José Rufino
AFAGOS
MELANCOLIA
Nos contos que pensa em escrever, gostaria de falar sobre
corvos, mas lhe cabem sabiás. Queria viver em uma cidade de dois mil
anos. Seu bairro – seu conjunto habitacional – tem dois anos. Sonha
com o Bósforo, mas atravessa todos os dias o Córrego da Invasão. Aos
domingos, simula melancolia, escurece a vista, puxa de longe os
poemas de dor. Sem saber de nada, os vizinhos lhe oferecem cerveja e
churrasquinho.
GEOGRAFIA
O menino o enchia de perguntas. Na ida, ele respondeu a todas,
inventando nomenclaturas para cada acidente geográfico. Na volta,
referiu-se ao mesmo penhasco como sendo um rocheduscão. O
menino questionou, lembrando-se vagamente que o termo aplicado
na ida não terminava em cão. Ele respirou fundo, deu umas pancadas
no volante e, desfazendo-se de seu resto de bom humor, estabeleceu
que não responderia a nenhuma pergunta e que, além de ter
inventado todos aqueles nomes, detestava geografia e, portanto,
viagens.
SONHO
Estava de saco cheio de ouvir, todo dia, o relato detalhado dos
sonhos bizarros do amigo e colega de trabalho, que sempre o
envolviam. Se, pelo menos, não fossem narrados na frente dos outros.
Na segunda-feira, preparou-se para a chegada do sonhador e, antes
que ele entoasse sua rotina, abriu o verbo: Sonhei que você parava
definitivamente de sonhar! Nunca mais se falou de sonhos na
Secretaria de Seguridade Social.
LEGADO
A esposa não queria nada que pertencera à sogra. Ele insistiu
para que ficassem com a pintura, mas ela não deixou. Ele arrancou a
moldura dourada com violência, rasgou o linho da borda do chassi e
enrolou a velha tela. Assim permaneceu por duas décadas. Agora ele
contempla a obra na sua nova sala. A moldura modernosa foi criação
da arquiteta, assim como a seda crua da parede de fundo.
ACIDENTE
Seria melhor ter me acertado uma machadada bem no meio da
testa. Porém o golpe me acertou na espessura do coração. Sobrevivi,
mas fiquei assim.
DESAPARECIDO
O retrato do menino estava latejando na palma úmida da mão:
intermezzo final entre a esperança e o desespero, a ser desfeito num
grito exacerbado. O último recurso havia sido confiscado pela
afirmação curta e precisa: É o corpo dele.
PASSADO
Você não suporta o meu passado, mas o que é que eu posso fazer?
Tenho um passado, e é este, você quer que eu arranque as minhas
lembranças? Quero, arranque e jogue no lixo. Ela sabe como é perigoso
provocá-lo, mas sente prazer em vê-lo empalidecer, depois ficar
vermelho, roxo e novamente pálido. Quando o ciclo está completo, ela
espera uns dias e começa de novo.
ROTINA
Antes de partir, doou o velho cão ao entregador de gás,
enganando o remorso. Vendeu alguns eletrodomésticos mais
aproveitáveis, alguns móveis e o carro. O que ficou dentro da casa não
valia nada. Não atrairia nem o mais miserável ladrão. Deixou um
molho de chaves com a vizinha e pediu que desse uma olhada,
recolhesse a correspondência e, vez por outra, regasse as plantas. Seu
irmão passaria todo mês para recolher as contas e fazer uma vistoria
geral. Imaginava encontrar, um ano depois, tudo meio avariado, mas
no lugar. Não queria nem pensar em encontrar a casa invadida ou
mutilada, sem esquadrias, sem telhas, sem portão. Era cuidadoso
com tudo na casa e afetuoso com seu cão. Aquele ano sabático era um
desvio radical na sua rotina, na sua vida toda. Foi. Voltou. Encontrou
a casa, o portão, as telhas, as esquadrias. A grama tinha virado mato,
as samambaias do terraço estavam mortas e tudo estava tomado de
folhas secas e lixo atirado por cima dos muros, mas tudo continuava
lá. Só lhe faltaram os latidos do velho Zé, e sem eles a casa não era
mais que um tumor de alvenaria abandonado no silêncio do terreno.
ATAQUE
O corte era fundo, curto, mas não doía nem sangrava. Somente
sua alma vazava em decepção.
MEU FILHO,
Fez o possível para desvendar os vestígios deixados no bloco de
apontamentos do pai, morto no dia anterior. Não conseguiu
desvendar sequer uma palavra inteira. Sentiu-se totalmente
incompetente, mas aliviado.
HERANÇA
Um queria o relógio de parede e a prataria; o outro, o conjunto
da sala de jantar e o espelho. A mais nova não queria nada. Achava
que tudo não passava de um monte de coisa velha. Meio a
contragosto, terminou levando para o seu apartamento duas dúzias
de taças de cristal Bohemia, quebradas na festinha do final do
semestre, ao som de tecno-funk.
REDENÇÃO
Nivaldo acordou cedo como sempre faz nas manhãs de sábado
na Fazenda Redenção. Calado e carrancudo, tratou logo do gado e
alimentou as aves com um copo de café e um pão com manteiga na
mão. Depois se enfiou no galpãozinho de ferramentas e tralhas. Saiu
de lá com trapos, um tubo de óleo Singer, alguns apetrechos. Foi até a
saleta escura, que se faz muito raramente de biblioteca, sala de
visitas, escritório e sala de reza. Sentou-se na cadeira da escrivaninha
que pertencera ao avô e revolveu o fundo de uma gaveta à procura de
uma velha pistola. Encontrou primeiro um maço de cartas amarradas
com barbante. Libertou-as. Apalpou a pistola esquecida vinte anos
antes. Empunhava a velha arma, enfim.
PONTARIA
Não queria desperdiçar nenhuma bala. Preocupava-se apenas
com isso. Eram seis balas para um único corpo, mas ele queria gastar
apenas uma. Ao final, teve na medida de duas uma conta que valia o
dobro de seu pequeno arrependimento.
MANTRA
Dona Heloísa ficou viúva cedo. Seus dois filhos se casaram
jovens e escorregaram pelo mundo. A vida com o marido, os filhos e
os netos, o destino trocou por uma casa cheia de grades e pela
companhia fiel e servil de Maria José, além de uns poucos gatos.
Quando contabilizava uns quarenta e poucos anos, dona Heloísa
começou a anotar umas coisas em pequenos papéis, que depois
dobrava e guardava em saquinhos. No fim de cada ano colava uma
etiqueta com a data e fechava o saco. Quando morreu, sua neta
recebeu da velha Maria José trinta e dois conjuntos de escritos,
faltando apenas o referente ao ano de 1973. O pacote de 2006, ano em
que a avó morreu, continha uns poucos papéis e estava aberto. Desde
então, a neta não faz outra coisa a não ser ler e organizar os pequenos
e intrigantes relatos. Cola-os em cadernos anuais e grifa os trechos
mais enigmáticos, que lê e relê como se fossem mantras: duas xícaras
de açúcar; vela acesa (Maria dorme no sofá); o nome de hoje é Pedro
(mais novo do que eu, barbudo, motorista de caminhão); o bicho é galo e
a flor, açucena.
REGRESSO
Voltando encontrei cães que fugiam de mim.
CULPA
Não pediu desculpas nem devolveu os livros. Disse apenas que
foi bom enquanto durou. Meses depois, ligou com uma conversa
fiada, querendo devolver os livros e pegar um, Fraturas do tempo.
Passou pra pegar com o porteiro. Deu uma lida ali mesmo e devolveu
pela brecha para o homem atrás do vidro grosso: Diga que não era o
que eu pensava.
MATÉRIA
A notícia estampada na primeira página do Diário da Serra
escandalizou a região com a manchete publicada em título e
subtítulo: Idoso de 86 anos é encontrado morto com trinta perfurações
pelo corpo; polícia trabalha com a hipótese de latrocínio, roubo seguido
de morte. No corpo da matéria, a descrição das marcas profundas (no
corpo do velho) provocadas por objeto perfurante, além da menção de
duas pontas de cigarro na poça de sangue e os testemunhos
desencontrados de dois vizinhos fumantes, segundo apurara o
próprio repórter policial.
ARQUITETURA
Suas conversas davam voltas e voltas e, um pouco
embaralhadas, chegavam sempre nos mesmos terrenos: tratativas de
velório e enterro e, por fim, arquitetura tumular (colunatas, volutas,
frisos, sancas). Durante a vida, nunca se interessou por eventos de
nenhuma categoria e como era um homem totalmente pragmático,
sempre viveu em casas desprovidas de qualquer desvio estético.
Todos ficaram imensamente impressionados com seu túmulo de
inspiração rococó.
VELÓRIO
O tio propôs uma brincadeira para aliviar a tensão: Vamos
construir frases com as palavras “perplexidade”, “futuro”, “segredo”,
“inquérito” e “família”. A tia, recém-empossada mãe substituta,
pensou numa frase curta, que não envolvia as palavras sugeridas:
Puta que pariu.
FUTURO
Tinha o hábito de falar sempre sobre os mesmos assuntos,
coisas do passado. Como se não tivesse presente, vida presente, muito
menos futuro. Embora fosse o mais velho, assistiu a cada um adoecer
e morrer, até Jonas, que tinha idade para ser seu filho.
SOL
A meteorologia anunciava temporal quando Moacir decidiu sair
de casa. Sair pra aventurar, como costumava dizer. Vestiu-se
inteiramente de sol e botou os pés na calçada como um ser em brasa.
Desceu a rua da Fundição ignorando os horizontes que já se faziam
chumbo. Seu Moacir, vai cair um pé-d’água! E ele radiante,
deliciando-se com os primeiros pingos que ferviam ao tocar seu corpo
quente.
CURIOSIDADE
Os cães da vizinhança latiam sem parar há mais de uma hora.
Deve ser algum gato. De repente, a frequência e altura dos latidos
aumentaram; alguns cães engasgaram no esforço histérico, como se
vissem um monstro. Um estalido abafado os calou ao mesmo tempo,
como se tivessem sido decepados. O que foi isso, um tiro? Um silêncio
enorme se impôs em todo o bairro, cortado apenas pela aceleração de
um carro. Relaxe, durma, seja lá o que tenha sido, não foi com a gente.
SOLIDÃO
Acessou o Google Earth sem saber o que procurar. Foi
aumentando o recurso de zoom (mais, mais, mais) até que localizou
um lugarejo chamado Pedra da Solidão. O terreno parecia muito seco.
Quase nada de ocupação humana. Um vilarejo de nada, pulverizado
no nada. Acrescentou à lista de compras mais alguns tubos de filtro
solar e um chapéu de abas largas.
DEVIR
Desviou o rosto dos olhos semimortos da mãe sem conseguir
disfarçar o constrangimento. Sentou-se à beira da cama e ficou
alisando as dobras do lençol como se fossem as dobras de uma vida
toda, tão prosaica quanto aquele tecido fraco. A enfermeira entrou e
disse que precisava trocar a roupa de cama.
VERGONHA
Cinco horas da tarde, duas mulheres esperando um homem
chegar na plataforma da estação: Eu tenho vergonha. Que vergonha,
menina! O máximo que pode acontecer é ele dizer não. E se disser sim?
Morro ali mesmo, bem nos pés dele.
CELEBRAÇÃO
O sócio fechou a porta do escritório e ofereceu uma dose de
conhaque, dizendo ser muito caro. Trouxe a taça gorda e funda com a
haste enfiada entre os dedos e o bojo bem apoiado na palma da mão
levemente trêmula. Ele recebeu a dose, sentado no sofá de couro
preto, e enfim conseguiu encarar a face do sócio, amplificada pela
lente do líquido cor de âmbar. Viu aquele rosto como jamais havia
visto.
RECONCILIAÇÃO
Ele escancarou o guarda-roupa de aglomerado com tanta
violência que uma das portas caiu sobre a cama. Ela, com as pernas
cobertas pela porta caída, levou a mão delicada até o queixo,
encobrindo a boca intensamente vermelha com parte da sua mão
pequena, e se manteve muda. Ele estava tão transtornado que pensou
ter ouvido a sequência de termos: violência, abandono, pensão. O
repertório que já estava na cabeça dele. Na dela estava ainda a palavra
reconciliação.
CORPORAÇÃO
A informação sobre a demissão daqueles que já tinham mais de
vinte anos de casa foi passando pelas mesas dos funcionários, lenta e
pesada como uma embarcação empurrada em um lodaçal. Na mesa
do novo assistente de marketing corporativo, justamente o mais
jovem e há menos tempo contratado, a notícia encalhou. O rapaz se
levantou e, com uma voz altiva que ainda não havia testado,
proclamou: Não podemos aceitar isso: ou demitem todos, ou nenhum!
RESSACA
Josué foi o segundo a ocupar a tribuna. Primeiro falou sobre o
pecado original, depois tentou relacionar a crença em um ser
supremo a algo tão complicado e cheio de metáforas que o salão foi se
esvaziando. Na saída passou a falar do uísque que havia comprado
para um colega. Remendou seu impulso usando a bebida como
metáfora: O uísque não afasta o homem de Deus, apenas embebeda a
moral, para que ela se refaça no arrependimento do dia seguinte.
TRAIÇÃO
Ele não fazia ideia do terreno alagadiço, para não dizer
movediço, que criaria com sua atitude intempestiva. Uma coisa é a
desconfiança, outra é a confissão.
DESPEDIDA
As últimas palavras do pai foram puro salitre. Os filhos ficaram
apenas com a velha salmoura.
VINGANÇA
Eu te perdoo, falou com a voz embargada antes de cair no choro.
Jorge levantou-se do sofá e saiu carregando o controle da televisão.
Voltou sem camisa e sem o controle, quase violento: Perdoa o quê?
SOLIDARIEDADE
Os dois irmãos tinham desenvolvido desde cedo um vocabulário
para uso somente entre eles: irônico e pejorativo, muitas vezes
sádico, acompanhado de um comportamento condizente que
consistia em brincadeiras maldosas, sustos horríveis e
constrangimentos mútuos. Tudo praticado só entre eles. Na frente
dos outros, somente afagos. O mesmo escorpião deixado na cama do
menor foi, em seguida, morto pelo autor da brincadeira na frente dos
pais, o que mereceu um abraço do irmãozinho e o título de herói,
conferido pelo sorriso da mãe e pelo gesto de exclamação do pai. A
retribuição, o herói receberia no dia seguinte.
UTOPIA
Voltavam com as bandeiras e faixas enroladas, ainda
cantarolando os refrãos e as palavras de ordem. A captura foi tão
rápida que foi como se tivessem caído em uma arapuca. Mal tiveram
tempo de recuperar os sentidos e a dignidade parcial dos corpos
açoitados e repuxados com extrema violência, e já estavam sendo
obrigados a ajeitar a postura diante do delegado: Quer dizer que
estavam fazendo arruaça?, ele perguntou enquanto conferia o
próprio Rolex, cujo ouro exageradamente amarelo reluzia como um
sol na cara dos estudantes.
RELICÁRIO
Ele coleciona facas desde menino. Facas, canivetes, punhais,
navalhas, foices, estiletes, lâminas, alfanjes e até espadas. Manipula
sua coleção diariamente e jamais se cortou. Suas relíquias, no
entanto, já provocaram sangrias dolorosas em seus amigos mais
queridos.
NEOCAPITALISMO
O filho rico interrompeu várias vezes a reunião com os
acionistas. Aproveitava o ensejo para usar os neologismos que
acabara de aprender no curso de Imersão Para Jovens Herdeiros de
Grandes Corporações. Desfibrou alguns termos em inglês e logo
engrenou o alemão. Para fechar com chave de ouro se saiu com uma
palavra em chinês que, segundo ele, significava o equilíbrio entre
lucro e paz de espírito.
PAISAGEM
Ela encontrou a pia cheia de louça suja e sobre a mesa da
cozinha uma xícara de café, farelos e lascas de pão. Ainda passou a
vista pra ver se encontrava algum bilhete. Lavou e organizou tudo
como sempre fazia. Foi então para a varanda e ficou ali sitiada, com o
olhar perdido no que lhe sobrava de horizonte, o pano de prato no
ombro. Naquele momento, achou que não conseguiria mais voltar
para o interior do apartamento.
INSTINTO
O menino saiu do mar aos berros, branco como uma lesma,
acompanhado de outros cinco garotos que também brincavam nas
ondas fracas. Foi a maior correria de gente para socorrer. Pais e mães
atordoados, não se sabia quem gritava. Chamem os responsáveis por
essa criança! O menino, todo lanhado pelos tentáculos urticantes de
uma caravela, gemia. Meus pais foram pra cidade, disse soluçando. As
mulheres se dissiparam do aglomerado de gente. Um dos homens
baixou instintivamente o calção e urinou na criança, da barriga para
baixo. Seu pai é que devia fazer isso!
SONO
Ela vivia reclamando de insônia, calafrios. Sentia palpitações e
tremedeiras nas pálpebras e via vultos, ouvia revelações de espíritos.
Depois de anos, sua irmã, com apoio da mãe, conseguiu convencê-la a
ir a uma igreja. Demorou horas para se vestir e apareceu no terraço
como se fosse a um baile. Saíram as três em busca do padre. No meio
do caminho, sol a pino, a moça reclamou de falta de ar, disse que não
estava preparada para conversar com padre. Quase na frente da
igreja, reclamou de tontura, olhou para a irmã e para a mãe como se
fosse revelar um segredo. Desmaiou e quase morreu a caminho do
hospital.
DESTINO
Atravessa os dias murmurando: Nada mais triste que um
monstro entediado.
ANIVERSÁRIO
O pai perguntou ao filho o que ele queria de presente de
aniversário. Nada, respondeu. Nada o quê, menino, quando eu
perguntar uma coisa você responda! O menino saiu de cabeça baixa,
raspando a parede do corredor com o corpo de um bonequinho,
enquanto resmungava: Quero que esse desgraçado morra e que minha
mãe não bote mais nenhum homem dentro de casa.
NUVEM
Rico, gosta de automóveis de luxo e de equipamentos
eletrônicos de última geração. Mantém um diário em nuvem e o
alimenta agilmente em qualquer um de seus aparatos digitais.
Quando perguntam o que tanto escreve, responde que é sobre
negócios. Nem imaginam que é sobre o comportamento das pessoas.
Documenta até os apertos de mão, estabelecendo categorizações
psicanalíticas e de caráter. Geralmente gasta cerca de uma hora
escrevendo sobre um único aperto de mão: a abordagem inicial, a
temperatura, a umidade, a pressão, o tempo de contato e a velocidade
de soltura. Descreve as trocas de olhar, os sorrisos e as
complementações orais. Faz a mesma coisa com abraços, acenos,
beijos no rosto e tapas nas costas. Estuda atualmente um tipo de
saudação em que os envolvidos se seguram pelos braços. Não gosta
muito, acha invasivo e, além do mais, amassa o paletó.
SEGURO
Não suporta quando é abordado sobre o tema. Não suporta nem
ouvir quando os outros falam sobre suas próprias experiências. Não
por causa do trauma sofrido ou porque carregue alguma neurose pós-
traumática. Simplesmente não suporta, da mesma forma como não
quer nem ouvir falar de seu ex-sócio e companheiro de cela, que
agora é seu concorrente no ramo de seguros.
BRANCO
“Oficina do Ferreira: solda e ferro. Desde 1970”. As mãos de
Ferreira estão completamente pretas de graxa e óleo velho. Ele tenta
limpá-las nas calças, mas prefere não apertar a mão do homem que
acaba de chegar. É uma ação de despejo, seu Ferreira. Ele estende a
mão grossa e pega com delicadeza o envelope intensamente branco.
ÚLTIMO ATO
Um camarada pichou o prédio usando um estêncil de letras
elegantes: Theatrum Martyrium. Teve cuidado de fazer a pichação
bem centralizada na porta principal. Letreiro grande, preto, mas que
ficou ali imperceptível quase o dia todo. O diretor da instituição só
ficou sabendo no fim do expediente. Mandou cobrir com papel, até
que resolvesse o que fazer. Recebeu algumas ligações à noite. Uma
delas, de ameaça: Mantenha aquilo ali e você vai experimentar na pele
o que é o martírio, seu palhaço. Pronto, já não bastavam os arrepios
que o diretor vinha sentindo ao perambular pelas salas da instituição,
e o fantasma agora tomava forma de carne e osso. Teve certeza,
deixaria aquela tortura no dia seguinte. Não tinha estrutura para
gerir uma instituição num edifício com um histórico tão macabro.
FEBRE
O jovem corpulento se autodiagnostica: É febre libertária e se
passar dos quarenta graus eu solto um grito que vai tremer o
quarteirão. A enfermeira puxa o termômetro de sua axila molhada,
faz a leitura de quarenta graus e meio, balança o delicado bastão de
vidro e diz: É só corpo quente, não chega nem a trinta e oito.
FALTA
Todas as tardes costumava sentar em uma das mesinhas da
cafeteria. Já era de casa, quase sócio. Carteava gracejos para as
atendentes, papeava com clientes das outras mesas e ia embromando
o tempo, gastando como quem precisa apenas gastar a vida. Em
poucos anos ficou muito popular. Fez muitos amigos de cafezinho e
se especializou em conversas chulas e pornográficas, entremeadas –
para ninguém dizer que não era sério – com assuntos de política.
Passou uns dias sem aparecer, mas não estava fazendo falta. Virou
motivo de chacota dos colegas de mesa. Passados quase dez anos, o
café tem outras atendentes e uma nova ambientação. O nome dele
surge raramente.
VÁCUO
Saíram de mãos dadas. Andaram dois quarteirões assim,
calados. No terceiro, vacilaram entre um lado e outro de uma árvore
plantada bem no meio da calçada. Soltaram-se e cada um seguiu por
um lado. Aproximaram-se e continuaram andando, soltos, calados,
levando o vácuo entre si.
MARESIA
Acordou quando ainda estava escuro. Tinha planejado tomar
banho de mar pelo menos uma vez por semana e aquele sábado
parecia ideal: estava nublado, do jeito que ele gostava. Saiu do carro,
arrancou a camiseta e a bermuda e desceu para a praia, animado, mas
sem jeito, sem experiência. Sentou-se e ficou observando os velhos
que caminhavam na areia e um pai tomando conta do filho sentado
numa boia com cabeça de girafa. A água estava mansa, rasinha,
protegida pelos arrecifes. Uma maravilha. Inspirou fundo e sentiu o
cheiro forte do mar misturado com cheiro de melancia. O sol já ardia
na sua pele branca. O vendedor de cerveja arrumava a tenda e uma
família se instalava bem ao seu lado. Vocês não estão sentindo um
cheiro de melancia?
EPÍLOGO
Farejava problemas com faro de lobo. Deu no que deu.
CARNE FRIA
Balança as pernas sem parar e abana as moscas com as mãos,
para que não pousem no prato de tira-gosto – pedacinhos ressecados
de carne assada com farofa. Se tem uma coisa que o tortura, que lhe
assalta a razão, é o atraso. Como se soubessem o horário certo de
cuidar da diáspora, as moscas se dissipam, uma a uma. Ele então
espeta cada pedaço de carne com um palito de dente e os enterra no
substrato de farofa. Quando termina sua arte, derramando a cerveja
quente no chão, pensa num cemitério. Mais gelada, diz, essa estava
quente. O rapaz que se passava por garçom – o velho já não atende
aquele elemento – pergunta se pode recolher o prato remexido: Leve
essa merda e traga a conta.
FERRO
Pare de mexer nesse espeto, vai terminar se furando. O menino
nem dá bola, faz de espada o espeto de churrasco. Já está acostumado
a desobedecer. Foi criado na base da troca, sempre ganhando alguma
coisa para deixar de fazer algo errado. O que realmente dá prazer ao
pequeno malfeitor é desafiar os adultos até a exaustão. Para tornar o
teatro mais excitante, coloca-se em situações de risco. É bem verdade
que se deu mal em algumas artimanhas e já carrega cicatrizes, de
queimadura e corte, mas insiste, quer muito mais. Você devia ter
tomado o espeto dele, a culpa é sua, a culpa é sua!, repete a mãe na
antessala do centro cirúrgico.
ABISMO
José, o irmão mais novo, encontra Antônio, o mais velho, no
velório do avô. Não se viam há seis anos. Com o caixão entre eles, o
mais novo sussurra sem levantar o rosto: Existe um abismo entre nós.
O mais velho retruca na bucha, sem evitar os parentes chorosos: Um
abismo? Só se for um abismo em forma de caixão. É nosso avô morto,
meu irmão. José dá as costas, enfiando-se pelo meio dos parentes: Isso
não é hora para brincadeira. Sempre vai existir um abismo entre nós.
Antônio sussurra, como para si mesmo: Ô, meu irmão, deixe de
drama.
FERRUGEM
Estava enganado. Quer dizer, fora enganado pela ferrugem no
portão. Não havia mais exatamente um portão, visto que os ferros
tinham se dado quase completamente à oxidação. Ele olhou aquele
resto de portão, aquela caveira velha, e pensou com seus botões de
aço que ninguém mais deveria morar ali.
PRESENTE
Disse à filha que traria uma daquelas bonequinhas que vêm
dentro de um ovo cor-de-rosa. Ao filho, perguntou se preferia um
quebra-cabeça ou um labirinto. Como não obteve resposta, comprou
um de cada.
VENTO
Nem tirou a roupa de trabalho e foi logo pegar uma lata de
cerveja. Não era pra menos, sexta-feira de uma semana de cão. Quase
não conseguiam concretar a laje do trigésimo oitavo andar; ventou
demais. Ele, engenheiro de segurança, era só cautela, o freio da obra.
Abriu a latinha e ficou ali, enumerando espécies de vento: lufada,
ventania, ciclone, furacão, vendaval, brisa, tufão. Depois se levantou e
foi abrindo janelas e portas. Sentou-se novamente, enquanto o vento
derrubava os objetos da casa.
LIBERDADE
A liberdade o atingiu com sua ponta afiada. Furou muito pouco,
um furinho de nada. Certamente o teria levado à morte se não
vestisse armadura de aço.
COTIDIANO
Foi humilhado de forma displicente. Corriqueira a forma da
humilhação, como a do aperto de mão, do abraço, do aceno, do beijo
no rosto, do sorriso, do piscar de olhos (o conhecido que encontra o
outro; a vizinha que cruza com a outra; o professor que tem vergonha
da turma; o chefe que recebe o empregado; o padeiro que diz bom-
dia; a mãe que veste a filha; o enfermeiro que prepara o paciente; a
cozinheira que se esquiva; o pai que chama o filho que chama o neto
que chama). Foi humilhado mesmo assim, de forma tão displicente
que nem sabe da humilhação mais que um diminuto orifício.
DUELO
Combinaram um acerto de contas num lugar distante onde
ninguém pudesse vê-los. Foi tudo muito rápido: a pele de um se
desfez em grãos de areia, a do outro resistiu como um rochedo de
basalto.
ALÉM-MAR
O barqueiro mais experiente de Porto de Livramento está
construindo um barco diferente. Pensam que ele está caducando,
mas já estruturou todo o cavername, feito de galhos de mangue em
forma de cotovelo, e prepara as tábuas para o revestimento. Não
parece uma canoa, nem uma traineira, nem uma jangada (curto,
fundo, muito côncavo). Ele não diz nada sobre o que está construindo
e tem usado roupas diferentes para trabalhar, não mais as bermudas
velhas, as camisas puídas de sol e mar, os chinelos encardidos. No cair
da tarde, tem sido visto sozinho na praia, olhando para o horizonte
d’água como se não quisesse mais, definitivamente, pertencer ao
mundo da terra.
MORTE
Tem pânico de flores, de qualquer espécie. Já tentou de tudo
para se livrar desse sofrimento. Fez terapia, frequentou terreiros,
curandeiros. Só não foi a igrejas, porque associa qualquer templo
religioso a flores. Não come salada, não toma chá, suco, vinho, mel,
não usa perfume; nada que tenha relação com flores. É desnecessário
dizer que não veste nada que seja florido. Faz esforços incríveis para
evitar jardins e alamedas. Quando pensa na morte, congela
imediatamente, tem pavor de imaginar seu corpo depositado num
caixão repleto de cravos brancos e rodeado por coroas de flores. Quer
ser cremado, sem passar pelo velório. Não sabe de onde vem o pavor,
mas imagina que tenha ligação com uma certa flor roxa, esquisita,
parecida com uma vulva. Uma flor de trepadeira, ele pensa, mas
admite que possa ser de um arbusto qualquer. Não consegue se
lembrar porque não consegue pensar no tal espécime. Por acreditar
que a flor era roxa, também não suporta essa cor, nem o veludo. Não
sabe por quê, mas liga a flor-vulva ao veludo. Essa combinação é para
ele a própria definição da morte.
TEMPORAL
O céu queria preparar uma tempestade, estava se enchendo do
mesmo chumbo que ele vira na face dela, cheia de surpresa.
SAUDADE
Referia-se a ela como honesta e delicada. Depois, passou a dizer
que tinha sido apenas honesta. Com o passar dos anos, a honestidade
viria a ser a principal característica da família.
ESPERANÇA
Em circunstâncias normais, ou, no conceito dela,
convencionais, teria apoiado completamente qualquer atitude da
filha, mas aquilo estava completamente fora de sua capacidade de
aceitação. Feria seu patrimônio de crença e fé. Resolveu então não
implicar, dar tempo ao tempo, até que as coisas se ajeitassem. Deus
há de mostrar um caminho de luz a essa menina. Pelo menos essa
esperança ela nutria para a filha, já que o menino tinha se
profissionalizado nos empreendimentos das trevas.
ARRABALDE
A mocinha concordou em passar as tardes fazendo companhia à
avó. Em troca, estaria livre para sair à noite com as amigas, uma vez
por semana. Saía da escola direto para a casa da velha, uma das
últimas do bairro ainda não transformadas em ponto comercial ou
clínica. Em geral não queria o almoço preparado pela avó, preferindo
sanduíches que comia no sofá. Ali mesmo fingia que estudava,
divertia-se com o celular e dormia enquanto o filme da tarde rodava
no aparelho de televisão obsoleto. A avó evitava incomodar a neta e
passou a preferir o terraço de trás, apesar do sol poente que batia em
cheio naquela parte da casa.
DOCES
Balconista de lanchonete há tempos, nunca faltou ao trabalho.
Aos trinta e oito anos, ainda está solteira e mora sozinha. Faz
diariamente o percurso para a lanchonete sonhando como se
estivesse em sono profundo. Ao contrário de sua vida real, nos sonhos
é ousada. Como sonha acordada, escolhe os roteiros, os personagens e
as melhores locações. Acaba de introduzir em seus sonhos um senhor
de meia-idade que viu em uma parada de ônibus. Cabisbaixo, cabelo
grisalho, uma maleta de trabalho ao lado e uma grossa aliança, que
ela viu no dedo de sua mão esquerda. Imaginou-se amante dele:
encontros secretos, experiências sexuais meio violentas, brigas e
reconciliações arrebatadoras. Hoje, indo para o trabalho, fantasiou a
morte do amante. Já está de olho em outro senhor que viu
atravessando a rua, um pouco mais velho que o primeiro.
MÁGOAS
Trata as mágoas como se fossem uma fruta que se come aos
bagos e mantém a fruteira sempre cheia dessa espécie de fruta. No
café da manhã, descasca uma bem madura e espreme cada bago na
boca, deixando escorrer boas quantidades de caldo amargo. A esposa
jamais experimentou a fruta predileta do marido. Aliás, não sabe de
onde ele traz os espécimes e, até hoje, nem sequer aprendeu o nome.
SOMBRA
Uma mariposa, pequena, enfiou-se na bola do lustre da casa de
campo dos Vieira. A sombra de sua imagem aumentada, monstruosa,
ficou dançando pelas paredes. Os meninos, apavorados, imploraram
ao pai que tirasse o inseto dali. Achavam tudo na velha casa muito
assustador. O pai propôs sem sucesso que deixassem a luz da sala
apagada. Foi preciso subir num tamborete, soltar os parafusos da
boca do bojo e libertar o pequeno ser. Minutos depois: Pai, você soltou
mesmo? Continuo vendo uma coisa na parede.
PREMONIÇÃO
A prova de que tinha razão não tardou a chegar, mas os
sobreviventes da catástrofe continuaram com ódio, alegando que ele
não tinha sido muito enfático, que não tinha gritado, berrado.
AFAGO
Eu estava lá, anônimo e misturado à pequena multidão de
curiosos, olhando aquele corpo na esquina da morte como se nunca o
tivesse visto. Queria pousar minhas mãos sobre ele, ouvir a
exsudação da alma. Queria beijá-lo. Queria uivar, sujar-me naquele
sangue todo. Queria apanhar o corpo do amigo, enroscá-lo na dor
imensa e levá-lo pra casa. O corpo era do meu melhor amigo. Era meu.
PEDRA
Como de costume, chegou ao trabalho com a cara lítica. Era a
pior forma de demonstrar a raiva contínua que sentia. Revolvia-se
todo por dentro, mas a casca era pura pedra. Por obra de ironia
infame, o patrão havia lhe destinado um trabalho com marreta e
cinzel: quebrar todo o concreto de uma coluna até expor o esqueleto
de ferro.
ÁCIDO
Ela foi secretando o carbonato de seu rancor até criar o
exoesqueleto que exibe hoje: duro e branco. Detesta a acidez das
pessoas.
DOMINGO
A menina correu com os óculos do pai: apanhou na cara. O
menino mijou-se todo: havia apanhado na cara. A menina mijou-se
toda: apanhou na cara. A mãe levou outra garrafa, bem gelada: o pai
mijou-se todo.
RENASCIMENTO
O casal parou diante de outra estátua de mármore. O jovem
esposo não aguentava mais aquela aula de anatomia masculina,
repetida em cada praça, cada museu. Começava a se arrepender de
ter sugerido a lua de mel em Florença. Querido, olha que perfeição, dá
pra ver até as veias. É tão perfeito.
TRATO
O marido anda com uma tromba enorme. Ela já não fala mais
em suflê, ensopadinho, panqueca. Levou pra dentro de casa um
vocabulário novo: facção, cerco, acerto de contas, macaca, queima de
arquivo, mercadoria, chapa quente, quadrada. O marido, preso em
casa, está inchando. Seu esôfago esfolado está quase fora da boca.
Tem suado muito e gasta a aposentadoria precoce com cigarros e
palavras cruzadas. Não nasceu pra ser dono de casa e, se
arrependimento matasse, já estaria bem morto. Nunca deveria ter
aceitado ficar em casa para a mulher assumir o posto de delegada.
Também não gostava de televisão, nem tinha tempo. Agora, quando
cansa das palavras cruzadas, assiste aos filmes da tarde. Fica puto
porque nunca foi dado a emoções e tem ficado com os olhos
mareados, com nó na garganta. Outro dia passou do ponto e chorou
feito bezerro com a morte do herói no fim do filme, um pobre coitado
que depois de salvar tanta gente morreu só, viúvo e doente.
ALTO-MAR
Cada um sentou no lugar onde quis, como se tudo estivesse
orquestrado. Havia uma travessa de peixe frito e uma de peixe cozido
com legumes, e outras com arroz branco, farofa, batatas fritas. O
vinho era Merlot e o assunto deslizou da aposentadoria do pai até a
separação do filho mais novo, que, por estar vivendo um novo
romance, não estava presente. A musse de chocolate parecia mais
amarga depois da declaração do filho mais velho: sairia da sociedade
familiar para abrir uma empresa no mesmo ramo da pesca, mas em
alto-mar.
HOMEM
Chegou carregado. Trazia na boca um hálito mascado de
queixumes. Sentou-se como um porco, relaxou e arrotou. Depois
deixou o olhar cheio de ceroto vaguear pelas esquinas do quarto.
DESENCONTRO
Raimundo voltou tão diferente à cidade natal que não se pode
mais dizer que um dia tenha sido dali. Passeia pela praça principal
como um alienígena sob olhares oblíquos dos moradores locais.
Cruza os canteiros flutuando. Emite sons em frequências inaudíveis,
e sua coloração varia do verde fosforescente ao prateado. Entre os
que o observam atentos está Zé Fogueteiro, amigo de infância,
agachado bem rente ao chão, indefinido e tão opaco e áspero quanto o
chão que nunca deixou.
CONFIANÇA
Um camarada no balcão falou bem alto: O cara chamou a mulher
dele de cadela e ele não fez nada. Arrastou a mulher pra dentro de casa
e bateu a porta. Todo mundo viu. Se fosse comigo, eu quebrava a cara
dele. Matava aquele desgraçado. Outro ponderou: Homem, ele sabia o
que estava fazendo. Cada um sabe a mulher que tem. A discussão
seguiu transbordando dos copos até ser bruscamente interrompida.
O pomo da discórdia (o casal falado) passava bem na porta do bar, de
mãos dadas. O marido, o marido frouxo, o corno, vestia calça jeans,
camiseta listrada e tênis; ela, a cadela, mais alta do que ele, mais
encorpada, vestia um shortinho de nada, camiseta regata e sapatos de
saltos muito finos. Uma coisa linda.
CONCHA
Esse menino nasceu concha, falou a avó apontando para o frágil
neto com uma faca de cozinha. O gesto foi tão brusco e ofensivo que a
nora reagiu de pronto: Isso não é da sua conta, deixe o menino
encontrar o tempo dele. A pequena criatura retraiu os músculos de
molusco e contraiu-se toda para não deixar que a faca, cravada bem
na comissura de suas valvas, atingisse o seu abdômen secreto.
AVISTAMENTO
A menina entrou em casa assustadíssima. A coitada se tremia
toda, mais pálida que açúcar. Olhos esbugalhados, emoldurados pelas
sobrancelhas bem pretas, arqueadas até o meio da testa e a boca
cerrada, querendo gritar. Segurava a boneca pelas pernas, o cabelo de
náilon arrastado no chão. O que foi menina, viu alma?
FALÉSIA
Vestia calça de chão e camisa de reboco. Na cabeça, um chapéu
de telhas; como enfeite, uma franja de alpendre e umas cornijas.
Sentou-se à beira-mar e hospedou a solidão. Desafiava ondas e
ventos, entregando-se à erosão de sua longa existência.
CAVERNA
A saudade da família cresce pelo teto do crânio de Leonardo sob
a forma de belas estalactites (órgãos, trompas, castiçais, agulhas,
lustres, cascatas, cortinas). Já as estalagmites do desejo de voltar,
essas ele não permite que se desenvolvam. Aprendeu a quebrá-las
logo no começo, rangendo os dentes com força.
METEORITO
O menino, tamanho de nada, entrou na sala e ficou ali escorado
numa coluna. Os bracinhos cruzados e os olhos bem atentos aos
movimentos dos adultos. A conversa, acalorada, girava em torno da
existência de Deus. Escutou um pouco, analisou e tomou posição: Eu
acredito em panspermia. A palavrinha final destruiu a sala como um
meteorito.
MÚSICA
O avô (músico de um tradicional bloco de frevo) contou ao neto
que quando era moço saía pela noite com a turma pra fumar uns
troços e tomar chá de trombeta. Chá de trombeta?
ECONOMIA
Segundo o rebelde Lantier, a resiliência de sua família chega a
ser indecente. Depois de cada crise, financeira ou emocional, cada
membro do clã dos Lantier se recupera como um líquen ressecado,
que renasce ao contato com a menor quantidade de água. Para ele,
isso nunca foi uma qualidade. Ao contrário, vê como uma forma de
passividade, como se cada um já estivesse programado para o
fracasso, tendo em vista que se erguerá, juntamente com toda a
família. Lantier, o rebelde, resolveu quebrar a regra: foi abandonado
pela mulher, perdeu o emprego e se tornou dependente químico. Ele
recusa incondicionalmente a ajuda da família. Prefere ir levando
assim e se refere ao pardieiro onde está morando como Palácio
Lantier. Nos períodos em que se encontra menos drogado, rabisca
inúmeros pensamentos sobre o texto de uma edição de 1944 de O
capital.
REQUALIFICAÇÃO
O corretor abriu com dificuldade a porta do velho galpão. Os
jovens empresários entraram com muito cuidado para não sujar os
sapatos e as roupas de grife. O mais velho, vestindo blazer cor de
areia, apontou com os óculos escuros para os restos de objetos
estranhos espalhados pelo chão: Coisa de um desajustado mental.
Pairava nele uma sensação de constrangimento, pois os restos do que
via, restos de esculturas, pareciam ser pedaços de uma anatomia da
perversão. Restabelecendo-se, barganhou o preço do imóvel alegando
que o artista havia deixado tudo muito deteriorado, além de ter
desvalorizado o ponto comercial com sua atividade (no mínimo)
suspeita.
FERRAMENTA
Depois de ter sido preterido por um homem mais velho, Amaro
gastou a juventude com amargor, desfolhando humor putrefato e
repelindo qualquer forma de prazer. Atualmente está mais animado.
Cantarola entre as gôndolas de alicates, parafusos, puas, pés-de-
cabra, torqueses e serrotes da loja de ferragens em que trabalha há
dez anos. A significativa perda de peso lhe caiu bem: face mais
angulosa, corpo mais longilíneo. As colegas da loja dizem que está
mais bonito e que o sofrimento amoroso lhe caíra como verdadeiro
elixir: É outro homem. Amaro está quase convencido disso, veste-se
melhor, faz a barba todos os dias e cuida dos cabelos grisalhos. Está
melhor, sem dúvida. Finalmente parece ter encontrado a fórmula
para curar sua longa e sofrida desilusão: cauterização total do órgão
mais afetado, o coração.
EMPREENDEDORISMO
É prego batido e ponta virada, não assino, disse enquanto
devolvia o projeto e o cheque. O contratante, do alto de sua sabedoria
empreendedora, nem tentou contra-argumentar, tinha certeza de
que encontraria outro profissional menos ético, para usar uma
palavra repetida pelo ex-contratado. Se porventura não encontrasse,
com certeza haveria um mais necessitado e, portanto, menos ético.
De uma coisa tinha certeza: a porra do resort sairia do papel e
venderia feito água.
VIDÊNCIA
Ele conseguira ludibriar o destino inúmeras vezes. Havia sido
praticamente um especialista nisso. Ninguém podia imaginar que
terminaria assim. Foi pura distração. A irmã até hoje discorda.
Insiste em afirmar que não foi distração. Ela é vidente, sensitiva, e
estava do lado dele quando tudo aconteceu. Diz que ouviu o zumbido
da morte, mesmo sendo da morte dele. Ela acredita e apregoa que não
há como escapar do desfecho final quando se ouve esse zumbido, e
sendo assim, seu irmão, tão esperto, tão escorregadio, não tinha
mesmo o que fazer. Quando o zumbido vem, laborioso como só ele sabe
ser, pode ter certeza: é morte certa.
RESSURREIÇÃO
A segunda vida de Geraldo começou de forma brusca. Até os
dezessete anos, dois meses e três dias tinha sido um adolescente
absolutamente normal. Num jantar de domingo, com a família toda
reunida, trancou-se no banheiro. Não fez nada contra ninguém,
simplesmente surtou. Mas para a família foi como se Geraldo tivesse
se tornado autor de uma chacina. Nunca mais aconteceram os
jantares de domingo.
CINZAS
Quando eu morrer, jogue minhas cinzas no curral lá da fazenda,
tá ouvindo? Tô ouvindo, sim senhor, mas agora dobre as pernas que eu
preciso fazer o asseio no senhor. O velho puxava conversa com os
enfermeiros pra ganhar um tempinho. No curral, tá ouvindo? Tô
ouvindo, sim senhor. Quando aparecer um parente do senhor aqui eu
digo, agora dobre as pernas.
HERÓI
Era covarde, mas lutou até o fim. Lutou como lá nos confins do
mundo, onde o medo faz a curva e se volta contra si mesmo.
DESTILAÇÃO
O doutor Carlos Brunnet é botânico, assim como foram seu avô
e seu pai. Seu avô chegou da França em 1910 e se estabeleceu no Rio
de Janeiro, de onde saiu inúmeras vezes para incríveis expedições de
coleta de espécimes. Aposentou-se como pesquisador do Jardim
Botânico e morreu no sul da França. O pai de Carlos Brunnet foi
professor universitário e está aposentado. Atualmente, apenas por
amor às plantas, dedica-se ao cultivo de ervas aromáticas. O doutor
Carlos optou pelo uso comercial dos vegetais. Sempre impaciente em
sua longa bata branca, destila o terrível humor mucilaginoso na
vidraria das bancadas de inox do Laboratório Farmacêutico Laccoc &
Brunnet.
QUELOIDES
A regra ainda vigente naquela família de sobrenome tradicional
era não mexer no passado. Gente forjada de uma pasta de
conveniências econômicas e ajustes pessoais. Assim cresceu o
primogênito, desconhecendo a história dos antepassados e até a dos
pais. O mais novo, temporão, mal sabia ler e já dava sinais de que não
aceitaria tal regra. Aqui e ali soltava umas perguntas que deixavam os
adultos completamente desconcertados. Não demoraria muito a
tocar no assunto das cicatrizes ornadas por queloides altos que a mãe
exibia nos pulsos. A origem das estruturas cicatriciais jamais havia
sido investigada pelo mais velho; o temporão, do alto de sua tenra
idade, foi direto: Por que você tentou suicídio, mamãe?
BOTÂNICA
Ela gostava de antúrios. Depois passou a gostar de orquídeas.
Ele de bonsais, depois de árvores frutíferas de grande porte. O filho,
quando menino, gostava de arbustos, de touceiras de mato. Adulto,
aprendeu a gostar de gramados, de campos abertos.
RAIVA
A cadeira espumava feito cão raivoso, e ele sentado nela. O
espaldar rosnava. As pernas tremiam, e ele sentado nela, domando-
lhe o instinto com seu peso pouco.
MARÉ
Calçava a tranquilidade de sempre. Preguiça, para os
moradores da vila, mas para ele era uma filosofia de vida: trabalhar só
o suficiente para sobreviver, ou melhor, para viver. Acordou
tranquilo, sereno, lerdo, assoviando para a manhã como se o dia não
fosse acontecer. Lavou o rosto lentamente. Enxugou-se, arrastou-se
até o varal e pendurou a pequena toalha. Gastou um tempão nisso.
Vida boa, não é, seu João? E se lançou nos afazeres estritamente
necessários. No fim da tarde, a bola do sol caindo no horizonte do
manguezal, apressou-se em pensar umas coisas antes do anoitecer.
Botou na cabeça que teria que pensar antes do breu. Sentiu uma
agonia no peito, uma agitação diferente. Levantou-se do tamborete,
caminhou rápido pela única rua da vila de pescadores e invadiu o
escritório da Pousada da Maré: Doutor, ainda quer comprar o sítio? Se
quiser, é seu.
LIRISMO
Acordou lírico. Arriou-se da cama ao chão como um punhado de
cascalho rolando no leito de um rio. Depois, ajeitou-se em forma
humana, mas ainda pouco ereta. Esticou a coluna vertebral, despiu-
se da sujidade lamosa da noite e foi para o gabinete, mascando as
palavras que havia selecionado dos sonhos. Abriu as janelas e deixou
a luz atravessar seu corpo, tomar conta das estantes, do tapete, da
poltrona, do tampo da mesa de trabalho. Às sete horas da manhã
estava preparado para escrever um poema lírico. Sentou-se, abaixou
a cabeça e, como se assaltado pela luminosidade, perdeu as palavras.
Com muito esforço, tentava arrastar uma presa no redemoinho dos
seixos da noite. Ficou ali, apertando o crânio. No fim da manhã,
abrandado o fluxo de seu esforço, contentou-se em decantar uma
película de argila, mas a dita palavra não pousava na matéria fina.
ARREPENDIMENTO
Não esperava aquela recepção tão fria. É certo que, depois de
tudo, não esperava beijos e abraços fraternos, mas queria pelo menos
a ternura dos filhos.
POESIA
Ele falava em poesia, mostrava manchas de lodo nas paredes
velhas, apontava para as nuvens avermelhadas do pôr do sol, dizendo
Que lindo! Gostava da chuva, das plantas ornamentais e até das ervas
vulgares do mato, dos sapos da chuva, dos grilos, do café benfeito –
servido em xícara de porcelana fina –, dos filmes difíceis, obscuros –
O ano passado em Marienbad, vamos? –, do silêncio, da música quase
inaudível – Que lindo. Ela não gostava de poesia, de nada que tivesse a
ver com poesia. Isso no começo. Depois passou a odiar poesia, coisa
de quem não tem o que fazer.
MORTE PREMATURA
Trancafiar-me-ei das carnes ralas até os ossos fracos. Hei de
ficar tão recolhido que minha velhice será dada como inexistente. No
meu epitáfio: “José, o que morreu sem a velhice”.
ÍNDICE
MELANCOLIA
GEOGRAFIA
SONHO
LEGADO
ACIDENTE
DESAPARECIDO
PASSADO
ROTINA
ATAQUE
MEU FILHO
HERANÇA
REDENÇÃO
PONTARIA
MANTRA
REGRESSO
CULPA
MATÉRIA
ARQUITETURA
VELÓRIO
FUTURO
SOL
CURIOSIDADE
SOLIDÃO
DEVIR
VERGONHA
CELEBRAÇÃO
RECONCILIAÇÃO
CORPORAÇÃO
RESSACA
TRAIÇÃO
DESPEDIDA
VINGANÇA
SOLIDARIEDADE
UTOPIA
RELICÁRIO
NEOCAPITALISMO
PAISAGEM
INSTINTO
SONO
DESTINO
ANIVERSÁRIO
NUVEM
SEGURO
BRANCO
ÚLTIMO ATO
FEBRE
FALTA
VÁCUO
MARESIA
EPÍLOGO
CARNE FRIA
FERRO
ABISMO
FERRUGEM
PRESENTE
VENTO
LIBERDADE
COTIDIANO
DUELO
ALÉM-MAR
MORTE
TEMPORAL
SAUDADE
ESPERANÇA
ARRABALDE
DOCES
MÁGOAS
SOMBRA
PREMONIÇÃO
AFAGO
PEDRA
ÁCIDO
DOMINGO
RENASCIMENTO
TRATO
ALTO-MAR
HOMEM
DESENCONTRO
CONFIANÇA
CONCHA
AVISTAMENTO
FALÉSIA
CAVERNA
METEORITO
MÚSICA
ECONOMIA
REQUALIFICAÇÃO
FERRAMENTA
EMPREENDEDORISMO
VIDÊNCIA
RESSURREIÇÃO
CINZAS
HERÓI
DESTILAÇÃO
QUELOIDES
BOTÂNICA
RAIVA
MARÉ
LIRISMO
ARREPENDIMENTO
POESIA
MORTE PREMATURA
© Cosac Naify, 2015
© José Rufino, 2014
IMAGEM DE CAPA Silhueta a partir de escultura de José Rufino Intentio animae, 2012.
COORDENAÇÃO EDITORIAL Marta Garcia
ASSISTENTE EDITORIAL Raquel Toledo
PREPARAÇÃO Beatriz Antunes
REVISÃO Cristina Yamazaki, Cecília Floresta
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL Gabriela Castro
ADAPTAÇÃO E COORDENAÇÃO DIGITAL Antonio Hermida
PRODUÇÃO DE EPUB EquireTech
Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
O autor agradece a Carmem Hanning e Jair Mari
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Rufino, José [1965-]
Afagos: José Rufino
São Paulo: Cosac Naify, 1ª ed., 2015
208 pp.
ISBN 978-85-405-0934-4
1. Ficção brasileira I. Título
CDD 869.93
Índices para catálogo sistemático:
I. Ficção: literatura brasileira 869.93
Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo,
Secretaria da Cultura, Programa de Ação Cultural 2015.
COSAC NAIFY
rua General Jardim, 770, 2ọ andar
01223-010 São Paulo SP
cosacnaify.com.br [11] 3218 1444
atendimento ao professor [11] 3218 1473
[email protected]Este e-book foi projetado e desenvolvido em fevereiro de
2015, com base na 1ª edição impressa, de 2015.
FONTES Abril Text e Circular