gente não pode rir !
E desconcertado um momento , despicou-
se logo com a sua escusa peremptoria :
Hoje é o dia dos meus annos !
E era como se dissesse : Eu hoje sou
o primeiro aqui ! -e para provar a sua liber-
dade e o seu privilegio, riu alto e com desen-
voltura.
Alice reparava no colloquio agitado , e per-
guntava á tia o que era ; tia Lulú em resposta
esboçou na physionomia um grande espanto
de que a sobrinha não houvesse notado a zom-
baria dos meninos ; e impertigada, com receio
de que o desembargador a ouvisse, acenou
com o queixo, apontando para elle e com as
mãos indicava as creanças. O gesto contra-
feito della, a alegria dos meninos, o semblan-
te do desembargador alheio á troça, a expres-
são do copeiro, que mordia nos labios o riso ,
tudo predispoz Alice a achar graça no caso.
E ao olhar interrogativo do marido, voltou-se
para dizer -lhe alguma cousa em voz baixa .
Nesse momento o desembargador acaba-
va de engolir o ultimo pedaço de perú e fa-
rofa, e com um ar de satisfação e pena , con-
cluiu :
Estava delicioso este perú . D. Alice !
Se não fossem esses fios de ovos que alli es-
tão, eu repetiria ainda uma vez. Delicioso perú!
Dizia - o a lamber os beiços, embevecida-
mente.
―
Pois repita, desembargador ; não faça
cerimonia .
CONTO
38
333
E as creanças de novo a rir ; e Alice
tambem. Só tia Lulú ficára séria, e quasi cor-
rida fechara o sobrecenho, com un! ar de
censura á cumplicidade da sobrinha. O mes-
mo desembargador acompanhava risonho, á tôa,
a galhofa das creanças. Pedro o que principal-
mente notou foi o ar de tia Lulú , e poz-se a
rir sem saber porquê, ou só porque tia Lulú
não ria. E disse animando a creançada :
Estão alegres os pequenos ! Cuidado
com o vinho ! Não vão ficar tontos ...
E dirigindo-se a Azambuja :
Boa edade, desembargador ! em que a
gente ri á tôa e faz rir os outros sem sabe-
rem de que .
O desembargador applaudiu de cabeça , e
vagamente. Tinha os olhos postos em tia Lulú,
que lhe servia a sua parte de trouxa de ovos .
Essa occupação distrahia- a do procedimento
censuravel dos meninos . Formava a trouxa de
ovos uma pilha conica muito alta rematada
no vertice por um cravo natural ; á volta em
espiras resaltavam pequeninos confeitos, gra-
nulados e prateados . Era tudo trabalho della ,
e uma das suas habilidades de doceira, das mais
gabadas. Não havia jantar de annos em que
se lhe dispensasse essa contribuição saborosa
e ornamental ; era apreciada de todos ; e
vaidade de doceira, o gosto de dar prazer pa-
gavam bem o labor paciente de longas horas
de tia Lulú, sem collaboradores, que ella não
os consentia : era ella mesma que anaçava os
ovos, e fazia com pachorra passar a massa
por um funil para afilal- a na calda , e depois
The dava o geito de rolo engenhosamente com-
posto sobre uma base larga, que se ia estrei-
TIA LULU 39
tando proporcionalmente até o cocoruto, em
que ella fixava a flor ; e esta era como o tim-
bre de fabrica ; e havia ainda o accessorio do
papel rendilhado em que assentava o doce ,
e que só ella recortava, picava e recamava.
O seu premio era a satisfação dos que lhe
gostavam o doce, ainda que não lhe expri-
missem o louvor senão nos olhos regalados.
Não lhe tirassem porém a ella o prazer de
servil-o . Como havia a sciencia de fazer, ha-
via a de desfazer a trouxa de ovos , que lhe
fosse diminuindo o tamanho , sem lhe quebrar
a feição e ao fim deixal - o arruir em massa
informe sobre o prato.
Tia Lulú, retirando o cravo que depoz ao
lado, enfiou o garfo no pinaculo da trouxa e
começou a giral- o sobre si, enrolando o do fi-
lamento dourado, que se despregava da pilha
ao geito de um novello . Os olhos do desembar-
gador seguiam a operação ; e os dos outros tam-
bem, as creanças agora sorridentes, em tregoa
ou repouso do riso, desde que podiam rir á
vontade . Tia Lulú estava absorta no seu cui-
dado ; quando lhe pareceu que o novello de
fios de ovos bastava sem escandalo ao appetite
de Azambuja, fel- o passar com o auxilio de
outro garfo para o prato , onde o ageitou ver-
ticalmente . Já o desembargador tinha o bra-
ço estendido para recebel - o . Foi quando Juli-
nho , que pouco antes pegara do cravo, teve
a lembrança de o encarapitar no prato que o
velho recolhia .
- É o presente de tia Lulú ao desempar-
gador !
Applaudiram todos a travessura graciosa ;
40 CONTOS
menos tia Lulú, mas não chegou a zangar- se,
distrahida por Alice que dizia a Azambuja :
Prove e veja que doceira é tia Lulú !
O desembargador cheirou o cravo, lim-
pou- lhe a haste no guardanapo e enfiou- o na
lapella, dizendo com um sorriso a tia Lulú :
É para lembrança da doceira afamada.
- Bravo, bravo , desembargador — excla-
mava Pedro, para justificar a algazarra que
faziam as creanças, relembradas, pela idéa de
Julinho , da allusão ao namoro de tia Lulú e
do velho . Os pequenos batiam palmas, grita-
vam , faziam tilintar os copos. Pedro achou
que elles já se excediam ; e fez a saude do fi-
lho ; mas as creanças tinham pegado com gosto
no primeiro motivo da hilaridade, e aprovei-
tavam- se ainda da confusão das saudes para a
sua troça, em que ia principalmente o plano
de um despique contra o desembargador, co-
milio e sovina, e tia Lulú, que ralhara com el-
les e beliscara Julinho .
-- Á saude dos noivos ! á saude dos noi-
vos ! tia Lulú ! desembargador !
Tia Lulú cahiu do alto do seu embeveci-
mento. Olhou para Alice, olhou para Pedro,
á espera do que elles iam fazer. Viu- os porém
a ambos sorrindo , á socapa, simulando que
não entendiam a atrevida galhofa das crean-
ças. Olhou para o desembargador que sorria
tambem, todo entregue ao gosto da trouxa de
ovos. Até o cravo vermelho na botoeira delle
parecia rir.
Tia Lulú offegava raivosa da impossibi-
lidade de castigar alli mesmo o desrespeito dos
meninos , que os paes, elles proprios, parecia
applaudirem . Esteve alguns instantes indecisa,
TIA LULU 41 .
soffreou quanto poude o seu impulso , mas era
demais seu vexame ; levantou - se e sahiu da
mesa.
Ao movimento della e á expressão dos
seus olhos , ficaram os meninos suspensos ; mas
justamente soltava o desembargador a sua pri-
meira eructação .
Foi o ensejo de nova gargalhada.
Dessa vez o velho enfiou ; era excessivo
o riso, e bulhento.
- Estarão a rir- se de mim ? perguntou,
sem bonhomia , amarrando a cara.
Alice reprimiu com o olhar as creanças.
Pedro explicou :
Não, não , desembargador ! Que idéa !
Não é de você que elles se riem ; não se atre-
veriam a isso. É de tia Lulú. Não viu que ella
se levantou. Eu lhe conto ...
E disse - lhe para o persuadir com muitos
rodeios o fraco de sua parenta, a sua aspi-
ração antiga de casamento . E como o dissesse
com um ar de censura zombeteira, atalhou - o
o outro, observando que não era cousa ne-
nhuma descabida . Era natural que uma senhora
prendada pensasse em casar - se . -- Mas naquel-
la edade ? Naquella edade, sim, e que eda-
de teria, D. Lulú ? Cincoenta annos . Pois não
apparentava isso ; e que o apparentasse, ou-
tras se tinham casado com tanta ou mais edade.
Azambuja não atinava o ridiculo, com que
Pedro queria explicar- lhe a hilaridade dos pe-
quenos.
Pois bem, desembargador, vá que não
seja ridiculo o casamento de uma cincoen-
tona ...
- E não é, teimou o velho.
42 CONTOS
Mas a singularidade de tia Lulú é que
ella não tem só o desejo , mas a preoccupação
de casar-se. Senhora tão ponderada em tudo ,
perde nisso quasi o bom senso ; é ver ho-
mem que supponha solteiro , e poō - se logo a
fantasiar um noivo possivel .
- Um viuvo para esse effeito , não differe
do solteiro ; pois até hoje, apesar de vir tantas
vezes aqui, nunca reparei nessas disposições
della ... Ou será differente para commigo , por-
que sou velho ? A sua opinião , D. Alice ? Acha
que pareço muito velho, e incapaz de inspirar
a idéa de casamento a uma senhora que só
deseja casar- se ?
O inspirar é relativo , disse- lhe Pedro ;
e só ella poderia responder - lhe. Mas do que
se refere a sua pessoa, posso eu dar o meu
testemunho de quanto é capaz. E muito moço
o invejaria.
Era pura lisonja, e tão reflectida, que a
expressão sahiu gaguejada. Mas o desembar
gador só attentou ao sentido ; entreolharam - se
os dois e sorriram - se.
Alice respondeu polidamente :
Acho que não, desembargador . O se-
nhor ... não é tão velho ...
-Não queira lisonjear-me ; diga a sua
impressão verdadeira.
A minha impressão é essa ... Quantos,
e ainda mais velhos, se tem casado !
Ella pensava ao contrario, que devia ser
impossivel que alguma mulher se casasse com o
desembargador. Mas todo o seu pensamento
naquelle instante era fazer esquecer o episo-
dio da risada. E agastava- a a explicação dada
por Pedro ; havia outros motivos de disfarce
TIA LULU 43
da zombaria das creanças, que não fosse aquel-
la confidencia pejorativa dos sentimentos da
tia. E por isso accrescentou :
Quanto a tia Lulú, desembargador, Pe-
dro não disse a verdade ; o senhor sabe como
elle gosta de gracejar de todos. Tia Lulú não
tem nada de ridiculo . É preciso levar- se em
conta a sua indole affectiva ; é muito natural,
muito justo que ella queira ter a sua propria
familia . Mas com o seu desejo , ella nunca se
deu a desfrute ; o senhor mesmo tem visto ,
quanto ella é séria, e escrupulosa. Nas condi-
ções della, quem não pensaria em casar- se,
em formar a sua casa ? tia Lulú nasceu para
ser mãe.
A veia jocosa de Pedro estancara ás obser-
vações oppostas por Azambuja, e não menos
ante a sua expressão desconfiada. Deixou por
isso sem replica a corrigenda de Alice . Hou-
ye um momento de silencio constrangido ; mas
desembargador perguntou ainda, sem se di-
rigir a ninguem :
Mas afinal ... o motivo da caçoada ?
Pedro ficou perplexo . Tinha agora receio
de molestar o velho amigo com a menção do
seu primeiro gracejo ; que só era gracejo por
implicar um disparate, e consequentemente o
desapreço e a idéa do ridiculo . O desembarga-
dor não gostaria da referencia, feita por absur-
do , á sua pessoa. Mas , com surpreza de Pe-
dro, a impressão de Azambuja, ao lhe ouvir
as pretensas requestas de tia Lulú para com
elle, foi risonha. Apenas accrescentou :
E os pequenos então acharam graça ?
Os pequenos , a quem elle volvia a per-
gunta, iam- se levantando da mesa, já desin-
44 CONTOS
teressados do caso . Alice respondeu por elles :
Elles acharam graça em Pedro, no mo-
do por que Pedro fallava. Naturalmente , não
riram por mal, são creanças.
Azambuja readquirira o seu bom humor :
E D. Lulú ?
Pedro antecipou - se a Alice para a infor-
mação :
Ella não gostou, ou mostrou não gos-
tar. Supponho que mais se aborreceu das ri-
sadas, é claro ; as risadas feriram-lhe o amor
proprio.
De certo, ponderou Azambuja .
Tinha acabado o seu café ; e dobrava o
guardanapo . Nessa operação parecia concen-
trar- se. Ergueram - se depois , elle e o casal ;
e accommodaram - se nas cadeiras de palha que
formavam um recanto de palestra a um dcs ex-
tremos da sala . Antes da segunda eructação,
o desembargador, interrompido por um dila-
tado bocejo, concluiu um pensamento in.imo :
Pois olhem , a sua tia uma senhora
muito distincta e prendada . Bastava ser a do-
ceira que é. Aquella trouxa de ovos vale um
dote ; e não lhe faltaria noivo, se ella real-
mente o quizesse .
IX
Fechada em seu quarto , reflectia tia Lulú ,
a proposito da scena do jantar, na sua situa-
ção molesta de hospede . De outras vezes , e
ainda recentemente, sentira - se desconsiderada,
e pensara em deixar a casa de Pedro. Mas
TIA LULU 45
uma desculpa, uma explicação, um carinho , as
mesmas reflexões do seu espirito acalmado,
desapparelhavam-lhe a resolução. E a sua bon
dade caprichava logo em fazer esquecer que
ella tivesse reparado no facto desagradavel, e
até que este houvesse occorrido . O caso de
agora porém era mais grave. Presenciara- o um
extranho , envolvido no incidente : havia os me-
ninos da vizinhança convidados de Julinho ,
e peior que tudo era a complacencia de Alice
e Pedro á troça dos pequenos . Tinha a com-
prehensão de um desapreço consciente á sua
pessoa. Porque é que a desconsideravam ? por-
que consentiam com agrado no desrespeito das
creanças ? Não fariam isso com outra que não
fosse hospede ; não o fariam mesmo com ella,
se ella não dependesse delles . Tudo era pois
menoscabo da sua condição ; e os mesmos crea-
dos atinavam isso , pois que a serviam como
por favor, e tambem motejavam della, a exem-
plo dos patrões. Ia jurar que naquelle momento
era della que se riam.
O quarto ficava proximo da cozinha ; e
tia Lulú podia ouvir a voz do copeiro, que
provavelmente narrava aos outros o caso . Vi-
nham as vozes confusas , em sussurro no meio
do sonido da lavagem dos pratos e talheres .
A magua não a predispunha então a cho-
rar. Não tinha havido dissentimento travado
em palavra, que acarretasse offensa directa,
e lhe excitasse a paixão , e em seguida o afrou-
xamento dos nervos. Assistira a uma scena
de comedia , senão de farça, em que lhe da-
vam uma figuração ridicula ; e observara o
proposito amesquinhador de uns, o desaffecto
de outros, e a indifferença de quem ne devia
46 CONTOS
mais , em respeito e amizade. Offensa directa
no ardor de uma discussão seria menos que
esse desconceito frio e risonho . Não chorcu :
não se lhe perturbou o espirito ; e poude capi-
tular os factos passados durante a sua hospeda-
gem . A conclusão a que chegou, de que não
The queriam bem, ou de que, se não lhe que-
riam mal, a toleravam, que não a estima-
vam , cansados da sua presença , aborrecidos da
continuidade do favor que lhe faziam deixcu
tia Lulú doída, mas calma.
E foi com serenidade, sem ostentar a sua
magua, que ella ouviu as explicações de Alice ,
quando esta foi ao seu quarto . Disse- lhe o que
estava resolvida a fazer ; e esquivou- se á dis-
cussão, a que a levariam as razões e duvidas
aventadas pela sobrinha.
Seria uma ingrata, se negasse o que
devo a vocês ; não me esqueço disso. Não pre-
ciso tambem provar a vocês a minha ami-
zade . Mas sinto que já sou de mais na sua
casa ...
Quem lhe disse isso, tia Lulú ? Que é
que lhe tem faltado aqui ?
Nada, Alice ; nada me tem faltado .
Então ?
Você me quer bem, não é ? Pois deve
comprehender a inconveniencia dessas cenas ,
que , se vão repetindo. Eu as esqueço , mas
soffro ; e quero evitar o effeito que podem
ter na nossa affeição . Você no seu intimo con
corda commigo, Alice. Quando eu deixar de
ser sua hospede, os seus filhos, o seu marido
me considerarão mais do que hoje ...
Isso é uma injustiça sua .
E os seus creados tamhem. Você tal-
TIA LULU
LULU 47
vez não veja , mas eu vejo como elles me tra-
tam . Não , não sou injusta ; nem digo isso por
mal. O convivio diario, quando não é de ma-
rido e mulher, ou de paes e filhos , traz es-
ses aborrecimentos e attrictos ; sobretudo, como
no meu caso, quando a situação não é èqui-
valente. Desde que eu deixe de morar com você,
tudo mudará para melhor, até a affeição de
Pedro e dos meninos.
Mas os outros, os extranhos é que não
pensarão assim . Hão de dizer que a maltra
tamos . Verá, tia Lulú ! E com qual das minhas
primas a senhora vae morar ? Nenhuma The
quer mais bem do que eu, nenhuma a tratará
melhor.
Nenhuma. Mas não penso em morar
em casa de ninguem . Ninguem terá que dizer
nada de vocês, porque eu acharei explicação-
para a mudança . Irei para uma casa de pensão
em Botafogo, a pretexto de banhos de mar.
E a senhora pode fazer essa despeza ,
tia Lulú ? Que idéa!
Posso. Com as minhas economias pos-
so pagar um quarto . E se for preciso mais
tarde, sei piano para ensinar.
Não houve como dissuadil - a do seu pro-
jecto. A tranquilidade de animo de tia Lulú
não deixava apontar, para argumentação, o re-
sentimento ; e Alice em consciencia concordáva
com todas as razões della .
O pesar da separação, transparecia das
suas palavras ; a sua propria conveniencia de
não parecer mal aos outros influia para com-
bater aquelle projecto ; mas a amizade lhe es-
clarecia o entendimento da situação da tia .
48 CONTOS
Pedro, foi sem desprazer que ouviu á mu-
lher a noticia ; mas ao primeiro reparo de Alice,
insinuativo de que era por culpa delle , con-
trapoz que tia Lulú era uma desagradecida.
Disse - o para não deixar de dizer alguma cou-
sa ; mas uma vez proferida a palavra passou a
ser ao seu proprio ouvido uma idéa, que elle
não quiz deixar cahir. Sim , era uma desagra-
decida ; tinha casa, comida, roupa lavada ; e
não fazia conta disso ; nem se lembrava de
que elles eram os unicos parentes que a ha-
viam hospedado . E insistiu nisso contra o que
ouvia á muiher, e contra o que elle mesmo ia
reflectindo .
A presença de tia Lulú era- lhe indiffe-
rente ; nunca sentira por ella nenhum affecto
definido ; nada oppuzera á hospedagem, mas
tambem não influira com uma palavra dẹ sym-
pathia ; não tinha prazer nem desprazer na
sua companhia ; entretanto a idéa de cessar
aquella presença obrigada era uma novidade
na casa, e como tal agradavel no quotidiano mo-
notono . Mas, pesado tudo, o que prevalecia
era a dependencia de tia Lulú ; e assim a sua
resolução de renunciar a essa dependencia as-
sumia a feição de uma impolidez.
Desagradecida é o que ella é , concluia ;
e ha de se arrepender.
Não eram muito differentes as reflexões
de Alice ; mas não concluiam pelo mesmo teor.
Queria bem á tia ; estimava - lhe as qualidades,
reconhecia todos os favores que recebera del-
TIA LULU 49
la, na permanencia em sua casa, nunca dimi-
nuidos por acto nenhum de ingratidão ou mau
humor.
Estava habituada á sua companhia nas
horas entre o almoço e o jantar, em que Pe-
dro ficava na cidade , e as creanças no col-
legio. Havia então silencio na casa ; Alice occu-
pava-se dos seus affazeres , e ao seu lado tia
Lulú costurando ou fazendo crochet, ajudava-
lhe a tarefa ; e na conversação de cousas mi-
nimas e multiplas , que compõem o interesse
das vidas regradas e monotonas, entretinham-
se as duas durante a pausa do maior movimento
domestico . Era tia Lulú quem a acompannava
a compras ou a missas de finados, e a auxiliava
nos arranjos e misteres caseiros . Nem tudo
era sempre harmonico, ou de todo satisfacto-
rio. Differiam em genio e cultura ; e a diversi-
dade de estados filtrava uma surda prevenção
reciproca. Não raro surgiam pequenas dissen-
ções no correr das palestras, e Alice repa-
rava ás vezes com azedume nos sestros da
solteirona ; e a presença d'aquelles passari-
nhos e do cachorro no interior da casa dia
e noite irritava- a como uma demasia dos di-
reitos de hospedagem .
Não faltavam pois essas pequeninas e fre-
quentes causas de amuo, enfado e quisilia,
sem contar o cansaço mesmo da companhia
quotidiana. Sem renovação de desejo, tudo fa-
tiga ; e haveria momentos e dias, em que pa-
recesse agradavel a Alice o não ter a seu
lado a figura da tia. Em summa na subconscien-
cia della como na de todos de casa a perma-
nencia da hospede era como um estorvo , leve
embora, á plena liberdade dos donos, como
50 CONTOS
a de alguem que não pertencia estrictamente á
familia.
Decidida а mudança, nenhum desses
grãos de discordia se agitou na memoria de
Alice ; mas a simples novidade do facto en-
tibiava o sentimento da separação, distrahin-
do a dona de casa com um projecto de outro
arranjo no interior, mais desafogado , desde
que se desoccupasse o quarto da tia .
ΧΙ
O seu pensamento ia delineando a nova
disposição caseira, emquanto as mãos guia-
vam automaticamente o panno da costura so-
bre a mesa da machina, e os seus pés impri-
miam a oscillação ao largo pedal movel. Era de-
pois do almoço . Tia Lulú sahira para ir ver em
Botafogo uma pensão annunciada no jornal.
O ruido da machina excitava o canto
dos passarinhos engaiolados na janella do
proximo quarto da tia : eram um cana-
rio, um colleiro do brejo, uma patativa ; e
os tres apostavam no estridulo do gorgeio,
que entretanto Alice não escutava e mal ou-
via, entreabsorta no seu pensamento e no cui-
dado da costura.
Houve porém um instante em que o
pensamento prevaleceu, e a costureira, com
a mão esquerda espalmada sobre o panno
a direita na roda da machina, sustou- lhe
o giro ; os olhos abstractos mediam e locomo-
viam dois armarios de roupa que alli esta-
TIA LULU 51
vam na saleta, para o quarto a desoccupar.
Gozavam o espaço ampliado , espanavam as
paredes descobertas, deslocavam o guarda - co-
mida de um dos cantos escuros para a face
fronteira á janella ; e entravam pelo quarto
da tia já desoccupado . Viam- lhe o assoalho ,
que era preciso lavar, tantas eram as man-
chas ; as paredes estavam furadas de pregos ;
seria preciso tapar - lhes os buracos, e caial- as ;
o peitoril da janella estava coberto de nodoas
dos respingos das gaiolas . Tudo tinha que ser
reparado.
Além dos tres passaros cantores, havia
um corropião : o silencio da machina deixava
agora ouvir - se - lhe o salto secco intercadente
do poleiro para o chão da gaiola , do chão para
o poleiro, num som enfadonho de tic- tac. Es-
cutando - o Alice revia o passaro negro , e a
gaiola immunda ; vinha - lhe á imaginação chei-
ro repugnante do alimento mesclado : uma ba-
nana, uma laranja partida ao meio, um pe-
daço de mamão . Era esse um dos cuidados
infalliveis de tia Lulú , antes do almoço : car-
regava as quatro gaiolas para a saleta e pro-
cedia á limpeza e á renovação dos alimentos ;
e emquanto o fazia, falava aos passaros como
se fossem gente, na sua linguagem de caricia .
composta das mesmas palavras e alcunhas chu-
churreadas e sibilladas . Pedro , a esse tempo
no quarto de banho, ouvia- as e enfrenesiava- se.
Ella mesma, Alice, achava irritante aquelle
monologo que se repetia invariavel, em melo-
péa ; mas a tia, abstracta, não dava pelo abor-
recimento dos outros, e esquecia- se quasi sem-
pre de mandar limpar a mesa em que depu-
nha, durante a operação , as gaiolas . Alice es-
52 CONTOS
perava que ella as recolhesse ao quarto, e vi-
nha á saleta ; o copeiro já contava com a or-
dem ralhada, que recebia logo , com endereço
á dona dos passaros :
Olhe como esta mesa está suja ! Não
viu esta immundicie ? Traga um panno mo-
lhado. Sempre a mesma cousa ! E é preciso
que eu veja e mande lavar !
O copeiro comprehendia a entonação e
attentava no olhar que Alice volvia ao quarto
da tia ; e explicava, com intimo gosto :
-
A mesa estava limpa, que eu já lim-
pei hoje . Foram as gaiolas d'ella .
O pronome pejorativo tinha effeito cal-
mante na irritação de Alice , que emendava
então a sua attitude e a intenção do copeiro .
---- D'ella!
De sa Lulú.
Pois limpe isso ; não era preciso que
eu mandasse.
Tia Lulú ficava alheia á ordem e ao dia-
logo ; entretida ainda lá no quarto com OS
seus passaros . Pouco depois era a vez de Dick,
a que ella mesma ia dar banho .
Tudo isso ia agora acabar, com a mudan-
ça da tia. Nem gaiolas que sujassem a mesa,
nem cachorrinho que dormisse dentro de casa .
Dick era ensinado ; mas acontecia ás vezes
o que acontece até á gente : e embora muito.
raro, isso era motivo de exclamação e escan-
dalo para os donos da casa e de resmungo
para os creados. Tia Lulú magoava-se pelo
animal amigo e defendia- o como era possivel.
Ora bem tudo isso ia acabar. E os olhos
de Alice compunham o quarto desoccupado,
com o contentamento de cousa nova e do ar-
TIA LULU 53
ranjo que ia trazer ao interior da casa outra
ordem e largueza.
XII
Foi quando tia Lulú chegou quasi esba-
forida da viagem a Botafogo . Tinha caminha-
do muito, desde a pensão do annuncio a ou-
tras que lhe haviam indicado no logar ou que
se lhe iam deparando no seu percurso a pé . Não
trazia cara satisfeita, ou por cansaço ou pelo
mallogro da procura. Alice achou que não era
delicado perguntar antes que a tia fallasse ;
podia parecer desejo o que só devia ser assen-
timento .
Tia Lulú contou as suas impressões ; gos-
tara muito do arrabalde, da rua e dos bondes :
São outra cousa, Alice ! Não ha mis-
tura de gente como nos de Villa Isabel . Que
distincção ! Dá gosto viajar naquelles bon-
des, tão limpos ! Os conductores são polidos
e até os burros são mais bonitos.
Ora, tia Lulú !
É, Alice . Até os burros ; ha muito mais
ordem ; vê -se logo que é companhia estran-
geira.
E por isso não faz caso dos pobres.
Para estes não ha bondes . Os pobres tambem
são gente !
Para os pobres ha as caranguejolas.
São como bondes menores, o que tem é que
não andam em trilho.
Tudo tem sua compensação , tia Lulú.
Lá as passagens não são baratas como aqui ;
são o dobro das nossas.
54 CONTOS
Era um argumento de bairrismo , que des-
pertava provocado pelo louvor ao outro arra-
balde. Tia Lulú mencionou os bondes fecha-
dos de cem reis, que trafegavam até o Largo
do Machado ; Alice contrapunha o incommodo
desses vehiculos de dois bancos fronteiros e
corridos . E dos bondes a conversa derivou
para a comparação das ruas e das casas e das
chacaras e do ar. A moradora do Engenho
Velho defendia a superioridade do seu bairro
com o ardor de um patriotismo melindrado ;
e concluia ufana :
Pois eu não troco Engenho Velho por
Botafogo . Estou muito contente aqui. Botafogo
com todas as suas prosas de arrabalde nobre,
não tem as nossas chacaras.
Isso é que tem, Alice ! Eu vi chacaras
e palacetes no Cattete, no Caminho Velho ,
e na Praia de Botafogo ...
Algumas. Mas não como as daqui. E
as casas ? quasi todas pequenas e acanhadas.
Pelo menos foi o que me pareceu a ultima
vez que fui por lá .
Tambem por estes lados ha casas pe-
quenas e acanhadas, Alice. Mas onde ha por
aqui um palacete que se compare ao do Fri-
burgo ? que bonito ! e grande ! O que mais
me encanta porém naquelles lados é o mar.
Como estava lindo na Gloria ! E que vistas
que ha na Praia de Botafogo !
E que mau cheiro de maresia ! Tia Lulú
não sentiu ? É isso, está convertida ; se não
sentiu o mau cheiro da praia ! Agora é toda
de Botafogo , do arrabalde nobre .
E n'um agastamento subito e rapido con-
TIA LULU 55
tra o arrabalde nobre, accrescentou com ma-
licia :
Lá entre essa gente que se veste me-
lhor, será mais facil a tia Lulú achar o seu ...
noivo.
Tambem você , Alice ! exclamou a tia.
Estou brincando, tia Lulú ! não faça
caso ! não se zangue.
E Alice estava realmente arrependida do
seu gracejo quasi involuntario.
Como não havia testemunhas que o glo-
zassem, o gracejo não chegou a fazer doer ;
ao contrario beliscou a vaidade da senhora.
Não lhe pareceu impossivel que entre gente
nova lhe surgisse enfim o seu noivo. E a
hypothese suggerida indirectamente pela so-
brinha foi outra razão para ella persistir na
idéa da mudança . Em casa de pensão havia
mais ensejos de relações com pessoas extra-
nhas . As visitas de Pedro e Alice eram es-
cassas.
Vendo a tia calada, pensou Alice que ella
estivesse ainda resentida ; mas não insistiu em
justificar- se apesar de que lh'o pedia o co-
ração com uma sympathia ainda mais viva
do que a habitual. Perguntou então com in-
teresse pelo que devia áquella hora mais in-
teressar tia Lulú :
Mas ainda não me contou ; a pensão
do annuncio , que tal?
Tia Lulú gostara da casa ; mas o quarto
vago era pequeno e caro ; tinha visto outros,
em duas casas particulares. Agradara- lhe mui-
to um delles, mas não acceitavam cachorro .
A dona tem dois de raça ; e não quer
animal extranho. Na outra casa, tambem não
56 CONTOS.
admittiam Dick; foi a primeira cousa que in-
daguei ... Amanhã vou ao Flamengo : ahi é
que eu mais gostaria de morar .
Mas porque toda essa pressa , tia Lulú ?
Pressa ? Não tenho pressa ; mas se não
fôr eu mesma, quem ha de ir ? A difficuldade
estou vendo que vae ser Dick . Eu não me
separo delle, por nada.
E se não achar casa em que possa fi-
car com os seus passarinhos e Dick ?
--
Ha de haver, ainda que custe mais
caro.
Amorteceu o dialogo um momento. Tia
Lulú - pensava Alice já ia sentindo o que
valia a hospedagem na sua casa, onde nada
The faltava, e nada ella gastava, e podia ter
comsigo os seus animaes. Olhou de soslaio para
a tia. Com o braço em angulo sobre a mesa
e o rosto apoiado na mão , tia Lulú tinna o
olhar pensativo e espalhado . Alice achou-lhe
a expressão triste e condoeu-se ; hesitou um
pouco, mas disse :
Afinal, tia Lulú, porque é que a se-
nhora vae mudar - se ? Não vejo motivo sério.
Está tão bem aqui!
Você sabe, Alice. Não tenho queixa de
você ... nenhuma, nem mesmo do seu marido .
Elle não tem sido delicado commigo, mas eu
desculpo- o ; tem lá o seu genio , e até bem pode
ser que não goste de mim. Digo - pode ser :
e elle está no seu direito . Mas não levo quei-
xa. Sei que vou ter saudade de todos, e que
em nenhum logar estarei tão bem como em
sua casa. Mas você não acha que me estima-
rão mais depois que eu me tiver mudado ? Oh !
com certeza ...
TIA LULU 57
E ante o protesto da sobrinha :
Não me refiro a você ; você é sempre
boa ; não podia fazer mais por mim do que
tem feito . Não me refiro a sua estima ; mas
quando a gente está longe é outra cousa. Pois
eu não vejo a consideração com que Pedro
recebe as suas primas ? Elle era lá capaz de
caçoar de qualquer dellas ! E são só suas pri-
mas ; mas não moram aqui, não são hospe-
des ; e tem os seus maridos . Olhe ; você mes-
ma ... ainda ha pouco ... não , não me zan-
guei ; foi uma brincadeira ... mas ás vezes
essas brincadeiras fazem mal. É uma experien-
cia que vou fazer. Não esquecerei o que lhe
devo, fique certa .
Alice, que no intimo lhe dava toda a
razão , pensou em ajudal- a no seu projecto
de mudança ; e lembrou, para facilital-o , que
ella poderia deixar o Dick e que todos o tra-
tariam bem ; ella velaria por elle. Para tia
Lulú porém isso era impossivel.
E enternecida, e logo depois inquieta, ex-
clamou :
E elle que ainda não appareceu depois
que cheguei ! Alguma cousa aconteceu a Dick!
XIII
E preoccupada começou a chamar o ca-
chorrinho, a procural- o pela casa . Não tar-
dou muito que elle acudisse ao appello ; surgiu
de um dos quartos do quintal, e veiu cami-
nhando lento para a escada de pedra, que a
dona já descia.
58 CONTOS
Eu não disse ! Dick está doente . Basta
vel-o .
O cachorrinho erguia para a senhora a
cabeça, esperando- a, e balouçava a cauda, em
signal de carinho . Tia Lulú carregou -o ao col-
lo , e afagava- o perguntando :
- Que é, Dick ? Que é, que é que você
tem , Dick ?
Examinava - lhe o corpo a ver se estava
magoado ; e trouxe-o para o quarto, e quiz
que elle bebesse leite e depois agua. Esforça-
va-se o cãosinho por beber, visivelmente para
não desagradar á dona , mas depois de dois
goles não poude mais e resistiu ao mando de
tia Lulú , que lhe achegava a vasilha aɔ fɔ-
cinho desviado . O olhar delle exprimia soffri-
mento, e tambem ternura pela afflicção da
sua dona.
Mas que terá Dick, meu Deus ? Está
doente, está. Alguma cousa comeu elle que
The fez mal. Que é que lhe terão dado para
fazer - lhe mal ?
E foi á cozinha indagar dos creados . Ne-
nhum lhe dera cousa nenhuma , nem elle co-
mia senão do prato que lhe preparava a dona .
E o desassocego desta era tamanho, que os
creados contiveram o seu ar galhofeiro . Um
delles até veiu ajudar tia Lulú no primeiro tra-
tamento de medicina caseira. Feito isso, tia
Lulú deitou o cãosinho na cama, agasalhou - o
bem e ficou a olhal- o já esperançada porque
elle não gemia . Dick parecia estar dormin-
do ; ella inclinava - se muito para ver se de
facto elle dormia ; o cão agitava a cauda, como
respondendo áquelle cuidado, e a algum ap-
pello della soerguia a cabecinha fatigado , olhan-
TIA LULU 59
do - a, olhando - a com a sua ternura de escravo
amigo. Levou assim quatro dias ; não podia
comer, bebia apenas, e não melhorava com os
remedios de tia Lulú e o tratamento que lhe
fez um veterinario . Era este a grande espe-
rança de tia Lulú ; mas o veterinario logo
affirmou que o cão não escapava, e porque o
examinasse indifferente, como a um simples
animal, a senhora antipathisou com o homem,
e duvidou de que elle soubesse alguma cousa
do officio . Era o que mostrava o proprio cão-
sinho , quando dahi a pouco erguendo - se da ca-
ma, encaminhou- se para fóra do quarto, des-
ceu a escada de pedra, e tomou a direcção da
chacara. Tia Lulú recobrou animo ; as crean-
ças festejaram com ella a melhora de Dick.
Acompanharam- no a distancia e espera-
ram por elle , que naturalmente tinna ido bus-
car o seu remedio em alguma herva. Mas como
tardasse em voltar, correram a buscal - 9. Dick
estava deitado sob uma moita.
Repetiu-se o facto varias vezes . Presen-
tiria elle a morte, e teria vergonha de que
o vissem morrer ? Durou mais um dia, sem-
pre deitado, sem gemer. De manhã quando
tia Lulú tomava café, Dick apontou á porta
da sala de jantar, e lentamente, como se lhe
custasse mover o corpinho esmaecido , andou
até os pés da senhora, estendeu- se e morreu.
Foram as creanças que primeiro o viram sob
a mesa já immovel.
Morto ! gritou tia Lulú.
E em choro, a murmurar as palavras des-
connexas que a morte arranca ao primeiro
espanto, carregou nos braços o cadaver até
60 CONTOS
o seu quarto . As creanças iam atraz entre cu-
riosas e penalizadas .
Ainda na cama, Pedro ouviu o rumor , e le-
vantou - se .
Que barulhada é esta ? perguntou abrin-
do a porta .
Percebeu logo o motivo. Uma das crean-
ças correu a contar- lhe 0 acontecimento .
Approximava - se Alice. Pedro teve impeto de
ralhar com os que lhe interrompiam o scmno ;
mas limitou- se ao seu desdem :
Ora essa por causa de um cachorro !
Mas faz pena, Pedro ! Tia Lulú gos-
tava tanto delle ; e elle era tão amigo della.
E tão engraçadinho !
Mas nem que fosse gente ! todo esse
barulho!
E não pensou mais no cachorro, nem na
dona, a não ser quando depois do almoço , sa-
hindo para a cidade , avistou do portão o en-
terro que se fazia no fundo da chacara.
Que bobagem ! disse elle comsigo .
Tia Lulú mandara cavar um buraco á som-
bra de uma arvore. Poz o cadaver entre flores
numa caixa de papelão , que ella mesma car-
regou, seguida por uma das creadas e pelas
tres creanças, que por muito pedirem para vêr
o enterro, tinham obtido dispensa de ir ao
collegio . Cada uma dellas levava uma flor.
Cheia a cova, compoz tia Lulú em cima um
canteirinho , em que tencionava semear myo-
sotis. Ficou alguns momentos a olhar o tre-
cho de chão revolvido ; e retrocedeu enxugando
os olhos . Antes de fechal- o na caixa ella ti-
nha cortado uma mecha do pello sedoso e ri-
çado que cobria as orelhas do cãosinho . E
TIA LULU 61
todo o seu pensamento nesse dia foi de sau-
dade .
XIV
Na manhã seguinte voltou a occupar- se
da mudança . Acabara o empecilho material que
era o proprio Dick ; e para soffrer menos o
desapparecimento delle, mais sensivel no seu
antigo quarto, tia Lulú não attendeu a incon-
venientes secundarios na primeira pensão que
achou.
Custou- lhe entretanto a despedida. Abra-
çaram- se chorando ella , Alice, e as creanças ,
todos nesse momento sinceramente sentidos da
separação . Até Pedro se commoveu ; e se lhe
fallasse alli o coração , diria que de todo se
desvanecêra o caracter de ridiculo que elle
attribuia á parenta .
E ella deixou verdadeiramente saudade,
pelo menos a sensação de uma falta na casa
em que havia morado tantos annos seguidos .
Nas menores cousas se manifestava a sua au-
sencia. Todos se lembravam , ainda que sem
se dizerem, dos actos prestimosos de tia Lulú.
Á distancia tudo avultava. Nem Pedro achou
motivo de sorrir nas perguntas que fez sobre
ella com insistencia na primeira quinta- feira
o desembargador Azambuja. Tornou depois
do jantar ao assunto e declarou a sua ɩenção
de ir visital - a.
Nessa mesma semana, uma noite , sen-
tado com Pedro no terraço do theatro
Lucinda, Azambuja começou a inquirir das
condições e situação de tia Lulú, e em ar de
62 CONTO
S
consulta disse - lhe o seu projecto de pedil- a em
casamento . Faltava - lhe a elle ordem na vida.
A sua cabocla era afinal uma creada, inferior
para o mister completo de companheira.
Pedro applaudiu abertamente a idéa ; ape-
sar de que a consciencia lhe apontava a do-
brez do seu consentimento áquelle consorcio ,
com a continuidade de cohabitação da cabo-
cla. Era o que se traduzia das palavras confi-
denciaes de Azambuja . E affiguravam - se - lhe
de relance as possibilidades que iam deparar-
se á pureza ingenua da tia. Mas não pensou
nellas senão um momento ; nem as considerou
ao menos, quando contou á mulher a grande
novidade.
Devéras, Pedro ? É historia sua! ex-
clamou Alice .
É serio, sim. Mas veja você : foi a mi-
nha brincadeira que originou a idéa desse ca-
samento. Como são as cousas ! Tia Lulú zan-
gou-se com o meu gracejo, sahiu daqui de
casa, e afinal fui eu que lhe arranjei o noivo .
O motivo da zanga vae ser motivo da sua ale-
gria .
Você acredita que ella acceite ? O Azam-
buja é um velho.
Não acceita outra cousa. Sessenta e cin-
co annos ... e sua tia, quantos ? cincoenta ...
Quarenta e nove.
Pois então ! dezeseis annos de diffe-
rença ...
É muito nessa edade . Olhe que sessenta
e cinco annos , Pedro ! ...
- O que eu desejo é aos sessenta ser como
elle . Essa gente do norte parece feita de outra
fibra . O desembargador está forte ainda. Sua
TIA LULU 63
63
tia não terá que se arrepender, Alice. Elle
é um turuna.
E accrescentou uma informação faceta que
fez rir á mulher gostosamente .
XV
O caso era assim dado como resolvido ,
sem audiencia da pessoa principal ; todos po-
rém contavam com o immediato assentimento
della , até o mesmo Azambuja fiado na seguran-
ça que lhe dera Pedro .
A idéa do casamento fôra em verdade uma
suggestão do gracejo que tanto havia feito rir
as creanças e enfadar- se a tia Lulú . A lem-
brança dos fios de ovos valia por um argu-
mento de belleza ou de fortuna .
Para viver despreoccupado e com fartu-
ra, ainda que sem luxo , ao qual aliás não es-
tava affeito , tinha o desembargador além das
rendas de herança e economias, a pensão de
aposentado . Quanto á belleza, aos seus olhos
de velho eram indifferentes os traços apu-
rados do semblante ; bastava que não lhe re-
pugnassem, e, feios ou bonitos, compuzessem
a cara de um corpo feminino , de curvas femi-
ninas. De certo elle os preferira em mulher
moça de carnação vibratil ; mas isso era um
ideal apenas, que elle desistia de realizar, pois
que não tinha prendas para neutralizarem o
seu aspecto de velho feio . D. Lulú não era
feia nem magra , e o que lhe escasseasse em
viço era supprido pelo seu appettite conjugal,
de que elle tinha noticia. E era sympathica ,
64 CONTOS
educada, á feição das familias antigas, para
dona de casa. Era o que principalmente o se-
duzia : elle tinha a indole caseira, não obstante
os desregramentos a que se dera depois de
viuvo, e por ventura esses mesmos tinham - lhe
sido uma contra prova do seu gosto , de re-
gularidade pachorrenta e satisfação methodi-
ca de desejos . Na sua cabocla tinha a famula
e a concubina, o que era pouco em si, e ainda
diminuido pela sua situação ambigua e ás ve-
zes vexatoria.
O casamento com D. Lulú preencnia
tudo, e dava- lhe com a companhia mo-
ral, a capacidade de apresentação, cuja falta
havia de ser grande na hypothese de virem á
Côrte os seus filhos casados . Era assim o casa-
mento um acto de conveniencia pessoal, para
o qual elle não requeria affeição particular ;
bastava que não houvesse desaffeição da parte
della . E achou que não era preciso mais obser-
var nem consultar por precaução . Tratava- se
menos de um pedido que de uma proposta .
A primeira visita seria opportuna.
XVI
A presença delle foi entretanto de mo-
mento desagradavel a tia Lulú. Recentemente
installada na pensão, não havia ainda tempo
para que a dona da casa e os outros hospedes
a conhecessem tanto , que não thes causasse
reparo a visita de um homem a uma senhora
solteira. Ficou tambem aturdida porque não
TIA LULO 65
á previra. Deu-lhe a noticia a propria dona da
pensão indo bater - lhe á porta do quarto .
- D. Luiza, está ahi um senhor á sua
procura.
D. Lulú abriu a porta com certo espanto :
Um senhor, D. Maria ! Não disse o no-
me ?
Diz que é o desembargador Azambuja.
Está lá em baixo na sala.
D. Lulú cuidou ver nos olhos de D. Ma-
ria uma curiosidade inquisitiva ; e não errava.
Na vida da pensão os menores factos rela-
cionados com cada um dos hospedes interessa-
vam a dɔna, a familia desta e todos os ou-
tros hospedes, em particular as mulheres, as
quaes ficavam mais tempo em casa, em lon-
gas horas de palestra vagarosa, cujo assunto
immediato e frequente eram as pessoas e
acções da communhão domestica. D. Lulú já
se iniciara nesse costume ; fôra interrogada
successivamente e por sua vez, para entreter
conversa e ser delicada, interrogara as ou
tras.
Ao fim de poucos dias as hospedes eram
como pessoas de conhecimento antigo ; re-
feriam- se a cousas do passado e a parentes ;
e, descoberta uma coincidencia de relações
communs, apertavam-se os laços de familia-
ridade ; passavam logo ás confidencias, e eram
já intimas , quando chegava a vez de criticar
as outras hospedes não presentes. Em geral
essa intimidade se travava em companhia de
duas interlocutoras, raramente tres. O que D.
Lulú ignorava ainda era que a intimidade se
revezava, e consecutivamente davam as colla-
boradoras da critica a materia della. Sabia
5
CONT
66
66
entretanto por experiencia que a visita do de-
sembargador, como de outra pessoa qualquer
que fosse, havia de ser commentada. E foi
como a uma tacita interrogação de D. Maria,
que ella informou logo :
O desembargador Azambuja é um ve-
lho amigo de Alice e Pedro. Faça o favor,
D. Maria , de mandar dizer que eu já desço .
E emquanto ultimava o vestuario , tinha
ante os olhos a sala de visitas , os grupos das
hospedes e a figura do desembargador, sen-
tado á parte e á sua espera. Sentia- se acanhada.
de ir alli ficar em conversa com elle , sob a
observação das outras.
Ao mesmo tempo vinha- lhe certa vaidade
dessa visita de um homem de posição respeita-
vel ; isso lhe daria apreço na casa . Deveria
apresental- o ás outras ?
XVII
Foi assim um tanto commovida que D.
Lulú entrou na sala, onde nessa tarde de do-
mingo havia tres grupos de hospedes em pa-
lestra, outros isolados a ler jornaes, e uma
senhora que tocava polkas ao piano . Azam-
buja estava sentado numa cadeira de bra-
ços junto ao sofá . D. Lulú sentou-se no sofá .
Todos attentaram nos cumprimentos deiles ; e
por instantes ficaram a olhal- os desceremonio-
samente. Para disfarçar o seu embaraço , ella
mostrou-se mais risonha e amavel do que lhe
pedia a presença do visitante.
O desembargador não apparentava nenhum
TIA LULU 67
enleio . Estava convencido de que era alli a
pessoa superior ; e fitava a todos com seguran-
ça ou indifferença . Alguns minutos depois , sa-
tisfeita a curiosidade, ou por vexame do olnar
com que o desembargador os encarava, os hos-
pedes foram uns após outros deixando a sala.
A ultima a sahir foi a tocadora de piano ;
embevecia- se na execução das polkas, alheia
á presença da visita.
A sennora deve sentir - se mal aqui , D.
Lulú.
Porque, desembargador ?
Não é o seu meio ; e não está na sua
casa. Não acha por exemplo insupportavel este
piano ? E é assim todos os dias ?
Para ella ao contrario tudo aquillo era di-
vertido ; mas não quiz discordar, lisonjeada
pela observação .
E; mas que se ha de fazer ? Foi a me-
lhor pensão que encontrei . Os hospedes são
bons ; não me incommodam muito.
-- Por força, D. Lulú. Este piano ... E
não se terá o direito de pedir á pianista que
não toque ...
A pianista continuava a batucar as suas
polkas ; mas esmoreceu ao dar por falta de
maior auditorio . Ainda dedilhou uma escala
preguiçosa ; e resoluta, ergueu-se do tambo-
rete, dando um movimento de meia-volta, que
era talvez um habito de agradecer applausos,
ou de attender a pedidos de outras musicas.
O desembargador olhava- a bem de rosto ; e
não lhe escondia o desprazer daquella musica-
ção impertinente . Ella, muito arrebicada, com
feições angulosas de nortista, sorriu para D.
Lulú , dizendo - lhe um adeusinho de camarada ;
68 CONTOS
e sahiu em passo saltitante, rebatendo os tu
fos da saia.
D. Lulú informou o desembargador que era
uma viuva e chamava- se D. Ismenia ; tinha duas
filhas crescidas, mas parecia ser irmã dellas.
Não tinha em verdade ar de moça ? Diziam
que ella já passava dos quarenta e cinco .
-
O que eu notei foi a pintura da cara...
Mas, D. Lulú, com franqueza , penso que a
senhora não está bem aqui . Devia ter a sua
casa ...
Tinha essa mesma opinião D. Lulú , mas
não poderia alli confessal- a pela impossibili-
dade e inconveniencia de explicar- se. O seu
pensamento porém estampava-se- lhe nos olhos ;
e o desembargador sem transição , no mesmo
tom de conselho e advertencia declarou a sua
proposta.
Não seria differente a formulação de um
dos seus despachos ao tempo em que exercia
a magistratura. Apenas aqui elle sublinhava
o pensamento com um sorriso , e os olhos se
The enterneciam fixados no rosto de D. Lulú ,
a principio attonita, como a duvidar do que
ouvia, depois surpresa, perplexa, embaraçada,
n'uma turbação de idéas e do sangue , que de-
pois de lhe fugir todo das faces voltou a co-
bril- as de rubor.
Não somos moços ; eu mesmo serei um
velho para os que só julgam pela apparencia.
Podemos pois fallar com calma, sem os arre-
batamentos da mocidade, que se deixa levar
das illusões . Gosto da senhora, conheço - a, e
como supponho que a senhora , não me quer
mal, acredito que podemos fazer a nossa nu-
tua felicidade. Reflicta bem, D. Lulú . Consulte,
TIA LULU 69
não direi que o seu sentimento , mas as suas
conveniencias . Veja que a senhora nãɔ tem
a posição e a independencia de que é digna
pelas suas prendas, e qualidades de mulher
distincta ... e bonita. É o que lhe offereço . A
não ser que eu só lhe inspire antipathia e des-
gosto .
Era um ensejo para D. Lulú sahir do seu
mutismo ; e ella fallou n'um impulso de bon-
dade, contestando que elle lhe desse aquella
impressão.
O tom de autoridade persuasiva do de-
sembargador abrandou- se, e seus olhos expan-
diram uma onda de ternura que lhe communi-
cava ás feições um ar de vida nova . E a
D. Lulú que o escutara sob o effeito da sur-
presa lisonjeira, parecia quasi formoso e jo-
ven aquelle rosto de velho. Não voltava a si
da sua confusão .
Dividia-se -lhe o espirito entre a difficul-
dade de responder, o receio de ser descortez,
em palavra ou gesto , e o temor de ver appa-
recer na sala algum dos hospedes que pre-
senciasse a sua inquietação moral. Conseguiu
enfim dizer alguma coisa , sem animo de olhar
para Azambuja :
Eu não penso em casar- me .
Não creio, qual a mulher ainda moça
e forte que não pensa em casar - se ?
-- Pois eu, não .
Repito , que não creio ; não é possivel .
Ia alludir á impressão de Pedro e Alice,
mas atalhou a tempo a lembrança que podia
molestal- a.
A lembrança acudiu -lhe a ella pro-
pria, e recapitulando a scena recente e o
70 CONTOS
ar motejador de Pedro , um assomo de vai-
dede, vingativa e satisfeita, fez- lne erigir a
cabeça, com resolução :
Pois bem, desembargador, vou reflectir
para lhe dar uma resposta. O senhor mesmo
decerto não esperava que eu respondesse hoje
ao seu pedido . Foi uma surpresa tão grande
para mim, que assim de pronto eu não sei
o que possa dizer- lhe. Mas sou sensivel á sua
sympathia e ao seu interesse. Deixe-me con-
sultar Alice .
Mas a senhora depende de Alice ? ella
não é sua sobrinha ? O contrario sim se com-
prehenderia.
É por delicadeza ; morei com ella tanto
tempo ! ella é realmente minha amiga.
Pois sim, D. Lulú, vá conversar com
Alice. A senhora diz que é por méra delicadeza,
o que quer dizer que já tem a sua resolução
tomada. Estou certo de que não me recusa.
Muito obrigado , muito obrigado.
VIII
E foi então , sahido o desembargador, que
se fez em tia Lulú o maior tumulto interior
das idéas e das impressões. Recolheu logo ao
quarto para evitar que a vissem as outras hos-
pedes, e lhe sentissem e interrompessem a agi-
tação quasi deliciosa, em que a alma d'ella bra-
cejava como o corpo de um dextro nadador
no fluxo e refluxo das ondas em ressaca. Ins-
tinctivamente foi olhar- se ao espelho ; a ima-
gem que lhe surgiu era uma transfiguração .
TIA LULU 71
Achou- se bonita e sorriu. Era a mocidade d'el-
la refeita nos traços exteriores e no sonho
antigo que se avivava.
A pessoa do desembargador era a parte
minima na sua lembrança ; valia quasi como
um só algarismo para a possibilidade do cal-
culo . A realidade era a idéa, era o noivado
que enfim descia da remota condição de de-
sejo abstracto e corporificava-se n'um pedi-
do que dependia d'ella, da sua vontade, sem
que ella o houvesse buscado .
Era ella que ia deliberar, ella era que ia
conceder. Ella era desejada, ella parecia ne-
cessaria á felicidade de alguem. E a essa idéa
de que a sua bondade ia ser por direito effe-
ctiva, e a sua força de affecto achava o seu
destino , diffundiu- se-lhe pelo organismo , um
bem estar de viço , como se a alma lhe pe-
netrasse todas as fibras do corpo até então
deserto .
Estava assentada a sua decisão ; a con-
sulta á sobrinha era pura formalidade, e ella
achou bastante escrever-lhe e preferivel a ir
em pessoa. Custou-lhe ainda assim achar uma
redacção em que não transparecesse o alvo-
roto dos seus sentimentos . Era o que não pode-
ria evitar na communicação oral.
Depois de cinco esboços , acertou n'uma
forma concisa, quasi telegraphica, que entre-
tanto foi contraproducente porque pareceu a
Alice que tinha o tom exclamativo de uma
alegria vehemente . Alice mostrou o bilhete a
Pedro, e este poz-se a rir sem dar opinião.
Que é que você acha, Pedro ? Tenho
que responder á tia Lulú .
- Dê- lhe os parabens pela sorte grande.
72 CONTOS
--Escute ; tia Lulú pede- me um conselho ;
é uma prova de amizade e confiança , e eu
preciso responder com sinceridade. Por mim
mesma não sei ...
Ora, Alice, você parece ingenua. Ella
pergunta por perguntar. Que vale ahi o seu
conselho ou de outro qualquer ? Sua tia queria
um noivo, e agora que o encontra, casa- se
mesmo, fosse elle de pedra em figura de ho-
mem.
Serio , Pedro . Nós temos alguma res-
ponsabilidade. Foi afinal você que trouxe o
desembargador á nossa casa. Você é amigo
d'elle, conhece a vida que elle leva , o seu ca-
racter, os seus habitos . É o que ella natural-
mente pergunta ... Eu teria remorsos de con-
tribuir para a infelicidade de tia Lulú. Se ella
vier a soffrer d'esse casamento ? Não ? quem
sabe ? Acho que o casamento é cousa muito
séria ...
- Mas está você a se preoccupar á tôa ,
como se tia Lulú fosse uma mocinha inno-
cente de 16 annos. Olhe que ella tem 50 annos
e deve saber o que faz . E quer que eu lhe
diga ? Você está doidinha por vel-a casada ;
não negue ! Vae ser o acontecimento na fa-
milia.
Não nego , tenho prazer, mas , Pedro ,
tia Lulú apezar da edade é como uma menina ...
Você acha que o desembargador gosta mes-
mo d'ella, que a fará feliz ?
Se não gostasse, não ia pedir-lhe a
mão ; sua tia não é rica.
Mas elle não tinha uma ligação ? Lem-
bro-me de você ter fallado n'isso uma vez.
Fallei a você ? ... Não tem importancia.
TIA LULU 73333
Era com a criada, uma cabocla que elle trouxe
do Norte.
Com a criada !!
Uma criada de confiança, que lhe faz
todo o serviço ; cozinha, lava, cose, e ainda
tem tempo para o resto : uma preciosidade ...
E agora ? Vae deixal- a ...
Não sei, talvez a cabocla se conforme.
Isso é lá com elles.
Ahi está, isso é que é preciso que tia
Lulú sajba.
Está doida !
Pois então ! Se a cabocla continuar com
elle, o que não vae soffrer tia Lulú !
Quer saber de uma cousa, Alice ? Não
se metta a dizer nada , nem a aconselhar nada ;
que não adianta. Ao contrario, tia Lulú não
lhe ficará agradecida , e se deixar de casar- se,
não lhe perdoará o malogro de seu sonho ,
ainda que você tivesse feito por bem d'ella.
E outra cousa mais séria . Essas relações de
Azambuja com a cabocla, só eu sei d'isso ,
porque elle me fez a confidencia em ami-
zade. Você de nada sabe , nem tem o direito
de fallar d'isso a ninguem. Depois, Alice, elle
deve saber mais do que nós , como regular a
sua vida ; as cousas se arranjarão do melhor
modo. Sua tia não se arrependerá. Mande- lhe
os parabens e os meus.
XIX
E foi o que fez Alice , horas depois, em
estylo telegraphico, enviando á tia os seus
74 CONTOS
abraços e os do marido . A lembrança do pra-
zer da tia, a propria novidade do aconteci-
mento, e o desejo de communical-o aos pa-
rentes e conhecidos, tudo se combinou para
quebrar- lhe a inclinação da consciencia a exa-
minar o facto na sua realidade e seus effeitos .
E foi na verdade , durante uma semana, a gran-
de nova para a familia e para quantos co-
nheciam D. Lulú pessoalmente ou de vista.
Na pensão foi o thema da conversa de todo
um dia.
De volta da casa de Alice , D. Lulú não
poude conservar calado o seu prazer prima-
veril. A expansão era mais forte que a sua
timidez . Não bastava o dialogo de seus olhos
com a propria imagem d'ella no espelho, nem os
risos em que tagarellou com os seus passaros.
Os passaros chilreavam e saltavam mais lepi-
dos nas gaiolas, como a responder- lhe que a
entendiam e estavam contentes ; e o primeiro
gorgeio da patativa foi um hymno de para-
bens.
Tia Lulú sentia necessidade de a todos
ouvir esses parabens, repetidos em todos os
sons e vozes, familiares e extranhos . E não
tardou que fosse escutal - os a D. Maria, dona
da pensão , a qual só não esgotou as interro-
gações para antecipal- a em levar a noticia.
ás outras hospedes . O que ellas disseram entre
si, e os commentarios que sussurraram ou ex-
primiram em riso , não os ouviu D. Lulú ; ou-
viu - lhe as felicitações, recebeu os abraços ; e
todas pareciam compartir a sua ventura, ex-
cepto aquella D. Ismenia , viuva que tocava
piano . Essa quiz travar- lhe o prazer com um
reparo de pena de que o noivo fosse um velho .
TIA LULU 75
A noiva apenas soletrou a inveja da viu-
va, como uma nota confusa á margem do poe-
ma, que os labios, que os olhos, que a alma
cantavam com emoção .
Mal ouviu tambem a idéa que lhe suggeriu
dias depois D. Maria para que ella não dei-
xasse a pensão, onde lhe arranjaria um espa-
çoso e confortavel quarto de casados. Seria
para todos um pezar que ella os deixasse.
XX
Mas D. Lulú sonhava com a sua futura
casa, em que ella ia ser a dona. Enfim , dona
de casa ! Teria os seus moveis , os seus creados,
daria ordens . Iam ver a sua habilidade de
arranjo e de economia! Prefigurava a casa,
e nas suas idas á cidade ficava deante dos
mostradores de lojas de moveis a escolher os
seus, ainda que isso tivesse de ser a ultima
cousa a fazer e incumbisse ao noivo. Era po-
rém um gosto da imaginação e dos olhos , além
do que ella tinha no preparo dos seus crochets,
toalhinhas de adorno e almofadas de sala.
Pareciam- lhe poucas as horas para os pre-
parativos ; e não sentia cansaço em tantos
aprestos. Ella mesma, apenas ajudada de uma
costureira e dos conselhos de Alice , compu-
nha o enxoval.
D. Ismenia, D. Maria e outras hos-
pedes da pensão iam vel- a nas horas do
trabalho . Mostravam-se interessadas pelo an-
damento das costuras, e a pretexto de da-
76 CONTOS
rem o seu parecer de experientes, inquiriam ,
bisbilhotavam ; mas D. Lulú lisonjeava - se des-
sa curiosidade e não se aborrecia com a taga-
relice dellas , porque não lhe estorvava o la-
bor, mais activo por ventura com a animação
que dava a conversa.
Desde manhã cedo começavam a mover- se
as machinas de costura ; os hospedes dos quar-
tos contiguos gesticulavam e resmungavam a
sua impaciencia, commentada mais tarde na
sala de jantar durante o café. D. Maria achou
meio de abrandar os impacientes, com a descul-
pa de que era um trabalho de urgencia ; e insi-
nuou a D. Lulú que a reclamação dos seus vizi-
nhos justificava um aumento temporario da dia-
ria. Tudo foi dito com tal geito, com tanta censu-
ra aos outros e tamanha demonstração dos seus
possiveis prejuizos , que D. Lulú lhe deu razão ,
e accordou no accrescimo do preço ; e D. Ma-
ria se tornou ainda mais amavel. Logo de
manhã, se acontecia passar no corredor, ba-
tia de leve á porta :
Bons dias ! Já na sua tarefa ! Olhe que
isso não deve ir a matar ! Tinha graça que
a senhora viesse a adoecer nas vesperas do
casamento ! Mas isso não succederá, espero
em Deus. Quer que lhe mande trazer o seu
café ? Deixe estar : eu mando vir ; é só um
momento .
E era mais um extraordinario esse café
no quarto . A hospede não percebia a inten-
ção daquella solicitude e achava razoavel a
despeza, porque lhe poupava o tempo, e seria
por pouco tempo .
TIA LULU 77
XXI
O casamento devia ser dentro de dois me-
zes. Azambuja tinha em vista um chalet, mas
não quiz resolver o aluguel sem a opinião
da noiva, e convidou-a a ir com elle uma
tarde ver a casa.
Ella alvoroçou- se, mas teve um escrupulo :
Vou convidar tambem Alice .
Alice ? Porque incommodar a sua so-
brinha?
E que ... podem reparar. Ainda não
estamos casados .
O desembargador deu uma gargalhada.
Ora, D. Lulú ! Já não somos moços.
Ninguem repara, não .
Ella ficou desconcertada. O riso e as pa-
lavras de Azambuja davam um sossobro ás
suas illusões de noiva. Já se havia desvanecido
a sua noção de edade : e no arroubo em que
permanecia desde o pedido, a imaginação re-
fizera-lhe a adolescencia, communicando ao seu
noivado as condições e circumstancias senti-
mentaes de filha innocente, cuja pureza era
mister vigiar das revelações antecipadas e pe-
rigosas. Na casa de pensão a presença das
hospedes suppria a vigilancia que ella vira
em outro tempo exercida sobre o cochicho amo-
roso das irmãs e parentas com os seus noivos .
Alguma vez que ficava em casa de Alice a
sós com o desembargador, parecia- lhe que ia
chegar o ensejo dos carinhos furtivos, cuja
possibilidade lhe excitava a timidez, a ternura
.
e um quebrante do corpo, que lhe lembravam
78 CONTOS
a acertada prudencia dos costumes sociaes do
noivado . A todo momento apontava a occa-
sião ; um silencio maior, um movimento de
cabeça de Azambuja esboçavam o impulso para
um beijo. Ella esperava-o tremula ; mas se elle
não tentava sequer beijal- a, seria pelo receio
de que surgisse gente. E a sua caricia maior
até alli fôra um enlace mais forte das mãos.
Agora aquella ida dos dois sozinhos a uma
casa vazia dava - lhe a emoção de um acto qua-
si illicito , que a expunha talvez á maledicen-
cia. O riso do desembargador e a advertencia
de que não eram moços, não produziram mais
que um effeito momentaneo .
Dominou-a logo depois a imaginação , e
no dia aprazado , quando ella appareceu ao
noivo , levava Esther, a afilhada , que ella fôra
buscar a pretexto de uma ida a compras.
Não escapou a Azambuja a circumstancia ,
e o fez sorrir ; entendeu a timidez da noiva,
e sentiu- se tomado de uma emoção que não
The viria espontaneamente. A imaginação della
irradiava e attingia- o .
Percorreram o chalet, agradaram -se delle,
combinaram os arranjos.
A principio Esther os ia seguindo , mas
deu com o quintal e disparou por elle á cata
de frutas. Da janella de um dos quartos os
noivos avistaram a menina correndo . Em am-
bos quasi a um tempo irrompeu o mesmo pen-
samento. Os braços estenderam - se uns para
os outros ; e um beijo os uniu alli, longo e vivo,
como um primeiro beijo de namorados . Foi
para Azambuja a revelação de um sentimento ,
que elle não imaginava ; ella, era como se
estivesse sahindo da sua primeira communhão .
TIA LULO 79
Esther que voltou dahi a pouco, olhava- a sur-
prehendida e encantada de tamanha alegria
da sua madrinha.
Sentia- se feliz e parecia ter remoçado . Era
uma vida nova que lhe dava mais brilho aos
olhos, mais viço á cutis e mais animação aos
movimentos do corpo . Já não tinha o aspecto
indeciso de solteirona , a feição de sexo neu-
tro, o ar ambiguo como das frutas que antes
de maduras engilham no galho. Assomava mu-
lher, com a effervescencia do sangue hiber-
nado , agora em movimento de suffusão su-
bita. Cobravam-se os sentidos da longa pri-
vação de exercicio.
XXII
Faltavam poucos dias para o casamento.
Estava pronto o enxoval e o chalet mobiliado .
A actividade de D. Lulú, não achando em
que applicar - se nesse tempo vasio da espera,
derivava em uma ancia de todos os momen-
tos, que ella afinal pensou em distrahir na
preparação religiosa para o grande sacramen-
to . Devotou- se á pratica de uma novena em
cumprimento da promessa e acção de graças
da sua felicidade .
Mas a felicidade ficou na promessa e no
sonho . Dois dias antes do casamento , Azambuja,
ao voltar de um jantar em casa de Pedro,
teve uma angina de peito e em meia hora
morreu.
Alice foi então como uma filha carinho-
sa ; mas não conseguiu persuadir a tia a dei-
80 CONTOS
xar a casa de pensão e voltar parà à suà com-
panhia. O mais que alcançou com a sua mei-
guice foi o demovel- a de ir ao sahimento do
cadaver. Era um conselho do marido, que tendo
visto a magua da cabocla, receiava da parte
della um acto vexatorio a tia Lulú . Seria ine-
vitavel que ao encontrarem- se as duas junto
ao morto, não se chocassem os dois affectos,
com desengano para a noiva e aborrecimento
para elle.
Mais do que as palavras de conforto da
sobrinha e das outras hospedes, curiosas ago-
ra da sua dor como tinham sido do seu prazer
de noiva, disfarçaram o soffrimento de tia
Lulú os aprestos de luto . Ella nem pareceu
entender o que lhe diziam, em contrario á sua
viuvez de corpo e alma.
Reabriu e fez passar sob seus olhos uma
por uma as peças do enxoval, e uma a uma as
foi guardando em mala, como cousas para sem-
pre inutilizadas ; em ultimo logar o seu ves-
tido de noiva. No momento em que ia co-
bril - o com uma toalha, teve um sobresalto ,
e as lagrimas que corriam espaçadas, enche-
ram - lhe a fluxo as palpebras ; debruçou sobre
a mala, e extravasou com o rosto sobre o
vestido o seu choro abafado .
Fechou- se o tampo da mala como o de um
esquife. Alli ficava para sempre amortalhado o
seu sonho de affeição conjugal. Tinha o senti-
mento concreto da inanidade de uma vida, fa-
lhada no exercicio do que havia de mais puro,
e era o bem de amar e ser amada, de ser mu-
lher e mãe . Nunca mais !
E com o vagar de quem leva os olhos pa-
rados e vasios, e com a decisão de uma deses-
TIA LULU 81
perança resignada, tia Lulú desenrolou o corte
de merinó preto e começou a talhar a sua
veste de viuva.
As outras hospedes e a dona da pensão
commentavam essa extravagancia, rindo com
disfarce da magua exaggerada . Seria lá pos-
sivel que ella sentisse tanto ? Mas ainda assim,
o luto tinha as suas regras ; era uma convenção .
E quem mais se desagradava de a ver in-
fringida, era D. Ismenia, que era, ella sim,
viuva, e conhecia por experiencia o desgosto
de perder um marido . Não conteve por isso
as suas chacotas na manhã da missa , quando
viu sahir D. Lulú de toucado e véu longo de
fumo .
Só lhe falta a mascara para estar com-
pleta!
Oh D. Ismenia ! acudiu D. Maria , com
um ar mais exclamativo no tom que no pen-
samento . Este em verdade pedia que a outra
proseguisse.
Pois não é uma mascarada esse ves-
tuario ? Se ella não é viuva ! E, entre nós , não
acredito nesse sentimento ... É só para não
ser mais solteirona ... Dahi, quem sabe ? ---
Deus me perdôe se já não tinha antecipado
o casamento ...
Era excessivo o gracejo ; D. Maria e as
outras reprovaram- no com a simples expres-
são dos gestos, que não houve tempo para a
palavra. D. Ismenia dera meia volta e afas-
tava-se, a rir da lembrança, que era só para
rir e dizer alguma cousa.
A dor, porque era verdadeira, trazia em
si mesma o gosto do soffrimento . Ajudava- o
a crença religiosa, que é um incentivo de ma-
82 CONTOS
gua, e parece ter uma das suas forças no
culto dos mortos, forma de esperança que
pode ampliar- se e definir- se justamente no va-
go e mysterioso, onde não ha limite nem rea-
lidade a oppor - se ao desejo e ao sonho . Tia
Lulú tinha o coração occupado e satisfeito com
a sua tarefa de tristeza ; ia todas as manhãs á
missa, e ao cemiterio todas as tardes, e com-
mungava todos os domingos, em intenção ao
seu morto . Distrahia- se assim da lentidão do
tempo deserto. Não tinha retrato do finado ,
nem sentia a precisão delle. O semblante do
noivo já em vida lhe apparecia atravez da sua
aspiração . Na morte a transfiguração se com-
pletou ; a imagem foi perdendo os traços par-
ticulares , e vivia apenas em contorno de vulto
masculino, em que se desenhava o rosto que
nos olhos della gravava a impressão mais re-
cente ; era ás vezes o de um santo , sobre o
qual ella fitara o olhar, na abstracção da reza ;
era, em summa, quaesquer que fossem as fei-
ções, a imagem do seu noivo ideal, inhumado
para sempre, e á beira de cuja sepultura ella
sentia que se circunscrevêra o seu destino .
Seus olhos passavam agora indifferentes
sobre os homens ; nenhum lhe despertava a
mais leve lembrança de uma possibidade do
amor ; o seu por isso mesmo que não se rea-
lizara, constituia na sua alma e nos seus sen-
tidos um estado de saturação. Parecia- lhe que
para encher o resto da sua vida chegava a
sua dor.
TIA LULU
883
XXIII
Não contava com a dor alheia , a das crea-
turas a quem ella queria bem. Apenas soube
que estavam doentes os filhos de Alice , todos
a um tempo , esqueceu- se de si mesma e vo-
tou-se aos sobrinhos , como enfermeira de to-
das as horas. Foram alguns dias de especta-
ção afflictiva. A molestia era grave e conta-
giosa, e Pedro tambem adoeceu. Alice, que
andava achacada, mal podia acudir aos ou-
tros ; e foi tia Lulú que tomou a si o encargo
de vigiar os doentes e dirigir a casa . Fel - o
com alma , corajosa , diligente, incansavel, como
em outro tempo , quando lhe tocara nessa casa
a mesma funcção de enfermeira. Agora por
ventura com mais validez de animo e corpo,
melhor educados pelo soffrimento e predispos-
tos para o sacrificio e a abnegação . Os pro-
prios creados olhavam-na com enlevo e res-
peito. Alice agradecia- lhe com um sorriso de
todo o rosto , ungido de sympathia, admiração
e reconhecimento . A Pedro a impressão que
ella dava era a de uma irmã de caridade :
enternecia- o e confortava-o a sua presença.
Aquelle vestido preto de viuva tinha agora
um aspecto novo, parecia que era o adequado ,
o unico molde daquelle vulto de bondade hu-
mana. Tia Lulú era bem viuva, nascera viuva
de todo o sentimento mau de egoismo e de in-
teresse .
Quando a convalescença permittiu que fal-
lassem de outro assunto que não a molestia
e as providencias caseiras, Pedro e Alice,
84 CONTOS
quasi que a um só tempo, disseram a tia Lulú
que ella ficaria morando com elles . Tia Lulú
vacillava em exprimir-lhes a sua recusa ; mas
Pedro atalhou- lhe a palavra, beijando - lhe a
mão e abraçando- a com um carinho filial, que
não consentia replica .
- Nunca mais nos separamos
, tia Lulú .
A senhora vingou- se dos meus estouvamentos
com a sua bondade de mãe . Esta e a sua
casa ; ha de ficar comnosco para sempre. Do
contrario será castigar -me; é o mesmo que di-
zer que não me perdoa, e não esqueceu.
Não era preciso tanto para persuadir a
senhora, á qual muito custaria ao contrario se-
parar-se agora daquelles parentes.
Fez- se a mudança, e o unico senão da
alegria de todos era a falta de um quarto me-
lhor que o antigo ; mas seria por pouco tempo ,
até se achar outra casa mais espaçosa .
XXIV
Tia Lulú reinstallou - se e retomou os seus
habitos de viuva, com que foi enchendo as
horas e contentando o coração solitario .
Passaram- se mezes . E chegou- lhe a vez
de adoecer, ou, antes, de advertir que estava
doente : não o tinha sentido, porque toda a
sua attenção era para a vida exterior, repar-
tida entre a saudade do seu morto e a sclici-
tude pelos parentes.
Deante do espelho havia muito que não
contemplava a sua imagem ; mal pousava os
olhos para acertar o penteado e o arranjo do
TIA LULO 85
vestuario. Alice é que lhe notou o emmagreci-
mento, e a tosse surda, e fatigante para os que
a ouviam. Deu- lhe os remedios conhecidos , e co-
mo não aproveitassem, fez chamar o medico . Tia
Lulú então percebeu que soffria : e, interroga-
da, teve a consciencia retrospectiva da sua
doença : cram symptomas breves e varios, que
se resumiam numa sensação de torpor e fraque-
za. A noção do mal deu-lhe a da continuidade.
Alice ouviu o diagnostico da molestia, que
era definitiva e longa, uma especie de com-
sumpsão medullar. Com pouco tia Lulú já não
poude erguer- se da cama, e ao fim de duas se-
manas foi preciso tomar- se uma enfermeira. A
enfermidade era lentamente progressiva ; sem
crises agudas, sem alternativas de esperança
e de sobresaltos : e entrou assim a ter o as-
pecto do quotidiano domestico . Tia Lulú ge-
mia baixinho, e não dava pleno accordo de si
mesma e ia definhando , sob os lençoes .
As creanças a principio iam diariamente
vel-a, e beijar - lhe a mão ; a pouco e pouco , dei-
xaram de ir : a tia não dava por ellas : nada
adiantava a visita, e era desagradavel o ar da-
quelle quarto de doente .
E a casa retomou o seu curso antigo :
e entre o movimento a que communicavam
maior animação os meninos, frequentados pe-
los companheiros de escola, ninguem diria que
num aposento interior acabava uma vida.
Acabou insensivelmente , uma noite, em que
na sala havia reunião de parentes e amigos . A
enfermeira adormecera. Ao se fechar a casa,
Alice como de costume foi até o quarto de
tia Lulú ; espiou, e achou-a morta.
O enterro foi como o outro, de Dick : obje-
86 CONTOS
cto de curiosidade das creanças e de leve tris-
teza dos grandes. Já não havia uma tia Lulú ,
que chorasse ingenuamente de todo o coração .
No dia seguinte, lavado quarto e
removidos os moveis, Alice examinava os
objectos da morta, para distribuir o que
ainda prestasse pelos pobres. Numa pe-
quena mala, havia um cofre, um caderno
de assentamentos e uma caderneta da Caixa
Economica, instituida desde muitos annos . O
deposito montava a quatro contos de reis ; o
do cofre, Alice teve escrupulo em abril - o , não
obstante ter a chave , porque não lhe pertenciam
esses bens ; mas entre outros papeis, achou um
com a declaração assignada de que deixava aoṣ
seus tres sobrinhos Luiza, Esther e Julinho ,
todo o producto das suas economias. As mce-
das que continha , de prata , e algumas de ouro ,
sommavam acima de um conto . Datava a de-
claração de annos . Vieram - lhe lagrimas aos
olhos ; recapitulou rapidamente o tempo em
que tia Lulú convivera com ella e a affeição
que lhe tinha e aos filhos ; e a dedicação pura
com que os amava.
Coitada de tia Lulú, disse por fim, en-
xugando os olhos. Tão boa, tão boa!
CORAÇÃO DE VELHO
ALLES assistiu ao passamento da mu
S lher, com os olhos limpos e sem outra
commoção exterior que a de um espe-
ctaculo desagradavel.
Ao começar a derradeira agonia tinham
ido chamal-o na sala de visitas . Veio sem pres-
sa, parou ao pé da cama, e deixou- se ficar
como extranho a tudo, menos á dor dos fi-
lhos, um rapaz e uma moça, que choravam
e exclamavam , de joelhos , debruçados á bor-
da do leito .
Cessada a agonia, compuzeram o rosto da
morta. Salles poz os olhos nella alguns ins-
tantes, apertou com força o filho e a filha
ao peito, recebeu passivamente o abraço das
senhoras que alli assistiam , e voltou á sala.
Sentou- se na mesma cadeira de balanço a que
tinham ido buscal- o e em que pernoitara as
duas ultimas noites da molestia da mulher.
Depois de accender um charuto, aquie-
tou- se, esperando que amanhecesse para pro-
videnciar sobre o enterro.
888
CONTOS
Como aquella morte era esperada desde
muito, Salles já tinha á mão , numa gaveta
da secretaria, o dinheiro para as despezas . En-
tregou o horas depois a um parente que se
incumbiu da diligencia, e permaneceu naquella
postura, calado , até começarem os aprestos da
camara mortuaria . Retirou - se, então , para a
sala de jantar e alli recebia os pezames dos
que iam chegando. Erguia - se, retribuia o abra-
ço, sem mais palavra que a de um agradeci
mento sumido. Se não tinha pezar expansivo,
tambem a sua attitude não destoava da si-
tuação : era recolhida e grave.
Podiam notar - lhe os extranhos a sereni-
dade da physionomia ; os amigos e parentes.
ou não reparavam na expressão de seu pe-
zar, cu advertiam que não era de esperar ou
tra cousa naquelle transe. Todos lhe conhe-
ciam o animo aspero, o tom secarrão das pa-
lavras e do semblante .
Para os mais intimos não ficava escon.
dida a sua bondade ; sentiam-n a frequentemen-
te, mas externava - se ella de tal geito , que
apparentava indifferença ou insensibilidade. O
mesmo sorriso nelle tinha á primeira vista
o ar de carranca, e os gracejos , que gostava
de fazer, mais semelhavam ralhos .
A sua familiaridade requeria iniciação e
costume para ser entendida e estimada, so
bretudo nos ultimos annos , quando a velhice
e os aborrecimentos da vida foram aggra-
vando o humor nativo. Impressionava parti-
cularmente o seu theor domestico que é o es-
pelho fiel da pessoa.
Chefe de familia pontual, mantinha sem
desvios o conforto e o passadio da casa, não
ORAÇÃ DE VELHO
CORAÇÃO 89
faltava aos seus deveres de presença , mas
era rude no trato, mais do que com a gente
de fóra. E essa rudeza peiorava á medida que
o sentimento devia pedir-lhe brandura, pela
enfermidade da mulher.
A enfermidade prolongou - se por annos,
sem aggravação e sem pausa, mas com o effei-
to, peculiar ás longas molestias chronicas, de
inutação da natureza no aspecto, nas tenden-
cias e nos habitos pessoaes .
Nada escasseava á enferma em medicina
e em satisfação dos seus caprichos morbidos , e
por parte dos filhos em carinhos . Mas a impa-
ciencia de Salles chegou ao extremo : elle já
não podia dominar os impulsos de irritação ,
que, no parecer dos amigos, tinha por causa
a inefficacia do tratamento da mulher, mas
que na opinião dos demais , resultava da pro-
pria presença da mulher. Evitava- a, quasi que
não lhe dirigia palavra, e respondia-lhe de
través, breve e desabrido . Ella percebia- o, quei-
xava-se, e era peior. Acabou conformando se,
afinal resignada, porque a não ser o carinho
e delicadeza do marido , tudo mais ella tinha
para contentar as velleidades e necessidades
de enferma.
Na verdade, não era aprazivel a companhia
della : não havia excentricidade molesta que
The não occorresse e ella não praticasse ca-
prichosamente ; e quanto mais queriam dissua-
dil- a, tanto maior era a sua pertinacia. A seus
cacôetes e caprichos , obedeciam os filhos, pe-
nalisados pelo que lhes custavam em pacien-
cia ou aborrecimento, ou vexados , quando as-
sistiam extranhos ; e nessas occasiões procu-
ravam atenual - as com disfarce . Salles é que
90 CONTOS
não disfarçava nunca o seu vexame ; se não
estava cm veia de indifferença , rompia em
commentario rude e expressão obliqua, ainda
mais pejorativa ; e com um ella ou esta se-
nhora, ditos em presença da mulher, expandia
mais desdém do que num desaforo directo .
Durou annos esta situação, e assim, ao
aggravar- se desenganadamente a doença, a es-
pectativa de todos era o alivio que traria aquel-
la morte, para a enferma e para o marido . A
attitude de Salles no transe , não dava pois
que exiranhar a ninguem, e apenas impressio-
nava pela sua gravidade silenciosa, por ventura
triste .
O que surprehendeu e espantou, e ninguem
explicava, foi o sentimento de Salles no dia
immediato ao do enterro e pelo resto da vida.
Tinha, como os outros, dormido longas horas
depois da vigilia de noites consecutivas. Le-
vantado e banhado , entrou a percorrer a casa
um somnambulo , tendo uma expressão
de olhar a um tempo indagador e distante. Pa-
recia ir se compenetrando da realidade, que
o surprehendia a espaços de improviso ; era
como se lhe faltasse aqui e alli o chão diante
dos pés, e elle sustivesse a marcha, indeciso
entre retroceder e deixar- se cahir abando-
nadamente. Demorava- se mais no quarto da
morta, já desguarnecido da cama e dos ulti-
mos vestigios da enferma.
Os vivos apressam-se em apagar os res-
tos da morte . Era agora um quarto apenas
desoccupado ; os cabides sem roupas, o lava-
torio sem agua ; nenhum já dos muitos frascos
de remedios , e sobre a commoda e a mesa não
mais aquelles objectos de uso quotidiano . Appa-
CORAÇÃO DE VELHO 91
rentemente tinha mudado tudo ; não se diria
que na antevespera ainda tivesse pousado alli
o corpo della, e que ella houvesse occupado
tantos annos aquelle aposento . Mas na parede,
proximo á cabeceira da cama ausente , pen-
diam ainda alguns quadros ; alguns de santos,
os retratos dos filhos, pequeninos, e o do ma-
rido .
Salles deteve - se a olhal- o, e a rever- se na-
quella figura antiga de moço . Depois de uma
contemplação muito longa, em que o pensa-
mento abstracto tinha a maior parte , sentou-
se junto á mesa - escrevaninha , movel de ve-
lho modelo e muito usado . Lembrou- lhe que
fôra um presente seu á mulher. Examinou- a,
lentamente , indo em espirito até à data, e
ficou de olhos parados, a cabeça ás mãos e
os cotovellos sobre a mesa .
Os filhos acharam- no alli em total absor-
ção. Salles pediu as chaves das gavetas, e co-
meçou em companhia dos filhos a pesquizar
os objectos. Em contraste com elles que chora-
vam , Salles conservava no semblante o ar de
abstracção .
Os objectos eram, entre cousas de pouco
preço guardadas por amor do habito , joias
ou pequenas lembranças, cartas, retratos de
familia , alguns em daguerrotypo. Entre estes,
um da mɔrta ; representava- a moça e recen-
casada . Salles alvoroçou- se com o achado , e
indifferente aos outros objectos e papeis que
os filnos iam revolvendo nas gavetas, con-
servava o retrato nas mãos e fitava-o numa
concentração profunda.
Em torno delle tinha - se desvanecido a
actualidade. Não via os filhos , parecia não
92 CONTOS
ter a consciencia da sua propria condição pre-
sente. O espirito remontava um passado de
quarenta annos , e recapitulava os mezes, e os
dias, e impressões , e imagens apagadas , des-
feitas no decurso do tempo . As que tinham
prevalecido , nos annos recentes, apagavam - se
agora ; molestias, vexames, incompatibilidade
de gostos, irritações, a mesma figura da en-
ferma, nada lhe ficava mais na retina e na
lembrança, reoccupadas totalmente por aquel-
le guerreotypo em que os seus olhos pa-
reciam espelhar - se e configurar a vida. Achou
assim e recompoz a sua verdadeira realidade,
da qual os ultimos annos, como um parenthe-
sis importuno, eram de subito riscados . Houve
um momento em que Salles já não poude con-
ter a commoção ; e chorou num pranto con-
vulso , estertorado , exclamativo , em que se de-
satava com impeto um sentimento represo e
accumulado .
Os filnos olhavam- no, surprehendidos da-
quelle chôro tardio, e não entendiam a di-
versidade das impressões, porque a imagem
do daguerreotypo , posto que da mãe , era de
um tempo anterior ao sentimento delles . A
imagem que amavam e choravam, era outra,
a da mãe doente , a qual não se gravara em
photographia, mas lhes perdurava na memo-
ria. Dahi o desencontro das maguas , e o es-
panto delles , sem lagrimas , ante as lagrimas
do pae ; era o mesmo o objecto do sentimento ,
mas lembrado e visto em phases differentes
e por olhos diversos.
Outra differença é que na dor dos filnos
não havia travo de arrependimento , que a ag-
gravasse. Tinham amado, e servido a mãe com
CORAÇÃO DE VELHO 93
devoção continua ; a consciencia de haverem
feito o que deveram e puderam, e a certeza
de que a molestia fôra incuravel, suavisavam-
lhes o desgosto ; tinham-se resignado gradual-
mente á idéa de vel- a morrer, e até a morte
lhes parecêra desejavel como alivio para ella
e para elles. A saudade era-lhes, pois , antes
um sentimento de repouso que de tortura. Em
Salles misturava - se o remorso ... Não , não era
bem remorso ; era outra cousa e até contraria.
Havia na sua consciencia e na memoria
delle uma solução de continuidade ; em pre-
sença da enferma tinha - se- lhe aos poucos apa-
gado a imagem anterior da mulher amada : a
irritação do humor e o aborrecimento constante
determinado pelos cacoetes da molestia apres-
saram a obra do tempo. Subtrahida pela morte .
a figura desagradavel e recente, que lhe occu-
para a retina, o seu esforço de visão mental
retrospectiva já não recompunha as feições
ultimas e superficiaes ; o que vinna surgindo
era a impressão profundamente gravada, e
apenas adormecida , a imagem da mulher mo-
ça, casada ao seu coração e á sua existencia,
imagem indecisa a principio, mas subito re-
feita integralmente por aquelle daguerreotypo .
A sensação foi a de ter dado um salto
no tempo faltava a acommodação dos extre-
mos entre aquella vida e esta morte : não ha-
via pontos de transição e de apoio á habitua-
ção do sentimento : o velho marido via - se como
um viuvo da esposa recente , e sentia renascer
o pleno ardor da mocidade, sem desillusão ,
porque era toda mental.
Em consciencia elle não tinha vivido os
annos de permeio entre o inicio da enfermi-
760
94 CONTOS
dade da mulher e a morte desta : elle não
envelhecera, nem ella mudara do que lhe appa-
recia no daguerreotypo . A unica realidade era
a morte della, que assumia agora o aspecto
de um repentino desapparecimento , e a horri-
vel sensação de um vacuo ; e Salles era como
um resurgido , espantado do que não via e
não tinha , e em ancia aguda de rehaver o
passado. O mais não lhe importava nem existia.
Por não comprehendel- o , a esse imprevis-
to soffrimento , explicavam- no pelo remorso.
Era a explicação mais facil, e a mais aprazi-
vel aos outros ; e foi alguns mezes assunto
de conversa dos parentes e conhecidos . Mas
perdurando o sentimento agudo mais do que
pedia e consentia a curiosidade alheia, já não
pareceu bastante attribuil - o ao remorse . Con-
cluiram que era manifestação morbida : era
amollecimento cerebral, e ficaram contentes
os que não podiam crer nessa extraordinaria e
tamanha saudade.
A Salles era indifferente o que pensassem
os outros ; nem attentava na impressão que ia
deixando com os seus modos e as suas idéas
extemporaneas . Vivia todo absorto na sua pe-
na, cultivada quasi que a capricho . Do daguer-
reotypo mandara fazer uma ampliação colo-
rida e tinha- a á parede no quarto de cama :
na mesa da cabeceira ficava pousado o origi-
nal, e na medalha do relogio trazia uma mi-
niatura .
Necessidade imperiosa dos olhos que não
se fartavam da contemplação querida, ou por
ventura mera imitação do costume de todos
os namorados ; aquelles retratos reproduzidos
ainda não eram sufficientes para o seu de-
CORAÇÃO DE VELHO 95
sejo saudoso. Falava- lhe o passado á imagi-
nação em todos os pormenores e accidentes
extinctos ; e elle precisava recompol- os e rea-
vival- os.
Um dia, deu comsigo enfrente a um pre-
dio antigo , em arrabalde distante. Era a cna-
cara, que o sogro habitava quando elle , ainda
estudante, conhecera e namorára Amelia : ahi
fôra noivo e realizara o seu casamento.
Guiava- o , como a um somnambulo, o puro
instincto . Havia trinta annos que não revia
aquelles sitios . Não lhe foi porém difficil iden-
tificar o predio, apezar da muita alteração nos
arredores , edificios que antes não navia na
vizinhança, o calçamento da velha rua, em
summa o ar novo da cidade espraiada até o
bairro que no seu tempo tinha a apparencia
campestre de suburbio.
A chacara conservara - se, e a casa era
ainda a mesma casa, grande e forte , assentada
sobre a eminencia do terreno, entre manguei-
ras frondosas. Salles passou e repassou vagaro-
samente, espiando e observando tudo atravéz
do gradil . Passavam e repassavam as lembran-
ças revividas. O seu olhar ampliava - se e cir-
cunscrevia o tempo. Repetiam - se os episodios
do namoro . Reviù a moça que o esperava á
tarde, quando elle ensaiava os seus passeios
de curioso do amor ... Não a cortejava a prin-
cipio : olhavam-se : e veio o primeiro sorriso,
o primeiro cumprimento , a primeira palavra
balbuciada . Surgiu então um amigo providen-
cial que promovera a apresentação : e dias
depois elle começou as suas visitas. Com que
alvoroço subira aquella rampa na tarde do
pedido ! Amelia estava de branco : esperava- o
96 CONTOS
na janella do sobrado, na ultima á esquerda .
Salles reviu exactamente a figura da mo-
ça, que lhe sorria ... Abriu o portão, trans-
poz a rampa até a esplanada fronteira á casa,
bateu palmas .
Ouviu vozes de homem, choques de bolas
de bilhar na sala da frente , tai qual como
no outro tempo . Um dos homens, segurando
-- Quem é?
um taco, assomou á janella :
Deparando com a figura de Salles, desco-
nhecida, mas acatavel, sahiu ao jardim ao seu
encontro . Salles ficou um instante perplexo .
É o dono da casa ?
Sim , senhor, que deseja ?
Queira desculpar - me : parecerá extra-
nho o meu procedimento , nem sei como lh'o
explique . Morei nesta casa ha muitos annos ,
aqui fui feliz, e sinto uma necessidade inven-
civel de rever esta chacara. Permitte-me o
senhor que eu a percorra alguns momentos ?
Ao dono da casa affigurou-se na verdade
uma extravagancia ; mas sobresteve a negativa,
atado pela velhice e a apparente dignidade de
Salles, sobretudo pelo luto que o cobria. Não
cogitou do sentimento que dictava o pedido :
nem quiz interrogar nada, para não interrom-
per a sua partida de bilhar.
- A vontade, pode ir vendo a chacara,
-
respondeu elle e voltou para a sala.
Tanta indifferença foi um choque para Sal-
les, que presumia achar um acolhimento de sym-
pathia ao seu desejo . Pensou no que faria elle,
invertidos os papeis. O mundo era a sua sen-
sação . Como é que que os outros não lhe viam
nem compartiam a angustia ? Doeu -lhe a frie-
CORAÇÃO DE VELHO 97
za do trato , como uma desconsideração : e o
attentar nisso valeu para atenuar o effeite
da realidade evocada.
A visão que ia retraçando a saudade , da-
va-lhe tamanha dor, que elle sentia no peito
o impeto do choro, a romper em soluços : mas
poude conter - se e as lagrimas só lhe molha-
ram os olhos. Deu volta á casa , e chegando
á frente, approximou-se da janella da sala
para agradecer ao morador. Este acudiu ao
som dos seus passos.
Muito obrigado ; volto , não sei se alli-
viado, ou mais afflicto .
E, cortejando, dirigiu- se ao portão.
O dono da casa ficára á janella a olhal- o ,
e com elle os parceiros do jogo , todos cu-
riosos do velho extranho . Um desses, apezar
do porte e do aspecto de Salles , suggeriu a
hypothese de que fosse um ladrão, outro po-
rém julgou conhecel- o de vista e de nome :
e desfez a possibilidade . E debatido ɔ alvitre
entre risos e chacotas, concluiram que o caso
era apenas o de um velho gira.
Salles chegava ao portão e voltava- se para
prender o batente : poude ver o grupo de fa-
ces risonhas que o commentavam , e adivinhou
a causa do riso . Partiu amesquinhado e pun-
gido ; mas logo prevaleceu a consciencia maior
do passado revivo.
Nessa tarde fez os seus primeiros versos ;
e escreveu-os chorando . Nunca se ensaiara em
literatura, mesmo na edade, em que a poesia
parece ser a lingua universal. Salles ignorava
as regras e os segredos da technica : mas o
sentimento suppriu a sciencia ; o coração dava
o rhytmo ; e excessos ou deficiencias da me-
7
98 CONTOS
trica ficariam despercebidos, e não seriam
maiores que as costumadas liberdades dos
poetas.
Dos versos feitos não tirou Salles vaida-
de, mas só contentamento de ter exprimido a
sua voz interior : era a oração escrita do
seu culto ; e só por isso gostou de mostral - os
a um ou outro amigo, que elle suppunha ami-
go. Correu a novidade transmittida em mali-
cia crescente .
E não houve mais duvida sobre o estado
mental do viuvo. Nos poucos annos que viveu,
a dor moral que o levantava em si mesmo ,
diminuia - o no conceito dos outros . Os que mais
lhe davam, e eram os parentes , sentiam com-
paixão por elle ; mas compaixão exclue apreço
e amizade . Tal é a necessidade da contingen-
cia humana. Fóra da compaixão , havia ɔ com-
mentario derisorio .
Qual é a fronteira do riso ? Tudo lhe está
dentro das linhas, nessa região da galhofa ,
infinita como o nada. Um pobre velho gira é
cousa vulgar e indifferente : mas a distincção
pessoai é o sainete de uma caduquice. E assim
o velho Salles , coberto do seu luto, fechado
na saudade , fazia sorrir e rir, porque sabiam
que ele chorava e fazia versos de saudade da
mulher morta.
E ainda se affigurou extravagancia ca-
duca o seu derradeiro desejo de que lhe fe-
chassem no esquife os retratos della. Fecha-
ram-nos e esqueceram-no , sem haverem en-
tendido aquelle caso de magua, entretantɔ bem
simples.
Em Salles o coração não acompanhara a
edade do corpo : tinha hibernado longos annos
CORAÇÃO DE VELHO 99
sob o gelo da doença da mulher. Reassomando
á actividade, abrochou como a planta dos Alpes ;
e só refloriu em saudade, porque a terra em vol-
ta era esteril e fria para outras flores . Cora-
ção de velho , tinha a raiz e a energia na
mocidade , que só elle podia reviver em pen-
samento e os outros ignoravam e não senti-
riam jamais.
JANUARIO
HAMAVA - SE Januario dos Santos . Era
um homem de meia edade e meia al-
C
tura, nem gordo nem magro , de sem-
blante inexpressivo , ou talvez de uma expres-
são que não se entendia logo, e que por ser
de pessoa sem particular importancia não pro-
vocava reparo . Quando o vi a primeira vez,
em casa de uma familia amiga, não me lem-
bra que me tivesse deixado impressão a sua
figura, ou porque nessa noite elle ficasse es-
quivo á conversa geral, ou porque effectiva-
mente fosse uma figura indistincta . Mas ou-
tra vez que fui á mesma casa e depois em
outras casas, sem eu indagar, falaram- me delle,
com uma insistencia que revelava muito apre-
ço e affecto ; e eu acabei por considerar tam-
bem o Januario e por estimal- o como pes-
soa de excepcional virtude, taes gabos lhe fa-
ziam á direitura moral. Conversando - o algu-
mas vezes, verifiquei que a sua honestidade
não era um dom de excepção como faziam crer
os louvores ; mas entendi a admiração que lhe
tinham , sobretudo as senhoras sizudas e os ho-
102 CONTOS
mens casados. Num meio licencioso é já ex-
traordinario um homem honesto na linguagem
e nas maneiras, e de vida casta ou ao menos
discreta nos amores . Ao nosso Januario dava
ainda realce a condição de solteiro e a circums-
tancia de ser um frequentador assiduo e inno-
cente de casas de familia , sem intenção de
namoro . Não é que se abstivesse de falar em
assumptos de amor ; ao contrario, com as me-
ninas casadeiras era esse o thema preferido ou
unico da sua conversa, mas o theor da sua
fala era de avisado conselho ou de leve gra-
cejo ; e ellas gostavam de Januario, confiadas
na attitude paternal com que as tratava, e que
bem condizia com a barba e os cabellos já gri-
salhos . Os pais sorriam complacentes dessa
intimidade que os ajudava na vigilancia das
filhas. Os namorados não tinham porque en-
ciumar- se delle , que os servia tambem como
conselheiro e intermediario velado . E assim
todos lhe queriam bem, porque agradava a
todos, e não fazia mal a nenhum.
Aos que o ouvissem então podia parecer
uma creatura frivola . Mas não era.
Em companhia das outras pessoas, fami-
liares ou extranhas, a mesma impressão agra-
davel. Sempre discreto, falava quando convi-
nha e acertado, e quando não se sentia á al-
tura do assunto, calava- se para escutar, ou
respondia por monosyllabos de assentimento.
Onde sobresahia e não se calava nunca era
nas questões que se referissem á moral , parti-
cular ou publica . E foi a sua linguagem cohe-
rente e sagaz no tocante a essa materia que
lhe firmou a reputação de homem honesto e
austero .
JANUARIO 103
Não bastaria sel- o em verdade ; pois ,
ao contrario do que se diz , não são os actos
que prevalecem para o juizo humano ; as pala-
vras sim , que enunciem repetidamente , nas
occasiões opportunas, a virtude escondida e
aliás ignorada ; porque justamente o que cons-
titue a virtude é o conjuncto de . actos silen-
ciosos , negativos e successivos no curso da
vida, e pela sua mesma natureza e condição
não se analysam nem se adivinham esses actos
espaçados e isoladamente insignificantes.
Foi o que entendeu Januario ; por ventura
não chegou a entendel- o nem cogitou de crear
nenhuma fama ; que a honestidade é inconscien-
te, não dá acordo de si ; as circumstancias é que
lhe davam ensejo de ir revelando as feições
de uma alma justa e sã, no commentario que
elle fazia dos varios casos conversados em sua
presença. Sabia - se já de antemão o seu juizo
em cada caso , mas havia sempre occasião de
provocal - o a manifestar- se , porque em taes pa-
lestras sobre a vida alheia, ferteis e seducto-
ras, nas quaes infallivelmente as opiniões se
extremam entre a escusação facil e a condem-
nação rigorosa, Januario apresentava o con-
ceito equilibrado, em reparos de reprovação
compassiva .
E a sua palavra, conciliadora das duas
opposições, contentava a todos, e dava a im-
pressão de que nascia de um espirito limpo e
isento, e por isso lhe sahia sem a premeditação
de effeito, dos que usam, defendendo ou incri-
minando , illudir os outros ou desculpar algu-
ma falta intima e inconfessavel.
Eu, desconfiado , por experiencia, das re-
putações absolutas, acabei comtudo acceitando
104 CONTOS
a de Januario ; e já não sorria, como a prin-
cipio, ouvindo aos conhecidos tomal- o por me-
dida de apreço dos homens bons. Gabava- se al-
gum homem, e como é natural, apontava uma
opinião dubitativa ? A formula de restricção
entre aquella gente era sabida ; diziam logo :
Mas de certo não é como o Januario ?
e havia quem accrescentasse : Ah! como o
Januario, não ha outro!
E eram todos convencidos e sinceros ; e
eu mesmo, por admiração , por gosto, e em fim
por affecto, busque a intimidade do Janua-
rio. É certo que o admirava e lhe queria bem ;
mas confesso que approximando-me delle eu
sentia um pequenino impulso de inveja, uma
curiosidade algo maliciosa, uma esperança in-
decisa de achar naquelle homem um defeito
escondido , uma falha de caracter que contra-
balançasse a fama de virtuoso . Pois apesar
de todo o meu exame não descobri nada que
importasse a diminuir- lhe o renome. Achei sim
alguns defeitos, que talvez me fizeram esti-
mal- o mais .
Notei por exemplo, ao fim de muita obser-
vação , que elle não era extreme de inveja ;
este sentimento difficilmente lh'o descobririam ,
porque trazia expressão negativa e silenciosa,
que passa despercebida . Ninguem lhe ouviria
desfazer no valor ou bem de outrem ; mas
de seus labios nunca sahiu , que eu soubesse,
a mais ligeira referencia, o mais trivial lou-
vor á virtude aineia, a não ser que fosse para
fundamentar a sua desapprovação ao acto de
uma terceira pessoa ; e a piedade que ajuntava
á censura pareceu-me não raro que era um
modo de atenuar as qualidades da segunda.
JANUARIO 105
Tambem não era liberal ; custava- lhe dar
ainda o que tivesse de superfluo ; e como não
houvesse motivo para essa economia continua-
da, inferi que revelava uma negação de bon-
dade, e uma deficiencia no seu sentimento re-
ligioso. De facto eu não acreditava muito na
sua convicção de catholico . Frequentador in-
fallivel da egreja para a missa dos domingos
e dias santos , Januario era em verdade catho-
lico ; supponho todavia que o era só por de-
cencia, por habito adquirido , por vantagem pes-
soal e ainda por temor de não cumprir os pre-
ceitos do culto externo . Rezava como os mais
fervorosos crentes, mas na sua fé havia fa-
lhas profundas, pelas quaes em conversa de
acaso ou acinte por mim dirigida, espiei o des-
conhecimento e a indifferença delle em pontos
da maior relevancia christã .
Mas tudo eram supposições minhas, feitas
no decurso de dois annos que tanto tratei com
Januario, e conforme disse , parecendo defeitos ,
influiram por isso mesmo para eu estimal- o
mais . Não gosto das creaturas infalliveis e
construidas em molde sobrehumano, se é que
as houve algum dia . Fragil, minado de algumas
enfermidades de animo, Januario tinha o me-
recimento de dominal- as e ser differente do
que podia ser em obediencia á sua natureza .
Era pois verdadeiramente virtuoso e admi-
ravel.
Os nossos encontros eram frequentes na
rua ou nas casas de amigos communs, e assim
dispensavam- se as visitas reciprocas, mera for-
malidade de delicadeza entre camaradas assi-
duos . As poucas vezes que o visitei foi por
motivo de doença delle . Morava em casa do
106 CONTOS
irmão. O irmão era negociante , socio prin-
cipal de uma grande firma importadora ; mais
velho que Januario cerca de dez annos , tinha-
The feito as vezes de pai, educando - o e encami-
nhando-o na vida.
Januario dizia dever- lhe tudo e referia se
a elle com affectuoso respeito. Fôra empregado
a principio no escritorio da firma, mas não
tinha vocação para aquella especic de tra-
balho, e preferiu o commercio de bolsa .
Era zangão ao tempo em que o conheci .
O irmão, bondoso e tolerante , creio que sup-
pria as deficiencias da corretagem, nos dias
magros da bolsa . Era rico e não tinha outro
herdeiro , além da mulher, uma senhora bo-
nita, de semblante risonho e gestos meigos ,
e cuja sympathia prendia logo a gente .
A primeira vez que visitei Januario, então
enferno e de cama, impressionou -me a lhaneza
e a bondade daquelle casal, que accumulava so-
bre o meu amigo quarentão todo o carinho e
affecto que havia em reserva para os filhos
que não tinham. O negociante, pelo cuidado
do irmão, privara- se naquella noite de ir fazer
o seu giro habitual depois do jantar ; fumava
cochilando na sala, mas o objecto da minha
visita e a minha qualidade de amigo de Ja-
nuario desvaneceram-lhe o torpor da digestão ,
e ouvi -lhe fallar do enfermo com uma solici-
tude e um interesse mais que fraternos ; pa-
receu- me que sabia do conceito geral em que
tinham Januario, e isso lhe dava orgulho, co-
mo obra que era tambem delle, effeito da edu-
cação, dɔ exemplo domestico e dos seus con-
selhos de amigo. Acompanhou-me depois ao
quarto do enfermo ; e alli me recebeu a boa se-
JANUARIO 107
nhora, occupada naquelle momento em pre-
parar os remedios, que ella mesma levava á
boca de Januario , abatido sob um accesso de
febre. Mostrava- se apprehensiva ; mas achou
tempo e modo de ser amavel commigo , e eu
pude observar a expressão affectuosa com que
se communicavam os dois, mulher e marido . Es-
te não poude se conter que não me dissesse á
sahida : - É uma creatura incomparavel ; repa-
rou na bondade della com o Januario ? é uma
mãe, e o céu foi injusto em não nos dar
filhos .
Sahi trazendo nos olhos e no coração
aquelle quadro singelo de harmonia domestica .
Voltei outras vezes, já convalescente Janua-
rio ; e a impressão não mudou.
Januario ficou bom, retornou ao trabalho
e ás visitas ; mas um bello dia, sem mais nem
menos, quando parecia ter- lhe voltado a sau-
de, morreu ...
A morte é sempre inopportuna, mas ás
vezes é, além de inopportuna, indiscreta ...
Januario morreu repentinamente no quar-
to da cunhada . Eram onze horas da manhã.
O irmão já tinha salido , conforme seu costu-
me que era salir cedo. Januario sahia sempre
depois do almoço . Aos gritos da senhora, que
naturalmente não os poude reprimir logo , acu-
diram os creados, e acharam- no morto . Houve
tempo de vestil-o e carregal- o para o seu pro-
prio quarto ... e antes de chegar o irmão ...
Para explicar a morte, não foi preciso mais
que a surpresa de todos e o attestado de um
medico.
Como vim a saber dos pormenores ? Pelcs
mesmos creados, sem que eu indagasse ; e á
108 CONTOS
noite , já o sabiam os intimos que foram ve-
lar o cadaver, no dia seguinte a vizinhança ; e
na hora do enterro . de quantos tinham conhe-
cido Januario, só uma pessoa ignorava tudo ,
o irmão , cuja dor era profunda como a de um
pae ao ver- se orpham do unico filho . A mu-
lher chorava muito, abraçada ao marido , na
hora do sahimento . Não affirmo qual fosse a
idéa dos que assistiam ; eu não tinha cabeça
para deliberar entre o meu espanto das cou-
sas e a saudade do amigo. desvanecido.
Carregando- lhe o caixão no cemiterio, pre-
sumo que a sensação dos outros era semelhante
á minha ; parecia me ora pesado ora leve, segun-
do me occorria o pensamento de que alli carre-
gava um corpo humano sem vida, como havia
de ser o meu, ou me enchia o espirito a lem-
brança daquella reputação que iamos despe-
jar na cova aberta e eterna. Foi a minha ulti-
ma desilusão , acredito que a ultima ...
É razoavel o teu espanto indignado ; mas
não julgues depressa . Vê se não te indigna tan-
to , ou mais, o commentario que ouvi depois a
um amigo do negociante : que sem duvida este
fechava os olhos ao segredo domestico , e con-
sentia ...
Era o commentario de um amigo, dentro
em pouco foi o de todos ; e não serviram de
nada as lagrimas e a dor daquelle homem de
boa fé . Não julgues tambem esse outro facto
humano. A psychologia é uma sciencia ingra-
ta, sem nenhuma base mais que a presunção
de cada um. Não ha caracteres fixos , nem
distinctivo que os faça prever. O que dize-
mos observação, é cousa illusoria ; ninguem dis-
cerne este objecto complicado que é a vida in-
JANUARIO 109
tima dos homens . Os que fazem psychologia não
partem da analyse para a conclusão ; porque
a analyse é mentirosa ou impossivel. Dado um
facto , que era imprevisto , elles buscam expli-
cal- o e ajuntam ao desfecho as circumstancias
anteriores que para o animo desprevenido nada .
significavam ; e ainda ahi ha materia para o
erro .
Este caso de Januario ... Eu que me tinha
em conta de conhecedor dos homens , desisti
de explical - o e definil-o . A revelação do que
elle era foi o acaso que a deu ; a sorte can-
sou - se de esconder- lhe a alma e despiu- a no
momento em que lhe acabou a vida . Mas não
me conformo com o logro que elle me pregou,
e ainda procuro , revivendo - o na memoria, es-
tudar - lhe os habitos , os gestos, as palavras ,
nas quaes pudesse haver indicio daquella si-
mulação diabolica . Parece- me que devia es-
tar nos olhos delle o signal da alma damnada .
Effectivamente os olhos delle não eram comc
os de toda gente ; olhavam com esquivança
e a furto, salteando de logar a logar , como
se tivessem medo de deixar ver o interior
escuro .
Os labios tambem ... havia nelles um gei-
to , um movimento quasi imperceptivel que de-
via indicar a sensualidade astuciosa . Seriam po-
rém assim , ou é a minha imaginação que os
está creando á imagem do conceito derradeiro ?
Os outros amigos delle, os que primeiro
o louvavam e exaltavam, não lhes custou des-
acredital- o , com vehemencia e empenho me-
didos pela grandeza da illusão com que por
tanto tempo Januario os empulhou ; chamam-
lhe simulado e perverso ; e na vingança com
110 CONTOS
que lhe desfazem o nome, cuido haver mais.
que o gosto de uma desforra, ha por ventura
o prazer de já não sentirem o peso de uma
bondade extraordinaria.
Vês ? estou ficando suspicaz e sceptico ; e
já duvido de todos e de tudo ; mas não te per-
cas em conjecturas desvairadas. Quem nos diz
que em Januario não havia duas almas , op-
postas e inconciliaveis ? Bifronte seria o nome
adequado áquella creatura . Tudo é admissivel
na vida ... e na morte, como succedeu com
elle. Não te cances em qualifical- o com adje-
ctivos indignados : chama - lhe o nome que a
sorte lhe deu, Januario, e ainda o sobrenome,
dos Santos. Mas se queres juntar-lhe um epi-
theto , chama- lhe ... homem.
MORTO VIVO
UDO pode acontecer, até um morto vivo .
TUO ponto está em que os extremos oppos-
tos se harmonizem juntos em apparen-
cia do verosimil, que é toda a nossa verdade .
Tal o caso de Gonçalo .
Foi ahi por 1840, quando irrompeu de
novo e alastrou na cidade a febre amarella .
Era rapaz de dezoito annos , filho de operarios
de lavoura, e viera da provincia para aprender
officio na Côrte, onde tinha uma tia. Aqui
aprendeu as primeiras letras na aula do ca-
pellão de Santo Antonio dos Pobres ; e como
na casa da tia só elle sabia ler, e era o
ledor do jornal e dos romances, que se ven-
diam em cordel nos Arcos do Paço , Gonçalo
tinha prestigio de gente grande. Era além
disso morigerado e caseiro. De casa para a
officina de carpinteiro, da officina para ca-
sa, e afóra o passeio pelo bairro , depois do
jantar, o mais do tempo ficava em familia,
ao serão, lendo para os parentes e as vizinhas
que iam ouvir as historias . Mas já se vê que
não seria sómente o gosto da leitura e da
112 CONTOS
casa que o fizesse tão regrado. Entre as vi-
zinhas havia moças, e Gonçalo lia no livro,
e nos olhos de uma dellas , a qual lia nos olhos
delle . Era um rapaz apessoado e bonito .
Foi quando appareceu a epidemia, tão for-
te que apavorou a população . Não havia tal-
vez rua que não tivesse casa attingida ; e os
enterramentos amiudavam- se. Inquietou- se o
governo ; e as diligencias que elle ordenou
aggravavam o espanto e o medo espalhados.
Poucos eram os medicos para tantos doentes ;
e sem a assistencia delles morriam em maior
numero os pobres . A idéa de contagio, uma
vez aventada, correu a cidade, e a crendice
popular ajuntou- lhe como causa a acção do de-
monio. Já não era só medo physico da mo-
lestia surgia o terror dos maus espiritos sol-
tos . Ás egrejas mais do que ás boticas accor-
riam as beatas por agua benta e apparelhos
e orações de exorcismo . Mas nada bastava:
a morte ia cochichando de porta em porta
dos bairros pobres, e pousava e saltava , ora
aqui ora alli.
Era quasi ininterrupto o movimento de
feretros ; e o medo e o susto permanentes acor-
davam o egoismo . Pois que era difficil , se não
impossivel, atalhar a marcha da peste, a de-
fesa individual e instinctiva redobrava, amor-
tecendo a compaixão , a solidariedade mo-
ral e até o mesmo sentimento de amizade e
parentesco . Cada qual pensava em salvar - se
a si proprio, e como a simples presença de
um pestoso era ameaça do perigo, abandona-
vam - no logo ao primeiro signal da molestia
os parentes, os moradores da casa e os vizi-
nhos. Fugiam como da approximação do pro-
MORTO VIVO 113
prio diabo . Os mais animosos , os confiados nos
seus recursos de benzeduras, espreitavam ape-
nas o desfecho, para pedirem a retirada do
corpo ; e não havendo tempo nem calma para
a verificação da morte, é de presumir que
muito corpo se enterrou antes de realmente
morto.
Vão lá saber o que passaram esses enter-
rados vivos ! Acordavam sentindo - se fechados
num caixão , tinham a consciencia de estar
vivos e de morrerem, gritando á tôa e deba-
tendo - se ... Horrivel ! peior que a execução
de um condemnado . Não importa que isso du-
rasse minutos : os minutos , na agonia, medem- se
pela sensação, e podem ser seculos. Pois mui-
ta gente passou assim pela morte. Os abas-
tados , os que tinham parentes animosos para
velar-lhe o cadaver e o conforto de um es-
quife particular, eram no caso de morte appa-
rente que se alongasse, os que mais soffriam
de voltarem á vida. O mesmo caixão levava-
lhes ar bastante para consentir a ressurreição
momentanea : e do que esta fôra, em muito
caso, ficou vestigio no aspecto de cadaveres
exhumados, cujos membros e physionomias ti-
nham as contorsões do esforço supremo e me-
donho .
Os pobres eram empilhados na valla, e
a terra abafava- lhes a possibilidade de revi-
vescencia. Mas por economia de esforço e de
espaço , era norma depôrem os corpos até certo
numero para depois cobril - os de uma mesma
camada de terra.
Foi o que uma vez salvou um pobre diabo
china . Alta noite um tardio transeunte , de
volta a casa, nas bandas do Cajú, cortava ca-
8
114 CONTOS
minho, como era seu costume , pelos terrenos
do cemiterio, nesse tempo ainda nãc cercado
pelos fundos . Homem desabusado de temores,
tinha robustez para enfrentar perigos natu-
raes ; que dos sobrenaturaes não cogitava. As-
sim não deteve o passo, nem arripiou a mar-
cha, quando da espessa escuridão the chegou
uma voz dorida, que gemia : Estou vivo ! Estou
vivo . Surprehendeu-se, espantou-se, mas con-
jecturou que fosse voz de enterrado .
Devia estar proxima a valla dos pobres :
e orientando - se pela voz, guiou para o logar.
A voz não cessava. Era como um appello de
ave perdida Estou vivo . Estou vivo ! Na
verdade subia de dentro da valla, e parecia não
ter inteligencia ou articulação fóra daquellas
syllabas : Estou vivo ! estou vivo ! O transeunte
projectou a luz da lanterna e viu um vulto de
homem que se esforçava por galgar até a
borda, mas esta ficava - lhe muito alta . Inter-
rogado, não deu explicação , nem disse mais que
o estou vivo , estou vivo, que era já como um
estribilho de pesadello . Ao fundo da valla viam-
se os cadaveres, companheiros de camada do
china. Subia o cheiro da morte nauseabundo
e quente, como de um forno . Mas foi menos
o fetido , menos o espectaculo o que entibiou .
a decisão do transeunte : a sua coragem cedeu
á vista do mesmo vivo , que surgia e appellava
para a vida : Estou vivo ! estou vivo . Bastava
estender-lhe o braço, para ajudal - o a attingir
a borda . Para esse movimento é que lhe fal-
tou o animo . Retrocedeu, e, rapido , quasi a
correr, olhando de quando em quando para
traz, tomado de um vago pavor, foi dar o alar-
ma na casa da administração . Acudiram os co-
MORTO VIVO 115
veiros e safaram o china, que ainda gemeu
por muito tempo o seu espanto : Estou vivo! es-
tou vivo ! Não lhe arrancaram outras vozes ;
mas o caso em si mesmo estava explicado .
Por ter sido tarde, e por terem faltado corpos
(creio que deviam perfazer uma duzia para a
camada de terra) havia sido addiado para a
manhã a cobertura dos cadaveres na valla.
Safara-se o china, mas não sei se não
era preferivel o immediato enterramento áquel-
le despertar para a consciencia de um horror
passado.
O caso de Gonçalo foi mais ou menos como
o desse china, menos tetrico talvez nas cir-
cumstancias , peior nas consequencias que per-
duraram.
A doeceu um dia de molestia, que não se
conheceu nem se averiguou depois, mas no
momento suppuzeram ser a peste. Foi a im-
pressão de casa, e confirmou- a um medico
apressado, que apenas chegou para attestar o
obito . A brevidade do mal aggravou o pezar
da morte do moço, a qual em qualquer caso
seria sentida de todos na casa e na vizinhan.
ça. E a melhor prova de quanto estimavam o
Gonçalo e lhes doia a sua morte , não foi o
chôro sincero , dos parentes e da namorada :
foi o esquecimento de si mesmos em conserva-
rem o defunto na casa cerca de dez horas .
Affrontavam com abnegação o perigo do
contagio ; mas uma voz prudente ponderou a
inutilidade da solicitude postuma: e á bocca
da noite conseguiu-se levar o cadaver para o
cemiterio . Já não era hora de enterro ; nem
havia coveiros para tanto defunto . No depo-
sito ficavam muitos aguardando a sua vez :
116 CONTOS
alli deixaram Gonçalo . Um amigo que o acom-
panhara, animoso e desprendido por affei-
ção e mocidade, quiz rever- lhe as feições ; e
era tão viva a expressão da physionomia, que
não consentiu fechassem de novo o caixão .
Tambem não sei se não era costume deixarem-
nos abertos no deposito . Foi o que valeu a Gon-
çalo.
Que lhe teria acontecido , com aquellas
flores que lhe cobriam o corpo, colhidas e arru-
madas pelas mãos da namorada, em tanta co-
pia que só lhe ficara visivel o rosto ; e além
do perfume das flores, o cheiro de essencias
fortes para disfarçarem a decomposição ? Que
forças tivera elle para erguer o tampo , fechado
a chave, quando ainda meio tonto abriu as
palpebras , voltando a si do lethargo, ou do
que quer que foi ? Não contarei o seu transe
de alguns minutos, emquanto retomava o co-
nhecimento de si mesmo e das circumstancias
extranhas em que se achou. Ninguem que ti-
vesse soffrido a situação , fôra capaz de re-
produzil- a exacta ou approximadamente, pou-
co depois .
Gonçalo, mal percebeu onde estava, sem
entender cousa nenhuma anterior ao facto, tra-
tou de fugir do assombro e do logar. Era noite
alta.
Algumas velas de cêra, que ardiam en-
fileiradas, e uma pequena lampada suspensa
davam luz para ver o sitio funebre . E era
como um espectaculo de sonho . Deu-lhe o me-
do força para erguer- se , saltar ao chão , desem-
baraçando - se das flores que se espalharam su-
bitamente á roda, e correr até á porta . Es-
tava fechada por fóra , mas Gonçalo, num pulo
MORTO VIVO 117
mais instinctivo que reflectido , alcançou o fe-
cho interior, e abaixando - o, erguendo o de bai-
xo, agitou os dois batentes, uma, duas , tres
vezes, até vencer a resistencia da lingueta da
fechadura, e arremetteu para o ar livre e es-
curo , ainda a correr fugindo .
Pouco adiante estacou desorientado. Via
apenas a faxa pardacenta do caminho , mas
este mesmo confundia - se em manchas que lhe
turvavam o olhar. Circulando os olhos para re-
solver- se, reparou no enxame de fogos fatuos :
uma multidão infinita de luzes, que ao em vez
de clarearem , tornavam ainda mais negra a
terra e o espaço, como nas noites estrelladas.
Cuidou a principio que fossem pyrilampos, co-
mo os que elle vira no campo em noites de
verão . Reconheceu porém que não eram, pois
não esvoaçavam acima e abaixo ; nem apaga-
vam e reaccendiam os lumes : estes alçavam - se
e desvaneciam - se, e notou que vinham dɔ chão,
que sahiam das sepulturas, eram como bolhas
de fogo que se iam desprendendo . E eram tan-
tos e de todos os lados , que o seu movimento
incessante lhes foi dando formas, configuran
do- as, animando - as, com expressão e acenos
e cicios. De todos os lados para onde olhasse
Gonçalo, surgiam, assomavam , gesticulavam e
murmuravam os vultos de lume sem luz . Gon-
çalo teve então a visão das almas. Eram as
almas dos mortos, que pairavam sobre os cor-
pos, velando- os , e conversando no silencio da
noite. Ouvia- lhes as vozes sem discernir - lhes o
sentido . Tinha os olhos tontos de tanta ima-
gem : e cerrou-os para não ver. Temia cami-
nhar, como se ellas occupassem a passagein ,
e quedou tremulo , junto ao tronco de uma ar-
118 CONTOS
vore, rezando , a ouvir apavorado o cicio das
vozes das almas soltas .
Quando muito tempo depois reabriu os
olhos, era madrugada ; e elle despertou real-
mente para a sensação da vida. Ficava perto
o portão principal do cemiterio . Gonçalo es-
preitava alguem que lhe acudisse ; ouviu rui-
do de carrocinha de padeiro ; esperou que se
acercasse e gritou chamando . O padeiro que
ia parar, soffreando o carro, notou de onde vi-
nha o appello, e mal olhou o vulto de Gonçalo ,
teve um sobresalto, deu uma exclamação de
susto, e fustigou o animal a toda brida. Gon-
çalo foi então beirando o muro do cemiterio até
o ponto em que poude galgal- o e saltou á rua.
Dahi até á casa da tia foi uma corrida, apenas
disfarçada , quando elle avistava transeuntes.
D. Euphemia acudiu ao bater anciado da
rotula, e deparando com Gonçalo não fez se-
não esfregar os olhos incredulos, esguelar :
Meu Deus, Gonçalo ! e rolar ao chão com um
ataque. O assombro das outras pessoas da casa
só foi menos forte porque lhes repartia a at-
tenção o cuidado com a senhora desfallecida .
Isso permittiu que Gonçalo falasse e agisse,
provando que não estava defunto. Ouviram-
lhe a narrativa ; e á tia, que voltava a si do
desmaio , já não foi difficil entender a explica-
ção do occorrido.
O caso porém não perdeu a sua côr de
milagre, e attribuiram- no á obra da santa pa-
droeira, que tinha o altar na casa. Espalhou- se
a noticia e a fé no milagre da santa.
O proprio Gonçalo chegou a acreditar na
acção sobrenatural ; mas a vaidade que sentia
MORTO VIVO 119
a principio de se ver observado e apontado
mudou-se em sensação molesta .
Os olhos que o olhavam, parecia apalpa-
rem - lhe as formas , verrumar- lhe as carnes ,
investigar- lhe os movimentos : e o exame per-
tinaz trazia um ar de permanente espanto e
duvida. Não acabavam nunca de admiral - 0 ;
se apparecia pessoa nova, era logo informada .
do milagre , e a observação recrescia entre
commentarios sussurrados .
Na officina o facto causou alvoroço no
primeiro dia : instavam em que elle narrasse
as peripecias ; mas passada a curiosidade acti-
va , miravam - no os companheiros silenciosa-
mente e áparte, numa attitude de surpresa e
respeito, em que elle por fim sentia descon-
fiança. A sua presença entibiava a expansão
dos grupos ; 0 mesmo patrão recebia - o e fa-
lava - lhe um pouco resabiado, observando - o de
travez.
Gonçalo aborrecia- se no trabalho : tinha
a impressão de ser o alvo de todos os olhares
a cada movimento , e entretanto de estar so-
zinho . Alguma palavra que elle dissesse , fi-
cava no ar, sem resposta, ou apenas respondida
por uma curta phrase evasiva. Não atinava
todavia a razão da mudança ; duvidando se ha-
via incorrido em alguma falta, ou se era da
sua propria maneira suspicaz . E perdia- se em
vão na analyse de si mesmo .
Pois se até a sua namorada já › extranha-
va ! Não lh'o havia dito em palavra, mas os si-
lencios della não significariam outra cousa .
Dantes ella era expansiva, esperava- o risonha
na sua rotula á hora em que elle volvia da
officina, e havia sempre o que se dizerem, e
120 CONTOS
tudo era pretexto para conversas vivazes : ago-
ra, a conversa esmorecia nas primeiras pala-
vras, com reticencias de silencio, em que um
e outro se retrahiam conjecturando vagamen-
te. Sem suspeitar de que ella quizesse bem a
outro, começou a suppor - se entretanto menos
querido ; e attribuia a si mesmo a causa da mu-
dança, e em presença della enleiava - se nas
suas scismas, que lhe davam um aspecto de abs-
tracção confusa . Ella notava - lhe a melancholia
a distracção, queria interrogal - o , mas não
articulava a pergunta ; fitava os olhos, a furto,
e os movimentos esquivos que elle surprehen-
deu deram - lhe o acanhamento de olhal-a nos
olhos . Encurtaram- se as paradas á rotula, e es-
paçaram- se. Embora soffresse de não vel- a á
sua espera, Gonçalo sentia desafogo em não sof
frer aquelles instantes de embaraço .
O mesmo serão de casa, em que elle cos-
tumava ler para a familia, e para a namorada ,
pareciam todos havel- o esquecido, depois da
interrupção causada pela doença e morte delle.
Tambem a preoccupação e o medo da peste ha-
viam entibiado e dispersado a curiosidade do
auditorio. O interesse de toda aquella gente
convergia para o mal commum e o apavorante
espectaculo quotidiano . Reuniam-se os vizinhos.
menos para distrahir- se que para commentar a
tristeza e o perigo . Chegava sempre a noticia
de morte de um conhecido ; ou ia passando um
feretro fóra de horas, ou era um carro de me-
dico a toda pressa : e não falhava signal ou
circumstancia de alvoroço sinistro. Depois fôra
o proprio accidente de Gonçalo, a sua ressur-
reição milagrosa, o ataque da tia Euphemia,
MORTO VIVO 121
o fervor da fé no milagre , os alongados conci-
liabulos em torno do caso extranho .
Quando já ia esmorecendo a epidemia, e
voltava o' antigo theor de vida, a tranquillidade
pareceu monotonia áquella gente affeita aos
abalos recentes. Todos requeriam cominoção,
e lembraram - se das novellas de Gonçalo .
Gonçalo recomeçou a leitura. Desde as
primeiras palavras falhou -lhe á voz o timbre
natural ; e a dicção era menos vivaz ; sentia
esforço . É que na verdade a attenção delle
se dividia entre o cuidado de descostume e o
pensamento da namorada alli presente. Em ou-
tro tempo esse pensamento aguçava- lhe a ex-
pressão da voz, movimentava-lhe o olhar, e
a leitura tinha o calor activo de uma conversa
que elle traduzia em vida . Agɔra porém mur-
murava as palavras com lentidão e abstracts, e
os olhos rebatidos á pagina tinham o aspecto
somnolento de palpebras entrefechadas . Aju-
dava essa impressão a luz do candieiro pro-
jectada de cima, sobre a face delle. Com pou-
co aquella gente que fazia auditorio, attendia .
menos á leitura que á pessoa do ledor. E á
imaginação de todos surgiu outra scena re-
cente : era a mesma sala, quasi que a mesma
hora, a mesma luz mortiça, e a mesma figura
central com as palpebras descidas e aquella
pallidez . Gonçalo morto jazia no canapé. A
imagem , uma vez surgida, ficou a trabalhar
aquelles espiritos singelos e credulos ; e até o
movimento de Gonçalo e a sua voz sumida
predispunham á evocação , á extranheza e ao
desassocego . Entreolhavam-se uns e outros ; e
sem muita palavra, com pequenos pretextos ,
se foram esgueirando e sahindo. Á porta da
122 CONTOS
rua as de maior crendice e prudencia persigna-
ram - se.
E não ficou alli o sussurro do morto vivo .
A hypothese que aventada podia desvanecer- se
ante a realidade opposta, correu de bocca em
bocca, e fóra da presença de Gonçalo passou
a ser um caso circumstanciado , documentado
com uma serie crescente de provas que a ima-
ginação em pura fé multiplicava .
Para encurtar o conto, o caso do morto-
vivo tornou- se em pouco tempo mais impressio-
nante que o medo da peste. Gonçalo, evitado
por todos, não comprehendia nada senão o
seu isolamento. Não havia como explical - o , nem
a sua mesma turvação mental consentia em
falar sobre o assunto e esclarecel -o . Entre elle
e os outros era reciproco o aborrecimento da
presença.
O instincto , mais do que a reflexão ,
deu - lhe o expediente de voltar para a pro-
vincia . Apenas o declarou, foi como se os outros
o tivessem suggerido e aconselhado . Acudiu-
lhe a tia com os recursos e Gonçalo na ma-
nhã seguinte partia.
Valeu uma ressurreição o desafogo daquel-
le mal- estar de deserto moral. Não lhe doia
particularmente a ingratidão e o abandono da
namorada , porque não fazia contraste com o
sentimento de todos : já Gonçalo trazia embo-
tada a sensibilidade. Na cidade provinciana
respirou a confiança do aconchego domestico
e recomeçou a vida. O mesmo instincto que
The inspirara a idéa de voltar, preservava- o de
alludir aos aggravos soffridos na Côrte. O fa-
cto capital do seu escape da morte fôra co-
nhecido e admirado ao tempo em que chegara
MORTO VIVO 123
a noticia : mas não havia o effeito das cir-
cumstancias para impressionar no momento .
Dahi o seu esquecimento . Foi o proprio Gon-
çalo que tempos depois fez a primeira referen-
cia em conversa com um amigo . A lembrança
veiu , trazida pelo assunto , que era de morte.
Contava o amigo casos de temer , e tremia lhe
a palavra. Gonçalo narrou então o seu ; o con-
forto de amizade abria- lhe a expansão , tanto
tempo contida ; ou por ventura foi o gosto mo-
mentaneo de impressionar o interlocutor e dar
relevo á conversa com a experiencia real da
pessoa. Em verdade o effeito foi grande , e
maior do que elle esperava, pois o amigo que
o estivera escutando, já não lhe ouvia as ul-
timas palavras , todo attento no exame par-
ticular daquella figura, familiar até alli , mas
agora extranha , tocada de um ar vaporoso e
distante . Despediu- se mais depressa do que
convinha ao disfarce do seu espanto : e no dia
seguinte não acudiu ao encontro aprasado e
quotidiano . Esquivava - se e não poude sobre
si que não fosse communicando a voz inte-
•
rior da suspeita funerea .
A cidade era pequena, e a voz murmurada
correu- a toda e rapida. Gonçalo sentiu de novo
o deserto , em que o unico refugio era a sua
propria casa ; mas ahi mesmo chegava a silen-
ciosa expressão de esquivança dos habitua-
dos que já não vinham ou dos vizinhos que
se distanciavam. Comprehendeu que incutia me--
do : e assustava- se de causal- o . Lazaro moral,
judeu errante, mas sem o consolo da caridade
que vence a repugnancia physica, ou da cu-
riosidade de infringir o preceito.
Era um condemnado sem crime nem sen-
124 CONTOS
tença e a uma pena sem appellação nem re-
medio . Trabalhava- lhe o espirito isolado no
excogitar a sua condição : que tinha elle feito ?
que havia nelle , menos ou mais que nos outros ?
E estudava- se, esquadrinhava o passado e o
presente . Toda a mudança procedia da sua
morte apparente . Teria realmente morrido ?
mas os mortos ... Quiz sorrir, dominando of
que parecia credulidade infantil de ignoran-
tes. Era possivel que suppuzessem, que acredi-
tassem ? Ante a sua figura, animada de movi-
mento e de palavra ? Estaria sonhando ? Os
espiritos ... Contavam que os espiritos volta-
vam á terra ; mas eram incorporeos , invisi-
veis .
Apalpava- se, mirava- se, movia-se, fazia re-
soar os passos , para a comprovação de que
elle era em verdade um corpo . Um pequeno
espelho deu-lhe a imagem do rosto , e elle en-
tão recuou ante o aspecto e a expressão das
feições que não reconhecia. Aquelle olhar,
aquellas orbitas fundas, aquelle nariz afilado
e as faces cavadas : em tudo não viu senão
a caveira, resaltada sɔb a chamma das pupillas .
Santo Deus ! Seria possivel ? Entre elle pro-
prio , elle só , e os outros todos, quem estaria
em erro ? Só por maldade ; mas nada havia feito
para soffrer a maldade teimosa de todos , até
dos seus amigos e parentes . Os outros é que
o viam e ouviam, os outros é que podiam jul-
gar se elle era um morto ou vivo . Apalpava- se,
movia-se, pisava com impressão , escutando o
som do piso. O espirito girava- lhe num cir-
culo, em que um hemispherio era realidade e o
outro a allucinação . Não cessava o giro ; e
precipitava - se até o torvelinho . A principio
MORTO VIVO 125
deram-lhe treguas algumas horas de somno ;
mas 0 mesmo somno foi a continuação da
obcecação . O cerebro, acceso no meio da tre-
va, interrogava, ao passo que as mãos auto-
maticamente percorriam o corpo , apalpando ,
auscultando os tendões, esmaecidos sob a pelle
flacida.
Occorreu- lhe uma prova que seria deci-
siva se elle estava morto , não carecia de
alimento. A febre da resolução não lhe dei-
xou sentir nos dois primeiros dias a fome e
a sede : e foi com espanto que elle ouviu che-
garem- lhe ao pé da cama os parentes velhos
com quem vivia, para trazerem- lhe comida e
insistirem com elle que comesse. Recusava por
acenos. Perguntaram - lhe se estava doente , e
se queria que viesse o doutor. Balançava a
cabeça.
-
Mas isso não pode continuar assim,
gente -- concluiu a tia, condoida. Sem co-
mer não se vive : você quer então se matar
mesmo, Gonçalo ?
Gonçalo arregalou muito os olhos para ella,
e com um vislumbre de esperança no olhar e
na voz, interrogou, dubitativo e surpreso :
Pois eu não estou morto ? E soergueu
na cama o tronco macilento, como assomado
pelo surto da esperança .
Expressão do olhar, timbre da voz, o mo-
vimento do corpo , o que quer que foi , a velha
deixou cahirdas mãos o prato, e foi recuando ,
recuando, espavorida , a benzer- se. Gonçalo viu- a
sahir : as mãos apoiadas sobre a cama agarra-
ram a um tempo o lençol, e rapidas, convulsi-
vas, rasgaram o panno e apparelharam uma cor-
126 CONTOS
da, presa uma ponta á verga da cabeceira e
a outra enlaçada ao pescoço .
Arremetteu o corpo para fóra da cama :
e, depois de um ronco e um estrebuchão , aquie-
tou para sempre. Foi a prova tardia de que não
estava morto : mas ainda assim não conven-
ceu os vivos que ficaram . A lembrança de
Gonçalo perdurou como a de um morto - vivo .
E nisso está o interesse, se acasc o tem , desta
narrativa. Nem peripecias, nem drama , senão
o sentido de que a morte é mais natural e
mais real que a mesma vida.
SURDINA DA MORTE
IGA- LHE que eu perdoei ... que eu
-D nunca deixei de gostar d'ella ...
A voz do enfermo vinha arquejada
e sumida como se elle falasse em segredo . Pa-
recia estar sonhando . As palpebras abaixadas
realçavam com a sua saliencia a excavação
das orbitas. No aspecto do rosto chupado
pouco teria de mudar a ultima demão da mor-
te. Signal de vida era só o movimento mal com-
passado dos lençóes sobre o corpo desfeito ;
e agora aquella voz que trazia o timbre cavo
de som subterraneo .
A pessoa que velava o enfermo, desper-
tando de um cochilo, tinha ido á cabeceira
da cama, e escutava e espiava com o castiçal
erguido acima dos olhos . Era noite alta. De-
teve- se a observal - o ; e como o enfermo se ca-
lasse, e não se movesse, cuidou que elle so-
nhava. E teve curiosidade de escutar a fala
do sonho . Depoz a vela sobre a mesa, sen-
tou-se e ficou attento . Minutos depois o en-
fermo abriu as palpebras. Os olhos tinham
128 CONTOS
um lume de aço e alargavam -se nas orbitas,
fitados com espanto sobre o enfermeiro .
---
Quem é ? perguntou a mesma voz su-
mida. Quem é ?
Sou eu, sou Antonio . Não me está ven-
do, Ignacio ? Como se sente ? Vou dar - lhe o
remedio , já são horas .
-Não: para que remedio ? Não está mais
ninguem ?
Não ; estou sozinho . Que é que v. quer ?
Fale.
Ignacio não falou. Mas os olhos prega-
dos na face do outro queriam dizer tudo ; a
sua fixidez incommodava Antonio, que se er-
gueu a pretexto de ir buscar o remedio ou uma
chicara de leite .
Nao ! teimou o doente . Nem remedio,
nem leite .
E depois de uma pausa, com aquelles mes-
mos olhos sobre elle :
Queria dizer uma cousa, a ultima ...
Mais ninguem ?
Ninguem ; só eu . Fale a seu amigo .
Ignacio balançou a cabeça negativamen-
te ; mas pouco depois , resoluto, falou :
Vou morrer ... Não , não é engano ...
Eu sinto a morte , e já era esperada por todos .
Pensei que ao menos agora eu pudesse vel - a....
Eu não lhe fiz mal ... queria vel- a e dizer- lhe
adeus ... queria dizer- lhe ...
Quer que eu lhe passe um telegramma ?
Não , não . É inutil ; chegaria tarde ... se
viesse ; não viria.
Vinha com certeza, mas fale , e rarei
o que v. mandar.
SURDINA DA MORTE 129
- Preferia
que fosse outra pessoa ... ou-
tra pessoa. Porque é que v. me acompanha ?
Não me está reconhecendo, Ignacio ?
Pois não vê que sou Antonio , seu amigo ?
Não respondeu logo ; mas passados alguns
minutos :
—
V. foi meu amigo ... eu era seu ami-
go . Mas V. me trahiu. É á toa negar ... Mi-
nha morte não lhe dá pena, nem a ella ...
nem a mim ... Eu queria falar a outra pessoa,
mas assim é melhor ; falo a V. mesmo . Perto
da morte, não ha rancor. Perdôo . Não sei
de quem foi a culpa ; mas eu não merecia
ser trahido. Queria tanto bem a ella ; era tão
seu amigo, Antonio !
Você está delirando, Ignacio. Tudo isso.
é loucura da febre. Vae passar, socegue. Fui
e continuo a ser seu amigo.
Ignacio moveu- se como poude para soer-
guer o busto ; o esforço foi vão , e a cabeça
descahiu-lhe outra vez no travesseiro . Ficou
arquejando. Afinal resignado á quasi immo-
bilidade, que não deixava dar ás palavras a
vehemencia dos gestos, continuou :
É inutil ... não zombe do meu estado.
Vou morrer daqui a pouco . Não estou deliran-
do ; você bem sabe. Já disse que perdôo . Á
beira da morte, depois de tanto soffrimento,
ha uma serenidade de espirito que é superior
á inimizade . Eu soube de tudo , já tarde para
vingar- me. Antes, nada tinha visto, confiado
em você e nella. Tinha a V. como um irmão.
Não dei credito a uma carta anonyma, que
recebi já doente ; mas depois da carta, invo-
luntariamente comecei a observar, a compa-
rar; e algumas palavras, alguns olhares, al-
9
130 CONTOS
guns gestos esclareceram o que a minha boa
fé não tinha visto. Depois nem foi preciso mais
espreitar. Aqui neste quarto , quando eu já es-
tava desenganado , uma noite, vocês pensavam
que eu dormia ... pensavam que eu nãɔ po-
dia ver ... e sem nenhum respeito ao meu
somno, sem pena da minha molestia ... vo-
cês se beijaram. Eu ouvi, eu vi . Faziam quarto
ao tuberculoso , amando - se. Nunca tive tama-
nho desgosto da vida e ao mesmo tempo tanta
vontade de viver ... para vingar-me ! O pen-
samento de vingança parecia dar- me força no-
va. Fingi, esperando . Foi então que pedi , que
mandei que ella voltasse para o Rio a pre-
texto de que era muita despesa ; o que eu
não queria era vel- a mais junto de mim , a
mentir- me, a mostrar que me velava e a tra-
hir-me ... Que esforço foi o meu para conti-
nuar a ver você, quando você vinha visitar-
me! De cada vez eu fazia o proposito de re-
pellir você, de intimal- o a não voltar aqui.
A molestia é que não deixou talvez expri-
mir o meu odio ... e você não comprehendia
o meu mutismo ... Eu não contava com a sua
presença esta ultima noite. Porque , em vez de
estar lá com ella , veiu fazer quarto ao mori-
bundo trahido ? Talvez para apressar a minha
morte ...
Tudo é possivel ... Vê, pouco tem que aju-
dar ... A morte vem chegando ... Eu soffro
muito de não ver mais as minhas filhinhas ...
minhas ? Chego a crer que não são minhas
filhas. Mas eu queria- lhes tanto e soffro com a
idéa de que ellas vão ficar sem mim para
amal- as e educal- as . Minhas filhinhas ... or-
phans. Ella deve casar. Casem- se , mas não ...
SURDINA DA MORTE 131
sim , será melhor que se casem, para que mi-
nhas filhas não vejam o crime della, não ve-
nham a saber a trahição ... Foi bom que você
assistisse aos meus ultimos instantes ... para
ouvir o que eu lhe disse ... o que você me
fez , o que ella me fez ... mas que eu perdĵo ,
que eu perdôo, que sempre, sempre quiz bem
a ella ... e que não me esqueça , e olhe pelas
minhas, nossas filhas ...
A voz custava- lhe muito ; era arrancada
com ancia, nos intervallos da dyspnéa ; e An-
tonio, que a principio o interrompia, contes-
tando , desviava os olhos e ouvia de cabeça
baixa sobre as mãos . E estava tão concentra-
do no pensamento interior que sem o saber já
não escutava a voz do enfermo , e não adver-
tiu que a voz já se calara. Quando ergueu a
cabeça, é que notou o silencio e a immobili-
dade do outro. Tinha os olhos entreabertos ; a
bocca escancarada e torcida ; as mãos encurva-
das como garras sobre o meio do peito . Já
não deixava duvida o semblante da morte.
II
Ao contrario do que Ignacio suppuzera,
ella acudiu ao telegramma de Antonio ; mas
chegou apenas a tempo de acompanhar o ca-
daver de volta da estação de Mendes para a
casa da cidade, de onde sahiu o enterro . An-
tonio dirigiu todos os aprestos funebres, e a
impressão dos que assistiam ao sahimento não
foi diversa da que dão as scenas ultimas dos
132 CONTOS
mortos pranteados. Houve o chôro espantado
das filhas pequeninas ; e sem simulação nem
esforço a viuva chorou , de novo , abundante-
mente, ao fechar-se o esquife. Antonio não
lhe tinha transmittido ainda as ultimas pala-
vras do morto ; e não pensava em dizer-lh'as ,
primeiro por lhe faltar occasião, em seguida
por embaraço de consciencia. Fôra o mesmo
que accusar - se a si mesmo em voz alta . A
culpa era de ambos ; mas a acção era menos
dura e mais facil que a analyse da maldade.
Não lhe custara muito commetter a infi-
delidade contra o amigo, ou ella fôra tão in-
distincta na sua progressão desde o primeiro
passo que a meio della Antonio não havia
cogitado da qualidade dos pequenos actos que
a compunham. Pensamento e sentimento ab-
sorviam- se-lhe em cada olhar, depois em cada
beijo furtivo ; e a presença ou a lembrança
do amigo assumira então o caracter reflexo
de uma contrariedade a evitar. Se os embara-
çava , o marido presente era um intruso ; au-
sente, não occupava logar onde toda a atten-
ção delles estava no goso vivaz das occasiões
fugidias. Referiam-se a Ignacio alguma vez
elle e a amante, mas era em palavras bre-
ves, não raro com intento affectuoso , se ahi
o affecto não encontrava a paixão que unia
os dois. Em face porém um do outro, não ha-
via momento para o cuidado reciproco . Ana-
lyse reciproca , se a faziam , era com a. idéa
egoistica, a qual excluia a conclusão isenta.
Exame de consciencia só era possivel em es-
cassos dias de fadiga dos sentidos, mas esse
exame não se revela em voz , senão em pala-
vras silenciosas , que ficavam sem effeito no
SURDINA DA MORTE 133
seu silencio, e cahiam no esquecimento imme-
diato.
Aquellas palavras do moribundo porém,
na sua articulação pausada , pareceram - lhe dar
voz ás outras interiores ouvidas só por elle ;
e as do moribundo só elle as ouvira. Se hou-
vera terceiro ouvinte , a precisão de defesa
quebraria a taes palavras a intensidade do
sentido e do tom ; e não teriam tido echo na
consciencia delle. Mas ouvira- as, sem respon-
der, por desnecessario ; e uma a uma, cada
palavra soou - lhe no cerebro , e vibrou- lhe a
sensibilidade e gravou - se como imagem viva
na memoria. E justamente porque não eram
de vingança, nem já de desaffecto , tinham
maior prestigio as primeiras ouvidas e ulti-
mas repetidas .
Diga- lhe que eu perdoci ... diga- lhe que
eu nunca deixei de gostar della ...
Não as tinha transmittido , mas ante o
chôro da viuva junto ao esquife , teve impetos
de dizer- lh'as alli mesmo para que todos as
ouvissem. Esqueceu - lhe o sentimento de dó com
que as tinha recebido , esqueceu que Ignacio
era defunto, e pensou que essas lagrimas della
eram um roubo do que tinha como seu. Tudo po-
rém foi pensamento rapido , e elle concluiu tam-
bem rapido que as lagrimas denunciavam a for-
ça de simulação da adultera .
Nos dias seguintes não houve opportu
nidade de pensarem no morto, justamente por-
que mais se occupavam então das cousas rela-
tivas a elle . As visitas de pezames, a missa,
os arranjos do luto , os papeis do montepio , a
mudança de casa, eram bastantes em si , cɔmo
131 CONTOS
assunto , para atarefar o espirito , sem envol-
ver o coração.
Quando se normalizou a vida na casa nova ,
sim, era a occasião para o sentimento reto-
mar seu curso . Ignacio deixara meios , não
muitos, mas sufficientes para a viuva mon-
tar uma casa modesta , inferior é certo á que
tinha em vida delle . A situação moral de An-
tonio creava o tacito dever de supprir o que
faltasse e a elle e a ella occorria, sem se
dizerem , a idéa de que o casamento concertaria
o mais , e havia de ser a reparação da falta.
Era, mais que esperança , um proposito
feito separadamente por cada um delles .
Antonio visitava - a com a frequencia an-
terior ao luto , mas não a encontrava só nos
primeiros tempos, porque sempre havia pa-
rentes a acompanhal- a. Eram visitas aquellas
forçadamente curtas ; elle acautelava - se em sa-
hir primeiro que os outros para não incutir sus-
peita . A probabilidade do casamento ensinava-
The agora maior zelo pela reputação da que
havia de ser sua mulher. Ella parecia menos
cuidosa disso , ou indifferente, e a cada pas-
so Antonio receiava uma indiscreção de gesto
ou de olhar e mesmo de alegria.
Mas começou a diminuir a frequencia dos
parentes ; e uma noite emfim elle achou- a só.
As filhas, meninas de dez e oito annos , vieram
logo acaricial - o ; gostavam muito delle , e alheias
áquella união secreta e a qualquer desconfian-
ça, tratavam - n'o como o grande amigo , que
Íhes fazia as vontades e as apadrinhava e
lhes dava presentes . Nessa noite não queriam
ir para a cama e das admoestações maternas
appellavam para a intervenção de Antonio.
SURDINA DA MORTE 135
Elle porém menos interessado nos carinhos
dellas que em ficar só com Alzira, falou - lhes
com fricza e quasi autoridade . Surprehende-
ram - se as duas meninas , indecisas um momen-
to, e sahiram olhando alternadamente , e pela
primeira vez desconfiadas, para a mãe e para
o amigo.
Alzira foi pouco depois verificar se as
filhas estavam deitadas. Apagou a luz do quar-
to, cerrou a porta, e mal retornou á sala ,
guiou para Antonio, agarrou - lhe a cabeça com
as duas mãos e beijou- lhe soffregadamente a
bocca. Foi uma explosão do desejo contido
e contrariado durante dois mezes. Tão subito ,
que n'elle a impressão immediata foi de atur-
dimento, depois de espanto , de fadiga e de
pena. Reparou na saia de luto, que ella re-
batia e alizava, e a côr negra do vestido pa
receu- lhe irrisoria. Reflectiu na farça que
re-
presentavam, e repugnou - lhe o papel de co-
mediante, ao fim , quem sabe ? enganado como
o outro . E a idéa do outro surgiu com uma
intensidade que não tinha em vida, quando
podia ser materialmente obstaculo á sua acção
desleal.
Recordou a ultima noite, quando vigiava
o enfermo e lhe ouviu aquellas palavras :« - Di-
ga- lhe que eu perdoei , diga-lhe que nunca eu
deixei de gostar della ... >>
Depois , a confidencia do moribundo , uma
accusação segura, realçada pela magua e o
perdão.
Alzira olhava para Antonio, esperando que
elle explicasse a sua attitude absorta, e de
odo extranhavel. E como elle continuasse ca-
136 CONTOS
lado e alheio , perguntou directamente o que
era .
Achou Antonio difficuldade em dizer logo
o que sentia ; era confusa a sensação ; mas re-
sumiu-a em uma palavra :
Um pouco de remorso ... Ha só dois
mezes que elle morreu .
Alzira pareceu tocada do mesmo sentimen-
to, mas corrigiu o tem do semblante, com um
riso de canto de bocca.
-
Remorso, agora que Ignacio está morto !
E sorrindo com intenção :
--
Você que o trahia em vida !
A palavra feriu Antonio ; e elle quasi ex-
clamou, como um protesto :
Eu ? ... Nós , quando muito ; você , sim.
Está esquecida ; lembre - se como foi : veja quem
teve a maior parte da culpa.
Travava- se assim inesperadamente o ajus-
te de contas da sociedade de peccadores ; meia
hora antes fôra impossivel e incrivel.
Alzira calou- se, por incapacidade de re-
plicar convenientemente. A consciencia con-
firmava a palavra do outro ; mas por isso mes-
mo que era verdade, essa palavra era mais
offensiva . Nunca Antonio assumira esse pa-
pel commodo e superior de requestado ; nos
primeiros tempos, se o fizesse claramente , só
aguçaria o sentimento novo della ; agora, po-
rém a recordação equivalia a diminuir em con-
descendencia a natureza da sua reciprocidade.
Era mais que doloroso, era amesquinhador para
amante. Subiu -lhe então do intimo una irri-
tação , não de odio , mas de desapreço, de des-
peito, de arrependimento de se haver dado a
quem não sabia prezar o valor dessa posse.
SURD NA DA MORTE 137
Mastigou a sua colera, longamente , e disse
por fim nestas palavras o que exprimiria em
mil:
É verdade. Você tem razão. Fui eu que
errei. Tem toda a razão.
O effeito foi o que ella esperava. Antonio
cahiu em si e quiz emendar o tom que déra
á expansão primeira.
Você desvirtuou o que eu ia dizer - lhe .
Falei em remorso , porque me lembrei das
palavras de Ignacio, pouco antes de morrer.
Nunca as disse a você. Era um recado que
elle lhe mandava, sem saber a principio que
era eu que estava no quarto .
E referiu a scena tal e qual, inadvertido
de si e della, repetindo com exacção toda a
confidencia do moribundo , como lhe resurgia
da memoria , onde parecia haver se gravado
palavra a palavra. Para justificar o seu senti-
mento de pouco antes, esquecia as precauções
que não lhe escapariam aliás ao seu instincto
de amante.
Alzira escutava- o com crescente curiosi-
dade ; a principio com os olhos fitos nelle e
na sua bocca ; depois curvada, cotovellos so-
bre os joelhos , o rosto sobre as mãos , olhando
para um ponto no ar, e ultimamente numa atti-
tude de concentração, abaixados os olhos para
o assoalho, fixadamente.
Antonio repetiu ainda, como um recurso
de defesa propria, o recado do moribundo :
Diga lhe que eu perdoei , diga-lhe que eu
nunca deixei de gostar della.
Mas tomou- se de surpresa, vendo o mo-
vimento nervoso que agitava a um tempo a
cabeça e os pés da amante. Notou que ella
138 CONTOS
chorava ; as lagrimas escorriam - lhe dos olhos ,
e pouco depois sacudiu- a toda o pranto que
ella quizera conter. Chorava abundantemente.
Antonio entendeu então que fôra incauto
e excessivo contra si mesmo, Occorreu-lhe o
pensamento do dia do enterro, quando a vira
soluçar junto ao cadaver. Alli podia ter sido ar-
tificio de magua, mera representação de cho-
ro , como é o das carpideiras. Agora porémn
não havia espectadores para essas lagrimas .
Pungiu-o uma ponta de despeito , que clle
achou prudente dissimular, e disse , emendan-
do - se :
Ignacio delirava, quando me falou as-
sim. Não ha razão para você chorar. Olhe que
V. foi agora além do sentimento que me cen-
surou ha pouco, e de que até zombou , Alzira.
Ella sem attentar no que ouvia , pediu -lhe
que repetisse as palavras de Ignacio.
- Para que
? não tem a importancia que
V. lhes dá , foi um delirio .
Por favor, Antonio. Eu lhe peço ...
E o amante teve que repetir , forçado pe-
las interrogações que requeriam minucias , to-
da a confidencia do moribundo. A viuva ti-
nha enxugado o rosto, mas a expressão do
semblante dizia mais do que o mesmo pranto.
Antonio observou - lhe a extranheza de im-
pressão tamanha , e perguntou , por despique,
se era remorso .
- Pensei que elle ignorava tudo , disse
ella, proseguindo uma reflexão silenciosa . Nun-
ca suppuz que elle soubesse. Como deve ter sof-
frido ! Sim, fui eu a culpada ; elle não merecia,
nunca me deu motivo de ser má para elle .
Mas isto está passado , Alzira. Acabou-
SURDINA DA MORTE 139
se , não pense mais nisso . Foi uma impressão
de pena ou de remorso . Amanhã V. não se
lembra mais . O remorso , se é o que V. sen-
tiu agora, só provem da possibilidade de uma
ameaça, de um perigo. Ignacio morreu. Quem
lhe pedirá contas ?
Ella respondeu simplesmente :
A consciencia, Antonio . Não sei se você
me fez mal ou bem contando- me ; não , fez
bem. Tinha a obrigação de dizer- me as ultimas
palavras delle ; e agora eu não posso mais
esquecel- as, emquanto viver, estas palavras :
<< diga-lhe que eu perdoei, diga - lhe que eu nun-
ca deixei de gostar della » .
Antonio começava a irritar- se com ella
e comsigo, accusando - se a si mesmo de seu
desaso, e a ella de impostura. Achou melhor
rematar a comedia ; e sem o querer, disse com
desdem :
Amanhã a sua consciencia será outra,
ou estará mais leve . Adeus .
Nunca foi tão frio nem tão convencional
o beijo que se deram. O della foi quasi auto-
matico ; dentro do seu cerebro resɔavam como
um estribilho as palavras : « diga- lhe que per-
doei , diga-lhe que eu nunca deixei de gostar
della ».
E fosse consciencia tardia, fosse o que
fosse o que actuou no sentimento della e afi-
nal no delle ; aquellas palavras, mais prestigio-
sas do que a presença do marido enganado,
mais impressionantes do que uma formal amea-
ça, alteraram os sentimentos dos dois aman-
tes , num alternado contraste, que alguns me.
zes depois era uniforme indifferença recipro-
ca. E a idéa do casamento nem chegou a ser
140 CONTOS
formulada. Os dois afastaram- se e esquece-
ram -se.
Um credulo supersticioso diria daquellas
taes palavras que ellas tinham sido na reali-
dade a surdina da morte.
IMPRESSÕES
(PAGINAS DE THERESOPOLIS)
PASSARO CANTOR
A um passaro cantor que o povo do cam-
H po nomeia differentemente, segundo o
seu logar de origem ou a primeira sug-
gestão do ouvido. Tempo - quente chamam- lhe
nestas bandas, onde a voz delle coincide, como
a das cigarras, com os calores da primavera.
Lá pel norte o nome que lhe dão é o de
peito-ferido ; e tal na verdade parece a arti-
culação do seu canto a quem o escuta em
disposição de melancholia.
A voz é de timbre medio , simples, toada
em duas notas, num compasso rudimentar de
tres tempos, que se repete sem variedade, com-
pondo o rythmo incisivo , mas velado, de uma
advertencia ou de uma queixa. Ouve - se ho-
ras seguidas, e tão egual que assume a mono-
tonia de um som automatico distante e em sur-
dina, como o ranger de uma serra ou o cooir
das argolas de uma rede nos ganchos. Ouve-
se ou já não se ouve, pois que a voz se
ensurdece na sua mesma monotonia.
Eu, depois de ouvil- a e escutal - a com a cu-
144 IMPRESSOES
riosidade de recemvindo a este canto, ainda
não despido , de montanha, achei que essa voz
insistente dava materia de interrogação e com-
mentario.
Tempo- quente ou peito -ferido, voz de avi-
so ou de queixa, para quem canta ? E quem já
o escuta ? Não me parece que outra voz lhe
responda, pois a resposta, ainda a mais disfar-
çada, traz a sua tonalidade expressiva ; e este
canto tem sempre quebro de um alongado
appello, monotonamente esperançado . Será sim-
ples queixa que vozeia ? Quem já o ouve ?
Ouço-o eu, e occasionalmente me interes-
so em escutal- o e entendel- o ; ouvem- no acaso
as arvores e as outras aves, indifferentes, por-
que a voz por estranha não lhes repercute sen-
tido ou por monotona amorteccu-ines a per-
cepção.
Terá tempo - quente ou peito -ferido discer-
nimento do seu auditorio ? A insistencia em
cantar nas suas mesmas duas notas tantas
horas seguidas está inculcando a presumpção
e já certeza de que tem auditorio ; e o audi-
torio , circumscripto ao alcance da sua voz,
será para elle tanto uma moita como o uni-
verso. Se a orbita do seu olhar admittir a idéa
do sol, é possivel que em algum momento
The pareça que o sol se levanta para escutal - o ,
e as nuvens se agitam pelo que lhe ouvem a
elle . Será essa a sua vaidade , se elle puder
tel- a; mas a consonancia da supposição e da
realidade será incerta ou nenhuma.
Não o escutam os que elle imagina que
o ouvem ; e ouvem- no e interpretam-no os que
não existem para os sentidos delle. Tempo-
quente, peito -ferido são nomes que elle não
PASSARO CANTOR 145
sabe, nem entenderia ; e o homem que lh'os
deu , não distinguiu determinadamente a uni-
dade naquella familia, nem mesmo qualificou
outra cousa que o seu proprio sentimento de
occasião ; e os nomes se vão repetindo ...
Este commentario tinha - o eu feito como
uma variação do espirito ocioso que saltean-
do a pagina da natureza reflectia no homem,
na sua gloria, na sua vaidade , na sua espe-
rança de ficar individuo entre a confusão to-
tal da especie e do mundo.
Foi quando me chegou a noticia da morte
de Rostand ; a minha scisma entristeceu e,
pensando na voz que desapparecia, associei ,
apezar da diversidade das notas, aquellas inter-
rogações : Tempo - quente, peito -ferido , voz de
aviso ou de queixume ? Rostand, Musardises,
Cyrano, Aiglon, Chantecler ...
Que é gloria ? perguntaria por desintelli-
gencia o cantor obscuro da matta. Que é a
gloria ? terá pensado muita vez desilludido esse
glorioso passaro divino .
10
BICHOS DA NOITE
CODE- SE dizer, com absoluta generaliza-
PODE ção, que o homem tem sêde e fome da
verdade, e , se a palavra exprimisse a
idéa do necessario irresistivel, eu diria que tem
somno da verdade. Todos os seus movimen-
tos , individuaes e collectivos, são gestos de
aspiração para a luz : surtos, braçadas, ras-
tejamentos ... Não importa a diversidade da
acção, não importa a idealização do que ella
seja, a verdade . O desconhecimento e o de-
sejo fazem justamente o desvairado das con-
cepções ; e a relatividade do espirito é que
acondiciona a direcção dos caminhos que o
homem vae seguindo para alcançar a sua ra-
zão, a sua explicação , a sua verdade.
A propria fantasia é como uma estrada de
juncção, feita no ar, para transpor o cami-
nho que logo no seu começo descontinúa : ima-
gina o espirito o apoio do outro extremo , ar-
chitecta a projecção , combina o seu material,
dá - lhe elasticidade, conjuga - o em dependencia,
e arremette - o ; e das palavras que se entre-
148 IMPRESSOES
meiam e se auxiliam , surge sobre o espaço .
como as teias de aranha, suspensa , a ponte
dos mythos entre a realidade palpavel e o so-
nho, que é a realidade aspirada .
A religião faz como a fantasia, com a diffe-
rença que o seu material é só apparelhado com
os aculeos do soffrimento e os fios da espe-
rança. Mais pretenciosa , a filosofia desde-
nha os caminhos do sonho e da sensibilidade ,
ou desmancha - os para compor o seu proprio ;
mas ao seu atrevimento não responde a facili-
dade da imaginação , e ao cabo toda a scien-
cia, argucia e destreza não fazem senão aquel-
las teias de aranha no espaço , sem a leveza
e a harmonia do entrelaçamento das outras,
ern desconcerto de linhas, e com pouco dese-
quilibradas, e rôtas e caidas, como ponte que
arruiu. Outros vêm e concertam- n'as, mas de
novo a ponte se fende ... Ha quantos secu-
los ? E o homem não desanima e prosegue,
compondo e refazendo os seus mythos. a sua
religião , as suas filosofias, na aspiração e in-
dagação da sua verdade .
Mas, fóra da logica, a qual é como um
circo onde as palavras se individualizam e
fantasiam em figuras de idéas e fazem mos-
tra de acrobacia , malabarismo e luta corpo-
ral, onde está a verdade ? Tantos seculos de
busca incessante, feita e refeita, innovada e
renovada, não approximaram o homem, no seu
caminho, um palmo além do inicio em que
o primeiro passo foi a circulação do olhar
maravilhado pela natureza .
Não será talvez a verdade inaccessivel , só
por ser ambiente e diffusa ? Não será para c
BICHOS DA NOITE 149
homem, como a luz do sol para os insectos no-
cturnos ?
É no que eu pensava uma destas noites,
olhando o espectaculo que me offerece a va-
randa deanteira de casa, nas noites sem lua.
Abre- se a lampada electrica e a luz imper-
tinente espadana, isolando subitamente em cla-
rão, como uma ilha, um trecho da chacara.
A escuridão em roda fica mais densa. Com
pouco vêm chegando os insectos, mariposas
e bezouros. Parece que despertaram estremu-
nhados e a luz os espanta . Investem o vôo
contra a lampada, giram em torno do vidro ,
tocam-n'o de novo, e giram.
As mariposas têm a tenuidade silenciosa
das suas azas ; outros insectos são pequeninos ,
minusculos como grãos de poeira em roda-
moinho de ar, ou gottas de chuva espalhadas
ainda no espaço pela aragem. Os bezouros não
zumbem como fazem, ao sol , sugando flor e
fluctuando ; agora arremettem pesados e ne-
gros, com um sonido rojado de dardo , e resal-
tam da lampada como por effeito de reper-
cussão .
O giro é uma rotação de defesa ; volvem ,
circumvolvem , num movimento que cansa os
meus olhos antes que esfalfe as frageis azas
agitadas em frenesi.
Durante o dia o vôo desses bichinhos era
fluente e espraiado : a luz branca e circum-
fusa não os impressionava distinctamente, e
elles não tinham a sensação particular de um
sentido . A claridade está nas cousas mesmas ,
traduzida em cada côr ; e o sol que a produz,
fica fóra do alcance dos olhos pequeninos. Mer-
gulhados na luz do dia, elles respiram-n'a e
150 IMPRESSÕES
vivem - n'a, sem a sentir, como o homem res-
pira o ar normalmente sem ter a percepção
do ar.
Mas neste fóco artificial a luz se parti-
culariza e apparece como accessivel na sua
origem aos sentidos dos voadores nocturnos ;
elles accorrem estonteados para fital- a e at-
tingil- a : a transparencia do crystal dá a illu-
são do contacto ; tocam- n'o com as antenas
e as azas , giram , regiram, volvem, revolvem ,
circumvolvem, em ancia, attonitos, tontos ; e
quando a fadiga supera o afan curioso , elles
tombam no chão, as mariposas ainda com a
trepidação assustada das azas , os bezouros, re-
supinos , a debaterem as articulas e distenden-
do as cartilagens escusas, em esforço de reha-
bilitarem a postura do corpo.
Entretanto , desde que á luz aberta come-
çou aquelle voejar da sombra para o clarão,
vinha galgando os degráos da varanda, sem
ruido, uma intanha, habituada desta occasião
propicia. Toma logar e espera ; immovel, pa-
rece adormecida , ou inanimada como um ca-
lháo tosco ; os olhos proeminem - lhe quietos e
dilatados ; e só se lhe nota a vida no papo,
que alteia e abaixa, digerindo . Subito dá um
pincho elastico , com que desencrusa e dis-
tende os membros e projecta o bojo : e o be-
Zouro que se debatia, a mariposa palpitante,
desapparecem no sorvo da guela rasgada e
desmedida. E de novo se aquieta a intanha,
emquanto os insectos, mariposas e bezouros,
giram e aturdem- se, em torno da luz artifi-
cial e impertinente.
OS ANNEIS DAS TRINCHEIRAS
AS trincheiras francezas, durante as es-
tiadas de fuzilaria e canhoneio dessa
N
longuissima guerra, engenharam alguns
soldados um entretenimento , feito da propria
materia da morte, mas alheio a toda idéa
de combate. Das granadas inimigas explodi-
das aproveitavam a parte de metal que com-
punha o extremo afusado e fabricavam anneis .
Deram ao tempo as revistas as fotografias des-
ses ourives improvisados e da obra singela
e curiosa.
Não me ficou só nos olhos a imagem ; tra-
balhei- a interiormente, e descortinei a scena
em seu pittoresco , seu ambiente e seu sentido
de esthetica humana .
Naquelles dias negros era o principal cui-
dado não morrer, e matar ; as ciladas multi-
plicavam -se invisiveis ; estava aguçado e em
mira o olho dos fuzis e das metralhadoras ;
e os soldados, feitos toupeiras, moravam em
subterraneos ou transitavam e assistiam nos
estreitos conductos de communicação , vigian-
152 IMPRESSÕES
do ou alvejando o inimigo . Atolavam- se os pés
em lama ; ás vezes a agua subia aos joelhos ;
as vestes eram grotesca mescla de trapos, pan-
no e papel, acamados e amarrados para defesa
do frio cortante. A morte acompanhava - os, ora
multipla com o baque simultaneo de grupos
abatidos numa explosão , ora pontuada e succes-
siva como uma reticencia de metralhada ; se
não era a molestia que fazia gemer e descahir,
sob as fórmas velhas de doença e outras no-
vas originadas nas trincheiras e no theôr aner-
mal da vida.
Nenhum soldado tinha segurança contra
a morte, que era uma ameaça de todos os
lados , de cima, de flanco, de frente, das cos-
tas, de baixo . O mesmo silencio, a mesma
pausa, eram uma aggravação da espectativa ;
ou ia abrir- se um vulcão de mina, ou ia des-
abar um assalto .
Pois era ahi , em tal sitio e com tanto e
instante perigo, que os soldados improvisa-
vam aquelle passatempo de paz innocente.
Imagino o quadro em movimento. Passara
a hora das rajadas ; tinham adormecido sob
o chão as ultimas repercussões de um estron-
do explosivo . Das gargantas do sub- sólo e dos
meandros tortuosos das trincheiras apontavam,
farejando socego, cabeças famintas de ar e
sol.
Havia possibilidade de tregua. Agrupa-
vam- se as figuras num claro ; piscavam os
olhos affazendo -se á luz branca ; as bocas en-
trefalavam saudades. Ao pé , jaziam os fra-
gmentos de bombas e metralhas ; e , desoccu-
padas um momento de matar, as mãos apalpa-
ram distrahidas aquelles pedaços do instru
OS ANNEIS DAS TRINCHEIRAS 153
mento mortifero ; e onde os dedos acharam
materia malleavel, foram -n'a destacando , mas-
sando e ageitando .
As boccas sempre entre falavam saudades ;
e , ao geito do que inspirava a saudade, sem
premeditação, amoldavam- se os aros para ou-
tros dedos de mãos distantes, que acenavam
bençam ou beijos de amor. E assim foram fei-
tos aquelles toscos anneis.
A occasião deu a materia, o momento deu
a qualidade do artefacto ; o sentimento mo-
S tivou a tenção . E entre mortes, de um instru-
mento de morte, operavam sem proposito o
alheiamento do fim talvez proximo e da rea-
lidade circumstante.
Não é assim toda poesia, nas suas moda-
lidades de voz, pincel, corda, sopro, escopro ,
buril e penna ? Não é assim que ella se origina,
> e toma do accidente o seu material, e enfor-
ma-o pela saudade e para a distancia, e gera
na abstracção o sonho, o inebriamento, a li-
bertação ?
Não peçam á poesia outro officio e outra
utilidade . A vida , segundo os sabios, se não
érro, é um esforço de libertação ; e o seu
termo é a liberdade na morte.
A arte liberta melhor, apenas transfigu-
rando a realidade , suavizando - lhe as arestas ,
crispando-lhe em luz as falhas, adornando - a
de sorriso e de belleza, sem morte, porque até
da destruição faz vida e motivo de esqueci-
mento e doçura.
Foi o que me disse a imagem daquelles an-
neis, fabricados nas trincheiras pelos artesãos
da morte.
HYETOPOLIS
UM alto da serra, a perto de mil me-
tros, ha um povoado que a esperança
N
mais que a realidade ergueu em cate-
goria acima de villa. Dispoz ahi a natureza
o que convinha para attrahir e prender o ho-
mem : o sólo é fertil, a vegetação tem pujan-
ça, e a configuração do terreno compõe as-
pectos de belleza para os olhos e espaço esten-
dido para habitação folgada e densa .
O povoado parece ter vindo antes do inte-
rior que do mar, segundo indica no ponto mais
alongado do mar a velharia e o feitio das ca-
sas, em contraste com a novidade e o ar ci-
dadão , senhoril ou casquilho da parte alta .
Todavia, a communicação mais antiga e me-
nos difficil devera ter começo no littoral, on-
de já em tempo remoto havia uma cidade
prospera, com recursos de lavoura e indus-
tria.
Abriu se caminho pela serra acima, fi-
xou- se pouso a meia altura, e já no alto es-
planado , desde muitos annos, havia um cen-
156 IMPRESSÕES
tro de serviço regular para transporte de via-
jantes . Subiam os homens a cavallo, as mu-
lheres em liteira. O curioso é que, attingindo
a altura, não se demorassem nella, e fossem
por diante, a mais de uma legua , ao nucleo
primitivo assentado para além de uma que-
brada de montanha, na parte espraiada em de
clive . Só muitos annos depois, já substituidos
os vehiculos morosos, abandonada a estrada de
pedra, foi surgindo a parte nova e prema-
turamente cidadã .
A terra é linda e boa ; ao pé da matta,
larga e farta, ha taboleiros de flor. Toda a
flor dá- se ahi , sem escolha de origem, e loda
a fructa prospéra. E como a flor e a fructa,
assim é a gente, creada ou refeita na atmos-
phera da montanha. Pallidez e macilencia são
como enxertos extranhos ainda acondiciona-
dos em torrão ; os nativos ou já experimentados
da força do solo trazem côr viçɔsa .
Virtude do ar ou da terra, o somno é facil e
descansa embala- o , quando o vento socega, a
murmurio de rios ou riachos, que vão deixando
em suspensão o arrepio sonoro das aguas arras-
tadas sobre as pedras. Não escasseia tambem
a voz dos passaros , e quando elles dormem ,
cantam as rans no seu côro campestre que
para os ouvidos , chegados de uma grande ci-
dade bulhenta, é como a voz do silencio . E
tudo assim faz aquietar os nervos cansados , e
refazer as carnes sumidas, e dá repousɔ .
Mas
Digam agora os sabios da escriptura
Que segredos são estes da natura,
HYETOPOLIS 157
que, nesse alto de serra , possue força e vida
e belleza, e não tem sol. Não, não tem sol,
ou não o tem como os outros logares .
Tambem a lua é timida, e surge e espia ,
para logo esconder- se . As estrellas annunciam
de longe em longe que não desappareceram do
céu, e fazem- no em mostras breves. Mas em-
fim lua e estrellas são quebras da generosi-
dade da luz ; nem os homens, que nesse alto
de serra devem ser como os gallos, têm muitas
horas para sentir a falta dos lumes da noite .
O sol, porém, por que ha de ser tão raro c
tão escondido ? Se aponta, quando aponta , pa-
rece astro extranho aos olhos de quem o viu
nascer em outros logares, tão forte que não
podiam fital-o , e aberto como esmalte de ouro
no rendilhado do oriente, ou na porcellana azul
do meio dia ou na opala do occaso . Nesse
alto de serra, se eile aponta, quando aponta.
é como um velho cansado e friorento, embu-
çado em pelles e arminhos . Quando aponta !
Correm dias, uns após outros , em que elle
se deixa ficar recolhido e deitado . E parece
que, para não lhe perturbarem o somno, acol-
choa- se o firmamento de fofas nuvens . A vi-
ração serviçal corre as cortinas do nevoeiro
para interceptar o som da terra ; e para lhe
acalentarem o somno com a voz do somno
os famulos lá de cima abrem os chuveiros
de todo o espaço ; e a chuva cahe, a chuva
cahe , emquanto o sol dorme, esquecido de si
e desse alto de serra.
Uma alma soalheira , nascida no calor e
sob o azul , foi um dia parar nesse alto de
serra, e ali se recolhia transida, espantada,
pensando no diluvio do Senhor. Diz a Biblia
158 IMPRESSÕES
que a chuva cahiu sobre a terra quarenta
dias e quarenta noites, e seguiu- se o diluvio,
porque, crescendo muito a inundação, cobri-
ram as aguas tudo na superficie da terra.
Nesse alto de montanha chove , não qua-
renta dias e quarenta noites, mas sessenta
dias e sessenta noites , oitenta dias e oitenta
noites, duzentos dias e duzentas noites . Não
ha diluvio , e não ha nisso milagre ; senão em
que, apezar da chuva, a terra molhada e fria
dê saude e força . Os rios correm para o mar
e os cimos daquella serra correm para o céu
como dedos que o apontam.
Mas a alma soalheira sente o seu diluvio ,
e, como a arca de Noé , fluctua sobre as aguas ,
fechada . Abre de tempos em tempos uma vi-
gia e soita para o mar de cinza uma pomba ;
a pomba regressa sem rumo de luz ; envia en-
tão o corvo explorador, e o corvo retorna , cro-
citando estas vozes lentas de tedio : - Chove
noite e dia. Que monotonia ! Que melancholia !
SUUM CUIQUE
MA destas manhãs comprei a um ro-
U ceiro de serra-abaixo uma partida de
generos e, feita a conta, como elle não
tivesse nenhum dinheiro miudo, dei - lhe uma
cedula com a qual iam pagos dous terços do
debito e elle podia arranjar troco para vir de
volta receber o resto. Depois que elle se foi,
verifiquei ter-me enganado na somma contra
mim .
Fui sempre um máo sommador : emquan-
to os olhos e a voz se enfileiram pelos al-
garismos , meu espirito divaga e saiteia por
fóra. Desta vez a distracção fôra demais, e
só o accidente da falta de troco reduzia o pre-
juizo ao que já fôra em excesso na cedula .
Se foi em boa fé que elle attendeu á conta ,
pensei commigo, o roceiro voltará pelo resto .
Se desattendeu por ladino, voltará ainda por
astucia, fiado na minha distracção ; pois que a
elle, no peor caso, a teimosia na esperteza só
lhe custará uma restituição , sem necessidade
de descuipa.
160 IMPRESSÕES
Não voltou nesse dia, e eu tive o meu di-
nheiro e o meu engano como levados serra-
abaixo , até que dous dias depois elle reappare-
ceu. Vinha risonho , trazia troco e explicou que
não voltára na tarde do outro dia , por causa
do aguaceiro .
Rectificada a conta, mostrou surpresa, dis-
se com indifferença que não tinha dado pelo
engano, restituiu - me o que levára a mais с
ali mesmo lhe tornou em nova compra, e com
os olhos de quando em quando em mim, entre-
sorrindo, não poude abafar um pensamento do
fundo da alma :
Se eu imaginasse , não tinha voltado
aqui , para ter este prejuizo . Contava com mais
sete mil e quatrocentos , e ainda tive que dar
dous mil e seiscentos !
- Mas se você tivesse recebido tudo , e
désse pelo meu engano, não voltava ?
― Eu ? hom'essa ! cá não vinha.
E perdia um freguez !
Eh ! ha tanta freguezia por ahi abaixo .
w E a sua consciencia ?
- Ah ! isso é verdade ... Mas se eu sou-
besse ! cá não voltava, para ter este prejuizo !
Eu ? hom'essa ! cá não vinha. - E per-
dia um freguez ! ― Eh ! ha tanta freguezia
ahi abaixo . E a sua consciencia ? Ah !
isso é verdade ... Mas se eu soubesse ! cá não
voltava, para ter este prejuizo !
Franqueza e riso não exprimiam cynismo ,
senão a pura ingenuidade da natureza . E foi
O que no caso me interessou.
Este roceiro é honesto , como o é a maio-
ria dos homens honestos. Para elle existe uma A
propriedade, que é a sua, porque elle a sente,
SUUM CUIQUE 161
apalpa- a, tem-na incorporada no seu desejo.
Da alheia elle só tem a noção ; e como a es-
sa noção se conjuga a de uma defesa e por
isso a de uma ameaça e de um risco , que
elle imagina, por inversão de posições , não
The occorre a idéa de se apossar do que não
é seu. Mas onde não haja defesa, nem pos-
sibilidade de ameaça ou de risco, desvanece-
se aquella noção do alheio ; e na posse que ·
se lhe segue, gera- se logo o sentimento da
propriedade , e já não ha logar para discer-
nir a qualidade do acto que a originou .
Um engano de conta não differe no seu
effeito de um esquecimento de cobrança, da
indifferença de vigia, ou de um extravio ca-
sual. Ha muito homem limpo e abastado que
não paga a sua passagem de bonde, por inad-
vertencia do cobrador ; não porque elle tam-
bem não advirta no descuido ; ao contrario,
dá por elle ; e , não raro , á espera da cobrança ,
vendo passar a occasião, recolhe ao bolso o
nickel que já tinha em mão e ao esquecimento
a consciencia tranquilla.
A propriedade é, para esse homem edu-
cado e honesto , como para o meu roceirc ,
uma noção, ainda atenuada e esgarçada pelo
anonymato collectivo da empreza que possue
o direito da passagem. Tem o sentimento do
seu nickel que apalpa e põe no holsɔ, maş
não sente a obrigação de pagar o serviço que
recebe, porque não lhe veiu dar a presença
do servidor pessoal ou real, a sensação de im-
minente defesa e ameaça.
E tal é a contingencia do Estado, no seu
papel de proprietario : collectivo , impessoal,
11
162 IMPRESSÕES
abstracto, é o grande logrado , já nem digo
pelo furtador, mas pela honestidade média.
Quem ahi ha que se desdoure de passiva-
mente esquivar- se ao pagamento de um im-
posto ? Quem ahi ha que, mesmo activamente,
se não correr risco de infamia, não diligencie,
pelo favor, pela condescendencia, pela cum-
plicidade risonha ou austera, em recusar ao
Estado, o que lhe deve, ou tomar ao Estado
mais do que por este lhe é devido ?
A propriedade é para quasi todos uma no-
ção, e não é outra cousa para quasi todos o
Estado, collectivo , abstracto, incorporeo, aereo,
como que estranho, de tão alto que é, e im-
pessoal. As pessoas que o representam, em
funcção, não o approximam da terra, não lhe
dão corpo , senão através de si mesmas, e sal-
vo o caso em que o sentimento pessoal se iden-
tifique com o da funcção, mais concorrem para
volatilizar a entidade abstracta , que parece
existir para ser empulhada e lograda. O col-
lectivo é real no concreto que possue e é ano-
nymo na propriedade e no direito da posse ;
os que compõem esse collectivo não o reali-
zam mentalmente, entretidos que ficam em por-
fiar entre si, esquecidos de que se colligiram
para a melhor guarda do que é commum.
Quasi ninguem o sente concretamente , para
The sentir a propriedade e o direito . Qual o
que póde, em consciencia, mesmo de lusco-
fusco , ralhar com o contrabandista ? Qual a
consciencia em claridade de zenith , que no in-
timo, bem no intimo, condemne o furto, a
que se assemelham , como em familia , todos es-
ses actos de habilidade , todas as operações ins-
tinctivas do homem ?
SUUM CUIQUE 163
Tudo se desenrola numa escala quasi infi-
nita, cujo primeiro degráo é a mesma ori-
gem da sociedade . A civilização fez a lei, ou
a lei fez a civilização : e a honestidade que se
funda na lei, que resulta só da noção , é pre-
caria.
Para a honestidade inteira e perfeita fôra
preciso sentir, mais do que saber, a proprie-
dade alheia ; mas o suum cuique é a flɔr da ra-
zão humana, e o sentimento impessoal é pri-
vilegio divino .
Este roceiro de serra-abaixo , com a sua
palavra e o seu riso de enganador ingenuo,
fez- me sorrir de sympathia ; e achei - lhe gra-
ça e não desconfio da sua honestidade humana.
COUSAS DO TEMPO
ARA entender a linguagem colloquial da
P nossa gente moça , será em breve pre-
ciso ter- se á mão um vocabulario de fo-
lhas volantes que acompanhe as acceleradas
innovações idiomaticas. Quanto a mim, fico
em branco ouvindo expressões que andam cor-
rentes e sem duvida traduzem idéas. Regis-
to algumas que me estão lembrando : abessa,
baita, batuta, p'ra burro, é um succo ; e ha
muitas outras que taes.
Constitue esse vocabulario uma geringon-
ça ; mas, ou eu me engano , ou são as gerin-
gonças peculiares a ajuntamentos quotidianos
e restrictos, como as escolas e quarteis, ou á
gente popular unida em identidade de profis-
são ou de vicio . Creio tambem que á lingua-
gem popular não é difficil descobrir- se uma
origem na metaphora, na frequencia dos seus
utensilios, ou na corrupção da ignorancia. Tem
ella ainda um certo pittoresco, que resulta
da propria transparencia ou geito do voca-
166 IMPRESSOES
bulo, ou porventura do seu uso limitado a um
grupo.
Mas ao idioma novo a que me refiro , desde
que é geral aos moços de toda procedencia ,
não quadra a razão de ser das geringonças .
Os salões que elles frequentam assiduamente
deviam ser um meio neutralizador ou annula-
dor de habitos e cacoetes adquiridos onde a
graça se contenta de ser chulice e a communi-
cação de idéas se satisfaz com esgares de pa-
lavra.
A casaca e o peitilho engommado obrigam
ao aprumo do tronco e ao gesto commedido ;
e até o corpo que não tenha natural elegan-
cia, apparenta - a sem o pensar. Tambein ali
a voz não ultrapassa o diapasão de surdina ;
alinha - se a palavra em harmonia com o tim-
bre e as attitudes ; tem compostura, affeiçoa-
se á delicadeza da presença feminina, e en-
forma espontaneamente em galanteio .
Ora, a geringonça dos moços de hoje não
é só delles entre si, senão delles para ellas
e dellas para elles. Mais os entendem ellas
do que cu , que sou velho , ou o homem do
povo, que tenha a rudeza da vida simples.
Mas o popular frequentador da Avenida e dos
theatros e cinemas , esse conhece tambem e
pratica a geringonça das moças.
Apagou-se a linha divisoria do gesto, da
linguagem e até dos habitos de salão , como já
não ha differença entre o salão e o bonde.
O decote era a concessão convencional que
o pudor fazła á elegancia selecta do baile
ou consentia á discreção de um camarote em
espectaculo de gala ; mas exigia a sombra de
um carro e o abrigo de uma pelliça ; agora
COUSAS DO TEMPO 167
desce pedestremente á rua, e toma o bonde ,
e senta-se entre gente grosseira e estranha ,
e deixa -se ver sem convenção e medida pe-
los olhos da multidão .
As pernas tambem já não se escondem, é
esqueceram que a graça e a magia do seu en-
canto provinham de andarem occultas. Bas-
tava á imaginação a possibilidade de desco-
bril - as, e o principal era adivinhar, ou sur-
prehendel- as a furto, ao acaso de um movi-
mento, e que não as vissem muitos olhos a
um tempo ou não mostrasse a dona gostar
de mostral- as . No gesto apressado de reescon-
del-as e no rubor subito accendido nas fa-
ces da dona estava a delicia da visão mys-
teriosa e breve . Musset não achara poesia nas
pernas da sua andaluza, se ellas fossem espe-
ctaculo quotidiano, em vez do imprevisto e da
surpresa. Mas a andaluza de Musset usava
espartilho, e ao tempo delle as casacas não
usavam em publico outro rythmo de movi-
mento que o giro de adejo .
Agora a musica dos bailes não tem o
compasso de ondulação suave : chocalha ; não
deslisam os pés : sapateam ; não se alinham
os corpos em par que revôa, apenas unidos
pelo toque leve dos braços : agarram-se, afer-
ram -se ; nem o movimento é composto pela
attitude da belleza : os troncos dobram- se , cno-
cam -se, sacodem- se e pulam, desconjuntam- se
e descambam, ou só remexem, jungidos, em
quebros de melopéa ou batuques de cateretê,
durante os quaes não raro, para maior effeito ,
ha uma pausa na musica e um grito do ba-
tuta : Maricota, sáe da chuva ! ou estri-
bilho equivalente . E o saracoteio recomeça
163 IMPRESSOES
mais vivo, num gingo - gingo estonteado e sua-
do de samba.
Não estará ahi a explicação daquella ge-
ringonça que eu não entendo ? Baita, batuta,
abessa, p'ra burro são flores de jardim mo-
derno, em que se alternam ou confundem as
couves e salsas com os cravos e as rosas. Eu
não desdenho as hortaliças, antes gosto muito
dellas , mas o meu sentido esthetico não as
quer senão em horta ou já temperadas no pra-
to de refeição . Repugna-me ver em lapella
uma folha de alface , nem supponho que nin-
guem acceite para um jarro de salão um ramo
de violetas entremeadas de cebolinha. Tal a
impressão que recebo dessa geringonça em la-
bios de fina gente moça .
MANHAS E NOITES DA SERRA
UPPONHO que o deus regulador dos me-
Suteoros achou excessivas as palavras em
que desafoguei o meu aborrecimento de
tanta nuvem e tanta chuva ; e agora, para con-
fundir- me, ordenou que sobre esta serra o sol
irradiasse toda a sua força, e a lua desdo-
brasse toda a sua doçura.
Manhãs como estas, luar como este, não
me lembro de os haver sentido senão outro-
ra na minha Tijuca . Mas não, nem ali ; que
a Tijuca nao é tão alta que esteja fóra do al-
cance do ruido da planicie e do progresso
da cidade . Galgou- a a edificação , invadiu- lhe
os caminhos o lume do gaz e depois o clarão
electrico ; e só alguns recantos ficaram a sal-
vo das innovações humanas.
Aqui, em cima, graças á altitude e á dis-
tancia, graças á indifferença vagarosa da fer-
ro-carril, graças á pobreza da municipalidade,
graças á Providencia, ainda as casas não es-
tragaram a paysagem, a electricidade respeita.
a sombra das estradas ; e o aspecto é ainda
170 IMPRESSÕES
de campo , ao menos onde me acolhi , e posso
alongar a vista, sem a intercepção de casaria
agglomerada.
As montanhas dispoem o alto scenario, de
modo que se desdobra a madrugada, e a con-
templação e o goso da luz se prolonga, an-
tes que o sol, assomando, restrinja com o seu
fulgor a capacidade do olhar circumfuso .
De lado a lado, de horizonte a horizonte,
ha uma trepidação azul. Assiste- se ao acordar
das arvores : movem- se - lhes os ramos, espre-
guiçando- se ; abrem- se- lhes as vozes que mur-
muram a primeira oração de bençam ao ca-
lor fecundante e sagrado ; e de toda a espes-
sura do arvoredo , o halito das folhas que sus-
surram as palavras em hymno, sobe, conden-
sado em nevoa.
A nevoa é alva e fina, e paira sobre
as frondes como os rolos em espiral do in-
censo num templo , em horas de prece ; e as-
cende, atenua - se, esgarça- se e desfaz - se na
immensidade azul : candida oblação da terra
agradecida e illuminada aos deuses, que a re-
cebem propicios e contentes. Só esta alturą
de serra permitte acompanhar assim no seu
processo a operação ritual da natureza que
desperta.
Tambem só neste alto de serra é ainda
possivel sentir- se e entender- se o luar. Ao con-
trario do sol , a lua vem caladamente .
Fez - se já a murmuração da prece no cre-
pusculo : aquietou- se a natureza para o des-
canso ; surgiram todas as estrellas, e enchem
o caminho da via - lactea com uma scintillação
que excede o espaço e refulge e esfarinna - se
em brilho profuso .
MANHAS E NOITES DA SERRA 171
Que póde faltar á belleza da noite ? Si-
lencio ! Espera ! As estrellas são como uma muul-
tidão espectante, que murmurinha e cochicha ,
mas ante o scenario a abrir- se, abstráe- se e
retráe emmudecida .
A lua apparece lenta e discreta, como uma
ronda divina. Estão adormecidas as arvores .
Se algum ramo balança, é em movimento de
somno.
O luar infiltra - se entre as folhas, derrama-
se em meio dos troncos , envolve as copas e
é como um fluido magico , feito do sumo de
papoulas brancas ; ajuda o repouso das arvo-
vores e proporciona- lhes o sonho e as vozes
do sonho . E ellas exhalam então , no descuido
e inconsciencia de adormecidas, o segredo mais
intimo do seu perfume , que escondem ao sol.
Da mais pequenina flor, da mais escusa folha
escapa o aroma subtil, como de uma bocca, em
somno profundo, sáe uma palavra reveladora .
Opera- se uma interfusão : a do luar pelos
poros das plantas e a essencia das plantas no
luar ; e a luz tem cheiro e fórma a atmosphe-
ra, que acalenta e acaricia.
E então nada aqui vem turbar a quietude
do espectaculo . Não vejo o estardalhaço da
luz electrica, não ouço o alarido nem o tro-
pel humano : algum latido, remoto e espaça-
do, accentua a illusão de distancia e de ermo :
e as vozes nocturnas, o coaxar de sapos , 0
trissar de morcegos, o rilhar de grillos são
o estribilho do silencio .
O céu agora é todo um esmalte opalino ,
e sobre elle , nas linhas do horizonte, recorta-
se o esboço das arvores, em manchas , em
traços apenas sensiveis , mais suggeridos que
172 IMPRESSÕES
apontados, idealizados como numa transfigu-
ração de arte .
Mais do que o sol, o luar é creador de
belleza, porque transforma as imperfeições , não
desenha, não attende ás minucias, não indi-
vidualiza ; e a admiração , que não se fatiga
em analysar, é encanto total.
Para que inquirir a razão do luar? Lem-
bra- me um conto de Maupassant, Clair de lune,
em que um cura de aldeia, indagador da cau-
sa de tudo , só não atinava com a causa desse
desperdicio de luz nas horas de somno . Tinha
o cura á sua guarda uma sobrinha em edade
de amor, e vigiava-a rigoroso e desconfiado .
Uma noite ouviu ruido fóra, suspeitou a pre-
sença de um namorado , armou- se de um ca-
cete e, a tempo preciso , da porta subito aber
ta irrompeu no quintal. Mas deteve - se ato-
nito, admirado do luar que fazia ; e o espirito
philosophante enleiou- se na indagação da uti-
lidade desse clarão da noite , tão bonito . Nes
se momento apontava sob as arvores, no des-
cuido do seu enlevo, cingido pelos braços, um
par amoroso : a sobrinha com o seu namo-
rado . O cura comprehendeu então para que
era o luar : era para o amor ; e recolheu de
manso, cauteloso de que não o visse , nem se
turbasse, o par de namorados.
É um lindo motivo humano . Mas á lua
devem ser alheias as cousas humanas . Bas-
ta - lhe a só noticia da terra.
O luar é uma propiciação divina : a lua,
é a divindade tutelar que discorre em vigilia,
preservando o somno das cousas, em quieta-
ção, serenidade e beatitude.
MANHAS E NOITES DA SERRA 173
E neste entorpecimento delicioso que in-
funde em luz a natureza adormecida , até a
morte póde ter a doçura de uma transforma-
ção e de um extase.
CIGARRAS
A annos, em Lorena, perlongando um
HA trecho de matta virgem, ouvi voz de
cigarras, differente da que eu sempre
Ouvira e gostava de ouvir nos arrabaldes do
Rio . Nem estridulo nem cicio . O canto come-
çava forte, mas não passava do preludio , e
batia as mesmas notas graves e cheias, comɔ
um fabordão.
Eu ia maravilhado da visão da matta, da
qual pela primeira vez me acercava, com o
espanto curioso do desconhecido . Tudo me ap-
parecia grande e extraordinario : as arvores
que tinham seculos , a sombra que o sol não
descobria, o silencio que respirava do emma-
ranhado socavão da floresta , como de um sub-
terraneo suspenso , e as vozes que o augmen-
tavam dando a sensação do profundo e do im-
menso.
E a minha imaginação attribuiu áquel-
las cigarras da matta virgem o tamanho de
um palmo , que se me affigurava proporcio-
nado á tonalidade do seu canto .
176 IMPRESSÕES
Ora, aqui, em Therezopolis, tenho ouvido
a mesma voz estranha, e pude, guiando - me
por ella, approximar- me da cigarra pousada
em um tronco, e ver, com decepção, que ella
não é maior , senão talvez mais pequena , que
as outras cigarras conhecidas. Semelhantes em
fórma , da mesma especie em summa, por que
cantam differentemente ?
As cigarras que frequentam as chacaras
do Rio e os bosques das cercanias, têm uma
voz mais aguda, que é como uma vibração
de luz, um raio de sol que na travessia do
espaço azul se embevecesse do espectaculo e
se desmanchasse em ondulação. Irrompe em
estalo, explosiva, repercute no estridulo que
dá a impressão de um éco, depois balança,
suave, em cicio, escalado , prolongado, ascen-
dente , até que subito suspende, desvanecido .
Cessou, desappareceu ; e outra explosão , outra
escala, e o cicio trepidante , finc , que ascende .
enche o ar, abafa as outras vozes com a sua.
ondulação mais ampla e absorvente, como a
luz do sol amortece as outras luzes. E é , na
sua sonoridade , tão larga e dominante, que
parece a propria voz de toda a natureza, em
hymno, expandida na plena alegria de viver.
E por isso não ha som que mais influa a
bemaventurança , sensual, mas incorporea, em
que o espirito não toma parte , mas a da car-
ne é tão subtil como a filigrana daquellas azas
sonoras ; sensação diffusa de aragem do goso .
Anacreonte sentiu- a, e apezar de que foi
um gosador dos sentidos, symbolisou na cigar-
ra a felicidade pura, irradiante, serena, cɔmo
a dos deuses , em cujo corpo não havia san-
gue, e em cuja voz não havia sombra. Sobre
CIGARRAS 177
um fragil ramo de arvore a cigarra era se-
nhori e absoluta como um monarcha.
Mas alegria tamanha e aerea traz descui-
do e frivolidade, e não foi errada a philo-
sophia nem de todo injusto o desdem da for-
miga . A vida, para ser normal, ha de ser
feita de luz e sombra.
É que ha nesta outra vez estranha de
cigarra da matta. Não se parece com o som
de luz, não é explosiva de enthusiasm , não
tem a trepidação do embevecimento. É antes
um anceio e um queixume ; vem menos do
alto que sobe do chão ; arquejo , soluço , voz
opprimida, que incute melancholia. Arrasta- se
monotonica : a-a- a-háaana - a - a -háaan .
Ouvindo- a, onde a primeira vez a ouvi ,
entre o rumor silencioso da matta virgem ,
achei- a harmoniosa com a immensidade som-
bria, pesada, desconhecida da espessura im-
penetravel. Era bem a voz alada, que, tendo
o seu vôo interceptado pela maranha das fren-
des, retrocedia e quebrava- se em notas in-
completas, constrangidas , quasi abafadas, mas
cuja sonoridade ficava mais profunda, como
uma força contida.
Estas de Therezopolis serão cigarras da
matta virgem, trazidas acaso pelo sopro dos
ventos , e estão aqui transviadas e surpresas
entre as outras cigarras estridulas e cician-
tes . Cantam todas simultaneamente, mas es-
tou que não se escutam umas ás outras nem
se comprehendem .
Eu é que pareço entendel- as, no compa-
ral- as, e não sei porque and a relacionar
a diversidade dellas com a diversidade da nos-
sa gente, a do littoral e a do sertão : da mes-
12
178 IMPRESSÕES
ma raça, e de canto e maneiras tão diffe-
rentes, pela frivolidade e alegria de uns , e
pela tristeza fundamental dos outros, ainda
espantados da immensidade e do silencio da
terra.
ANNEL DE POLYCRATES
E eu chegasse a ser grande homem, sup-
S plicaria diariamente aos deuses que não
me deixassem attingir a plenitude da glo-
ria. Fôra o mesmo que pedir- lhes a preservação
do meu bom senso, instincto moral dos ho-
mens simples e obscuros, guia direito da vida
e que a muita notoriedade perturba, perverte
e embota.
É já um truismo o dizer- se que a vida tem
um rythmo proprio ; mas parece ainda não
ser demais, tanto vae isso desentendido e es-
quecido, o affirmar- se que o compasso dos actos
humanos é como o das ondas do mar, e tem
os limites das suas variações entre os pon-
tos extremos do fluxo e refluxo . É tambem
como o das ondas o diapasão da voz huma-
na : tons de affago e blandicia na maré- cres-
cente, que afflue em ondas espraiadas ou se
choca em som molle contra os rochedos ; na
preamar é voz lenta, abafada, em que ador-
mecem ameaças ; e quando sobe o tom, é voz
180 IMPRESSÕES
de resaca, atropelo , revolta, tempestade e des
truição..
No mar dos homens, é judicioso e feliz
o que sabe e pode esquivar- se á condição de
onda passiva, entregue á mercê dos ventos ;
e, obediente ao preceito de Delphos, se co-
nhece a si mesmo , e mede as suas forças ,
calcula as possibilidades , perscruta as corren-
tes, sonda os arrecifes, e na preamar, con-
tente de ser o que deve ser , recolhe de man-
so, antes que o volume de aguas , por exces-
so, se encapelle, e arremetta em rolos de fér-
vidas furias ou vans espumas .
Assim em tudo , nas profissões, nas artes ,
na acção social e politica, tudo , em summa,
em que collabora o individuo com a massa
das gentes. É o que a intuição dos homens
sagazes traduz na prudencia, e a ingenuidade
popular exprime nas linhas confusas da su-
perstição.
Ha uma medida inilludivel para a capa-
cidade individual e para a benevolencia dos
deuses. E a sabedoria que ɔ revela é velha
como os tempos.
Amasis, rei do Egypto, impressionado pela
prosperidade do seu amigo Polycrates , tyranno
de Samos , advertiu-lhe o risco de tamanha
e persistente fortuna, aconselhando- lhe que ,
para propiciar a complacencia dos deuses , in-
terrompesse com as suas proprias mãos a con-
tinuidade do bem, a qual podia enfim tocar
a inveja divina.
<< Eu prefiro, dizia- lhe Amasis, para mim
e para os que me são caros, prosperar aqui e
mallograr alli, e assim discorrer a vida em al-
ternativa do mal e do bem, antes que prospe-
ANNEL DE POLYCRATES 181
rar sempre e em tudo . Pois não sei de nin-
guem que, prosperando sem estorvo não afun-
dasse a cabo em mal. Se crês em mim e
queres remediar a tua até hoje continua ven-
tura, examina o que possues mais valioso e
estimado e cuja perda mais te faça doer, e
despoja- te disso , absolutamente ».
Acatou Polycrates o conselho , entendeu - lhe
o avisado intuito e privou - se do que possuia
de maior preço entre as suas riquezas, um
annel de ouro e esmeralda, o qual atirou ao
fundo do oceano .
Eram tardios porém o conselho e o acto ,
pois que os deuses fizeram voltar a Polycrates
o seu annel , no estomago de um peixe ; e o
dono acabou na peor das torturas, crucificado .
Partilho e pratico a superstição de Amasis,
e lastimo os grandes homens felizes, que não
têm amigos como aquelle, sinceros e oppor-
tunos. A amizade vale para as occasiões em
que falha o instincto da medida e a obedien-
cia ao preceito de Delphos.
Mas parece que nos tempos de hoje , é
veso dos amigos, ou por erro de boa fé , ou
cegueira de lisonja ou estimulo de proveito ,
agirem como faria a inimizade consciente.
Vejam Wilson, desaconselhado e já arras-
tado pelos primeiros vagalhões da sua glo-
ria excessiva e palreira. Amasis lhe teria dito
que não sahisse de Washington, e satisfeito
de uma presidencia, um momento illuminada .
pela fortuna, voltasse à sua discrição e elo-
quencia de professor.
Aqui no Brasil os amigos do conselheiro
Ruy Barbosa dão a impressão de que os mo-
lesta o seu extraordinario renome de juris-
182 IMPRESSOES
consulto, advogado e escritor, e querem tiral- o
do socego da sua sciencia, do brilho da sua
facundia, e da perfeição da sua arte, para
o torvelinho, a incerteza e a traição das on-
das tempestuosas.
Se uma voz pequenina pudesse ter au-
diencia fóra do côro bulhento de tantas vo-
zes ; se uma admiração reflectida pudesse va-
ler como amizade e ser escutada sem des-
dem ; eu lembraria ao grande brasileiro que ,
meditando a palavra supersticiosa de Amasis,
rejeitasse absolutamente o seu annel de Poly-
crates, que já uma vez, propicia, a fortuna
The arrebatou, mas agora, talvez adversa e
movida da impaciencia dos deuses, ameaça
restituir-lhe escondido no ventre de uma su-
curiú.
NUPCIAS DE VAGALUMES
MA tarde desta semana voltei para The
U rezopolis sem chuva e sem ameaça de
chuva. Mar de bonança, céu enxuto ,
viração de leque ; e ao longo da quilha o ruido
molhado das ondinhas ligeiras.
Ficava o calor para as bandas do Rio ; fi-
cavam esquecidas as canceiras de outras via-
gens. Incertezas, atropelos, pressas, aborreci-
mentos, decepções, tudo se foi esvaindo na
limpidez da atmosphera acariciadora .
Depois da Raiz da Serra havia o sol trans-
montado ; o céu tornou-se mais profundo, e
no alto , sobre o contorno de uma montanha
já em sombra, espiou a primeira estrella, tão
grande que era como outro sol pequenino . Si-
rius , mas os meus olhos enlevados tomaram-
n'a por Venus. Extasis de contemplação po-
dem bem confundir estrellas e planetas ; e a
luz, primeiro vista , tinha mais doçura de re-
flexão que o brilho ardente do astro do estio .
Ennegreceram - se os cumes e as lomba-
das das montanhas, e avivaram- se as linhas
184 IMPRESSÕES
agudas, sinuosas ou extranhamente encurva-
das da superficie da serra.
A subida em largo semi- circulo ia descor-
tinando o desdobramento das quebradas e dos
valles ; e o espaço arqueava - se em flor de
luz . Vi a multidão infinita das estrellas na sua
viagem pela Via -lactea , expandida em toda a
sua largura ; e não havia cansaço em percor
rer, saltear, volver no innumeravel esplendor
das constellações, desde as Pleiades apressadas
e Orion soberbo até, na linha do horizonte,
inclinado e amplo , o Cruzeiro do Sul. Eu sen-
tia a harmonia silenciosa do turbilhão cons-
tellar.
Mas, depois que a noite desceu , mais den-
sa sob o esplendor mais vivo do firmamento ,
desinteressei -me do céu, tomado de uma sur-
presa e de um enlevo, que me faziam cantar
a voz em exclamações retidas na garganta .
Assistia, em instantaneos jámais logrados an-
tes e em condições tão propicias, a uma appa-
rição de vagalumes.
Grandes como estrellas, de luz mais scin-
tillante e mais linda, em tons de opala, azul
e verde-laranja, mais numerosos que os as-
tros lá em cima, os vagalumes esvoaçavam
sobre todo o fundo negro da matta . Era como
se o firmamento se reflectisse num espelho
de onyx de facetas conjugadas para a infini-
tude da imagem . Era como se o céu tivesse
descido á superficie anfractuosa da serra. Era
mais : porque as estrellas não têm aquella mo-
bilidade , aquella inquietação , aquella зurpre-
sa, aquella alternativa de brilho, com que os
vagalumes se multiplicavam, improvisando
constellações ,
NUPCIAS DE VAGALUMES 185
Vi columnas luminosas que se erigiam e
de repente se desmanchavam em espiraes e
nevoas ; arvores em treva abriam- se em scin-
tillação tão intensa que todo o tronco , os ga
lhos, os ramos, as folhas parecia que borbu-
lhavam brilho .
Já não podiam desviar- me os olhos os
astros distantes. Interessava- me mais o espe-
ctaculo dos seres pequeninos , de breve exis-
tencia, capazes, no seu minusculo tamanho , de
pôr na terra a illusão do firmamento estrel-
lado.
Ouvi dizer que é no tempo do amor que
os vagalumes apparecem assim , em enxamea-
das pelo ar. Em verdade , só o amor originaria
esse concurso e concerto maravilhoso de lumes.
É o tempo das nupcias . Alvoroçam - se e
partem dos seus esconderijos para o espaço
livre. Impelle - os, machos e femeas, a força
mysteriosa ; e accende - se- lhes a luz, que é a
linguagem e o canto com que elles se com-
municam e se attráem. A sombra encobre as
solicitações , as repulsas, as rivalidades , as lu-
tas e o espasmo victorioso . Mas , pois que o
amor as accende, as luzes são indiscretas , e
descrevem e recontam, nos seus hieroglyphos
fluctuantes, as scenas do instincto supremo .
O rythmo era calado, mas transmittia ao
ar uma palpitação como de azas, que faziam
no bojo da sombra um fremito de volupia .
E, olhando os vagalumes, eu murmurei,
em espirito : — Natureza, tu és boa, és di-
vina e deves ser bemdita. És a doadora de to-
dos os bens . Se dás o mal, todo o mal é
como esta treva da noite , que adornas com
o brilho dos astros e as constellações destes
186 IMPRESSÕES
insectos. Fazes soffrer, mas fazes amar. Ras-
gas abysmos , mas ergues estas moles de serra,
que abrem sobre elles as maravilhas das altu-
ras. Compões a variedade e o contraste ; e
da mesma necessidade fazes doçura . Amaldi-
çoam - te os homens que não te comprehender ,
nem querem olhar -te. Se a tua indifferença se
traduz na impassibilidade dos astros, altos e
eternos, a tua sensibilidade é tambem humana
e manifesta- se em momentos como este, em
que dás ao instincto o vôo luminoso de un
sonho . Eu te bemdigo , por este instante de
enlevo em que tu celebras as nupcias dos va-
galumes. Nem os homens nem os deuses fa-
riam espectaculo mais perfeito e mais sim-
ples do que esta festa de amor, de belleza e
de luz.
CRESCITE ET MULTIPLICAMINI
apoucado de entendimento devo ser eu ;
O mas, muito embora, sempre direi o que
penso dessa estravagencia que se con-
vencionou chamar de feminismo . Como todas
as estravagancias, esta achou proselytos e vae
tendo o louvor dos que se envergonham de
não partilhar as idéas ruidosas da maioria.
E assim se fazem as maiorias. Eu, porém,
folgo de pensar por mim mesmo , segundo a
minha razão ; e na minha razão podem mais
os argumentos que os argumentadores.
Pouco se me dá, por exemplo , que na
Inglaterra, que eu admiro e estimo, e nos
Estados Unidos e em breve na Allemanha
e no resto do mundo, a mulher esteja equi-
parada ao homem para o uso e goso de to-
dos os direitos e funcções sociaes. Para mim
essa equiparação é tão absurda como seria
o reconhecimento legal da maternidade mascu-
lina .
A natureza, que é autoridade incontras-
tavel, formou a differença dos sexos, e esta-
188 IMPRESSÕES
tuiu -lhes as necessidades respectivas, de que
resultam attributos differenciaes com prero-
gativas humanas, e consequentemente capaci-
dades diversas. E ainda ahi procedeu a natu-
reza por fatalidade de selecção e de progresso.
Na animalidade inferior, e , a crer na Bi-
blia e em Platão , até no homem, a origem foi a
confusão. Separados os sexos, tornou-se pos-
sivel amor. e a harmonia , que são ins-
tincto e a funcção dos contrarios, como a con-
trariedade na especie é a condição do seu aper-
feiçoamento .
Que pretendem, no entanto, ou já estão
fazendo os homens agora ? O opposto da na-
tureza, o opposto da perfeição , a marcha in-
vertida da contrariedade para a egualdade ,
da differenciação para a confusão, do amor
e da harmonia para o desamor e a desor-
dem. Enganam-se, considerando accessorio
como principal, o accidente como substancia,
o contingente como necessario, a excepção
como regra, a perversão como naturalida-
de ; e affirmam convencidos se conven-
cidos - a egualdade do homem e da mulher.
E eu contesto que não ha egualdade. O ho-
mem é pae, a mulher é mãe. São physiologi-
camente differentes, e psychologicamente e so-
cialmente hão de ser differentes. E nesta dif-
ferença se firmou a constituição da familia, e
pela familia a da sociedade.
Concluir- se de occorrencias excepcionaes,
como as desta guerra, em que a mulher exer-
ceu, por imperio do momento , os mistéres so-
ciaes do homem, nos quaes revelou virilida-
de moral, agilidade muscular, pericia techni-
ca, resistencia physica ; concluir- se da revela-
CRESCITE ET MULTIPLICAMINI 189
ção de qualidades sociaes e profissionaes, que
a mulher pode e deve substituir o homem
ou equiparar - se ao homem no desempenho do
papel que a este coube pela ordem dos factos
universaes e inclinação da natureza, é de uma
logica viciada, que, a ser acceita, imporía,
pela força do excepcional e do particular, a
acceitação do homem pervertido , effeminado ,
desmasculinizado, para o papel que a natureza
e o curso da historia destinaram á mulher.
Seria forçoso tambem admittir como normal
e permanente o estado de guerra, que origi-
nou aquellas manifestações femininas excepcio-
naes .
Terminada a guerra, que é ebulição e des-
equilibrio, tudo ha de voltar á normalidade
e ao estado natural. A agua que se fez va-
por, e adquiriu violencia para vencer a gra-
vidade, congela- se e borbulha em gotas , e é
de novo a brandura, a liquidez, a obediencia
do elemento primitivo .
Assim, dispa a mulher o seu uniforme,
tire a blusa e as calças machas, e volte para
a lareira, a sala , a alcova e o quintal da sua
casa, a ser a dona, a esposa e a mãe. Eu
quizera mesmo que ella renunciasse aos offi-
cios , que, embora compativeis com a sua de-
licadeza , a sua dextreza, a sua perspicacia, a
sua diligencia e a sua feminilidade, como são
os do magisterio e das officinas de costura
e das lojas, lhe affeiçoam mal o teor da vida ,
desenraizando - a do lar, envaidecendo- a de mas-
culinização espiritual, embotando - lhe ou per-
vertendo- lhe o instincto especifico . Basta que
a miseria ou o descaso dos homens já tenham
imposto sobre a mulher a precisão de , para
190 IMPRESSÕES
ganhar a vida, violentar o encurvamento do
seu ventre.
Porque ha de ainda a consciencia dos ho-
mens politicos estimular e facilitar a desna-
turada excepção que já faz a mulher, que, em
toda a série das femeas animaes, é a unica
a praticar ou consentir no desninhamento da
prole ? A besta-féra não acceitaria o benefi-
cio da creche, e onde é mais feroz é no amor
da cria, no sacrificio e na abnegação da mater-
nidade . A solicitude umbilicial da ninhada é
que perserva a especie ; e, todavia, os homens
que ostentam a obrigação social do Estado
de olhar pelo individuo, pela hygiene e pela
instrucção, rebaixam a creança humana á con-
dição de pintainho , que pode ser artificial-
mente incubado . E não é muito que idealizem
tambem a classe dos gallos - capões na socie-
dade humana . O que se deveria promover, ao
contrario, é que o labor da mulher fosse ca-
seiro e lhe não desviasse o cuidado e a vigi-
lancia da sua funcção sagrada.
Negar á mulher a egualdade juridico - so-
cial com o homem não implica o pensamento
de que ella lhe é inferior . É só differente, e
porque é differente, equivale ao nomem, se
porventura não vale mais do que elle. Em
verdade, coube - lhe tudo o que ha de sublime
e puro no seu destino doloroso de ser mãe ;
tocou- lhe a fraqueza que lhe inspirou a sabe-
doria da bondade ; o sentimento creou - lhe a
finura da intelligencia ; a fórma deu-lhe a pas-
sividade ; e do seu conjuncto e da sua contin-
gencia emana, como de fonte, o carinho de
que o homem tanto precisa, quanto a creança
precisa do leite que mama nos seios maternos .
161
CRESCITE ET MULTIPLICAMINI 191
Ao homem, a luta, o trabalho manual , in-
tellectual e politico ; ao homem, o dever pe-
noso de partilhar e concertar as paixões am-
biciosas do mando publico ; á mulher fique
o que vale tudo isso, o seu papel de mulher,
de amante e mãe, formadora da familia ; pa-
pel tão grande, tão nobre e tão exclusivo que,
pela sua significação e suas consequencias, só
se symbolizaria bem no mytho de Atlas a
soerguer nos braços o mundo. O feminismo
teria por symbolo a allucinação e a confusão
das Danaides .
CORIOLANO
E a Historia, do mesmo modo que o rosto
SEhumano, nunca se reproduz em traços
exactamente eguaes, multiplica- se, como
elle, em semelhanças e em analogias que im-
pressionam e é sempre interessante annotar.
O mallogro por exemplo da já declarada
victoriosa candidatura do Sr. Ruy Barbosa e
o seu justɔ e rumoroso resentimento pessoal ,
lembram- me o caso de Coriolano .
Identicas as situações ; analogos os ante-
cedentes e as circumstancias , e quasi que o
mesmo o desfecho desesperado. Feito consul
pelos patricios , viu Coriolano a realidade da
sua ambição desvanecida pela recusa dos tri-
bunos do povo a homologar- lhe o consulado.
Não esqueciam os tribunos o desprezo uma vez
manifestado por Coriolano para com o povo
faminto ; temiam- lhe a arrogancia, não lhe per-
doavam a feição aristocratica ; e preferiam ,
a soffrer-lhe a autoridade , ser ingratos aos
grandes e decisivos feitos militares, a que de-
veram a salvação de Roma.
13
194 IMPRESSÕES
Arrosta Coriolano a opposição tenaz, mas
é banido . A pena de exilio azeda -lhe o orgu-
lho, cega- lhe o sentimento da patria ; e contra
a propria Roma, que elle salvara dos Volscios ,
agora, offerecido general dos Volscios, arre-
mette como inimigo para vingar-se da af-
fronta.
Transe de paixão impetuosa, é um dos pon-
tos de relevo sobre a superficie da Historia
nivelada pelo pó dos tempos ; e não ficou des-
percebido ao genio de Shakespeare, que o to-
mou para insuflar - lhe a vida eterna de uma
tragedia.
O Coriolano que vive é menos a figura es-
tricta de um guerreiro revoltado e tranidor por
vingança que a personificação universal do
orgulho humano ferido , despeiado da razão ,
violento, tempestuoso e destruidor.
A sua justificação da vingança, a expres-
são do seu odio , a ejaculação do seu desprezo ,
o impeto da sua furia ficaram absolutamente
definidos nas apostrophes do Coriolano de Sha-
kespeare acampado ás portas de Roma para o
assalto decisivo .
Mas uma Voz feminina o venceu, me-
nos a de Volumnia , atrevida como a do
filho , que a de Virgilia, inspirada pela
brandura e vestida de meiguice . Coriolano , a
ponto de dominar Roma , volve , amansado na
sua colera , deixando preservada a patria, trahi-
dor agora dos Volscios , que elle arrastara e
commandava .
Para excitar o orgulho ferido do candi-
dato á presidencia da Republica , não faltou
o estimulo dos Nenenius multiplicados ; para
adormecel- o faltou, ou foi inefficaz, a voz da
CORIOLANO 195
ternura de Virgilia, a qual, pela persuasão e
sabedoria do seu carinho, lhe teria dado o mo-
dulo do sentimento , a contensão da queixa, o
acatamento da honra, a intelligencia das cir-
cumstancias, a ponderação das ameaças, a cons-
ciencia do inopportuno, o acanho das expan-
sões, a grandeza do soffrer, a filosofia do
sic vos non vobis ... a virtude das reticen-
cias , o dominio sobre o rancor, a abstenção de
insulto ; e não se alterára a serenidade , a ma-
gnanimidade , a clarividencia do espirito su-
perior.
Isso lhe daria a voz de Virgilia, e com
isso o talento da fulgida eloquencia produzi-
ra, em harmonia 'de belleza e austeridade , a pa-
gina de orgulho que pudesse emparelhar - se
ás do Coriolano, como equivalencia entre a
palavra de um politico sabio e a de um rude
guerreiro.
Mas Virgilia , ou não falou , ou não foi es-
cutada. Falou, e foi escutada, a ira, que allu-
cina o animo, desaggrega os factos, atropela
e enrouquece a palavra, congestiona as faces,
enfeia o semblante, arreganha a bocca, range
os dentes, inflamma os olhos , agita as narinas ,
desabala os braços, desapruma tronco, de-
sengonça o pescoço ; e obumbra a perspectiva,
embota a memoria, desproporciona a visão ; e
cega, surda, tonta, aos gritos, aos pulos , não
sabe a que ater - se e por si mesma cáe esfal-
fada, vã , sem mais effeito que o de um tro-
vão que roncou.
É assim aquelle discurso na Associação
Commercial , em que os admiradores do sena-
dor brasileiro, apologistas ou antagonistas seus,
não importa, esperavam ver revivida em todo
196 IMPRESSÕES
o brilho e força uma das philippicas ou catili-
narias, grave, altaneira, exemplar ; aquelle dis-
curso cahiu sobre todos, aturdidos, assombra-
dos, confundidos , e ao cabo todos offendidos
e penalisados, cahiu como uma xingação for-
midavel á bahiana dos velhos tempos.
OVO DE COLOMBO
mundo anda alvoroçado pela questão
social. Publicistas e politicos agitam-
O
na como um espantalho, e os que não
o são, repetem-lhes as palavras mais tumidas
dos escritos e discursos num côro de alluci-
nados, sob a magia de um apocalypse . Está
proximo o dia de juizo , e já se entoa o dies
irae da sociedade humana .
Ora eu, por ignorancia de certo, deixo - me
ficar á margem dessa caudal de clamores e
sustos ; e diria que lhes sou indifferente, se
não fosse a irritação que me causa a questão
social. Irrita - me a simples menção dessas duas
palavras conjuntas, assim por demasiadamen-
te repetidas, como porque em torno dellas se
levantou uma nuvem de obscuridade para o
meu entendimento , que presumia ter penetra-
do ao primeiro relance um facto rudimentar
de economia politica. Mas o simples facto é
agora uma molle confusa , que eu não comparo
a uma nebulosa, porque esta se reparte em
parcellas de luz. Quadra-lhe antes o simile
198 IMPRESSOES
de um horto inundado , em que proliferam ,
entre as boas sementes, primeiro ahi lança-
das, as ortigas, as tiriricas, as mariangomes,
e demais hervas tenazes, e pullulam as mi-
nhocas, os caramujos e as lesmas, peculiares
á escuridão fecunda da lama.
Não ha no desinente ismo de toda a prole
philosophico- social um vestigio pegajoso dos
animalculos rasteiros, da laia dos caramujos
e lesmas ? É a sensação que me dá, de parasi-
tos e invertebrados da sombra e do lodo .
Mas não desejo argumentar com sensações ,
que induzem a engano . Quero ao contrario de-
senganar- me desta divergencia de comprenen-
são que me põe aparte de todo o mundo ; e
não ha para esclarecer-me senão o puro racio-
cinio sobre dados de observação .
Ora que vem a ser a questão social, ou
que vinha a ser ? Estripada do seu recheio ,
despida dos atavios que lhe foram applican-
do no correr dos annos, ella se reduz ao pro-
blema do accordo entre o homem que traba-
lha e o homem que paga o trabalho.
Abstraia-se por inutil a consideração do
trabalho inicial do escravo . Entre homens li-
vres a primeira phase da industria é a do
trabalno prestado pelo obreiro a si mesmo ;
na segunda phase o obreiro, por insufficien-
cia de tempo e de esforço, precisa da colla-
boração alheia e admitte aprendizes que re-
munera com o ensino do officio e progressiva-
mente com a paga do serviço auxiliar, e ad-
mitte depois ou simultaneamente collaborado-
res que, sob a chefia do iniciador do officio ,
têm a vantagem de não necessitarem pessoal-
OVO DE COLOMBO 199
mente de pagar a tenda do trabalho , nem adqui-
rir material nem procurar o consumidor.
E assim se fez a dualidade do trabalho
e do capital, que não é senão o trabalho accu-
mulado em iniciativa , esforço, habilidade , con-
vergencia de freguezes , acquisição de utensi-
lios e de renda . Prospéra a officina, e o dono
della já não pode concomitantemente appli-
car-se ao labor manual e á direcção e fiscali-
zação dos auxiliares ; limita- se pois a ser o
mestre, e se é preciso desenvolver a sua in-
dustria, e não lhe basta o dinheiro apurado,
procura dinheiro de outrem e faz a socieda-
de, em commandita por exemplo.
Ani está o phenomeno da economia em
seus traços fundamentaes. Entre o que paga
o trabalho , dono da officina, e o que recebe
a paga do seu trabalho, operario, official ou
aprendiz, ha um accordo natural e prévio de
vontade livre. Serviço em troca de pagamento.
Nenhum é forçado , nem deve sel- o, em actos
de liberdade pessoal .
Em que affecta o Estado e o municipio es-
se accordo livre de vontades ? Em nada mais
que no dever de respeital- o e assegurar os
meios de policia para a sua execução, quando
uma das partes reclamar contra a falta da
outra no cumprimento da promessa. E abso-
lutamente mais nada, se verdadeiramente a
communhão é de homens . livres.
Não differe o caso do accordo que eu faço
para o meu serviço pessoal, no pagamento
aos que me servem, ou que recebo em troca,
por exemplo, destes artigos que escrevo .
E o facto economico não perde o seu ca-
racter, a sua simplicidade, a sua clareza, con-
200 IMPRESSÕES
siderado entre duas pessoas, ou entre uma
multidão de obreiros e o chefe que lhes paga
os salarios por elles pedidos ou acceitos e
accordados.
Não devia perder ; mas perdeu por mo-
tivos que tambem são claros. Em pri-
meiro logar a nefanda necessidade da ma-
china e da fabrica , depois a distincção ca-
pciosa entre capital e trabalho , dois nomes
de uma só cousa, considerada em duas pha-
ses ou duas faces ; e por fim, e peior de to-
dos, o ardil consciente dos homens astutos
que exploram a ignorancia e a credualidade,
e põem a serviço da propria ambição uma fin-
gida piedade pela miseria inevitavel, e des-
envolvem na confusão de tudo o instincto da
inveja que tem o pobre do rico , o vadio do
laborioso, o desordenado do ordeiro, em sum-
ma o homem do homem. E completou - se a
obra pela acção da rhetorica ociosa , de passa-
tempo ou de interesse.
Consequencia da ignorancia ou da esper-
teza, da inveja ou da propria fatalidade do
progresso, que originou a machina, a fabrica ,
e as grandes cidades ; é força reconhecer e ad-
mittir que por ellas se deixem arrastar tumul-
tuosamente os homens, já que os homens não
sabem conhecer-se nem commedir- se na sua
cubiça, e querem viver apressados em lufa-
lufa. Tal é a contingencia da Europa. E ahi
é admissivel que a questão social seja cau-
sa de apprehensões e revoluções.
Mas o Brasil não está na Europa, e não
attingiu ainda as condições sociaes dos pai-
zes da Europa, repletos de industrias e de
gente. O Brasil, como os demais paizes da
OVO DE COLOMBO 201
America do Sul, é uma vastidão de terra por
povoar.
Aos homens que aspiram a governar o
Brasil, o bom senso está mostrando que a
extensão e fertilidade da terra e a escassez
de habitantes podem preserval - o da questão
social até que a fatalidade do seu progresso
lhe crie a situação pouco invejavel dos pai-
zes da Eurɔpa. E isso levará ainda seculos .
Que fazem no entanto no Brasil ? Os poli-
ticos estudam pela letra os economistas euro-
peus, em vez de estudar-lhes o espirito ; e para
terem occasião de socialismarem, antecipam
no Brasil os perigos da industria e das fabri-
cas, e têm o preconceito de que a expressão do
progresso é a grande cidade. Geram fabricas
á força de leis proteccionistas, promovem a
deserção dos campos, e para imitar os euro-
peus, amedrontam-se com a questão social , de
que são elles proprios os exclusivos autores
ou coautores.
E a situação do Brasil sob esse as-
pecto é a de um menino que, por macaquea-
ção da gente grande , puzesse ao rosto umas
barbas postiças inçadas de pulgas e piolhos,
e entrasse a chorar das picadas dos piolhos
e pulgas. Que é que se devia fazer a esse
menino ? Tirar- lhe logo as barbas postiças.
Que na de fazer o Brasil para não ter que
se incommodar com a questão social ? O con-
trario do que tem feito. Promover por meio de
impostos prohibitivos a extincção das suas fa-
bricas e impedir a creação de novas , facili-
tar o encaminhamento para os campos , não
pensar nos problemas do trabalno, deixar que
o individuo tenha a iniciativa do seu esforço
202 IMPRESSOES
e dos seus interesses e não conte receber do
Estado senão o que o Estado lhe deve : a li-
berdade e a justiça ; em summa ser o Brasil o
que os estadistas dos bons tempos de since-
ridade e intelligencia aconselhavam, e apré-
goavam : paiz essencialmente agricola.
E fôra um dia a questão social nas terras
grandes e novas do Brasil.
INDICE
INDICE
CONTOS
Pags.
Tia Lulú 11
Coração de velho 87
Januario 101
Morto vivo 111
Surdina da morte 127
IMPRESSÕES
Passaro cantor 143
Bichos da noite . 147
Os anneis das trincheiras 151
Hyetopolis . 155
Suum cuique . 159
Cousas do tempo 165
Manhãs e noites da serra . 169
Cigarras .. 175
Annel de Polycrates • 179
Nupcias de vagalumes 183
Crescite et multiplicamini . 187
Coriolano 193
Ovo de Colombo 197
ACABOU DE SE IMPRIMIR NA
TYPOGRAPHIA DO ANNUARIO DO BRASIL,
(ALMANAK LAEMMERT )
R. D. MANOEL , 62 — RIO DE JANEIRO
AOS 29 DE DEZEMBRO DE 1920
TAB
ANTHOLOGIA UNIVERSAL
VOLUMES PUBLICADOS
1 - MANUEL BERNARDES - Historias
varias.
2 - SOROR MARIANNA- Cartas de
Amor, nova restituição e esbo-
ço critico de Jaime Cortesão.
3 - JOSÉ DE ALENCAR- Iracema, edi-
ção prefaciada por Mario de
Alencar.
4- ALMEIDA GARRETT - Frei Luiz de
Sousa.
5- GONZAGA - Lyricas (Da Marilia
de Dirceu), prefacio e notas
de Alberto de Faria.
6- FERNÃO MENDES PINTO - Em
busca do Corsario.
7- CARLOS DICKENS - Canto do Na-
tal, traducção de D. Virginia
de Castro e Almeida.
P19606
179
89049438
79a
b890494381
89049438179
b89049438179a