A Reformulação da Ética Utilitarista em Moore, Hare e Singer
1. Introdução
O utilitarismo clássico, formulado por Jeremy Bentham e reformulado
por John Stuart Mill, constituiu uma das mais influentes doutrinas
éticas modernas, baseando-se no princípio da maior felicidade
possível para o maior número de pessoas. No entanto, ao longo do
século XX, esse paradigma foi objeto de críticas e reformulações,
sobretudo por filósofos como G. E. Moore, R. M. Hare e Peter Singer.
Cada um, à sua maneira, procurou corrigir as limitações do
utilitarismo clássico e ampliar seu alcance, seja na definição do
“bem”, na exigência racional da imparcialidade ou na aplicação
prática a problemas éticos contemporâneos.
---
2. Moore e o Utilitarismo Ideal
George Edward Moore, em sua obra Principia Ethica (1903), rompe
com o hedonismo defendido por Bentham e Mill. Para Moore,
identificar o bem apenas com o prazer seria incorrer naquilo que ele
chamou de falácia naturalista, isto é, a confusão entre propriedades
naturais (prazer, felicidade, desejo) e a propriedade ética do “bem”.
📖 Citação:
> “É um simples absurdo dizer que ‘bem’ significa prazer, ou que
‘bem’ significa qualquer outra coisa. ‘Bem’ é indefinível.” (Moore,
1903/1993, p. 6).
Assim, Moore inaugura o chamado utilitarismo ideal. O “bem” não se
restringe ao prazer, mas inclui outros valores intrínsecos, como a
amizade, a beleza e a verdade. A moralidade, nesse sentido, deve
promover não apenas estados prazerosos, mas também a realização
de valores objetivos que tornam a vida humana plena.
🔎 A contribuição de Moore é fundamental, pois desloca o utilitarismo
de uma base puramente hedonista e quantitativa para uma ética
mais pluralista e qualitativa.
---
3. Hare e o Utilitarismo Prescritivo
Richard Mervyn Hare, no século XX, procurou reconstruir a ética
utilitarista a partir da sua teoria do prescritivismo universal. Para
Hare, os juízos morais não são meras descrições, mas prescrições
universais, isto é, orientações práticas que devem ser aplicadas
imparcialmente em situações semelhantes.
📖 Citação:
> “O princípio utilitarista, quando devidamente entendido, é o único
critério racional possível de escolha moral, porque leva em conta
imparcialmente os interesses de todos.”
(Hare, 1981, p. 26).
Hare defende que a racionalidade moral exige que nos coloquemos
no lugar de todos os envolvidos em uma decisão, considerando
imparcialmente seus interesses. Nesse sentido, a sua reformulação do
utilitarismo supera a crítica do relativismo e fornece um fundamento
lógico e racional para a obrigação moral.
🔎 A ética utilitarista, para Hare, deixa de ser apenas um cálculo de
prazeres e se transforma em uma exigência racional de
imparcialidade e universalização, que aproxima o utilitarismo de uma
lógica kantiana, sem, contudo, abandonar sua natureza
consequencialista.
---
4. Singer e o Utilitarismo Prático e Contemporâneo
Peter Singer é o autor que mais amplamente aplicou o utilitarismo
reformulado às questões éticas concretas da contemporaneidade.
Inspirado em Bentham, Mill e Hare, Singer adota um utilitarismo de
preferências, no qual a ação correta é aquela que promove a
satisfação dos interesses de todos os seres envolvidos, não apenas
dos humanos.
📖 Citação:
> “O princípio básico da igualdade não requer tratamento idêntico,
mas igual consideração pelos interesses de todos os afetados por
uma ação.”
(Singer, 1975/2002, p. 21).
Singer amplia o alcance do utilitarismo ao incluir animais não
humanos no círculo da consideração moral, uma vez que estes
também são capazes de sofrer. Isso o leva a criticar o especismo —
discriminação baseada na espécie — e a defender práticas como o
vegetarianismo e políticas de combate à pobreza extrema.
🔎 A reformulação de Singer mostra que o utilitarismo pode ser um
instrumento poderoso de transformação social, ao aplicar seu
princípio central não apenas à ética individual, mas também à
política, economia, bioética e direitos dos animais.
---
5. Síntese Comparativa
Moore → critica o hedonismo e amplia o conceito de “bem”
(utilitarismo ideal).
Hare → fundamenta o utilitarismo em uma lógica de prescrição
universal, garantindo imparcialidade racional.
Singer → expande o utilitarismo para além da humanidade, aplicando-
o a problemas éticos globais e à consideração moral dos animais.
Dessa forma, o utilitarismo deixa de ser apenas uma doutrina
centrada no prazer humano e se torna uma teoria ética pluralista,
racional e universal, capaz de dialogar com os dilemas morais
contemporâneos.
---
6. Conclusão
A reformulação do utilitarismo em Moore, Hare e Singer representa
uma evolução significativa da teoria, que deixa de ser reduzida ao
cálculo de prazeres e dores para se transformar em uma ética
abrangente, capaz de lidar com valores objetivos, com a exigência da
imparcialidade racional e com os desafios éticos globais do século
XXI. Se em Bentham e Mill a questão era maximizar a felicidade
humana, em Moore a discussão se amplia para valores intrínsecos,
em Hare ganha uma fundamentação racional universal, e em Singer
se abre para o campo da ética aplicada e da justiça global.
Assim, o utilitarismo mostra não ser uma doutrina estática, mas um
paradigma ético dinâmico, constantemente reformulado para
responder às exigências da moralidade contemporânea.
---
📚 Referências
Moore, G. E. (1903/1993). Principia Ethica. Cambridge: Cambridge
University Press.
Hare, R. M. (1981). Moral Thinking: Its Levels, Method and Point.
Oxford: Clarendon Press.
Singer, P. (1975/2002). Animal Liberation. New York: Ecco.
Bentham, J. (1789/1974). An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation. Oxford: Clarendon Press.
Mill, J. S. (1861/2005). Utilitarianism. Indianapolis: Hackett Publishing.