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Perfilamento Racial e Sociedade Do Controle

O ensaio de Jared Sexton discute a intersecção entre perfilamento racial e controle social, argumentando que a violência racista é uma característica estrutural da modernidade ocidental. Ele critica a análise de Foucault sobre o poder disciplinar, enfatizando que a punição é fundamental para a sujeição dos negros, que também são submetidos a regimes de disciplina. A polícia, como agente de militarismo doméstico, opera com impunidade, legalizando práticas de perfilamento racial que violam os direitos civis, especialmente dos negros.

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Perfilamento Racial e Sociedade Do Controle

O ensaio de Jared Sexton discute a intersecção entre perfilamento racial e controle social, argumentando que a violência racista é uma característica estrutural da modernidade ocidental. Ele critica a análise de Foucault sobre o poder disciplinar, enfatizando que a punição é fundamental para a sujeição dos negros, que também são submetidos a regimes de disciplina. A polícia, como agente de militarismo doméstico, opera com impunidade, legalizando práticas de perfilamento racial que violam os direitos civis, especialmente dos negros.

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Perfilamento Racial e as Sociedades de Controle

Jared Sexton

Tradução Bibliopreta e Quilombo Invisível por Agnes de Oliveira

Mais do que um tipo isolado ou uma justaposição de casos particulares a serem classificados em
categorias formais, o racismo é ele próprio uma história singular... conectando entre si as
conjunturas da humanidade moderna.
— ETIENNE BALIBAR, “Racismo e Nacionalismo” (1991), p. 40 (ênfase acrescentada)

Introdução

Em Resisting State Violence, Joy James apresenta uma crítica importante à análise
foucaultiana do poder disciplinar.1Ali, ela argumenta que o célebre filósofo francês não conseguiu
compreender adequadamente a persistência da violência racista como característica estrutural
fundamental na formação social da modernidade ocidental. Em outras palavras, a disciplina
(discipline) (tal como Foucault a discute) simplesmente não suplanta, tampouco desloca de modo
significativo, a punição (punishment) como exercício paradigmático do poder estatal contra os
negros. Neste ensaio, eu irei me apoiar nessa avaliação crítica, embora dela me desvie levemente.
Ainda que concorde plenamente que negres continuam sendo os principais alvos da punição nos
Estados Unidos (e além), sujeitos aos espetáculos mais viscerais de violência sancionada pelo
Estado e excluídos da possibilidade tanto de conceder consentimento (no sentido gramsciano)
quanto de alcançar a normalização (para permanecer com Foucault)—um status histórico que James
corretamente denomina de “inassimilável”—, acrescentaria a essa posição o argumento de que, a
despeito desse fato, negres são, de fato, também submetides a regimes de disciplina e controle que
poderíamos compreender como formas de violência suplementar.

Não estou sugerindo que negres sejam, portanto, normalizades, como os sujeitos da
sociedade civil, e então, em um momento secundário e gratuito, também submetidos à punição. Em
outras palavras, os direitos des negres não são revogados. Em vez disso, considero a punição—isto
é, as relações diretas de força sancionadas pelo Estado—como primária e fundacional para a
sujeição negra, ao passo que a produção de disciplina fornece uma espécie de teatro popular de

1James, Resisting State Violence, pp. 24–43. Uma tradução deste texto foi publicada pela bibliopreta. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1iR14UiWbS34ZOEKyUZZTpk-rMEZQJcLy/view?usp=sharing
crueldade que adentra o debate público sob os termos de “emancipação”, “enfranquecimento”,
“integração”, “multiculturalismo” ou outras verdades de um projeto nacionalista tensionado.

A punição, nesta perspectiva, não representa nem uma falência das estratégias de contenção,
assimilação ou controle social, nem um excesso do poder entrincheirado ameaçado pela
possibilidade de mudança vinda de baixo; ela não é reativa nem estratégica. A violência racial
organizada e sistêmica contra negres — uma violência gratuita que atravessa a distinção conceitual
entre Estado e sociedade civil— é, ao contrário, o gesto inaugural da modernidade ocidental
enquanto tal, a demarcação de sua fronteira mais fundamental. É o que torna possíveis as guerras
em sentido próprio, até mesmo os massacres mais brutais e unilaterais. Ela encarna o estado de
exceção permanente par excellence.

O Império, assim, excede suas racionalidades políticas, econômicas e militares sempre que
negres estão em questão, e a multidão (multitude) teria muito a aprender com essa lição—quanto
antes, melhor.2 Devemos prestar mais atenção aos prazeres do militarismo em si, ao gozo puro da
destruição coletiva, às fantasias sociais de morte e esquartejamento, aos deleites da lei marcial. 3
Dizer isso não é mero recurso retórico, tampouco mero xingamento. Trata-se de uma questão
analítica que exige engajamento. Frequentemente, comentaristas descartam o evidente entusiasmo
demonstrado por aqueles empenhados em “aniquilar a comunidade negra” como falha de caráter de
uma facção fanática da classe dominante,4 seu calcanhar de Aquiles sociopsicológico. Mas essa
postura—ora complacente, ora esperançosa—oculta (ao menos) uma fé, em última instância
insustentável, numa dialética histórica entre opressão e resistência ou numa inevitabilidade
inexplicável do erro fatal dos senhores, produto previsível da hybris ou da embriaguez de um poder
aparentemente absoluto.

Antes mesmo dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, a economia libidinal da


antinegritude já havia sido colocada em evidência por um fórum internacional sobre a questão do
perfilamento racial nos Estados Unidos, mas a maioria das análises críticas até o momento tem
recuado dessa discussão em favor de explicações já banalizadas ou de meras denúncias morais.
Nem é preciso dizer que a questão invariavelmente ressurge, produzindo, a cada vez, interferência
mais aguda no discurso e na organização da política radical.

2 Refiro-me, evidentemente, a Hardt e Negri, Empire; e idem, Multitude.


3 Os textos clássicos sobre essas questões são Freud, “Pensamentos para os tempos de guerra e morte”; idem, “Por que
a guerra?”. Para uma análise psicanalítica contemporânea de temas semelhantes, ver Žižek, For They Know Not What
They Do.
4 Scully, “Killing the Black Community”. Scully não está entre aqueles que rejeitam a economia libidinal da
antinegritude, ainda que este não seja o foco principal de sua análise.
Uma Genealogia da Polícia

Nos Estados Unidos contemporâneos, a polícia opera como A árbitra inquestionável da


violência letal, agente de um militarismo doméstico que subscreve todo expansionismo e
intervencionismo. Como regra, ela goza de impunidade no uso discricionário daquilo que
continuamos a eufemizar como “força excessiva”—o que, na realidade, significa qualquer forma de
brutalização, inclusive os chamados disparos injustificados. Em cada um desses casos, a polícia
desfruta de uma virtual imunidade frente à responsabilização judicial, raramente enfrentando sequer
interrupções salariais. Essa “rédea solta” não é apenas prática—o efeito de uma supervisão judicial
negligente ou de conselhos revisão civis desorganizados—, mas também codificada na forma do
que a jurista Janet Koven Levit chama de “carta branca constitucional.” Simplesmente não há
recurso legal contra a violência e a violação perpetradas pela polícia; os departamentos policiais
são, segundo um relatório recente da Human Rights Watch, instituições “protegidas da justiça”. 5
Neste ponto de extremidade, o poder sobre a vida e a morte repousa claramente em suas mãos,
conferido por decreto oficial. Diante da polícia, nós não vivemos sob qualquer proteção
constitucional (ou de outro tipo). Estamos, em suma, “nus diante do Estado”.6

Sob tais condições, não deveria surpreender ninguém que o “perfilamento racial”, como
prática institucionalizada das agências policiais, não seja apenas possível ou disseminado, mas
perfeitamente legal. Não há nada de hiperbólico em meu argumento aqui. Ao se ler a literatura
jurídica sobre perfilamento racial, é inevitável um senso de vertigem. O que se encontra é uma
regressão infinita em torno dos critérios de “causa provável” estabelecidos pela Quarta Emenda, que
supostamente protege contra “buscas e apreensões irrazoáveis.” Diversos estudiosos demonstraram
amplamente como, por exemplo, os casos recentes Illinois v. Wardlow (2000) e United States v.
Whren (1996) efetivamente contornaram o padrão de “suspeita razoável” que anteriormente
regulava as condições sob as quais a polícia poderia abordar e revistar pedestres ou motoristas em
paradas de trânsito rotineiras.7 Esse padrão anterior de suspeita razoável foi estabelecido em Terry v.
Ohio (1968), caso que dá nome à conhecida “parada Terry.” No entanto, mesmo uma rápida análise
mostra que o próprio caso Terry já instituiu uma brecha na definição de causa provável segundo a
Quarta Emenda—algo que favoreceu amplamente a atuação policial durante a chamada guerra às
drogas, declarada por Reagan em 1982.8

5 Human Rights Watch, “Shielded from Justice: Police Brutality and Accountability in the United States” (1998),
disponível online em http://www.hrw.org/reports98/police (acesso em 10 de julho de 2004).
6 Levit, “Pretextual Traffic Stops”, p. 174.
7 Ver Calderón, “Race-Based Policing from Terry to Wardlow”; Harris, “Factors for Reasonable Suspicion”;
Maclin, “Terry v. Ohio’s Fourth Amendment Legacy”.
8 “Suspeita razoável” é um padrão determinado unicamente no âmbito da polícia, e não pela revisão judicial (por
exemplo, manuais policiais, depoimentos de policiais, naturalização de suas normas avaliativas e de
procedimentos investigativos como “práticas usuais”, tudo isso desenvolvido com desprezo pelos princípios de
direitos e liberdades individuais, especialmente a Quarta Emenda). A revisão judicial da discricionariedade
Podemos lamentar esse desgaste persistente dos padrões de suspeição, mas, ao examinarmos
de perto a história doutrinária das proteções da Quarta Emenda, encontramos novamente que a
própria noção de causa provável se reduz a um padrão de proteção igualmente vago e problemático.
Como observa H. Richard Uviller em Virtual Justice:

Causa provável não é um termo muito adequado; tem pouco a ver com probabilidade e
nada com causalidade. Mas é o termo escolhido pelos Fundadores para descrever o grau
de suspeita necessário para que o governo invada os espaços privados do cidadão.
Significa “uma razão muito boa para acreditar”, e só isso. Não é certeza além da dúvida
razoável, nem mesmo algo mais provável do que improvável. Mas [apenas] mais do que
um palpite ou [mera] suspeita. Essa é a melhor definição que conseguimos oferecer.9

É claro que a Quarta Emenda tinha a intenção de impedir o uso do “mandato geral” (general
warrant) ou “mandato de assistência” (writ of assistance) utilizado pelos oficiais coloniais
britânicos antes da Revolução, que autorizava a busca e apreensão de qualquer coisa, em qualquer
lugar — seja na residência ou no corpo de um determinado “suspeito.” Em outras palavras, os
parâmetros de busca e apreensão estavam à mercê da discricionariedade da polícia colonial, e não
sujeita à qualquer revisão judicial. É seguro afirmar que, hoje, a polícia recuperou o mandado geral,
de modo que, sob as circunstâncias atuais, “todos nos tornamos suscetíveis aos caprichos arbitrários
e palpites infundados de agentes policiais.”10

Os pretextos disponíveis para abordar e revistar qualquer pedestre ou motorista que


escolham são tão numerosos quanto inescapáveis. Em um veículo automotor, qualquer infração ao
código de trânsito, por menor que seja, pode justificar uma revista completa e até mesmo prisão.
Dado que “ninguém consegue dirigir por alguns quarteirões sem cometer uma infração menor, 11
qualquer ume está, a todo momento, potencialmente exposta ao encontro com a polícia, seja nas
ruas, seja nas rodovias. Simplesmente se afastar da presença policial já é, hoje, motivo suficiente
para uma abordagem, a despeito do suposto direito constitucional de fazê-lo. Permanecer parado
também se tornou justificativa, seja em áreas previamente designadas como “de alta criminalidade”,
seja em qualquer cenário onde a polícia julgue a sua presença como “incongruente”.

policial para abordar pedestres e motoristas foi abandonada no caso Terry, e hoje até mesmo os padrões de
conduta internos da polícia (“práticas usuais”) são contornados em favor da racionalização técnica mais cínica
dos poderes arbitrários de busca e apreensão da polícia. Encontre uma justificativa, um pretexto, para busca e
apreensão após ocorrer a ideia de realizar uma abordagem: essa é a essência da “patrulha agressiva”, tal como
formulada no início dos anos 1960, e levou apenas uma geração após o Movimento dos Direitos Civis para ser
inteiramente codificada.
9 Uviller, Virtual Justice, p. 49.
10 Levit, “Pretextual Traffic Stops”, p. 169.
11 Harris, “The Stories, the Statistics, and the Law”, p. 311.
Em teoria, qualquer pessoa nos Estados Unidos (e muitos fora de suas fronteiras) está sujeita
a essas regras de engajamento. No entanto, como observou recentemente Ira Glasser, ex-diretor da
União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), embora a polícia pudesse, por exemplo, invadir
aleatoriamente prédios residenciais no Upper West Side de Manhattan e até obter resultados, isso
claramente não acontece. Como ele afirma: “Eles não fazem isso porque a maioria das pessoas que
mora nesses prédios é branca. Eles não fazem isso porque, se tentassem, a indignação seria tão
grande, tão rápida, que se tornaria politicamente insustentável.”12

Nós podemos nos perguntar: quem se indignaria com tais operações? E a indignação de
quem faria diferença? De todo modo, o veredito de sua análise é inequívoco:

Em nossas rodovias, em nossas ruas, em nossos aeroportos e nos postos de controle


alfandegário, a cor da pele — novamente, independentemente da classe social, sem
distinções com base na educação ou na condição econômica — a cor da pele,
novamente, é usada como causa de suspeita, e como justificativa suficiente para a
violação dos direitos das pessoas.13

Para os negros em particular, a situação é aguda. O ataque mais recente às proteções da


Quarta Emenda seguiu-se imediatamente à chamada “revolução do devido processo” promovida
pela Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren, inaugurada por decisões como Mapp (1961)
e Miranda (1966). Essa guinada na opinião judicial em favor de suspeitos e réus criminais —
desproporcionalmente negros e, caracteristicamente, retratados como tais — foi considerado por
alguns como o equivalente ou a extensão, no campo do direito penal, das reformas do direito civil
em curso. A moção em direção à proteção constitucional para negres foi então vista como um
subproduto do sucesso limitado do Movimento dos Direitos Civis. No entanto, suas implicações
mais amplas foram rapidamente confundidas com a ameaça percebida da radicalização da luta,
apelidada de “Black Power” — o que, para o mainstream, apresentava tendências criminais
ameaçadoras, entre outras coisas.

A ideia de que negres poderiam — ou deveriam — ter tanto direitos civis quanto direitos
criminais ingressou, assim, no furor de uma cultura política emergente de “lei e ordem”, cujos
poderes executivo, legislativo e judiciário atuaram de forma febril e colaborativa para retraçar seus
limites. A história legal que vai de Richard Nixon a Ronald Reagan e George W. Bush — da “guerra
ao crime” à “guerra às drogas” e à “guerra ao terror” — é alarmantemente curta. A legislação liberal
dos direitos civis e a revisão judicial desfrutaram de uma vida muito breve e, em larga medida,
ineficaz. Mas a “revolução” nos direitos criminais nunca saiu do papel; nunca aconteceu de fato,

12 Glasser, “American Drug Laws”, p. 712


13 Ibid., p. 704. Ênfase adicionada.
exceto na fantasia paranoica coletiva da “América branca”. Não há, finalmente, uma era de
ouro para negres no que diz respeito ao direito penal. Por isso, nas nossas discussões sobre um
suposto fascismo crescente, autoritarismo nascente ou ascensão do Estado policial — especialmente
após os atos de Segurança Interna (Homeland Security) e o Patriot Act — nós podemos fazer
melhor do que rastrear essa genealogia até o mandado geral (ou mesmo à Ordem Executiva), cujo
espectro assombra eternamente o experimento democrático da sociedade civil pós-revolucionária.
Ao invés disso, o objeto adequado de investigação é o código escravagista do período antebellum e
seus antecedentes nos estatutos coloniais — não porque a trajetória dessa história legal ameace
desfazer os direitos de todes, mas precisamente porque o impulso libertário (libertarian)
predominante nos Estados Unidos tem, de forma tão engenhosa quanto recorrente, convertido a
situação concreta des negros em uma metáfora generalizante.

Sob o peso dessa legalidade, negres — que estavam inequivocamente na pólis, mas
definitivamente não era da pólis — não estavam apenas disponíveis à busca e apreensão arbitrária,
como no mandado geral: elus estavam, em essência, sempre já buscades e apreendides. Mais ainda,
como diz a famosa frase, não possuíam “nenhum direito que um homem branco [fosse] obrigado a
respeitar” — inclusive o direito à vida. O ethos da escravidão — em outras palavras, a matriz
ideológica e afetiva duradoura do projeto supremacista branco — não admite autodefesa negra
legítima, não reconhece reivindicações legítimas de autopropriedade, privacidade ou autonomia por
parte de pessoas negras. Um estado permanente de furto, apreensão e sequestro ordena a vida da
comunidade cativa e de sua descendência. A vulnerabilidade estrutural à apropriação, a abertura
perpétua e involuntária — incluindo todos os usos arbitrários do corpo, tão minuciosamente
descritos por estudiosas como Saidiya Hartman e Hortense Spillers — deve ser compreendida como
a condição paradigmática da existência negra nas Américas, a característica definidora da
antinegritude no Novo Mundo.14 Em resumo, o negro, seja escravizado ou “livre”, vive sob o
mandamento dos brancos.15

Policiar negres nos períodos colonial e antebellum era, como sabemos, a prerrogativa de
qualquer branco (que podia assumir esse papel ou não), e essa prática só foi posteriormente
profissionalizada com o surgimento do sistema prisional moderno a partir das cinzas da
Reconstrução.16 Sem ignorar a história intermediária, é suficiente dizer que esse policiamento foi

14 Hartman, Scenes of Subjection; Hortense Spillers, Black, White, and in Color. Esse ponto é válido não apenas nas
discussões sobre as sociedades escravistas do Hemisfério Ocidental. As transformações materiais e ideológicas globais
provocadas pelos séculos de economia política transatlântica da escravidão construíram toda a diáspora africana como
uma população escrava—real ou imaginada, atual ou potencial. Essa confluência, na história mundial, entre
“escravidão” e “negritude” é discutida de forma brilhante em Mbembe, On the Postcolony. Esse fato impõe uma tensão
permanente a qualquer noção de pós-colonialidade na África, no Caribe e na América Latina, e cria uma cisão
incomensurável entre a posição do sujeito colonizado e a posição do sujeito escravizado.
15 Mbembe, On the Postcolony, pp. 24–65.
16 Walker, The Police in America.
organizado ao longo do século XX em ordens de magnitude superiores, impulsionado pelas
transformações políticas, econômicas e sociais que acompanharam a transição do Estado de bem-
estar para o Estado de guerra.17

“Perfilamento Racial” (Racial Profiling), portanto, é um termo recente, mas uma prática
secular. Em outras palavras, o policiamento de negres — cuja repressão sempre foi sancionada pelo
Estado, ainda que frequentemente tratada como um assunto privado de “gestão de propriedade” —
permanece como uma questão central na atualidade; não se trata de um fenômeno emergente. As
audiências públicas da Anistia Internacional sobre perfilamento racial, a legislação federal
estagnada conhecida como “HR 1443”, a campanha da ACLU’s “Dirigindo sendo negro” (Driving
While Black), e a reconfiguração problemática do debate sobre perfilamento racial após o 11 de
Setembro se desenrolam todas contra o pano de fundo dessa longa história de “policiar a população
negra”.

Os efeitos do pragmatismo político tosco, do legalismo estreito ou da miopia histórica nos


levam a identificar o desencadeamento das forças policiais com a eclosão da guerra às drogas, com
os surtos de pânico xenofóbico em torno da nova imigração ou com o surgimento do aparato de
Segurança Interna diante da ameaça do terrorismo.18

O Fim da Era Pós–Direitos Civis

Nesse sentido, vem imediatamente à mente o filme Fahrenheit 9/11 (2004), de Michael
Moore — um fracasso absoluto como cinema político, independentemente de ter ganhado a Palma
de Ouro em Cannes, de ter alcançado um sucesso de bilheteria sem precedentes e de ter sido
calorosamente recebido por certos setores da imprensa liberal e progressista. 19 Esse fracasso não
decorre tanto das muitas razões convincentes já apontadas por diversos críticos, mas sim do
abandono, por parte do filme, da única linha de investigação que poderia ter produzido uma análise
crítica significativa tanto da guerra ao terror quanto de sua correlata doméstica na Segurança Interna

17 Gilmore, “Globalisation and U.S. Prison Growth”; Parenti, Lockdown America.


18 Ou seja, a construção dessa vasta arquitetura jurídica em defesa das abordagens pretextuais revela que uma prática
policial abrangente já estava em andamento e precisava de defesa legal. Portanto, o perigo que ela representa não é o
retorno de alguma tirania passada (como o mandado geral) ou alguma queda iminente rumo ao totalitarismo (a imagem
da “bota militar” ressuscitada hoje em resposta ao Departamento de Segurança Interna). Em vez disso, ela deve ser lida
como sintomática de uma estrutura existente de poder policial que não pode ser anunciada de outra forma, mas que
pode ser lida, em parte, por meio do texto jurídico. Tal leitura confere coerência ao arquivo de testemunhos sobre
perfilamento racial, uso excessivo da força etc., e as conclusões sugeridas são importantes: não se trata de duas formas
distintas de poder policial no nível da doutrina legal (um Jim Crow ressuscitado), mas sim de uma estrutura jurídica
bifurcada no nível da prática policial, no momento da discricionariedade de rua (o que desloca o debate da Quarta
Emenda, já desgastada, para considerações da Décima Quarta, quase impossíveis de aplicar). Para mais sobre esse
ponto, ver Martinot e Sexton, “The Avant-Garde of White Supremacy”.
19 Veja-se, por exemplo, J. Hoberman, “Eviction Notice,” Village Voice, 21 de junho de 2004; Andrew O’Hehir,
“Fahrenheit 9/11: Yea!” Salon, 23 de junho de 2004, disponível online em: salon.com/ent/movies/
(Homeland Security).20 Refiro-me, é claro, à cena de abertura na qual é retratada a bem conhecida
controvérsia da eleição presidencial de 2000. O foco específico desse relato é o descarado
cerceamento do direito ao voto de dezenas de milhares de eleitores negres no estado da Flórida, e a
notória conexão sugerida entre a suspeita supervisão dessa operação pelo governador Jeb Bush ,
irmão do então herdeiro político, e a igualmente duvidosa nomeação de George W. Bush pela
Suprema Corte, então de maioria conservadora, que suplantou os resultados tanto do voto popular
quanto do colégio eleitoral (ambos aparentemente em favor de seu oponente, o vice-presidente Al
Gore). Com todo desleixo característico de Moore, é insinuado (embora nunca declarado) que o
caminho até a Casa Branca foi pavimentado sobre a evisceração da cidadania negra como
instituição. Em outras palavras, a despeito do fato que o decreto judicial tornaria o processo
eleitoral irrelevante, parece que houve algo necessário na proscrição sistêmica da participação
cívica negra para a plena inauguração do Novo Século Americano. 21 Esse singular insight — ainda
suspenso no nonsense do debate em torno do filme — é única contribuição da obra mais recente de
Moore, e ele a realiza apesar de sua obsessão com o declínio da integridade das relações entre a
“América Branca Média” (white Middle America) e seu governo.

Essa observação é, no entanto, uma questão curiosa, já que, em última instância, não se pode
sustentar, como continua fazendo a maior parte da esquerda, que o voto negro — ou sua ausência —
tenha fornecido a margem crucial para a campanha de Bush, seja na Flórida em particular, seja nos
Estados Unidos de forma geral. Ao contrário, o que sustento é que a eleição não se reduziu a uma
luta suja nesse canto do país, nesses poucos condados com comunidades predominantemente negras
e simpatizantes do Partido Democrata. Está claro que a depuração dos registros de eleitores foi um
empreendimento premeditado e bem coordenado, e que seus efeitos visavam minar qualquer
vantagem que Gore pudesse ter no estado. Também está claro que essa erosão deveria ocorrer às
custas do segmento desproporcionalmente negro do eleitorado diretamente afetado pela chamada
regra de exclusão de ex-criminosos (ex-felon exclusion rule). Contudo, o ponto importante que não
deve ser ignorado é que não havia como a campanha de Bush saber, com antecedência e com tal
precisão, que a corrida presidencial se desenrolaria da maneira como de fato ocorreu. Simplesmente
não existe instrumento de amostragem suficientemente sofisticado que permita tal capacidade

20 Por exemplo, apresenta uma ambivalência extrema em relação à intervenção militar dos EUA no Afeganistão; é
politicamente vago quanto ao Departamento de Segurança Interna; mobiliza tropos racistas sobre o fanatismo e a traição
de árabes/muçulmanos no que diz respeito aos sauditas, ao mesmo tempo em que defende os iraquianos como
“selvagens nobres”, e assim por diante. Ver: Robert Jensen, “Stupid White Movie,” Counterpunch, 5 de julho de 2004,
disponível online em: http://www.counterpunch.org/jensen07052004.html (acesso em 8 de julho de 2004); Terry
Lawson, “Moore, Please,” Detroit Free Press, 24 de junho de 2004, disponível online em:
http://www.freep.com/entertainment/movies/far25_20040625.htm (último acesso em 23 de agosto de 2006); Shlomo
Svesnik, “Manufacturing Dissent,” World War 3 Report, 10 de julho de 2004, disponível online em:
http://www.worldwar3report.com/shlom02.html (acesso em 12 de julho de 2004).
21 Arundhati Roy, “The New American Century,” The Nation, January 22, 2004, disnponível online em:
http://www.thenation.com/docprint.mhtml?i=20040209&s=roy (acessado em Janeiro, 25, 2004).
preditiva. Mesmo isso fosse possível, nada impunha que a lacuna de votos fosse remediada por
esses métodos específicos. Isto é, nada que os tornasse estrategicamente necessários para isso: os
recursos poderiam ter sido diferentemente alocados, a campanha poderia ter direcionado com mais
intensidade seus esforços para regiões-chave da Flórida com votos indecisos, os votos eleitorais
potencialmente perdidos a Flórida poderiam ter sido compensados em outros estados
negligenciados ou abandonados etc.22 E tudo isso poderia ter sido feito sem o risco do escândalo
político que eventualmente atingiu o regime Bush quando suas táticas vieram à tona. Por que, então,
perseguir essa agenda, quando seus custos potenciais são tão altos e sua probabilidade de sucesso
tão baixa?

A resposta a essa pergunta encontra-se em um momento capturado por Moore em uma


montagem de imagens de arquivo da C-SPAN. O que ela revela é a resposta coletiva do (então
inteiramente branco) Senado dos Estados Unidos ao desafio do Congressional Black Caucus (CBC)
à posse de George W. Bush — uma impetuosa petição de objeção por parte de deputados
democratas (House Democrats) à inclusão dos votos eleitorais contestados da Flórida: escárnio,
indiferença e zombaria. O ponto não pode ser subestimado. Não se tratava de uma manobra
obstrucionista republicana de retaguarda que resultou em uma estreita derrota partidária. Tratou-se,
antes, de uma recusa unânime de coassinar a petição de seus colegas negros sobre a questão (ainda e
novamente) da supressão do voto negro. Não apenas esses representantes negros eleitos não foram
capazes de bloquear ou sequer adiar a ratificação da eleição; tampouco lhes foi permitido enunciar
os fundamentos de suas objeções (afinal, regras são regras). De fato, seus esforços foram recebidos
com gritos estrondosos de impaciência dos presentes e — o que poderia parecer bizarro se não
fizesse sentido — uma série de comentários abertamente condescendentes do próprio oficial que
presidia a sessão, o derrotado Al Gore. 23 Como resultado, todo o gesto do CBC não foi reconhecido
e, portanto, foi tornado inexistente, retirado dos registros oficiais. Embora o controle do mais alto
cargo da nação estivesse em jogo, e a perda da 43ª presidência por parte de seu partido significasse
a consolidação da hegemonia republicana sobre os três poderes do governo num futuro previsível,
os democratas tornaram-se cúmplices — a verdadeira “coalizão dos dispostos” — na conspiração
do silêncio, concordando tacitamente com a reorganização da liderança nacional.

22 A noção de que a Flórida foi o campo de batalha final da eleição de 2000 é pura ilusão. Poder-se-ia afirmar com a
mesma facilidade que a disputa presidencial se decidiu na batalha por Califórnia, Colorado, Texas ou Virgínia — todos
estados nos quais foram relatadas suspeitas de fraude eleitoral ou irregularidades significativas — ou mesmo em outros
estados não envolvidos em controvérsia. O voto eleitoral, assim como o voto popular, é um total nacional, de modo que
a designação de um estado ou outro como decisivo é uma escolha arbitrária. Dizer que Bush não poderia ter vencido
sem a Flórida ou, inversamente, que Gore teria vencido caso tivesse conquistado a Flórida é implicar que “todas as
demais condições permaneceriam constantes”, exatamente o que não podemos sustentar em uma situação tão dinâmica.
23 Sem surpresa, Gore pareceu particularmente irritado com o protesto da Representante Maxine Waters (Democrata da
Califórnia), reafirmando a noção racista/sexista de que mulheres negras em cargos eletivos representam o sine qua non
da profanação política. Agradeço a Joy James por enfatizar esse ponto em sua leitura de uma versão anterior deste
artigo.
Como esse jovial fechamento de fileiras pôde ocorrer imediatamente após a mais amarga
disputa eleitoral em mais de um século — quase seis semanas de suspense beligerante, culminando
na Suprema Corte — e por que a esquerda permanece tão dolorosamente alheia a essa profunda
peculiaridade?24Bem, antes do desfile parlamentar que carimbou o pacote político de Bush no pós-
11 de setembro (provocando gritos de falso alarme e ingênua decepção entre a oposição leal), houve
esse tão familiar abraço bipartidário em torno daquilo que tem sido, desde antes da Declaração de
Independência, a verdadeira questão da divisão nacional — negres: sujeitos ou objetos, cidadãos ou
mercadoria?

Essa foi a verdadeira lição política do ano 2000: a vitória de Gore, nas circunstâncias dadas
(isto é, sob alegações de fraude republicana, com uma recontagem incipiente e litígios em
andamento), teria exigido a defesa oficial da cidadania negra — uma proposição que parece ter sido
completamente inaceitável para todos os membros da câmara alta do Congresso — no espírito, por
assim dizer, da reconciliação. Ao que tudo indica, esse gesto de defesa — um aceno, uma admissão
de que havia, talvez, algo de podre no Sul Profundo (Deep South) — não apenas teria prolongado
“o que restava de rancor partidário” ou manchado qualquer administração Gore em potencial (e, em
todo caso, quem se importaria?), mas também teria colocado em xeque o funcionamento de toda
panóplia de aparatos estatais — “as veneráveis instituições da nossa democracia.” 25 Não, eu sugiro,
porque o eleitorado negro representasse uma ameaça prática à agenda Republicana, mas sim porque
os negros representam — eternamente — uma ameaça simbólica à cidadania, o equivalente político
de “lá se vai o bairro.” (there goes the neighborhood).26

Em retrospecto, parece que essa crise iminente de legitimidade no coração da “civilização


Americana” ameaçava algo mais fundamental do que a instabilidade global provocada pelo
flagrante desrespeito a todos os constrangimentos legais — dispositivos constitucionais, direito
internacional, convenções da ONU etc. — que caracterizou a facção Bush durante todo o seu

24 Conforme descrito pela Associated Press, “Gore Presides in Bush Certification”, 7 de janeiro de 2001: “Gore ergueu
o punho direito quando os 54 votos da Califórnia, o maior prêmio do colégio eleitoral, lhe foram atribuídos. [...] Em um
dado momento, o deputado Bill Thomas (Republicano da Califórnia), um dos quatro parlamentares responsáveis por ler
os votos em voz alta, segurou o certificado de Delaware contra a luz e semicerrando os olhos, disse: ‘Este aqui é
diferente de todos os outros’, com um sorriso. Seu gesto, que provocou risos, foi uma referência bem-humorada às
recontagens televisivas repetidas dos votos da Flórida.” Esse relato de shuckin’ and jivin’ bipartidário está disponível
online em: http://quest.cjonline.com/stories/010701/gor_0107017643.shtml.
25Al Gore, “Transcrição do Discurso,” Cable News Network, 13 de dezembro de 2000, disponível online em:
http://www.cnn.com/ELECTION/2000/transcripts/121300/t651213.html (acesso em 12 de julho de 2005).
26Esse ponto deve lançar mais luz sobre o fato de que a população negra está, mais uma vez, sendo rapidamente
privada de seus direitos políticos no presente, notadamente por meio da ampliação das leis de exclusão do direito ao
voto para pessoas com antecedentes criminais. Para uma discussão detalhada sobre essa e outras consequências
colaterais do encarceramento em massa, ver Garland, Mass Imprisonment; Mauer e Chesney-Lind, Invisible
Punishment. Além disso, o poder eleitoral nos níveis estadual e nacional foi inteiramente minado neste momento,
mesmo para os brancos. Ver Martinot, “Deconstructing Electoral Politics for 2004”. A ideia de que o voto negro
atualmente representa um desafio prático sério às operações do sistema bipartidário, à aliança entre Estado e
corporações, ou mesmo às agendas populistas das classes médias e trabalhadoras brancas (sejam elas Republicanas,
Democratas, Verdes ou Independentes) é absurda.
mandato. Na verdade, testemunhamos exatamente o oposto. Bush passou a ser levado mais a sério
desde o 11 de setembro (assim como o demoníaco Rudy Giuliani), 27 não apenas como uma ameaça
maníaca ao mundo, mas como o legítimo líder dos Estados Unidos. Ele é, sem dúvida, considerado
pela maioria da esquerda como perigoso, idiota e fanático; no entanto, não é visto como um
usurpador. Para evidenciar isso, não é preciso ir além da campanha febril da centro-esquerda para
retirá-lo do cargo por meio do voto (de MoveOn.org à International ANSWER [Aja Agora para
Parar a Guerra e Acabar com o Racismo]), como se ele tivesse alcançado a posição
democraticamente, como se a posição — Presidente dos Estados Unidos — pudesse alguma vez ser
alcançada democraticamente. Aqueles que realmente acreditam que ele — e o governo que preside
— são uma fraude devem clamar por sua deposição imediata, e não exigir sua censura ou
impeachment, muito menos rezar por sua derrota nas urnas. Esta última postura simplesmente
capitula ao patriotismo. “A mudança de regime começa em casa!” tem sido um grito de guerra
frequente nas manifestações contra a guerra em todo os Estados Unidos. Àqueles que ostentam tais
slogans, só nos resta dizer: que se mude então, assim como Bush e sua comitiva mudaram tantos
outros.

Essa posição, contudo, é amplamente impensável hoje, porque, levada às suas últimas
consequências, opor-se radicalmente à administração Bush implica, ipso facto, fomentar a
dissolução dos Estados Unidos tal como os conhecemos. Esse espectro da “desordem completa”
sempre foi essencial a qualquer perspectiva de libertação negra nos Estados Unidos. 28 (Recordemos,
como escrevi anteriormente: “O caminho até a Casa Branca foi pavimentado sobre a instituição
esvaziada da cidadania negra.”) Desnecessário dizer, poucos na esquerda estão dispostos a admitir
tanto. O que prevalece, em vez disso, na conjuntura atual, é uma preferência concreta pelo sacrifício
nacional de negres enquanto entidades políticas (não apenas como sujeitos portadores de direitos,
mas também capazes de articular demandas legíveis na esfera pública), para perseguir — sob o
disfarce de uma negação institucionalizada — o que equivale a uma intensificação da batalha
partidária dentro da moldura de uma democracia liberal já anêmica (anêmica, isto é, para aqueles
que supostamente seriam seus sujeitos legítimos; daí o interminável falatório na imprensa
alternativa sobre “reforma do financiamento de campanha,” “democracia midiática,” e por aí vai). A
meu ver, a deliberada desconsideração da posição estrutural de negres na formação social — aquilo
que torna a farsa da Eleição de 2000 algo normal e não excepcional, uma continuidade histórica —
é absolutamente vital ao espectro de causas progressistas que amadureceram no rastro do 11 de
Setembro: desde a defesa legal dos alvos do perfilamento antiterrorista até os debates sobre o
estatuto e o bem-estar dos chamados combatentes inimigos, passando pelo florescimento do

27 Agradeço novamente Joy James por esse último ponto.


28 Fanon, Os Condenados da Terra, p. 37.
movimento pelos direitos dos imigrantes. De que outra forma o público em geral — agora, desde
Clinton, expressamente multirracial — poderia ter aquiescido tão prontamente a um golpe de
Estado sem derramamento de sangue no berço do experimento democrático? Esqueça o desprezo
pela coautoria senatorial de uma investigação federal inócua (quem, afinal, busca salvação no
Congresso?). A pergunta mais importante é: onde estavam as coalizões amplas, de base,
multirraciais, combatendo nessa frente? E, quando a eleição de 2004 veio e se foi, por que não
revisitamos com veemência essa cena política primal? Em lugar dessa solidariedade ausente com as
comunidades negras atualmente existentes (cuja participação cívica continua a ser, para dizer o
mínimo, assediada) temos, em vez disso, uma analogia consistente ao sofrimento negro abstrato
que, na verdade, desloca as lutas negras mesmo enquanto se fundamenta em seu exemplo: a saber,
“Voar sendo Brown” é como “Dirigir sendo negro” (embora o perfilamento policial, prática
legalmente racionalizada desde o início dos anos 1960, tenha estado fora do radar da maioria das
organizações comunitárias árabes, muçulmanas e do sul da Ásia até o 10 de setembro); a “Caravana
da Liberdade dos Trabalhadores Imigrantes” “se baseia na história do nobre movimento pelos
direitos civis dos EUA” (embora os grupos de direitos dos imigrantes, via de regra, não se
interessem pelos trabalhadores negros nem pelas exorbitantes taxas de desemprego negro — a
desarticulação econômica negra sendo uma das pré-condições do trabalho imigrante); 29 o abuso de
prisioneiros em Abu Ghraib é reminiscente dos linchamentos de negres (embora a maioria daquelus
que denunciam publicamente tal crueldade fique relativamente indiferente ao tratamento semelhante
da população carcerária doméstica, em sua maioria negra), e assim por diante.30

Visto por essa luz, não podemos detectar nessa indiferença pervasiva uma revisão histórica
da eleição de 1876, na qual o Republicano Rutherford Hayes foi nomeado presidente por uma
comissão bipartidária especial, apesar de ter perdido o voto popular para seu desafiante Democrata,
Samuel Tilden? Em outras palavras, não foi a campanha de um mês que culminou em Bush vs.
Gore — e o silêncio marcado que logo se seguiu à decisão da Suprema Corte — um evento político
equivalente àquele que formalmente encerrou a era da Reconstrução, o infame Compromisso de
1877? No primeiro caso, um programa de gastos sociais sem precedentes, aplicado por uma massiva
29 Reconheço os estudos que demonstram que negros e imigrantes não estão geralmente em competição direta por
empregos nos EUA no período pós-direitos civis, ainda que isso ocorra em algumas regiões e indústrias. Meu ponto é
deslocar o debate. Não me preocupo tanto com o impacto da imigração ou dos imigrantes sobre a qualidade de vida dos
negros, incluindo o acesso ao emprego digno — embora essa seja uma questão inevitável. Mais importante, preocupo-
me com quais deslocamentos e despossessões precisaram ser fabricados e institucionalizados como componentes de
uma nova onda de imigração em massa, pré-requisito político-econômico para as lutas contra a exploração do trabalho
imigrante que desde então ganharam força. A destruição da classe trabalhadora negra — a base material do movimento
social negro do pós-guerra — pela desindustrialização, terceirização e cortes, juntamente com o desmonte do Estado de
bem-estar social e a construção do complexo prisional-industrial, precede histórica e ontologicamente a situação dos
“novos imigrantes” do pós-1965. Ver Peter Skerry, “The Black Alienation: African Americans versus Immigrants”, New
Republic, 30 de janeiro de 1995.
30Ver Richard Muhammad, “Voices from the Immigrant Workers Freedom Ride”, AlterNet, 25 de setembro de 2003;
Shora, “Guilty of Flying while Brown”; Susan Sontag, “Regarding the Torture of Others”, New York Times, 23 de maio
de 2004.
presença militar doméstica, foi encerrado, e a legislação histórica dos direitos civis, por mais diluída
que fosse, foi efetivamente abandonada, mas apenas depois que ambos já haviam sido largamente
impotentes diante das manobras paramilitares e políticas, muitas vezes violentas, de uma
Confederação reestruturada contra as primeiras esperanças fatídicas de uma população escrava
nominalmente emancipada.31 (A luta pós-emancipação por direitos civis e justiça racial não
ressurgiria com força suficiente para exercer influência nacional — e internacional — significativa
por quase cem anos.) O momento presente, no entanto, sinaliza o verdadeiro sino da morte do
moderno Movimento pelos Direitos Civis, na medida em que este perseguia uma segunda
Reconstrução mais abrangente, agora no crepúsculo das conquistas limitadas (mas não
insignificantes) que momentaneamente assegurou sob os títulos de “antidiscriminação” e “ação
afirmativa.” A eleição de 2000 designa o fim formal da era pós-direitos civis, a maturação genuína
da nova direita e o advento de uma nova redenção.

A diferença hoje é que a “reação racial” não é mais uma ressurreição de um nova flange da
supremacia branca, um projeto que se tornou insustentável e talvez até indesejável. 32 É, em vez
disso, uma intensificação de uma antinegritude ampla que é inteiramente compatível com a
emergente América multirracial.33 Isto é, de forma bastante insistente, que a mudança mais
importante produzida pela ascensão da junta Bush diz respeito ao consenso emergente sobre a
relativa insignificância do que só posso chamar, inadequadamente, de direitos des negres nos
Estados Unidos. Mesmo isso é dizer as coisas de forma muito branda. Pois essa clara deriva para a
direita — que afetou todo o espectro político — não trata simplesmente do retrocesso dos ganhos
legislativos liberais dos anos 1960 ou da desmontagem deliberada dos aspectos mais amenizadores
do Estado de bem-estar social, ou mesmo do estreitamento incessante do escopo das proteções
legais diante da polícia (tendência que se tornou especialmente proeminente desde o lançamento da
infame guerra às drogas de Reagan, no início dos anos 1980). Mais profundamente, a “restauração
conservadora” nomeia o recuo da ideia, em todo o tecido da sociedade civil, de que negritude e ser
humano não são permanentemente e mutuamente excludentes.34

A paradoxal noção de “ser humano negro” nunca gozou do status dominante de senso
comum, é claro, mas por um breve momento na história recente parecia estar pronta para ampliar
sua capacidade de desestruturar e redefinir ambos os termos desse estranho composto. Foi contra
essa potencial ameaça, tanto material quanto simbólica, que a mal chamada “retaliação branca”
(white backlash) foi finalmente dirigida, e tem sido assim desde antes da primeira batalha da Guerra
Civil. Essa transformação “pós-direitos civis” da cultura política nacional, portanto, não pode ser

31 Ver DuBois, Black Reconstruction in America; Foner, Reconstruction.


32 Omi e Winant, Racial Formation in the United States.
33 Yancey, Who Is White?
34 Shor, Culture Wars.
reduzida ao conjunto de mudanças políticas perseguidas desde Nixon, pois constitui uma alteração
muito mais fundamental do pano de fundo sobre o qual a política opera em seu todo.

Essa alteração é, ao mesmo tempo, uma sutura da branquitude ferida que sobrevive à
mobilização pós-guerra do protesto político negro e uma habilitação sem precedentes da política de
interesses racialmente baseada para não-brancos não-negros, sob o amplo estandarte “pessoas de
cor”.35 Contudo, como mencionado anteriormente, esse último desenvolvimento não surge com base
em solidariedade com a luta negra, como se supõe sem fundamento pelo sentimento de coalizão
embutido na noção, mas, sim, em seu rastro, se não sempre às suas custas. Mais precisamente, é um
fenômeno possibilitado pelo declínio do movimento negro e um desenvolvimento que floresce em
seu lugar.

Nas últimas duas décadas, a política das “pessoas de cor” mudou de um caminho de
capitalização sobre oportunidades históricas (extraídas do Movimento dos Direitos Civis e do Black
Power) para um de oportunismo defensivo (exigindo a superação do supostamente ultrapassado
modelo “binário negro–branco” da política racial). Assim, o populismo dos “homens brancos
irritados” (que remonta pelo menos à campanha de Goldwater em 1964) e o apelo massivo da
política de coalizão multirracial (nutrida pelas mudanças demográficas provocadas desde a Lei de
Imigração de 1965, um subproduto da era dos direitos civis) representam dois lados da mesma
moeda. Eles são, em suma, dois aspectos da repressão contemporânea do radicalismo negro do pós-
guerra. O primeiro opera um ataque frontal, combinando uma imensa violência patrocinada pelo
Estado e propaganda explícita contra a população civil (um cenário terrorista), enquanto o segundo
desloca as demandas insaciáveis e as questões impossíveis colocadas pelo espectro da libertação
negra por meio da absorção e redirecionamento (um cenário de esvaziamento).36

Sem dúvida, pode parecer contraintuitivo pensar na proliferação da política de coalizão


multirracial — ou, mais precisamente, na mobilização política de pessoas não-negras de cor —
como um índice do empoderamento reduzido dos negros ou, pior, um componente de um
despotencialização negra ativa instituída via ajustes estruturais domésticos em grande escala.
Afinal, há um reconhecimento quase universal entre ativistas e organizadores das comunidades

35 Robinson, Marked Men; Gracia e De Greiff, Hispanics/Latinos in the United States; Jaimes, The State of Native
America; Wu, Yellow.
36 Ver Wilderson, “Gramsci’s Black Marx”. Dizer que a libertação negra apresenta uma demanda insaciável e coloca
uma questão impossível não é hipérbole; é esse bloqueio à reparação que distingue a existência negra no mundo
moderno de todas as outras. O movimento contemporâneo por reparações, com toda a sua modéstia até o momento,
ameaça lançar a economia doméstica atual em recessão se tiver até mesmo metade de suas exigências atendidas. No
entanto, se assumisse plenamente as ramificações de sua causa — isto é, se se tornasse um movimento por justiça em
vez de por indenização — não poderia mais evitar o reconhecimento da devastação e ruína completas que requer de
todo o sistema global: sua economia política, sua sociedade civil, suas instituições supranacionais, sua cultura comum
emergente. Se o status quo se baseia no terror histórico da escravidão, então caminhar em direção às reparações, sob
essa luz, é ameaçar não apenas um desafio ou crise sem precedentes, mas uma catástrofe: um colapso sistêmico total. O
que mais poderia significar “reparar” o legado de cinco séculos de escravidão?
latina, asiática-americana e, mais recentemente, árabe e muçulmana, de que o Movimento dos
Direitos Civis e o Movimento Black Power foram fundamentais para seus esforços atuais (e seus
eventuais sucessos), tanto como campo prático de treinamento para muitos veteranos do ativismo
político quanto como fonte contínua de inspiração e instrução para as gerações mais jovens que
agora estão ascendendo às posições de liderança. Mais importante, são feitas tentativas consistentes
para vincular, ao menos retórica e analogicamente, a luta pelos direitos dos imigrantes (para usar
uma expressão admitidamente insuficiente) com a contínua luta negra por justiça racial. 37 Isso
geralmente é feito para promover um espírito mais eficaz e duradouro de colaboração entre
diferentes comunidades de cor; como um antídoto para as dinâmicas destrutivas do “conflito negro–
asiático” ou “negres versus browns”, e assim por diante; e como pré-condição para uma coalizão
viável, uma busca por um terreno comum.38

No entanto, ao se examinar mais de perto, detecta-se nos comentários públicos, tanto sobre
as histórias de opressão quanto as formas contemporâneas de discriminação racial enfrentadas por
pessoas não negras de cor, não apenas uma certa negligência (um ponto que já abordei), mas
também uma forte corrente de desdém aberto em relação à trajetória recente de negres nos Estados
Unidos — um subtexto de antinegritude que parece ser ao mesmo tempo gratuito (pois não é
logicamente necessário aos argumentos em questão, sendo possível apresentar o caso como tal, sem
analogia) e absolutamente indispensável (pois nunca deixa de estar presente de forma discernível).
Não encontramos, em outras palavras, uma justificativa coerente para o rancor que parece perpassar
os apelos estratégicos por coalizões multirraciais ou o uso conceitual de metáforas entre a posição
des negres na sociedade e cultura dos EUA e os ataques crescentes ao bem-estar das minorias não
negras. Em cada caso, afirma-se que, por exemplo, o ataque feroz à reforma imigratória (desde os
programas de educação bilíngue até os serviços de saúde e assistência social para indocumentados,
passando pela militarização da fronteira), ou o ceticismo espetacular das agências governamentais
de investigação e da mídia corporativa quanto às lealdades des asiático-americanes enquanto tais
(do internamento de japoneses ao escândalo das contribuições de campanha do Partido Democrata,
até o caso Wen Ho Lee39), ou a implementação de práticas policiais agressivas contra um perfil
37 Julie Quiroz-Martínez, “Missing Link”, Colorlines 4, n. 2 (2001).
38 Conflitos também surgem entre a população negra nativa e os imigrantes negres; no entanto, es imigrantes negres
não têm à sua disposição o capital racial des imigrantes de cor não negres. Eles se veem, em outras palavras,
constantemente reabsorvidos nos espaços da negritude local, por assim dizer, e submetides aos mesmos protocolos de
violência, especialmente nas gerações seguintes. A situação piora, e não melhora, como ocorre com a maioria des
imigrantes. Além disso, vários dos conflitos mais sensacionalistas entre “negres e imigrantes”, como o binarismo
costuma ser desenhado, envolvem imigrantes negres contra outros grupos imigrantes não negros. Es imigrantes negres,
portanto, não interrompem o paradigma, mas demonstram por que é correto, nesse nível, falar de uma discrepância
irresolvível entre negritude e status imigrante.
39 Nota da editora (Joy James): Wen Ho Lee, um cientista nuclear chinês, foi acusado em 1999 pela CIA e pelo FBI de
passar segredos nucleares para Pequim enquanto trabalhava no Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México.
As acusações contra Lee basearam-se em sentimento antichinês e medo irracional sobre segurança doméstica, em vez
de provas concretas; o governo retirou cinquenta e oito das cinquenta e nove acusações, condenando-o por uma única
violação de segurança. Após passar 275 dias em confinamento solitário, Lee foi libertado. Ver Lee e Zia, My Country
terrorista “árabe–muçulmano–do Oriente Médio”, e assim por diante, são ofensas mais ultrajantes
do que aquelas que têm ocorrido à negres em proporção muito maior por períodos praticamente
indefinidos — em parte porque tudo isso é, ostensivamente, não reconhecido como tal, não só pelos
brancos, como por negres.

O sofrimento negro, em outras palavras, é utilizado como ponto de referência conveniente,


como uma espécie de base mínima presumida, de forma tal que a especificidade da antinegritude —
isto é, sua inexorabilidade e sua fundamentalidade na formação racial nos Estados Unidos — fica
quase inteiramente obscurecida. Enquanto isso, es negres são culpabilizades por não validarem e
abraçarem as reivindicações políticas das pessoas não negras de cor. (Poderíamos ser perdoades por
nos perguntarmos como é que negres são aqui constituídos como tribunal de apelação ou como
audiência, uma pergunta preliminar a qualquer investigação sobre se, em que medida, ou mesmo se
deveriam ou poderiam reconhecer tais reivindicações.)

O que a abordagem multirracial falha em apreender — além da injúria e insulto inerentes aes
suspeites de sempre por só se preocuparem com um problema quando ele acontece imediatamente
com você e os seus — é a natureza altamente contingente das injustiças em questão. Este é, talvez,
o ponto mais controverso do presente argumento:

Quer se fale do ataque à imigrantes ou dos registros especiais promovidos pelo


Departamento de Segurança Interna, ou mesmo ao se remontar ao internamento de japoneses
americanos durante a Segunda Guerra Mundial, não é irrazoável concluir que esses eventos, ainda
que inegavelmente repreensíveis e trágicos, foram, no entanto, não essenciais — embora claramente
não insignificantes — para o funcionamento do Estado e da sociedade civil nos Estados Unidos
(isto é, o país poderia ter agido de outra forma sem risco de crise, catástrofe ou colapso). O
encarceramento em massa de cidadãos e não cidadãos de descendência japonesa, por exemplo, foi
dependente tanto da histeria da Segunda Guerra Mundial quanto dos objetivos de política externa da
administração Roosevelt como condição suficiente de possibilidade; a condição necessária era, para
dizê-lo de forma crua, a história do racismo anti-asiático nos Estados Unidos.40 O assédio, a
deportação e a demonização promovidos pelo Departamento de Segurança Interna estão
completamente imbricados na geopolítica da “Grande Estratégia” pós-Guerra Fria dos Estados
Unidos e na guerra incessante requerida para a apropriação de reservas remanescentes de petróleo,
mercados ilícitos de drogas e recursos naturais que estão se tornando absolutamente escassos. 41 O
movimento anti-imigração, da mesma forma, deve ser compreendido como componente-chave da
integração regional das Américas e da Bacia do Pacífico (para recitar os acrônimos: APEC, ALCA,

versus Me.
40 Robinson, By Order of the President.
41 Deffeyes, Hubbert’s Peak; Klare, Resource Wars; Scott, Drugs, Oil, and War.
FMI, NAFTA, OMC) e reflete não apenas concessões políticas às obsessões do supremacismo
branco mais radical, mas também — a tendência dominante — um aparato disciplinar voltado à
regulação (não ao fim ou reversão) da migração de contingentes laborais manejáveis, à segurança
das relações comerciais, entre outros fins.42

Vemos essa contingência em funcionamento novamente no fato de que o perfilamento racial,


para retornar ao nosso ponto central, é operativa para negres em qualquer lugar e a qualquer
momento, enquanto que para latines ou algumes asiático-americanes, ele está mais ou menos
restrito a bairros pobres ou de classe trabalhadora.43 A segregação residencial, também, é uma
questão vinculada à classe para latines e asiáticos-americanes; para negres, trata-se de um fenômeno
que atravessa classes sociais, a tal ponto que mesmo es asiático-americanes mais segregades —
incluindo muitos refugiades do Sudeste Asiático — estão mais integrades do que negres de classe
média mais integrades.44 A pobreza é principalmente transitória para imigrantes, mas para negres é
transgeracional e profundamente enraizada (“subclasse” significando um segmento da população
negra permanentemente expulso da economia política).45 Em nível nacional, latines são
encarcerades a uma taxa mais que duas vezes maior que a de pessoas brancas, mas negres são
encarcerades a uma taxa quase três vezes maior que a des latines. 46 Tudo isso para dizer que,
enquanto o sofrimento das pessoas não negras de cor parece ser condicionado por instâncias
históricas específicas (ainda que duradouras) e, mesmo empiricamente, funciona em uma escala e
escopo distintos, a opressão des negres parece ser invariável (o que não significa que seja
simplesmente imutável; ela se transforma constantemente). Esse tipo de análise comparativa, que
indiscutivelmente afetaria a formulação da estratégia política e o comportamento de nossa cultura
política, é amplamente desencorajada, no entanto, pelo mecanismo de silenciamento preferido hoje
em círculos intelectuais e políticos progressistas: Não disputem a Olimpíada da Opressão!47
Apegarem-se a tais detalhes, diz o dogma, é cair nas táticas divisionistas do “dividir para
conquistar” e, além disso, envolver-se em uma imoralidade vergonhosa e insensível. 48 Percebe-se
facilmente, nessa frase de efeito, a tradução de uma demanda ou questionamento por comparação
(nossas condições são semelhantes ou diferentes) para uma postura insidiosa de competição a priori
42 Estevadeordal et al., Integrating the Americas; Hakim e Litan, The Future of North American Integration; Ravenhill,
Asian Pacific Economic Cooperation.
43 Jeffrey Goldberg, “The Color of Suspicion”, New York Times Magazine, 20 de julho de 1999.
44 Massey, “The Residential Segregation of Blacks, Hispanics, and Asians, 1970–1990”.
45 Wilson, The Truly Disadvantaged.
46 Human Rights Watch, “Race and Incarceration in the United States: Human Rights Watch Press Backgrounder” (27
de fevereiro de 2002). Esse fato é mediado por longas intervenções imperiais dos EUA na América Latina com o
propósito de regular a produção, distribuição e consumo de drogas. Ver Marez, Drug Wars, para um tratamento
detalhado dessa história.
47See, for instance, Martínez, De Colores Means All of Us.
48 Claro, esse dogma é apoiado também por certos líderes negros. Tome, por exemplo, a declaração repreensiva feita
recentemente pelo veterano ativista pelos direitos civis, Reverend Richard Lowery, por ocasião da Immigrant Workers
Freedom Ride: “Talvez tenhamos vindo em navios diferentes, mas agora estamos todos no mesmo maldito barco”
(conforme citado em Chris McGann, “Busloads of Activists”, Seattle Post-Intelligencer, 8 de julho de 2003).
(nós venceremos para que vocês percam). Suspeito de uma relação profunda entre essa estratégia
retórica disseminada e a analogização agressiva mencionada anteriormente, todas as quais se
reduzem a afirmações sobre ser “como negres (black)” ou, pior ainda, “os novos pretes (niggers)”.49

A boa notícia, se assim se pode chamar, é que esse esforço para reprimir um exame contínuo
da posicionalidade negra — “a posição do impensado”50— apenas minará a coalizão multirracial
enquanto política de oposição. Toda análise que tente dar conta das vicissitudes do regime racial e
das maquinações do Estado racial sem centralizar a existência negra dentro de sua estrutura
(framework) — o que não significa simplesmente listá-la numa cadeia de equivalentes — está
fadada a perder o que é essencial sobre a situação, porque o que acontece com negres indica a
verdade (e não a totalidade) do sistema, seu sintoma social, e todas as outras posições podem
(apenas) ser compreendidas a partir desse ponto de vista.51

Mais importante, para os propósitos presentes, toda tentativa de defender os direitos e


liberdades das vítimas mais recentes do perfilamento racial inevitavelmente fracassará em produzir
ganhos substanciais na medida em que abandona ou marginaliza o destino des negres — os alvos
prototípicos dessa prática policial nefasta e da infraestrutura jurídica construída ao seu redor. Sem
negres a bordo, a única opção viável, a única defesa efetiva contra o fogo cruzado, consistirá em
forjar alianças ainda mais amplas com uma sociedade civil antinegra e capitular ainda mais diante
da magnificação do poder do Estado — uma aposta que traz seus próprios custos indeléveis, suas
próprias dores e prazeres.

49 Ver, por exemplo, Hishaam Aidi, “Jihadis in the Hood: Race, Urban Islam and the War on Terror”, neste volume.
50 Hartman, “The Position of the Unthought”.
51 Algo semelhante pode ser dito sobre o hip hop como uma cultura multirracial de resistência. A ubiquidade do termo
“nigga” como forma de tratamento entre não negres, incluindo muitas pessoas brancas, pode fornecer um potente
desfrute de um senso desafiador de marginalização — uma degradação medida por uma proximidade com negres, literal
ou figurativamente — mas isso só contribuiu para a perda de clareza, não um refinamento, e para o embotamento da
análise, não uma expansão. Sem dúvida, o hip hop aproxima pessoas, especialmente jovens — “um só amor” — mas o
mesmo fazem jogos de futebol e encontros dos Jovens Democratas. Se quisermos ser honestes, devemos admitir que,
como regra, o hip hop promove o obscurantismo político mesmo quando se autodenomina “consciente”. O radicalismo
político nesse campo é exceção.

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