Perfilamento Racial e Sociedade Do Controle
Perfilamento Racial e Sociedade Do Controle
Jared Sexton
Mais do que um tipo isolado ou uma justaposição de casos particulares a serem classificados em
categorias formais, o racismo é ele próprio uma história singular... conectando entre si as
conjunturas da humanidade moderna.
— ETIENNE BALIBAR, “Racismo e Nacionalismo” (1991), p. 40 (ênfase acrescentada)
Introdução
Em Resisting State Violence, Joy James apresenta uma crítica importante à análise
foucaultiana do poder disciplinar.1Ali, ela argumenta que o célebre filósofo francês não conseguiu
compreender adequadamente a persistência da violência racista como característica estrutural
fundamental na formação social da modernidade ocidental. Em outras palavras, a disciplina
(discipline) (tal como Foucault a discute) simplesmente não suplanta, tampouco desloca de modo
significativo, a punição (punishment) como exercício paradigmático do poder estatal contra os
negros. Neste ensaio, eu irei me apoiar nessa avaliação crítica, embora dela me desvie levemente.
Ainda que concorde plenamente que negres continuam sendo os principais alvos da punição nos
Estados Unidos (e além), sujeitos aos espetáculos mais viscerais de violência sancionada pelo
Estado e excluídos da possibilidade tanto de conceder consentimento (no sentido gramsciano)
quanto de alcançar a normalização (para permanecer com Foucault)—um status histórico que James
corretamente denomina de “inassimilável”—, acrescentaria a essa posição o argumento de que, a
despeito desse fato, negres são, de fato, também submetides a regimes de disciplina e controle que
poderíamos compreender como formas de violência suplementar.
Não estou sugerindo que negres sejam, portanto, normalizades, como os sujeitos da
sociedade civil, e então, em um momento secundário e gratuito, também submetidos à punição. Em
outras palavras, os direitos des negres não são revogados. Em vez disso, considero a punição—isto
é, as relações diretas de força sancionadas pelo Estado—como primária e fundacional para a
sujeição negra, ao passo que a produção de disciplina fornece uma espécie de teatro popular de
1James, Resisting State Violence, pp. 24–43. Uma tradução deste texto foi publicada pela bibliopreta. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1iR14UiWbS34ZOEKyUZZTpk-rMEZQJcLy/view?usp=sharing
crueldade que adentra o debate público sob os termos de “emancipação”, “enfranquecimento”,
“integração”, “multiculturalismo” ou outras verdades de um projeto nacionalista tensionado.
A punição, nesta perspectiva, não representa nem uma falência das estratégias de contenção,
assimilação ou controle social, nem um excesso do poder entrincheirado ameaçado pela
possibilidade de mudança vinda de baixo; ela não é reativa nem estratégica. A violência racial
organizada e sistêmica contra negres — uma violência gratuita que atravessa a distinção conceitual
entre Estado e sociedade civil— é, ao contrário, o gesto inaugural da modernidade ocidental
enquanto tal, a demarcação de sua fronteira mais fundamental. É o que torna possíveis as guerras
em sentido próprio, até mesmo os massacres mais brutais e unilaterais. Ela encarna o estado de
exceção permanente par excellence.
O Império, assim, excede suas racionalidades políticas, econômicas e militares sempre que
negres estão em questão, e a multidão (multitude) teria muito a aprender com essa lição—quanto
antes, melhor.2 Devemos prestar mais atenção aos prazeres do militarismo em si, ao gozo puro da
destruição coletiva, às fantasias sociais de morte e esquartejamento, aos deleites da lei marcial. 3
Dizer isso não é mero recurso retórico, tampouco mero xingamento. Trata-se de uma questão
analítica que exige engajamento. Frequentemente, comentaristas descartam o evidente entusiasmo
demonstrado por aqueles empenhados em “aniquilar a comunidade negra” como falha de caráter de
uma facção fanática da classe dominante,4 seu calcanhar de Aquiles sociopsicológico. Mas essa
postura—ora complacente, ora esperançosa—oculta (ao menos) uma fé, em última instância
insustentável, numa dialética histórica entre opressão e resistência ou numa inevitabilidade
inexplicável do erro fatal dos senhores, produto previsível da hybris ou da embriaguez de um poder
aparentemente absoluto.
Sob tais condições, não deveria surpreender ninguém que o “perfilamento racial”, como
prática institucionalizada das agências policiais, não seja apenas possível ou disseminado, mas
perfeitamente legal. Não há nada de hiperbólico em meu argumento aqui. Ao se ler a literatura
jurídica sobre perfilamento racial, é inevitável um senso de vertigem. O que se encontra é uma
regressão infinita em torno dos critérios de “causa provável” estabelecidos pela Quarta Emenda, que
supostamente protege contra “buscas e apreensões irrazoáveis.” Diversos estudiosos demonstraram
amplamente como, por exemplo, os casos recentes Illinois v. Wardlow (2000) e United States v.
Whren (1996) efetivamente contornaram o padrão de “suspeita razoável” que anteriormente
regulava as condições sob as quais a polícia poderia abordar e revistar pedestres ou motoristas em
paradas de trânsito rotineiras.7 Esse padrão anterior de suspeita razoável foi estabelecido em Terry v.
Ohio (1968), caso que dá nome à conhecida “parada Terry.” No entanto, mesmo uma rápida análise
mostra que o próprio caso Terry já instituiu uma brecha na definição de causa provável segundo a
Quarta Emenda—algo que favoreceu amplamente a atuação policial durante a chamada guerra às
drogas, declarada por Reagan em 1982.8
5 Human Rights Watch, “Shielded from Justice: Police Brutality and Accountability in the United States” (1998),
disponível online em http://www.hrw.org/reports98/police (acesso em 10 de julho de 2004).
6 Levit, “Pretextual Traffic Stops”, p. 174.
7 Ver Calderón, “Race-Based Policing from Terry to Wardlow”; Harris, “Factors for Reasonable Suspicion”;
Maclin, “Terry v. Ohio’s Fourth Amendment Legacy”.
8 “Suspeita razoável” é um padrão determinado unicamente no âmbito da polícia, e não pela revisão judicial (por
exemplo, manuais policiais, depoimentos de policiais, naturalização de suas normas avaliativas e de
procedimentos investigativos como “práticas usuais”, tudo isso desenvolvido com desprezo pelos princípios de
direitos e liberdades individuais, especialmente a Quarta Emenda). A revisão judicial da discricionariedade
Podemos lamentar esse desgaste persistente dos padrões de suspeição, mas, ao examinarmos
de perto a história doutrinária das proteções da Quarta Emenda, encontramos novamente que a
própria noção de causa provável se reduz a um padrão de proteção igualmente vago e problemático.
Como observa H. Richard Uviller em Virtual Justice:
Causa provável não é um termo muito adequado; tem pouco a ver com probabilidade e
nada com causalidade. Mas é o termo escolhido pelos Fundadores para descrever o grau
de suspeita necessário para que o governo invada os espaços privados do cidadão.
Significa “uma razão muito boa para acreditar”, e só isso. Não é certeza além da dúvida
razoável, nem mesmo algo mais provável do que improvável. Mas [apenas] mais do que
um palpite ou [mera] suspeita. Essa é a melhor definição que conseguimos oferecer.9
É claro que a Quarta Emenda tinha a intenção de impedir o uso do “mandato geral” (general
warrant) ou “mandato de assistência” (writ of assistance) utilizado pelos oficiais coloniais
britânicos antes da Revolução, que autorizava a busca e apreensão de qualquer coisa, em qualquer
lugar — seja na residência ou no corpo de um determinado “suspeito.” Em outras palavras, os
parâmetros de busca e apreensão estavam à mercê da discricionariedade da polícia colonial, e não
sujeita à qualquer revisão judicial. É seguro afirmar que, hoje, a polícia recuperou o mandado geral,
de modo que, sob as circunstâncias atuais, “todos nos tornamos suscetíveis aos caprichos arbitrários
e palpites infundados de agentes policiais.”10
policial para abordar pedestres e motoristas foi abandonada no caso Terry, e hoje até mesmo os padrões de
conduta internos da polícia (“práticas usuais”) são contornados em favor da racionalização técnica mais cínica
dos poderes arbitrários de busca e apreensão da polícia. Encontre uma justificativa, um pretexto, para busca e
apreensão após ocorrer a ideia de realizar uma abordagem: essa é a essência da “patrulha agressiva”, tal como
formulada no início dos anos 1960, e levou apenas uma geração após o Movimento dos Direitos Civis para ser
inteiramente codificada.
9 Uviller, Virtual Justice, p. 49.
10 Levit, “Pretextual Traffic Stops”, p. 169.
11 Harris, “The Stories, the Statistics, and the Law”, p. 311.
Em teoria, qualquer pessoa nos Estados Unidos (e muitos fora de suas fronteiras) está sujeita
a essas regras de engajamento. No entanto, como observou recentemente Ira Glasser, ex-diretor da
União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), embora a polícia pudesse, por exemplo, invadir
aleatoriamente prédios residenciais no Upper West Side de Manhattan e até obter resultados, isso
claramente não acontece. Como ele afirma: “Eles não fazem isso porque a maioria das pessoas que
mora nesses prédios é branca. Eles não fazem isso porque, se tentassem, a indignação seria tão
grande, tão rápida, que se tornaria politicamente insustentável.”12
Nós podemos nos perguntar: quem se indignaria com tais operações? E a indignação de
quem faria diferença? De todo modo, o veredito de sua análise é inequívoco:
A ideia de que negres poderiam — ou deveriam — ter tanto direitos civis quanto direitos
criminais ingressou, assim, no furor de uma cultura política emergente de “lei e ordem”, cujos
poderes executivo, legislativo e judiciário atuaram de forma febril e colaborativa para retraçar seus
limites. A história legal que vai de Richard Nixon a Ronald Reagan e George W. Bush — da “guerra
ao crime” à “guerra às drogas” e à “guerra ao terror” — é alarmantemente curta. A legislação liberal
dos direitos civis e a revisão judicial desfrutaram de uma vida muito breve e, em larga medida,
ineficaz. Mas a “revolução” nos direitos criminais nunca saiu do papel; nunca aconteceu de fato,
Sob o peso dessa legalidade, negres — que estavam inequivocamente na pólis, mas
definitivamente não era da pólis — não estavam apenas disponíveis à busca e apreensão arbitrária,
como no mandado geral: elus estavam, em essência, sempre já buscades e apreendides. Mais ainda,
como diz a famosa frase, não possuíam “nenhum direito que um homem branco [fosse] obrigado a
respeitar” — inclusive o direito à vida. O ethos da escravidão — em outras palavras, a matriz
ideológica e afetiva duradoura do projeto supremacista branco — não admite autodefesa negra
legítima, não reconhece reivindicações legítimas de autopropriedade, privacidade ou autonomia por
parte de pessoas negras. Um estado permanente de furto, apreensão e sequestro ordena a vida da
comunidade cativa e de sua descendência. A vulnerabilidade estrutural à apropriação, a abertura
perpétua e involuntária — incluindo todos os usos arbitrários do corpo, tão minuciosamente
descritos por estudiosas como Saidiya Hartman e Hortense Spillers — deve ser compreendida como
a condição paradigmática da existência negra nas Américas, a característica definidora da
antinegritude no Novo Mundo.14 Em resumo, o negro, seja escravizado ou “livre”, vive sob o
mandamento dos brancos.15
Policiar negres nos períodos colonial e antebellum era, como sabemos, a prerrogativa de
qualquer branco (que podia assumir esse papel ou não), e essa prática só foi posteriormente
profissionalizada com o surgimento do sistema prisional moderno a partir das cinzas da
Reconstrução.16 Sem ignorar a história intermediária, é suficiente dizer que esse policiamento foi
14 Hartman, Scenes of Subjection; Hortense Spillers, Black, White, and in Color. Esse ponto é válido não apenas nas
discussões sobre as sociedades escravistas do Hemisfério Ocidental. As transformações materiais e ideológicas globais
provocadas pelos séculos de economia política transatlântica da escravidão construíram toda a diáspora africana como
uma população escrava—real ou imaginada, atual ou potencial. Essa confluência, na história mundial, entre
“escravidão” e “negritude” é discutida de forma brilhante em Mbembe, On the Postcolony. Esse fato impõe uma tensão
permanente a qualquer noção de pós-colonialidade na África, no Caribe e na América Latina, e cria uma cisão
incomensurável entre a posição do sujeito colonizado e a posição do sujeito escravizado.
15 Mbembe, On the Postcolony, pp. 24–65.
16 Walker, The Police in America.
organizado ao longo do século XX em ordens de magnitude superiores, impulsionado pelas
transformações políticas, econômicas e sociais que acompanharam a transição do Estado de bem-
estar para o Estado de guerra.17
“Perfilamento Racial” (Racial Profiling), portanto, é um termo recente, mas uma prática
secular. Em outras palavras, o policiamento de negres — cuja repressão sempre foi sancionada pelo
Estado, ainda que frequentemente tratada como um assunto privado de “gestão de propriedade” —
permanece como uma questão central na atualidade; não se trata de um fenômeno emergente. As
audiências públicas da Anistia Internacional sobre perfilamento racial, a legislação federal
estagnada conhecida como “HR 1443”, a campanha da ACLU’s “Dirigindo sendo negro” (Driving
While Black), e a reconfiguração problemática do debate sobre perfilamento racial após o 11 de
Setembro se desenrolam todas contra o pano de fundo dessa longa história de “policiar a população
negra”.
Nesse sentido, vem imediatamente à mente o filme Fahrenheit 9/11 (2004), de Michael
Moore — um fracasso absoluto como cinema político, independentemente de ter ganhado a Palma
de Ouro em Cannes, de ter alcançado um sucesso de bilheteria sem precedentes e de ter sido
calorosamente recebido por certos setores da imprensa liberal e progressista. 19 Esse fracasso não
decorre tanto das muitas razões convincentes já apontadas por diversos críticos, mas sim do
abandono, por parte do filme, da única linha de investigação que poderia ter produzido uma análise
crítica significativa tanto da guerra ao terror quanto de sua correlata doméstica na Segurança Interna
Essa observação é, no entanto, uma questão curiosa, já que, em última instância, não se pode
sustentar, como continua fazendo a maior parte da esquerda, que o voto negro — ou sua ausência —
tenha fornecido a margem crucial para a campanha de Bush, seja na Flórida em particular, seja nos
Estados Unidos de forma geral. Ao contrário, o que sustento é que a eleição não se reduziu a uma
luta suja nesse canto do país, nesses poucos condados com comunidades predominantemente negras
e simpatizantes do Partido Democrata. Está claro que a depuração dos registros de eleitores foi um
empreendimento premeditado e bem coordenado, e que seus efeitos visavam minar qualquer
vantagem que Gore pudesse ter no estado. Também está claro que essa erosão deveria ocorrer às
custas do segmento desproporcionalmente negro do eleitorado diretamente afetado pela chamada
regra de exclusão de ex-criminosos (ex-felon exclusion rule). Contudo, o ponto importante que não
deve ser ignorado é que não havia como a campanha de Bush saber, com antecedência e com tal
precisão, que a corrida presidencial se desenrolaria da maneira como de fato ocorreu. Simplesmente
não existe instrumento de amostragem suficientemente sofisticado que permita tal capacidade
20 Por exemplo, apresenta uma ambivalência extrema em relação à intervenção militar dos EUA no Afeganistão; é
politicamente vago quanto ao Departamento de Segurança Interna; mobiliza tropos racistas sobre o fanatismo e a traição
de árabes/muçulmanos no que diz respeito aos sauditas, ao mesmo tempo em que defende os iraquianos como
“selvagens nobres”, e assim por diante. Ver: Robert Jensen, “Stupid White Movie,” Counterpunch, 5 de julho de 2004,
disponível online em: http://www.counterpunch.org/jensen07052004.html (acesso em 8 de julho de 2004); Terry
Lawson, “Moore, Please,” Detroit Free Press, 24 de junho de 2004, disponível online em:
http://www.freep.com/entertainment/movies/far25_20040625.htm (último acesso em 23 de agosto de 2006); Shlomo
Svesnik, “Manufacturing Dissent,” World War 3 Report, 10 de julho de 2004, disponível online em:
http://www.worldwar3report.com/shlom02.html (acesso em 12 de julho de 2004).
21 Arundhati Roy, “The New American Century,” The Nation, January 22, 2004, disnponível online em:
http://www.thenation.com/docprint.mhtml?i=20040209&s=roy (acessado em Janeiro, 25, 2004).
preditiva. Mesmo isso fosse possível, nada impunha que a lacuna de votos fosse remediada por
esses métodos específicos. Isto é, nada que os tornasse estrategicamente necessários para isso: os
recursos poderiam ter sido diferentemente alocados, a campanha poderia ter direcionado com mais
intensidade seus esforços para regiões-chave da Flórida com votos indecisos, os votos eleitorais
potencialmente perdidos a Flórida poderiam ter sido compensados em outros estados
negligenciados ou abandonados etc.22 E tudo isso poderia ter sido feito sem o risco do escândalo
político que eventualmente atingiu o regime Bush quando suas táticas vieram à tona. Por que, então,
perseguir essa agenda, quando seus custos potenciais são tão altos e sua probabilidade de sucesso
tão baixa?
22 A noção de que a Flórida foi o campo de batalha final da eleição de 2000 é pura ilusão. Poder-se-ia afirmar com a
mesma facilidade que a disputa presidencial se decidiu na batalha por Califórnia, Colorado, Texas ou Virgínia — todos
estados nos quais foram relatadas suspeitas de fraude eleitoral ou irregularidades significativas — ou mesmo em outros
estados não envolvidos em controvérsia. O voto eleitoral, assim como o voto popular, é um total nacional, de modo que
a designação de um estado ou outro como decisivo é uma escolha arbitrária. Dizer que Bush não poderia ter vencido
sem a Flórida ou, inversamente, que Gore teria vencido caso tivesse conquistado a Flórida é implicar que “todas as
demais condições permaneceriam constantes”, exatamente o que não podemos sustentar em uma situação tão dinâmica.
23 Sem surpresa, Gore pareceu particularmente irritado com o protesto da Representante Maxine Waters (Democrata da
Califórnia), reafirmando a noção racista/sexista de que mulheres negras em cargos eletivos representam o sine qua non
da profanação política. Agradeço a Joy James por enfatizar esse ponto em sua leitura de uma versão anterior deste
artigo.
Como esse jovial fechamento de fileiras pôde ocorrer imediatamente após a mais amarga
disputa eleitoral em mais de um século — quase seis semanas de suspense beligerante, culminando
na Suprema Corte — e por que a esquerda permanece tão dolorosamente alheia a essa profunda
peculiaridade?24Bem, antes do desfile parlamentar que carimbou o pacote político de Bush no pós-
11 de setembro (provocando gritos de falso alarme e ingênua decepção entre a oposição leal), houve
esse tão familiar abraço bipartidário em torno daquilo que tem sido, desde antes da Declaração de
Independência, a verdadeira questão da divisão nacional — negres: sujeitos ou objetos, cidadãos ou
mercadoria?
Essa foi a verdadeira lição política do ano 2000: a vitória de Gore, nas circunstâncias dadas
(isto é, sob alegações de fraude republicana, com uma recontagem incipiente e litígios em
andamento), teria exigido a defesa oficial da cidadania negra — uma proposição que parece ter sido
completamente inaceitável para todos os membros da câmara alta do Congresso — no espírito, por
assim dizer, da reconciliação. Ao que tudo indica, esse gesto de defesa — um aceno, uma admissão
de que havia, talvez, algo de podre no Sul Profundo (Deep South) — não apenas teria prolongado
“o que restava de rancor partidário” ou manchado qualquer administração Gore em potencial (e, em
todo caso, quem se importaria?), mas também teria colocado em xeque o funcionamento de toda
panóplia de aparatos estatais — “as veneráveis instituições da nossa democracia.” 25 Não, eu sugiro,
porque o eleitorado negro representasse uma ameaça prática à agenda Republicana, mas sim porque
os negros representam — eternamente — uma ameaça simbólica à cidadania, o equivalente político
de “lá se vai o bairro.” (there goes the neighborhood).26
24 Conforme descrito pela Associated Press, “Gore Presides in Bush Certification”, 7 de janeiro de 2001: “Gore ergueu
o punho direito quando os 54 votos da Califórnia, o maior prêmio do colégio eleitoral, lhe foram atribuídos. [...] Em um
dado momento, o deputado Bill Thomas (Republicano da Califórnia), um dos quatro parlamentares responsáveis por ler
os votos em voz alta, segurou o certificado de Delaware contra a luz e semicerrando os olhos, disse: ‘Este aqui é
diferente de todos os outros’, com um sorriso. Seu gesto, que provocou risos, foi uma referência bem-humorada às
recontagens televisivas repetidas dos votos da Flórida.” Esse relato de shuckin’ and jivin’ bipartidário está disponível
online em: http://quest.cjonline.com/stories/010701/gor_0107017643.shtml.
25Al Gore, “Transcrição do Discurso,” Cable News Network, 13 de dezembro de 2000, disponível online em:
http://www.cnn.com/ELECTION/2000/transcripts/121300/t651213.html (acesso em 12 de julho de 2005).
26Esse ponto deve lançar mais luz sobre o fato de que a população negra está, mais uma vez, sendo rapidamente
privada de seus direitos políticos no presente, notadamente por meio da ampliação das leis de exclusão do direito ao
voto para pessoas com antecedentes criminais. Para uma discussão detalhada sobre essa e outras consequências
colaterais do encarceramento em massa, ver Garland, Mass Imprisonment; Mauer e Chesney-Lind, Invisible
Punishment. Além disso, o poder eleitoral nos níveis estadual e nacional foi inteiramente minado neste momento,
mesmo para os brancos. Ver Martinot, “Deconstructing Electoral Politics for 2004”. A ideia de que o voto negro
atualmente representa um desafio prático sério às operações do sistema bipartidário, à aliança entre Estado e
corporações, ou mesmo às agendas populistas das classes médias e trabalhadoras brancas (sejam elas Republicanas,
Democratas, Verdes ou Independentes) é absurda.
mandato. Na verdade, testemunhamos exatamente o oposto. Bush passou a ser levado mais a sério
desde o 11 de setembro (assim como o demoníaco Rudy Giuliani), 27 não apenas como uma ameaça
maníaca ao mundo, mas como o legítimo líder dos Estados Unidos. Ele é, sem dúvida, considerado
pela maioria da esquerda como perigoso, idiota e fanático; no entanto, não é visto como um
usurpador. Para evidenciar isso, não é preciso ir além da campanha febril da centro-esquerda para
retirá-lo do cargo por meio do voto (de MoveOn.org à International ANSWER [Aja Agora para
Parar a Guerra e Acabar com o Racismo]), como se ele tivesse alcançado a posição
democraticamente, como se a posição — Presidente dos Estados Unidos — pudesse alguma vez ser
alcançada democraticamente. Aqueles que realmente acreditam que ele — e o governo que preside
— são uma fraude devem clamar por sua deposição imediata, e não exigir sua censura ou
impeachment, muito menos rezar por sua derrota nas urnas. Esta última postura simplesmente
capitula ao patriotismo. “A mudança de regime começa em casa!” tem sido um grito de guerra
frequente nas manifestações contra a guerra em todo os Estados Unidos. Àqueles que ostentam tais
slogans, só nos resta dizer: que se mude então, assim como Bush e sua comitiva mudaram tantos
outros.
Essa posição, contudo, é amplamente impensável hoje, porque, levada às suas últimas
consequências, opor-se radicalmente à administração Bush implica, ipso facto, fomentar a
dissolução dos Estados Unidos tal como os conhecemos. Esse espectro da “desordem completa”
sempre foi essencial a qualquer perspectiva de libertação negra nos Estados Unidos. 28 (Recordemos,
como escrevi anteriormente: “O caminho até a Casa Branca foi pavimentado sobre a instituição
esvaziada da cidadania negra.”) Desnecessário dizer, poucos na esquerda estão dispostos a admitir
tanto. O que prevalece, em vez disso, na conjuntura atual, é uma preferência concreta pelo sacrifício
nacional de negres enquanto entidades políticas (não apenas como sujeitos portadores de direitos,
mas também capazes de articular demandas legíveis na esfera pública), para perseguir — sob o
disfarce de uma negação institucionalizada — o que equivale a uma intensificação da batalha
partidária dentro da moldura de uma democracia liberal já anêmica (anêmica, isto é, para aqueles
que supostamente seriam seus sujeitos legítimos; daí o interminável falatório na imprensa
alternativa sobre “reforma do financiamento de campanha,” “democracia midiática,” e por aí vai). A
meu ver, a deliberada desconsideração da posição estrutural de negres na formação social — aquilo
que torna a farsa da Eleição de 2000 algo normal e não excepcional, uma continuidade histórica —
é absolutamente vital ao espectro de causas progressistas que amadureceram no rastro do 11 de
Setembro: desde a defesa legal dos alvos do perfilamento antiterrorista até os debates sobre o
estatuto e o bem-estar dos chamados combatentes inimigos, passando pelo florescimento do
Visto por essa luz, não podemos detectar nessa indiferença pervasiva uma revisão histórica
da eleição de 1876, na qual o Republicano Rutherford Hayes foi nomeado presidente por uma
comissão bipartidária especial, apesar de ter perdido o voto popular para seu desafiante Democrata,
Samuel Tilden? Em outras palavras, não foi a campanha de um mês que culminou em Bush vs.
Gore — e o silêncio marcado que logo se seguiu à decisão da Suprema Corte — um evento político
equivalente àquele que formalmente encerrou a era da Reconstrução, o infame Compromisso de
1877? No primeiro caso, um programa de gastos sociais sem precedentes, aplicado por uma massiva
29 Reconheço os estudos que demonstram que negros e imigrantes não estão geralmente em competição direta por
empregos nos EUA no período pós-direitos civis, ainda que isso ocorra em algumas regiões e indústrias. Meu ponto é
deslocar o debate. Não me preocupo tanto com o impacto da imigração ou dos imigrantes sobre a qualidade de vida dos
negros, incluindo o acesso ao emprego digno — embora essa seja uma questão inevitável. Mais importante, preocupo-
me com quais deslocamentos e despossessões precisaram ser fabricados e institucionalizados como componentes de
uma nova onda de imigração em massa, pré-requisito político-econômico para as lutas contra a exploração do trabalho
imigrante que desde então ganharam força. A destruição da classe trabalhadora negra — a base material do movimento
social negro do pós-guerra — pela desindustrialização, terceirização e cortes, juntamente com o desmonte do Estado de
bem-estar social e a construção do complexo prisional-industrial, precede histórica e ontologicamente a situação dos
“novos imigrantes” do pós-1965. Ver Peter Skerry, “The Black Alienation: African Americans versus Immigrants”, New
Republic, 30 de janeiro de 1995.
30Ver Richard Muhammad, “Voices from the Immigrant Workers Freedom Ride”, AlterNet, 25 de setembro de 2003;
Shora, “Guilty of Flying while Brown”; Susan Sontag, “Regarding the Torture of Others”, New York Times, 23 de maio
de 2004.
presença militar doméstica, foi encerrado, e a legislação histórica dos direitos civis, por mais diluída
que fosse, foi efetivamente abandonada, mas apenas depois que ambos já haviam sido largamente
impotentes diante das manobras paramilitares e políticas, muitas vezes violentas, de uma
Confederação reestruturada contra as primeiras esperanças fatídicas de uma população escrava
nominalmente emancipada.31 (A luta pós-emancipação por direitos civis e justiça racial não
ressurgiria com força suficiente para exercer influência nacional — e internacional — significativa
por quase cem anos.) O momento presente, no entanto, sinaliza o verdadeiro sino da morte do
moderno Movimento pelos Direitos Civis, na medida em que este perseguia uma segunda
Reconstrução mais abrangente, agora no crepúsculo das conquistas limitadas (mas não
insignificantes) que momentaneamente assegurou sob os títulos de “antidiscriminação” e “ação
afirmativa.” A eleição de 2000 designa o fim formal da era pós-direitos civis, a maturação genuína
da nova direita e o advento de uma nova redenção.
A diferença hoje é que a “reação racial” não é mais uma ressurreição de um nova flange da
supremacia branca, um projeto que se tornou insustentável e talvez até indesejável. 32 É, em vez
disso, uma intensificação de uma antinegritude ampla que é inteiramente compatível com a
emergente América multirracial.33 Isto é, de forma bastante insistente, que a mudança mais
importante produzida pela ascensão da junta Bush diz respeito ao consenso emergente sobre a
relativa insignificância do que só posso chamar, inadequadamente, de direitos des negres nos
Estados Unidos. Mesmo isso é dizer as coisas de forma muito branda. Pois essa clara deriva para a
direita — que afetou todo o espectro político — não trata simplesmente do retrocesso dos ganhos
legislativos liberais dos anos 1960 ou da desmontagem deliberada dos aspectos mais amenizadores
do Estado de bem-estar social, ou mesmo do estreitamento incessante do escopo das proteções
legais diante da polícia (tendência que se tornou especialmente proeminente desde o lançamento da
infame guerra às drogas de Reagan, no início dos anos 1980). Mais profundamente, a “restauração
conservadora” nomeia o recuo da ideia, em todo o tecido da sociedade civil, de que negritude e ser
humano não são permanentemente e mutuamente excludentes.34
A paradoxal noção de “ser humano negro” nunca gozou do status dominante de senso
comum, é claro, mas por um breve momento na história recente parecia estar pronta para ampliar
sua capacidade de desestruturar e redefinir ambos os termos desse estranho composto. Foi contra
essa potencial ameaça, tanto material quanto simbólica, que a mal chamada “retaliação branca”
(white backlash) foi finalmente dirigida, e tem sido assim desde antes da primeira batalha da Guerra
Civil. Essa transformação “pós-direitos civis” da cultura política nacional, portanto, não pode ser
Essa alteração é, ao mesmo tempo, uma sutura da branquitude ferida que sobrevive à
mobilização pós-guerra do protesto político negro e uma habilitação sem precedentes da política de
interesses racialmente baseada para não-brancos não-negros, sob o amplo estandarte “pessoas de
cor”.35 Contudo, como mencionado anteriormente, esse último desenvolvimento não surge com base
em solidariedade com a luta negra, como se supõe sem fundamento pelo sentimento de coalizão
embutido na noção, mas, sim, em seu rastro, se não sempre às suas custas. Mais precisamente, é um
fenômeno possibilitado pelo declínio do movimento negro e um desenvolvimento que floresce em
seu lugar.
Nas últimas duas décadas, a política das “pessoas de cor” mudou de um caminho de
capitalização sobre oportunidades históricas (extraídas do Movimento dos Direitos Civis e do Black
Power) para um de oportunismo defensivo (exigindo a superação do supostamente ultrapassado
modelo “binário negro–branco” da política racial). Assim, o populismo dos “homens brancos
irritados” (que remonta pelo menos à campanha de Goldwater em 1964) e o apelo massivo da
política de coalizão multirracial (nutrida pelas mudanças demográficas provocadas desde a Lei de
Imigração de 1965, um subproduto da era dos direitos civis) representam dois lados da mesma
moeda. Eles são, em suma, dois aspectos da repressão contemporânea do radicalismo negro do pós-
guerra. O primeiro opera um ataque frontal, combinando uma imensa violência patrocinada pelo
Estado e propaganda explícita contra a população civil (um cenário terrorista), enquanto o segundo
desloca as demandas insaciáveis e as questões impossíveis colocadas pelo espectro da libertação
negra por meio da absorção e redirecionamento (um cenário de esvaziamento).36
35 Robinson, Marked Men; Gracia e De Greiff, Hispanics/Latinos in the United States; Jaimes, The State of Native
America; Wu, Yellow.
36 Ver Wilderson, “Gramsci’s Black Marx”. Dizer que a libertação negra apresenta uma demanda insaciável e coloca
uma questão impossível não é hipérbole; é esse bloqueio à reparação que distingue a existência negra no mundo
moderno de todas as outras. O movimento contemporâneo por reparações, com toda a sua modéstia até o momento,
ameaça lançar a economia doméstica atual em recessão se tiver até mesmo metade de suas exigências atendidas. No
entanto, se assumisse plenamente as ramificações de sua causa — isto é, se se tornasse um movimento por justiça em
vez de por indenização — não poderia mais evitar o reconhecimento da devastação e ruína completas que requer de
todo o sistema global: sua economia política, sua sociedade civil, suas instituições supranacionais, sua cultura comum
emergente. Se o status quo se baseia no terror histórico da escravidão, então caminhar em direção às reparações, sob
essa luz, é ameaçar não apenas um desafio ou crise sem precedentes, mas uma catástrofe: um colapso sistêmico total. O
que mais poderia significar “reparar” o legado de cinco séculos de escravidão?
latina, asiática-americana e, mais recentemente, árabe e muçulmana, de que o Movimento dos
Direitos Civis e o Movimento Black Power foram fundamentais para seus esforços atuais (e seus
eventuais sucessos), tanto como campo prático de treinamento para muitos veteranos do ativismo
político quanto como fonte contínua de inspiração e instrução para as gerações mais jovens que
agora estão ascendendo às posições de liderança. Mais importante, são feitas tentativas consistentes
para vincular, ao menos retórica e analogicamente, a luta pelos direitos dos imigrantes (para usar
uma expressão admitidamente insuficiente) com a contínua luta negra por justiça racial. 37 Isso
geralmente é feito para promover um espírito mais eficaz e duradouro de colaboração entre
diferentes comunidades de cor; como um antídoto para as dinâmicas destrutivas do “conflito negro–
asiático” ou “negres versus browns”, e assim por diante; e como pré-condição para uma coalizão
viável, uma busca por um terreno comum.38
No entanto, ao se examinar mais de perto, detecta-se nos comentários públicos, tanto sobre
as histórias de opressão quanto as formas contemporâneas de discriminação racial enfrentadas por
pessoas não negras de cor, não apenas uma certa negligência (um ponto que já abordei), mas
também uma forte corrente de desdém aberto em relação à trajetória recente de negres nos Estados
Unidos — um subtexto de antinegritude que parece ser ao mesmo tempo gratuito (pois não é
logicamente necessário aos argumentos em questão, sendo possível apresentar o caso como tal, sem
analogia) e absolutamente indispensável (pois nunca deixa de estar presente de forma discernível).
Não encontramos, em outras palavras, uma justificativa coerente para o rancor que parece perpassar
os apelos estratégicos por coalizões multirraciais ou o uso conceitual de metáforas entre a posição
des negres na sociedade e cultura dos EUA e os ataques crescentes ao bem-estar das minorias não
negras. Em cada caso, afirma-se que, por exemplo, o ataque feroz à reforma imigratória (desde os
programas de educação bilíngue até os serviços de saúde e assistência social para indocumentados,
passando pela militarização da fronteira), ou o ceticismo espetacular das agências governamentais
de investigação e da mídia corporativa quanto às lealdades des asiático-americanes enquanto tais
(do internamento de japoneses ao escândalo das contribuições de campanha do Partido Democrata,
até o caso Wen Ho Lee39), ou a implementação de práticas policiais agressivas contra um perfil
37 Julie Quiroz-Martínez, “Missing Link”, Colorlines 4, n. 2 (2001).
38 Conflitos também surgem entre a população negra nativa e os imigrantes negres; no entanto, es imigrantes negres
não têm à sua disposição o capital racial des imigrantes de cor não negres. Eles se veem, em outras palavras,
constantemente reabsorvidos nos espaços da negritude local, por assim dizer, e submetides aos mesmos protocolos de
violência, especialmente nas gerações seguintes. A situação piora, e não melhora, como ocorre com a maioria des
imigrantes. Além disso, vários dos conflitos mais sensacionalistas entre “negres e imigrantes”, como o binarismo
costuma ser desenhado, envolvem imigrantes negres contra outros grupos imigrantes não negros. Es imigrantes negres,
portanto, não interrompem o paradigma, mas demonstram por que é correto, nesse nível, falar de uma discrepância
irresolvível entre negritude e status imigrante.
39 Nota da editora (Joy James): Wen Ho Lee, um cientista nuclear chinês, foi acusado em 1999 pela CIA e pelo FBI de
passar segredos nucleares para Pequim enquanto trabalhava no Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México.
As acusações contra Lee basearam-se em sentimento antichinês e medo irracional sobre segurança doméstica, em vez
de provas concretas; o governo retirou cinquenta e oito das cinquenta e nove acusações, condenando-o por uma única
violação de segurança. Após passar 275 dias em confinamento solitário, Lee foi libertado. Ver Lee e Zia, My Country
terrorista “árabe–muçulmano–do Oriente Médio”, e assim por diante, são ofensas mais ultrajantes
do que aquelas que têm ocorrido à negres em proporção muito maior por períodos praticamente
indefinidos — em parte porque tudo isso é, ostensivamente, não reconhecido como tal, não só pelos
brancos, como por negres.
O que a abordagem multirracial falha em apreender — além da injúria e insulto inerentes aes
suspeites de sempre por só se preocuparem com um problema quando ele acontece imediatamente
com você e os seus — é a natureza altamente contingente das injustiças em questão. Este é, talvez,
o ponto mais controverso do presente argumento:
versus Me.
40 Robinson, By Order of the President.
41 Deffeyes, Hubbert’s Peak; Klare, Resource Wars; Scott, Drugs, Oil, and War.
FMI, NAFTA, OMC) e reflete não apenas concessões políticas às obsessões do supremacismo
branco mais radical, mas também — a tendência dominante — um aparato disciplinar voltado à
regulação (não ao fim ou reversão) da migração de contingentes laborais manejáveis, à segurança
das relações comerciais, entre outros fins.42
A boa notícia, se assim se pode chamar, é que esse esforço para reprimir um exame contínuo
da posicionalidade negra — “a posição do impensado”50— apenas minará a coalizão multirracial
enquanto política de oposição. Toda análise que tente dar conta das vicissitudes do regime racial e
das maquinações do Estado racial sem centralizar a existência negra dentro de sua estrutura
(framework) — o que não significa simplesmente listá-la numa cadeia de equivalentes — está
fadada a perder o que é essencial sobre a situação, porque o que acontece com negres indica a
verdade (e não a totalidade) do sistema, seu sintoma social, e todas as outras posições podem
(apenas) ser compreendidas a partir desse ponto de vista.51
49 Ver, por exemplo, Hishaam Aidi, “Jihadis in the Hood: Race, Urban Islam and the War on Terror”, neste volume.
50 Hartman, “The Position of the Unthought”.
51 Algo semelhante pode ser dito sobre o hip hop como uma cultura multirracial de resistência. A ubiquidade do termo
“nigga” como forma de tratamento entre não negres, incluindo muitas pessoas brancas, pode fornecer um potente
desfrute de um senso desafiador de marginalização — uma degradação medida por uma proximidade com negres, literal
ou figurativamente — mas isso só contribuiu para a perda de clareza, não um refinamento, e para o embotamento da
análise, não uma expansão. Sem dúvida, o hip hop aproxima pessoas, especialmente jovens — “um só amor” — mas o
mesmo fazem jogos de futebol e encontros dos Jovens Democratas. Se quisermos ser honestes, devemos admitir que,
como regra, o hip hop promove o obscurantismo político mesmo quando se autodenomina “consciente”. O radicalismo
político nesse campo é exceção.