Revista ARBRE, Belo Horizonte, v.2, jul./dez.
2024 Artigos / Articles
A NARRATIVA DE ACHILLE MBEMBE E FRANTZ FANON
O CONCEITO DE NECROPOLÍTICA E O DEVIR-NEGRO NO MUNDO
Wallison Tiago Rocha45
Bruna Carla dos Santos46
RESUMO
Este trabalho aborda a convergência de pensamentos entre Achille Mbembe e Frantz Fanon, destacados
intelectuais contemporâneos. Fanon, precursor dos estudos pós-coloniais, e Mbembe, crítico das
estruturas coloniais, compartilham uma crítica contundente à lógica colonial. Ancorando-se nos conceitos
de “Necropolítica” de Mbembe, que amplia a análise para micropoderes na sociedade, o texto destaca a
regulação racista em sociedades colonizadas, desafiando a concepção democrática. Mbembe propõe o
devir-negro no mundo, desvinculando a raça da fantasia ocidental, conectando-o à era do neoliberalismo. O
trabalho conclui ressaltando a união de vozes entre Fanon e Mbembe, chamando à descolonização contínua
e devem servir como ponto de partida em nossas análises conjunturais, visando fortalecer a luta antirracista
e as possibilidades de resistência ao poder constituído dentro do Estado democrático de Direito.
Palavras-chave: Achille Mbembe; Frantz Fanon; Necropolítica; Devir-negro; Descolonização.
45 ORCID: https://orcid.org/0009-0003-9388-0333
Doutorando pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (POSLING), com foco em Literatura, Cultura e Tecnologia. A
pesquisa concentra-se na análise do moderno e do contemporâneo na arte e na literatura, juntamente com
as críticas correlatas, explorando as relações histórico-culturais intrínsecas ao campo artístico e literário,
buscando refletir sobre o processo de construção do conhecimento filosófico e tecnológico no contexto
cultural. Dedica-se a investigação das concepções de espaço e identidade na literatura contemporânea,
especialmente as narrativas de resistência à exclusão de indivíduos comuns. Nesse contexto, examino as
obras de autores teóricos e literários como Luiz Ruffato, Luís Alberto Brandão Santos, Doreen Massey, Ivete
Lara Camargo Walty e Regina Dalcastagnè. Mestre Interdisciplinar em Artes, Urbanidade e Sustentabilidade
(PIPAUS), da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ; 2019). Segunda Licenciatura em Artes Visuais.
Graduação em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Língua Espanhola pela Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul (UEMS; 2014). E-mail: [email protected].
46 Doutoranda pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), no qual estuda
três escritores ligados a literatura afro-brasileira/ Lima Barreto, Luiz Silva (com pseudônimo Cuti)
e Adão Ventura. Formada em Letras.Português/Espanhol e mestre em Letras- Literaturas de Língua
Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS; 2017) com o tema
da memória afro-brasileira nas obras das escritoras Ana Cruz e Conceição Evaristo. Além disso, tem
especialização em Língua Portuguesa: Teorias e Práticas de Ensino de Leitura e Produção de Textos
pela Universidade Federal de Minas Gerais- , (UFMG;2023). E-mail: [email protected].
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ABSTRACT
This essay addresses the convergence of thoughts between Achille Mbembe and Frantz Fanon,
prominent contemporary intellectuals. Fanon, a pioneer in post-colonial studies, and Mbembe, a
critic of colonial structures, share a profound critique of colonial logic. Grounding itself in Mbembe’s
concept of “Necropolitics,” which extends the analysis to micropowers in society, the text highlights
racist regulation in colonized societies, challenging the democratic conception. Mbembe proposes
becoming-black in the world, disentangling race from Western fantasy and connecting it to the era of
neoliberalism. The essay concludes by emphasizing the unity of voices between Fanon and Mbembe,
calling for continuous decolonization and serving as a starting point in our situational analyses to
strengthen the anti-racist struggle and possibilities of resistance within the democratic rule of law.
Keywords: Achille Mbembe; Frantz Fanon; Necropolitics; Becoming-black; Decolonization.
INTRODUÇÃO
As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo.
Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de
classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma
de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas
e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.
Achille Mbembe
A narrativa interseccionada de Joseph-Achille Mbembe e Frantz Fanon desenha
um panorama fundamental nos debates acadêmicos contemporâneos. Se outrora era o
Movimento Negro que se apropriava exclusivamente do legado de Fanon, nos anos 1970,
hoje seu pensamento está muito presente nas Ciências Humanas. Achille Mbembe, por
sua vez, surge como um dos intelectuais africanos mais proeminentes da atualidade, com
sua trajetória acadêmica iniciada nos anos 1980, marcando uma continuidade com as
reflexões fanonianas.
De início, é de grande importância destacar que, devido à natureza da pesquisa
bibliográfica, os resultados obtidos aqui são de ordem teórica, e buscam discutir as
questões observadas a partir das leituras.
Frantz Fanon, nascido em 1925 e falecido em 1961, viveu pouco, mas sua influência é
de extrema relevância, pois Suas obras tornaram-se influentes nos campos dos estudos
pós-coloniais, na teoria crítica e no marxismo. Associado aos estudos pós-coloniais e
às abordagens decoloniais, Fanon foi um precursor e divisor de águas. Sua experiência
na Argélia, filiado à Frente de Libertação Argelina em 1957, é central em sua visão
anticolonialista. Durante o seu trabalho como pesquisador e psiquiatra, Fanon discutiu
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sobre vários assuntos ligados a questão negra, como o racismo interiorizado num período
tão conturbado, pelo qual estava inserido, assim, para o estudioso o racismo é uma chaga
que transcende a mera retórica, e demanda uma análise profunda em todos os estratos
da sociabilidade.
Mbembe, por sua vez, teve uma passagem pela Universidade de Duke, o que o
aproximou do pensamento pós-colonial e o afastou criticamente das escolas francesas em
que foi formado. Essa experiência revelou a ele que por trás do aparente cosmopolitismo
residia um projeto colonial. Sua análise (distanciada) oferece uma visão crítica das
estruturas que sustentam o colonialismo.
Ambos os pensadores convergem em um diagnóstico compartilhado: uma crítica
contundente à lógica colonial. Fanon, entre territórios como Martinica, França e Argélia,
teve uma vivência direta do colonialismo, infundindo suas incursões na filosofia e
psicanálise, com uma necessária perspectiva anticolonial. Em contrapartida, Mbembe,
com mais tempo para desenvolver suas ideias, oferece poderosas ferramentas analíticas
para olhar o passado e compreender o presente.
Fanon reivindicava o direito dos “condenados da terra” ao status humano,
denunciando a necessidade de uma “descolonização interior” na França. Esse chamado
ecoa nas reflexões de Mbembe, que, ao analisar criticamente as estruturas coloniais,
proporciona um arcabouço teórico valioso para enfrentar os desafios contemporâneos.
Assim, o legado de Fanon não apenas perdura, mas é amplificado por intelectuais, como
a brasileira e psiquiatra, psicanalista e escritora Neusa Santos e posteriormente com a
ativista e escritora Lélia Gonzalez e como já citado o camarônes Achille Mbembe que
continuam a tecer uma narrativa essencial na compreensão do devir-negro no mundo e
do conceito de necropolítica.
Mbembe (2018) fundamenta suas reflexões teóricas em Michel Foucault para
explicar o período colonial como o primeiro experimento biopolítico da modernidade,
como evidenciado na seguinte citação:
A formulação de Foucault, o biopoder parece funcionar mediante a
divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer.
Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal
poder se define em relação a um campo biológico – do qual toma o
controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição
da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em
subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns
e outros. Isso é que Foucault rotula com o termo (aparentemente
familiar) de “racismo” (MBEMBE, 2018, p. 18).
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Dessa forma, o fenômeno da colonização é explorado para destacar a projeção
do poder sobre a vida. Ao abordar o processo de violência enfrentado pelo povo negro
durante essa fase histórica, o autor revela a extensão dessas desigualdades na formação
dos Estados nacionais. Mbembe (2018, p. 33) destaca que a política realizada por um
Estado compromete-se a “civilizar os modos de matar e atribuir objetivos racionais ao ato
de matar”.
Mbembe (2018) estabelece um diálogo com o filósofo italiano Giorgio Agamben ao
abordar a categoria “estado de exceção”, explicando as formas repressivas desenvolvidas
pela política ocidental. Para Mbembe, essas práticas sociais sustentam as hierarquias
raciais, e as ações empreendidas pelo Estado em nome da “segurança” revelam outras
violações de direitos. Tal contexto propicia a emergência de situações marcadas pela
violência, como descrito na seguinte passagem:
[...] Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma
condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos
militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que
trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios
e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de
milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do
anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras,
assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de
borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias
[...] (MBEMBE, 2018, p. 68-69).
É nesse contexto que a investigação de Mbembe (2018) faz referência ao conceito de
necropolítica. Para o autor, é a partir do racismo que se desenvolve o poder de ditar quem
deve viver e quem deve morrer, numa política de Estado que se pauta em um exercício
contínuo de letalidade:
[...] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir
o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na
economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição
da morte e tornas possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo
Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade do fazer morrer
(Mbembe, 2018, p. 18).
Torna-se evidente que as contribuições de Mbembe oferecem não apenas uma
crítica incisiva às estruturas de poder historicamente estabelecidas, mas também
instigam reflexões profundas sobre a relação intrínseca entre racismo, políticas de
Estado e a perpetuação da violência. Essa compreensão desafia não apenas a forma
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como interpretamos o passado, mas também nos impele a repensar e reconfigurar o
presente, buscando, assim, construir um futuro mais equitativo e justo. Ao unir as vozes
de Fanon e Mbembe, esse chamado à descolonização contínua revela-se como um ponto
de partida essencial em nossas análises conjunturais, proporcionando uma base sólida
para fortalecer a luta antirracista e explorar as possibilidades de resistência dentro dos
princípios fundamentais do Estado democrático de Direito.
NECROPOLÍTICA E BIOPODER EM ACHILLE MBEMBE
O pensador camaronês Achille Mbembe continua suas reflexões influenciadas por
Frantz Fanon e pelas análises de Michel Foucault. Ele sustenta que a escravidão negra
representa inescapavelmente uma narrativa da experimentação biopolítica, sendo um
registro histórico da ascensão do terror moderno. No entanto, ao abordar as dinâmicas
de poder nas sociedades contemporâneas, Mbembe introduz um conceito inovador: a
necropolítica, e argumenta que os conceitos de biopoder e biopolítica são insuficientes
para compreender plenamente o panorama político atual.
Nessa abordagem, Mbembe explora temas como “mundos de morte” e populações
de “mortos-vivos” confinadas em determinadas topografias sociais. Assim, surge uma
questão crucial ao considerar a interconexão entre Fanon, Foucault e Mbembe: em que
medida o necropoder e a necropolítica se relacionam com a tese fanoniana presente em “Os
condenados da terra” (Fanon, 2022), assim como o biopoder e a biopolítica foucaultianos.
Isso visa determinar se Fanon e Mbembe compartilham o mesmo ponto de partida.
A obra de Mbembe, intitulada Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,
política da morte (2018), propõe uma análise profunda sobre questões cruciais relacionadas
à vida, à morte, à democracia, ao estado de exceção e à razão negra. Inspirado pelo conceito
de biopoder de Michel Foucault, Mbembe expande e problematiza as ideias do pensador
francês, destacando a complexidade do controle das vidas humanas. Ele ressalta que esse
controle não se limita ao macropoder, mas se ramifica em uma rede de micropoderes
distribuídos em diferentes setores sociais.
Antes de adentrar na concepção mbemberiana de necropolítica, é relevante mencionar
Foucault e seu conceito de biopoder, considerando este como uma “tradução” atualizada pelo
filósofo camaronense. Referindo-se ao conceito de biopoder, cunhado por Michel Foucault
isto é, à “(...) divisão entre as pessoas que têm de viver e as que têm de morrer [...] Mbembe
(2017, p. 116) externa que a noção de raça compõem o pensamento político ocidental. Dessa
maneira: “[...] Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte
e viabilizar as funções criminosas do Estado [....]” (Mbembe, 2017, p. 117).
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Para Foucault (2005, p. 306), tirar a vida só é admissível no sistema de biopoder, e
as noções de raça e racismo são condicionantes da aceitabilidade deste ato. Sendo assim,
apresenta que: “[...] o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém,
para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada desde
que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (Foucault, 2005, p. 306).
Mbembe expande o micropoder foucaultiano, destacando que o controle das vidas
não se concentra apenas no macropoder, mas fragmenta-se e distribui-se em uma rede,
com agentes que vigiam, disciplinam e punem os “corpos dóceis”. Nessa conjuntura,
Foucault menciona que “o indivíduo é o efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo
próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do
indivíduo que ele constituiu” (FOUCAULT, 1989, p. 183-184).
A obra de Mbembe (2018, p. 7) aborda questões cruciais: “Que lugar é dado à vida, à
morte e ao corpo humano (especialmente ao corpo ferido ou massacrado)? Como estão
inscritos na ordem do poder?”. O autor busca analisar a instrumentalização generalizada
das vidas humanas e a destruição dos corpos marginalizados, questionando a própria
concepção de democracia e seu funcionamento nas colônias.
Diferentemente de Foucault, Mbembe destaca-se ao problematizar a necropolítica,
na qual o racismo é o regulador das sociedades colonizadas, determinando quem vive e
quem morre, criando uma geografia da morte. O espaço dos corpos excluídos não é uma
zona isenta de leis, mas sim um projeto do necropoder, distinto de uma crise democrática.
Mbembe desafia a noção de democracia e sua aplicabilidade nas colônias, considerando-a
uma falácia no Ocidente. Ele argumenta que a democracia, frequentemente associada
ao estado de exceção, perpetua dispositivos de controle, exclusão e genocídio. Ou seja, a
transição histórica de regimes autoritários para democracia não implica necessariamente
uma transformação substancial, mantendo a presença persistente da necropolítica.
O filósofo camaronês denuncia a ilusão de uma democracia real quando esta aceita
sujeitos racistas e que defendem a tortura como parte do sistema formal. Ele desafia a
noção de soberania dentro da democracia, questionando quem é o soberano e como a
razão, frequentemente usada para justificar a democracia, é instrumentalizada para
promover a morte, configurando uma “necrorrazão”.
Mbembe aprofunda-se na crítica à razão como princípio universal, demonstrando
como tal conceito, historicamente construído, serve como instrumento de destruição
dos corpos marginalizados. Contrapondo-se às revoluções europeias que buscavam
uma sociedade humanizada, Mbembe ressalta que esses princípios não se estendiam às
colônias, onde a razão era utilizada para desumanizar e legitimar a opressão.
A abordagem de Mbembe não descarta a concepção de biopoder, mas a considera
insuficiente para compreender as formas recentes de subjugação da vida ao poder da
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morte. Na vivência contemporânea, observamos diversos casos de genocídio, não apenas
promovidos pelo Estado, mas também por milícias organizadas internamente. Assim, o
foco não reside apenas na regulação e controle da vida, mas principalmente na prática
constante, por vezes banalizada ou naturalizada, da política da morte.
A obra Crítica da Razão Negra (MBEMBE, 2017) complementa a compreensão da
necropolítica, evidenciando como o discurso do colonizador branco cria estereótipos e
preconceitos sobre o negro. Mbembe enfatiza a necessidade de desmantelar estruturas
desumanizadoras, considerando essencial a mudança de discursos e pensamentos que
fundamentam a necropolítica. Essas leituras oferecem uma visão crucial para compreender
as relações sociais, especialmente no Brasil, um exemplo marcante de políticas de morte.
O CONCEITO DE DEVIR-NEGRO NO MUNDO
Quisemos escrever este livro à semelhança de um rio com múltiplos afluentes, neste
preciso momento em que a história e as coisas se voltam para nós, e em que a Europa
deixou de ser o centro da gravidade do mundo. (MBEMBE, 2017, p. 9).
É fundamental ressaltar que o conceito de “devir” refere-se ao processo que emerge
a partir de um encontro, mais precisamente, às profundas transformações que ocorrem
a partir desse encontro. O devir representa essa zona de proximidade que se estabelece
entre dois seres em interação, sendo algo que não se resume a “imitar, identificar-se,
regredir-progredir, corresponder, instaurar relações correspondentes, produzir, ou
produzir uma filiação” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 19). Isso significa que afirmar que algo
ou alguém está em um processo de devir-criança não implica simplesmente em imitar
ou assumir a identidade de uma criança, mas sim indica o surgimento de um processo a
partir do encontro com a criança.
Já o conceito de “devir-negro” no mundo, conforme introduzido por Achille Mbembe,
proporciona uma visão intrigante sobre a população vulnerável sujeita a formas extremas
de coerção e extermínio. O destaque crucial reside na distinção marcante que Mbembe
estabelece em relação à concepção tradicional de raça gerada pela modernidade ocidental.
Sua análise refuta a ideia de uma definição imutável de raça e negro ao longo do tempo,
desvinculando-se da fantasia ocidental que historicamente moldou esses conceitos.
Para Mbembe, a raça e a identidade negra são processos em constante transformação,
e ele propõe o devir-negro como uma evolução que transcende a fantasia racial ocidental.
Pela primeira vez na história da humanidade, o nome negro deixa de remeter
unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro
capitalismo (predações de toda a espécie, desapossamento da autodeterminação
e, sobretudo, das duas matrizes do possível que são o futuro e o tempo). A este novo
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caráter descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à sua
generalização ao mundo inteiro, chamamos devir negro do mundo (MBEMBE, 2017, p. 18).
Mbembe conecta o devir-negro à era do neoliberalismo47 descrevendo-a como
um período em que o tempo é convertido em uma força reprodutiva para o capital,
desencadeando uma escalada em busca de maximização dos lucros. Essa fase do capitalismo
resulta na fusão entre o capitalismo e o animismo, gerando implicações profundas para a
compreensão futura da raça e do racismo. O tempo é convertido em uma força reprodutiva
para o capital, desencadeando uma escalada em busca de maximização dos lucros. Essa
racionalidade política globalizada impõe-se de maneira abrangente, moldando não apenas
as relações econômicas, mas também as relações sociais e a própria estrutura do Estado.
A perspectiva instigante sobre a tese do devir-negro no mundo reside na população
vulnerável sob o poder de coação e extermínio. A diferença marcante entre a demarcação
dessa raça por Mbembe e a fantasia da raça criada pela modernidade ocidental não participa
diretamente da construção fantasiosa da raça. É importante salientar que, para Mbembe, a
raça e o negro nunca foram definidos de uma só maneira imutável ao longo do tempo, e ele
argumenta que o devir-negro não se baseia na fantasia ocidental chamada raça.
Dessa forma, a ideia do devir-negro do mundo está intrinsecamente ligada à
concepção da “razão negra”, introduzindo uma abordagem distinta para compreender a
realidade. Conforme apontado por Mbembe (2017, p. 57), essa razão engloba um conjunto
diversificado de “vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo
objeto é a coisa ou as pessoas ‘de origem africana’ e aquilo que afirmamos ser o seu nome
e sua verdade”. A razão negra representa um conjunto complexo tanto “de discursos como
de práticas” que procura moldar a compreensão do ser negro como um “sujeito de raça
e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização
prática” 58). Desse modo, na era atual do neoliberalismo, somos todos equiparados a uma
razão negra épica, transformando o “devir” de uma potência para um ato.
O devir-negro do mundo, conforme delineado por Mbembe, implica na
universalização da condição negra, coincidindo com o surgimento de práticas imperiais
inéditas. Ele destaca que essa universalização é simultânea à persistência de lógicas
escravagistas e coloniais, incluindo guerras civis ou raciais de períodos anteriores.
Mbembe argumenta que o negro, enquanto construção racista, só deixará de funcionar
como tal desclassificação quando for desvinculado dessa plataforma de poder instaurada
(Mbembe, 2017, p.09).
47 “Não se trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, de mercantilização
das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros. Trata-se mais fundamentalmente de
uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos,
na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das
subjetividades e na norma das existências” (DARDOT E LAVAL, 2019, p. 1).
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Por isso, quando nos deparamos com a ideia de um “devir-negro” do mundo,
inicialmente, ela causa estranhamento e surpresa. No entanto, para Mbembe, a questão
do negro está intrinsicamente ligada à história do capitalismo. Para o autor, o capitalismo
possui um “duplo instinto” (Mbembe, 2017, p. 299): de um lado, a violação ilimitada de todas
as formas de interdito; de outro, a abolição de qualquer distinção entre os meios e os
fins. O negro surge como produto desse duplo instinto, sendo considerado por Mbembe
(2017, p. 299) a “figura exemplar de uma violência sem limites e de uma precariedade
sem limites”. No contexto capitalista, todos aqueles que não são proprietários dos meios
de produção são subalternizados, ou, de acordo com a linguagem de Mbembe, são
considerados “negros”.
O avanço predatório do capitalismo para explorar os cantos mais remotos do planeta é
destacado por Mbembe (2017, p. 299, itálicos do autor): “Poder predador, poder autoritário
e poder polarizador, o capitalismo precisou sempre de subsídios raciais para explorar os
recursos do Planeta”. Assim, a ideologia racista e a exploração capitalista se consolidam
como partes integrantes de um único processo essencial para a própria formação do
capitalismo. Essa interligação é tão marcante que o próprio capitalismo não hesita em
“colonizar o seu próprio centro, e que as perspectivas de um devir-negro do mundo nunca
tenham sido tão evidentes” (Mbembe, 2017, p. 299, itálicos do autor). Portanto, assumir-se
como negro é antecipar o destino final muitas vezes imposto no sistema capitalista, que
objetifica o governo interno e externo dos seres humanos e seus corpos.
A análise crítica de Mbembe sobre o devir-negro do mundo também se estende ao
campo democrático, considerando a raça como um dos fatores de estratificação social.
Isso possibilita uma avaliação mais profunda da inserção do corpo negro na política
moderna, na era da globalização e no contexto iminente do devir-negro do mundo.
Essa perspectiva oferece insights valiosos para compreender a condição do corpo negro
diante dos desafios contemporâneos – como as dívidas históricas do neoliberalismo, a
colonização e a exploração. Em última análise, o devir-negro do mundo emerge como
uma narrativa complexa e crítica que instiga a reflexão sobre as interseções entre gênero,
raça, classe e poder e as transformações globais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entrelaçamento das reflexões de Achille Mbembe e Frantz Fanon delineia uma
narrativa intrinsecamente conectada às complexidades contemporâneas. Esta união de
vozes, mesmo atravessando diferentes épocas e contextos geográficos, ressoa como um
eco crítico que transcende os limites temporais. Fanon, com sua experiência direta na luta
anticolonial, e Mbembe, crítico incisivo das estruturas coloniais modernas, formam uma
simbiose de pensamentos que não apenas perdura, mas também floresce na atualidade.
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Frantz Fanon, apesar de sua partida precoce, deixou um legado imortal às Ciências
Humanas, elevando sua voz contra a opressão colonial. Sua visão antirracista e suas
incursões filosóficas ressoam em cada página escrita, provocando uma reflexão contínua
sobre as dinâmicas sociais profundamente enraizadas. A vivência de Fanon na Argélia, sob
o jugo colonial, infundiu suas análises com uma autenticidade que transcende as barreiras
temporais, tornando-se uma fonte inesgotável de inspiração para as gerações subsequentes.
Achille Mbembe, por sua vez, emerge como uma voz contemporânea construindo
sobre os alicerces estabelecidos por Fanon. Sua análise crítica das estruturas coloniais,
especialmente na obra Necropolítica, não apenas expande os horizontes do pensamento
fanoniano, mas também oferece ferramentas conceituais fundamentais para desvelar as
nuances do presente. A distância crítica de Mbembe em relação às escolas de pensamento
francesas e sua imersão nas realidades coloniais conferem uma perspectiva única,
desafiando universalidades aparentes e expondo projetos coloniais subjacentes.
Ambos os pensadores convergem em uma crítica contundente à lógica colonial que
persiste nas estruturas políticas, sociais e econômicas contemporâneas. A necropolítica,
delineada por Mbembe, revela-se como um fenômeno multifacetado que atravessa
fronteiras, determinando quem vive e quem morre em uma geografia da morte. Essa
crítica, entrelaçada com a noção fanoniana de descolonização, desafia os alicerces
das narrativas dominantes e convoca a uma reavaliação profunda das estruturas que
perpetuam a opressão.
O legado de Fanon e – agora amplificado por intelectuais como Mbembe – serve tanto
como um testamento histórico, como uma bússola moral para os desafios contemporâneos.
A narrativa que eles tecem transcende o acadêmico, alimentando um chamado à ação, à
descolonização contínua das mentes e estruturas que moldam nosso mundo. A crítica à
razão como uma força instrumentalizada para a destruição, a desumanização dos corpos
marginalizados e a desconstrução dos discursos coloniais são caminhos essenciais para
forjar um futuro mais equitativo e compassivo.
Neste diálogo intergeracional, a voz de Fanon sussurra em cada linha escrita por
Mbembe, e vice-versa, criando uma sinfonia de resistência e esperança. Suas análises,
convergindo em uma crítica à necropolítica e à instrumentalização da razão, transcendem
as fronteiras do pensamento acadêmico para ecoarem como um chamado universal à
transformação. Que esta união de vozes continue a inspirar aqueles que buscam desafiar
as estruturas opressivas, moldando um futuro no qual a dignidade humana não seja um
privilégio, mas um direito inalienável para todos.
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REFERÊNCIAS
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