Aula Idade Média
Aula Idade Média
Legado da Antiguidade
Um ensinamento característico de O banquete é que o belo sempre implica o bom; ele é uma
manifestação do bom. Um ser humano que tenha visto a Beleza em si é capaz de produzir
“virtude verdadeira” [arete]; ele, ou ela, é bom. Para o pensamento grego, em contraste com
o moderno, o belo não possui uma significação primordialmente estética – Platão adota uma
atitude bastante crítica em relação à arte –, mas antes ética. Isto também é expresso por meio
do conceito tipicamente grego de kalokagathia, no qual são reunidos, como abrangente noção
de perfeição espiritual, o belo [kalos] e o bom [agathos]
Platão: O Belo era a manifestação do Bem, a coisa mais digna de ser amada, só passível de
admiração aos “neo-iniciados”, isto é, aqueles que por muito tempo haviam contemplado as
realidades de outrora (Fedro, 250e-251a).
Aristóteles deu um passo adiante: definiu o Belo como algo ordenado – o conceito de Ordem
era caro aos antigos, especialmente a ideia de ordem serial (o antes e o depois)
O belo – ser vivente ou o que quer que se componha de partes – não só deve ter essas partes
ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na
grandeza e na ordem e, portanto, um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo
(pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria
belo o grandíssimo (porque faltaria a visão de conjunto, escapando à vista dos espectadores, a
unidade e a totalidade; imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios...). Pelo que, tal
como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível
como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória
(Poética, VII, 44, 1450b-1451a)
1. Antiguidade tardia
Assim como no corpo se verifica o que chamamos ‘beleza’ [quando a] uma certa disposição
adequada dos membros se junta uma cor agradável [da pele], assim também se dá o nome de
‘beleza da alma’ [ao equilíbrio] entre, por um lado a constância e a coerência e, por outro,
uma certa firmeza e estabilidade nas opiniões e nos juízos, que, ou decorrem da virtude, ou
contém em si a essência mesma da virtude
Em que pese o fato de existir uma beleza física, corporal, corpórea, a verdadeira beleza, para
Cícero, se encontra no espírito. É ele a fonte de inspiração de todas as belezas que os artistas
representam.
Penso que não existem parte alguma algo de tão belo cujo original de que foi copiado
não seja ainda mais belo, como é o caso de um rosto em relação a seu retrato; mas não
podemos apreender esse novo objeto nem pela visão, nem pela audição, ou qualquer
dos outros sentidos. Pelo contrário, é apenas em espírito e em pensamento que o
conhecemos (...)
Essa ênfase estoica na filosofia moral não era novidade no Ocidente. Fazia parte da tradição
socrático-platônica considerar os temas filosóficos sob o prisma metafísico do Bem, da
Verdade e do Belo.23 Essa tendência foi acentuada pelo Neoplatonismo (sécs. III-VI). Plotino
(c. 205-270), filósofo grego, talvez o mais proeminente pensador entre os neoplatônicos,
dedicou um capítulo de suas Enéadas (Ἐννεάδες) ao Belo.
Talhon -Hugon: beleza sensível só existe por participação na Ideia inteligível do Belo; o belo em
si mesmo fornece a beleza a todas as coisas permanecendo ele próprio; as diferentes belezas
assemelham -se pela participação na ideia de belo; uma caminhada ascendente permite a subida
dos degraus a partir da beleza dos corpos em direção a outras formas cada vez mais
espiritualizadas do belo; nesta ascensão progressiva, o amor desempenha um papel decisivo; o
belo está ligado ao bem no inteligível. Mas, aqui, estes temas são inflectidos ou juntos a outros,
e destas modificações nascerá a concepção neoplatónica do belo.
Entre estas novidades introduzidas por Plotino, notar-se -á uma reflexão sobre a beleza dos
corpos e uma interessante discussão crítica da ideia defendida por Cícero nas Tusculanas (IV,
31), ideia segundo a qual a beleza visível reside na simetria das partes, umas em relação às
outras e em relação ao conjunto. Mas é sobretudo no terreno de uma metafísica do belo que
Plotino borda temas novos numa talagarça platónica.
Assim, a beleza é pensada através das categorias de matéria e de forma. A ideia é aquilo que
dá forma à matéria e que, por isso, domina a obscuridade desta. Ao ordenar as partes de que as
coisas múltiplas são feitas, ela harmoniza -as e faz delas um todo:
Ele dirige-se à visão, embora haja, de fato, uma beleza para a audição (pois a melodia e o ritmo
são belos). Beleza é a simetria das partes e suas cores. Mas as mentes que se elevam para além
dos sentidos encontram uma beleza superior, a beleza da conduta de uma vida correta – em
atos, em caráteres, em virtudes. E tudo o que é relacionado à alma é belo.
Ademais, a justiça e a temperança são mais belas que a aurora e o crepúsculo, mas só podem
ser apreciadas por aqueles que veem com os olhos da alma. Esses conseguem experimentar um
deleite, uma alegria, um assombro: estão a contemplar o verdadeiro reino da Beleza. Lá
encontra-se a alma honesta, a que é justa, nobre, digna, calma, pura de costumes (isto é,
recatada, modesta), serena, impassível. Essa alma, purificada, torna-se uma forma e uma razão.
Essa beleza da alma é a existência real, a verdadeira realidade. O resto, corpóreo, não é real,
mas um mundo de sombras, traços, imagens irreais.24
O mundo material das belezas corporais parece relegado mais decisivamente a ser imagem,
traço, sombra, espectro da verdadeira beleza. Por isso, o homem deve habituar sua alma à
contemplação das belas ocupações, das belas obras, e especialmente das almas daqueles que
realizam essas belas obras. A beleza atrelada ao bem (ordem moral) é também um imperativo.
Por isso, o símbolo maior da feiúra é a alma dissoluta e injusta, cheia de concupiscências e
desequilíbrios – alma covarde, mesquinha, invejosa, infectada pelo deleite dos prazeres impuros
das paixões corporais (Enéadas, I, 5).
Talhon- Hugon: Para atingir esta essência do belo, o homem deve realizar um trabalho sobre si
mesmo que, ao cabo de uma purificação, lhe permita tornar -se visão e luz. Plotino insiste na
necessidade de se desviar do sensível: é preciso abandonar a visão dos olhos sob pena de
conhecer o mesmo destino que Narciso, a não ser que «não seja o seu corpo, mas a sua alma
que mergulhe nas profundezas escuras e funestas para a inteligência [...] e viva com sombras,
[como] um cego a viver no Hades». É preciso fechar os olhos da carne para abrir os «olhos
interiores». Mas, para revelar estes olhos interiores, é necessário purificar -se, separar -se de
tudo o que não é essencial: o corpo, a consciência sensível, as paixões e as especificidades
individuais. A alma deve desviar -se da vida do corpo, portanto da matéria que é indefinida,
informe, obscura e associada ao feio e ao mal: «Faz como o escultor de uma estátua que deve
tornar -se bela; ele retira uma parte, raspa, pule, limpa até que liberta belas linhas no mármore;
como ele, retira o supérfluo, endireita o que é oblíquo, limpa o que está sujo para torná-lo
brilhante, e não cesses de esculpir a tua própria estátua.» No fim deste despojamento e deste
abandono de si mesma, a alma tornar -se -á luz e visão. É a condição para que tenha acesso ao
belo absoluto eterno e imutável, porque é preciso tornar -se semelhante ao objeto visto para o
ver: «Nunca os olhos verão o Sol, sem se terem tornado semelhantes ao Sol, nem uma alma
veria o belo sem ser bela.
Para abordarmos o belo na arte da Idade Média é preciso esclarecermos algumas questões para
evitarmos equívocos. Primeiramente, o termo arte que aparece corriqueiramente nos textos
medievais não corresponde a arte enquanto objeto artístico comprometido com o belo, como
vimos anteriormente. Isso ocorre porque naquele momento o conceito de arte era próximo do
conceito grego de technè, ou conjunto de regras e normas para a boa execução de uma ação.
Portanto, observamos a arte aplicada a várias áreas, principalmente quando o assunto é a
educação medieval. Isso porque
A Idade Média foi dominada por um sistema de educação fundado nas sete artes
liberais. A lógica era uma arte na medida em que ensinava as regras e maneiras
de operar na ordem do raciocínio. O acento, porém, da denominação recaía
sobre o termo ‘liberais’, que designava como pertencentes ao espírito, em
oposição às artes ‘servis’, associadas à noção de servidão precisamente por
causa do corpo (GILSON, 2010, p. 61).
Assim, para evitar confusões muitos autores usam o termo imagem no lugar de arte. Essa
substituição pode ser atribuída também pelo fato de que a arte medieval foi concebida
conforme os preceitos religiosos do cristianismo, que mesmo diante de embates iconoclastas,
fez com que prevalecesse a arte figurativa, ou representativa. Assim, arte medieval reduz-se,
quase, a imagens figurativas. Todavia, as imagens só foram aceitas pela igreja depois de serem
estabelecida suas características e finalidades, as quais podem ser observada nos Comentários
às Sentenças de Pedro Lombardo (III,9,2,3) de Tomás de Aquino.
Três foram os motivos para a introdução das imagens na Igreja. O primeiro, para
instruir os incultos, que as imagens ensinam como se fossem livros. O segundo,
para lembrar o mistério da Encarnação e os exemplos dos santos representado-
os todo dia aos nossos olhos. O terceiro, para alimentar os sentidos de devoção,
pois os objetos da visão a excitam melhor que os da audição
Essa passagem nos remete a questão central que os estudiosos da arte medieval não se sentem
a vontade em usar o termo arte, ou seja, a produção imagética naquele período estava a serviço
de outras questões que retirava do belo a única finalidade do objeto. Como foi explícito na
passagem anterior, a aceitação da arte só foi possível ao colocá-la a serviço da instrução, da
lembrança e da emoção, o que a distância do conceito de objetos que “[...] não têm nenhuma
outra função imediata e primeira senão a de serem belos. Este é o seu fim próprio, sua ‘razão
de ser’ e, consequentemente, sua natureza” (GILSON, 2010, p. 30).
Dessa forma, o belo nem foi mencionado na passagem de Tomás de Aquino Iniciamos essa
reflexão estabelecendo como ponto de partida a característica solicitada à arte: “Igreja exigia
uma imagística no interesse da instrução e da piedade dos fieis. A imagística é uma arte cujo
fim, essencialmente representativo e mimético, requer do artista uma inteligência, um saber,
uma técnica e talentos de imaginação e de invenção infinitamente variados” (GILSON, 2010,
p.153). Não vamos considerar nesse momento as habilidades do artista, mas somente as
características representativa e mimética do objeto
Nessa perspectiva, a imagem deveria imitar e reproduzir cenas religiosas com o propósito de
evocar a emoção dos fiéis. Mas pensemos nesse processo. A arte mimética, ou poética, não tem
compromisso com a verdade, apenas com o verossímil. Portanto, as representações não
precisavam ser fieis aos acontecimentos, mas precisavam colocar o apreciador em contato com
situações próximas à realidade para que assim, suas emoções fossem despertadas. Assim, a
evocação da piedade não precisava ser necessariamente em função da cena vista, mas do que
ela representa. Dessa forma, o sentimento não esta propriamente na arte, mas na sensação que
o objeto pode despertar. Esse pensamento está de acordo com os preceitos que possibilitaram
a aceitação das imagens nas igrejas. A idolatria ocorre quando há adoração do objeto em si,
portanto, o que deve ser lembrado e evocado ultrapassa a representação. Tomás de Aquino
admite a existência de duas possibilidades de apreciação da imagem, como podemos observar
Face ao exposto, podemos inferir que o termo arte é usado quando o objeto tem como fim a
admiração do belo, o qual é considerado por meios das qualidades de integridades, forma,
harmonia e claritas. Por meio dessas qualidades a obra desperta no apreciador um prazer que
pode ser denominado de experiência estética ou fruição do belo. Todavia, mesmo diante do
fato das produções imagéticas durante a Idade Média serem direcionadas pelos preceitos do
cristianismo e assim não se constituírem como arte de acordo sua compreensão de objeto
especifico ao belo, pudemos constatar que sua ação sobre o apreciador pode ser identificado
como uma experiência estética. Dessa forma, a experiência estética que a ‘arte medieval’
proporcionava pode ser compreendida como eficiente ao objetivo de ensinar, lembrar e
emocionar desejado naquele momento para a formação do homem medieval
Belo
A Idade Média cristã também pensa o belo como uma propriedade do Ser. Esta época não
conhece nada de Platão que não seja o Timeu, mas é precisamente lá que se encontra a visão
de um mundo ordenado por uma arte divina e dotado de uma admirável beleza. Esta referência
platónica somada ao texto bíblico, com as especulações pitagóricas reformuladas na concepção
matemático -musical do Universo por Boécio e ao neoplatonismo essencialmente conhecido
através de Pseudo-Dionísio, convida a pensar a beleza como realidade inteligível, esplendor
metafísico, harmonia moral. O belo, atributo de Deus, é uma perfeição suplementar do cosmos.
Por isso, a beleza conserva a sua consistência metafísica e reafirma -se a convertibilidade dos
transcendentais: «O belo e o bom são idênticos e só diferem na maneira como são considerados
[...]; diz -se do bom que é o que especialmente agrada ao apetite, enquanto se diz do belo que
é o que é agradável perceber», escreve São Tomás
Agostinho, Bispo de Hipona, foi o maior difusor do pensamento patrístico, teve contato
com o pitagorismo, e com grande parte da filosofia helênica.Por viver no final do Império
Romano, ele assumiu os princípios estéticos antigos. Sua filosofia é, de certo modo, o
coroamento da estética clássica. Seus conceitos sobre o tema estão espalhados em várias obras
suas. A origem da beleza está na bondade do Criador, e isso pode ser atestado pela bela ordem
das coisas na natureza e a beleza das proporções do Universo, que foi feito com peso, número
e medida (A Cidade de Deus, Livro XII, cap. XXII).26
Ricardo Costa – A estética na Antiguidade e na Idade média): “A origem da beleza está
na bondade do Criador, e isso pode ser atestado pela bela ordem das coisas na natureza
e a beleza das proporções do Universo, que foi feito com peso, número e medida (A
Cidade de Deus, Livro XII, cap. XXII).26”
Bayer: Santo Agostinho não nos legou, pois, uma estética propriamente dita, porém
suas ideias sobre essa questão encontram-se reunidas em A Cidade de Deus. O ponto
de partida de toda a nossa filosofia é nosso próprio pensamento e nosso próprio ser.
Os conhecemos a nós mesmos com uma certeza absoluta. A existência do pensamento
em nós é a única regra, o único indício dessa certeza, e o cogitare nós o encontramos
já neste pensador. Os resultados do pensamento são indubitáveis, porem em regiões
diferentes: da sensibilidade, da opinião, a fé, a crença no que há de sensível em nossa
tomada de consciência da natureza. Essa fé em nossas percepções é necessária para a
vida prática, e esta certeza é também ela, inteiramente provisória e pratica. Ao lado
da certeza, que é o consentimento objetivo, está a fé que é o consentimento subjetivo
outogado a um pensamento. Não conhecemos tudo aquilo que cremos, e a fé, graças
ao milagre, tem uma extensão mais ampla que o conhecimento
Venturi: O juízo direto é o juízo dos sentidos; existe também o juízo superior da razão,
que julga segundo as leis da beleza (numero, relação, semelhança, unidade), que vêm
de Deus. Mas não se pode demonstrar que essas leis tenham razão
Agostinho tem reminiscências pitagóricas: o numero é belo... tudo tem forma pq tem
numero
Umberto Eco: De todas as definições da beleza, uma teve particular fortuna da Idade
Média, e provinha de Santo Agostinho: O que é a beleza do corpos? É a proporção das
partes acompanhada por uma certa doçura do colorido. Esta fórmula reproduzia uma
outra, quase análoga de Cicero, a qual, por sua vez sintetizava toda a tradição estóica e
clássica. Mas o aspecto mais antigo e fundamentado de tais formulas era sempre o da
congruentia, da proporção, do número (Pitágoras, Platão, Aristóteles)
Costa: Portanto, Agostinho fazia uma distinção entre beleza sensível e beleza
inteligível, além de ressaltar a beleza do mundo. Ademais, a beleza era, sobretudo,
medida, proporção, unidade, conveniência, moderação e ordem, tudo condensado no
clássico trinômio agostiniano que a posteridade abraçou: modus, species et ordo
(moderação, forma e ordem). A Beleza era um bem divino. Por fim, o filósofo cristão
destacou a Beleza através de seu oposto: a feiúra. Existem coisas belas porque há
outras não tão belas, ainda que tudo sejam bens – superiores e inferiores
Boécio defendeu o conceito de Beleza como proporção das partes. Quanto mais simples a
relação entre as partes, mais belo é o objeto. A forma das coisas produz efeitos estéticos. No
entanto, o filósofo afirmou que a admiração que as pessoas sentem pela beleza é um sintoma
da debilidade dos sentidos: caso nossa percepção fosse mais perfeita, não seríamos tão
fascinados como somos pela beleza de “coisas vis”:
[...]
Belo, portanto, é o que é estável, o que dura, o que permanece. Belo é o Cosmos, mundo
criado por Deus, sua imutabilidade, serenidade, estabilidade. A beleza oriunda da
contemplação do universo é, para Boécio – aconselhado pela própria Filosofia (quem faz o
discurso acima) – a verdadeira felicidade
Por sua vez, Isidoro de Sevilha escreveu uma obra que posteriormente seria a referência
enciclopédia de consulta dos letrados medievais: as Etimologias (c. 627-630). Há nela uma
concisa definição do que é a Beleza: “Belo é o que é de Vênus (Venustus), de sangue. Como o
verde das plantas (Viridis), cheio de força e de seiva, como se tivesse enorme energia” (X,
277).36 Mas sobretudo é a Arquitetura que merece o maior espaço para o que é belo:
A passagem mostra dois conceitos que serão fundamentais e que terão longa vida na História
da Estética: a ornamentação e a decoração. Mas é em outra obra (Livro das Diferenças) que
Isidoro de Sevilha especifica as definições de seu âmbito estético
(...)
Entre disforme e feio, disforme é o que carece de forma e feio o que está além
da forma.
Entre virtude e decoro, virtude se refere ao espírito e decoro à beleza do corpo.
(...)
Por sua vez, elas são convenientes, porque, ainda que não sejam belas por si
mesmas ou em si mesmas, como o homem, estão ordenadas a outro fim, isto é,
estão acomodadas para o homem, mas não necessárias para si mesmas
(Differentiae, P. L. 83, c. 551).
A obra levada a cabo pelos Carolíngios durante o império iniciado por Pepino, o Breve,
quando eliminou os merovíngios em 751 e foi eleito rei pelos francos, designa-se por
"Renascimento Carolíngio", sendo este período caracterizado pela confluência do
purismo anglo-saxão, da tradição romana e das técnicas bizantinas.
Em 768, a dinastia carolíngia foi entregue a Carlos Magno, monarca responsável pelo
apogeu da dominação dos francos na Europa Medieval. Seguindo uma política de tom
expansionista, o novo rei promoveu o domínio de territórios situados na Península
Itálica e entrou em luta contra os muçulmanos, estabelecendo a Marca de Hispânia, na
região sul dos Pirineus. Logo depois, conquistou a cidade de Barcelona, as ilhas Baleares
e impôs sua dominação sob os povos saxões da Germânia.
O advento de formação do Império Carolíngio marcou profundamente o processo de
expansão do cristianismo dentro da Europa. No dia 25 de dezembro de 800, Carlos
Magno foi coroado como imperador do novo Império Romano do Ocidente pelo papa
Leão III. A aproximação realizada pela Igreja se justificava pela possibilidade de
conversão de todos os domínios agregados à autoridade de uma mesma liderança
política
O império duraria até 843, quando aplicaram as disposições do tratado de Verdun, que
o divide em três partes. A organização do império tanto por Pepino, o Breve, como por
Carlos Magno teve como consequência um enorme desenvolvimento artístico, cujos
aspetos mais interessantes se encontram na arquitetura e na pintura através de frescos
e de iluminuras. As artes sumptuárias e a escultura em marfim atingem a máxima
expressão.
Arte carolíngia
Por ter os olhos voltados para o mundo greco-romano, esse impulso literário-filosófico dos
séculos VIII-IX ficou conhecido como Renascimento Carolíngio (sécs. VIII-IX). O imperador
reuniu em sua corte (em Aachen) professores, especialmente gramáticos, com o apoio da Igreja
Católica, para lecionar. Por sua parte, a Igreja, através de sua rede de mosteiros espalhada pela
Europa, preservou, com o trabalho de seus copistas, os documentos antigos da destruição (do
tempo, das vicissitudes): a maior parte dos manuscritos antigos, dos textos clássicos, é
justamente desse período.
Por isso, os temas estéticos desse período versavam sobre as ideias clássicas – como a da ordem
e a verdade, por exemplo – mas sob uma nova perspectiva, claramente religiosa (os antigos
diriam transcendental). Os documentos oficiais redigidos a partir da corte carolíngia
demonstram uma clara preocupação com a função da imagem. Por sua beleza, a arte deve ser
orientada, dirigida para o além, para a fé (ideia de fundo platônico, como já vimos).
E quem profere (acima) essa nova forma de se pensar o Belo é Alcuíno de York (c. 735-804),
professor da corte e do próprio imperador, vindo, a seu pedido, das Ilhas Britânicas para lecionar
na escola imperial. Essa reminiscência da tradição clássica deve ser especialmente pensada
nesse novo contexto: a outra tradição, bárbara, goda (visigoda, ostrogoda) apreciava as formas
abstratas, o simbolismo das linhas entrelaçadas, e servia de adorno aos poderosos. Aspirava ao
fausto – exatamente o contrário da arte clássica, do pensamento grego. A opção imperial
carolíngia pelo Renascimento, pelo voltar-se para a tradição greco-romana que a Igreja
preservava, determinou a maneira com que os pósteros pensaram a Estética.
Por exemplo, a ordem residia na própria natureza das coisas. A arte tinha regras imutáveis.
Bastava ao artista, ao artesão, contemplá-las, observá-las, reproduzi-las (antiga noção estética
agora repetida sob os auspícios da Igreja). “As artes têm regras imutáveis e que não foram
estabelecidas pelo homem, mas descobertas graças à habilidade dos inteligentes” (De cleric.
institut., 17), disse Rábano Mauro (c. 776-856), monge impulsionador da cultura (especialmente
as ciências e as artes) na abadia beneditina de Fulda39 – por sua vez, centro irradiador das Letras
por toda a Germânia – e autor de uma importante obra medieval, filosófica/enciclopédica, De
rerum natura (Da natureza das coisas), título que alude à tradição atomista grega e,
especialmente, à Lucrécio (99-55 a. C.).
Os cantores devem aplicar-se, com o maior cuidado, em não macular com estridências
o dom que receberam de Deus, mas adorná-lo com humildade, castidade, sobriedade e
todos os demais ornamentos das santas virtudes, para que, assim, sua melodia eleve o
espírito do povo que os escuta rumo à recordação e ao amor celestial, não só pela
sublimidade das palavras, mas também pela doçura dos sons emitidos. É necessário que
o cantor, como mostra a tradição dos Santos Padres, seja brilhante e ilustre, em sua voz
e em sua arte, de modo que o deleite de sua doçura incite as almas da audiência
. Uma coisa é adorar a pintura, outra é aprender sua história para que seja adorada. A
pintura representa para os idiotas que a contemplam o mesmo que a escrita para os que
sabem ler, já que os ignorantes que não conhecem as letras veem nela aquilo que devem
fazer. Por isso, a pintura é para as gentes, essencialmente, uma espécie de lição. E se
alguém deseja criar imagens, não se deve proibir, mas evitar a todo o custo que se adore
essas imagens.
26a. A pintura é exposta nas igrejas para os que desconhecem as letras pelo menos
leiam, com a vista nas paredes, o que não podem ler nos livros
Com o lento porém persistente desabrochar da educação formal, escolar, a especulação estética
ganhou renovado fôlego. Inicialmente foram os mosteiros os impulsionadores do ensino. Por
exemplo, os cistercienses fizeram severas críticas à opulência e ao fausto do luxo artístico dos
cluniacences, talvez o principal debate intelectual do século XII. Defenderam os cistercienses a
beleza da medida adequada:
Dois são os adornos da alma: a humildade e a inocência. Duas coisas são sua beleza: a
claridade e a caridade (Tomás de Citeaux, Comentário ao Cântico dos Cânticos).
A beleza também reside nos seres materiais, e deriva da disposição adequada de suas
partes, quando uma parte adequada se une à outra e assim produz uma só forma bela
a partir de sua união adequada (Gilberto Foliot, Exposição no Cântico dos Cânticos, I).
Por sua vez, os cluniacences defendiam abertamente a estética da suntuosidade como
representação da beleza eterna. Há uma conhecida passagem de um tratado do abade Suger
(c. 1085-1151) de Cluny, em que ele defende – metafisicamente – a contemplação do luxo para
ascensão espiritual do material ao imaterial:
Assim, por puro amor à Mãe Igreja, contemplamos esses diferentes ornamentos novos
e antigos, e vemos a admirável cruz de Santo Elói, joia incomparável, que o povo chama
“Crina”, posta acima do altar de ouro. Então digo, suspirando do mais profundo do
coração: “Toda pedra preciosa é Teu ornamento, o sárdonix, o topázio, o jade, o
crisólito, o ônix e o berilo, a safira, o carbúnculo e a esmeralda.45 Para aqueles que
reconhecem as propriedades das pedras preciosas, salta à vista, para grande assombro,
que, da lista mencionada, só nos falta o carbúnculo, mas as outras abundam
copiosamente.
Então, quando por causa da dileção ao decoro46 da casa de Deus, o agradável aspecto
das pedras preciosas de múltiplas cores me distancia, pelo prazer que produzem, de
minhas próprias preocupações, e quando a honesta meditação me convida a refletir
sobre a diversidade das santas virtudes, trasladando-me das coisas materiais para as
imateriais, creio residir em uma estranha região do orbe celeste, que não chega a estar
inteiramente na superfície da terra nem na pureza do céu, e creio poder, pela graça de
Deus, trasladar-me de um lugar inferior para outro superior, de um modo anagógico.
A base filosófica do cluniacense para essa estética da suntuosidade foram os textos do Pseudo-
Dionísio Areopagita (séc. V).48 Mas tal comportamento estético não era unânime. Bernardo de
Claraval (1090-1153) foi um feroz opositor dessa magnificência na arte. Acusou a opulência do
mosteiro de Cluny. Os fiéis deveriam retornar a seu momento primeiro, à vida pobre, como
Cristo. Como os Apóstolos. Especialmente os monges, por estarem na dianteira do mundo,
próximos do Além. A vida apostólica deveria novamente ser o modelo a ser seguido. A rica arte
cluniacense que Bernardo denunciou e que lhe fez lembrar o “antigo rito dos judeus” era o
resultado do enriquecimento do mundo (o século XII presenciou um notável avanço material em
todos os âmbitos sociais). Qual a causa desse pecado? Para ele, a avareza
De resto, nos claustros, diante dos irmãos a fazer leituras, que faz aquela ridícula
monstruosidade, aquela disforme beleza e bela disformidade? Para quê estão lá aqueles
imundos macacos? Para quê os leões ferozes? Para quê os centauros monstruosos? Para
quê os semi-homens? Para quê os tigres às manchas?
Para quê os soldados a combater? Para quê os caçadores a tocar trombetas?
Vês uma cabeça com muitos corpos e um corpo com muitas cabeças. Daqui vê-se um
quadrúpede com cauda de serpente, dali um peixe com cabeça de quadrúpede. Ali uma
besta tem frente de cavalo e de cabra a parte de trás; acolá um animal cornudo tem
traseiro de cavalo. Tão grande e tão admirável aparece por toda a parte a variedade das
formas que mais apetece ler nos mármores que nos códices, gastar todo o dia a admirar
estas coisas que a meditar na lei de Deus.
Meu Deus! Se a gente não se envergonha destas frivolidades, porque não tem pejo das
despesas?
Mas não façamos uma leitura rasa desse famoso debate medieval a respeito da estética
monástica. A mística de Bernardo de Claraval não negava a beleza dos ornamentos. Umberto
Eco (1932- ) já nos mostrou que, justamente por reconhecer seu atrativo irresistível, é que os
místicos a combateram.53 A descrição de Bernardo da arte cluniacense é tão real que mostra
seu paradoxo: ele via sutileza em coisas que não queria ver
Por conta da valorização cultural e do ensino, além do resgate a Aristóteles, imperou durante a
Escolástica uma intensa mobilização para o conhecimento das questões metafísicas e das
ciências naturais. A fé, já abordada nos escritos dos pensadores cristãos desde o século II, passa
a ser encarada em conjunto com a razão
Nesse sentido, pensadores como Alberto Magno, Santo Anselmo e Tomás de Aquino
defenderam que o combate às heresias, ao paganismo e à não aceitação de Deus ocorreria por
meio da formulação de teorias racionais e do conhecimento científico.
As invasões mouras, que levaram os árabes a disputarem o domínio de partes do atual território
espanhol e português, ocorridas a partir do século VII, foram fundamentais para a construção
do pensamento escolástico, pois os árabes levaram consigo os estudos mais profundos das obras
de Aristóteles.
Como exemplo, podemos destacar Averróis, filósofo árabe do século XII, que influenciou os
pensadores escolásticos com seus comentários sobre Aristóteles. Tomás de Aquino, o mais
importante nome da Escolástica, operou uma junção de sua interpretação de Aristóteles com
ideias autorais, o que resultou no chamado tomismo aristotélico
Tomás de Aquino
Monge dominicano, grande escritor e filósofo, comentador das obras de Aristoteles também
teve uma formação voltada para as Ciências Naturais.
A distinção entre essência e existência, já presente na obra aristotélica, influenciou o
pensamento de Aquino, que desenvolveu uma conexão direta entre Aristóteles e a teologia
cristã. Aquino também operou uma junção da ideia de causalidade proposta pelo argumento
do motor primeiro, de Aristóteles, para elaborar as “Cinco Vias que Provam a Existência de
Deus”, estabelecendo uma conexão direta entre a obra aristotélica e a existência de Deus.
Tomás de Aquino enxergou na obra aristotélica a possibilidade de uma via racional que levaria
à prova da existência de Deus. O princípio de causalidade e a ideia de motor imóvel, já
discutidas na obra aristotélica, despertaram o intelecto de Aquino para a formulação de suas
“Cinco vias que provam a existência de Deus”. O princípio de causalidade é, para a Filosofia, um
princípio elementar que admite que para todo efeito ocorrido no mundo, existe uma causa
anterior. Ou seja, se algo aconteceu, existiu um fenômeno anterior que provocou o
acontecimento.
Bayer: Tomás parte do fato de que certos objetos nos agrada e outros nos desagradam. O
gosto ou desgosto por determinados objetos se explica pelo exercício de certas faculdades.
As formas sensíveis das coisas são percebidas em nos graças ao que os escolásticos chamas de
SENTIDO COMUM. Porem as formas das coisas exteriores que nosso sentido comum reúne,
não se conservam senão mediante a memoria e a imaginação. Uma vez que estas sensações
tenham penetrado em nós e recebam uma primeira vida pela imaginação, as julgamos com
uma determinada força (vis estimativa)
Gostamos ou não dos objetos graças a uma sensação visual que atua como
intermediário...Segundo São Tomas, são as sensações da vista as que explicam a impressão
estética do objeto, com o qual nos encontramos em pleno hedonismo estético.
[...] Dizer que um objeto nos agrada é um juízo. De outro lado, há duas espécies de juízo: o
juízo natural e o juízo racional. Enquanto o primeiro pode ser percebido já nos animais, o
segundo é exclusivamente humano. O PRAZER QUE SE SENTE FRENTE A UM OBJETO BELO
NÃO É, POIS, CORPÓREO, SENÃO INTELECTUAL
o belo concerne unicamente a faculdade do juízo racional... Assim, a estética de Santo Tomas
começa por ser uma estética sensualista e hedonista, com o hedonismo (prazer como bem
supremo) da vista e se desloca depois, como a de Kant, a um estética do juízo para estabelecer
a preeminência do juízo racional
O que confirma o caráter racional da estética de São Tomas é que para ele toda beleza é
formal. Para ele: todo conhecimento se dirige para as formas das coisas, não a seu conteúdo. E
estas formas não proporcionam um conhecimento adequado do objeto, já que emanam de
Deus. Deus criou as formas, porem uma vez criadas se multiplicaram por si mesmas. ...O que
constitui a beleza do real não é a aparência sensível das coisas, senão a forma inerente a elas
Maritain afirma que em Tomás de Aquino a clareza, luz ou esplendor da forma designa o
essencial da beleza. A forma é o princípio de inteligibilidade da coisa, ao passo que toda
proporção e ordem é obra do intelecto.
O intelecto tem prazer com o belo porque “nele se reencontra e se reconhece e toma contato
com sua luz própria”. A beleza sensível supõe o prazer da visão, da audição ou da imaginação
e, no entanto, não há beleza sem algum prazer no intelecto.
Em resumo, o belo coincide com o bem materialmente (re seu subjecto): é apetecível porque
se reveste do aspecto de bem, a sua obtenção aparece para aquele que o apreende como boa.
Mas o belo difere do bem quanto à noção (ratione):14 tem uma relação direta para com o
conhecimento, pertencendo por si à causalidade formal, e uma relação necessária, embora
indireta, para com o apetite. O belo consiste no bem especial que causa prazer à potência
apetitiva na potência cognoscitiva porque satisfaz o apetite natural desta. O prazer no
conhecimento é essencial ao belo e implicado na sua noção
No mesmo estudo, Maritain põe em relevo o problema da percepção do belo. Diz ele que
nesta percepção, a clareza da forma, inteligível em si mesma, é apreendida “no sensível e pelo
sensível”. O intelecto, por meio da intuição sensível, é posto em presença de uma
inteligibilidade que brilha e apreende o universal ou inteligível, imediatamente sensível, sem
discurso e sem esforço de abstração; tem prazer enquanto dispensado de todo esforço de
abstração e raciocínio. Essa apreensão não se processa sob a noção de verdade (sub ratione
veri), mas sob a noção de prazer (sub ratione delectabilis). Apenas posteriormente, o intelecto
analisará pela reflexão as causas do prazer. Desviar-se dos sentidos para abstrair e raciocinar
significa perder o contato com o esplendor do inteligível. Assim, o belo conatural
(proporcionado) ao ser humano é o que causa prazer no intelecto por meio dos sentidos