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Lowe Eir

O capítulo discute a subjetividade do historiador e a importância da reflexão pessoal no estudo da história. A obra menciona a relação entre a história e a filosofia, destacando a singularidade do conhecimento histórico em contraste com generalizações filosóficas. O autor enfatiza que a vida histórica é criadora e que a experiência vivida é fundamental para a compreensão do passado.
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Lowe Eir

O capítulo discute a subjetividade do historiador e a importância da reflexão pessoal no estudo da história. A obra menciona a relação entre a história e a filosofia, destacando a singularidade do conhecimento histórico em contraste com generalizações filosóficas. O autor enfatiza que a vida histórica é criadora e que a experiência vivida é fundamental para a compreensão do passado.
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O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTÔSIA

CAPÍTULO IV
dramática. É preciso talvez que nos resolvam os a aceitar o fato de
que há no estudo do passado um m o m en to arbitrário inicial, ligado à
sensibilidade pessoal do historiador. É o que pensa M ein eck e quan­
do evoca o caráter m ó vel das fronteiras que separam o importante
daquilo que não o é. Mas essa tomada de consciência não abala A pluralidade do passado
sua confiança no con h ecim en to histórico. A questão é apenas um
preâmbulo; em seguida, vem a escavação. E é justamente quando
se encontra numa posição incóm oda, sob a superfície, que o histo­
riador tem a possibilidade de verificar a pertinência da questão que
colocou, de c o m g i-la e - por que não? - de encontrar outra coisa,
que não esperava. Nesse ponto, M ein e ck e reencontra Droysen:

Tínhamos isto e aquilo; hoje, é co m o se não possuíssemos mais A dizer a verdade, toda coisa movente leva em si
nada, é preciso recomeçar do zero, é preciso retomar tudo desde
a medida de seu tempo; e este permaneceria mesmo
o inicio. Procurando material, verifica n d o-o , interpretando-o,
se não houvesse nada de outro; não há duas coisas
reelabora-se o pensamento e, à medida que este se desenvolve
no m undo que tenham a mesma medida de tempo [...].
afinando-se cada vez mais, precisa-se em toda a sua riqueza e
E xiste portanto (pode-se afirtná-lo ousadamente)
se transforma; corre-se mesmo o risco de o perder [...]. Mui­
no universo, num só tempo, uma multidão de tempos.
tos se esgotam com a tarefa, perdem -se em vias transversais,
Johann Gottfried Herder133
lançam-se a novos possíveis, prospectam em extensão mais que
em profundidade.

Sob essa luz, é o trabalho que o historiador efetua sobre si mesmo


I
que verdadeiramente importa. Lo n ge de apagar sua subjetividade,
com o queria Ranke, ele deve aprender a recon h ecê-la e a fazer dela Desde Anstóteles, encontram-se de maneira recorrente filósofos
uma fonte de conhecim ento;
para recordar com to m grave o caráter singular do conhecim ento

O conteúdo de nosso eu é algo de recebido (Empfangenes), que histórico. “ A história nos diz o que é uma coisa, a ciência e a fi­
chegou a nós, que é nosso e não o é. Assim, não estamos ainda losofia porque é assim; aquela considera o que é singular, estas o
livres em relação a nosso saber; ele nos possui mais do que o pos­ universal; a prim eira se funda sobre o sentido, as duas outras sobre
suímos. Só tomando consciência de que somos de certa forma a razão; uma precede, as outras seguem ” , escrevia Johannes Jonsius
mediatizados ( vennitteltes), é que o separamos de nós mesmos.
na metade do século X V I I . Essa disjunção simples, não obstante
A partir de então, começam os a ser livres em nós mesmos e a
discutível, entre a históna c o m o con h ecim en to do singular, do quod
dispor do que era imediatamente nosso conteúdo. Está aí um
grande resultado de nosso desenvolvim ento interior.332
e a ciência (ou a filosofia) c o m o conhecim ento do geral, do ti<r

SIÍ’ nào tem apenas valor descritivo. Ela dá a entender que a históna
é impotente para produ zir enunciados de ordem geral. Essa suspeita

J° m G r f U«I Dh ° y“ n ' H 'S‘0 n k ’ °P ' P , 0 6 ' 1 0 7 S° bre a hlstóna c o m o form a dc autoconhe- Johann G ottfned H erd er, V ersta n d u n d E rfa h n m g . E in e M e la k r in k z u r K n li k der rem en 1 11
« * * 0 . cf. cambem as cons.deraçôcs de Emst Cau.rer, E ssa, sur r h o m m e , op. cap. 10.
partc' 1 7 g 9|, in Sám tlich e W e rk e . 1881, t. X X I . p. 59.

120
121
A PLURALIDADE DO PASSADO
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

historiadores defen d em o valor d o fato ou do fen óm eno singular.


cheia de malignidade desponta claramente sob as proposições de
Sem dúvida, não se trata de um tema n ovo. A o lon go do século
André-François Boureau-Deslandes, discípu lo de Malebranche,
X IX no entanto, as declarações antifilosóficas se radicalizam. Ranke
qualificado por Voltaire, que não gostava nem um pou co dele, de
-mais uma vez - acusa a filosofia da história de querer subordinar a
“ velho ginasiano precioso” : os historiadores, lê-se em seu tratado
históna da mesma maneira que o tentara antes a teologia, e vanglona-se
de historiografia, relataram os pensamentos dos outros e não se preo­
de estar do lado d o particular histórico contra o geral filosófico: “ O
cuparam em pensar por si mesm os.334 Essa im putação de preguiça
ponto de vista h istón eo con tém um princípio ativo que se opõe
conceituai, que não se dá ao trabalho de tom ar qualquer precaução,
sem trégua ao p on to de vista filo s ó fic o [...] Enquanto o filósofo [...]
é retomada ao lon go de tod o o século X I X , n o m om ento mes­
busca o infinito unicam ente no progresso, no desenvolvim ento, na
m o em que o pensamento histórico é valorizado em todas as suas
totalidade, a históna recon h ece em toda existência alguma coisa de
expressões (a históna, a filosofia da históna, o rom ance histórico)
infinito; em toda circunstância, em todo ser, um quid eterno que
com o jamais o fora. É talvez p or essa razão, aliás, que o tom se faz
emana de Deus; e aí está seu p n n cíp io vital” .337
mais zom beteiro. H egel, de sua parte, declara que os historiadores
puros (com o os nomeia com desdém, especialm ente Leopold von Mas, felizm ente, nesse intenso turbilhão de ideias que agita o

Ranke) contam os acontecimentos “ de maneira contingente, exa- século, algumas vozes discordantes se fazem ouvir. Em pnmeiro lugar,

tamente com o se apresentam a eles, em sua particulandade, sem aquela de W ilh elm D ilth ey, que se dedica a dar uma envergadura

relação e sem pensamento” , e que semelhante história “ não seria filosófica à reflexão da histonografia alemã do século X I X . 31" Em sua

mais que a representação de um fraco de espírito, nem mesmo um longa existência, situada sob o signo de uma incansável vocação, e por

conto de fadas para crianças” .335 Alguns decénios mais tarde, Bene- isso não isenta de algumas retratações dolorosas, ele jamais se afastou

detto C roce fala abertamente de uma historiografia sem problema de um ponto firm e: o m undo históneo é produtivo, e essa qualidade

histórico: após ter deixado escapar, en pa ssa n t, que R an k e tem “ um não é fruto de um prin cípio absoluto, transcendente ou imanente à

ntm o pouco rápido de vida in terior” , regozija-se de que a figura atividade humana, mas da ação recíproca dos indivíduos. Em 1883,

do “ histonador desprovido de filosofia cede o passo àquela, bem escreve que “ essa totalidade maravilhosamente entrelaçada que é a

diferente, do filósofo” .336 históna é constituída pelos indivíduos, unidades psicofísicas, cada um
diferente de todos outros e capaz de formar um mundo. A queda
C o m o é muitas vezes o caso, a antipatia entre os dois campos
d água se com põe de partículas homogéneas que se entrechocam, mas
é recíproca. Desconfiados das generalizações abstratas, numerosos
uma simples frase, que, no entanto, não é mais que um sopro saído
de nossa boca, abala, graças ao jo g o dos motivos que suscita em uni
Os textos de Jonsius e de Deslandes são citados p o r M a n o L o n g o , in H isto ria e philosophiae philoso-
dades profundamente individuais, toda a alma de uma sociedade em
phica, op cii , p 75-94 A propósito da polém ica sobre a históna no fim d o século X V I I , cf. Paul
Hazard, La crise de la consam cc européenne, 1680-1715 (1935), Paris, Fayard, 1961, cap. II. qualquer parte do m u n d o” .339 V in te e sete anos mais tarde, durante
G eo rg W ilhelm Fnednch H egel, Encyclopódie des sciences p h ilo so p h iq u es en abrêgí (!830), traduzido uma sessão plenána da Academ ia das Ciências de Berlim, volta, uma
do alemao por M aunce de Gondillac, Pans, Gallimard, 1970, § 5 4 9 , p. 467.
Benedetto C roce, L ’H istoire com m t pensêe et com m e action (1938), traduzido d o italiano por Jules
< h íix R u y, Genebra. D roz, 1968, p 102. A preguiça conceituai da história foi por muito tempo
Leopold von R anke, “ M anuscnt des années 1830” publicado por Eberhard Kessel
'! r .u p i.* , disciplinas sociais mais jovens. M esm o adm irando a obra de Fustel de Coulanges,
Zeilschrift, 1954, 178, p. 292-293. .
A lírtJ R R adcliffe-B row n (Stm cture et fo n ctio n d a m la sociète p rim itive, traduzido do inglês por
- Cf. Giuseppe C acciatore, -‘D ilth e y e la stonograf.a tedesca d e lT O tto cen to’ . S tu d , s to n a . 1 . .
Françoise e Louis Mann. Pans. Édinons de M inuit, 1968) afirma o prim ado da sociologia, que «n a
■ *p ^ J c enunciar proposições gerais, sobre a história e a etnografia, as quais só podenam formular p. 55-89. . .

aíinnaçoes particulares ou fatuais. Alguns anos mais u rd e, C lau de Lévi-Strauss (L a Pensée sauvage, Wilhelm D ilthey, Intro d u ctio n a u x sciences de 1'esprit (1883), dans Critique^ de /a m s ^ ^

, lio n , 1 p 3 4 2 ) estima que o có d igo da históna consiste numa cron ologia: ‘ Toda sua introduction aux sàences de 1’esprit et autres te x te s , traduzido d o alemao por Sy vi

u iig ir u t d j ik c sua especificidade estão na apreensão da relação do antes e d o depois” . Edicions du C eri, 1992, p. 186 e 195.
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A HISTORIA A PLURALIDADE d o p a s s a d o

vez ainda, à significação e à tarefa das ciências históricas. Especifica, tempo após seu casamento com Kãte Piittmann, a consciência não é
assim, que a demarcação entre as ciências do espírito ( Geistesunssens- a única realidade, pois no mais profundo dos homens existe intensa
chaften) e as ciências da natureza (N aturuH ssenschaften) não é de ordem riqueza subterrânea: “ Discernim os em nós mesmos uma vivacidade
ontológica, mas sim transcendental: trata-se de uma distinção que não psíquica extremamente variada [...], à imagem das plantas, cujas raízes
concerne aos objetos, mas à experiência, que deriva de um fato de se estendem em profundidade no solo, enquanto apenas algumas folhas
consciência, desse sentimento íntim o pelo qual nos sentimos diferentes despontam” .344 Alguns anos mais tarde, desenvolve seu pensamento
da natureza.340 Em apoio de suas convicções, afirma: evocando a irracionalidade do caráter humano, manifesta em todo
herói, em toda verdadeira tragédia, em numerosos criminosos, mas
A vida histórica é criadora. A g e constantemente produzindo
bens e valores, e todos os conceitos desses bens e desses valores
também presente na vida de todos os dias:
não são mais do que reflexos de sua atividade. Os suportes dessa
N ã o há nada a fazer, não somos um aparelho que busca produzir
criação constante de valores e de bens no m undo espiritual são
prazer regularmente e impedir o desprazer, avaliando valores
indivíduos, comunidades, sistemas culturais em que os parti­
de prazeres uns em relação aos outros, e conduzindo assim as
culares colaboram.341
volições para a soma acessível do prazer. Para um aparelho deste

Para exprimir a relação vital que liga os seres humanos entre si e os tipo, a vida seria evidentem ente racional, mesmo um exercício
de cálculo. Mas não é assim. [...] não buscamos evitar o desprazer,
leva a deixar sua marca no mundo, D ilth ey elabora o conceito de
mas o exploramos até o fundo, meditamo-lo sombriamente, com
W irkungszusam m enhatig, termo com plexo em alemão e dificilmente
misantropia; arrastados por obscuras pulsòes, colocamos em jo g o
traduzível em outra língua (dynam ic u n ity , ensem ble interactif, connessione
nossa felicidade, nossa saúde e nossa vida para satisfazer nossas
ditiamica).34_ Diferentemente da conexão causal, que rege o mundo
antipatias, sem levar em conta o ganho de prazer.145
da natureza, a conexão dinâmica está ligada à vida psíquica e procura
significações, produz valores, enfim , realiza objetivos: “ A célula pn- Essa convicção absoluta deslanchará a controvérsia com os filósofos
mitiva do mundo histórico é a experiência vivida (Erlebttis), na qual que intelectualizam os fatos de sentimento e de desejo: “ Nas veias do
o sujeito tem por m eio o conjunto interativo da vida. Esse m eio age sujeito cognoscente tal c o m o L ock e, H um e e Kant o construíram,
sobre o sujeito que, por sua vez, age sobre ele” .343 não é sangue de verdade que corre, mas uma seiva diluída de razão,
concebida co m o única atividade do pensamento” .34,1 A expressão
II “ciências do espírito” , que escande alguns dos textos mais célebres de
Dilthey, pode evocar, sobretudo no leitor de hoje em dia, imagens
Quando Ddthey fala do indivíduo, não se trata de uma entidade
incorporais e cerebrais da existência. Mas certamente não era essa
espiritual nem de um ser racional. C o m o escreve nos anos 1870, pouco
sua intenção. D ilth ey em prega o term o “ espírito” (G eist) para exaltar
3 capacidade criadora d o ser humano. C o m o recorda numa nota
i ma in trod u ção geral à filo so fia de D ilth e y , cf. e s p ecia lm en te B e m a r d G ro e th u y s e n , “ D ilthey bastante tardia, trata-se de uma noção imperfeita, já que os fatos da
et son e c o le " , in La Philosophie allem ande au X I X e siècle, Pan s, A lc a n , 1912, p. 1-23; H erb ert A.
o d g e i, Hi, 1’hilosophy o f D ilth ey, L o n d res, R o u t le d g e & K e g a n Pa u l, 1952; P ie t r o R ossi, Lo
*> ii*nlem poranio , T u n n , E in audi, 1957; R a y m o n d A r o n , L a P h ilo so p h ie critique de 1’hisloirr.
“ W ilhelm D ilth e y , E rken n tn isth eo retisch e F ragm ente (1 8 7 4 -7 9 ), in G esam m elte S clm fien . Stuttgart/
•SOI sur une lheone allem ande de 1'histoire. Pans, V n n , 1964; S y lv ie M e s u r e , D ilth e y et la fondatw n

dfs sa e ttta hisionques, Pans. P U F , 1990 Gõttingen, T e u b n e r / V a n d e n b o e c k & R u m p r e c h t , v o l. X V I I I , p. 189.

W ilhelm D ilth e y , L 'Im a g in a tio n d u p o ite . É lé m e n ts d ’u n e p o ítiq u e (1 8 8 7 ), in É cnts d esthétique,


W ilh e lm D ilth e y , L édifuation du m onde Instorique dans les sciences de 1'esprit (1 9 1 0 ), tradu zido do
traduzido d o a le m ã o p o r D a m è le C o h n e E v e ly n e L a fo n , Pans, É d itio n s du C e r f, 1995, t. V I I ,
^ alem ão p o r S y lv .e M esu re. Pans, É d m o n . du C e r f. 1988, t. II I, p. 106.
P '2 4 . Em 1769. J o h a n n G o t t ín e d H e r d e r esc reve ra a M o s e s M en d els soh n q u e era q u im e n c o
U n id a d e d m im ic a . c o n ju n to in te ra tivo , c o n e x ã o d in â m ica (N T )
Ibid.. p . 113. supor a existência d e u m a a lm a in c o r p o r a i, d e u m a natureza hum ana n ão sensual.

W ilhelm D ilth e y , In tro d u ctio n a u x sciences de Vesprit, op. cit., p. 148-149.

V'
i
124
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE d o p a s s a d o

vida espiritual não estão destacados da unidade viva ( Lebenseinheit) como uma condição áspera e inelutável da experiência humana: “ A
psicofisica da natureza humana, resistência tom a-se pressão, a realidade parece nos cercar por todos
os lados com muros que não podem os transpor. E que muros ela
[...] mas qualquer outra designação aplicada a este grupo de ciências
não opõe diretam ente a nossos desejos! C o m o pesam sobre nós!
suscita reticências consideráveis. Assim acontece igualmente com
Veja-se Schiller quando aluno da Academ ia militar” .351 E, quando
a designação das “ ciências da cultura” [...]. Exprime-se aí uma
concepção demasiado benevolente e otimista da realidade humana, reprova a H e im H e lm h o ltz e Eduard Z e ller o fato de definirem a
na qual os obscuros instintos que levam a opnnur-se e destruir-se realidade com o uma simples projeção do pensamento, observa que
reciprocamente desempenham um papel muito importante.547 o primeiro germ e da distinção entre o eu e o mundo se inscreve na
experiência da pulsão e da resistência:
Ele que, na qualidade de historiador e p sicólogo, teve que
levar em conta o h om em em sua íntegra (m it ciem g a n z e n Mens- A realidade (R ca lità t) do mundo exterior não é tirada dos dados
cheri), considera esse ser co m o uma totalidade psicofisica, feita de da consciência, ou seja, deduzida por operações puramente
representação ( Vorstellen), de sentim ento ( G e fiih l), de vontade ( W il- intelectuais. Penso antes que os processos conscientes anterior­

le), as três formas essenciais do v iv e r ( L e b e n ), intim am ente ligadas m ente indicados transm item -nos uma experiência da vontade - a
/reagem da intenção - que está implicada na consciência de uma
entre si.,4K Assim, a consciência da distinção entre o eu e o mundo
resistência e que, só ela, nos revela a realidade robusta e viva
exterior não procede somente de um ato do pensamento, mas da
do que não depende de nós.352
própria vida: a realidade perm anece sempre um fen óm en o para a
simples representação, mas aparece c o m o um dado estabelecido e O indivíduo, esse ser sensível, é também fundamentalmente
incontom ável no todo de nosso ser que quer, sente e representa.349 social e sociável: não é a existência singular e isolada que é com ­
D ito de outro m odo, o eu só percebe a presença de uma realidade
preendida no co n c eito de e g o , não é uma substância impermeável,
bem distinta, autónoma, quando se depara com algo que resiste a
mas trata-se de “ um con ju n to que encerra em si, a cada vez, os
ele. Por vontade’ não entendo o ato de querer enquanto situação
sentimentos vitais dos outros indivíduos, da sociedade e, mesmo,
de consciência, mas antes a atividade de que posso ter consciência e,
da natureza” .353 A e x e m p lo de W ilh e lm von H um boldt e de O tto
precisamente, em suas diferentes posições em relação àquilo de que
Hintze, D ilth ey sublinha a dependência essencial do ser humano
ela se distingue. Sinto-m e ora condicionado, ora tom ado de assalto,
que não está jamais em condições de ser autossuficiente. E um
ora sujeito a, ora numa atitude de aspiração e de c on tro le” , como
escreve num ensaio sobre a psicologia descritiva em 1880.35(1 Nos ponto quase m ístico” . M ergu lh ad o desde sempre num universo de

anos seguintes, D ilthey não parou de apresentar o exterior, o fora, relações, ligado à mãe b em antes do nascimento, vive na necessidade
incessante do outro: “ [E le] se m antém numa contínua relação de
trocas espirituais e assim com pleta sua vida própria graças à vida de
V II ' ^ u s à ,: c "rMm A u jb a u der geschichtlichen W e h , in G e sa m m e lte Schriften, o p . cit., vol.
outrem” .’ 34 Sua existência só se realiza na coexistência - nas relações
r - - - h c t r o R o ssi, Lo storicismo contem porâneo, op cit.. p. 6 3 - 6 6 , o b serva q u e , para D ilthey,
I n cim en to d o h o m e m ao m u n d o h istó ric o -s o c ia l n ã o e x c lu i a re la ç ã o c o m o m u n do da
* |uc %u.i rtiu s:i d e aplicar os crité rio s das ciên cia s naturais às ciên cia s d o espírito não
^ im p lica necessariam ente uma esp in tu alização da h u m a n id a d e. W ilhelm D ilth e y , Bcitràge z u r L o su n g der Frage rom U rsprung unsercs G laubens u n d der R e a h ta t der

W ilh e lm Dilihc-y, Inim ductw n a u x sciences de l'esprit, op. r ir , p. 9- 1 0 , Cf. certas p r o p o s i ç õ e s análogas A iusenuvti u n d seitieti R c c h l, op. cif., p. 110.

m, 3m Jam" r A r e w e autom ata?” , M in d , 1879, p 1 -2 2 ). para q u e m a e n e rg ia da psique não p. 109-110. H m Intro d u ctio n a u x sciences de Vesprit, op. cit., D ilth e y faz um a distinção
. P d.i ip cn a j n o n ív e l c o g n it iv o , p o is c o m p o r ta fa tores in c o m e n s u rá v e is , tais c o m o as realidade qu e nos é in a c essíve l { W M i c h k e i t ) e a realid ad e q u e possuím os {R eahtat).
v o l , ç o « . as e m o ç õ e s corpora.s e as p ercep ç õ es sublim inares.
W ilh elm D ilth e y , A u s a r b e itu n g der d eskrip tiven Psychologie, op. cit ., p. 177.
iBrelm D ilth e y , Croyance à la vérité du m o n d e extérieur (1 8 9 0 ), in L e M o n d e de fe s p n t , traduzido ' Wilhelm D ilth e y , V É d ific a tio n d u m o n d e historique. op. cit., p. 107. S o b re a p erc e p ç ã o d o m u n d o
d o alem ao p o r M . R é m y , Pans, A u b ie r. 1947. p. 101 -102.
extenor n o c im o da v id a e m b n o n á n a , cf. W ilh e lm D ilt h e y . C royance d la rén té du m onde e x >h ' e'1' ’

x v i n * p " ) " r * d n d<’SÍ" ' P" W " (p o r vo lta d e 188 0), in G esa m m elte Schriften.
°P- ní-, p. 2 3 6 -2 3 7 . Esse p o n t o será ig u a lm e n te re to m a d o p o r N o r b e r t Elias, L a S o a ité des tn m us,

°p • d l., que sustenta n ã o e x is tir u m p o n t o z e r o da v id a social.

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O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia
A PLURALIDADE d o p a s s a d o

entre pais e filhos, homens e mulheres, soberano e súditos. Mas está incluído de form a alguma que, em todas as modificações,
essa coexistência, ou essa com unidade ( G eselschaft), não é formada perdure algo de semelhante a si mesmo.

apenas por esses mortais de carne e osso - parentes, vizinhos, co­


O eu não perm anece rigorosam ente idêntico a si mesmo, não cessa
legas de trabalho - que o jargão s o c io ló g ic o denominará 05 outros
de mudar, e, no entanto, sente-se sempre ele mesmo e se reconhece
situacionais e que povoam h oje tantos com entários sobre o network.
em seu passado: “ A q u e le que neste m o m en to porta um julgam ento
Ela se alimenta igualmente de figuras ideais, ou m esm o imaginárias,
sobre si mesmo é totalm ente diferente daquele que agia e, no entan­
com o o são Prometeu, A nrígona, H am let, Fausto e Sancho Pança,
to, sabe-se c o m o sendo o m esm o ” .358 N e le os processos psíquicos
Tartufo ou M r. P ickw ick. D e figuras históricas também:
se seguem, “ mas não c o m o uma fila de carros em que cada um está
A realidade de Lutero, de Frederico, o Grande ou de Goethe separado do precedente, nem c o m o as fileiras espaçadas de um regi­
recebe uma intensidade e um v ig o r maiores pelo fato de que mento de soldados” . Se fosse assim, a consciência seria intermitente:
eles agem constantemente sobre nosso próprio eu, isto é, pelo
Bem pelo contrário, encontro uma continuidade em minha vida
fato de que esse eu é determ inado pela vontade desses poderosos
desperta. Os processos estão imbricados de tal forma que há sem­
personagens cuja influência persiste e aumenta. Eles são para
pre algo de presente à minha consciência. Assim, um viajante que
nós realidades porque sua poderosa personalidade age energi­
avança a bom passo vê desaparecer atrás dele objetos que, pouco
camente sobre nós.355
antes, estavam diante dele, ao lado dele; outros surgem a seus
Nessa perspectiva, o in divíduo é principalm ente considerado como olhos, mas a continuidade da paisagem não deixa de subsistir.359

uma relação do eu com a históna: “ Assim c o m o sou natureza, sou


Uma totalidade aberta, sociável, que não está isolada e se ali­
também história e é nesse sentido radical que é preciso compreender
menta de relações. Entretanto, o in divíd u o é também um mundo
a expressão de G oethe quando dizia ter v iv id o ao menos três mil
em si, único, singular, inteiram ente diferente de todos os outros:
anos” , com o escreve a D ilth ey seu grande am igo Paul Yorck von
Wartenbourg em 4 de jan eiro de 1888.356 A uniformidade da natureza humana se manifesta no fàto de que se
encontram as mesmas determinações qualitativas e as mesmas formas
E justamente por estar tão intim am ente im pregnado de relações
de ligações em todos os homens [...]. Mas as condições quantitativas
que o eu não é uma entidade, uma essência, um dado originário, nas quais elas se apresentam são muito diferentes umas das outras:
mas antes vida, energia, m o v im e n to — T o ls to i diria uma substância essas diferenças formam incessantemente novas combinações sobre
fluida, sempre em m o v im en to .35 D o n d e a distinção que Dilthey as quais repousa [...] a diversidade das individualidades.
opera entre a noção de identidade ( Id e n tità t), que evoca uma esta­
Embora estando profundam ente, intimamente, impregnado pelos
bilidade de conteúdos, e aquela de “ m esm idade” (Selbigkeit):
outros e pelo m u ndo natural que o cerca, o ser humano não vive
A mesmidade é a experiência mais íntima que o homem pode
fazer de si mesmo. Dessa m esm idade decorre o fato de que
W ilhelm D ilth e y , Lebeit u n d E rke n n en . E in E n tu w rfzu rerken n tn isth eo rietisch en Logik u n d Kategorienlehre
nos sentimos pessoas, de que podem os ter um caráter, de que
(1892-1993 a p ro x im a d a m e n te ), in G e sa m m e lte Schriften, o p . cit., v o l. X I X , p. 363.
pensamos e agimos co m coerência. Em compensação, nela nao
W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e (1 8 9 4 ), in L e M o n d e de 1’esprit. op. cit.. p. 206.
A esse respeito. Pau l R ic o e u r , L e S o i-m é m e com m e u n autre. Paris, É d itio n s du S eu il, 1990, p. 13,
distingue o Si e n q u a n to ipse, S elb st, seif, d o Si c o m o idem , sam e, gleich. Essa percpecriva fo i re to ­
W ilh e lm D ilth e y, Croyance à la vírité du m o n d e extérieu r, op. til., p. 119. ^ mada p o r Françoise D astu r, “ L ’ ip s é ité : so n ím p o r ta n c e e m p s y c h o p a th o lo g ie , Psychiatrie, sciences

^ Briefweiltsel zwischen W ilhelm D ilth e y u n d dem G ra fen P a u l Y orck von W a rten b o u g , o p ■ cit-, P ' humaines et neurosciences, 2 0 0 5 , 12, p. 8 8 -9 5 : “ D e fin ir o h o m e m c o m o ípseidade e n ão mais c o m o

N ik o la ie v itc h T o ls to i, J o u m a u x et cam ets , tr a d u z id o d o russo p o r G u sta ve A u c o u t u r i e r , sujeito im p lica a passagem da n o ç ã o d e eu à q u ela, re fle x iv a , d e si .

illin u rd , 1980, t. 2 (1 8 9 0 -1 9 0 4 ), 19 d e fe v e r e ir o d e 189 8, p. 644 . W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 234.

129
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is tô o ia
A PLURALIDADE DO PASSADO

em virtude das estimulações exteriores. A o contrário, é “ uma in­ a verdade, o mais importante, desta realização. Um a alma assim
teligência que pressente e que pesquisa” . E le faz de si mesmo seu formada aparece co m o o que há de maior entre as realidades
centro, e além disso se interroga, pensa e escolhe. A medida que sua terrestres, e e nesse espirito que G oethe designou a personali­
vida psíquica se intensifica, vê-se capaz de con trolar as energias, de dade c o m o o bem supremo dos homens.363

canalizá-las, a partir de seus próprios valores e dos ideais pessoais:


D efinitivam ente, em bora m últiplo, o indivíduo não forma um
Pouco a pou co [a unidade viva] não está mais entregue ao agregado fortuito. A g e c o m o um todo, é uma unidade viva, que
jo g o das excitações. Ela freia e controla as reações, escolhe, tem uma significação:
quando pode adaptar a realidade a suas necessidades; e, o mais
importante de todos os fatos, quando não pode determinar essa Os m om entos da vida dos indivíduos, tais com o são reunidos
realidade, adapta a ela seus próprios processos vitais e controla em to m o de uma atividade que os constitui num conjunto, não
pela atividade in ten or da vontade as paixões desencadeadas e procedem exclusivam ente deste mesmo conjunto, mas é o ho­
o jo g o das representações. E isso a vida.361 m em inteiro que está em obra em cada uma de suas atividades,
e é assim que ele lhes comunica também sua marca própna.364
O télos da personalidade é a con d içã o essencial para que se
tenha o sentimento da própria história.362 D e natureza subjetiva Está aí, sem dúvida, a fon te m aior de dissensão entre as concepções
e imanente, uma vez que não repousa sobre nenhuma finalidade de Dilthey e aquelas da psicologia contemporânea (em particular
extenor, ele se manifesta sob duas formas. E m prim eiro lugar, en­ o associacionismo e o paralelismo psicofisico), habituada a racio­
quanto capacidade de v iv e r plenam ente as diferentes idades da vida: cinar em termos de estímulos, de reações, de fatores fisiológicos.
O desenvolvim ento [da vida humana] se com põe exclusiva­ Como escreve em 1894, em suas Ideias concernentes a um a psicologia
mente de estados cujo valor vital particular cada um se esforça descritiva e analítica, à força de d ecom p or os fenóm enos psíquicos,
por adquinr e conservar. M iserável é a infância que é sacrificada de reconduzi-los a unidades atómicas, regidas por leis mecânicas,
aos anos de maturidade. Insensata é essa maneira de calculara ‘essa doutrina da alma sem alma” suscitou uma imagem excessi­
vida que empurra incessantemente o h om em adiante e faz do
vamente desagregada d o com portam en to humano: “ É impossível
que precede o m eio daquilo que o segue.
compor a vida mental c o m elem entos dados, impossível construí-la
Em seguida, enquanto força umficante: “ [Esses estados] estão unidos por uma espécie de assem blage, e as zombarias de Fausto a propósito
uns aos outros por uma ligação teleológica tal que o curso do tempo do homonculus fabricado quim icam ente por W agn er visam também
permite um desabrochar mais am plo e mais n co dos valores vitais . toda tentativa deste g é n e ro ” .365 A respeito de psicólogos associa-
Cada idade da vida tem seu valor, mas, c o m o tem po, a forma in­ cionistas, tais c o m o Johann Friedrich Herbart, Herbert Spencer ou
terna da vida se faz mais densa e mais sólida. Rousseau, Herder e Hippolyte T ain e, e m esm o de encontro a eles, D ilthey faz valer o
Schleiermacher elaboraram teoricam ente esse duplo movimento, caráter holístico da psique. C o lo c a o acento não mais sobre estados
Goethe o experienciou. O encanto de sua vida deriva ju s ta m e n te psicofisicos particulares, mas sobre a personalidade individual em
dessa excepcional unidade interior: sua íntegra e p ro p õ e , assim c o m o W illia m James, que não se leve

Tal era o sentido da palavra de N apoleão a propósito de Goethe.


"Eis um h om em ” . O caráter é apenas um aspecto, mas, a dizer W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 224 -2 2 5 . S em d ú vid a . D ilth e y se
refere .íqui à d istin çã o e n tre ta le n to e caráter esta belecida p o r G o e t h e e m uma d e suas célebres
m aximas. U m ta len to se fo r m a na ca lm a e n o silên cio , u m caráter n o rio d o m u n d o (Johann

Ib id -.p 217. W °lfg a n g G o e t h e , M a x im e s et p ensées. Paris, É d itio n s A n d r é S ilva in e, 1961, p. 40).

" C f . Jacques K o m b e r g , “ W ilh e lm D ilt h e y o n th e S e l f a n d H is t o r y : S o m e T h e o re tic a l R ° ° B * ^ W ilh elm D ilth e y , L 'É d ific a tw n d u m o n d e historique, op. cit.y p. 1 22 .
Getstesgeschichle", Central European H isto ry. 5. 1972, p. 295-317. W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 181.

130 131
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PlURAUDADE DO PASSADO

em conta uma sensação, mas um eu que sente: “ A vida psíquica é o temor de que os fatos possam ir-se daqui e de lá, cada um de seu
originalmente e em toda parte, de suas form as mais elementares às lado, sem direção precisa. O m undo está sob pressão há tempo demais:
mais elevadas, uma unidade. N ã o é feita de partes; não se compõe após a R evolu ção, o capitalismo demonstrou sua potência ilimitada,
de elementos; não é um com posto, não é um resultado da colabo­ as massas atulham cada vez mais o mundo sem por isso tomarem-se
ração de átomos sensíveis ou afetivos: é uma unidade primitiva e mais decifráveis, a história vai sempre mais rápido... N os anos 1890,
fundamental” .366 Em 1910, ainda, precisa: escreve com acentos proféticos que “ a decadência dos grandes povos
civilizados da Europa” com eçou .369 T reze anos mais tarde, a flutuação
N o curso da vida, cada experiência vivid a particular é remetida
cultura] faz eco à incerteza social: a metafísica não é mais possível,
a uma totalidade. Esse conju n to vital não é uma soma ou uma
a filosofia é incapaz de p ropor qualquer afirmação, a estética vive
adição de m om entos sucessivos, mas é uma unidade consti­
em plena anarquia, a arte figurativa não conhece mais o código da
tuída por relações que religam todos os elementos. A partir
do presente, percorrem os de maneira regressiva uma série de beleza ideal, a poesia perdeu sua aura. Resta a consciência histórica,
lembranças até o ponto em que nosso pequeno eu ainda não sem dúvida alguma o resultado essencial das transformações dos dois
fixado e form ado se perde nos lim bos, e a partir desse presente séculos precedentes, que conduziram à beira do abismo do relativismo:
lançamo-nos em direção a possíveis inscritos nele e que tomam
U m a contradição aparentemente insolúvel surge quando o
dimensões vagas e longínquas.’ 67
sentimento da história é levado a suas últimas consequências.
A finitude de tod o fenóm eno histórico, seja uma religião, um
III ideal ou um sistema filosófico, e, por conseguinte, a relatividade
de toda interpretação humana da relação das coisas é a última
A faculdade teleológica não é nem um p ou co excepcional, ela palavra da concepção histórica deste mundo, onde tudo flui,
denva da experiência com um . Mas, de acordo c o m Dilthey, só se onde nada é estável. Em face disso erguem-se a necessidade que

revela plenamente no grande h om em . P od e-se mesmo dizer, sob o pensamento tem de um conhecimento universalmente válido
e os esforços que a filosofia faz para chegar a ele. A concepção
certos aspectos, que está aí o segredo da grandeza: “ Cada vida, por
do m undo ( Weltanschauung) histórica libera o espírito humano
sua estrutura intema, é formada, já sobre o plano físico, de contrastes.
da última cadeia que as ciências da natureza e a filosofia não
E cada vida é um processo de recom posição. O s contrastes históricos
quebraram, mas onde encontrar os meios para superar a anarquia
[...] requerem uma força sintética, dina m esm o sobrenatural, que só
das convicções que ameaça se difundir?37"
os heróis possuem".36" C on ven cid o de que o ser humano é esponta­
neamente inclinado a dar uma significação, um valor à vida, Dilthey Nos m om en tos de desencorajamento, quando a sensação de
é otimista: não receia soçobrar incessantemente na confusão e na desfiamento o tom a, D ilth e y busca, ele também, o antídoto no
dispersão. Acontece-lhe, porém , p or vezes anotar com tonalidades grande hom em , aquele que está disposto a partilhar seu eu com
mais dramáticas as discordâncias da história. Assom bra-o a dúvida e seus contem porâneos. R e s o lv id o a defender a todo custo a pos­
sibilidade de dar uma form a ordenada à vida histórica, admira os

Ibid., p. 216
estoicos, Santo A g ostin h o , Petrarca, Lutero ou Goethe, figuras de
W ilhelm Dilthey, U É d ific a tw n du m o n d e historique, op. d t„ p. 94-95. Algum as considerações dc seres íntegros, plenam ente mestres de sua existência. Mas é atraído
Dilthey sobre o caráter holístico da psique serão partilhadas pela psicanálise freudiana, mas também sobretudo p or sua força sintética, sua aptidão a prestar atenção nos
pela psicologia analícica de Cari G u stavju n g e pela psicopatologia fen om en ológica de Karl Jaspe*1
cf. Picter Com elius Kuiper, “ Diltheys Psychologie und íhre B ezieh u n g zur Psychoanalyse', ’■
1965. 1 i, 5. Sobre esse ponto, ver igualm ente Jiirgen Habennas, C o n naissance et intèfêt (1
Wilhelm D ilthey, Leben u n d E r k e n n e n , op. d t ., p. 379.
^ traduzido do alemão por Gérard C lém en çon , Pans, G allim ard, 1976.
^ ilhelm Dilthey, Discours d u so ixa n te-d ixièm e annivenaire (1903), in Lr M onde de l esprit, op. cit., p 15.
Bnefwechsel zw iscben W ilhelm D ilth e y u n d d em G ra fen P a u l Y orck vo n W a rten b o u ig , op. d l-, P- 61

133
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ò b a A PlURAUDADE DO PASSADO

diferentes pensamentos vitais, sua capacidade de recom pô-los e entre si, im pregnam o in d ivíd u o de ideias, de em oções, de imagens
aliá-los num conjunto harm onioso: heterogéneas. N o fundo, não há contradição entre dependência e
autonomia. A o contrário, poderíam os dizer, sob certos aspectos,
O gênio próprio ao soberano ou ao h om em de Estado faz
que a autonomia está fundada na dependência. C o m o escreve num
mesmo os fatos refratários entrarem numa unidade teleológica
ensaio de 1890, experim entam os, a cada m om ento de nossa vida,
permitida por sua coordenação. [...] Assim, é necessária a ação
do gênio para construir, a partir do que é originalmente divereo, "que o ‘ eu qu eren te’ se revela au tónom o sem deixar de estar entra­
ou seja, a partir de elem entos e de suas relações particulares, a vado em suas volições, o que lhe confere um caráter condicional e
unidade que chamamos o espírito de uma época.’ 71 dependente” .374 O in d ivíd u o é tanto mais capaz de se afirmar com o
sujeito e de sentir, p o r conseguinte, prazeres e dores, quanto mais
Infelizmente, o desejo de salvaguardar o sentido unitário do mundo
é alimentado p elo m undo: tom a-se um sujeito psíquico ativo, in­
engendra imagens um p ou co afetadas demais. Especialmente em
dependente, capaz de elaborar as solicitações da realidade exterior,
seus ensaios históricos, reina c o m o que alguma coisa de irreal. Ele
graças à sua relação c o m os outros. Nessa perspectiva, a socialização
peca talvez por excesso de sagacidade, de vontade, de saúde psíqui­
não tem apenas esse e fe ito de h om ologação e de homogeneização,
ca, sobretudo para um filósofo capaz de apreender, desde os anos
tantas vezes dramatizado no século X X (de Erving Goffinan a M ichel
1870, as sombrias turbulências do inconsciente. Pode-se certamente
Foucault), mas é em p rim eiro lugar um processo de diferenciação:
reprovar-lhe alguns passos estilísticos em falso e uma profusão de
adjetivos: “ U m coração in trépido” , “ im b u íd o do sentim ento de sua os indivíduos se distinguem uns dos outros justamente ao interio­

própria força” , “ nascido para agir e d om in ar” e assim p or diante.1'2 rizarem as normas sociais e as regras institucionais.375

A esse respeito, toda a reflexão de D ilth ey sublinha o quanto o


IV mundo histórico não é com preensível em termos de pertencimento,
e ainda menos em term os de propriedade ou de assimilação. U m
Mas de onde procede a autonom ia individual? Se o peque­
indivíduo não p od e explicar um grupo, uma comunidade ou uma
no x não é uma parte im perm eável ao exterior, c o m o o pensam
instituição, e, inversam ente, um grupo, uma comunidade ou uma
Johannes Gustav Droysen e Eduard M ey e r, se m esm o a vida íntima
instituição não p erm item explicar um indivíduo. Entre esses dois
não é livre, mas penetrada pela presença do outro, a que se deve a
poios, existe sempre um resíduo, e esse resíduo é inesgotável. As
diferença humana, o fato de que os hom ens diferem uns dos outros?
cnações da vida coletiva são atormentadas, vividas e realizadas por
Para retomar as palavras de Johann G o ttfried H erder, p or que “ não
há na natureza duas folhas de árvore perfeitam ente semelhantes uma cada indivíduo, mas escapam a seu controle, abarcando um espaço

à outra, e menos ainda duas figuras de hom ens?” .373 humano mais am plo que o simples espaço biográfico. Elas existiam

^ Para Dilthey, a possibilidade de “ perm anecer para si m esm o" antes de nós e continuarão após nós:

não é inata. Ela é fruto da coexistência, n o espaço e no tempo, [Elas] agem c o m o costumes, condutas, e, através de sua apli
e diferentes conjuntos interativos: os grupos, as comunidades, cação ao in divídu o, enquanto opinião pública, em virtude da
as instituições, frequentem ente em com p etiçã o ou em conflito

"‘ Wilhelm D ilthey, C ro ya n ce à la v írilé d u m o n d e ex tén eu r, op. cit., p. 141.


371 W 'lheln’ D il,h c>. L lm agina lw n du p o i u , op. cit. , p. 163. Nos mesmos anos, E m ile D u rk h eim sublinha que o individualismo, longe de o de agr ga ,

r h n lo J lr * j CèmrT ~ ll,n sld crjÇÕes cndcas nesse sentido em " T h e R e la tio n betw een Psy- tensifica o laço social: cf. " L ’ individualism e et les intellectuels" (1898), dans L a en te soaa e e

1940 V n " p 430* 443 ^ ^ o f W llh e lm U llth e y ". S tu d ie s in P h iio so p h y a n d Social Science. l aciion, Pans, P U F . 1987, p. 274. O laço entre individualização e socializaçao sera em segui
retomado por N o rb e rt Elias, La S o a é té des in d ivid u s, op. à t . , p. 37-56. para quem a sou e e nao
|o±unn C . x t f r v j Herder, Id íts p our la philosophie de 1'histoire de 1 'h u m a n ité, op. cit., t. II. p. 1 tem somente a função de igualar e norm alizar, mas tam bém de individualizar.

134 135
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA
A PlURAUDADE DO PASSADO

superioridade do núm ero e p elo fato de que a comunidade


imediatamente ou realizar no seio de nosso eu” . O que equivale a
dura mais tem po do que a vida individual, exercem um poder
dizer que o presente nunca é apenas presente, um estado temporal
sobre o indivíduo, sobre sua experiência e sua potência vitais376
fechado em si m esm o, mas que ele é de uma natureza mais flexível
Basta pensar na Igreja católica: quantas gerações de homens ela e não cessa de solicitar o passado e o porvir: “ O presente não é
viu nascer e desaparecer “ desde os tem p os em que escravos se jamais; o que vive m o s n o im ediato com o presente encerra sempre
esgueiravam ao lado de seus senhores ru m o às tumbas subterrâneas em si a lembrança do que era justamente presente” .379 A exem plo
dos mártires [...] até hoje, quando essa hierarquia com plexa desapa­ de Friedrich N ietzsch e, D ilth e y pensa que o hom em é uma cria­
receu quase totalmente no Estado m o d e rn o !” .377 P o r outro lado, o tura do tem po, inelu tavelm ente ligada à cadeia do passado e que é
indivíduo é sempre um ser bastardo, no cruzam ento (Kreuzungspurtkt) precisamente essa que faz nascer nele a necessidade de se exprimir
de diferentes grupos históricos. E m bora seja m odelado, até a moela, de maneira durável: “ O animal v iv e tudo no presente. [...] Nada
por suas experiências sociais, jamais é redu tível a uma só dessas: sabe do nascimento e da m orte. Assim, sofre bem menos do que
jamais se dá com pletam ente, nem m esm o à sua família, a matriz de o homem. Em bora se observe p or toda parte, no reino animal,
todas as outras formas de vida social. T o m e m o s o caso de um juiz. crueldades, m utilações ferozes, a luta pela vida e pela morte, a
Ele pode pertencer ao m esm o tem p o a uma família, a um partido vida do h om em está exposta a uma dor bem maior e mais perma­
político, a uma Igreja, etc.: além d o fato de que satisfaz nente” . Nossa vida se estende atrás de nós, rumo ao passado, pelo
viés da lembrança, e adiante, numa expectativa, cheia de tem or
[...] a função que ocupa no espaço jurídico, ele é fruto de diversos
ou esperança, voltada para o porvir: “ Dos dois lados ela se perde
outros conjuntos interativos; age no interesse de sua família, deve
na obscuridade” .380 C on trariam en te ao que dirão, nos decénios
cumpnr uma atividade económ ica, exerce suas funções políticas, e
talvez, de quebra, componha versos. Assim, os indivíduos não estão seguintes, numerosos sociólogos (especialmente alguns defensores
inteiramente ligados a tal conjunto interativo, mas, na diversidade do interacionismo s im b ó lico 381), o eu não é um produto h ic e t nunc,
das relações de causa e efeito, só são postos em relação uns com determinado p or uma situação contingente. Suas ações são fundadas
outros os processos que derivam de um sistema determinado, e o na duração e se alim entam de imagens do passado e de antecipações
indivíduo está imbricado em conjuntos interativos diferentes.™ do porvir: “ D iferen ça entre a alma e as menores partes do corpo” ,
escreve D ilth ey no fim dos anos 1870,
Por sorte, mesmo quando não é possível, c o m o nas situações
extremas, habitar simultaneamente diversos espaços, resta-nos ainda [...] estas tendem , na flutuação de condições que aparecem
a possibilidade de haurir recursos atrás de nós e à nossa frente, em e desaparecem, a voltar a seu estado primeiro. A alma, ao

outros tempos: "N um erosas são em nós as possibilidades da vida contrário, guarda nela as consequências dos influxos recebidos,
m esm o após a chegada de influxos de sentido oposto: segundo
em relação à m em óna e ao querer p rojetad o para o porvir, [...] àe
tal forma que nossa imaginação vai além do que podemos viver
Wilhelm D ilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u n i A u jb a u der geschichtliclien W elt in den G eistwissenschaften
(1907-1910), in G e sa m m e lte S c h n fte n , op. cit., t. V II, p. 194, 259. Sobre o tem po real, cf. igual­
W ilhelm Dilthey, L É d ifu a tio n du m onde historique, op. cit., p. 8 8 . mente W ilhelm D ilthey, S tu d ie n z u r G ru n d leg u n g der G eistw issenschaften (1905-1910). in G esam m elte
^ W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de l ’esprit, op. cit., p . 2 2 4 . Schnften, op. cit, vo l. V II, p. 70-75.

dh elm D ilth ey , L Édification du m onde historique, op. cit., p. 118. O gru p o a que Dilthey atribui a Wilhelm D ilthey, L eb en u n d E r k e n n e n , op. cit., p. 357.
nw.- ^ n e capacidade de unificar a experiência é, sem dúvida alguma, a geração, entendida como Segundo Herbert Blurner, " A ação específica tem lugar no seio de uma situação e se refere a
restnto de indivíduos que, no curso de seus anos de form ação, foram confrontados a c csta l- -]: qualquer que seja a unidade — um indivídu o, unia família, uma escola, uma igreja* uma
inl 1,05 niesmos acontecim entos. Ela e x p n m e uma relação de con te m p ora n eid a d e do» empresa, um sindicato, etc. - cada ação específica se forma com base na situação no seio da qual
, UOS Essc Ponto serí retom ado por Sigfried Kracauer, V H is to ir e : des a n m t-d e m iè n s clioírs * desenrola": H erbert Blum er, S ociety as Sym bolic Interacton, in A m o ld M . R o se (dir.), H u m a n
* ra^ ,IZ1^0 do inglês por Claude O rsom , Paris, Stock, 2006, cap. 1. Beliavior a n d social Processes: A n Interaction A pp ro a ch , Boston, H ou ghton M ifflin, 196-, p. 187

136
O PCQUENO X - Da BIOGRAFIA k HISTÓRIA
A PLURAUDADE DO PASSADO

a bela frase de Schleierm acher que diz que nela nada perece. É E co m o a organização política contém em si uma diversidade
por esta razão que ela pode se desdobrar.'82 de comunidades que descem até a família, a vasta esfera da vida
nacional com preen de, ademais, comunidades, conjuntos mais
Enquanto isso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade restritos que têm em si seu m ovim ento próprio. [...] Cada um
ou uma instituição e uma época ou uma civilização não é definível em desses conjuntos interativos está centrado sobre si mesmo de
termos de pertencimento. Sem dúvida, toda época exprime uma figura uma maneira particular e é aí que se encontra fundada a regra
dominante. É unilateral e, em certos m om entos, a consonância entre interna de sua evo lu çã o.,86

os diferentes domínios da vida é particularmente forte: por exemplo,


Profundamente insensível à magia da cronologia, D ilthey não
o espírito racional e mecanicista do século X V I I influenciou a poesia,
deixa de conceitualizar a pluralidade fundamental do mundo histó­
a ação política e a estratégia de guerra. Mas trata-se de exceções, já
neo em sua dimensão tem poral. N a esteira de Herder, que afirmava
que os diferentes campos gozam de certa autonomia: “ Cada conjunto
que todo fen ó m en o é o p róp rio relógio, escreve, em 1910, que o
particular contido [no mundo histórico] possui, através da posição de
tempo histórico não é n em um m o vim en to retilíneo nem um fluxo
valores e da realização de fins, seu próprio centro” .383 C o m o Wilhelm homogéneo.387 Assim, o século X V I I I é habitado, ao mesmo tempo,
von Humboldt escrevia já em 1791, há sempre fragmentos de história pelas Luzes, p or Bach e p elo pietism o:
que resistem ou recusam conformar-se ao m o vim en to geral.384 Disso
Esse conju nto h om ogén eo, em que se expnme, em diferentes
resultam irregularidades, diferenças, discordâncias:
dom ínios da vida, a orientação dominante das Luzes alemãs,
Esse conteúdo [histórico] se apresenta c o m o uma unidade. não determ ina p or isso todos os homens que pertencem a
E o que pôde fazer nascer a ideia de que era possível expor esse século, e, m esm o lá onde sua influência se exerce, outras

o conjunto da história sob a form a de relações lógicas entre forças agem muitas vezes a seu lado. As resistências do século

pontos de vista hom ogéneos. Assim, os hegelianos estragaram precedente se fazem sentir. As forças ligadas às situações e às

a inteligência da filosofia m oderna pela ficção segundo a qual ideias anteriores são particularmente ativas, mesmo se buscam
dar-lhes uma form a n ova.388
os pontos de vista decorreriam logicam ente uns dos outros.
Em realidade, uma situação histórica con tém inicialmente uma
De certa maneira, D ilth e y desenha o tod o histórico com o um
diversidade de fatos particulares. Refratános, estes são simples-
385
conjunto maleável, con flitu oso, no seio do qual coexistem forças
mentejustapostos e não se deixam recondu zir uns aos outros.
discordantes que se rebelam contra a unidade forçada do Zeitgeist:
Uma civilização não constitui, portanto, uma entidade compacta e Não se trata de uma unidade que seria exprim ível por uma ideia
não é feita de uma única substância, redu tível a um princípio pri­ fundamental, mas antes de um conjunto que se edifica entre as
mordial. D eve antes ser com preendida c o m o um entrelaçamento tendências da própria v id a ” .389 D efinitivam ente, as considerações

ou uma mistura instável de aspirações diferentes e de atividades que de Dilthey sobre a natureza heterogénea e descontínua do tem po

se contradizem. Acolhe diversos conjuntos interativos em perpétuo Histórico propõem uma im agem musical da relação entre as partes

movimento (a economia, a religião, o direito, a educação, a política,


o sindicato, a família, etc.):
Wilhelm D ilthey, L ’É d ifica tio n d u m o n d e historique, op. a t ., p. 122-124.
1‘rovavelmente, c o m o o dirá S ie gfn ed Kracauer (L 'H is to ir e , op. d t., p. 216), seria m elhor substituir
J expressão a marcha d o te m p o ” p o r “ a marcha dos tem pos". C f. igualmente W alter Benjaniin,
' W IiT l" ^ ErkennUns,heonschf F n g m en le, op. cit., p. 63. OnjJÍHf du drame barroque a iiem a n d (1925), traduzido do alemao por Sibyle M uller, Paris, Flamma-

4W á h V U Cy L E J 'tUal,0n du m onJe historique, op. cif., p. 92. t non- 1985, p. 38-39.


WilhcWn\on H n m iv jj. .
S d iriftm op C11 ^ 'r (^ ese,ze drr E n tw ick lu n g der m enschlichen K r afie, in C esttmm tllt Wilhelm Dilthey, L ’Édifica tio n d u m o n d e historique, op. cit., p. 132.
fà d „ p. ] 3 3 j j ni ano m ajs e ]e voltará a esse ponto, in D ie T y p e n der tV eltanschauung u n d
W ilhelm Dilthey, V ^ m tw n du p0>,r o p . „ , p
irt A^sbildung in deu m eta p h ysieh en S y s te m e n , in O esa m m elte Schriften, vo l V III, p. 89-90.

139
O PEQUENO x - Da b io g k a fia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO

e o todo, num jo g o in fin ito de harmonias e de dissonâncias não compreender um ed ifício observando cada um dos tijolos que o
previsíveis: não existe um núcleo ún ico, que seria ao mesmo tem­ compõem, exam inando o cim en to e identificando a mão de obra
po a melodia e o acom panham ento (o século das Luzes), mas uma que o construiu, pois o que im porta verdadeiramente é a orde­

alternância de temas que se encadeiam e se entrecruzam.390 nação arquitetural. O m esm o se dá com a vida. N ã o podemos
decompô-la em m il pedaços, precisamos apreender sua conexão
V psíquica dom inante: “ T o d a vida tem seu sentido próprio: ele reside
na conexão significativa n o seio da qual cada m om ento evocado
Desejoso sobretudo de descobrir as diferentes maneiras como a possui seu p róp rio va lo r e tem também [...] uma relação com o
humanidade realiza sua liberdade interior, D ilth e y volta muitas vezes sentido da totalidade” .393 Infelizm ente, não se trata mais aí de um
à biografia, a forma de historiografia mais filosófica segundo ele: edifício, e a tarefa é b em mais árdua. A conexão psíquica dominante
se exprime plenam ente na duração, já que é uma “ forma gravada
É a vontade de um h om em , em seu desdobramento e em seu
destino, que é aqui apreendida em sua dignidade como fim em que se desenvolve v iv e n d o ” ; p or conseguinte, não podemos com ­
si, e o biógrafo deve perceber o h om em sub speàe aetemi, tal preender plenam ente o in divíd u o, p or mais próxim o que esteja,
com o ele mesmo se sente nos m om en tos em que, entre ele ea senão observando c o m o ele se tornou o que é. É por essa razão que
divindade, tudo é tão som ente transparência quase não velada, Dilthey se pergunta, repetidam ente, se a biografia não assume todo
signos e intermediários, e em que se sente tão próximo do céu seu sentido som ente na idade adulta, quando o processo de indivi­
estrelado quanto de qualquer parte da terra.391 duação é com pletado. Considera m esm o a necessidade de esperar
o fim do curso da vida: talvez som ente na hora da morte pode-se
Desse ponto de vista, a biografia p rivilegia o grande homem na
contemplar a totalidade de uma vida. Em todo caso, cada elemento
medida em que esse é capaz de am algam ar experiências duráveis.
particular da existência adquire uma significação essencialmente
Mas tal propensão não é nem um p o u co exclusiva. E possível contar
por sua con exão c o m a totalidade. Nessa perspectiva, que será
qualquer vida, da mais insignificante à mais notável, da cotidianidade
mais tarde retom ada p or Hannah Arendt, a verdade e a significação
aos mais altos feitos: “ A família guarda suas lembranças, a justiça
(.Bedeutung) não coin cid em : a primeira descreve um pensamento,
criminal e suas teorias nos fazem con h ecer a vida de um malfeitor,
uma sensação ou uma ação, enquanto a segunda indica a relação
a patologia psíquica a de um anormal. Cada elem en to humano se desse pensamento, dessa sensação ou dessa ação com uma vida em
toma para nós um docum en to que nos apresenta algumas das pos­ seu conjunto (pessoal ou histórica). E, na biografia, assim com o na
sibilidades infinitas de nossa existência” .392 história, é a significação que d eve predominar, uma vez que uma
A dizer a verdade, no que con cern e à biografia, Dilthey coloca miríade de fatos verdadeiros não basta para nos revelar uma vida:
uma única condição: considerar o ser hum ano em sua íntegra. Se como escrevera, uma v e z ainda, G oeth e, “ um fato de nossa vida
o eu é holístico, a biografia tam bém d eve sê-lo. N ã o chegam os a não vale por ser verdadeiro, mas porque significava alguma coisa’ .394

Dilthey não se contenta em defender a natureza holística da


biografia; ele sublinha igualmente o laço vital profundo que exis­
Jorge Luís Borges perguntará: co m o se po d e im aginar que C ervantes era contemporâneo
quisiçàor O . Jorge Luis Borges, In M e m o r y o f Borges, c o m p reen d en d o textos de Borges, G te entre a obra de arte, a biografia e a história. Em suas obras de
Green. Vargas Llosa, 1988. C f. igualm ente os protestos de A lb e r to Savm io, F ine dei tnodelli (1 1
in Opere, p. 479, contra a indiferença de C ro n o s que lançou G ioa cch m o Rossini num ^
que lhe é estranho. Sobre o valor do anacronism o, cf. igualm ente Hans Magnus EnzensbH^
Ibid., p . 1 9 9
Feuilletagt Essais (1997), traduzido do alem ão p o r B em a rd Lortholary, Paris, Gallimard, I
Coiwcrsatiom de G o eth e avec E clterm a n n , op. cit., 30 m arço de 1831, p. 413. Sobre a distinção entre
^ W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de 1’esprit, op. cit.. p. 191.
'erdade e significação, v e r igualm ente Hannah A rendt, L a l'ie de 1’esprit (1978), traduzido do
W ilhelm Dilthey, P h n der F ortsetzung z u m A u fb a u d erg esch ich tlich en W e lt in den G eistw sstns
'"glêsp or Lucienne L o tn n g er, Paris, P U F , 1981, p. 30.
in Gesamm elte Schnften, op. cit., p. 247.

140
O PEQUENO X - Da BIOGRAflA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

estética, toma por alvo de suas críticas “ todas as finezas artificiosas que invoca não é mais G oeth e ( T u d o se liga a isto: para fazer alguma
que gostariam de separar o belo da experiência da vida” . Para ele, o coisa, é preciso ser alguma coisa” ), mas Shakespeare, que, pela voz
poeta é uma alma impregnada de vida: “ E preciso procurar antes de de Hamlet, recorda que o fim do drama sempre foi “ tanto na ongem
mais nada o fundamento dos efeitos específicos do poeta no ambiente, quanto agora apresentar de certa forma o espelho à natureza; mostrar
na riqueza e na energia de suas experiências” .3yi Essas estão inten­ à virtude seus próprios traços, à vergonha sua própria imagem, ao
samente vivas tanto na matéria quanto n o estilo, já que existe uma século e ao corpo do tem p o a impressão de sua forma” .4u0
relação estreita entre o estado psíquico que engendra a obra poética A relação entre a obra de arte, a biografia e a história, porém,
e a forma que lhe é própna: “ As imagens e suas relações ultrapassam, está longe de ser simples: cada uma das linhas das A finidades eletivas
por essa razão, a experiência vivida ordinária; mas o que nasce dessa foi vivida, mas nenhuma delas é tal com o foi vivida.401 Nesse senti­
forma representa, entretanto, essas experiências, ensina a captar suas do, toda catalogação biográfica é inadequada. N ã o basta repertoriar
significações e a aproximá-las de nosso coração” .391’ Contrariamente os hábitos do poeta, reconstruir suas frequentações ou escutar as
ao que afirma M areei Proust, exatam ente na mesma época, a obra declarações de seus am igos, c o m o pensava Sainte-Beuve. É mesmo
de arte não é para D ilthey o fruto de ou tro eu, mais profundo, que inútil interrogá-lo sobre o que pensa de tal ou tal coisa, porque a
escaparia, e mesmo se recusaria à experiência de vida.39 Para ele, inteligência artística é inconsciente, muitas vezes incapaz mesmo
nenhum abismo separa o poeta do h om em . M ais ainda, Hyperion é de se explicar: “ O trabalho criador do poeta repousa em toda parte
Hòlderlin, Empédocles é H õlderlin: m esm o distanciamento da agi­ sobre a energia c o m que v iv e as coisas. Em sua organização, que
tação do mundo, mesmo peso do passado... “ Se essa fórmula é um oferece poderosa ressonância aos sons da vida, a noticiazinha sem
pouco estreita, temos mesmo assim o d ireito de dizer: é somente na alma de um jorn al, na rubrica “ O m undo do crim e” , o seco relato
medida em que um elem ento psíquico, ou uma combinação de tais de um cronista ou a lenda grotesca se transformam em experiência
elementos, está em relação com um acontecim ento vivido, e com vivida” .402 M o za rt abandonava-se às impressões suscitadas pela vida,
a representação deste, que ele p od e ser elem en to constitutivo da como um peregrin o em terra estrangeira, com um prazer profundo
poesia” .3'1" Mas há mais. Porque o poeta não v iv e nas nuvens, sua e em toda liberdade. O mesmo poderia ser dito de Lessing, de Goethe,
obra tem igualmente sua historicidade e, em certos casos, exprime de Novalis e de H õ ld erlin , os elos do m ovim en to espiritual alemão.
as inquietudes de toda uma geração: “ A arte pinta o céu e o infemo, Ei-los, in d e fec tiv elm e n te im pregnados das vivências mais dispa­
os deuses e os fantasmas com cores emprestadas à realidade. Ela se ratadas, “ pois a vida de um h o m em está tão entrelaçada com os
contenta em intensificar os elementos desta” .399 Dessa vez a referência destinos de m uitos outros que um dia ele os vê subitamente com
uma força visionária em face dele para, em geral, voltar a perdê-los
no tumulto do m u n d o, ou senão é tocado de maneira mais efém e­
W ilhelm Dilthey, L 'Im a g itia tio n d u p o è te , op. cit., p. 115.
Ibid., p. 94 e 164. A esse propósito, C f tam bém Hans G e o r g G adam er, Vèritè et méthode. Lb
ra, talvez som ente pela expressão de um indiferente ou a notícia
grandes lignes d une herm éneunque p h iloso p h iq u e (19 60 ), tradu zido d o alem ão por Pierre Fruchon,
Jean Grendin e Gilbert M erKo, Pans. Édm ons du Seuil, 1996, p. 325-329.

Mareei Proust, C ontre S a in te-B eu v e, op. a t . , p. 121-147. Wilhelm D ilthey, U lm a g in a tio n d u po ete, op. n t . , p. 163. C f. W illiam Shakespeare, H a m le t, ato
Hl, cena II, linhas 19-23. N o curso d o discurso p rofen d o em Viena, em 1936, por ocasião dos
W ilhelm Dilthey, L Im agm ation du poète, op. cit., p. 104. C f. igualm ente as proposições sobre i
cinquenta anos de H erm ann B roch , Elias C anetti definiu o escritor co m o um fin o cão de caça,
filosofia considerada com o uma essência viva, “ um organ ism o alim entado pelo sangue de um
filósoto": W ilhelm Dilthey, D asgeschichtliclie B e w u sstsein u n d d ie W cltanscliauungen. in C esa m m * tendo o vício de m eter o nariz nos recônditos de sua época.

Schrifien, op. cit . vol. V III, p . 30 sq. Sobre a ligação entre experiên cia vivida e visão filosohu, Recentem ente, A m o s O z declarou: "Q u a l é a parte da autobiografia e da invenção em minhas

W ilhelm Dilthey, L H istoire de la je u n esse de H eg el in L e ib n iz et H eg el. traduzido do alemao p » histórias? T u d o é autobiografia: se um dia escrevesse uma história de amor entre M adre Teresa c

^Jean-C nstophe M erle. t. V , Pans. Édm ons du C erf, 2002. Abba Eban, sena certam ente uma históna biográfica - em bora nào confessada. Todas as histónas

” * W ilhelm Dilthey, C ontributions à 1’étude d e fin d iv id u a lité (1 8 95 -189 6), in L c m onde de 1'tspM. °P que escrevi sào autobiografias. N en h u m a é uma confissão".
à t. p. 278. Wilhelm D ilthey, L 'h n a g in a tio n d u p o ete, op. d t, p. 60.

142
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO

de u m jornal empanturrado de fatos” .4" ’ Estranho à mentalidade maiores preocupações, fragm entos de imagens incoerentes, o poeta
aritmética do dois e dois são quatro, D ilth e y sabe m u ito bem que negligencia inten cion alm en te os traços contraditórios. Em seguida,
a obra de arte não é uma representação direta e fiel da experiência a intensificação de cada elem en to, a exem plo do que acontece num
vivida, nem mesmo a im itação de uma realidade efetiva, dotada de palco de teatro quando um personagem particular é iluminado por
uma existência independente, mas antes um m o m en to de criação de um refletor (em Shakespeare e Dickens, há “ uma espécie de luz ar­
que surge algo de im previsível, que perm anecera até então latente. tificial: as imagens são colocadas sob a iluminação elétrica e crescem
Embora penetrada de vida, a poesia transcende a realidade e se sob a lupa” ).4U6 E nfim , a integração: “ U m a imaginação que apenas
serve da experiência para en n qu ecê-la c o m n ovos temas: “ As ima­ eliminasse, reforçasse ou diminuísse, aumentasse ou reduzisse, seria
gens e suas com binações se desdobram livrem en te [no poeta] para fraca e não produziria mais do que uma idealidade sem relevo ou
além das fronteiras do re<j/” .404 T u d o se passa c o m o no sonho ou no uma caricatura da realidade. P o r toda parte onde se constitui uma
delíno, dois estados psíquicos em que se realiza “ a livre modelagem obra de arte verdadeira, produz-se um desdobramento substancial
das imagens” . Essa afinidade entre a poesia, a fantasia onínca e a das imagens que receb em um com plem ento positivo” .407
loucura é evidente em Rousseau e em B yron , os mais eminentes
VI
poetas subjetivos dos dois últim os séculos: “ Se lem os a história de
Rousseau a partir desse 9 de abril de 1756, data de sua instalação no Por m uito tem po, D ilth e y acariciou a esperança de apreender
eremitério do parque de L a C h evrette, em que ele ‘ com eçou a viver’, a significação - ou as significações - da vida graças à psicologia: é
até sua morte, que só ela pôs fim a seus sonhos, a suas decepções, e nessa ciência fundamental, entendida com o conhecim ento da ex­
mesmo à sua mama de perseguição, é im possível separar seus fan­ periência vivida (Erlebnis*™) e não co m o ciência experimental, que
tasmas de seu destino” . B yron tam bém “ am plificou fantasticamente devem se fundar a biografia e a história, com o afirma seu ensaio

todos os acontecimentos de sua v id a ” . M as esses não são casos ex­ Uber vergleichende Psychologie. Beitràge z u m S tu d iu m der Individualitàt,

cepcionais: todas as produções poéticas, m esm o as mais sãs, revelam escrito entre 1895 e 1896 em resposta às críticas de W ilh elm W in -

afinidade com os “ estados psíquicos que se afastam da norma da vida delband e de H ein n ch Ebbinghaus.409 Nesse texto, com o em outros

desperta".4"’ C o m uma diferença, entretanto. Enquanto no sonho, que datam dos anos 1890, a com preensão ( Verstehen) é encarada

na loucura ou no estado de hipnose, a coerên cia da vida psíquica é como um processo de reconstrução psicológica graças ao qual o

diminuída, ela se encontra, ao contrário, aguçada na arte: o poeta intérprete é transposto ao h orizon te de outro. E somente por esse

transcende a realidade para percebê-la de maneira mais potente e movimento im agin ativo — ultrapassando os limites da Erlebnis indi­

profunda. Para D ilthey, a transformação poética da realidade se vidual e reencontrando o p róp rio eu no tu - que é possível reviver

funda sobre três operações estéticas (qu e p o d em nos parecer, hoje (nacherleben) e reprodu zir analogicam ente o ato criador de outro

em dia, ligadas demais ao cânone d o classicismo). Em primeiro ser humano (quer se trate do autor de um texto ou do protagonista
lugar, a omissão: diferentem ente d o delirante, que mistura, sem de um fato): “ A preen dem os a vida interior [de outras pessoas]. Isso

W ilhelm Dilthcv, G oethe e t r im a g in a tio n po étiq u e, op. cit , p. 286. Sobre Sainte-Beuve, cf. o capitulo Wilhelm D ilthey, L ’Im a g in a tio n d u p o ète, op. cit, p. 102.

O limiar biográfico” . ‘ " I M ; p. 103. Sobre a poética de D ilth ey, cf. Kurt M iille r V ollm er, Towards a Phenomenological
Theory o f U terature. A S tu d y o f W ilh e lm D ill h e y ’s P oetik, La H aye, M ou ton. 1963.
W ilhelm Dilthey, U lm a g m a tio n du poèle, op. cit., p. 67.
•"Sobre a noção de E rlebnis na reflexã o de D ilth ey, ve r especialmente O tto Fnednch B ollnow ,
Ibid., p 9S A analogia entre a criação artística e o sonho é proposta igualmente por Norbeit
Dilthey. E ine E in fu h n w g m seine P h ilo so p h ie (1936), Schaffhausen, Novalis Verlag, 1980, p. H4 sq.
Elias, M o za rt Soaologie d un génie. traduzido d o alem ão p o r Jeanne Étoré e Bemard Lortholarv.
I‘ins. Édmons du Seuil, 1991; e por A ndré G reen . L a lettre et la m ort. P rom enade d ’u n psychúnahílt " Wilhelm W indelband. “ H istoire et sciences de la nature". op. cit.; H einrich Ebbinghaus. “ Ú b er

à tr a n n l.i littérature: Proust, Shakespeare, C o n ra d , B o r v e s ... entretiens avec D om iniqu e Eddé, Pam' erklarende und beschreibende PsycholoRie” , Zeitschrift fitr Psychologie u n d Physiologie der Smnesorgane.
Denoel, 2004, p. 142 sq. >8% , IX , p. 161-205.

144 145
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

ocorre por uma operação espintual que equivale a um raciocínio Em 1910, um ano antes de sua m orte, termina por abandonar
analógico. Os defeitos dessa operação v ê m d o fato de que só a definitivamente toda form a de intuição psicológica. Reitera, uma
realizamos transportando nossa própria vida psíquica a outrem ” .410 vez ainda, que o c o n h e cim e n to é uma expressão vital: “ N ã o é uma
Eis-nos aqui bem longe do preceito distante prescrito (mas talvez áémarche conceituai que constitui o fundamento das ciências do es-

bem pouco posto em prática) p or R an k e, que recomendava ao pínto, mas a apreensão de um estado psíquico em sua totalidade e

histonador apagar o p róp n o eu, de maneira a deixar falar apenas a capacidade de reen con trá-lo reviven d o -o . E a vida que apreende
aqui a vida” .414 Mas revela-se cada vez mais pessimista quanto à
as coisas. D ilthey não o estima possível, n em desejável. Pensa, ao
possibilidade de participar de maneira imediata da experiência de
contrário, que só a extensão do eu tom a possível a compreensão do
outrem pela simpatia (N a c h fu h lu n g ). Ele que, em seus escritos de
mundo históneo: o ato de reproduzir e de reviver, essa passagem
juventude, se definia c o m o a um só tem po historiador e psicólogo,
do eu ao tu, é para ele c o m o o solo alim entador, “ on de mesmo as
descobre partilhar doravante a desconfiança de G oethe em relação à
operações mais abstratas das ciências morais d evem haunr sua força.
introspecção: o h o m em só se con h ece na medida em que conhece
A compreensão não pode jamais ter aqui um caráter puramente
o mundo, só con h ece o m u ndo em si e só se conhece no mundo.
racional. E vão querer fazer com preen d er o herói ou o gênio acu­
Mas, então, c o m o nos é possível com preender o outro? C o m o
mulando as circunstâncias de todas as espécies. A via de acesso que
podemos nos recon h ecer nele, sentir seus estados de alma? E com o
m elhor lhe con vém é a mais subjetiva” .411
podemos nos fundar no ato de compreensão, ainda mais quando essa
Entretanto, sua confiança na psicologia não fo i inabalável.
sobrevêm a posteriori? “ E m face da intrusão constante do arbitrário
Desde 1894, escreve que não são as experiências psicológicas, mas romântico e da subjetividade cética no dom ínio da história” , Dilthey
a história que perm ite ao in divídu o apreender o que ele é.412 Treze enfrenta essas questões, durante os dez últimos anos de sua vida,
anos mais tarde, alerta contra a ideia de re viv e r diretamente um na esperança de “ fundar teoricam ente o valor universal da inter­
estado psíquico:
pretação, sobre o qual repousa toda certeza histórica” .4’3 Reatando

Se quiséssemos [...] viver agora imediatamente, aplicando-nos a


com a tradição herm enêutica que abordara nos anos 1860 com uma
isso de qualquer maneira que seja, o fluxo da própria vida, (...) grande biografia de Friedrich Schleiermacher, escreve que a obra
recairíamos sob a lei da vida, segundo a qual todo mom ento ob­ de arte é com preensível graças à afinidade que existe entre aquele
servado, ainda que reforcemos em nós a consciência desse fluxo, é que exprime e aquele que escuta.416 A individualidade do intérprete
o momento que se tom ou lembrança, mas não o fluxo; pois está e a de seu autor não são estranhas ou incomparáveis entre si: bem
hxado pela atenção que petrifica então o que em si é corrente.
pelo contráno, “ são constituídas tanto uma com o a outra sobre os
Não podemos, por conseguinte, penetrar a essência desta vida:
elementos fundamentais da natureza humana em geral, o que toma
o que o jo vem de Sais desvenda é uma forma e não a vida.413
possível a com unidade entre os homens no discurso e na com pre­
ensão” . Os seres humanos d iferem uns dos outros, e a compreensão
W ilhelm D ilthey Psydiologic descriptive et analytique, op. cit., p. 203-204. A ideia da dilatação do eu.
mútua é-lhes uma tarefa árdua. T u d o bem considerado, não se
^ - *ii num m ovim ento condnuo entre estraneidade e reconstrução, procede de G oethe, que, mais
^H * ninguém, parece possuir uma faculdade quase fem inina de simpatia com a existência trata, no entanto, de diversidades qualitativas entre as pessoas, mas
suas tormas, uma im aginação que a aumenta reconstruindo-a” (G o e th e et 1’imaginalion
analytique, op. cit., p. 259).

W ilhelm Dilthey, C ontribui,on à 1’élude de fin d iv id u a lité , op. cit., p. 282. A crítica de Dilthey a o véu da deusa, em Sais - Mas o que viu? V iu - maravilha das maravilhas - a si m esm o’ , sobre o
41 k' tol " ,‘“ i Iarde ret°m ada por G eo rg Sim m el: cf. Pietro Rossi, L o sloricismo contemporâneo, qual Dilthey reflete em G o e th e et l ’im<igination p o étiq u e, op. cit.
op- a t., p. 235.
Wilhelm Dilthey, L 'É d ific a lio n d u m o n d e historique, op. cit., p 90.
^ W ilhelm Dilthey, Psychologie descriptive et analytiq u e, op. cit., p. 389.
’ ( Wllhe|m Dilthey, N a issa n ce de 1 'h en n én eu tiq u e (1900), in Écrits d'esthétique, op. cit., p. 307.
i» m ^ a" <
*lT ^ onset* un8 z u m A u fb a u dergeschichtlichen W e ll in d eu Geistesunssenschafien, Sobre sua leitura de Schleierm acher, cf. Franco Bianco, Sloricismo ed em ieneutica, R om a . Bulzom ,
™ •P rata-se de um dístico de Fnednch N ovalis: “ A lgu ém o conseguiu - que retirou
1^74, cap. 3; G eorges G u sdorf, L es origines de 1’h erm in eu tiq u e, Paris, Payot, 1988, cap. 4

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147
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A PLURAUDADE DO PASSADO

“ das diferenças de intensidade em seus processos psíquicos” .417 Essa a totalid ad e em u m a única de suas expressões.422 Felizmente, o ser
leitura otimista vale igualm ente para o passado, um m undo que lhe humano tem constante necessidade de expressar seus estados de alma.
é familiar, no qual evolui com desenvoltura: E diferen tem en te d o animal, não se limita a manifestações corporais.
Graças à linguagem , p o d e escapar à solidão de sua vida interior
Da distribuição das árvores num parque, da ordenação das casas
para contar-se, cantar, pintar, dançar, etc.423 E são essas realizações
numa rua, da ferramenta bem adaptada do trabalhador até o jul­
extenores que to m a m possível a compreensão: “ Esta compreensão
gamento pronunciado no tribunal, há incessantemente à nossa
vai da apreensão d o balbucio da criança até a de Ham let ou da
volta produtos da históna. [...] Já que o tem po avança, estamos
Crítica da razão p u ra . O m esm o espírito humano nos fala na pedra,
cercados por ruínas romanas, catedrais, pelos castelos da monar­
no mármore, nos sons musicais, nos gestos, nas falas e nos escritos,
quia. A história não é algo que esteja separado da vida, nada que
esteja cortado do presente por seu distanciamento no tempo.418 nas ações, na o rd em eco n ó m ica e nas constituições, e requer uma
interpretação” .424 E nquanto o processo criativo vai da experiência
Q u e o material seja in evitavelm ente lacunar e obscuro, de certa vivida (Erleben) à expressão (A u sd ru c k ), o processo da compreensão
forma uma não evidência, não constitui um obstáculo insuperável. segue o caminho inverso: só penetramos a interioridade do outro
Por certo, o historiador é con dicion ado p o r sua época, mas, como por seus efeitos, p o r causa das manifestações pelas quais, com o diria
qualquer outro intérprete, pode dilatar sua experiência e se abrir Hegel, a consciência humana se objetiva.425
a outra vida: P o r cima de todas as barreiras de sua própria época,
Estes “ produtos objetais” , c o m o os chama Dilthey, são mui­
ele olha para fora em direção às civilizações d o passado; ímpregna-
to numerosos: a linguagem , o m ito, a arte, a religião, o direito, a
se de sua força e re-expenm enta sua magia: e tira daí um grande organização política (poderíam os m esm o acrescentar o sonho, a
aumento de felicidade” .419
cozinha, a moda, o sintoma, etc.). Alguns entre eles apresentam a
Em relação a seus escritos precedentes, é sobretudo a imedia- vantagem de produ zir figuras firmes e estáveis, enquanto tudo o
tez que é abandonada: a com preensão se tom a um ato refletido.420 que se passa em nós, nossa interioridade, é dramaticamente precário
D ilthey estima que, ainda que não tenhamos acesso direto à signi­ e fugidio, até para nós mesmos: “ V erídica em si, [a obra de arte] se
ficação profunda de uma existência, p od em os ao m enos apreender ergue firme, visível, durável, tom an do possível uma compreensão
alguns fragmentos seus mediante suas manifestações exteriores: “ A segura e regular. Assim, nos confins do saber e do fazer se desenha
existência de outrem só nos é inicialm ente acessível do exterior um círculo em que a vida se abre a uma profundidade que não é
através dos dados sensíveis, gestos, sons e ações” .421 C o m o Droysen acessível nem à observação nem à reflexão nem à teoria . A seus
dissera e repetira durante os decénios anteriores, só compreendemos olhos, não resta dúvida de que a literatura constitui o produto mais
eminente, aquele que, mais d o que qualquer outro, permite que nos

W ,lhelm Dilthey, Naissance de V h erm fneuliqu e, op. cit., p. 305.

^ W ilh elm Dilthey, L É d ifia iiw n du m onde historique, op. cit., p. 101.
Johann Gustav D roysen, H is to r ik , op. a í., p. 112.
41 W ilhelm Dilthey, N a is s a n u de V hennéneunqu e. op. cit., p. 291.
Alguns decénios niais tarde. Alfred Schvitz sublinhará a capacidade humana de se manifes
tions du C r f í w n t Saenas ia n 'l ,ure 11942], traduzido d o alem ão por Jean Carro, Pans, Edi- atividades acessíveis, tanto aos cnadores quanto aos destmatános, com o elementos de um mun '
0 .. - ’ . 2 unia ^Ktinção entre o ato da criação e aquele da com preensão, sublinhando
Wilhelm D ilthey, N a issa n ce de V h crm én eu tiq u e, op. cif., p. 293.
H i tariral l i â ° ^ erTos cnt,COs falaram de virada herm enêutica: cf. T h e o d o r e Plantinga,
Sobre a relação e n tre a c o n c e p ç ã o h e g e lia n a d o e sp írito o b je tiv o e a objetivação d
Edwin M II r I)d" <fle ° f W ilh elm D ilth e y , Lew inston -Q u eenston -Lam petter, The
>hey, cf. Karl L ó w ith , D ilth e y s u n d H eideggers S te llu n g z u r M e ta p h y stk (1966), in a m t ic e .
-I H istor. C T r i ” *’ i 92; ,,Se N : Bulh° t' W ilh e lm D ilth e y A H erm en ein ica l A pproach to lhe S tu d y Stuttgart, M etzler, 1981-1988, v o l V III. Sobre o caráter m ediado da relaçao entre vi ’
fo r m u la r ta n ' * *"*aVe ' N ijh o ff, 1980. Algumas considerações críticas a esse respeito foram
«pressão (A u s d m c k ) e com p reen são (V e rste h en ), cf. H . D iw ald, W ilh elm D ilth ey. r cn n <
‘* M a k k red ' D ," h r r Pn nceton , Pnnceton "nd Philosophie der G eschichte, Cròttingen, 1963, p. 153 s<j

' W ilhelm Dilthey, N a,isa n ct de V herm éneuúque, op. p. 292. Wilhelm Dilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W ell w den G eistesuissensc i . ,

°P nt„ p. 207.

148
149
A HUtAlDADf DO PASSADO
O PtQUENO x- Da b io g r a f ia à h ist ú « ia

e n r a iz a m e n to d o saber na vida (o “é a vida que apreende aqui a


insiramos no outro histórico. D ilthey a define, aliás, com o um verda­
vida” ) que representa o lim iar ínstransponível: a possibilidade de
deiro monumento históneo: a importância capital da literatura para
dilatar o própn o eu, de acolh er outras expenências de vida, não é
nossa compreensão do passado “ se d eve a que som ente na língua a
infinita. Mas essa constatação não im plica necessariamente que seja
intenoridade do hom em chega a uma expressão com pleta, exaustiva
p r e c is o renunciar: p o r mais cruel que seja, esse limiar comporta
e objetivam ente com preensível. E p or isso que a arte de com preen­
também algo de p ositivo.
der tem seu centro na interpretação dos traços de existência humana
O ponto mais d o lo ro s o con cern e indubitavelm ente à relação
contidos no esento” Tratando-se de um produ to com pleto, ele é
entre as partes e o to d o . D ilth e y não atnbui ao dilema biográfico
também necessanamente verdadeiro e, p o r conseguinte, provido
0 caráter quantitativo que sublinhamos em Carlyle. N ã o aspira a
de objetividade. Podem os nos enganar sobre as razões dessa ou
conhecer todos os elem en tos que alimentaram a evolução histónea.
daquela ação, pois muitas vezes os hom ens se dedicam a apresentar
Coloca o problem a num plano mais qualitativo. Afirm a que nào
sua conduta sob uma falsa luz.
podemos apreender diretam ente a totalidade histónea, uma vez
Mas a obra de um grande poeta, de um grande inventor, de um que cada parte é um con ju n to interativo que tem seu centro em
fundador de religião ou de um autêntico filósofo jamais será si mesmo e em si m esm o encontra sua significação. Mas diz-nos
outra coisa senão a expressão verdadeira de sua vida psíquica; também que a d ecom posição da totalidade não tem sentido algum.
nesta sociedade humana, cheia de mentiras, uma obra deste
As partes não p od em ser com preendidas singularmente, ja que nao
género é sempre verdadeira e, diferen tem en te de qualquer
estão fechadas em si mesmas; ao contráno, cada uma delas esta li­
outra expressão fixada, é suscetível em si de uma interpretação
gada às outras numa unidade que não é uma s im p le s justaposiçao.
completa e objetiva.427
A análise deve. se quer compreender o particular, se esforçar por
apreender suas relações com o geral. Quero descrever os k w u ? -
VII
listas de D iire r sou então obrigado a me servir dos conceitos gerais
que oferece a teona da arte pictónca; devo falar, além Asso, ios
Sem dúvida, a fé no con h ecim en to tem limites. O desejo de
temperamentos e da maneira com o eram concebidos na epocu de
apreender de uma vez por todas a significação dos acontecim en­ Diirer. Se quero analisar essa obra-pnma, devo me lem rar «.os
tos históricos parece a D ilth ey “ ao menos tão aventurosa quanto recursos de que a pintura dispõe para representar grani is tigura
o sonho do filósofo da natureza que pensava, graças à alquimia, da históna universal co m o São João ou São Pedro |...|. ie v o 111
arrancar à natureza sua última palavra. Assim c o m o a natureza, a tegrar em seguida em todas essas relações gerais de tatos a

históna não pode entregar sua última palavra, uma palavra simples pertencentes à teona da pintura a particulandade concreta que
reside na maneira com o a Renascença trata tais temas, . •
em que se enunciaria seu sentido verdadeiro” .428 O m esm o ocorre
deve ser situada, no fim das contas, a onginalidade da obra-pnma
com os acontecimentos biográficos, pois toda com preensão perma­
de Diirer. São, portanto, em toda a parte, relações entre tatos gerais
nece sempre relativa. “ In d iv id u u m est ineffabile" , repete várias vezes.
e o individual que permitem uma análise deste úl
C o m o muitos de seus contemporâneos, D ilth ey viu, ele também, a
natureza trágica do conhecimento. Sob certos aspectos, é justamente Donde algumas dúvidas im tantes sobre o valor cientíhci
grafia: se cada in d ivíd u o é o p o n to de encontro de ditere njM
juntos interativos, c o m o p od em os proceder a partir dele, aj *
W ilhelm Dilthey, N aissance de 1’herm éneutique, op. r il., p 294. A dependência da históna para
com a literatura será igualmente sublinhada por Hans Magnus Enzensberger. "Letteratura come
stonografia", op d l.

W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de 1'espril, op. cit, p. 250. " ' ‘ Íhelm Dilthey. Psychologie d e s c n p liv t el a n a ly tiq u e , op. cit.. p 233-2.14

151
O PEQUENO X - D a BOGRAflA A HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

o conteúdo da natureza humana através dele? D o n d e também uma inacabada da história, e parar de tentar concluir o que é inesgotá­
necessidade infinita de históna: “ O d esen vo lvim en to da essência vel, está longe de ser uma dém arche fácil. Isso significa reconhecer
humana se encontra na históna, é aí que se p od e ler em letras que toda interpretação im plica uma arte hermenêutica e, portanto,
maiúsculas os impulsos, os destinos íntim os, as relações vitais da aceitar a importância da im aginação histórica: “ Considerem os um
natureza humana” .430 D on de, enfim , a con vicçã o de que na históna homem que não tenha nenhuma lembrança de seu passado, mas que
não reina nem o individual nem o geral, mas “ a combinação do pense e aja som ente em função do que esse passado p ro vo cou nele
geral e do individual” .431
sem ser consciente de nenhum a de suas partes: tal seria também a
Profundam ente sensível à vitalid ad e periférica da históna, situação das nações, das com unidades, da própria humanidade, se
Dilthey enfrenta a sensação de v ertigem que atravessa todo projeto esta não conseguisse com pletar os vestígios” .434
de história biográfica. Mas, fiel ao e x e m p lo d o ju iz que, de quebra,
com põe versos, não se deixa abusar pela ilusão de poder descobnr VIII
um ponto miraculoso em que se refletiria a totalidade histórica. Com
Humboldt, sugere outra via: aceitar o caráter circular do conheci­ Contranam ente ao que afirmam os historiadores que preten­

mento. Para apreender o tod o, d evem os com preen d er suas partes, dem encontrar os fatos puros, para D ilth ey, a vida exige ser guiada
mas, para apreender as partes, é-nos preciso com preender o todo. pelo pensamento: “ Nossa faculdade limitada de reprodução teria
Existe entre as duas operações uma dependência recíproca, uma se muita dificuldade de se encontrar através das com plicações e dos
alimentando da outra: se “ a visão histórico-universal da totalidade enigmas do particular se as linhas do conjunto v iv o não fossem
pressupõe a compreensão das partes que estão reunidas nela” , inver­ deduzidas” .43' É p o r isso que lhe parece necessário reagrupar as
samente, a compreensão de uma parte do curso da históna só atinge expenências históneas em to m o de tipos.436 Esse projeto faz lo go
sua perfeição graças à relação da parte c o m o to d o ” .432 Assim como pensar naquele de M a x W e b e r que, quase ao mesmo tempo, funda a
a significação de uma frase não reside nas palavras que a compõem, conceitualização da realidade no tipo ideal.43 Para W eb er, o tipo não
mas na ligação que as une, um fato singular só tem significação em é definido nem p or caracteres comuns a todos os indivíduos, nem
relação com a vida em seu conju nto: “ A cada instante de nossa por caracteres m édios; ele deriva de uma construção formalizada,
vida, no pensamento mais tolo ou na rotina mais insignificante, há uma utopia que, em sua pureza, jamais encontra correspondente
uma conexão com aquilo que, enquanto significação da vida, religa na realidade em pírica. Mais do que de uma reprodução da reali­
todos seus momentos num to d o ” .433 dade ou de uma categoria no seio de uma classificação, trata-se de
Em vez de buscar ven cer a sensação de vertigem , Dilthey uma tentativa de colocar ordem , pela distinção e pela acentuação
aceita-a e se dedica a tirar p ro ve ito dela. Q u e m sabe? O fato de que
cada espaço, cada tempo, rem ete a ou tro espaço e a outro tempo W ilhelm D ilthey. Pia,i der F o rtsetzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W e lt in den G eisteswissenschaften,
(fazendo assim da contextualização uma empresa interminável) não op- cit.. p. 279.

é talvez um entrave, e menos ainda uma maldição. T a lv ez se trate ao *' W ilh elm D ilthey, C o n trib u tio n s á l ’étu d e de 1’in d ivid u a lité, op. cit., p. 284.
Sobre as diferentes fases de elaboração d o co n ceito de tipo em Dilthey. cf. L u dw ig Landgreb ,
contráno de uma sorte e de um recurso. Resta que aceitar a natureza W ilhelm D ilth ey T h e o n e der Geisteswissenschaften. Analse ihrer G r a n d b e g n ff e 'Jahrbuch fur
Philosophie u n d p h ã n o m enologische Forschung, Ed. por Edmund Husserl, 19_8, 9, p. 237 366.
identificação entre " t ip o " e "expressão” , proposta por Langrebe, é rejeitada por A n to n io gn,
W ilhebn Dilthey. A usarheitung de, deskriptw en Psychologie. op. cit., p. 183. Saggi sullo storicismo tedesco. M ilã o, 1959, assim c o m o por Giuliano M arini. D ilth e y e la com prm sione

ik '!™ C o n ln k " " ° ™ à 1'élude de fin d iu id u a lité . op. cit., p. 263. det m ando u m a n o , M ilã o, G iuffré, 1965.

* D llthey' L É diJvat,on du m onde h isto n q u e , op. cit., p. 105. " < I A m o ld Uergstraesser, " W ilh e lm D ilthey and M a x W eber: An Empincal Approach to Histoncal

W ilhelm Dilthey. Leben u n d E rke n n en , op. cit., p. 382. Synthesis", E thics. 1947, 57, p. 92-110.

152
O PfQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia A p lu ra lid a d e d o p a s s a d o

unilateral de certas características típicas.43" O m esm o ocorre com certos personagens; n o S o n h o de u m a noite de verão, as ilusões e os
Dilthey que considera o tipo c o m o fator de inteligibilidade sem extravios do am or são con cen trados em algumas relações típicas,
relação com a ideia de representatividade: “ A conceitualização não
[...] c o m o uma brincadeira com que a consciência soberana
é, portanto, aqui uma simples generalização que extrai o elemento
se deleita precisam ente porqu e ela toca na grave questão da
comum valendo-se da série dos casos particulares. O conceito ex­
conservação da vida [...]. E é na maneira com o um artista cria
prime um tipo. Procede do m é to d o c om p a ra tivo ” .43'' Assim como
uma atmosfera, um mundo, na maneira com o seus personagens
desconfia, ele também, de toda solução naturalista: se m o v e m e são ligados entre si, que toda sua mentalidade
[encontra sua] expressão mais profunda.443
O original era um indivídu o; tod o retrato autêntico é um tipo,
com mais forte razão, todo personagem de um quadro. A poesia
Fortalecido pela co n v icç ã o de que a arte representa um
tampouco pode copiar pura e sim plesm ente as coisas. Se um
modelo apropriado para a história, D ilth ey imagina em certos
dramaturgo resolvesse transcrever um diálogo real, com tudo o
momentos o b en eficio heurístico que uma verdadeira roteirização
que este pode ter de acidental, de ín correto, de tolo, de difuso,
acabaria por entediar o leitor. [...] Mas tal tentativa de copiar do passado proporcionaria: “ Q u a n d o revivem os um passado graças
fielmente o objeto estará sempre condicionada, ela também, à arte com que o historiador n o -lo tom a presente, extraímos um
pela subjetividade daquele que escuta, lembra, reproduz.44'1 ensinamento, c o m o acon tece c o m a própria vida; sentimos que
nosso ser se dilata e que forças psíquicas mais poderosas do que as
Entretanto, à diferença talvez de W e b e r , quando Dilthey
nossas intensificam nossa existência” .444 Acaricia a esperança de que
considera o trabalho de condensação, é sobretu do na arte, tida por
o trabalho de condensação perm ita revivificar o passado, dar uma
fundamento de todo con h ecim en to, que ele se inspira. “ Não pos­
segunda vida a suas sombras exangues, e exprim ir sua diversidade: o
suiríamos mais do que uma m ed ío cre parte de nossa inteligência
tipo contém “ um aum ento da experiência vivida, não no sentido de
atual da condição humana se não estivéssemos habituados a olhar
uma idealidade vazia, mas, ao contrário, no de uma representação
pelos olhos do poeta e a ver nos hom ens que nos cercam Hamlets
da diversidade sob uma form a imagética, cuja estrutura forte e clara
e Margaridas, Ricardos e Cordélias, marqueses Posa e Felipes
toma compreensível a significação de experiências vividas de m enor
Para extrair o essencial de uma realidade, frequentem ente bastante
interesse, ainda não distintas” .445
confusa, o poeta condensa as experiências. Insere inicialmente um
grupo humano num tipo; estiliza a seguir as relações entre as per­
sonagens: a vida “jo ga os homens todos misturados; mas, por mais
realista que seja u m artista, sua grandeza im plica n e c e ssa ria m en te que
coloque em relevo seus traços essenciais” .442 R afael e Shakespeare
não se limitam a imitar a vida, dão ao geral uma form a singular. A
escola de A ten a s e A disputa representam culturas inteiras através de
^ ’ P 284-285. Essa pa rtilh a da v ita lid a d e e n tre as d ife ren tes figuras e os d iic r w n jc o n t c c m ic n -
•°s, que se alim en ta in e v it a v e lm e n t e da s u b je tiv id a d e d o a u tor, n ão é um a característica da arte.
Ainda que trazen do fru to s b e m m e n o s n otá v e is , ela escarule nossa v i i i i de tod os os dias. S egu n d o
Max W ebcr, L*Objectiiftté de la connaissance dans les sd e tu e s et la p o litiq u e sodales (1904), in Essau
Ajfted Schiitz ( " O n M u lt ip le R e a lin e s ” , in C olected Papers. U e P n+ lem ■{S o a a l R e a lity. La H a y e ,
la thíorie de la snence, op. d t., p. 11 sq
artinus N y h o ff, 1962), o eu perceb e sem pre o ou tro através ite uma « n c de estandartizaçòes,
Wilhelm Dilthey, L'É diJication du m o n d e historique, op. d l . , p. 136. mas caas se n iu ltip lit j m * se c o m a m cada v e z m ais in ó n m u * i m c d id i qwc n o* ifastam os d o cara

W ilh e lm D ilth e y , Contribution à 1‘itu d e de r in d w id u a ltté , op. d t . , p. 286. CJra c que cresce a distân cia (u m a m ig o se t o m a u m in glês r *«in« po»
Ibid., p. 278. ilhelm D ilth e y, Intro d u ctio n a u x sáeiices de 1'esprit, op. d t . , p. 251
441 lb,d., p. 284. helm D ilth e y, L 'Itn a g in a tio n d u po ète, op. a t . , p. 116

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