UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CURSO DE APERFEIÇOAMENTO
EDUCACAO ESCOLAR
QUILOMBOLA
perspectivas antirracistas e
praticas emancipatorias
Coordenação geral de educação étnico-racial
e educação escolar quilombola
DIPERQ/SECADI-MEC
2024
EDUCACAO ESCOLAR
QUILOMBOLA
perspectivas antirracistas e
praticas emancipatorias
Somos negros de valor
Poesia-Homenagem a memória do meu pai,
cortador de cana (lavrador)
Dalma dos Santos
Sou da raça Quilombo Machadinha
Sou da cor
Eu sou negro, sim senhor.
Vou fazer o meu gingado, Eu sou negro de engenho
Vou deixar o meu gingado
Negra para você gostar E da cana de açúcar
Somos negros de valor
Danço capoeira e luto. Não aprendi e não sou culto
Trabalhamos a vida toda
Rodo e saio do lugar Trabalhei a vida toda
Para enriquecer senhor
Rodo e saio do lugar Nunca recebi um lucro
Mas fique você sabendo
Capoeira no meu pé Cortei coco e bananeira
Que ser negro é ser gentil
Dim, dim no berimbau Plantei cana e bambuzal
Trabalhei como escravo
Eu sou negro, quem tu és? Tirei mato a vida inteira
Mas enriqueci o Brasil.
Minha cor eu reconheço Dentro do canavial.
Pode crer e bota fé.
organizadoras:
Rai Soares
Hayda Alves
Jéssica Monteiro
Rute Costa
Gessiane Nazario
EDUCACAO ESCOLAR
QUILOMBOLA
perspectivas antirracistas e
praticas emancipatorias
Quissamã, RJ
2024
Educação escolar quilombola: perspectivas antirracistas e práticas emancipatórias
Copyright © 2024 Rai Soares, Hayda Alves, Jéssica Monteiro, Rute Costa e Gessiane
Nazário (Orgs.) e Editora Revista África e Africanidades
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, 19/02/1998. É proibida a
reprodução total ou parcial sem a expressa anuência das organizadoras e da editora.
Equipe do projeto:
Rai Soares
Hayda Alves
Jéssica Monteiro
Edson Teixeira da Silva Jr
(Coordenação)
Rute Ramos da Silva Costa
Gessiane Ambrosio Nazario
Fernanda de Moura Borges
(Pesquisadoras)
Célia Maria Patriarca Lisboa
Elza da Silva Borge
Gabriella Conceição Dias
Janaína Pessanha Patrocínio
Maria Augusta Leite de Santana
Roselene Pereira da Conceição
Waldelilo Santos de Mello
(Tutores)
Desenhos: Sara Gaspar
Fomento: SECADI/MEC - TED 12816
Boas-vindas!
É com enorme satisfação que damos boas-vindas aos cursistas do Curso de
Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola: perspectivas
antirracistas e práticas emancipatórias em territórios da Região dos Lagos
e Norte Fluminense.
Esta iniciativa é fruto de articulação entre a UFF-Rio das Ostras, a UFRJ-
Macaé e o IFF-Quissamã e de parceria entre a UFF e o MEC, por meio da
Coordenação Geral de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar
Quilombola (CGERQ), da Diretoria de Políticas de Educação Étnico-Racial e
Educação Escolar Quilombola (DIPERQ), da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão
(SECADI). Também contamos com o apoio das Secretarias Municipais de
Educação dos municípios de Búzios, Cabo Frio e Quissamã, da Coordenadoria
Municipal de Políticas para a Igualdade Racial de Quissamã, além de
Associações Quilombolas dos Quilombos da Região dos Lagos e de
Machadinha.
O Curso visa contribuir com a formação continuada de professores/as,
gestores/as, coordenadores/as e lideranças quilombolas para o
desenvolvimento de abordagens e instrumentos pedagógicos adequados à
educação escolar quilombola em perspectiva antirracista, decolonial e
emancipatória.
Assim, almeja colaborar com a implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ) a fim de qualificar o
diálogo e potencializar as aprendizagens junto às comunidades quilombolas
em perspectiva territorializada, que neste caso, diz respeito a quilombos da
Região dos Lagos e Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro.
É importante destacar, que se trata de um material preliminar a ser
aprofundado e melhorado a partir de encontros, mediante leituras e debates
atravessados por vivências do fazer pedagógico cotidiano.
Esperamos estimular a todos/as a contribuir com
a Educação Escolar Quilombola!
sumário
Apresentação ......................................................................................... 7
Territórios quilombolas do RJ ............................................................ 12
Unidade I - História do movimento quilombola no Brasil:
territorialidades e lutas contemporâneas
................................................................................................................. 16
Gessiane Nazário
Unidade II - Memória, saberes e diversidade cultural quilombola
..................................................................................................................32
Rute Costa; Hayda Alves
Unidade III - Ancestralidade, religiosidades e práticas antirracistas:
a sustentabilidade ambiental nos territórios
..................................................................................................................42
Gessiane Nazário; Fernanda Borges
Unidade IV - Construção do PPP: articulação entre escola e
comunidade
............................................................. ....................................................60
Jéssica Monteiro; Rai Soares
Referências ............................................................................................69
7
apresentação
Educação Escolar Quilombola:
“A educação voltou!”
Zara Figueiredo
Secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos,
Diversidade e Inclusão
Wilma de Nazaré Coelho Baía
Diretora de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar
Quilombola
Eduardo Araújo
Coordenador Geral de Educação Étnico-racial e Educação Quilombola
Maria Clareth Gonçalves Reis
Coordenadora de Educação Étnico-racial e Educação Quilombola
7
7
O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023/2026),
com início em janeiro de 2023, destacou como pauta prioritária junto ao
Ministério da Educação (MEC), a construção de uma educação equânime
que enfrente de forma efetiva as estruturas racistas de nosso país. Assim,
o Governo Federal sinalizou ao Ministro da Educação Camilo Santana a
demanda estrutural para a recriação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão
(Secadi), a qual foi criada em 2004, no primeiro mandato de seu governo
e, descontinuada em 2019 pelo governo anterior.
Agora, a secretaria é liderada pela Professora Zara Figueiredo, nesta
reestruturação, agregou uma diretoria específica para tratar das políticas
de educação étnico-raciais e de educação escolar quilombola (DIPERQ),
atualmente sob a direção da Profa. Wilma de Nazaré Coelho Baía.
A Secretária Zara Figueiredo desde logo apontou para o princípio da
equidade enquanto direcionamento de todas as políticas da Secadi. Para
dar forma e conteúdo nas políticas educacionais relacionadas aos
desafios das questões étnico-raciais.
O MEC – fundado em 1930 – constituí, pela primeira vez, uma Diretoria
voltada para atuar especificamente na pauta étnico-racial, neste sentido,
é de fundamental importância o trabalho de diagnóstico, monitoramento
e coordenação em torno da implementação da Lei de Diretrizes e Bases
(Lei nº 9.394/96), conforme alteração realizada pela Lei nº 10.639/2003.
A DIPERQ, possuí duas Coordenações Gerais, a de Formação Continuada
para Relações Étnico-Raciais e Educação Quilombola (CGFERQ),
Coordenação Geral de ERER, e outra dedicada à Educação Étnico-racial e
Educação Quilombola (CGERQ), Coordenação Geral de EEQ, a primeira
sob coordenação de Valquíria Santos e a segunda pelo Prof. Eduardo
Araújo.
A reorganização estrutural e funcional da SECADI com a inserção da
DIPERQ assume como uma de suas atribuições fundamentais a
elaboração uma agenda que sistematize o trato jurídico, curricular e
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7
a aplicabilidade da Lei nº 10.639/2003 que, em vias de completar 20 anos
de existência, segundo a Literatura Especializada, ainda enfrenta
dissonâncias entre o regulado e regulamentado na Escola Básica.
Considerando que a Lei nº 10.639/2003 completou 20 anos, o
tratamento dos temas voltados para o ensino da história e cultura afro-
brasileira e africana em todo sistema de educação precisa ser
aperfeiçoado, e a criação da DIPERQ demonstra o interesse do governo
federal de que a legislação seja consolidada em todo país.
Agregado ao corpo normativo, dentro da ambiência que se propõe
observar, a DIPERQ se articula com o previsto pela Resolução nº 08, de
novembro de 2012, do Conselho Nacional de Educação, que estabelece
as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola
(DCNEEQ), o empreendimento de trabalho posto pela DIPERQ para
construir e implementar políticas públicas em parceria com todas as
secretarias do MEC e as suas autarquias resguardando as suas
competências, fundamentadas em 03 eixos estruturais: Currículo,
Formação de Professores(as) e Livro Didático, em uma agenda que
reconheça e garanta o protagonismo das comunidades quilombolas
dentro de suas organicidades e complexidades culturais.
Outro desafio posto, a partir da Resolução nº 08, de novembro de 2012,
do Conselho Nacional de Educação, que estabelece as DCNEEQ, trazer os
sujeitos de direitos quilombolas enquanto protagonistas de sua
modalidade e que os Estados e municípios busquem a regulamentação
em suas esferas de atuação.
Neste sentido, a criação da Comissão Nacional de Educação Escolar
Quilombola – Portaria nº 988, de 23 de maio de 2023, demonstra a
vontade institucional do atual governo federal em constituir uma Política
Nacional para a Educação Escolar Quilombola de modo consultivo com
diversas representações do Brasil que atuam com o tema.
O compromisso da DIPERQ é dialogar – e propor ações efetivas – com
todas as instâncias do MEC, Secretaria de Educação Básica, Secretaria de
Ensino Superior, Secretaria Executiva, Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica, na própria SECADI com as interfaces da
Educação no Campo, Escolar Indígena, Alfabetização e Educação de
Jovens e Adultos e as demais instâncias vinculadas ao MEC, Estados e
municípios.
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7
A SECADI vem construindo as possibilidades para que as DCNEEQ sejam
implementadas, dentre as diversas ações destaca-se a implementação de
Cursos de Formação Continuada – Aperfeiçoamento. Em 2023 são 07
Cursos em Educação Escolar Quilombola com as seguintes instituições de
ensino superior: Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal
de Minas Gerais, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Universidade Federal do Oeste da Bahia, Universidade Federal de
Pernambuco, Instituto Federal Baiano e Instituto Federal do Pará, com o
total de 1.200 vagas ofertadas para professore/as e gestores/as.
Entendemos que os Cursos poderão auxiliar na implementação do
Programa Escola Quilombo - Cursos de Aperfeiçoamento em Educação
Escolar Quilombola - que visa estabelecer um fluxo de formação
continuada de profissionais da educação das redes públicas municipais e
estaduais com a participação social e das instituições superiores de
ensino.
Neste sentido, as 100 vagas ofertadas para o Curso de Aperfeiçoamento
em Educação Escolar Quilombola: perspectivas antirracistas e práticas
emancipatórias em territórios da Região dos Lagos e Norte Fluminense
(RJ), em parcerias estabelecidas com as Secretarias Municipais de
Educação de Quissamã, Búzios e Cabo Frio; com a Coordenação
Municipal de Políticas para a Igualdade Racial da Prefeitura de Quissamã;
o Instituto Federal Fluminense, campus Quissamã e a UFRJ- campus
Macaé, são constituintes deste novo tempo para a Educação Escolar
Quilombola no Brasil.
O compromisso da DIPERQ é dialogar – e propor ações efetivas – com
todas as instâncias do MEC, Secretaria de Educação Básica, Secretaria de
Ensino Superior, Secretaria Executiva, Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica, na própria SECADI com as interfaces da
Educação no Campo, Escolar Indígena, Alfabetização e Educação de
Jovens e Adultos e as demais instâncias vinculadas ao MEC, Estados e
municípios.
Recentemente, quando da sanção - ampliação da Lei de Cotas (que
reconhecem os quilombolas enquanto público das ações afirmativas), na
presença do Presidente Lula, do Ministro Camilo Santana e da Secretária
Zara Figueiredo, as pessoas no auditório do Palácio do Planalto saudavam
o ato com sonoros gritos de “A educação voltou, a educação voltou”.
10
7
Nos enche de esperançar, como disse o patrono da educação, Paulo Freire,
saber que o Curso de Educação Escolar Quilombola apresenta um material
didático produzido pelo próprio curso e para o próprio curso que servirá de
horizonte para novos percursos da Educação Escolar Quilombola. Seguiremos
instituindo esta secretaria como um canal de interlocução ativa e orgânica
com os nossos povos culturalmente diferenciados para, em articulação e
parceria com outras secretarias, ministérios e coordenações estabelecer
pontes com os poderes na construção de uma educação antirracista.
A educação voltou, a Educação Escolar Quilombola resiste e vocês são as
protagonistas dessa história que vem de longe e vai além.
11
territórios quilombolas do RJ
Segundo Relatório desenvolvido pela Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj) em
parceria com a KOINONIA - uma organização ecumênica (KOINONIA;
ACQUILERJ, 2021), o Estado do Rio de Janeiro possui 52 comunidades
quilombolas.
.
Mapa do Estado do Rio de Janeiro com destaque para municípios com
territórios quilombolas alcançados por este Curso.
Elaboração: Cassio Villani dos Santos
12
Na Região da Baixada Litorânea estão localizadas 11
comunidades quilombolas, conforme descrição do SAIBA MAIS!
mapa abaixo.
As comunidades quilombolas de Rasa e Maria
Joaquina estão diretamente incluídas como
parcerias deste projeto. Além destas, as demais
comunidades da Região dos Lagos (Baixada Fascículos da Cartografia
Litorânea) apoiam e participam das ações. Social do QUIPEA.
(QUIPEA, 2023)
Mapa dos territórios quilombolas da Baixada Litorânea do Rio de Janeiro.
Elaboração: Cassio Villani dos Santos
13
Na Região Norte Fluminense estão localizadas 11 comunidades quilombolas.
No município de São Francisco de Itabapoana localizam-se as comunidades
quilombolas de Barrinha e Deserto Feliz.
Já em Campos dos Goytacazes estão localizadas as comunidades quilombolas de
Aleluia, Cambucá, Batatal e Conceição do Imbé.
A Comunidade Quilombola Machadinha, situada no Município de Quissamã (RJ), é
composta por um grupamento de cinco territórios: Fazenda Machadinha, Sítio
Santa Luzia, Bacurau, Sítio Boa Vista e Mutum, conforme descrição do mapa a
seguir.
Mapa das comunidades quilombolas de Quissamã, Rio de Janeiro.
Elaboração: Cassio Villani dos Santos
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Os quilombolas da Região dos Lagos, especialmente os dos municípios de
Búzios e Cabo Frio possuem uma luta nacionalmente conhecida, em virtude dos
conflitos em torno da especulação imobiliária em seus territórios, culminando,
inclusive, com ameaças de morte. Neste sentido, a escolha dos municípios e
comunidades quilombolas envolvidas, tem como objetivo fortalecer a
comunidade em termos de política educacional, contribuindo para
conscientização em torno da mobilização para os direitos territoriais dentro do
espaço escolar.
Os Quilombos da Rasa e Maria Joaquina estão incluídos diretamente neste
Curso, portanto, os municípios de Búzios e Cabo Frio são parceiros nesta
formação.
Já na Região Norte Fluminense, apenas o Quilombo da Machadinha, que fica no
Município de Quissamã foi incluído nesta formação, em virtude de ter uma
trajetória em torno das DCNEEQ. Inclusive, a implementação das DCNEEQ
constitui-se uma das pauta de luta da Arquima (Associação de Remanescentes
do Quilombo Machadinha).
A partir de parcerias entre a Arquima, a gestão municipal de Quissamã, a
UFF/campus Rio das Ostras, a UFRJ/ Centro Multidisciplinar Macaé e o NEABI
da UENF, vem sendo desenvolvidas atividades formativas na Escola Felizarda
Maria da Conceição de Azevedo - localizada no território de Machadinha. Ao
potencializar o fortalecimento de ações para a implementação das DCNEEQ,
tornando-se, inclusive, referência para outras comunidades quilombolas, esta
inciativa torna-se convergente aos objetivos deste Curso.
15
unidade i
História do movimento quilombola
no Brasil: territorialidades e lutas
contemporâneas
Gessiane Nazario
16
Fotografia de Sidnei Peres
"Minha arma é minha
enxada, minha foice,
porque eu limpo a terra"
Afonso dos Santos
Quilombo Caveira
Revolta do Cachimbo
de Gessiane Nazario
(2022, p.98; 175)
17
unidade i
Fonte: Site Conaq
História do movimento quilombola
no Brasil: territorialidades e
lutas contemporâneas
Ementa
Refletir sobre os territórios quilombolas como territórios dinâmicos de luta e
resistência que asseguram modos de vida particulares, ressignificados por
comunidades negras rurais formadas em sua maioria no pós-abolição.
Objetivos
Oferecer às cursistas e aos cursistas uma reflexão em torno da formação
do movimento quilombola no Brasil a partir de suas histórias vinculadas
ao território e a consequente luta para permanecerem nele;
Compreender o fenômeno através de eventos históricos cruciais como a
Lei de Terras de 1850, o pós-abolição, a constituição de 1988, a fundação
da CONAQ, o decreto 4887/03, a Resolução Nº 8 de novembro de 2020;
Oferecer uma reflexão em torno das histórias das comunidades
quilombolas participantes do projeto.
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ENTENDENDO A LUTA HISTÓRICA POR DIREITOS
Para se pensar a Educação Escolar Quilombola, é necessário nos remeter ao
histórico de organização de luta política, em torno de direitos, das
comunidades negras rurais que se formaram no período histórico do pós-
abolição.
De fato, a História do Movimento Quilombola é também a história de criação
da Coordenação Nacional das Comunidades Rurais Quilombolas (CONAQ).
Por isso, vamos entender um pouco o caminho dessas pessoas até chegarem
a construir a CONAQ.
É importante compreender que os movimentos sociais simbolizam um
conjunto de ações coletivas que de
Fotografia objetivam a reivindicação de melhores
Jessica Monteiro
condições de vida a partir de um viés contestatório, objetivando a construção
de uma nova sociabilidade (1). O principal viés contestatório das
Comunidades Quilombolas no Brasil é o território. Dessa forma, vamos olhar
um pouco para a história e entender a importância do território para as
quilombolas e os quilombolas.
Sabemos que os primeiros africanos escravizados no Brasil chegaram por
volta do século XVI. É importante desconstruir a visão passiva sobre as
pessoas escravizadas que prevalece em muitas narrativas históricas. Durante
os séculos de escravidão no Brasil, aconteceram muitas revoltas e várias
formas de resistência por parte dos africanos e afrodescendentes. Com a
decadência do sistema escravista e com as revoltas, foi possível algumas
conquistas importantes já no século XIX, tais como a Lei do Ventre Livre e a
Lei dos Sexagenários. A Lei do Ventre Livre, por exemplo, abria o precedente
para que os donos das fazendas se responsabilizassem pela educação desses
nascidos livres. Infelizmente, os fazendeiros não cumpriam as leis. Apesar
disso, a Lei do Ventre Livre possibilitou uma geração de pessoas nascidas
livres, impactando a formação dessa sociedade escravocrata e
enfraquecendo cada vez mais esse sistema.
Sugestões de leitura sobre as trajetórias dos/as ex-escravizados/as no pós-abolição.
Notas
19 (1) Referência: Aquilombar-se. Bárbara Oliveira Souza. Curitiba: Appris, 2016.pág. 129.
O SÉCULO XIX E A QUESTÃO QUILOMBOLA EM
ARMAÇÃO DOS BÚZIOS E CABO FRIO.
O século XIX é importantíssimo para compreendermos o que são as
comunidades quilombolas de hoje. Nas últimas décadas da escravidão,
também aconteceram muitas fugas em massa, além de intensa mobilização
popular para pressionar o fim da escravidão, principalmente nas áreas
urbanas.
Vamos começar a pensar a história dos escravizados a partir de 1850. Nesse
ano, foi promulgada a primeira lei de regulamentação fundiária no Brasil.
Adiante, entenderemos as implicações dessas legislações localmente na
Região dos Lagos.
Fotografia de Jessica Monteiro
A Lei de Terras de 1850 garantiu que grandes proprietários de terra
recorressem ao governo para obter subsídios e ampliar ainda mais os seus
latifúndios. Por outro lado, restringiu que pequenos proprietários e ex-
escravizados tivessem meios para adquirir terras por meio de compra. Essa
Lei não reconheceu as formas de ocupação coletivas existentes que,
consequentemente, não possuíam formalização jurídica.
O fim do regime escravocrata no Brasil sem a garantia de indenização e
reparação histórica às pessoas escravizadas gera um grave problema de
desigualdade na sociedade brasileira, pois sequer elas tiveram o direito de ter
um pedaço de terra para viverem de seu próprio trabalho.
Quando ouvimos os mais velhos das comunidades quilombolas, que guardam
em suas memórias as histórias que ouviram de suas bisavós e/ou avós que
foram escravizadas, percebemos o quanto foi custoso para que eles e elas
sobrevivessem sem ter para onde ir e sem ter nada, apenas a muda de roupa
que vestiam. Muitas famílias da Região dos Lagos do Rio de Janeiro, por
exemplo, resolveram aceitar o acordo imposto pelos fazendeiros que foi o
“arrendamento”. O arrendamento consistia no liberto trabalhar nas lavouras
do fazendeiro sem receber o pagamento, mas podendo ter a sua casa e a sua
roça nas terras da fazenda. Ou seja, o regime escravocrata continuava sob
uma nova configuração. Observe o depoimento de algumas/alguns
descendentes desses/as escravizados/as:
“Os escravos não tinham nada! Eles não tinham roça, não tinham nada. Quando a
escravidão acabou, ficou tudo aí.... Eles iam morrer de fome, não tinham comida. Iam pra
onde? (...). Foi ali na Vila Verde que eu nasci. Ali era só sertão, era só mato... um caminho
de paina (local conhecido como Palhada), tinha um antigo frechal muito assombrado. ”
Eva Maria Conceição Oliveira, 113 anos. Depoimento retirado do fascículo Cartografia
Social do Quipea. Pág. 5 (2)
Notas
(2) Depoimentos disponíveis em https://online.fliphtml5.com/jwdlh/ohcq/#p=1
20
“Simoa, tia Donária, finada Bensa, Manoel Justo, Elídio, Madalena, tio Zioleiro... Simoa era
irmã de Zioleiro. Simoa era escrava, teve a língua cortada.... Acabou a escravidão e não
tinha para onde ir, não tinha o que comer. O dono da fazenda fazia uma casa de estuque e
ficavam pagando arrendamento, trabalhando pela comida e pela moradia” Lúcia Eugênia
de Souza (1910-2003) Depoimento retirado do fascículo Cartografia Social do Quipea. Pág.
5
“Quem nasceu no lugar, pagou... Paguei arrendamento a minha vida inteira... Com 10 anos,
ajudava minha mãe pagar, o meu pai, na Fazenda Campos Novos. Até na Caveira paguei
arrendamento. Ia três dias por mês. Chegava lá, trabalhava o dia todo. Quando chegava
meio-dia, a gente parava pra almoçar, a roupa estava pesadinha de lama e água, toda
molhada. Comia em cima da casinha, da casa velha, um casarão velho. Comia igual a boi,
tudo encostado no pau pra comer, porque com a roupa molhada não podia sentar. Quando
chegava de tarde, o sol virava aquela roupa secando, a gente esfregava pra poder vir pra
casa, para outro dia voltar. Ia a pé daqui até a Caveira, três dias, todo mês. ” Eva Maria da
Conceição Oliveira, 113 anos. Depoimento retirado do fascículo Cartografia Social do
Quipea. Pág 6
“Os meus avós pediram que Fotografia
o fazendeiro
defizesse as Monteiro
Jessica casas pra eles que era de sapê e eles
foram trabalhar para o fazendeiro novamente. Só que não eram mais escravos. Escravos
sim, porque eles trabalhavam ainda, porque a minha mãe, mesmo depois que casou,
continuou trabalhando para o patrão na mesma fazenda ainda.... Eu nasci na fazenda.
Meus irmãos todos nasceram na fazenda [Fazenda Piraúna]. Carivaldina de Oliveira da
Costa (dona Uia), 1941-2020. Depoimento retirado do fascículo Cartografia Social do
Quipea. Pág 6
“Antigamente nós vivíamos de lavoura mesmo, né? Cada um, assim que ganhava seu
pedaço de terra pra cultivar, cada um fazia suas plantações de banana, abóbora, aipim,
mandioca pra fazer farinha, feijão, milho. (...) Só que, aos sábados, as pessoas que
trabalhavam pegavam seus produtos e iam vender lá em Cabo Frio. A gente ia a pé e
levava dois, três cavalos de papai e voltava a cavalo e ia a pé. Na volta, a gente trazia
peixe salgado, trazia carne seca, querosene pra lamparina. Papai criava muito porco
também. Naquela época podia caçar também. ” Natalino Aspino Nazario, 83 anos.
Depoimento retirado do fascículo Cartografia Social do Quipea. Pág 13.
Os depoimentos acima revelam como os ex-escravizados garantiam a sua
subsistência nas antigas terras da fazenda Campos Novos. Tais fatos podem
ser também identificados nas memórias dos mais velhos quilombolas de toda
a Região dos Lagos que possuem essa ancestralidade em comum ligada à
Fazenda Campos Novos. A história que as depoentes acima viveram e
relataram “contribuem para iluminar o campo de possibilidades aberto aos
descendentes da última geração de escravizados ao longo do século XX e o
papel dos processos de ressignificação da memória do cativeiro para
ampliação dos sentidos de cidadania brasileira no alvorecer do século XXI.”
(Rios & Mattos, 2005, página 143).
Como podemos observar, os ex-escravizados não tinham garantia alguma de
se estabilizar no território em que moravam e produziam para a sua
subsistência porque as terras eram do fazendeiro.
O regime de arrendamento se estabeleceu em muitos lugares do Brasil.
Também ocorreram outras formas de ocupação de determinado território
pelos ex-escravizados e seus descendentes Brasil afora.
21
Importantes mudanças no ordenamento jurídico do
Brasil durante as primeiras décadas do século XX
Alguns acontecimentos históricos que mudam o ordenamento jurídico e
social brasileiro contribuem para a criação de reivindicações das massas
trabalhadoras do meio rural, a maioria composta por ex-escravizados e seus
descendentes.
Em 1930, Getúlio Vargas chega ao poder e promulga, no ano de 1943, uma
legislação conferindo direitos trabalhistas (3), inicialmente para o setor
urbano. Essa ação permite que as pessoas comecem a ter noções de direito
como a redução da jornada de trabalho, o tempo do descanso, etc. A partir
de 1950, essas legislações começam a ter mais influência no campo e faz
Fotografia
com que muitos fazendeiros de Jessica
ficassem Monteiro
irritados com Getúlio Vargas, pois
essa lei abalava as suas autoridades e manutenção do regime de
semiescravidão que eles mantinham em seus latifúndios. É nessa mesma
década que se intensificam os conflitos no campo. Vamos observar o
depoimento do senhor Julião, 81 anos, de Valença, RJ. Depoimento retirado
do livro Memórias do Cativeiro – Família, Trabalho e cidadania no pós-
abolição. página, 127.
“Quem mandava aqui era eles. Eles eram donos do mundo... a princesa Isabel acabou
com o cativeiro, mas depois continuou o aperto ainda. Quem derrubou um bocado desse
aperto foi Getúlio Vargas, em 1930. Foi derrubando derrubando, derrubando e acabou
com o cativeiro... até acabou com o aperto, não é cativeiro não, é o aperto. O cativeiro
acabou em 1800 e pouco. O cativeiro tem uns 100 anos, mais de 100 anos. Mas o
pessoal continuou a sofrer. Em 30 que houve a libertação. Antes disso, de 30, os
fazendeiros ainda prendiam os camaradas à força. Botava na frente, levava a cavalo...
não tinha lei. Depois que o Getúlio acabou com esse negócio... botou lei, lei, lei até que
mataram ele depois. [...]
Importante dizer que essa legislação foi fruto de movimentos de
trabalhadores ligados a partidos progressistas da área urbana que contavam
com a participação de muitos ex-escravizados. Quando o senhor Julião diz
“foi derrubando, derrubando, derrubando”, podemos entender que a
construção e expansão desses direitos aconteceram gradativamente, num
longo período a partir de 1930. Mesmo não tendo implicações numa
legislação de reforma agrária sem mexer com a estrutura de latifundiários,
essas legislações causaram muita tensão com o setor latifundiário ao qual
pertenciam os fazendeiros. Mesmo o governo de Getúlio tendo
implementado direitos sociais numa amplitude jamais vista antes no Brasil,
a nova administração instaurou uma ditadura “com prisões arbitrárias,
tortura, censura à imprensa e forte repressão política”.
Notas
(3) Para saber mais sobre direitos trabalhistas, consulte a página do IPEA:
https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2909:catid=28
22
Um dos seus objetivos era manter sob controle as reivindicações
trabalhistas (4) . Uma série de legislações foram criadas a partir da
mobilização política no meio rural pela regulamentação do trabalho no
campo e pela reforma agrária. Muitas pessoas desconheciam os seus direitos
ou tinham que continuar a aceitar as condições dos fazendeiros para que
não fossem expulsas, pois lembrem-se, elas não tinham para onde ir.
O território da Caveira, em São Pedro da Aldeia, é importante para
compreender esse processo de mudança nas relações sociais sob influência
dessas novas normativas. Na década de 1950 foi criada a sua associação de
lavradores, estabelecendo, assim, relações com os sindicatos de
trabalhadores da região, começando a ganhar espaço nos jornais do campo
da esquerda. Nesse período, emergem disputas de diferentes aspectos entre
lideranças com o poder local e também com a federação sindical, mostrando
a dinâmica dos acontecimentos que seMonteiro
Fotografia de Jessica desenvolvem nas diferentes
localidades que compõem a extensão de terra que era conhecida como
Fazenda Campos Novos.
Continuando a compreensão em torno da mobilização desses ex-
escravizados e seus descendentes, fica evidente a importância da
necessidade dessas famílias terem terra para plantarem e viverem. Com a
mobilização em torno dos direitos, passa a acontecer muitos conflitos nas
áreas rurais. Esses ex-escravizados passam a se organizarem em sindicatos
influenciados por partidos políticos e, também, pelas federações de
trabalhadores agrícolas.
Os primeiros estados a organizarem as comunidades sob um viés ligado às
suas ancestralidades africanas foi Maranhão, Pará e Bahia, sob forte
influência do Movimento Negro Urbano. Na Região dos Lagos do RJ, o
Movimento Negro foi crucial para informar às comunidades negras rurais
formadas por descendentes de ex-escravizados da antiga Fazenda Campos
Novos sobre o artigo 68 da Constituição Federal, que abriria uma nova
possibilidade para a garantia de seus territórios. A partir desse dispositivo
constitucional, a luta pelo território ganha um caráter étnico, vinculado à
sua ancestralidade. Na Região dos Lagos, essa reconfiguração da luta a partir
da etnicidade quilombola acontece a partir do final dos anos 90.
A articulação dessas comunidades consegue garantir espaço na constituição
brasileira promulgada em 1988, 100 anos após a abolição da escravidão,
sendo a primeira vez na história do país que se garantiu território a pessoas
ex-escravizadas. Nessa articulação, as comunidades se autodefiniram como
Quilombos para fazer referência à resistência de estarem em suas terras
desde antes e/ou após a escravidão. Infelizmente, isso não garantiu a
titulação desses territórios em que habitavam. A primeira comunidade a ser
titulada no país foi Boa Vista no estado do Pará, em 1995, quase uma década
após a promulgação da Constituição.
Notas
23 (4) Gilberto Maringoni na página do Ipea. Idem à referência 3.
No Rio de Janeiro, a primeira a ser titulada foi Campinho da
Independência/Paraty, em 1999. Na Região dos Lagos, a primeira a ser
titulada foi a Comunidade de Preto Forro (5) , em Cabo Frio, em 2011.
Ainda no ano de 1995, aconteceu, em Brasília, a Marcha Zumbi dos Palmares,
na qual as comunidades do Nordeste conseguiram se reunir pela primeira vez
uma com outras. Dessa forma, começavam a se autoidentificar em outros
estados na Região Nordeste. Neste contexto, começa a ser gestada uma
instituição de nível nacional para representar as comunidades quilombolas e
fortalecer a luta pelos direitos territoriais. Nesse primeiro encontro, as
professoras quilombolas ali presentes como Givânia Maria da Silva, do
quilombo de Conceição das Crioulas, já chamavam a atenção para a
importância da educação que valorizasse a história da comunidade nas
escolas, bem como a qualidade do ensino e dos espaços escolares.
Fotografia de Jessica Monteiro
Em 12 de maio de 1996, a CONAQ é
oficialmente criada e registrada com
integrantes quilombolas e não quilombolas. O
segundo encontro nacional aconteceu em
Salvador, BA. Nesse contexto, coordenadores
(as) quilombolas decidem que a CONAQ seria
formada apenas por lideranças quilombolas e
que parceiros de outras instituições negras e
de ONG’S seriam apenas parceiros, sem poder
de decisão nas articulações do então nascido
movimento.
Fonte: CONAQ, 2023
A estrutura da CONAQ muda bastante ao longo desse período. A partir disso, cria-se a
estrutura da organização nacional em torno de coordenadores. Em 2003, a CONAQ cria a
estrutura de coordenação executiva que é um grupo menor de pessoas, na época, girando
em torno de 5 pessoas que representam cada região do país, eleita dentro da
coordenação nacional que é esse grupo maior. Para tocar essa demanda diária, essa
agenda cotidiana. Em 2011, no Encontro do RJ, acontece o crescimento da CONAQ. Assim,
ao invés de ter um coordenador por estado, passa a ter quatro: 2 titulares e 2 suplentes.
Em alguns estados como Maranhão, Bahia e MG, por abrigarem maior quantidade de
comunidades quilombolas, possuem seis representantes. E a coordenação executiva viram
10 representantes: dois de cada região. Em 2017, esse número dobra no Nordeste,
passando de 2 regionais para 4. (Ronaldo dos Santos, Secretário Nacional de Políticas
Públicas para Povos Tradicionais do atual Governo Lula. Trecho de aula dada para
professoras da Escola Nacional de Meninas do Coletivo de Educação da CONAQ,
10/12/2022).
Notas
(5) https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/preto_forro.pdf 24
Desse modo, a CONAQ segue se organizando, criando as suas secretarias e
coletivos como o de Educação, em 2018. De fato, a CONAQ continua se
desenvolvendo nos últimos 23 anos, torna-se corresponsável por toda
conquista de direitos para os quilombolas que acontece no Brasil, afirma
Ronaldo dos Santos.
Nessa mesma aula, Ronaldo dos Santos faz referência a importantes
articulações políticas da CONAQ para ampliar e fortalecer a efetivação dos
direitos territoriais, nos possibilitando uma noção de que a construção em
torno desses direitos é constituída no campo da política, sendo necessário
enfrentar adversários históricos que continuam dominando as decisões
políticas no legislativo. Ou seja, os mesmos latifundiários do passado
permanecem com sua forte influência nos poderes legislativos de nosso país.
Não podemos romantizar Fotografia
a luta dos de
quilombolas em torno dos direitos, pois,
Jessica Monteiro
como vemos brevemente neste texto, a mobilização por direitos possui
dinâmicas, ambiguidades e envolve conflitos de ideias entre os próprios
quilombolas.
Mesmo tendo conquistado o direito a permanecerem no território na
constituição de 1988 com o artigo 68 da ADTC, o poder judiciário restringiu
predominantemente o sentido de quilombo que o artigo trouxe, permitindo
uma interpretação equivocada pelos agentes do estado, que entendiam se
tratar de pessoas descendentes de quilombolas tal qual existia no período
colonial. Esse entendimento ainda prevalece e é reforçado por muitas
pessoas na sociedade brasileira, o que culmina na dificuldade de se efetivar
os direitos dessas pessoas. Para solucionar essa questão, a CONAQ reivindica
ao Governo Federal, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, um
decreto para regulamentar os processos de titulação das comunidades
quilombolas.
No governo Fernando Henrique, então presidente, [inaudível] um projeto de lei para
regulamentar o artigo 68. Isso aconteceu no dia 13 de maio de 2002, sob a alegação de
que o artigo 68 é autoaplicável, e sendo autoaplicável ele não precisa de uma Lei
regulamentar. No governo Fernando Henrique, cria-se, então, o decreto 3912/2002, que
criava os procedimentos para a titulação. No governo de transição de 2002 para 2003, a
CONAQ exigiu do novo governo que fosse editado um novo decreto de regulação, o que foi
cumprido logo no primeiro ano de governo do presidente Lula. Assim que foi sancionado,
ele foi imediatamente contestado por parlamentares do PFL, que representam os setores
de latifundiários e especuladores imobiliários inimigos históricos dos ex-escravizados.
[...]O decreto 4887/3 mudou a política nacional. Em 31 de dezembro de 2002, último dia do
governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil tinha o número de 743 comunidades
identificadas. A partir do decreto 4887/03, esse número salta para mais de 5.000
comunidades quilombolas autoidentificadas.
25
A contestação perpetrada pelo PFL fortalece uma série de contestações
Brasil afora, paralisando e dificultando o andamento dos processos de
titulação de muitas Comunidades Quilombolas.
Também foi importante para o fortalecimento dos direitos quilombolas a
entrada do Brasil, em 2004, para integrar em sua legislação a Convenção 169
da OIT (Organização Internacional do Trabalho). A OIT garante o direito à
autoidentificação, respeito às diferenças sociais, culturais e econômicas,
direito à consulta prévia e participação dos povos que serão afetados em
qualquer mudança de lei ou política pública. A convenção determina que a
comunidade tem o poder de decidir o que é o mais importante para o seu
desenvolvimento. Ainda nessa construção, foi importante a participação de
lideranças da CONAQ nas conferências que aconteceram no Chile e em
Durban para discutirem e debaterem políticas para a igualdade racial.
Fotografia de Jessica Monteiro
Os marcos legais conquistados a partir dos anos 2000 pela CONAQ
aumentam as expectativas de direitos dos ex-escravizados por todo o Brasil.
Isso se expressa nos números de comunidades autoidentificadas
mencionadas por Ronaldo em sua fala: “Foram 14 anos de luta da CONAQ no
Supremo para defender o decreto 4887/03”.
No atual Governo Lula, eleito em 2022, temos lideranças quilombolas
participando das construções de políticas públicas destinadas aos
quilombolas no Ministério da Igualdade Racial, no Ministério de Direitos
Humanos, no Ministério do Desenvolvimento Agrário e também na comissão
criada pelo Ministério da Educação para consulta sobre assuntos ligados à
política da Educação Escolar Quilombola através da Portaria 1356/2023, a
CONEEQ (Comissão Nacional de Educação Escolar Quilombola). A CONAQ
possui 12 representantes quilombolas entre titulares e suplentes na
comissão.
É muito importante citar a luta da CONAQ pela educação de qualidade desde
a sua criação. A CONAQ sempre esteve participando das lutas pela igualdade
racial na educação como na promulgação da Lei 10.639/03, na lei de cotas, no
diferencial da verba da merenda nas escolas quilombolas e na importante
Resolução 8 de 20 de novembro de 2012, que estabeleceu as Diretrizes
Curriculares para Educação Escolar Quilombola. Os princípios definidos nesta
Resolução foram inspirados no Projeto Político Pedagógico da escola
quilombola José Mendes, do Quilombo Conceição das Crioulas, no município
de Salgueiro, em Pernambuco. As diretrizes tiveram um longo processo de
construção que privilegiou a escuta de representantes de comunidades
quilombolas de todas as regiões do país para garantir a diversidade das
comunidades quilombolas no texto do documento.
As deliberações para a construção das Diretrizes Curriculares foram
estabelecidas na CONAE em 2010. O texto final do documento determinou
orientações para a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. 26
Dentre elas, está a garantia de elaboração de legislações específicas para a
educação quilombola com a participação das comunidades quilombolas; a
garantia de que a alimentação e a infraestrutura escolar quilombola
respeitem a cultura alimentar do grupo, considerando o cuidado com o meio
ambiente e a geografia local; a promoção de formação específica e
diferenciada (inicial e continuada) aos/às profissionais das escolas
quilombolas; expansão e fortalecimento do atendimento educacional
especializado por meio da implementação da sala de recursos; etc.
A partir da criação do Coletivo de Educação da CONAQ, em 2018, a
coordenação tem centrado suas ações na formação de professoras/es e
gestores/as em torno do tema da Educação Escolar Quilombola. Em 2021,
aconteceu de maneira remota a primeira Jornada Nacional de Educação
Escolar Quilombola apoiada pela UnB. Os temas e discussões trazidos pelo
evento foi organizado por um livrodee Jessica
Fotografia distribuído pelo coletivo a todas as
Monteiro
professoras quilombolas integrantes. O livro se tornou referência em
dissertações de mestrado e teses de doutorado em vários cursos de pós-
graduação em Educação no Brasil. O número de pessoas inscritas no curso do
coletivo ultrapassou o número de três mil pessoas em todo o Brasil.
Durante a transição do governo federal de 2022 para 2023, o Coletivo de
Educação da CONAQ também obteve uma importante vitória durante as
reivindicações que foi a conquista de uma Coordenação Geral de Educação
Étnico-racial e Educação Escolar Quilombola e o estabelecimento da CONEEQ
citada anteriormente.
O presente curso é iniciativa desta Coordenação que nos representa,
atendendo à nossa demanda, de professoras quilombolas, por fortalecimento
da formação docente que atende as crianças descendentes dessas pessoas
cujas histórias por sobrevivência e direito à dignidade foram brevemente
mencionadas aqui. Nosso desejo é oferecer essa pequena noção de uma luta
que nossos ancestrais travam há séculos. Que as palavras luta e direitos
possam sair do nível abstrato e ganhar outras configurações nas nossas
escolas daqui em diante. Que nossos/as ancestrais sejam faladas/os e
lembradas/os nas aulas e que seus descendentes exerçam o direito a acessar
essa memória de luta e conhecer os seus direitos no tempo presente para
garantir a defesa dos territórios tão ameaçados por projetos ligados à
especulação imobiliária e um turismo predatório e prejudicial à natureza tão
bem preservada pelas famílias quilombolas há gerações. Que essas breves
considerações acendam ou mantenham aceso o desejo de justiça àquelas/es
que foram submetidas ao cativeiro e as nefastas consequências desse
período na vida de seus descendentes. Essa abordagem precisa estar
presente e orientar a construção de currículos e planejamentos de nossas
aulas. Educação Escolar Quilombola é luta política por justiça já que o pós-
abolição ainda continua para essas pessoas...
27
Fotografia de Gessiane Nazario
Local do ponto de desembarque de navios negreiros na Praia Rasa, durante o
período ilegal do tráfico. De acordo com a historiadora Nilma Accioli, foram
desembarcadas 7.040 africanas e africanos entre 1844 e 1845 nessa praia e na
Praia de José Gonçalves, local do último desembarque.
28
LINHA DO TEMPO
Artigo 68 do ADCT
Art. 215 e 216
Direitos de cidadania
Proteção ao pleno exercício dos
direitos territoriais culturais e Altera a Lei nº 9.394/1996,
sua diversidade étnica modificada pela Lei no
10.639/2003, que
Constituição estabelece as Diretrizes e
Federal de 1988 Primeiro encontro das
Bases da educação nacional,
comunidades
quilombolas no Brasil, para incluir no currículo
durante a Marcha Zumbi oficial da rede de ensino a
dos Pálmares onde é obrigatoriedade da temática
elaborada a primeira “História e Cultura Afro-
carta de reivindicações Brasileira e Indígena”
indicando a importância
da educação específica Criação da LEI 10.639/2003
e de qualidade nestes CONAQ em 12
territórios. de maio
OIT 169 1995 1996
1989
Criação da CONAQ
Institui o Estatuto da Igualdade Racial
LEI 12.288/2012 2004
Programa Brasil Quilombola
2004: Entrada do
Brasil na Organização
Resolução CNE/CEB n.8 LEI 11.645/2008 Internacional do DECRETO 4887/2003
Trabalho (OIT), por
20 de novembro de 2012 Altera a Lei nº 9.394/1996, e
inclui o Art 26A que estabelece meio da Convenção
Regulamenta o procedimento
para identificação,
Define Diretrizes as diretrizes e bases da 169 de 1989. Marco reconhecimento, delimitação,
para legislações demarcação e titulação das
Curriculares Nacionais educação nacional, para incluir
posteriores acerca da terras ocupadas por
no currículo oficial da rede de
para a Educação Escolar ensino a obrigatoriedade da
proteção de povos remanescentes das
indígenas e comunidades dos quilombos
Quilombola na Educação temática "História e Cultura comunidades
Básica. Afro-Brasileira" tradicionais
SAIBA MAIS!
A partir da leitura do texto e dos LUTA QUILOMBOLA PELA TERRA
diálogos nas aulas, que outras Conquistas e marcos históricos no
datas podemos acrescentar para Brasil
pensar a dinâmica dos Material elaborado pela
acontecimentos nacionais com os ONG TERRA DE DIREITOS
acontecimentos locais?
29
AVALIAÇÃO E CONTRIBUIÇÕES
Registre aqui aspectos que você avalia
importantes para qualificar este material
Este espaço é seu!
30
Fotografia de Carlos Monerat
unidade ii
Memória, saberes e diversidade
cultural quilombola
Rute Costa; Hayda Alves
Fotografia de 32
Jessica Monteiro
Cundê, Cundê
Cundê, cundê
Eu não estou pra fazer roça
Pra boi dos outros comer
Cundê, cundê
Eu não estou pra fazer roça
Pra boi dos outros comer
Eu não sou milho
Eu não sou milho que me soca
no pilão todo dia
bum, bum, bum, todo dia
bum, bum, bum, todo dia
Eu não sou milho que me soca
no pilão todo dia
bum, bum, bum, todo dia
bum, bum, bum, todo dia
Pontos de jongo
Quilombo Machadinha
33
unidade ii
Fotografia de Rute Costa
Memória, saberes e diversidade
cultural quilombola
Ementa
Memória, identidade, modos de vida e saberes quilombolas. A importância da
oralidade na transmissão de saberes e na educação quilombola. As ervas
medicinais na prática do cuidado quilombola. A alimentação quilombola. A
cultura como espaço de práticas educativas e resistência no território.
Objetivos
Apresentar registros de memórias quilombolas aos participantes do
Curso;
Fomentar entre os participantes a troca de saberes Escola/comunidade,
com vistas a utilização de conhecimentos, tecnologias e práticas culturais
quilombolas nos currículos e programas de disciplinas;
Oportunizar vivências dos participantes do Curso em cultura afro-
brasileira e espaços produtivos quilombolas dos territórios de
Machadinha, Maria Joaquina e Rasa;
Desconstruir concepções colonialistas sobre os saberes e a cultura
quilombola.
34
Bolo e café para começar a prosa sobre
memória ancestral quilombola
Certa vez uma cozinheira do Quilombo Machadinha nos contou que sabe
preparar um Bolo Falso. “Como assim falso?” Nós indagamos. É uma receita
secreta da comunidade que só ela e outra Dona sabem fazer, porém nenhuma
das duas poderia nos contar os ingredientes e modo de preparo.
Nós encomendamos(1) um para o café da manhã do dia seguinte. Ela assou o
bolo bem cedinho e o colocou na mesa do quintal, antes do horário combinado
para o desjejum. Ao chegar, nós avistamos a iguaria. Casquinha bem assada, cor
marrom dourada. Dava água na boca só de olhar. Nós servimos uma fatia
generosa e enchemos a xícara com café. Após a primeira mordida, um suspiro
de contentamento. O bolo se assemelha ao de aipim. Tem uma textura cremosa,
um sabor amanteigado e o contraste com a consistência firme da superfície
provoca boas sensações.
A cozinheira nos contou que a história do Bolo Falso de Aipim remonta às
inúmeras violências das relações senhoriais na casa grande da Fazenda
Machadinha. Está relacionada a exploração do trabalho negro feminino. Porém,
também narra a astúcia das cozinheiras escravizadas que serviam no casarão.
Segundo a entrevista dada por Dona Gerusa (quilombola mais velha) a
preparação dessa receita nasceu da necessidade de atender ao pedido da
senhora da casa grande. A filha do Duque de Caxias (esposa do Visconde de
Ururaí), certa vez, teve vontade de comer um bolo de aipim e fez a solicitação já
tarde da noite. No horário em que a mulher enunciou o capricho, não era
possível colher a raiz. A cozinheira negra, então, criou uma receita com farinha
de mesa, queijo e ovos, que ficou com gosto do bolo de aipim.
Notas
(1) Cozinhar é um trabalho que custa tempo, dedicação e muito esforço físico. Em nossas
visitas em Quilombos pelo Brasil, ouvimos diversas vezes que os custos dos ingredientes, gás
de cozinha e atividade culinária não são pagos por vários visitantes, pesquisadora/es,
professores/as… É óbvio que há a oferta carinhosa da recepção de um/a visitante, mas é
preciso bom senso e atenção para não estabelecermos relações de exploração e uso com as
comunidades ou ferirmos o modo de acolher comunitário.
35
A inventividade, agência, resistência, alta capacidade intelectual e habilidades
culinárias das cozinheiras possibilitaram a criação de uma receita com recursos
limitados, sob a tensão de atender imediatamente à ordem senhorial ou a
ameaça de castigos. Combinar os itens em proporções adequadas, usar
técnicas dietéticas compatíveis, de modo a alcançar uma receita inédita que
reproduzisse a consistência de um bolo cremoso de aipim, sem o ingrediente
principal, reforça a potencialidade dos conhecimentos e a competência dessas
mulheres negras para sobreviver no interior de um sistema de exploração e
violências.
O Bolo Falso narra a memória coletiva da comunidade Machadinha e, por isso, é
uma receita que carrega afetos, um patrimônio desse Quilombo. É uma dentre
muitas. Há tantas outras, secretas ou não. E, ainda, milhares de memórias
pertencentes a outros quilombos brasileiros que enunciam, de algum modo, a
agência desses povos, seus conhecimentos e saberes. Modos de curar e cuidar
com rezas e benzeções, histórias de lua, sol e assombrações, mistérios das
matas e águas… Você conhece alguma memória quilombola?
Essa história realmente aconteceu? Alguém poderia perguntar. Sabemos que,
não por acaso, no Brasil, há lacunas históricas impossíveis de preencher, quiçá
irrecuperáveis. Nesse momento, nos importa reconhecer a legitimidade dos
registros orais salvaguardados pelas comunidades tradicionais e valorizar o
trabalho imaginativo que foi desenvolvido a partir dos rastros de informação. A
ação de elaborar histórias é uma ferramenta metodológica teoricamente
necessária e foi chamada de “fabulação crítica” (2).
Notas
(2) Proposta metodológica elaborada pela historiadora Saidiya Hartman (2020).
36
Através dela é possível romper com o silêncio imposto pela narrativa
dominante, favorável àquelas e àqueles com poder econômico, político e
jurídico, para lhes conferir status de bondade e civilidade. Fabular criticamente
possibilita criar narrativas capazes de expor os sentidos dados pela população
negra às experiências que a branquitude (3) não deseja revelar.
É preciso desconfiar da veracidade da oralidade e confiar no texto escrito? Para
algumas pessoas a oralidade não dispõe da mesma confiança que a escrita, mas
por que não? O intelectual africano Hampatê Bâ nos provoca a pensar que
ambas ações, a escrita e a oralidade, resultam do testemunho humano. Para
ele, nada pode provar que a escrita é um registro mais fidedigno da realidade
que o testemunho oral, transmitido de geração em geração. Se cada um
enxerga a realidade de sua janela, ou seja, através das lentes das paixões, da
consciência particular, dos seus interesses ou da necessidade de justificar o
seu ponto de vista, então, tanto o texto quanto a palavra dita são enunciados
não neutros dos fatos. O perigo não está na diversidade de testemunhos, mas
na existência de uma versão única da história. A questão não é o
reconhecimento da escrita, mas a desconfiança da oralidade.
A história do Bolo Falso de Aipim foi escolhida, neste capítulo, porque a mesma
fala da memória ancestral quilombola. Neste texto, memória é tomada como
elemento da vida que supera o retratar das lembranças ou os esquecimentos,
mas como um recurso político que, no presente, é “acionado coletivamente
como forma de trazer à tona elementos que a história oficial ou a consciência
escravocrata decidiu esconder”(4). Essa escolha foi intencional, pois queremos
conferir o devido valor a essa ação coletiva, deslocando de uma percepção
estigmatizante de “historinhas”, “folclore” ou “invenção”. As memórias
ancestrais quilombolas são muito importantes no processo de consolidação
das identidades, na denúncia das iniquidades, no anúncio dos modos de se
perceber socialmente e na profecia dos sonhos coletivos.
Notas
(3) Branquitude é um termo que remete a privilégios simbólicos e materiais componentes da
estrutura racista. “O pacto da branquitude" é uma expressão cunhada por Cida Bento (Maria
Aparecida Bento), que remete aos acordos tácitos de brancos(as) para a manutenção das
relações de poder e privilégios. Como engrenagem do sistema capitalista de exploração do
trabalho, é produto de processos de colonização e escravização que sustentam a hegemonia
branca e diversas expressões do racismo. (Bento, 2022).
(4) Memória e Consciência - dialética proposta por Lélia González e discutida no texto de Rai
Soares e Tamires Santos (2021).
37
Cuidado, “o ontem – o hoje – o agora”
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo
Assim como a alimentação, as práticas de cuidado à saúde também são fonte
de memória, saberes, (re)existência e diversidade cultural quilombola. Neste
sentido, falamos de um cuidado que antecede historicamente as práticas
profissionais no âmbito dos serviços de saúde.
Remetemos ao cuidado como tecnologia social, que agrega um conjunto de
saberes tantas vezes aprendido de mães, tias, avós entre outras mulheres,
ainda que sistematicamente silenciadas, caladas, “recolhem em si, a fala e o
ato” de tantas outras mulheres ao longo de gerações, como escreve Conceição
Evaristo (2008, pág. 24-25) no poema “Vozes-Mulheres”.
Nas cozinhas se produz o que comer, mas também a cura e o cuidado: o xarope,
o chá, o emplastro, a água de benzer/rezar o corpo, a casa e as coisas. Lá
misturam os talos e as cascas dos vegetais e dos ovos, adubo para cuidar das
plantas e também é onde se junta o resto das comidas para os animais. Sim,
assim como nas cozinhas, são as mulheres que ressignificam “O ontem – o hoje
– o agora” na medida em que transformam os modos de cuidado à saúde a
partir de aprendizagens ancestrais que envolvem a casa, o quintal, o território,
a natureza e um conjunto de saberes que fazem circular a vida. Contudo, ainda
que vital, também é um modo de cuidado desvalorizado, associado a um lugar
subalternizado destinado às mulheres e ao trabalho das mulheres, em especial,
às mulheres negras, o que remete a “noções históricas de mulata, doméstica e
mãe preta” (Gonzalez, 2018, p. 191-192), fazendo do corpo representação de
cuidado, mas também de opressão e resistência.
38
O cuidado é (re)existência contracolonial (Soares, 2021; Soares, Costa,
Alves et al., 2022). O uso de matos de comer, rezar, cuidar e curar, como
denotam as práticas sociais a partir do uso de plantas medicinais, contêm
saberes e memórias itinerários de cuidado do corpo em aliança com a
natureza; exemplos de ensinamentos genuínos das populações do campo,
quilombolas, indígenas entre outros detentores de “saberes da vida”.
Práticas que resistem como vias sustentáveis de preservação e cuidado à
sociobiodiversidade e, por conseguinte, da identidade dos povos que
conservam e ressignificam esta tecnologia. Práticas que ecoam vida!
E o que será que a escola tem a ver com as memórias
ancestrais quilombolas?
A escola é um local extremamente potente para a sociedade, mas
precisamos reconhecer que historicamente produziu e consolidou a
consciência supremacista branca. Foi nela que muitas gerações
aprenderam “a história da descoberta do Brasil pelos portugueses”, que
“os povos indígenas não são dados ao trabalho” e que “os quilombos
eram lugares de fugitivos/desordeiros”. Foi assim que aprendemos, não é
mesmo?
É evidente que existem exceções, não podemos negar. Há escolas que
romperam com o status quo. Mas, de modo geral, o sistema educacional
brasileiro tem servido para a manutenção do sistema, à medida que
ensinou e ensina, ao longo dos anos, os valores, os modos de pensar e
solucionar os problemas, os códigos sociais de comportamento e o ideal
de civilização da cultura hegemônica. Parece haver um silêncio quando se
trata dos valores civilizatórios, identidades, saberes, práticas sociais e
culturais das populações negras, quilombolas e indígenas.
Nunca é tarde para a mudança!
Vamos nessa direção?
39
Jongo
O jongo do Sudeste é considerado patrimônio histórico imaterial pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
No estado do Rio de Janeiro, os remanescentes de quilombo das regiões do Vale do
Paraíba, do Litoral Sul e do Norte Fluminense salvaguardam o jongo (ALVES, 2016).
Também conhecida como caxambu ou tambor, o jongo é uma dança semirreligiosa,
de matriz africana, praticada desde o período colonial pelos negros, nos terreiros
das fazendas da antiga região produtora de cana-de-açúcar do Sudeste brasileiro.
Por meio do jongo, os escravizados exprimiam as suas dores, planejavam revoltas e
fugas e celebravam os seus festejos (RIBEIRO, 1984).
A prática do jongo, pelos diferentes grupos comunitários, apresenta distinções e
similaridades nos modos de dançar, cantar, tocar e significar. Entre os elementos
que estruturam essa dança afroancestral, vale destacar: a cerimonialização,
expressa nas vestimentas e a ordenação litúrgica dos pontos que orientam a
abertura, a evolução e o encerramento; a relação comunitária estabelecida na
disposição circular; a gestualidade característica, que sugere a umbigada e os giros
dos corpos no centro da roda; o aspecto de sacralidade no entoar dos pontos, na
evocação dos ancestrais pelos tambores e no contato corpo-natureza, pelos pés
descalços no terreiro; o diálogo corpo-tambor, entre estímulo sonoro e reação
corpórea; a relação de senioridade no aprendizado com os mestres; e a manutenção
da memória coletiva, resguardando a história, os símbolos e os valores ensinados
pelos povos ancestrais (PETIT, 2015).
Parágrafos extraídos do artigo "O processo educativo do jongo no Quilombo Machadinha: oralidade,
saber da experiência e identidade" elaborado por Rute Costa e Alexandre Brasil (Costa; Fonseca,
2019, pag. 2-3).
Ponto de jongo: o galo e o pinto A dança, os tambores e o canto são
elementos que se integram na
O galo e o pinto foram dormir no puleiro prática cultural do jongo.
O galo cochilou e o pinto cantou primeiro
O galo e o pinto foram dormir no puleiro SAIBA MAIS!
O galo cochilou e o pinto cantou primeiro
ê piu, piu, ê...
ê piu, piu, ê...
olê, lê ê...
olá, lá lá..
olê, lê ê...
olá, lá lá..
Este ponto faz referência à fuga de escravizados:
Quando o galo, que era o capataz, dormisse, o (Costa; Fonseca, 2019)
pinto fugia (Santos, 2016). 40
AVALIAÇÃO E CONTRIBUIÇÕES
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41
unidade iii
Ancestralidade, religiosidades e práticas
antirracistas: a sustentabilidade
ambiental nos territórios
Gessiane Nazario; Fernanda Borges
Reprodução de ilustrações da artista
quilombola Roselene Pereira 42
Quilombo Rasa
43
unidade iii
Fotografia de Carlos Monerat
Ancestralidade, religiosidades e
práticas antirracistas: a
sustentabilidade ambiental nos
territórios
Ementa
Ancestralidade quilombola, territorialidade e biointeração. O lugar das
mulheres quilombolas como guardiães dos saberes ancestrais e das práticas
de cuidado e cura. Plantas de quintal, comida quilombola e ervas de cuidado
na promoção de saúde. Raça, racismo estrutural, institucional, ambiental e
religioso. Práticas antirracista no cotidiano escolar.
Objetivos
Propor reflexões sobre o racismo estrutural no Brasil e a falácia da
democracia racial;
Dialogar sobre elementos das cosmopercepções quilombolas:
ancestralidade, territorialidade e biointeração para a construção e
execução dos currículos e programas de disciplinas;
Oportunizar experiências pedagógicas quilombolas aos e às participantes
do Curso.
44
Breve histórico sobre a fazenda Campos Novos
Fazenda
Campos
Novos (1)
“As terras da Fazenda Campos Novos foram uma doação feita pelo capitão
Estevam Gomes aos padres da Companhia de Jesus (os jesuítas) em 1617.
Nesse tempo, Cabo Frio era uma feitoria de funcionalidade comercial e militar.
Poucas feitorias no Brasil se tornaram cidades, o que faz de Cabo Frio um lugar
importante para os estudos do período colonial. No século XVII, já era
considerada uma cidade. É importante ponderar que Cabo Frio, nesse tempo,
correspondia desde as terras de Maricá até o Rio Macaé. A lenta ocupação
permitiu aos jesuítas avançarem em direção a Campos dos Goytacazes.
Fatiado em freguesias, Cabo Frio foi se formando por meio de pequenos núcleos urbanos
esparsamente distribuídos com pouca comunicação entre si, dependentes das grandes
propriedades e voltados para atender ao mercado de exportação. (Carvalho, 2020, p. 126)
De início, os padres recrutavam indígenas para trabalharem nas lavouras
daqueles “novos campos”. O nome “Campos Novos” lhe foi dado devido aos
campos dos Goytacazes ao norte (Carvalho, 2020, p.130).
No século XVII, a região de São Pedro da Aldeia, também dominada pelos
jesuítas, se utilizava da mão de obra escravizada dos indígenas aldeados. Mas,
devido às inúmeras revoltas e conflitos que culminaram no extermínio de vários
deles, os colonizadores passaram a contar com a mão de obra dos africanos
cativos. A igreja, que hoje se encontra no centro desta cidade, foi construída
pelas mãos dos indígenas escravizados.
A partir de 1758, acontece a expulsão da Companhia de Jesus pelos
portugueses. Dessa forma, a fazenda e as famílias negras, que ali viviam e se
formaram, foram colocadas “na lista de bens e utensílios apreendidos pela
Fazenda Real”.
Nessa ocasião, a fazenda é renomeada como Fazenda D’el Rey e posta para
leilão público, sendo arrematada por Manoel Pereira Gonçalves em 1759.
Notas
45 (1) Fonte: https://www.folhadoslagos.com/geral/area-da-fazenda-campos-novos-cedida-a-escola-
agricola-nilo-batista-e-invadida/6258/
A partir desse momento, é iniciado o processo de desmembramento daquelas
terras, estabelecendo lotes em menor escala, administrados por foreiros e
outros tipos de concessões, como Itahua, Angelim, Fazendinha e Piraúna.
Essas fazendas são importantes para a compreensão da história local, pois
foram fundamentais para a configuração da estrutura do tráfico ilegal de
escravizados na região. (Luz, 2013; Accioli, 2012; Nazario, 2021).
A partir da primeira metade do século XIX, as grandes porções de terra de
Cabo Frio foram desmembradas no que hoje conhecemos como Macaé (1813),
Silva Jardim (1841), Araruama (1859) e São Pedro da Aldeia (1892) (Carvalho,
2020, p. 126). De acordo com o historiador Jonatas Carvalho, ao analisar o
documento com os limites da fazenda, é possível afirmar que a Fazenda
Campos Novos abrangia quase todo o território da antiga Cabo Frio.
Com a proibição do tráfico negreiro, em 1831, a região da Praia Rasa, que era
parte do grande complexo agrícola da Fazenda Campos Novos, tornou-se o
lugar que traficantes de escravizados, como José Gonçalves da Silva e André
Guimarães, adaptaram para aportar navios com africanos escravizados. As
pessoas eram desembarcadas na Praia Rasa e dali eram levadas para a sede
da fazenda, a fim de serem vendidas para outras propriedades. O traficante
José Gonçalves possuía título de nobreza, tinha propriedade em São Cristóvão
e amizade com o imperador D. Pedro II. José Gonçalves foi o único traficante
da região a ter seus bens confiscados pelo governo.
No período do pós-abolição, as famílias negras fizeram acordo com os
fazendeiros para que continuassem morando nas terras, pagando o
arrendamento. Conforme foram sendo repartidas devido aos inúmeros
acordos de venda dos diferentes donos, as famílias eram removidas sem
nenhum tipo de consideração. As expulsões se intensificaram a partir da
década de 1950, quando Antônio Paterno assume a direção da Fazenda, e se
acirrarem no período da ditadura militar, quando os fazendeiros se aliaram à
polícia local para expulsar as famílias negras. As estratégias de remoção
foram as piores possíveis, como soltar bois nas roças, queimar roças, derrubar
casas das pessoas, intimidação e ameaças de morte. Muitos/as foram
expulsos/as e outros conseguiram resistir devido à união e perseverança. A
partir do final da década de 1990, as famílias negras da Rasa e outras
localidades reivindicam seu direito territorial como reparação aos anos de
escravidão de seus ancestrais e das terras das quais foram expulsas. A
especulação imobiliária tem sido uma grande inimiga para a efetivação dos
direitos quilombolas.
Fonte: Livro Revolta do Cachimbo: A luta pela terra no quilombo da Caveira. 46
Autora: Gessiane Nazario. Páginas: 58-60.
Territorialidade e Ancestralidade
As comunidades de Rasa e Maria Joaquina são compostas por famílias que
possuem parentescos em comum. Afinal, também são descendentes dos
africanos e africanas ex-escravizados/as na vasta extensão de terras que
compunham o complexo agrícola que formava a antiga fazenda Campos Novos.
O nome do lugar, Maria Joaquina, faz referência a uma “compradora de
escravos” que assim se chamava. Entre as pessoas escravizadas por ela, estava
uma jovem de 17 anos chamada Eva, recém-chegada do continente africano e
submetida ao trabalho escravo na fazenda Piraúna (Quipea, 2022). Essa jovem
trata-se da avó de dona Eva Maria, a quilombola mais velha da região, que
completou 113 anos, em dezembro de 2023. O nome Rasa faz referência à praia
do território cujas águas são muito rasas.
O território ocupado pelas famílias quilombolas tanto na Rasa quanto em Maria
Joaquina é uma ocupação baseada em modos de vida coletivos. Os lugares de
roças e outras áreas importantes na memória do grupo como a praia e as matas
configuram esse modo de vida coletivo.
Como visto no capítulo anterior, o pós-abolição é um período importante para
entender a formação das comunidades quilombolas tal qual conhecemos hoje,
pois foi a partir do acordo de arrendamento, no final da escravidão, que as
famílias conseguem permanecer nas terras da Fazenda Campos Novos. Em
1919, a Fazenda Campos Novos é comprada pelo empresário alemão Eugenne
Honold, um dos principais acionistas da Companhia Odeon. Ele deixa os
cuidados da Fazenda com seu filho George Honold. Quando George e seu pai
Honold faleceram respectivamente, em 1949 e 1950, o neto de Eugenne, filho
de uma de suas filhas com o empresário Otávio Reis, chamado Luiz Honold, não
tinha interesse em continuar na administração da fazenda e, em 1952, ele passa
a administração para outro acionista da Companhia Odeon: Antônio Paterno
Castello, lembrado como Marquês pelos mais velhos da comunidade. O
Marquês chega para pôr em curso o projeto de loteamento das terras da
fazenda e usa das estratégias mais hostis possíveis para expulsar essas famílias
e alcançar o seu objetivo. Podemos acessar um pouco sobre as memórias desse
período nos trabalhos da Cartografia Social elaborada pelo projeto Quipea
junto a algumas comunidades da Região dos Lagos. Dona Eva lembra que,
quando criança, assistia as mais velhas e mais velhos ex-escravizados que se
reuniam para dançar jongo na área onde hoje está situada a igreja católica da
Rasa. Conforme os mais velhos morriam e as pessoas se convertiam,
47 essa prática foi gradativamente abandonada pelas famílias.
A família Honold mantinha relações com pessoas influentes da sociedade
brasileira na época. Eles foram os responsáveis por trazer os primeiros
veranistas para a região, como o José Bento Ribeiro Dantas. Foi esse grupo de
empresários que projetou transformar o lugar numa área turística, favorável à
especulação imobiliária (2). Esse projeto de turistificação das antigas terras da
fazenda custou a dignidade das famílias quilombolas, que foram sendo expulsas
e ficando sem território para continuarem os seus modos de existir. Quando, na
escola, tratarmos da história dos municípios que compõem as antigas terras da
fazenda Campos Novos, precisamos dizer o que significou essas mudanças para
as famílias descendentes de escravizados que viviam aqui e que ainda hoje
lutam pelo direito de ter de volta parte desse território do qual foram expulsos.
Toda luta por direitos que vimos no capítulo anterior é para que as
comunidades quilombolas tenham o direito de ter seus territórios assegurados
para manterem seus modos de vida tradicionais. As quilombolas e os
quilombolas não foram incluídos no projeto de “‘modernização”, pois ao
retirarem os espaços de fazer as suas roças eles/elas ficaram sem ter como
prover os seus sustentos e foram forçados a se submeterem aos precários
postos de trabalho nas novas casas de veraneio e/ou migrar para cidades
próximas em busca de trabalho. A urbanização desenfreada e sem
planejamento também causou e tem causado graves consequências para a
natureza no entorno, matando aves, animais e plantas nativas. A urbanização e
turistificação também acirrou a estrutura racista relegada aos
afrodescendentes, pois é comum ouvir das/dos quilombolas relatos das
experiências de racismo que sofreram ao longo de suas vidas tanto na escola,
nos postos de trabalho, etc.
O que as comunidades da Rasa e Maria Joaquina conseguem preservar de suas
tradições ancestrais ainda é a pesca, pequenas hortas, roças e extração da
aroeira (em Maria Joaquina). A atividade da pesca também possui algumas
diferenças entre homens e mulheres da comunidade: as mulheres pescam mais
na costa da praia, realizando a coleta de moluscos, e os homens pescam mais
no mar.
1. Para entender a formação geológica da Praia Rasa, veja os trabalhos de
pesquisa da geóloga Kátia Mansur.
2. Especulação imobiliária: é a ação de transformar terras em mercadoria,
tornando-a como objeto exclusivo de negócios (lucro) e não para a
subsistência das pessoas.
Notas
(2 Fonte: CARTOGRAFIA SOCIAL DO QUIPEA DISPONÍVEL EM https://online.fliphtml5.com/jwdlh/yocv
48
Livro Revolta do Cachimbo: a luta pela terra no Quilombo da Caveira. Autora: Gessiane Nazario.
Como observa-se no trecho acima, a história dos quilombos da Região dos
Lagos é uma história de luta pela terra. Os quilombolas sempre lutaram pelas
suas terras e seus modos de vida e sempre resistiram a processos de
desterritorialização forçada. Entretanto, as inúmeras invasões, como as que
ocorreram no território da Rasa e Maria Joaquina, resultaram não só na
diminuição desse território, mas em um intenso processo de racismo e exclusão
que perdura até hoje. Os quilombolas se viram forçados a deixar terras,
costumes, atividades de subsistência e fonte de renda, para se adequarem ao
processo de urbanização de Búzios e Cabo Frio, orquestrado e imposto por uma
elite ligada ao ramo do turismo e imobiliário. Dessa forma, as noções sobre a
ancestralidade e religiosidade não podem ser entendidas desvinculadas das
demandas materiais dessas pessoas, pois, para que essas práticas sejam
mantidas, é preciso que o território no qual elas são desenvolvidas seja
assegurado pelo Estado brasileiro.
Religiosidade e identidade étnico quilombola
Na década de 1940 aconteceu, na Rasa, um processo de conversão à religião
evangélica de várias famílias. Segundo os mais velhos da comunidade, vieram
pastores da igreja metodista e fizeram uma pregação na Praia, onde várias
famílias se convertem para o evangelho. Após esse acontecimento, é
construída uma igreja com paredes de barro e sapê na área dos descendentes
de Avelino Zioleiro, um ex-escravizado. Os mais velhos dizem que ali foi
enterrada uma bíblia referenciando um ritual chamado de “a pedra
fundamental”. Nessa região habitavam famílias que foram expulsas por
fazendeiros no processo de expropriação. Isso toma força a partir da década de
1950, com a chegada do fazendeiro Antônio Paterno Castello, conhecido como
Marquês. Hoje, essa área está dentro do território reivindicado pela Associação
Quilombola da Rasa e é alvo de disputa com empresários do ramo imobiliários
que projetam construir um condomínio naquela localidade.
49
Fonte: Página do
Instagram da AD
Praia Rasa.
Quilombolas em culto na Assembleia de Deus da Praia Rasa. O primeiro pastor da
Igreja Assembleia de Deus da Praia Rasa chamava-se Justiniano de Souza, casado com
Maria Amélia e pai de um dos precursores do Movimento Quilombola na Rasa, Luiz
Oliveira. Foi nessa igreja que aconteceram as primeiras reuniões para criação da
Associação Quilombola da Rasa. Uma ideia essencialista sobre o que seja cultura e
identidade quilombola fez com que muitas pessoas se afastassem das reivindicações
por reparação histórica. A tradição da pesca, a ancestralidade ligada à memória da
escravidão e das expropriações de terra aqui na Região têm sido as principais
referências de autoafirmação da identidade quilombola da Rasa. A escola é
importante para trazer o debate contra o fundamentalismo religioso que faz com que
muitas pessoas tenham um olhar preconceituoso sobre as religiões de matriz africana.
É preciso um diálogo respeitoso e conscientizador sobre as mudanças nas práticas
religiosas ao longo do tempo. A filiação religiosa a igrejas evangélicas não impede que
as pessoas se identifiquem como quilombolas. A consciência histórica poderá trazer
elementos de reflexão para que todas as pessoas abandonem ideias equivocadas e
preconceituosas sobre as diferentes religiões.
Identidade étnica é um conjunto de elementos culturais e históricos que um
grupo elege para se diferenciar de outras pessoas num determinado local.
Dessa forma, a identidade quilombola se articula com a identidade racial para
fazer referência a uma ancestralidade africana vinculada historicamente a um
território que é fundamental para um modo de vida que é coletivo. Sendo
assim, entendemos que a comunidade da Rasa constrói a sua identidade étnica
a partir dos seguintes processos históricos: a memória da escravidão ocorrida
nas terras da antiga Fazenda Campos Novos; o processo de arrendamento no
pós-abolição; as expulsões e expropriações em massa nas primeiras décadas do
século XX e os conhecimentos sobre pesca e agricultura. As considerações
sobre identidade cultural, religião ou qualquer outro aspecto social vinculado
às comunidades devem sempre respeitar o que o grupo considera como sendo
importantes para si. Desse modo, mesmo sendo próximas geograficamente e
compartilhando uma história em comum, cada comunidade possui a sua
especificidade desenvolvida ao longo do tempo. 50
A filiação a igrejas evangélicas por membros da comunidade negra da Rasa é ampla e
envolve as principais lideranças quilombola, o que tem gerado tensões e conflitos
sustentados em uma identidade religiosa que recusa estratégias de definição da
etnicidade baseadas na manutenção de tradições ou de uma religiosidade de origem
africana, defendida e promovida por mediadores e agentes públicos governamentais e
não governamentais [...]
Portanto, a identidade quilombola se sustenta predominantemente nos esforços de
reenquadramento social e político de uma memória da escravidão e de expropriação
fundiária (ou seja, de lembranças de um campesinato negro pretérito) e silenciamento
(e não esquecimento) de itens culturais de africanidade (incluindo antigos
pertencimentos a religiões afro-brasileiras, abandonados com a conversão
evangélica).
É a descrição e análise da complexidade e da dinâmica das situações e contextos
sociais específicos de fabricação de culturas identitárias que permitem compreender
o trabalho de etnicização das lutas das comunidades negras da Rasa por direitos
territoriais e por uma cidadania diferenciada (4).
Se cada comunidade possui a sua maneira de ser e existir, a escola precisa
respeitar essa diversidade e desviar de ideias e atividades que buscam
padronizar a identidade das/dos quilombolas. Por isso, é preciso que as/os
professoras/es busquem o máximo de informações com a comunidade e
estabeleça um diálogo permanente para que as propostas de ensino e
aprendizagem contribuam para potencializar os conhecimentos e fortalecer a
luta por direitos da comunidade. É de suma importância que os Projetos
Políticos Pedagógicos deixem de ser uma mera peça burocrática e passem a
coexistir com as práticas do cotidiano escolar, norteando o trabalho da escola,
priorizando o objetivo da conscientização para os direitos quilombolas.
Notas
(4) Fonte: Sidnei Peres. Identidade Quilombola e dinâmica territorial em Armação dos
Búzios: memória, direitos e políticas de reconhecimento étnico no Brasil. Anais do 34º
Convegno Internazionale di Americanistica. Páginas 141-149.
51
Como a memória familiar ligada à escravidão se transforma em
recurso político para a conquista de direitos contra o projeto de
expropriação racista?
Ao ouvirmos depoimentos dos quilombolas mais antigos disponíveis em
documentários no YouTube chamados “Quilombolas de Búzios e suas
memórias” e “Búzios conta a sua história”, é possível entender quais são as
atividades tradicionais dos quilombolas da Rasa, que fazem ou fizeram parte da
memória da comunidade, como a agricultura de subsistência, a produção de
farinha nas casas de farinha, as rodas de jongo com fogueiras e a pesca e a
coleta de moluscos no Mangue de Pedra. Há um movimento de valorização
dessas tradições, graças a importantes legislações conquistadas pelos
quilombolas ao longo dos últimos 20 anos, como os artigos 215 e 216 da
Constituição Federal e a entrada do Brasil para a OIT.
Como o território quilombola foi reduzido, a pesca e a coleta de frutos do mar
são as atividades culturais que mais se destacam e resistem no presente,
mesmo com todas as ameaças como poluição e desmatamento da restinga. A
valorização da cultura quilombola local depende da conservação dos
ecossistemas ocupados pelos quilombolas, tais como Rio Una, Praia da Rasa,
Praia Gorda, Mangue de Pedra, Ponta do Pai Vitório e Canal e Praia da Marina.
Esses ambientes são os cenários que permitem uma conexão com o passado e a
transmissão de conhecimentos e vivências dos quilombolas ao longo das
gerações, representando uma memória viva e desempenhando um papel
importante na construção da identidade quilombola das comunidades da Maria
Joaquina e da Rasa.
A praia Rasa é localizada entre a foz do Rio Una, que fica em Maria Joaquina; e a
Praia da Gorda, onde fica o Mangue de Pedra, na Rasa. O Rio Una nasce em
Araruama e tem um manguezal nas margens próximas à foz, onde os
quilombolas da Maria Joaquina pescam. Esse rio vem sofrendo com a ameaça
da transposição de efluentes das Estações de Tratamento de Esgoto de
Araruama, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia.
Já o manguezal do Mangue de Pedra é considerado um ecossistema único, sem
deságue próximo de rios, formado a partir do encontro da água salgada do mar
com a água doce vinda de nascentes que transbordam na praia. Essas
nascentes são abastecidas pelo aquífero Mangue de Pedra, formado por uma
rocha porosa que guarda água da chuva que infiltra nas matas do entorno. 52
Apesar da recente criação da Área de Proteção Ambiental Mangue de Pedras, a
poluição marinha é uma ameaça, além de um visível aumento das construções
no entorno do Mangue de Pedra, o que gera a poluição do aquífero e dificulta a
infiltração da água da chuva no solo que o abastece. Essas construções
avançam em uma área que tem grande importância histórica, sendo parte do
território quilombola.
Manguezais são considerados os berçários do mar, ambientes mais protegidos
para desova de diversas espécies, mas passou a ser um lugar de refúgio para os
quilombolas também. O Mangue de Pedra é abrigo para siris, caranguejos,
peixes e moluscos que fazem parte da alimentação dos quilombolas desde que
seus ancestrais escravizados pisaram nesta terra. É um símbolo de um passado
de luta, resiliência, fartura, lazer, proteção e identidade.
As espécies consumidas e batizadas pelos quilombolas que acessam o Mangue
de Pedra são os moluscos “corondó”, "sacuritá”, “nega-mina” e “unha-de-
velho”, o caranguejo “goiá” e um peixe de manguezal chamado por eles de
“muriongo”. Outros animais não são consumidos, mas também foram
nomeados pelos quilombolas, como o “michole” (pepino do mar), os
caranguejos “garoçá” e “corredeira”.
Os animais menores são poupados, sendo coletados apenas quando estão em
grande quantidade. Caso pessoas de fora se atrevam a coletar esses animais em
grande quantidade, são inibidos pelos quilombolas, que exercem um papel de
guardiões desse local. A coleta de frutos do mar é feita principalmente por
mulheres que, em 2022, fundaram a Associação das Marisqueiras Quilombolas
da Rasa.
Mangue da Pedra Fonte: Jornal Prensa de Babel. Fotos de
53 Fotografia de Fernanda de Moura Borges Mariane Siqueira Gomes
O trabalho de conhecer e valorizar esses moluscos durante as aulas da escola
sugere a construção de uma importante ferramenta para gerar uma consciência
alimentar e nutricional sem desconsiderar a diversidade presente na cultura
alimentar das comunidades. A escola pode, a partir desses alimentos, refletir
sobre as mudanças na alimentação das famílias quilombolas, vinculando-as
com os processos históricos de expropriações e desterritorialização impostos
pelo projeto de urbanização, impulsionado pelas elites que arquitetaram o
projeto de turistificação e loteamento da Região dos Lagos. Dessa forma, a
escola pode estimular a consciência crítica através da valorização da
diversidade alimentar do que se consome localmente.
O Mangue de Pedra se tornou orgulho de Búzios após a divulgação de pesquisas
na área da geologia principalmente. É necessário, a partir de agora e de forma
urgente, conhecer e divulgar também a importância histórica e cultural desse
local, que foi incluído, em 2017, na delimitação de terras dos Remanescentes
das Comunidades dos Quilombos da Rasa realizada pelo INCRA.
Já as plantas da restinga também são consumidas como remédios naturais
como, por exemplo uma espécie de cardo (cacto) e a árvore aroeira. Algumas
famílias da Comunidade de Maria Joaquina ganham o sustento catando aroeira
(pimenta-rosa). Segundo relatos organizados no documento Cartografia Social
do Quilombo Maria Joaquina (Quipea, 2022), a aroeira tem uma grande
importância para o quilombo, sendo utilizada tanto para o uso pessoal em
forma de chás, remédio cicatrizante e banho de assento, quanto como fonte de
renda dos moradores que comercializam seu fruto, que é conhecido como
pimenta-rosa. Atualmente, de acordo com a líder da comunidade Rejane
Oliveira, as principais atividades econômicas das famílias têm sido a prática da
costura, o artesanato, o cultivo das hortas e a oficina de tapioca na casa de
farinha. A comunidade de Maria Joaquina também realiza trilhas pelo território
“nos antigos caminhos que existiam na comunidade”, com turistas que visitam a
região, buscando, assim, se inserir e se apropriar de um projeto de
empreendimentos turísticos dos quais foram historicamente excluídos.
À esquerda: Imagem de horta na
comunidade quilombola de Maria
Joaquina e à direita Dona Landina
na atividade de costura.
Fotografia de Rejane Oliveira, 54
Quilombo Maria Joaquina
A interação com a natureza faz parte da tradição e identidade quilombola da
Rasa e Maria Joaquina, mas vem perdendo lugar com o avanço de um turismo
que desmata, polui e oferece apenas empregos precarizados, que exploram os
trabalhadores, visando o lucro de empresários e a especulação imobiliária,
aumentando a desigualdade social, afastando os quilombolas de exercerem os
seus direitos culturais. Ao roubarem-lhes a terra, roubam-lhes quase tudo.
As casas de farinha também já fizeram parte da produção familiar dos
quilombos da Região dos Lagos, sendo a farinha parte da sua cultura alimentar.
“Por gerações, as cantorias acompanhavam o trabalho das famílias quilombolas
nas casas de farinha que se estendiam de Maria Joaquina até a Rasa. Era um
trabalho duro e exigia a colaboração de toda a família e dos vizinhos. Mas as
cozinhas de farinha também eram um espaço de alegria, afetos, cantorias, de
contação de histórias e até mesmo um local privilegiado para o encontro dos
enamorados, já que os pais antigamente controlavam o namoro dos filhos”
(Cartografia Social do Quipea Quilombo Maria Joaquina, Quipea, 2022).
Reprodução de ilustração da artista quilombola Roselene Pereira,
Quilombo Rasa. Disponível em sua página do Instagram.
SAIBA MAIS!
1. Veja o decreto Municipal Nº 1059 de 2018. Disponível em
https://www.armacaodosbuzios.rj.leg.br/transparencia/boletins
-oficiais/bo-922.pdf
2. Leia um pouco mais sobre o protagonismo das mulheres
quilombolas na preservação do Mangue de Pedras e na
preservação e transmissão dos conhecimentos da pesca de
moluscos nas pedras em https://prensadebabel.com.br/a-vida-
55 que-brota-da-pedra/
Racismo estrutural contra as comunidades quilombolas
As relações sociais no Brasil são construídas sob viés racista. Vejamos, na
própria história das comunidades quilombolas formadas pelos ex-escravizados
da Fazenda Campos Novos, a questão racial explícita nas relações onde os
fazendeiros eram estrangeiros, brancos e europeus (o português, o alemão e o
italiano) e os escravizados negros. Os descendentes dos brancos usufruem, no
presente, dos privilégios que seus antepassados forjaram no período da
escravidão. Já os descendentes dos escravizados “ficaram sem nada”. Não se
trata, aqui, de culpabilizar os descendentes desses escravizadores, mas
iluminar e estabelecer um diálogo no qual as pessoas brancas tenham
consciência desses privilégios e tornem-se favoráveis às medidas de reparação
histórica construídas e direcionadas com e para os/as quilombolas. Trata-se
aqui de reconhecer as diferenças para construir o respeito mútuo e não tratar
essas diferenças como base para perpetuar a exclusão e as violações contra
essas pessoas.
O racismo estrutural está incorporado nas práticas sociais, na vida cotidiana, na
linguagem ordinária e nas instituições. Búzios, desde a sua idealização, passou a
ser privilégio dos poderosos (brancos). Mas será que precisa ser assim até hoje?
Está mais do que na hora de entendermos a importância histórica e cultural
dessas comunidades e lutarmos juntos pelos seus direitos roubados. O primeiro
passo para essa reparação é conhecer e valorizar as memórias, ampliar a voz
das comunidades e entender suas demandas, como mais oportunidades de
trabalho e estudo. Como a conservação ambiental está intimamente
relacionada à proteção do território e da cultura quilombola, a luta ambiental e
a luta pelos direitos quilombolas precisa ser a mesma luta. A escola pode ser
crucial nesse processo, através de uma educação ambiental crítica e
antirracista. O silêncio histórico tem sido o principal fator de reprodução e
perpetuação do racismo em todas as esferas da sociedade brasileira. As
comunidades quilombolas precisam que a escola seja uma potente
protagonista para quebrar esse ciclo de violências contra elas. Por isso, a lei
10.639/2003 e a Resolução 8 de 20 de Novembro de 2012 para romper
silêncios históricos e garantir aos quilombolas o direito à história e à memória,
pois quando se expropria o território, se expropria também a história e
memória do grupo.
56
Práticas antirracistas:
Somos todos iguais? Como trabalhar as diferenças na sala de aula sem que
isso implique no silenciamento dos direitos quilombolas?
-Blackface nunca mais! Você sabe a origem e o significado das práticas de
blackface? Leia aqui: https://g1.globo.com/sp/bauru-
marilia/noticia/2022/12/05/blackface-entenda-o-que-e-e-por-que-e-
considerado-ato-racista.ghtml
Não exotizar as pessoas quilombolas e suas práticas culturais: como
combater a exotização e padronização das identidades quilombolas na
escola?
SAIBA MAIS!
Racismo Ambiental
É quando os custos da depredação do meio ambiente recaem
sobre certas comunidades étnicas que são historicamente
discriminadas. No caso das comunidades quilombolas, o racismo
ambiental se configura a partir das invasões e violações aos seus
territórios ancestrais, ocasionando problemas ambientais como os
mencionados anteriormente.
Maiores informações em https://actionaid.org.br/noticia/actionaid-
explica-o-que-e-racismo-ambiental/
https://conaq.org.br/noticias/a-publicacao-racismo-e-violencia-
contra-quilombos-no-brasil-esta-disponivel-para-download/
Questões para reflexão:
1. Quais são as ESPECIFICIDADES das comunidades de Rasa e Maria Joaquina?
2. De acordo com os textos, qual foi e têm sido os principais fatores contrários
à garantia dos direitos socioculturais das comunidades quilombolas na
Região dos Lagos no Rio de Janeiro?
3. De que forma o racismo se configura como um obstáculo para a efetivação
dos direitos quilombolas?
57
AVALIAÇÃO E CONTRIBUIÇÕES
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Este espaço é seu!
58
Jongo de Machadinha 59
Fotografia de Hayda Alves
unidade iv
Construção do Projeto Político
Pedagógico: articulação entre
escola e comunidade
Jéssica Monteiro; Rai Soares
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Fotografias de Pedro Gradella
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unidade iv
Fotografia de Jessica Monteiro
Construção do Projeto Político
Pedagógico: articulação entre
escola e comunidade
Ementa
Debate sobre a urgência de reformulações decoloniais dos processos
educativos para que outras epistemes possam ser contempladas, sendo estas
sinalizadas como modos de existir no mundo, de ocupar outros espaços até
então negados. As reflexões temáticas dos diferentes módulos serão
orientadas para serem parte de propostas conceituais-metodológicas de
futuros planos de PPPs, ou seja, trata-se de um módulo transversal aos
demais.
Objetivos
Auxiliar na elaboração de material didático-pedagógico que possa ser
utilizado em sala de aula;
Incentivar o debate na escola e junto a gestão municipal sobre a
implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola (DCNEEQ);
Oferecer elementos teóricos, metodológicos e práticos para construção
do PPP a partir das DCNEEQ;
Estimular a parceria entre professores, gestores escolares municipais e
lideranças quilombolas na implementação das DCNEEQ.
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O Projeto Político Pedagógico (PPP), nomeado na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) vigente como proposta ou projeto pedagógico,
representa um instrumento de exercício da autonomia administrativa e
pedagógica das escolas de maneira geral. Quando pensamos na Educação
Escolar Quilombola, não podemos deixar de pensar nas particularidades que o
PPP deve refletir nos contextos diversos de comunidades quilombolas. Ou seja,
o PPP é um instrumento muito importante para a implementação das DCNEEQ:
“o PPP deverá expressar as especificidades históricas, sociais, culturais,
econômicas e étnico-raciais da comunidade quilombola na qual a escola se
insere ou é atendida por ela” (BRASIL, 2012, p. 47).
Abaixo sugerimos algumas questões para identificarmos e refletirmos:
Conhecemos a comunidade onde trabalhamos? Já participamos de alguma
atividade, festejo, apresentação, oficina ou vivência na comunidade?
A escola onde trabalhamos é uma escola quilombola? Recebe estudantes
quilombolas? É situada em um território ou comunidade quilombola? É
inscrita no MEC como quilombola?
Ela tem Projeto Político Pedagógico (PPP)?
Ele dialoga com a história e com as tradições e identidade da comunidade?
Como foi construído o PPP? Contou com a participação da comunidade em
sua construção?
O PPP é um projeto que se concretiza no dia a dia da escola?
A formação continuada de professoras(es) na escola trata da realidade
quilombola?
A alimentação escolar prioriza a cozinha quilombola?
Há professores e/ou gestores quilombolas?
Há quilombolas em outras funções educativas, técnicas, pedagógicas ou de
serviços dentro da escola?
Há transporte escolar quilombola?
A comunidade (mães e pais das crianças, griots, jovens) visitam e participam
de atividades na escola?
Há iniciativas desenvolvidas nas escolas que trabalham com as relações
etnicorraciais ou com a realidade quilombola?
Que escola temos? E que escola queremos?
Diretrizes Curriculares
Nacionais para a
Educação Escolar 63
Quilombola
Os debates que envolvem as respostas a essas questões são imprescindíveis
para se expressarem no processo de construção do PPP de uma escola
quilombola, que deve estar totalmente implicado com as DCNEEQ. Do mesmo
modo, esse instrumento precisa refletir o território onde a escola está inserida
ou de onde vem as crianças que são atendidas por ela. Por isso, não tem uma
“receita” pronta para se construir um PPP de uma escola quilombola, este deve
expressar as particularidades de cada território, já que somos muito diversos,
ou melhor, “somos diversais” como nos dizia (e continua a nos dizer como
ancestral) o grande mestre e referência intelectual quilombola Nêgo Bispo
(2023) , do Quilombo Saco-Curtume (Piauí). O que nos convida à outra reflexão
importante: como podemos evitar ou ressignificar a tendência, muitas vezes
presente nas escolas, do PPP se tornar uma mera obrigação burocrática?
Paulo Freire (2016) nos ajuda a pensar sobre a função social da escola: essa não
pode ser apenas um instrumento de ensino da leitura e da escrita, pois assim
sendo, o seu potencial de transformação da realidade fica enfraquecido.
Nossas escolas podem e devem também ser instrumentos de leituras do
mundo, da sociedade, da própria comunidade quilombola: dos modos de vida,
das tradições culturais, da história oral e escrita, de sua ancestralidade, das
formas organizativas e associativas, das lutas e resistências travadas pelo
território, de organização do trabalho e do sustento, da sua comunicação, da
roça e alimentação quilombola, e experiências afins.
Nesse sentido, a escola torna-se um ambiente da comunidade, e não das
gestões que por ela passam. Inclusive considerando a precisa ocupação da
comunidade nesses espaços de gestão, de administração e de formação
escolar.
Ou seja: a construção do PPP nos leva a pensar e repensar o currículo, de modo
que expresse a identidade da comunidade, que valorize as pessoas do território
e seja por elas construído, que influencie e fortaleça as lutas e envolvimentos
da comunidade, sua história, seus modos de existência, seus caminhos futuros
e que estimule intercâmbios entre as variadas disciplinas.
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Portanto, a elaboração de um PPP que reflita os princípios das DCNEEQ e
da comunidade leva tempo, debates entre diferenças, entre pessoas e
situações envolvidas, implica diálogo entre escola e comunidade.
Podemos começar com alguns passos:
O conhecimento e diálogo sobre as DCNEEQ;
Valorização de iniciativas já desenvolvidas dentro das escolas;
Formação de professores e educadores em Educação Escolar
Quilombola;
Conhecimento do território quilombola, a sua história e das pessoas
mais velhas, jovens, crianças e lideranças, de seus ancestrais, de sua
situação fundiária, etc., tudo isso em diálogo com a comunidade e
primando pelo seu protagonismo;
Conhecimento do calendário produtivo e cultural da comunidade e
sua expressão na elaboração dos calendários letivos e das atividades
na escola;
Promoção de reuniões com famílias dos estudantes quilombolas;
Realização de encontros com segmentos que fazem parte da escola da
comunidade;
O conhecimento e intercâmbio com experiências de implementação
das DCNEEQ advindos de outras comunidades;
Fortalecimento da construção de leis e normativas afins que
viabilizem a implementação das DCNEEQ junto ao município;
É necessário que o diálogo entre escola e comunidade seja livre,
horizontal e valorize as formas de registro de história e memória
ancestral já existentes no território. Destacamos a importância da
construção coletiva e participativa da metodologia e linguagem de
acordo com as características da comunidade, onde priorize sua
autonomia, protagonismo, seus saberes e conhecimentos, seu jeito de
ensinar e aprender, sua identidade étnica entre outros elementos que
lhe sejam importantes.
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O diálogo com a denominada “pedagogia crioula” construída pelo próprio
movimento quilombola, especificamente pela experiência do Quilombo de
Conceição das Crioulas (Quilombo localizado no município de Salgueiro, em
Pernambuco), é uma forte inspiração, a qual considera que “a escola tem como
principal compromisso com a comunidade, desenvolver uma prática
pedagógica comprometida com a superação dos processos de colonização, o
que significa promover a ruptura com o machismo, a violência, o
individualismo, o racismo, o capitalismo, as injustiças e a opressão.” (Projeto
Político Pedagógico das Escolas do Território Quilombola de Conceição das
Crioulas. Salgueiro/PE Apud RODRIGUES, 2017, p. 50).
Podemos nos inspirar ainda mais, conhecendo
um pouco sobre a experiência e eixos temáticos
direcionadores do PPP do Quilombo de Conceição
das Crioulas (1), mencionado anteriormente, que
conseguiu, através de mobilização da
comunidade, ser uma referência muito importante
de implementação das DCNEEQ:
Nota
(1) Aula sobre Princípios da elaboração do Projeto Político Pedagógico na EEQ: a
experiência de Conceição das Crioulas - II Curso de Formação de Professoras e
Professores Quilombolas promovido pela Coordenação Nacional de Articulação de
Quilombos (CONAQ).
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Assim, a construção ou reconstrução do PPP é um dispositivo de
planejamento, entendido como muito mais que uma técnica, mas como
ferramenta política e pedagógica. E assim, se constitui um processo rico e
formativo para a educação escolar quilombola.
Então, considerando todos esses elementos...
Vamos correlacionar toda discussão que fizemos nos outros módulos com
essa construção?
Vamos contribuir para o engajamento desse processo na escola onde
estamos inseridas(os)?
OUTRAS INDICAÇÕES DE MATERIAIS:
Aula com o tema 'A escola que temos e a escola que
queremos', do I Curso de Formação de Professoras e
Professores Quilombolas da CONAQ. Com as
educadoras e pesquisadoras Márcia Nascimento e
Maria Diva da Silva.
https://www.youtube.com/live/RRm2D0j-evw?si=a7uQ-
XfUfO5os0KP
Carta de Princípios da Educação Escolar Quilombola de
Pernambuco, de 2009. Disponível em
http://cclf.org.br/project/principios-da-educacao-
quilombolas
Fotografia de Jessica Monteiro 67
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Referências
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no antigo Cabo Frio. Niterói, FUNARJ/Imprensa Oficial, 2012.
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póscolonial na comunidade quilombola Machadinha – Quissamã. 2016. 316 f.
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Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2016.
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Profissional em Educação, Gestão e Difusão em Biociências. UFRJ. 2020.
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BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Lei Nº 9.234 de
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