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Surveiller Et Punir - C'est Bien Toujours Du Corps Qu'Il S'agit - Jobim

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1.

SURVEILLER ET PUNIR: "C'EST BIEN TOUJOURS DU CORPS QU'IL S'AGIT"1

https://doi.org/10.36592/9786554602082-01

Augusto Jobim do Amaral

Resta pouca dúvida que Vigiar e Punir seja a obra mais famosa de Paul-
Michel. Poderíamos optar por tentar "atualizar" sua leitura através de uma simples
questão já colocada por Foucault: "o que chamamos punir hoje?"2. De certa forma,
este foi o caminho pretendido com o meu livro Política da Criminologia, com edição
em inglês programada para o início de 2025. 3 Breve ensaio correlato pode ser
encontrado na Soft Power 10/2023. 4 Contudo, talvez seja mais interessante
ressaltar, cinquenta anos depois, neste momento, a posição de Vigiar e Punir no
percurso de reflexão foucaultiana, ou seja, sublinhar a importância do livro publicado
em 1975 para o conjunto da sua obra, tendo em vista seus próprios desdobramentos.

*
De forma simplificada, pode-se dizer que o livro pretende apresentar o eclipse
de certo estilo penal centrado no corpo-espetáculo. O fenômeno do
desaparecimento dos suplícios, superficialmente visto como correlato à ascensão de
formas mais humanas de punição. Do contrário, Foucault sustentará que, além de
uma mudança de objetivo em termos qualitativos, passa-se não a "punir menos, mas
a punir melhor, (...) punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente no corpo social o poder de punir"5.

1
Tradução da Conferência dada em italiano no Convegno internazionale in vista del cinquantennale
di 'Sorvegliare e punire'. Evento organizzato nel quadro delle attività del Seminario 'Dentro il carcere'
Progetto di ricerca 'RapPresent - Report on the Present. The State of Law and Democracy in the
Contemporary World through Audiovisual Representations', finanziato dall'Università degli Studi della
Campania Luigi Vanvitelli.
2
M. Foucault. "Che cosa vuol dire punire? Intervista a Michel Foucault. Traduzione di Francesca Arra.
Rivista Volontà, Aprile 1990 [1983].
3
A. J. do Amaral. Politics of Criminology and other essays. Valencia: Tirant lo Blanch, 2025.
4
A. J do Amaral. "Politics of Criminology: punitive power and lines of insurrection", Soft Power -
Revista euro-americana de teoría e historia de la política y del derecho, vol. 10(1), enero-julio 2023, p.
127-147.
5
"(...) non pas moins punir, mais punir mieux; (...) mais pour punir avec plus d'universalité et de
nécessité; insérer le pouvoir de punir plus profondément dans le corps social." M. Foucault. "Surveiller
16 | Foucault, Subjetivação e Sexualidade

Portanto, a pergunta central que o livro responde é: como nos movemos de


um período de punições físicas ostensivas no antigo regime para, no século XIX,
formas disciplinares de exercício de poder dirigidas a produzir corpos dóceis? Assim,
a melancolia da festa da punição que tornava o supliciado um objeto de piedade e de
admiração vai sendo velada por uma justiça que não assume mais publicamente a
violência ligada ao seu exercício.
Lembremos, só para ficar num exemplo, do livro de Bernard Mandeville,
publicado em 1725, sobre casos das execuções em Tyburn: An Enquiry into the
Causes of the Frequent Executions at Tyburn. 6 O contexto chega até a ser
mencionado por Foucault7. iis uma pista percorrida por ele em Vigiar e Punir, de
como o criminoso se tornava triunfante e passava a desfrutar da compaixão e da
admiração da multidão. Mas, além disso, não se tratava apenas do criminoso não se
arrepender nem da indiferença de alguns, a cena de Tyburn já no XVIII passava a
refletir o fracasso de uma sociedade mercantilista, que valorizava "o corpo dos
homens" como potencial fonte de riqueza, ou seja, de desprezar uma parte
significativa dos seus "membros mais úteis". A preocupação de Mandelville com a
utilidade das classes baixas é evidente ainda ao longo de toda a sua mais famosa
obra: A fábula das abelhas.8
Tal pudor judiciário não toca mais no corpo, mas, no enterramento burocrático
da pena, pulula uma "ortopedia moral"9. A sobriedade punitiva escamoteia o corpo
supliciado, mas longe de suprimi-lo, agora deve ferir, como refere Gabriel Bonnot de
Mably, "mais a alma"10. Dirá Foucault: "um processo global levou os juízes a julgar

et punir: naissance de la prison", [doravante SP] in Œuvres II. Éditon Publiée sous la direction de
Frédéric Gros, avec, pour ce volume, la collaboration de Philippe Chevallier, Daniel Defert, Bernard E.
Harcourt, Martin Rueff, Philippe Sabot et Michel Senellart. Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard,
2015, p. 261-613 [cit., p. 343].
6
B. Mandeville, M. D. An Enquiry into the Causes of the Frequent Executions at Tyburn: and A Proposal
for some Regulations concerning Fellows in Prison, and the good Effects to be Expected from them.
To which is Added, A Discourse on Transportation, and a Method to render that Punishment more
Effectual. London, Printed: And Sold by J. Roberts in Warnick-Lane. MDCCXXV.
7
SP, p. 273.
8
B. Mandeville. A fábula das abelhas, ou Vícios Privados, benefícios públicos. Trad. Bruno Costa
Simões. São Paulo: Unesp, 2018.
9
"l'orthopédie morale". M. Foucault. "Surveiller et punir", p. 270.
10
«Que le châtiment, si je puis ainsi parler, frappe l'âme plutôt que les corps», cit. Michel Foucault.
"Surveiller et punir", p. 277.
Augusto Jobim do Amaral | 17

coisa bem diversa do que crimes"11. Portanto, produz-se um poder justificável não
mais simplesmente sobre infrações, mas sobre indivíduos, não mais sobre o que
fizeram, mas sobre o que "eles são, serão ou possam ser" 12 . Todo um tipo de
julgamentos diagnósticos/prognósticos realizados por uma "série de instâncias
anexas"13 passam a justificar a justiça criminal por referência a outra coisa que não
ela mesma. Um novo regime de verdade que não pretende integrar elementos
extrajurídicos, mas serve para fazer funcionar o poder de punir para além de uma
mera punição legal.
Dentro desta genealogia do atual complexo científico-judiciário, mesmo que
outras inúmeras questões possam ser levantadas, cabe frisar nesta história da alma
moderna posta em julgamento algo que, de modo geral, acaba perdendo intensidade
de análise em Vigiar e Punir. Se, por um lado, há o esforço mais explícito de Foucault
em 1975 em apontar o quanto o idealismo das reformas do XVIII nada teve que ver
com a prisão e demonstrar como as práticas penais acabam devendo muito mais à
disciplina que se exerce desde uma "anatomopolítica dos corpos"14, por outro, uma
genealogia da moral aqui perde vigor em comparação às análises feitas, por exemplo,
no Cursos de 1972-1973, A sociedade punitiva 15 dado no Collège de France e no
conjunto de conferências A verdade e as formas jurídicas dado na PUC-RJ16. Será
através do discurso moralizador que se introduz o "penitenciário" no "penal". Houve,
em suma, uma moralização e cristianização da criminalidade e da punição. Uma
condição de possibilidade da aceitação da prisão a despeito dos reformadores. A
transformação dos ilegalismos em ilegalidades dependeu da sua reconversão em
desvios morais. Na aula de 28 de fevereiro de 1973, há um belo resumo que merece
lembrança: "Os estratos populares transferiam para o próprio corpo da riqueza as

11
"(...) un processus global a conduit les juges à juger autre chose que les crimes". M. Foucault.
"Surveiller et punir", p. 282.
12
"mais sur ce qu'ils sont, seront, peuvent être". M. Foucault. "Surveiller et punir", p. 279.
13
"une série d'instances annexes". M. Foucault. "Surveiller et punir", p. 281.
14
"'anatomo-politique du corps humain'". M. Foucault. "Histoire de la Sexualitè I - La volonté de
savoir", in Œuvres II, p. 613-736 [cit., p. 719].
15
M. Foucault. La société punitive: cours au Collège de France (1972-1973). Édition établie sous la
direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Bernard E. Harcourt. Paris:
EHESS/Gallimard/Seuil, 2013.
16
M. Foucault. "A verdade e as formas jurídicas («La vérité et les formes juridiques»)", in Dits et Écrits
1954-1988, II (1970-1975) [doravante, DE II]. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et
François Ewald avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris: Gallimard, 1994, p. 538-646 (n. 139).
18 | Foucault, Subjetivação e Sexualidade

técnicas do velho ilegalismo e podiam responder à burguesia: acaso não


transgredimos juntos as leis, não pilhamos juntos as riquezas? A isso a burguesia
respondia que durante o Antigo Regime atacavam-se regras, leis, abusos
injustificáveis, que se tratava de poder, portanto de política, ao passo que, agora, o
ataque era a coisas, propriedades e, por conseguinte, ao direito comum, ao direito
natural. Outrora, atacavam-se abusos de poder; agora, transgredindo o direito,
manifestava-se um desvio moral"17. No manuscrito, Foucault termina, como réplica
da burguesia, assim: "Agora vão fazer penitência"18. infim, como escreve Bernard
Harcourt: "o papel das correntes moralizadoras do século XVIII nas relações de poder
é mais destacado em A sociedade punitiva do que em Vigiar e Punir, (...) aos quakers
e dissidentes ingleses, por exemplo, que formam a pedra angular da genealogia da
forma-prisão neste curso de 1973, Vigiar e Punir atribuirá um papel mínimo, ainda
que eles estejam presentes" 19 . A tônica recairá menos na moralização da
criminalidade do que na produção do delinquente.
De todo modo, percebe-se claramente a regra geral de ouro sobre a qual o
estudo dos mecanismos punitivos convoca em Vigiar e Punir, e isto importa invocar:
tomar a punição como função social complexa implica centrar o estudo dos sistemas
punitivos a partir dos seus efeitos positivos/úteis que sustentam. Antes do clássico
ponto 2 da parte IV da "Vontade de Saber" sobre "método"20, já escrevia Foucault:
"Temos de deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele
'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura', 'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade, o

17
"Les couches populaires transfèrent au corps même de la richesse les techniques du vieil illégalisme
et elles peuvent répondre à la bourgeoisie: est-ce que nous n'avons pas ensemble violé la loi, pillé les
richesses? À quoi, la borgeoisie répond que sous l'Ancien Régime, on s'en prenait à des règles, à des
lois, à des abus injustifiables et qu'il s'agissait alors de pouvoir, donc de politique; tandis que,
maintenant, on s'en prend à des choses, à des propriétés, par conséquent, au droit commun, au droit
naturel. Autrefois, on s'attaquait à des abus de pouvoir, maintenant, en violant le droit, on manifeste
un défaut de morale". M. Foucault. La société punitive, p. 160.
18
«Allez, et faites pénitance.». M. Foucault. La société punitive, p. 160 (nota a).
19
"(...) le rôle des courants moralisateurs du XVIIIe siècle dans les rapports de pouvoir est davantage
souligné dans 'La Société punitive' que dans 'Surveiller et Punir' (...). Aux Quakers et dissidents anglais,
par exemple, qui forment la clé de voûte de la généalogie de la forme-prision dans ce cours de 1973,
'Surveiller et Punir' accordera une place minime, bien qu'ils y soient présents.". B. E. Harcourt.
"Situation du cours", in M. Foucault. La société punitive, p. 308.
20
M. Foucault. "Histoire de la sexualité I, La Volonté de savoir", in Œuvres II, p. 682-691.
Augusto Jobim do Amaral | 19

poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade"21.
O afastamento radical, segundo Foucault, de uma "sociologia de tipo durkheimiano"22
é já aparente na primeira aula do Curso de 73 em 21 de fevereiro em que destaca não
ser mais possível entender o funcionamento de um sistema penal se não, antes,
interrogarmo-nos sobre o funcionamentos positivo dos ilegalismos 23. Virada esta
iniciada com a visita de Foucault à prisão de Attica em 1972: "A prisão é uma
organização complexa demais para ser reduzida a funções puramente negativas de
exclusão."24
Falar de poder, portanto, é encará-lo como efeito de conjunto de suas
posições estratégicas e não como sistema geral de dominação, já escrevia então
Foucault em Vigiar em Punir.25 Trata-se de uma rede de relações em tensa batalha,
focos de instabilidade, de relações de força sempre afeitas à inversão. Poder, assim,
se exerce em inúmeros pontos de luta nunca unívocos, jamais obedecendo à lei do
tudo ou nada. Neste microfísica, essas relações, antes, aprofundam-se dentro da
sociedade que nas relações istado/cidadão ou na fronteira entre classes, nem se
contentam em reproduzir a forma da lei26. Não há aqui uma teoria geral do poder, um
“fora” do poder, uma posição externa que faria localizar um detentor ou um local
privilegiado para sua concentração.
Isso que permitirá Foucault propor em seu "método" resumidamente: a) o
poder não é algo que se adquira, se arrebata ou se compartilha, se guarda ou deixa
escapar, ele se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e
móveis; b) as relações de poder são imanentes e não exteriores a outros tipos de
relações (sociais, sexuais, econômicas etc.), são os efeitos imediatos destes
desequilíbrios e as próprias condições internas destas diferenciações; c) o poder
vem de baixo, quer dizer, as relações de forças múltiplas que se formam e atuam

21
"Il faut cesser de toujours décrire les effets de pouvoir en termes négatifs: il «exclut», il «réprime», il
«refoule», il «censure», il «abstrait», il «masque», il «cache». En fait le pouvoir produit; il produit du réel,
il produit des domaines d'objets et des rituels de véritè." M. Foucault, "Surveiller et punir", p. 474.
22
M. Foucault. "Michel Foucault on Attica («À propos de la prison d'Attica»)", in DE II, p. 527 (n. 137).
23
M. Foucault. La société punitive, p. 148.
24
"(...) la prison est une organisation trop complexe pour qu'on la réduise à des fonctions purement
négatives d'exclusion (...)". M. Foucault. "Michel Foucault on Attica («À propos de la prison d'Attica»)",
p. 528.
25
"(...) l'effet d'ensemble de ses positions stratégiques". M. Foucault, "Surveiller et punir", p. 288.
26
M. Foucault, "Surveiller et punir", p. 288.
20 | Foucault, Subjetivação e Sexualidade

servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o corpo social, há


linhas de força em geral que geram por intensidade os efeitos hegemônicos de
grandes dominações; d) as relações de poder são intencionais, não propriamente
subjetivas. A racionalidade de tal poder é a das táticas encadeadas entre si, que se
apoiam, condicionam-se e se propagam, esboçando finalmente dispositivos de
conjunto; e) onde há poder, nunca em relação de exterioridade a ele, por isso mesmo,
há resistência. As relações de poder não poderiam existir senão em função de uma
multiplicidade de pontos de resistência, o que faz com que não haja um grande lugar
da grande Recusa. Tal é o outro termo da relação, contudo, o que não as deixa em
posição meramente passiva.27
iis o ponto de partida que já podemos antever em Vigiar e Punir e que se
tornará célebre no famoso texto de 1982 "O Sujeito e o Poder": “usar as formas de
resistência contras as diferentes formas de poder como um ponto de partida"28. Aqui,
fundamental a metáfora que consiste em utilizar as resistências como "catalisadores
químicos, de modo a esclarecer as relações de poder, localizar sua posição, descobrir
seu ponto de aplicação e os métodos utilizados” 29 . Compreender as relações de
poder, então, para Foucault, é “investigar as formas de resistência e as tentativas de
dissociar estas relações”30.
Foucault, por suas palavras, nunca foi um teórico do poder, seu trabalho não
teve por objetivo analisar os fundamentos do fenômeno do poder, mas sim "criar uma
história dos diferentes modos pelos quais, em nosso cultura, os seres humanos
tornaram-se sujeitos"31. O sujeito, portanto, constituiu seu tema central de pesquisa
e, para investigar seus modos de subjetivação, seja o corpo-máquina da disciplinas
seja o corpo-espécie da biopolítica das populações tornam-se fundamentais.32

27
M. Foucault. "Histoire de la sexualité I, La Volonté de savoir", p. 684-686.
28
"It consists of taking the forms of resistance agaisnt different forms of power as a starting point".
M. Foucault. "The Subject and Power", in Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics.
Second Editon With an Afterword by and an Interview with Michel Foucault. H. L. Dreyfus and P.
Rabinow. Chicago: The University Chicago Press, 1983, p. 211.
29
"It consists of using this resistance as a chemical catalyst so as to bring to light power relations,
locate their position, find out their point of application and the methods used". M. Foucault. "The
Subject and Power", p. 211.
30
"We should investigate the forms of resistance and attempts made to dissociate these relations."
M. Foucault. "The Subject and Power", p. 211.
31
"My objective, instead, has been to create a history of the different modes by which, in our culture,
human beings are made subjects." M. Foucault. "The Subject and Power", p. 208.
32
M. Foucault. "Histoire de la Sexualitè I - La volonté de savoir", p. 719.
Augusto Jobim do Amaral | 21

Chegamos talvez ao ponto essencial de nossa exposição. No estudo da


metamorfose dos métodos punitivos, sobretudo em Vigiar e Punir, está em jogo uma
"transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas relações de
poder" 33 . Se o modo de funcionamento da tecnologia de poder disciplinar passa
antes por perceber o "poder como tecnologia"34, as mutações nos sistemas punitivos
dependem radicalmente da análise de uma certa "economia política do corpo". Como
escreve Foucault, "é sempre do corpo que se trata"35. Se poder é produção e se dá
numa relação de forças, não há como esquecer o que vem antes nesta tecnologia: a
resistência é o ponto de partida. É o corpo que resiste. Nele o exercício de poder
investe, passa por ele, através dele. É o corpo que resiste em primeiro lugar e provoca
a modificação da relação de poder. Aquele poder soberano que investia na morte
para produzir súditos (fábrica do sujeito de direito) é impelido a mudar, a partir de um
corpo supliciado que deve ser agora escamoteado, pois a técnica do suplício deixa
de responder aos efeitos esperados. É com base na história dos corpos que o
investimento político sobre os corpos passou à utilidade econômica, de força de
produção à força de trabalho. Ligado ao corpo produtivo é que a disciplina adestrará
a sua potência de modo difuso, sutil, calculado e organizado. O corpo só pode ser útil
se produtivo e submisso. i as práticas penais são apenas mais um capítulo desta
anatomia política. Será apenas a partir destes procedimentos de punição que se
produz, para Foucault, a "alma" moderna, como efeito e instrumento daquilo que, de
fato, aprisiona o corpo.
De alguma forma, Foucault assume para si o problema marxista da
acumulação originária, e o analisa a partir da colocação dos corpos indisciplinados,
móveis e pobres sob a disciplina do trabalho. Daí a emergência do dispositivo
prisional capaz de ser reinvestido em campos radicalmente diferentes como os da
saúde, da loucura ou da educação. A prisão, desde este ponto de vista, alcança seu
objetivo estratégico de colocar sob vigilância e fixar a “multidão”, mas é

33
"(...) transformation dans la manière dont le corps lui-même est investi par les rapports de pouvoir."
M. Foucault, "Surveiller et punir", p. 284.
34
M. Foucault. "As Malhas do Poder", in Segurança, Penalidade e Prisão. Ditos e Escritos VIII.
Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 170.
35
M. Foucault, "Surveiller et punir", p. 286.
22 | Foucault, Subjetivação e Sexualidade

precisamente seu próprio êxito que, além disso, dará lugar a uma população
delinquente, produzindo funcionalmente a maior aceitabilidade do controle.
Transformar o tempo de vida em tempo de trabalho, portanto, significa dispor do
corpo. Nesta direção, como assevera Stéphane Legrand 36 , as tecnologias
disciplinares, entre elas a penalidade, antes apenas de garantir a valorização da
relação de produção capitalista, desenvolve-se organizando os gestos de produção
as quais o corpo do trabalhador será sujeitado.
O que Foucault põe como objetivo de pesquisa é o complexo processo de
fabricação da força-trabalho como disposição subjetiva objetivamente uniformizada
pelas condições de produção. im síntese, como escreve Sandro Chignola, é o
"adestramento da plasticidade da vida aproveitada pelos ritmos e gestos da
produção"37. A estas alturas, sem dúvida, estamos diante de um Marx além de Marx,
como escreveu Toni Negri38. Um Marx conectado ao horizonte estratégico de lutas
multilaterais e que excede programaticamente o problema partidário-eleitoral da
conquista do poder, assumindo-se o potencial de inovação e autonomia expressas
nestas resistências imediatas e transversais.
Apenas tendo em vista a pergunta sobre como se exerce o poder e reforçando
as resistências como ponto de partida, algo já insinuado em Vigiar e Punir, é que será
possível Foucault atingir a problemática do governo, central em seus últimos
trabalhos. Se governar é a arte de "estruturar o campo possível das ações dos
outros", ou seja, produzir um "conjunto de ações sobre outras ações"39, além disso,
a especificidade da relação de poder ressaltada no texto de 1982 é incitação
recíproca, noutros termos, implica insubmissão, um campo de liberdade de
invenções possíveis.40 Trata-se, para concluir, portanto, de combate agonístico de

36
S. Legrand. “Le marxisme oublié di Foucault”. In: Actuel Marx, 2004, 36, pp. 27-43.
37
"la plasticità della vita imbrigliata e addestrata ai ritmi e ai gesti della produzione". S. Chignola.
Foucault oltre Foucault. Una politica della filosofia - Seminari. Roma: DeriveApprodi, 2022, p. 103.
38
A. Negri. Marx oltre Marx. Quaderno di Lavoro sui Grundrisse. Milano: Feltrinelli, 1979.
39
"The exercise of power can produce as much acceptance as may be wished for (...). In itself the
exercise of power is not violence; nor is it a consent which, implicitly, is renewable. It is a total structure
of actions brought to bear upon possible actions; it incites, it induces, it seduces, it makes easier or
more difficult; in the extreme it constrains or forbids absolutely; it is nevertheless always a way of
acting upon an acting subject or acting by virtue of their acting or being capable of action. A set of
actions upon other actions." M. Foucault. "The Subject and Power", p. 220.
40
"Then there is no relationship of power without the means of escape or possible fight". M. Foucault.
"The Subject and Power", p. 225.
Augusto Jobim do Amaral | 23

uma “arte de inservidão voluntária, de uma indocibilidade reflexiva”41. im Vigiar e


Punir aparece obviamente apenas é uma parte da história, mas sem a qual as outras
cenas de uma ontologia crítica do presente se tornaria praticamente impossível.

41
"la critique, cela sera l'art de l'inservitude volontaire, celui de l'indocilité réfléchie". M. Foucault.
“Qu'est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung], in Bulletin de la Société française de Philosophie,
84e Année, N° 2, Avril-Juin 1990, p. 35-63 [cit. p. 39].

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