Lowe Eir
Lowe Eir
CAPÍTULO IV
dramática. É preciso talvez que nos resolvam os a aceitar o fato de
que há no estudo do passado um m o m en to arbitrário inicial, ligado à
sensibilidade pessoal do historiador. É o que pensa M ein eck e quan
do evoca o caráter m ó vel das fronteiras que separam o importante
daquilo que não o é. Mas essa tomada de consciência não abala A pluralidade do passado
sua confiança no con h ecim en to histórico. A questão é apenas um
preâmbulo; em seguida, vem a escavação. E é justamente quando
se encontra numa posição incóm oda, sob a superfície, que o histo
riador tem a possibilidade de verificar a pertinência da questão que
colocou, de c o m g i-la e - por que não? - de encontrar outra coisa,
que não esperava. Nesse ponto, M ein e ck e reencontra Droysen:
Tínhamos isto e aquilo; hoje, é co m o se não possuíssemos mais A dizer a verdade, toda coisa movente leva em si
nada, é preciso recomeçar do zero, é preciso retomar tudo desde
a medida de seu tempo; e este permaneceria mesmo
o inicio. Procurando material, verifica n d o-o , interpretando-o,
se não houvesse nada de outro; não há duas coisas
reelabora-se o pensamento e, à medida que este se desenvolve
no m undo que tenham a mesma medida de tempo [...].
afinando-se cada vez mais, precisa-se em toda a sua riqueza e
E xiste portanto (pode-se afirtná-lo ousadamente)
se transforma; corre-se mesmo o risco de o perder [...]. Mui
no universo, num só tempo, uma multidão de tempos.
tos se esgotam com a tarefa, perdem -se em vias transversais,
Johann Gottfried Herder133
lançam-se a novos possíveis, prospectam em extensão mais que
em profundidade.
O conteúdo de nosso eu é algo de recebido (Empfangenes), que histórico. “ A história nos diz o que é uma coisa, a ciência e a fi
chegou a nós, que é nosso e não o é. Assim, não estamos ainda losofia porque é assim; aquela considera o que é singular, estas o
livres em relação a nosso saber; ele nos possui mais do que o pos universal; a prim eira se funda sobre o sentido, as duas outras sobre
suímos. Só tomando consciência de que somos de certa forma a razão; uma precede, as outras seguem ” , escrevia Johannes Jonsius
mediatizados ( vennitteltes), é que o separamos de nós mesmos.
na metade do século X V I I . Essa disjunção simples, não obstante
A partir de então, começam os a ser livres em nós mesmos e a
discutível, entre a históna c o m o con h ecim en to do singular, do quod
dispor do que era imediatamente nosso conteúdo. Está aí um
grande resultado de nosso desenvolvim ento interior.332
e a ciência (ou a filosofia) c o m o conhecim ento do geral, do ti<r
■
SIÍ’ nào tem apenas valor descritivo. Ela dá a entender que a históna
é impotente para produ zir enunciados de ordem geral. Essa suspeita
J° m G r f U«I Dh ° y“ n ' H 'S‘0 n k ’ °P ' P , 0 6 ' 1 0 7 S° bre a hlstóna c o m o form a dc autoconhe- Johann G ottfned H erd er, V ersta n d u n d E rfa h n m g . E in e M e la k r in k z u r K n li k der rem en 1 11
« * * 0 . cf. cambem as cons.deraçôcs de Emst Cau.rer, E ssa, sur r h o m m e , op. cap. 10.
partc' 1 7 g 9|, in Sám tlich e W e rk e . 1881, t. X X I . p. 59.
120
121
A PLURALIDADE DO PASSADO
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia
Ranke) contam os acontecimentos “ de maneira contingente, exa- século, algumas vozes discordantes se fazem ouvir. Em pnmeiro lugar,
tamente com o se apresentam a eles, em sua particulandade, sem aquela de W ilh elm D ilth ey, que se dedica a dar uma envergadura
relação e sem pensamento” , e que semelhante história “ não seria filosófica à reflexão da histonografia alemã do século X I X . 31" Em sua
mais que a representação de um fraco de espírito, nem mesmo um longa existência, situada sob o signo de uma incansável vocação, e por
conto de fadas para crianças” .335 Alguns decénios mais tarde, Bene- isso não isenta de algumas retratações dolorosas, ele jamais se afastou
detto C roce fala abertamente de uma historiografia sem problema de um ponto firm e: o m undo históneo é produtivo, e essa qualidade
histórico: após ter deixado escapar, en pa ssa n t, que R an k e tem “ um não é fruto de um prin cípio absoluto, transcendente ou imanente à
ntm o pouco rápido de vida in terior” , regozija-se de que a figura atividade humana, mas da ação recíproca dos indivíduos. Em 1883,
do “ histonador desprovido de filosofia cede o passo àquela, bem escreve que “ essa totalidade maravilhosamente entrelaçada que é a
diferente, do filósofo” .336 históna é constituída pelos indivíduos, unidades psicofísicas, cada um
diferente de todos outros e capaz de formar um mundo. A queda
C o m o é muitas vezes o caso, a antipatia entre os dois campos
d água se com põe de partículas homogéneas que se entrechocam, mas
é recíproca. Desconfiados das generalizações abstratas, numerosos
uma simples frase, que, no entanto, não é mais que um sopro saído
de nossa boca, abala, graças ao jo g o dos motivos que suscita em uni
Os textos de Jonsius e de Deslandes são citados p o r M a n o L o n g o , in H isto ria e philosophiae philoso-
dades profundamente individuais, toda a alma de uma sociedade em
phica, op cii , p 75-94 A propósito da polém ica sobre a históna no fim d o século X V I I , cf. Paul
Hazard, La crise de la consam cc européenne, 1680-1715 (1935), Paris, Fayard, 1961, cap. II. qualquer parte do m u n d o” .339 V in te e sete anos mais tarde, durante
G eo rg W ilhelm Fnednch H egel, Encyclopódie des sciences p h ilo so p h iq u es en abrêgí (!830), traduzido uma sessão plenána da Academ ia das Ciências de Berlim, volta, uma
do alemao por M aunce de Gondillac, Pans, Gallimard, 1970, § 5 4 9 , p. 467.
Benedetto C roce, L ’H istoire com m t pensêe et com m e action (1938), traduzido d o italiano por Jules
< h íix R u y, Genebra. D roz, 1968, p 102. A preguiça conceituai da história foi por muito tempo
Leopold von R anke, “ M anuscnt des années 1830” publicado por Eberhard Kessel
'! r .u p i.* , disciplinas sociais mais jovens. M esm o adm irando a obra de Fustel de Coulanges,
Zeilschrift, 1954, 178, p. 292-293. .
A lírtJ R R adcliffe-B row n (Stm cture et fo n ctio n d a m la sociète p rim itive, traduzido do inglês por
- Cf. Giuseppe C acciatore, -‘D ilth e y e la stonograf.a tedesca d e lT O tto cen to’ . S tu d , s to n a . 1 . .
Françoise e Louis Mann. Pans. Édinons de M inuit, 1968) afirma o prim ado da sociologia, que «n a
■ *p ^ J c enunciar proposições gerais, sobre a história e a etnografia, as quais só podenam formular p. 55-89. . .
aíinnaçoes particulares ou fatuais. Alguns anos mais u rd e, C lau de Lévi-Strauss (L a Pensée sauvage, Wilhelm D ilthey, Intro d u ctio n a u x sciences de 1'esprit (1883), dans Critique^ de /a m s ^ ^
, lio n , 1 p 3 4 2 ) estima que o có d igo da históna consiste numa cron ologia: ‘ Toda sua introduction aux sàences de 1’esprit et autres te x te s , traduzido d o alemao por Sy vi
u iig ir u t d j ik c sua especificidade estão na apreensão da relação do antes e d o depois” . Edicions du C eri, 1992, p. 186 e 195.
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A HISTORIA A PLURALIDADE d o p a s s a d o
vez ainda, à significação e à tarefa das ciências históricas. Especifica, tempo após seu casamento com Kãte Piittmann, a consciência não é
assim, que a demarcação entre as ciências do espírito ( Geistesunssens- a única realidade, pois no mais profundo dos homens existe intensa
chaften) e as ciências da natureza (N aturuH ssenschaften) não é de ordem riqueza subterrânea: “ Discernim os em nós mesmos uma vivacidade
ontológica, mas sim transcendental: trata-se de uma distinção que não psíquica extremamente variada [...], à imagem das plantas, cujas raízes
concerne aos objetos, mas à experiência, que deriva de um fato de se estendem em profundidade no solo, enquanto apenas algumas folhas
consciência, desse sentimento íntim o pelo qual nos sentimos diferentes despontam” .344 Alguns anos mais tarde, desenvolve seu pensamento
da natureza.340 Em apoio de suas convicções, afirma: evocando a irracionalidade do caráter humano, manifesta em todo
herói, em toda verdadeira tragédia, em numerosos criminosos, mas
A vida histórica é criadora. A g e constantemente produzindo
bens e valores, e todos os conceitos desses bens e desses valores
também presente na vida de todos os dias:
não são mais do que reflexos de sua atividade. Os suportes dessa
N ã o há nada a fazer, não somos um aparelho que busca produzir
criação constante de valores e de bens no m undo espiritual são
prazer regularmente e impedir o desprazer, avaliando valores
indivíduos, comunidades, sistemas culturais em que os parti
de prazeres uns em relação aos outros, e conduzindo assim as
culares colaboram.341
volições para a soma acessível do prazer. Para um aparelho deste
Para exprimir a relação vital que liga os seres humanos entre si e os tipo, a vida seria evidentem ente racional, mesmo um exercício
de cálculo. Mas não é assim. [...] não buscamos evitar o desprazer,
leva a deixar sua marca no mundo, D ilth ey elabora o conceito de
mas o exploramos até o fundo, meditamo-lo sombriamente, com
W irkungszusam m enhatig, termo com plexo em alemão e dificilmente
misantropia; arrastados por obscuras pulsòes, colocamos em jo g o
traduzível em outra língua (dynam ic u n ity , ensem ble interactif, connessione
nossa felicidade, nossa saúde e nossa vida para satisfazer nossas
ditiamica).34_ Diferentemente da conexão causal, que rege o mundo
antipatias, sem levar em conta o ganho de prazer.145
da natureza, a conexão dinâmica está ligada à vida psíquica e procura
significações, produz valores, enfim , realiza objetivos: “ A célula pn- Essa convicção absoluta deslanchará a controvérsia com os filósofos
mitiva do mundo histórico é a experiência vivida (Erlebttis), na qual que intelectualizam os fatos de sentimento e de desejo: “ Nas veias do
o sujeito tem por m eio o conjunto interativo da vida. Esse m eio age sujeito cognoscente tal c o m o L ock e, H um e e Kant o construíram,
sobre o sujeito que, por sua vez, age sobre ele” .343 não é sangue de verdade que corre, mas uma seiva diluída de razão,
concebida co m o única atividade do pensamento” .34,1 A expressão
II “ciências do espírito” , que escande alguns dos textos mais célebres de
Dilthey, pode evocar, sobretudo no leitor de hoje em dia, imagens
Quando Ddthey fala do indivíduo, não se trata de uma entidade
incorporais e cerebrais da existência. Mas certamente não era essa
espiritual nem de um ser racional. C o m o escreve nos anos 1870, pouco
sua intenção. D ilth ey em prega o term o “ espírito” (G eist) para exaltar
3 capacidade criadora d o ser humano. C o m o recorda numa nota
i ma in trod u ção geral à filo so fia de D ilth e y , cf. e s p ecia lm en te B e m a r d G ro e th u y s e n , “ D ilthey bastante tardia, trata-se de uma noção imperfeita, já que os fatos da
et son e c o le " , in La Philosophie allem ande au X I X e siècle, Pan s, A lc a n , 1912, p. 1-23; H erb ert A.
o d g e i, Hi, 1’hilosophy o f D ilth ey, L o n d res, R o u t le d g e & K e g a n Pa u l, 1952; P ie t r o R ossi, Lo
*> ii*nlem poranio , T u n n , E in audi, 1957; R a y m o n d A r o n , L a P h ilo so p h ie critique de 1’hisloirr.
“ W ilhelm D ilth e y , E rken n tn isth eo retisch e F ragm ente (1 8 7 4 -7 9 ), in G esam m elte S clm fien . Stuttgart/
•SOI sur une lheone allem ande de 1'histoire. Pans, V n n , 1964; S y lv ie M e s u r e , D ilth e y et la fondatw n
V'
i
124
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE d o p a s s a d o
vida espiritual não estão destacados da unidade viva ( Lebenseinheit) como uma condição áspera e inelutável da experiência humana: “ A
psicofisica da natureza humana, resistência tom a-se pressão, a realidade parece nos cercar por todos
os lados com muros que não podem os transpor. E que muros ela
[...] mas qualquer outra designação aplicada a este grupo de ciências
não opõe diretam ente a nossos desejos! C o m o pesam sobre nós!
suscita reticências consideráveis. Assim acontece igualmente com
Veja-se Schiller quando aluno da Academ ia militar” .351 E, quando
a designação das “ ciências da cultura” [...]. Exprime-se aí uma
concepção demasiado benevolente e otimista da realidade humana, reprova a H e im H e lm h o ltz e Eduard Z e ller o fato de definirem a
na qual os obscuros instintos que levam a opnnur-se e destruir-se realidade com o uma simples projeção do pensamento, observa que
reciprocamente desempenham um papel muito importante.547 o primeiro germ e da distinção entre o eu e o mundo se inscreve na
experiência da pulsão e da resistência:
Ele que, na qualidade de historiador e p sicólogo, teve que
levar em conta o h om em em sua íntegra (m it ciem g a n z e n Mens- A realidade (R ca lità t) do mundo exterior não é tirada dos dados
cheri), considera esse ser co m o uma totalidade psicofisica, feita de da consciência, ou seja, deduzida por operações puramente
representação ( Vorstellen), de sentim ento ( G e fiih l), de vontade ( W il- intelectuais. Penso antes que os processos conscientes anterior
le), as três formas essenciais do v iv e r ( L e b e n ), intim am ente ligadas m ente indicados transm item -nos uma experiência da vontade - a
/reagem da intenção - que está implicada na consciência de uma
entre si.,4K Assim, a consciência da distinção entre o eu e o mundo
resistência e que, só ela, nos revela a realidade robusta e viva
exterior não procede somente de um ato do pensamento, mas da
do que não depende de nós.352
própria vida: a realidade perm anece sempre um fen óm en o para a
simples representação, mas aparece c o m o um dado estabelecido e O indivíduo, esse ser sensível, é também fundamentalmente
incontom ável no todo de nosso ser que quer, sente e representa.349 social e sociável: não é a existência singular e isolada que é com
D ito de outro m odo, o eu só percebe a presença de uma realidade
preendida no co n c eito de e g o , não é uma substância impermeável,
bem distinta, autónoma, quando se depara com algo que resiste a
mas trata-se de “ um con ju n to que encerra em si, a cada vez, os
ele. Por vontade’ não entendo o ato de querer enquanto situação
sentimentos vitais dos outros indivíduos, da sociedade e, mesmo,
de consciência, mas antes a atividade de que posso ter consciência e,
da natureza” .353 A e x e m p lo de W ilh e lm von H um boldt e de O tto
precisamente, em suas diferentes posições em relação àquilo de que
Hintze, D ilth ey sublinha a dependência essencial do ser humano
ela se distingue. Sinto-m e ora condicionado, ora tom ado de assalto,
que não está jamais em condições de ser autossuficiente. E um
ora sujeito a, ora numa atitude de aspiração e de c on tro le” , como
escreve num ensaio sobre a psicologia descritiva em 1880.35(1 Nos ponto quase m ístico” . M ergu lh ad o desde sempre num universo de
anos seguintes, D ilthey não parou de apresentar o exterior, o fora, relações, ligado à mãe b em antes do nascimento, vive na necessidade
incessante do outro: “ [E le] se m antém numa contínua relação de
trocas espirituais e assim com pleta sua vida própria graças à vida de
V II ' ^ u s à ,: c "rMm A u jb a u der geschichtlichen W e h , in G e sa m m e lte Schriften, o p . cit., vol.
outrem” .’ 34 Sua existência só se realiza na coexistência - nas relações
r - - - h c t r o R o ssi, Lo storicismo contem porâneo, op cit.. p. 6 3 - 6 6 , o b serva q u e , para D ilthey,
I n cim en to d o h o m e m ao m u n d o h istó ric o -s o c ia l n ã o e x c lu i a re la ç ã o c o m o m u n do da
* |uc %u.i rtiu s:i d e aplicar os crité rio s das ciên cia s naturais às ciên cia s d o espírito não
^ im p lica necessariam ente uma esp in tu alização da h u m a n id a d e. W ilhelm D ilth e y , Bcitràge z u r L o su n g der Frage rom U rsprung unsercs G laubens u n d der R e a h ta t der
W ilh e lm Dilihc-y, Inim ductw n a u x sciences de l'esprit, op. r ir , p. 9- 1 0 , Cf. certas p r o p o s i ç õ e s análogas A iusenuvti u n d seitieti R c c h l, op. cif., p. 110.
m, 3m Jam" r A r e w e autom ata?” , M in d , 1879, p 1 -2 2 ). para q u e m a e n e rg ia da psique não p. 109-110. H m Intro d u ctio n a u x sciences de Vesprit, op. cit., D ilth e y faz um a distinção
. P d.i ip cn a j n o n ív e l c o g n it iv o , p o is c o m p o r ta fa tores in c o m e n s u rá v e is , tais c o m o as realidade qu e nos é in a c essíve l { W M i c h k e i t ) e a realid ad e q u e possuím os {R eahtat).
v o l , ç o « . as e m o ç õ e s corpora.s e as p ercep ç õ es sublim inares.
W ilh elm D ilth e y , A u s a r b e itu n g der d eskrip tiven Psychologie, op. cit ., p. 177.
iBrelm D ilth e y , Croyance à la vérité du m o n d e extérieur (1 8 9 0 ), in L e M o n d e de fe s p n t , traduzido ' Wilhelm D ilth e y , V É d ific a tio n d u m o n d e historique. op. cit., p. 107. S o b re a p erc e p ç ã o d o m u n d o
d o alem ao p o r M . R é m y , Pans, A u b ie r. 1947. p. 101 -102.
extenor n o c im o da v id a e m b n o n á n a , cf. W ilh e lm D ilt h e y . C royance d la rén té du m onde e x >h ' e'1' ’
x v i n * p " ) " r * d n d<’SÍ" ' P" W " (p o r vo lta d e 188 0), in G esa m m elte Schriften.
°P- ní-, p. 2 3 6 -2 3 7 . Esse p o n t o será ig u a lm e n te re to m a d o p o r N o r b e r t Elias, L a S o a ité des tn m us,
127
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia
A PLURALIDADE d o p a s s a d o
entre pais e filhos, homens e mulheres, soberano e súditos. Mas está incluído de form a alguma que, em todas as modificações,
essa coexistência, ou essa com unidade ( G eselschaft), não é formada perdure algo de semelhante a si mesmo.
^ Briefweiltsel zwischen W ilhelm D ilth e y u n d dem G ra fen P a u l Y orck von W a rten b o u g , o p ■ cit-, P ' humaines et neurosciences, 2 0 0 5 , 12, p. 8 8 -9 5 : “ D e fin ir o h o m e m c o m o ípseidade e n ão mais c o m o
N ik o la ie v itc h T o ls to i, J o u m a u x et cam ets , tr a d u z id o d o russo p o r G u sta ve A u c o u t u r i e r , sujeito im p lica a passagem da n o ç ã o d e eu à q u ela, re fle x iv a , d e si .
illin u rd , 1980, t. 2 (1 8 9 0 -1 9 0 4 ), 19 d e fe v e r e ir o d e 189 8, p. 644 . W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 234.
129
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is tô o ia
A PLURALIDADE DO PASSADO
em virtude das estimulações exteriores. A o contrário, é “ uma in a verdade, o mais importante, desta realização. Um a alma assim
teligência que pressente e que pesquisa” . E le faz de si mesmo seu formada aparece co m o o que há de maior entre as realidades
centro, e além disso se interroga, pensa e escolhe. A medida que sua terrestres, e e nesse espirito que G oethe designou a personali
vida psíquica se intensifica, vê-se capaz de con trolar as energias, de dade c o m o o bem supremo dos homens.363
" C f . Jacques K o m b e r g , “ W ilh e lm D ilt h e y o n th e S e l f a n d H is t o r y : S o m e T h e o re tic a l R ° ° B * ^ W ilh elm D ilth e y , L 'É d ific a tw n d u m o n d e historique, op. cit.y p. 1 22 .
Getstesgeschichle", Central European H isto ry. 5. 1972, p. 295-317. W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 181.
130 131
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PlURAUDADE DO PASSADO
em conta uma sensação, mas um eu que sente: “ A vida psíquica é o temor de que os fatos possam ir-se daqui e de lá, cada um de seu
originalmente e em toda parte, de suas form as mais elementares às lado, sem direção precisa. O m undo está sob pressão há tempo demais:
mais elevadas, uma unidade. N ã o é feita de partes; não se compõe após a R evolu ção, o capitalismo demonstrou sua potência ilimitada,
de elementos; não é um com posto, não é um resultado da colabo as massas atulham cada vez mais o mundo sem por isso tomarem-se
ração de átomos sensíveis ou afetivos: é uma unidade primitiva e mais decifráveis, a história vai sempre mais rápido... N os anos 1890,
fundamental” .366 Em 1910, ainda, precisa: escreve com acentos proféticos que “ a decadência dos grandes povos
civilizados da Europa” com eçou .369 T reze anos mais tarde, a flutuação
N o curso da vida, cada experiência vivid a particular é remetida
cultura] faz eco à incerteza social: a metafísica não é mais possível,
a uma totalidade. Esse conju n to vital não é uma soma ou uma
a filosofia é incapaz de p ropor qualquer afirmação, a estética vive
adição de m om entos sucessivos, mas é uma unidade consti
em plena anarquia, a arte figurativa não conhece mais o código da
tuída por relações que religam todos os elementos. A partir
do presente, percorrem os de maneira regressiva uma série de beleza ideal, a poesia perdeu sua aura. Resta a consciência histórica,
lembranças até o ponto em que nosso pequeno eu ainda não sem dúvida alguma o resultado essencial das transformações dos dois
fixado e form ado se perde nos lim bos, e a partir desse presente séculos precedentes, que conduziram à beira do abismo do relativismo:
lançamo-nos em direção a possíveis inscritos nele e que tomam
U m a contradição aparentemente insolúvel surge quando o
dimensões vagas e longínquas.’ 67
sentimento da história é levado a suas últimas consequências.
A finitude de tod o fenóm eno histórico, seja uma religião, um
III ideal ou um sistema filosófico, e, por conseguinte, a relatividade
de toda interpretação humana da relação das coisas é a última
A faculdade teleológica não é nem um p ou co excepcional, ela palavra da concepção histórica deste mundo, onde tudo flui,
denva da experiência com um . Mas, de acordo c o m Dilthey, só se onde nada é estável. Em face disso erguem-se a necessidade que
revela plenamente no grande h om em . P od e-se mesmo dizer, sob o pensamento tem de um conhecimento universalmente válido
e os esforços que a filosofia faz para chegar a ele. A concepção
certos aspectos, que está aí o segredo da grandeza: “ Cada vida, por
do m undo ( Weltanschauung) histórica libera o espírito humano
sua estrutura intema, é formada, já sobre o plano físico, de contrastes.
da última cadeia que as ciências da natureza e a filosofia não
E cada vida é um processo de recom posição. O s contrastes históricos
quebraram, mas onde encontrar os meios para superar a anarquia
[...] requerem uma força sintética, dina m esm o sobrenatural, que só
das convicções que ameaça se difundir?37"
os heróis possuem".36" C on ven cid o de que o ser humano é esponta
neamente inclinado a dar uma significação, um valor à vida, Dilthey Nos m om en tos de desencorajamento, quando a sensação de
é otimista: não receia soçobrar incessantemente na confusão e na desfiamento o tom a, D ilth e y busca, ele também, o antídoto no
dispersão. Acontece-lhe, porém , p or vezes anotar com tonalidades grande hom em , aquele que está disposto a partilhar seu eu com
mais dramáticas as discordâncias da história. Assom bra-o a dúvida e seus contem porâneos. R e s o lv id o a defender a todo custo a pos
sibilidade de dar uma form a ordenada à vida histórica, admira os
Ibid., p. 216
estoicos, Santo A g ostin h o , Petrarca, Lutero ou Goethe, figuras de
W ilhelm Dilthey, U É d ific a tw n du m o n d e historique, op. d t„ p. 94-95. Algum as considerações dc seres íntegros, plenam ente mestres de sua existência. Mas é atraído
Dilthey sobre o caráter holístico da psique serão partilhadas pela psicanálise freudiana, mas também sobretudo p or sua força sintética, sua aptidão a prestar atenção nos
pela psicologia analícica de Cari G u stavju n g e pela psicopatologia fen om en ológica de Karl Jaspe*1
cf. Picter Com elius Kuiper, “ Diltheys Psychologie und íhre B ezieh u n g zur Psychoanalyse', ’■
1965. 1 i, 5. Sobre esse ponto, ver igualm ente Jiirgen Habennas, C o n naissance et intèfêt (1
Wilhelm D ilthey, Leben u n d E r k e n n e n , op. d t ., p. 379.
^ traduzido do alemão por Gérard C lém en çon , Pans, G allim ard, 1976.
^ ilhelm Dilthey, Discours d u so ixa n te-d ixièm e annivenaire (1903), in Lr M onde de l esprit, op. cit., p 15.
Bnefwechsel zw iscben W ilhelm D ilth e y u n d d em G ra fen P a u l Y orck vo n W a rten b o u ig , op. d l-, P- 61
133
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ò b a A PlURAUDADE DO PASSADO
diferentes pensamentos vitais, sua capacidade de recom pô-los e entre si, im pregnam o in d ivíd u o de ideias, de em oções, de imagens
aliá-los num conjunto harm onioso: heterogéneas. N o fundo, não há contradição entre dependência e
autonomia. A o contrário, poderíam os dizer, sob certos aspectos,
O gênio próprio ao soberano ou ao h om em de Estado faz
que a autonomia está fundada na dependência. C o m o escreve num
mesmo os fatos refratários entrarem numa unidade teleológica
ensaio de 1890, experim entam os, a cada m om ento de nossa vida,
permitida por sua coordenação. [...] Assim, é necessária a ação
do gênio para construir, a partir do que é originalmente divereo, "que o ‘ eu qu eren te’ se revela au tónom o sem deixar de estar entra
ou seja, a partir de elem entos e de suas relações particulares, a vado em suas volições, o que lhe confere um caráter condicional e
unidade que chamamos o espírito de uma época.’ 71 dependente” .374 O in d ivíd u o é tanto mais capaz de se afirmar com o
sujeito e de sentir, p o r conseguinte, prazeres e dores, quanto mais
Infelizmente, o desejo de salvaguardar o sentido unitário do mundo
é alimentado p elo m undo: tom a-se um sujeito psíquico ativo, in
engendra imagens um p ou co afetadas demais. Especialmente em
dependente, capaz de elaborar as solicitações da realidade exterior,
seus ensaios históricos, reina c o m o que alguma coisa de irreal. Ele
graças à sua relação c o m os outros. Nessa perspectiva, a socialização
peca talvez por excesso de sagacidade, de vontade, de saúde psíqui
não tem apenas esse e fe ito de h om ologação e de homogeneização,
ca, sobretudo para um filósofo capaz de apreender, desde os anos
tantas vezes dramatizado no século X X (de Erving Goffinan a M ichel
1870, as sombrias turbulências do inconsciente. Pode-se certamente
Foucault), mas é em p rim eiro lugar um processo de diferenciação:
reprovar-lhe alguns passos estilísticos em falso e uma profusão de
adjetivos: “ U m coração in trépido” , “ im b u íd o do sentim ento de sua os indivíduos se distinguem uns dos outros justamente ao interio
própria força” , “ nascido para agir e d om in ar” e assim p or diante.1'2 rizarem as normas sociais e as regras institucionais.375
à outra, e menos ainda duas figuras de hom ens?” .373 humano mais am plo que o simples espaço biográfico. Elas existiam
^ Para Dilthey, a possibilidade de “ perm anecer para si m esm o" antes de nós e continuarão após nós:
não é inata. Ela é fruto da coexistência, n o espaço e no tempo, [Elas] agem c o m o costumes, condutas, e, através de sua apli
e diferentes conjuntos interativos: os grupos, as comunidades, cação ao in divídu o, enquanto opinião pública, em virtude da
as instituições, frequentem ente em com p etiçã o ou em conflito
r h n lo J lr * j CèmrT ~ ll,n sld crjÇÕes cndcas nesse sentido em " T h e R e la tio n betw een Psy- tensifica o laço social: cf. " L ’ individualism e et les intellectuels" (1898), dans L a en te soaa e e
1940 V n " p 430* 443 ^ ^ o f W llh e lm U llth e y ". S tu d ie s in P h iio so p h y a n d Social Science. l aciion, Pans, P U F . 1987, p. 274. O laço entre individualização e socializaçao sera em segui
retomado por N o rb e rt Elias, La S o a é té des in d ivid u s, op. à t . , p. 37-56. para quem a sou e e nao
|o±unn C . x t f r v j Herder, Id íts p our la philosophie de 1'histoire de 1 'h u m a n ité, op. cit., t. II. p. 1 tem somente a função de igualar e norm alizar, mas tam bém de individualizar.
134 135
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA
A PlURAUDADE DO PASSADO
outros tempos: "N um erosas são em nós as possibilidades da vida contrário, guarda nela as consequências dos influxos recebidos,
m esm o após a chegada de influxos de sentido oposto: segundo
em relação à m em óna e ao querer p rojetad o para o porvir, [...] àe
tal forma que nossa imaginação vai além do que podemos viver
Wilhelm D ilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u n i A u jb a u der geschichtliclien W elt in den G eistwissenschaften
(1907-1910), in G e sa m m e lte S c h n fte n , op. cit., t. V II, p. 194, 259. Sobre o tem po real, cf. igual
W ilhelm Dilthey, L É d ifu a tio n du m onde historique, op. cit., p. 8 8 . mente W ilhelm D ilthey, S tu d ie n z u r G ru n d leg u n g der G eistw issenschaften (1905-1910). in G esam m elte
^ W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de l ’esprit, op. cit., p . 2 2 4 . Schnften, op. cit, vo l. V II, p. 70-75.
dh elm D ilth ey , L Édification du m onde historique, op. cit., p. 118. O gru p o a que Dilthey atribui a Wilhelm D ilthey, L eb en u n d E r k e n n e n , op. cit., p. 357.
nw.- ^ n e capacidade de unificar a experiência é, sem dúvida alguma, a geração, entendida como Segundo Herbert Blurner, " A ação específica tem lugar no seio de uma situação e se refere a
restnto de indivíduos que, no curso de seus anos de form ação, foram confrontados a c csta l- -]: qualquer que seja a unidade — um indivídu o, unia família, uma escola, uma igreja* uma
inl 1,05 niesmos acontecim entos. Ela e x p n m e uma relação de con te m p ora n eid a d e do» empresa, um sindicato, etc. - cada ação específica se forma com base na situação no seio da qual
, UOS Essc Ponto serí retom ado por Sigfried Kracauer, V H is to ir e : des a n m t-d e m iè n s clioírs * desenrola": H erbert Blum er, S ociety as Sym bolic Interacton, in A m o ld M . R o se (dir.), H u m a n
* ra^ ,IZ1^0 do inglês por Claude O rsom , Paris, Stock, 2006, cap. 1. Beliavior a n d social Processes: A n Interaction A pp ro a ch , Boston, H ou ghton M ifflin, 196-, p. 187
136
O PCQUENO X - Da BIOGRAFIA k HISTÓRIA
A PLURAUDADE DO PASSADO
a bela frase de Schleierm acher que diz que nela nada perece. É E co m o a organização política contém em si uma diversidade
por esta razão que ela pode se desdobrar.'82 de comunidades que descem até a família, a vasta esfera da vida
nacional com preen de, ademais, comunidades, conjuntos mais
Enquanto isso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade restritos que têm em si seu m ovim ento próprio. [...] Cada um
ou uma instituição e uma época ou uma civilização não é definível em desses conjuntos interativos está centrado sobre si mesmo de
termos de pertencimento. Sem dúvida, toda época exprime uma figura uma maneira particular e é aí que se encontra fundada a regra
dominante. É unilateral e, em certos m om entos, a consonância entre interna de sua evo lu çã o.,86
o conjunto da história sob a form a de relações lógicas entre forças agem muitas vezes a seu lado. As resistências do século
pontos de vista hom ogéneos. Assim, os hegelianos estragaram precedente se fazem sentir. As forças ligadas às situações e às
a inteligência da filosofia m oderna pela ficção segundo a qual ideias anteriores são particularmente ativas, mesmo se buscam
dar-lhes uma form a n ova.388
os pontos de vista decorreriam logicam ente uns dos outros.
Em realidade, uma situação histórica con tém inicialmente uma
De certa maneira, D ilth e y desenha o tod o histórico com o um
diversidade de fatos particulares. Refratános, estes são simples-
385
conjunto maleável, con flitu oso, no seio do qual coexistem forças
mentejustapostos e não se deixam recondu zir uns aos outros.
discordantes que se rebelam contra a unidade forçada do Zeitgeist:
Uma civilização não constitui, portanto, uma entidade compacta e Não se trata de uma unidade que seria exprim ível por uma ideia
não é feita de uma única substância, redu tível a um princípio pri fundamental, mas antes de um conjunto que se edifica entre as
mordial. D eve antes ser com preendida c o m o um entrelaçamento tendências da própria v id a ” .389 D efinitivam ente, as considerações
ou uma mistura instável de aspirações diferentes e de atividades que de Dilthey sobre a natureza heterogénea e descontínua do tem po
se contradizem. Acolhe diversos conjuntos interativos em perpétuo Histórico propõem uma im agem musical da relação entre as partes
139
O PEQUENO x - Da b io g k a fia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO
e o todo, num jo g o in fin ito de harmonias e de dissonâncias não compreender um ed ifício observando cada um dos tijolos que o
previsíveis: não existe um núcleo ún ico, que seria ao mesmo tem compõem, exam inando o cim en to e identificando a mão de obra
po a melodia e o acom panham ento (o século das Luzes), mas uma que o construiu, pois o que im porta verdadeiramente é a orde
alternância de temas que se encadeiam e se entrecruzam.390 nação arquitetural. O m esm o se dá com a vida. N ã o podemos
decompô-la em m il pedaços, precisamos apreender sua conexão
V psíquica dom inante: “ T o d a vida tem seu sentido próprio: ele reside
na conexão significativa n o seio da qual cada m om ento evocado
Desejoso sobretudo de descobrir as diferentes maneiras como a possui seu p róp rio va lo r e tem também [...] uma relação com o
humanidade realiza sua liberdade interior, D ilth e y volta muitas vezes sentido da totalidade” .393 Infelizm ente, não se trata mais aí de um
à biografia, a forma de historiografia mais filosófica segundo ele: edifício, e a tarefa é b em mais árdua. A conexão psíquica dominante
se exprime plenam ente na duração, já que é uma “ forma gravada
É a vontade de um h om em , em seu desdobramento e em seu
destino, que é aqui apreendida em sua dignidade como fim em que se desenvolve v iv e n d o ” ; p or conseguinte, não podemos com
si, e o biógrafo deve perceber o h om em sub speàe aetemi, tal preender plenam ente o in divíd u o, p or mais próxim o que esteja,
com o ele mesmo se sente nos m om en tos em que, entre ele ea senão observando c o m o ele se tornou o que é. É por essa razão que
divindade, tudo é tão som ente transparência quase não velada, Dilthey se pergunta, repetidam ente, se a biografia não assume todo
signos e intermediários, e em que se sente tão próximo do céu seu sentido som ente na idade adulta, quando o processo de indivi
estrelado quanto de qualquer parte da terra.391 duação é com pletado. Considera m esm o a necessidade de esperar
o fim do curso da vida: talvez som ente na hora da morte pode-se
Desse ponto de vista, a biografia p rivilegia o grande homem na
contemplar a totalidade de uma vida. Em todo caso, cada elemento
medida em que esse é capaz de am algam ar experiências duráveis.
particular da existência adquire uma significação essencialmente
Mas tal propensão não é nem um p o u co exclusiva. E possível contar
por sua con exão c o m a totalidade. Nessa perspectiva, que será
qualquer vida, da mais insignificante à mais notável, da cotidianidade
mais tarde retom ada p or Hannah Arendt, a verdade e a significação
aos mais altos feitos: “ A família guarda suas lembranças, a justiça
(.Bedeutung) não coin cid em : a primeira descreve um pensamento,
criminal e suas teorias nos fazem con h ecer a vida de um malfeitor,
uma sensação ou uma ação, enquanto a segunda indica a relação
a patologia psíquica a de um anormal. Cada elem en to humano se desse pensamento, dessa sensação ou dessa ação com uma vida em
toma para nós um docum en to que nos apresenta algumas das pos seu conjunto (pessoal ou histórica). E, na biografia, assim com o na
sibilidades infinitas de nossa existência” .392 história, é a significação que d eve predominar, uma vez que uma
A dizer a verdade, no que con cern e à biografia, Dilthey coloca miríade de fatos verdadeiros não basta para nos revelar uma vida:
uma única condição: considerar o ser hum ano em sua íntegra. Se como escrevera, uma v e z ainda, G oeth e, “ um fato de nossa vida
o eu é holístico, a biografia tam bém d eve sê-lo. N ã o chegam os a não vale por ser verdadeiro, mas porque significava alguma coisa’ .394
140
O PEQUENO X - Da BIOGRAflA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO
estética, toma por alvo de suas críticas “ todas as finezas artificiosas que invoca não é mais G oeth e ( T u d o se liga a isto: para fazer alguma
que gostariam de separar o belo da experiência da vida” . Para ele, o coisa, é preciso ser alguma coisa” ), mas Shakespeare, que, pela voz
poeta é uma alma impregnada de vida: “ E preciso procurar antes de de Hamlet, recorda que o fim do drama sempre foi “ tanto na ongem
mais nada o fundamento dos efeitos específicos do poeta no ambiente, quanto agora apresentar de certa forma o espelho à natureza; mostrar
na riqueza e na energia de suas experiências” .3yi Essas estão inten à virtude seus próprios traços, à vergonha sua própria imagem, ao
samente vivas tanto na matéria quanto n o estilo, já que existe uma século e ao corpo do tem p o a impressão de sua forma” .4u0
relação estreita entre o estado psíquico que engendra a obra poética A relação entre a obra de arte, a biografia e a história, porém,
e a forma que lhe é própna: “ As imagens e suas relações ultrapassam, está longe de ser simples: cada uma das linhas das A finidades eletivas
por essa razão, a experiência vivida ordinária; mas o que nasce dessa foi vivida, mas nenhuma delas é tal com o foi vivida.401 Nesse senti
forma representa, entretanto, essas experiências, ensina a captar suas do, toda catalogação biográfica é inadequada. N ã o basta repertoriar
significações e a aproximá-las de nosso coração” .391’ Contrariamente os hábitos do poeta, reconstruir suas frequentações ou escutar as
ao que afirma M areei Proust, exatam ente na mesma época, a obra declarações de seus am igos, c o m o pensava Sainte-Beuve. É mesmo
de arte não é para D ilthey o fruto de ou tro eu, mais profundo, que inútil interrogá-lo sobre o que pensa de tal ou tal coisa, porque a
escaparia, e mesmo se recusaria à experiência de vida.39 Para ele, inteligência artística é inconsciente, muitas vezes incapaz mesmo
nenhum abismo separa o poeta do h om em . M ais ainda, Hyperion é de se explicar: “ O trabalho criador do poeta repousa em toda parte
Hòlderlin, Empédocles é H õlderlin: m esm o distanciamento da agi sobre a energia c o m que v iv e as coisas. Em sua organização, que
tação do mundo, mesmo peso do passado... “ Se essa fórmula é um oferece poderosa ressonância aos sons da vida, a noticiazinha sem
pouco estreita, temos mesmo assim o d ireito de dizer: é somente na alma de um jorn al, na rubrica “ O m undo do crim e” , o seco relato
medida em que um elem ento psíquico, ou uma combinação de tais de um cronista ou a lenda grotesca se transformam em experiência
elementos, está em relação com um acontecim ento vivido, e com vivida” .402 M o za rt abandonava-se às impressões suscitadas pela vida,
a representação deste, que ele p od e ser elem en to constitutivo da como um peregrin o em terra estrangeira, com um prazer profundo
poesia” .3'1" Mas há mais. Porque o poeta não v iv e nas nuvens, sua e em toda liberdade. O mesmo poderia ser dito de Lessing, de Goethe,
obra tem igualmente sua historicidade e, em certos casos, exprime de Novalis e de H õ ld erlin , os elos do m ovim en to espiritual alemão.
as inquietudes de toda uma geração: “ A arte pinta o céu e o infemo, Ei-los, in d e fec tiv elm e n te im pregnados das vivências mais dispa
os deuses e os fantasmas com cores emprestadas à realidade. Ela se ratadas, “ pois a vida de um h o m em está tão entrelaçada com os
contenta em intensificar os elementos desta” .399 Dessa vez a referência destinos de m uitos outros que um dia ele os vê subitamente com
uma força visionária em face dele para, em geral, voltar a perdê-los
no tumulto do m u n d o, ou senão é tocado de maneira mais efém e
W ilhelm Dilthey, L 'Im a g itia tio n d u p o è te , op. cit., p. 115.
Ibid., p. 94 e 164. A esse propósito, C f tam bém Hans G e o r g G adam er, Vèritè et méthode. Lb
ra, talvez som ente pela expressão de um indiferente ou a notícia
grandes lignes d une herm éneunque p h iloso p h iq u e (19 60 ), tradu zido d o alem ão por Pierre Fruchon,
Jean Grendin e Gilbert M erKo, Pans. Édm ons du Seuil, 1996, p. 325-329.
Mareei Proust, C ontre S a in te-B eu v e, op. a t . , p. 121-147. Wilhelm D ilthey, U lm a g in a tio n d u po ete, op. n t . , p. 163. C f. W illiam Shakespeare, H a m le t, ato
Hl, cena II, linhas 19-23. N o curso d o discurso p rofen d o em Viena, em 1936, por ocasião dos
W ilhelm Dilthey, L Im agm ation du poète, op. cit., p. 104. C f. igualm ente as proposições sobre i
cinquenta anos de H erm ann B roch , Elias C anetti definiu o escritor co m o um fin o cão de caça,
filosofia considerada com o uma essência viva, “ um organ ism o alim entado pelo sangue de um
filósoto": W ilhelm Dilthey, D asgeschichtliclie B e w u sstsein u n d d ie W cltanscliauungen. in C esa m m * tendo o vício de m eter o nariz nos recônditos de sua época.
Schrifien, op. cit . vol. V III, p . 30 sq. Sobre a ligação entre experiên cia vivida e visão filosohu, Recentem ente, A m o s O z declarou: "Q u a l é a parte da autobiografia e da invenção em minhas
W ilhelm Dilthey, L H istoire de la je u n esse de H eg el in L e ib n iz et H eg el. traduzido do alemao p » histórias? T u d o é autobiografia: se um dia escrevesse uma história de amor entre M adre Teresa c
^Jean-C nstophe M erle. t. V , Pans. Édm ons du C erf, 2002. Abba Eban, sena certam ente uma históna biográfica - em bora nào confessada. Todas as histónas
” * W ilhelm Dilthey, C ontributions à 1’étude d e fin d iv id u a lité (1 8 95 -189 6), in L c m onde de 1'tspM. °P que escrevi sào autobiografias. N en h u m a é uma confissão".
à t. p. 278. Wilhelm D ilthey, L 'h n a g in a tio n d u p o ete, op. d t, p. 60.
142
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO
de u m jornal empanturrado de fatos” .4" ’ Estranho à mentalidade maiores preocupações, fragm entos de imagens incoerentes, o poeta
aritmética do dois e dois são quatro, D ilth e y sabe m u ito bem que negligencia inten cion alm en te os traços contraditórios. Em seguida,
a obra de arte não é uma representação direta e fiel da experiência a intensificação de cada elem en to, a exem plo do que acontece num
vivida, nem mesmo a im itação de uma realidade efetiva, dotada de palco de teatro quando um personagem particular é iluminado por
uma existência independente, mas antes um m o m en to de criação de um refletor (em Shakespeare e Dickens, há “ uma espécie de luz ar
que surge algo de im previsível, que perm anecera até então latente. tificial: as imagens são colocadas sob a iluminação elétrica e crescem
Embora penetrada de vida, a poesia transcende a realidade e se sob a lupa” ).4U6 E nfim , a integração: “ U m a imaginação que apenas
serve da experiência para en n qu ecê-la c o m n ovos temas: “ As ima eliminasse, reforçasse ou diminuísse, aumentasse ou reduzisse, seria
gens e suas com binações se desdobram livrem en te [no poeta] para fraca e não produziria mais do que uma idealidade sem relevo ou
além das fronteiras do re<j/” .404 T u d o se passa c o m o no sonho ou no uma caricatura da realidade. P o r toda parte onde se constitui uma
delíno, dois estados psíquicos em que se realiza “ a livre modelagem obra de arte verdadeira, produz-se um desdobramento substancial
das imagens” . Essa afinidade entre a poesia, a fantasia onínca e a das imagens que receb em um com plem ento positivo” .407
loucura é evidente em Rousseau e em B yron , os mais eminentes
VI
poetas subjetivos dos dois últim os séculos: “ Se lem os a história de
Rousseau a partir desse 9 de abril de 1756, data de sua instalação no Por m uito tem po, D ilth e y acariciou a esperança de apreender
eremitério do parque de L a C h evrette, em que ele ‘ com eçou a viver’, a significação - ou as significações - da vida graças à psicologia: é
até sua morte, que só ela pôs fim a seus sonhos, a suas decepções, e nessa ciência fundamental, entendida com o conhecim ento da ex
mesmo à sua mama de perseguição, é im possível separar seus fan periência vivida (Erlebnis*™) e não co m o ciência experimental, que
tasmas de seu destino” . B yron tam bém “ am plificou fantasticamente devem se fundar a biografia e a história, com o afirma seu ensaio
todos os acontecimentos de sua v id a ” . M as esses não são casos ex Uber vergleichende Psychologie. Beitràge z u m S tu d iu m der Individualitàt,
cepcionais: todas as produções poéticas, m esm o as mais sãs, revelam escrito entre 1895 e 1896 em resposta às críticas de W ilh elm W in -
afinidade com os “ estados psíquicos que se afastam da norma da vida delband e de H ein n ch Ebbinghaus.409 Nesse texto, com o em outros
desperta".4"’ C o m uma diferença, entretanto. Enquanto no sonho, que datam dos anos 1890, a com preensão ( Verstehen) é encarada
na loucura ou no estado de hipnose, a coerên cia da vida psíquica é como um processo de reconstrução psicológica graças ao qual o
diminuída, ela se encontra, ao contrário, aguçada na arte: o poeta intérprete é transposto ao h orizon te de outro. E somente por esse
transcende a realidade para percebê-la de maneira mais potente e movimento im agin ativo — ultrapassando os limites da Erlebnis indi
profunda. Para D ilthey, a transformação poética da realidade se vidual e reencontrando o p róp rio eu no tu - que é possível reviver
funda sobre três operações estéticas (qu e p o d em nos parecer, hoje (nacherleben) e reprodu zir analogicam ente o ato criador de outro
em dia, ligadas demais ao cânone d o classicismo). Em primeiro ser humano (quer se trate do autor de um texto ou do protagonista
lugar, a omissão: diferentem ente d o delirante, que mistura, sem de um fato): “ A preen dem os a vida interior [de outras pessoas]. Isso
W ilhelm Dilthcv, G oethe e t r im a g in a tio n po étiq u e, op. cit , p. 286. Sobre Sainte-Beuve, cf. o capitulo Wilhelm D ilthey, L ’Im a g in a tio n d u p o ète, op. cit, p. 102.
O limiar biográfico” . ‘ " I M ; p. 103. Sobre a poética de D ilth ey, cf. Kurt M iille r V ollm er, Towards a Phenomenological
Theory o f U terature. A S tu d y o f W ilh e lm D ill h e y ’s P oetik, La H aye, M ou ton. 1963.
W ilhelm Dilthey, U lm a g m a tio n du poèle, op. cit., p. 67.
•"Sobre a noção de E rlebnis na reflexã o de D ilth ey, ve r especialmente O tto Fnednch B ollnow ,
Ibid., p 9S A analogia entre a criação artística e o sonho é proposta igualmente por Norbeit
Dilthey. E ine E in fu h n w g m seine P h ilo so p h ie (1936), Schaffhausen, Novalis Verlag, 1980, p. H4 sq.
Elias, M o za rt Soaologie d un génie. traduzido d o alem ão p o r Jeanne Étoré e Bemard Lortholarv.
I‘ins. Édmons du Seuil, 1991; e por A ndré G reen . L a lettre et la m ort. P rom enade d ’u n psychúnahílt " Wilhelm W indelband. “ H istoire et sciences de la nature". op. cit.; H einrich Ebbinghaus. “ Ú b er
à tr a n n l.i littérature: Proust, Shakespeare, C o n ra d , B o r v e s ... entretiens avec D om iniqu e Eddé, Pam' erklarende und beschreibende PsycholoRie” , Zeitschrift fitr Psychologie u n d Physiologie der Smnesorgane.
Denoel, 2004, p. 142 sq. >8% , IX , p. 161-205.
144 145
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO
ocorre por uma operação espintual que equivale a um raciocínio Em 1910, um ano antes de sua m orte, termina por abandonar
analógico. Os defeitos dessa operação v ê m d o fato de que só a definitivamente toda form a de intuição psicológica. Reitera, uma
realizamos transportando nossa própria vida psíquica a outrem ” .410 vez ainda, que o c o n h e cim e n to é uma expressão vital: “ N ã o é uma
Eis-nos aqui bem longe do preceito distante prescrito (mas talvez áémarche conceituai que constitui o fundamento das ciências do es-
bem pouco posto em prática) p or R an k e, que recomendava ao pínto, mas a apreensão de um estado psíquico em sua totalidade e
histonador apagar o p róp n o eu, de maneira a deixar falar apenas a capacidade de reen con trá-lo reviven d o -o . E a vida que apreende
aqui a vida” .414 Mas revela-se cada vez mais pessimista quanto à
as coisas. D ilthey não o estima possível, n em desejável. Pensa, ao
possibilidade de participar de maneira imediata da experiência de
contrário, que só a extensão do eu tom a possível a compreensão do
outrem pela simpatia (N a c h fu h lu n g ). Ele que, em seus escritos de
mundo históneo: o ato de reproduzir e de reviver, essa passagem
juventude, se definia c o m o a um só tem po historiador e psicólogo,
do eu ao tu, é para ele c o m o o solo alim entador, “ on de mesmo as
descobre partilhar doravante a desconfiança de G oethe em relação à
operações mais abstratas das ciências morais d evem haunr sua força.
introspecção: o h o m em só se con h ece na medida em que conhece
A compreensão não pode jamais ter aqui um caráter puramente
o mundo, só con h ece o m u ndo em si e só se conhece no mundo.
racional. E vão querer fazer com preen d er o herói ou o gênio acu
Mas, então, c o m o nos é possível com preender o outro? C o m o
mulando as circunstâncias de todas as espécies. A via de acesso que
podemos nos recon h ecer nele, sentir seus estados de alma? E com o
m elhor lhe con vém é a mais subjetiva” .411
podemos nos fundar no ato de compreensão, ainda mais quando essa
Entretanto, sua confiança na psicologia não fo i inabalável.
sobrevêm a posteriori? “ E m face da intrusão constante do arbitrário
Desde 1894, escreve que não são as experiências psicológicas, mas romântico e da subjetividade cética no dom ínio da história” , Dilthey
a história que perm ite ao in divídu o apreender o que ele é.412 Treze enfrenta essas questões, durante os dez últimos anos de sua vida,
anos mais tarde, alerta contra a ideia de re viv e r diretamente um na esperança de “ fundar teoricam ente o valor universal da inter
estado psíquico:
pretação, sobre o qual repousa toda certeza histórica” .4’3 Reatando
W ilhelm Dilthey, C ontribui,on à 1’élude de fin d iv id u a lité , op. cit., p. 282. A crítica de Dilthey a o véu da deusa, em Sais - Mas o que viu? V iu - maravilha das maravilhas - a si m esm o’ , sobre o
41 k' tol " ,‘“ i Iarde ret°m ada por G eo rg Sim m el: cf. Pietro Rossi, L o sloricismo contemporâneo, qual Dilthey reflete em G o e th e et l ’im<igination p o étiq u e, op. cit.
op- a t., p. 235.
Wilhelm Dilthey, L 'É d ific a lio n d u m o n d e historique, op. cit., p 90.
^ W ilhelm Dilthey, Psychologie descriptive et analytiq u e, op. cit., p. 389.
’ ( Wllhe|m Dilthey, N a issa n ce de 1 'h en n én eu tiq u e (1900), in Écrits d'esthétique, op. cit., p. 307.
i» m ^ a" <
*lT ^ onset* un8 z u m A u fb a u dergeschichtlichen W e ll in d eu Geistesunssenschafien, Sobre sua leitura de Schleierm acher, cf. Franco Bianco, Sloricismo ed em ieneutica, R om a . Bulzom ,
™ •P rata-se de um dístico de Fnednch N ovalis: “ A lgu ém o conseguiu - que retirou
1^74, cap. 3; G eorges G u sdorf, L es origines de 1’h erm in eu tiq u e, Paris, Payot, 1988, cap. 4
146
147
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A PLURAUDADE DO PASSADO
“ das diferenças de intensidade em seus processos psíquicos” .417 Essa a totalid ad e em u m a única de suas expressões.422 Felizmente, o ser
leitura otimista vale igualm ente para o passado, um m undo que lhe humano tem constante necessidade de expressar seus estados de alma.
é familiar, no qual evolui com desenvoltura: E diferen tem en te d o animal, não se limita a manifestações corporais.
Graças à linguagem , p o d e escapar à solidão de sua vida interior
Da distribuição das árvores num parque, da ordenação das casas
para contar-se, cantar, pintar, dançar, etc.423 E são essas realizações
numa rua, da ferramenta bem adaptada do trabalhador até o jul
extenores que to m a m possível a compreensão: “ Esta compreensão
gamento pronunciado no tribunal, há incessantemente à nossa
vai da apreensão d o balbucio da criança até a de Ham let ou da
volta produtos da históna. [...] Já que o tem po avança, estamos
Crítica da razão p u ra . O m esm o espírito humano nos fala na pedra,
cercados por ruínas romanas, catedrais, pelos castelos da monar
no mármore, nos sons musicais, nos gestos, nas falas e nos escritos,
quia. A história não é algo que esteja separado da vida, nada que
esteja cortado do presente por seu distanciamento no tempo.418 nas ações, na o rd em eco n ó m ica e nas constituições, e requer uma
interpretação” .424 E nquanto o processo criativo vai da experiência
Q u e o material seja in evitavelm ente lacunar e obscuro, de certa vivida (Erleben) à expressão (A u sd ru c k ), o processo da compreensão
forma uma não evidência, não constitui um obstáculo insuperável. segue o caminho inverso: só penetramos a interioridade do outro
Por certo, o historiador é con dicion ado p o r sua época, mas, como por seus efeitos, p o r causa das manifestações pelas quais, com o diria
qualquer outro intérprete, pode dilatar sua experiência e se abrir Hegel, a consciência humana se objetiva.425
a outra vida: P o r cima de todas as barreiras de sua própria época,
Estes “ produtos objetais” , c o m o os chama Dilthey, são mui
ele olha para fora em direção às civilizações d o passado; ímpregna-
to numerosos: a linguagem , o m ito, a arte, a religião, o direito, a
se de sua força e re-expenm enta sua magia: e tira daí um grande organização política (poderíam os m esm o acrescentar o sonho, a
aumento de felicidade” .419
cozinha, a moda, o sintoma, etc.). Alguns entre eles apresentam a
Em relação a seus escritos precedentes, é sobretudo a imedia- vantagem de produ zir figuras firmes e estáveis, enquanto tudo o
tez que é abandonada: a com preensão se tom a um ato refletido.420 que se passa em nós, nossa interioridade, é dramaticamente precário
D ilthey estima que, ainda que não tenhamos acesso direto à signi e fugidio, até para nós mesmos: “ V erídica em si, [a obra de arte] se
ficação profunda de uma existência, p od em os ao m enos apreender ergue firme, visível, durável, tom an do possível uma compreensão
alguns fragmentos seus mediante suas manifestações exteriores: “ A segura e regular. Assim, nos confins do saber e do fazer se desenha
existência de outrem só nos é inicialm ente acessível do exterior um círculo em que a vida se abre a uma profundidade que não é
através dos dados sensíveis, gestos, sons e ações” .421 C o m o Droysen acessível nem à observação nem à reflexão nem à teoria . A seus
dissera e repetira durante os decénios anteriores, só compreendemos olhos, não resta dúvida de que a literatura constitui o produto mais
eminente, aquele que, mais d o que qualquer outro, permite que nos
^ W ilh elm Dilthey, L É d ifia iiw n du m onde historique, op. cit., p. 101.
Johann Gustav D roysen, H is to r ik , op. a í., p. 112.
41 W ilhelm Dilthey, N a is s a n u de V hennéneunqu e. op. cit., p. 291.
Alguns decénios niais tarde. Alfred Schvitz sublinhará a capacidade humana de se manifes
tions du C r f í w n t Saenas ia n 'l ,ure 11942], traduzido d o alem ão por Jean Carro, Pans, Edi- atividades acessíveis, tanto aos cnadores quanto aos destmatános, com o elementos de um mun '
0 .. - ’ . 2 unia ^Ktinção entre o ato da criação e aquele da com preensão, sublinhando
Wilhelm D ilthey, N a issa n ce de V h crm én eu tiq u e, op. cif., p. 293.
H i tariral l i â ° ^ erTos cnt,COs falaram de virada herm enêutica: cf. T h e o d o r e Plantinga,
Sobre a relação e n tre a c o n c e p ç ã o h e g e lia n a d o e sp írito o b je tiv o e a objetivação d
Edwin M II r I)d" <fle ° f W ilh elm D ilth e y , Lew inston -Q u eenston -Lam petter, The
>hey, cf. Karl L ó w ith , D ilth e y s u n d H eideggers S te llu n g z u r M e ta p h y stk (1966), in a m t ic e .
-I H istor. C T r i ” *’ i 92; ,,Se N : Bulh° t' W ilh e lm D ilth e y A H erm en ein ica l A pproach to lhe S tu d y Stuttgart, M etzler, 1981-1988, v o l V III. Sobre o caráter m ediado da relaçao entre vi ’
fo r m u la r ta n ' * *"*aVe ' N ijh o ff, 1980. Algumas considerações críticas a esse respeito foram
«pressão (A u s d m c k ) e com p reen são (V e rste h en ), cf. H . D iw ald, W ilh elm D ilth ey. r cn n <
‘* M a k k red ' D ," h r r Pn nceton , Pnnceton "nd Philosophie der G eschichte, Cròttingen, 1963, p. 153 s<j
' W ilhelm Dilthey, N a,isa n ct de V herm éneuúque, op. p. 292. Wilhelm Dilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W ell w den G eistesuissensc i . ,
°P nt„ p. 207.
148
149
A HUtAlDADf DO PASSADO
O PtQUENO x- Da b io g r a f ia à h ist ú « ia
históna não pode entregar sua última palavra, uma palavra simples pertencentes à teona da pintura a particulandade concreta que
reside na maneira com o a Renascença trata tais temas, . •
em que se enunciaria seu sentido verdadeiro” .428 O m esm o ocorre
deve ser situada, no fim das contas, a onginalidade da obra-pnma
com os acontecimentos biográficos, pois toda com preensão perma
de Diirer. São, portanto, em toda a parte, relações entre tatos gerais
nece sempre relativa. “ In d iv id u u m est ineffabile" , repete várias vezes.
e o individual que permitem uma análise deste úl
C o m o muitos de seus contemporâneos, D ilth ey viu, ele também, a
natureza trágica do conhecimento. Sob certos aspectos, é justamente Donde algumas dúvidas im tantes sobre o valor cientíhci
grafia: se cada in d ivíd u o é o p o n to de encontro de ditere njM
juntos interativos, c o m o p od em os proceder a partir dele, aj *
W ilhelm Dilthey, N aissance de 1’herm éneutique, op. r il., p 294. A dependência da históna para
com a literatura será igualmente sublinhada por Hans Magnus Enzensberger. "Letteratura come
stonografia", op d l.
W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de 1'espril, op. cit, p. 250. " ' ‘ Íhelm Dilthey. Psychologie d e s c n p liv t el a n a ly tiq u e , op. cit.. p 233-2.14
151
O PEQUENO X - D a BOGRAflA A HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO
o conteúdo da natureza humana através dele? D o n d e também uma inacabada da história, e parar de tentar concluir o que é inesgotá
necessidade infinita de históna: “ O d esen vo lvim en to da essência vel, está longe de ser uma dém arche fácil. Isso significa reconhecer
humana se encontra na históna, é aí que se p od e ler em letras que toda interpretação im plica uma arte hermenêutica e, portanto,
maiúsculas os impulsos, os destinos íntim os, as relações vitais da aceitar a importância da im aginação histórica: “ Considerem os um
natureza humana” .430 D on de, enfim , a con vicçã o de que na históna homem que não tenha nenhuma lembrança de seu passado, mas que
não reina nem o individual nem o geral, mas “ a combinação do pense e aja som ente em função do que esse passado p ro vo cou nele
geral e do individual” .431
sem ser consciente de nenhum a de suas partes: tal seria também a
Profundam ente sensível à vitalid ad e periférica da históna, situação das nações, das com unidades, da própria humanidade, se
Dilthey enfrenta a sensação de v ertigem que atravessa todo projeto esta não conseguisse com pletar os vestígios” .434
de história biográfica. Mas, fiel ao e x e m p lo d o ju iz que, de quebra,
com põe versos, não se deixa abusar pela ilusão de poder descobnr VIII
um ponto miraculoso em que se refletiria a totalidade histórica. Com
Humboldt, sugere outra via: aceitar o caráter circular do conheci Contranam ente ao que afirmam os historiadores que preten
mento. Para apreender o tod o, d evem os com preen d er suas partes, dem encontrar os fatos puros, para D ilth ey, a vida exige ser guiada
mas, para apreender as partes, é-nos preciso com preender o todo. pelo pensamento: “ Nossa faculdade limitada de reprodução teria
Existe entre as duas operações uma dependência recíproca, uma se muita dificuldade de se encontrar através das com plicações e dos
alimentando da outra: se “ a visão histórico-universal da totalidade enigmas do particular se as linhas do conjunto v iv o não fossem
pressupõe a compreensão das partes que estão reunidas nela” , inver deduzidas” .43' É p o r isso que lhe parece necessário reagrupar as
samente, a compreensão de uma parte do curso da históna só atinge expenências históneas em to m o de tipos.436 Esse projeto faz lo go
sua perfeição graças à relação da parte c o m o to d o ” .432 Assim como pensar naquele de M a x W e b e r que, quase ao mesmo tempo, funda a
a significação de uma frase não reside nas palavras que a compõem, conceitualização da realidade no tipo ideal.43 Para W eb er, o tipo não
mas na ligação que as une, um fato singular só tem significação em é definido nem p or caracteres comuns a todos os indivíduos, nem
relação com a vida em seu conju nto: “ A cada instante de nossa por caracteres m édios; ele deriva de uma construção formalizada,
vida, no pensamento mais tolo ou na rotina mais insignificante, há uma utopia que, em sua pureza, jamais encontra correspondente
uma conexão com aquilo que, enquanto significação da vida, religa na realidade em pírica. Mais do que de uma reprodução da reali
todos seus momentos num to d o ” .433 dade ou de uma categoria no seio de uma classificação, trata-se de
Em vez de buscar ven cer a sensação de vertigem , Dilthey uma tentativa de colocar ordem , pela distinção e pela acentuação
aceita-a e se dedica a tirar p ro ve ito dela. Q u e m sabe? O fato de que
cada espaço, cada tempo, rem ete a ou tro espaço e a outro tempo W ilhelm D ilthey. Pia,i der F o rtsetzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W e lt in den G eisteswissenschaften,
(fazendo assim da contextualização uma empresa interminável) não op- cit.. p. 279.
é talvez um entrave, e menos ainda uma maldição. T a lv ez se trate ao *' W ilh elm D ilthey, C o n trib u tio n s á l ’étu d e de 1’in d ivid u a lité, op. cit., p. 284.
Sobre as diferentes fases de elaboração d o co n ceito de tipo em Dilthey. cf. L u dw ig Landgreb ,
contráno de uma sorte e de um recurso. Resta que aceitar a natureza W ilhelm D ilth ey T h e o n e der Geisteswissenschaften. Analse ihrer G r a n d b e g n ff e 'Jahrbuch fur
Philosophie u n d p h ã n o m enologische Forschung, Ed. por Edmund Husserl, 19_8, 9, p. 237 366.
identificação entre " t ip o " e "expressão” , proposta por Langrebe, é rejeitada por A n to n io gn,
W ilhebn Dilthey. A usarheitung de, deskriptw en Psychologie. op. cit., p. 183. Saggi sullo storicismo tedesco. M ilã o, 1959, assim c o m o por Giuliano M arini. D ilth e y e la com prm sione
ik '!™ C o n ln k " " ° ™ à 1'élude de fin d iu id u a lité . op. cit., p. 263. det m ando u m a n o , M ilã o, G iuffré, 1965.
* D llthey' L É diJvat,on du m onde h isto n q u e , op. cit., p. 105. " < I A m o ld Uergstraesser, " W ilh e lm D ilthey and M a x W eber: An Empincal Approach to Histoncal
W ilhelm Dilthey. Leben u n d E rke n n en , op. cit., p. 382. Synthesis", E thics. 1947, 57, p. 92-110.
152
O PfQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia A p lu ra lid a d e d o p a s s a d o
unilateral de certas características típicas.43" O m esm o ocorre com certos personagens; n o S o n h o de u m a noite de verão, as ilusões e os
Dilthey que considera o tipo c o m o fator de inteligibilidade sem extravios do am or são con cen trados em algumas relações típicas,
relação com a ideia de representatividade: “ A conceitualização não
[...] c o m o uma brincadeira com que a consciência soberana
é, portanto, aqui uma simples generalização que extrai o elemento
se deleita precisam ente porqu e ela toca na grave questão da
comum valendo-se da série dos casos particulares. O conceito ex
conservação da vida [...]. E é na maneira com o um artista cria
prime um tipo. Procede do m é to d o c om p a ra tivo ” .43'' Assim como
uma atmosfera, um mundo, na maneira com o seus personagens
desconfia, ele também, de toda solução naturalista: se m o v e m e são ligados entre si, que toda sua mentalidade
[encontra sua] expressão mais profunda.443
O original era um indivídu o; tod o retrato autêntico é um tipo,
com mais forte razão, todo personagem de um quadro. A poesia
Fortalecido pela co n v icç ã o de que a arte representa um
tampouco pode copiar pura e sim plesm ente as coisas. Se um
modelo apropriado para a história, D ilth ey imagina em certos
dramaturgo resolvesse transcrever um diálogo real, com tudo o
momentos o b en eficio heurístico que uma verdadeira roteirização
que este pode ter de acidental, de ín correto, de tolo, de difuso,
acabaria por entediar o leitor. [...] Mas tal tentativa de copiar do passado proporcionaria: “ Q u a n d o revivem os um passado graças
fielmente o objeto estará sempre condicionada, ela também, à arte com que o historiador n o -lo tom a presente, extraímos um
pela subjetividade daquele que escuta, lembra, reproduz.44'1 ensinamento, c o m o acon tece c o m a própria vida; sentimos que
nosso ser se dilata e que forças psíquicas mais poderosas do que as
Entretanto, à diferença talvez de W e b e r , quando Dilthey
nossas intensificam nossa existência” .444 Acaricia a esperança de que
considera o trabalho de condensação, é sobretu do na arte, tida por
o trabalho de condensação perm ita revivificar o passado, dar uma
fundamento de todo con h ecim en to, que ele se inspira. “ Não pos
segunda vida a suas sombras exangues, e exprim ir sua diversidade: o
suiríamos mais do que uma m ed ío cre parte de nossa inteligência
tipo contém “ um aum ento da experiência vivida, não no sentido de
atual da condição humana se não estivéssemos habituados a olhar
uma idealidade vazia, mas, ao contrário, no de uma representação
pelos olhos do poeta e a ver nos hom ens que nos cercam Hamlets
da diversidade sob uma form a imagética, cuja estrutura forte e clara
e Margaridas, Ricardos e Cordélias, marqueses Posa e Felipes
toma compreensível a significação de experiências vividas de m enor
Para extrair o essencial de uma realidade, frequentem ente bastante
interesse, ainda não distintas” .445
confusa, o poeta condensa as experiências. Insere inicialmente um
grupo humano num tipo; estiliza a seguir as relações entre as per
sonagens: a vida “jo ga os homens todos misturados; mas, por mais
realista que seja u m artista, sua grandeza im plica n e c e ssa ria m en te que
coloque em relevo seus traços essenciais” .442 R afael e Shakespeare
não se limitam a imitar a vida, dão ao geral uma form a singular. A
escola de A ten a s e A disputa representam culturas inteiras através de
^ ’ P 284-285. Essa pa rtilh a da v ita lid a d e e n tre as d ife ren tes figuras e os d iic r w n jc o n t c c m ic n -
•°s, que se alim en ta in e v it a v e lm e n t e da s u b je tiv id a d e d o a u tor, n ão é um a característica da arte.
Ainda que trazen do fru to s b e m m e n o s n otá v e is , ela escarule nossa v i i i i de tod os os dias. S egu n d o
Max W ebcr, L*Objectiiftté de la connaissance dans les sd e tu e s et la p o litiq u e sodales (1904), in Essau
Ajfted Schiitz ( " O n M u lt ip le R e a lin e s ” , in C olected Papers. U e P n+ lem ■{S o a a l R e a lity. La H a y e ,
la thíorie de la snence, op. d t., p. 11 sq
artinus N y h o ff, 1962), o eu perceb e sem pre o ou tro através ite uma « n c de estandartizaçòes,
Wilhelm Dilthey, L'É diJication du m o n d e historique, op. d l . , p. 136. mas caas se n iu ltip lit j m * se c o m a m cada v e z m ais in ó n m u * i m c d id i qwc n o* ifastam os d o cara
W ilh e lm D ilth e y , Contribution à 1‘itu d e de r in d w id u a ltté , op. d t . , p. 286. CJra c que cresce a distân cia (u m a m ig o se t o m a u m in glês r *«in« po»
Ibid., p. 278. ilhelm D ilth e y, Intro d u ctio n a u x sáeiices de 1'esprit, op. d t . , p. 251
441 lb,d., p. 284. helm D ilth e y, L 'Itn a g in a tio n d u po ète, op. a t . , p. 116
154 155