Kasato-Maru
Shozo Motoyama
D ocumentos? Servem para alguma
coisa, além de atravancar estantes e
cortine sem nenhuma névoa. Porque se
assim fosse, os historiadores seriam os
salas? Sim, claro! Eles têm muitas uti- melhores futurólogos. Mas, ao contrá-
lidades e finalidades. E, diga-se de pas- rio, não corre o boato de que não existe
sagem, valiosas e, muitas vezes, valio- pior futurólogo do que o historiador? E,
síssimas. Por exemplo, servem para diga-se, sem rebuços, que essa segunda
preservar a memória. Mas, a preservação hipótese está mais próxima da realidade,
de memória, ela mesma, não é uma futi- como bem sabemos. Um dos motivos
lidade, para não dizer inutilidade? Essas disso remete-se ao fato de o desenho ob-
sejam, talvez, algumas das indagações tido não ser estático, mas dinâmico, em
que podem surgir ao deparar com o livro variação dialética. Por dialética queremos
Kasato-Maru: uma viagem pela história dizer que as variáveis podem se chocar,
da imigração japonesa. Porque, com se fundir, se cruzar, ou mesmo correr em
certeza, muita gente teria dúvidas nessa paralelo etc. Por conseguinte, nada existe
direção. Afinal, o nosso dia a dia é tão de determinado, nada se conhece de an-
corrido, tão cheio de peripécias, que não temão. Todavia, as diversas tendências do
temos tempo a não ser para enfrentar futuro vislumbram-se no cenário e nos
os desafios diuturnos colocados à nossa ensina as possibilidades da nossa ação.
frente. Deixar registrado o passado quiçá Bom, diz o nosso leitor amigo, mes-
não passe de bobagem, de ocupação de mo que essa argumentação fosse verda-
erudito sem nada para fazer. deira, o livro não exagera, colocando
Mas, será mesmo? Primeiro: não se apenas um documento, a lista de bordo
trata “apenas” do passado – ele tem mui- do Kasato-Maru, acrescida da carta do
to a ver com o presente e, mais ainda, cônsul brasileiro daquela época no Ja-
com o futuro. Sem querer cair no lugar- pão, Alcino Santos Silva? Não, para o
comum, digamos que quem não conhece seu editor:
o passado repete os seus erros. Isso sem A relevância desse documento é bas-
se referir à possibilidade de aprendermos, tante evidente. Redigido às vésperas
também, com os sucessos de antanho. do embarque dos emigrantes, apon-
Porém, trata-se mais do que disso. Como ta para mudanças de última hora na
a história é um processo, existem emara- composição dos passageiros, promo-
nhadas no presente as variáveis enforma- vidas por razões não explicadas. E,
doras do futuro. Assim, para perscrutar ainda mais interessante, essa relação
vem acompanhada de ofício do refe-
o futuro, torna-se necessário analisar as
rido cônsul, dirigido ao secretário da
variáveis do presente. Ora, como o pró- Agricultura, com interessantes ob-
prio nome indica, para conhecer essas va- servações e advertências sobre essa
riáveis, temos de acompanhá-las no fluxo primeira leva oficial de imigrantes
do tempo, ou seja, desde o passado. orientais. [...] Com esta publicação, o
O conhecimento dessas variáveis não Arquivo Público do Estado oferece ao
significa que o desenho do futuro se des- público e aos estudiosos da imigração
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japonesa a oportunidade de cotejar as entraram no Brasil desde o início do
informações desse documento com século 20, formando o quarto maior
os registros mais bem conhecidos de contingente entre inúmeros grupos
acolhimento desses migrantes no Bra- de imigrantes que chegaram ao Brasil
sil, cumprindo assim sua obrigação de ao longo do século.
difundir amplamente seu acervo.
A lista registra, portanto, o nome, o
Palavras de Carlos de Almeida Prado gênero e a profissão dos 781 nipônicos
Bacellar, coordenador do Arquivo Pú- que inauguram o processo da vinda de
blico do Estado de São Paulo no qual se cerca de um quarto de milhão de cida-
conserva a lista. dãos do Sol Nascente ao solo brasileiro.
Não é o suficiente para o leitor exi- O conhecimento dos dois novos do-
gente? Sim, talvez sejam necessárias mais cumentos já se reflete no trabalho da
algumas palavras para convencê-lo. Ne- pesquisadora da Unicamp.
nhuma argumentação possui força sufi-
ciente para conseguir o beneplácito de A carta do cônsul brasileiro, que
acompanha a lista dos passageiros,
todos os seus críticos – nem se pretende
exibe claramente a sua posição, de-
isso. Porém, quanto mais se tiver, mais monstrando mais prudência do que
força terá a defesa da tese. A nossa de- entusiasmo. Para a avaliação efetiva,
fende a ideia de que a preservação da sugere que o julgamento da eficiência
memória apresenta relevância, e para rea- do trabalhador japonês só poderia ser
lizá-la, os documentos, mesmo que seja feito depois de “uma ou duas colhei-
um, devem ser preservados e difundidos. tas”, partindo ainda do pressuposto
Esses aspectos ficam mais bem definidos de que os japoneses renderiam ape-
se soubermos situar a posição e significa- nas dois terços dos outros imigrantes.
Havia dúvidas sobre o desempenho
do do navio Kasato-Maru na história da
desses imigrantes na lida com o café.
imigração nipônica. Por isso, na primeira [itálico meu]
parte da obra, não por acaso, aparece o
trabalho da Célia Sakurai, pesquisadora Por conseguinte, informações cons-
da Unicamp e uma das mais conhecidas tantes em um dos documentos confir-
especialistas da imigração japonesa no mam, ainda que parcialmente, porém de
Brasil. Trata-se de uma síntese interes- modo concreto, a hipótese sempre vei-
sante do processo histórico vivido pelos culada da existência de preconceitos pela
emigrantes da terra de Crisântemos nas elite brasileira em relação aos nativos do
terras brasileiras, de 1908 a 1970. império onde o Sol nunca se põe.
Da exposição da Célia Sakurai fica- Completando o livro, na segun-
mos sabendo que da parte, aparece o artigo do professor
Jeffrey Lesser, renomado especialista
A vinda de navio Kasato-Maru, em na pesquisa de temas como etnicidade,
1908, marca o início do ciclo de imi-
imigração e identidade nacional no Bra-
gratório japonês para o Brasil, que se
estende até o fim da década de 1970 sil. Ele mostra a conjuntura histórica na
[...]. O número de emigrantes regis- qual a carta e a lista foram elaboradas.
trado oficialmente pelo Consulado Destarte, as informações contidas nos
Geral do Japão é de 251.981, no pe- documentos aludidos ganham sentido e
ríodo entre 1908 e 1986. [...] Pode-se significado na história da imigração japo-
afirmar que cerca de 250 mil japoneses nesa no Brasil. Contudo, isso não seria
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inverter a argumentação? Não se queria
mostrar que os documentos apontariam
novos desdobramentos da história da
imigração? Sim. Porém, como vamos sa-
ber que os desdobramentos são novos se
não conhecemos o significado deles não
só no contexto da sua elaboração, como,
também, no fluxo da história?
Não constitui nossa função detalhar o
trabalho do professor Lesser. Entretan-
to, vamos trazer alguns trechos seus para
ilustrar a nossa tese. A carta se situava
dentro do
discurso brasileiro sobre a imigração
japonesa (que) combinava, portanto,
o medo social da “mongolização” e
VV.AA., Kasato-Maru: uma viagem pela
o desejo de imitar o desenvolvimento
econômico e social do Japão. Antô-
história da imigração japonesa no Brasil.
nio Coutinho Gomes Pereira, capitão
São Paulo: Imesp, 2009. 96p.
do navio-escola Benjamin Constant,
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ficou fascinado com a sofisticação da
Marinha japonesa. Mas, Alcino Santos
Silva, o cônsul em Yokohama, temia
que os “feios e baixos” japoneses não
estivessem preparados para “adaptar-
se aos costumes ocidentais”.
A carta, por conseguinte, não consiste
em um fenômeno isolado, mas faz par-
te de uma visão vigente em alguns seg-
mentos sociais brasileiros. E, sugere, por
exemplo, investigações no sentido de sa-
ber quais (ou qual) eram esses segmentos
cujo conhecimento é, ainda hoje, difuso.
Ou, o que significa reconfigurar
os japoneses como não-asiáticos foi
um passo importante na criação de ca-
tegorias “étnicas” para os imigrantes.
Os diplomatas japoneses avidamente
reforçavam essas opiniões, em cons-
tantes lembretes de que os seus súditos
eram “brancos”. Como muitos inte-
grantes das elites brasileiras colocavam
os imigrantes japoneses numa posição
hierárquica igual ou superior à dos eu-
ropeus, as imagens dos passageiros do
Kasato-Maru eram positivas.
Essa afirmação de Jeffrey Lesser suge-
re que em torno da chegada do primeiro
navio imigrante nipônico, geralmente
tratada de maneira ligeira e superficial,
escondem-se temas de relevância para a
historiografia, não só da imigração, mas,
de igual forma, sobre os comportamen-
tos sociais, econômicos, políticos e cul-
turais de ambas as nações.
Meu caro leitor está agora convencido
da importância do livro Kasato-Maru:
uma viagem pela história da imigração
japonesa no Brasil? Não? Então, só resta
você mesmo ler a obra e tirar as suas pró-
prias conclusões.
Shozo Motoyama é professor titular da Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
@ –
[email protected]326 estudos avançados 25 (72), 2011