DUNS SCOTUS Os Pensadores Sao Tomas Dante Scot Ockham
DUNS SCOTUS Os Pensadores Sao Tomas Dante Scot Ockham
Questão
Alguma verdade certa e integral pode ser naturalmente conhecida pelo intelecto humano
nesta vida sem uma iluminação especial da luz incriadá?
Corpo da Questão
3 A teoria da iluminação faz parte da teoria do conhecimento agOstiniano. Santo Agostinho nunca· a tratou,
porém, de maneira sistemática. O seu ponto central reside na exigência de um contato imediato do intelecto
humano (contingente e falível) com o divino para que possa conhecer a verdade certa e infalível. Agostinho
fala então de leis, regras, normas ou razões eternas que dirigem nosso conhecimento e constituem o funda-
mento de sua certeza e infalibilidade. Na medida em que a razão humana julga de acordo com tais regras ou
razões eternas, é denominada "razão superior". Estas razões ou normas existem no intelecto divino; mas
Agostinho não é muito explícito sobre a maneira como o intelecto humano entra em contato corri. elas.
4
Cf. as respostas de Duns Scot a estes argumentos no n. 279.
Agostinho, Sobre a Trindade IX; c. 6, n. 9 (P.L., vol. 42, coL 966).
6 Jbid. n. 10 (col. 966). - 7
Jbid. n. 11 (col. 967). - 8 Jbid. c. 7, n. 12.(col. ~67).
1 0
!! Jbid. XII, c. 2, n. 2 (col. 999). - 1bid. c. 14, n. 23 (col. 1010). . '
11 Isto é, aos princípios mais gerais do conpecimento, tais como ô de não contradição e, por exemplo o
1
axioma: o todo finito é maior que sua parte. Cf. infra, nn. 230-234.
12 Agostinho, Sobre a Trind. XIV, c. 15, n. 21 (P.L., vol. 42, 1052).
240 SCOT
206. [Quinto argumento.] Ademais, segundo o livro XII das Confissões: 13 "Se nós ambos
vemos a verdade, nem tu a vês em mim, nem eu em ti, mas ambos a vemos naquela verdade imu-
tável que está acima da mente". Além disso, há muitas asserções de Agostinho em muitas outras
passagens para sustentar esta conclusão.
207. Em sentido contrário [isto é, argumento que sim.]
De acordo. com Romanos l, 20, "os atributos invisíveis de Deus são claramente reconheci-
dos, desde a criação do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas". Ora,
as razões eternas são atributos invisíveis de Deus. Portanto, são conhecidas através das criaturas.
Conseqüentemente, um conhecimento certo das criaturas se dá antes da visão destas razões
eternas.
[Corpo da questão]
[Opinião de Henrique de Gand]
208. A respeito desta questão existe uma opinião 1 4 que sustenta que as noções gerais têm
entre si uma ordem natural. Falemos de duas destas noções gerais que vêm ao caso .aqui, isto é,
das:'noções de "ser" e de "verdadeiro". Que a primeira noção é a do "ser" p:i;ova-se pela quarta
proposição do Livro Sobre as Causas: 1 5 "A primeira das coisas criadas é o ser"; e no comentário
sobre a primeira proposição diz-se que "o ser é dotado de aderência mais forte". A razão disto é
que a entidade é absoluta, ao passo que a verdade expressa uma referência ao exemplar. 1 6 Daí
segue-se que o ·ser pode ser conhecido sob o aspecto da entid?.de, embora não seja conhecido sob
o aspecto da verdade.
Esta conclusão é provada também do ponto de vista do intelecto. Pois o ser pode ser ·conce-
bido pela simples inteligência 1 7 e então concebe-se aquilo que é verdadeiro. Mas a verdade
enquanto tal só é concebida pela inteligência que compõe e divide. Ora, a simples inteligência pre-
cede a composição' e divisão.
209. Ademais, se se questiona a respeito do conhecimento do ser ou daquilo que é verdadeiro,
responde-se que o intelecto, em virtude do que lhe compete de puramente natural, pode conhecer
o verdadeiro tomado neste sentido. O que se prova pelo fato de ser inadmissível uma natureza
destituída de sua atividade própria, segundo diz Damasceno. 1 8 E isto é mais inadmissível ainda
em se tratando. de uma natureza mais perfeita, conforme o Filósofo assinala no livro II Sobre o
Céu e o Mundo 1 9 a propósito das estrelas. Ora, a atividade própria do intelecto é conhecer o que
13
Agostinho, Confissões XII, e. 25, n. 35 (P .L: 32, 840).
·
1 4
Trata-se da opinião de Henrique de Gand ( + - 1293) que Scot passa a resumir (n. 208-217) e que refuta-
rá no resto da questão (n. 218 e ss). Cf. Henrique de Gand, Suma, a. 1, q. 2. Além desta Sunia, possuímos
de Henrique uma coleção de Questões Quodlibetais (Questões que Tratam um Pouco de Tudo).
1 5
Livro sobre as Causas, prop. 4 9 ed. Steele (p. 164); cf. ibid. com à prop. I (p. 162).
1 6
Entidade designa de maneira abstrata o que é um ente ou um ser. É dita absoluta porque pode ser enten-
dida em si mesma sem nenhuma comparação com outra. A apreensão da verdade implica, porém, uma
comparação com o exemplar, entendido no sentido de modelo, protótipo.
1 7
Os escolásticos costumam falar de três atos ou operações da inteligência humana. 1) A simples apreelf-
são ou simples inteligência pela qual se apreende o significado de algo sem nada afirmar ou negar a respeito.
O estágio mais elaborado da simples apreensão se expressa na definição. 2)A composição e divisão, isto é,
o juízo no qual afirmamos ou negamos um predicadd de um sujeito. A proposição em que se expressa tal ato
é também denominada composição (proposição afirmativa) ou divisão (proposição negativa). 3) O raciocí-
nio, pelo qual, de certas proposições dadas, inferimos uma outra. ·
A simples apreensão não comportando nem afirmação nem negação, também não comporta nem verda-
de nem erro. Estas são propriedades do juízo e do raciocínio.
18
Damasceno, Sobre a Fé Ortodoxa III, e. 15, n. 234 (P.G. 94, 1058).
19
Aristóteles. Sobre o Céu TT. c. 8. 290 a 29-35.
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 241
·é verdadeiro. Portanto, parece inadmissível que a natureza não dotasse o intelecto do que é reque-
rido para esta operaçã~
210. Mas, se falarmos do conhecimento da verdade, responde-se que há um duplo exemplar:
o criado e o incriado. Isto segundo Platão, que menciona no Timeu 20 um exemplar fabricado e
um não-fabricado, quer dizer, um exemplar criado e um não-criado. O exemplar criado é a repre-
sentação universal 2 1 causada pela coisa; o exemplar i:r:icriado é a idéia na mente divina. Por
conseguinte, há uma dupla conformidade com o exemplar e uma dupla verdade. Uma é a confor-
midade com o exemplar criado. Foi neste sentido que Aristóteles 22 asseverou que as verdades das
coisas são conhecidas através da sua conformidade com a representação inteligível. E parece tam-
bém que Agostinho sustenta o mesmo no livro VIII Sobre a Trindade, cap. 7, 2 3 onde assevera que
· possuímos uma noção geral e particular das coisas coligida a partir dos sentidos. É de acordo
com esta noção que julgamos a verdade de tudo que ocorre, dizendo que se trata de tal ou tal
coisa.
211. Mas parece totalmente impossível que através de tal exemplar adquirido por nós obte-
nha-se uma noÇão inteiramente certa e infalível da verdade da coisa. Os partidários desta opinião
provam por meio de três razões esta conclusão. A primeira baseia-se na própria coisa da qual o
exemplar foi extraído; a segunda, no sujeito no qual o exemplar está; a terceira, no próprio
exemplar.
A primeira razão é a seguinte: O objeto, a partir do qual o exemplar é abstraído, é mutável.
Portanto, não pode ser, causa de algo imutável. Ora, alguém só pode obter a certeza da verdade
de algo em virtude de uma razão imutável. Portanto,· tal certeza não é obtida em virtude deste
exemplar. Diz-se que este é o argumento de Agostinho nas Oitenta e Três Questões, q. 9, 2 4 onde
este afirma que "não se deve esperar a verdade dos sentidos" porque "o que é sensível está
constanteil!-ente em mudança".
212. A segunda razão é esta: A alma é de si mutável e passível de erro. Logo, não pode ser
corrigida ou regulada, a fim de que não erre, por nada que seja mais mutável que ela. Ora, o exem-
plar presente nela é mais mutável do que ela própria. Portanto, este exemplar não regula perfeita-
mente a alma a fim de que não erre. Requer-sé, portanto, uma influência superior especial. Diz-se
que este é o argumento de Agostinho no Sobre a VerdadeiraReligião: 2 5 "A lei de todas as artes",
etc.
2.tÍ3. A terceira razão é que ninguém possui uma noção certa e infalível da verdade se não
'Íiver um critério pelo qual possa discernir o verdadeiro do verossímil. De fato, se não puder dis-
cernir o verdadeiro do falso ou do verossímil, pode duvidar se se engana ou não. Ora, o verda-
deiro não pode ser discernido do verossímil através do supracitado exemplar criado. Logo, etc.
[Prova da premissa menor.] 2 6 Tal representação pode apresentar-se como representação ou,
20 Platão. Timeu, 28-29.
21 Traduzimos por "representação" o termo species que ocorre freqüentemente no contexto da teoria do
conhecimento na Idade Média. Assim, specíes intellígibilís e species universalís foram traduzidos por "repre-
sentação inteligível" e "representação universal''. Pode-se dizer que é o conceito na medida em que é uma
semelhança ou representação da coisa. Species sensibilis foi traduzido por "representação sensível". Trata-se
da impressã"o que a coisa causa sobre os sentidos; equivale a "imagem" (phantasma) quando se fala da
imaginação. .
22
Aristóteles, Metafisica I, c. 1, 981 a 5-7; cf. Analíticos Segundos II, c. 19, 100 a 3-8.
23
.A:gostinho, Sobre a Tn·nd. VIII, c. 4, n. 7 (P .L. 42, 952).
2 4
Agostinho, Sobre Oitenta. e Três Questões Diversas, q. 9 (P .L. 40, 13).
2 5
Agostinho, Sobre a Verdadeira Religião, c. 30, n. 56 (P.L. 34, 147).
2 6
Relembremos que o silogismo categórico consta de três proposições: duas premissas e a conclusão. A
primeira premissa (que contém o predicado da conclusão) é denominada "maior"; a segunda (contendo o
sujeito da conclusão) é denominada "menor". As premissas são o "antecedente" e a conclusão o "conse-.
qüente"; a "conseqüência" é a própria ligação entre a conclusão e as premissas. No e:Xem-plo em questão, o
silogismo é o seguinte: "Quem não puder discernir o verdadeiro do falso ou do verossímil, pode duvidar se
se engana ou não" (maior). "Ora, o verdadeiro não pode ser discernido do verossímil através do exemplar
'criado' (menor)." "Logo, através do exemplar criado, alguém fica em dúvida se· se engana ou não
·(conclusão)."
242 SCOT
de outro modo, como acontece nos sonhos, apresentar-se como um objeto. Se se apresenta como
um objeto, temos a falsidade; se se apresenta como representação, temos a verdade. Portanto,
através de tal representação, não ::;e tem algo que seja suficiente para distínguir quando ela se
apresenta comorepresentação e quando se apresenta como um objeto; conseqüentemente, não se
tem algo que seja suficiente para distinguir o verdadeiro do falso.
214. Destes argumentos coriclui-se qu_e, se acontecer que o homem conheça a ciência certa e
a verdade infalível, isto não lhe cabe porque considere o exemplar extraído da coisa pelos senti-
dos, por mais que este seja depurado e universalizado; mas requer-se que ele considere o exemplar
incriado. Então o modo como isto acontece é expressão da seguinte maneira: 2 7 Não é na medida
em que Deus é conhecido que ele desempenha o papel de exemplar (pela consideração do qual se
conhece a verdade integral). De fato, Deus só é conhecido num atributo geral. 2 8 Mas é a razão do
conhecimento na medida em que é o exemplar puro e a razão própria da essência criada.
215. Para explicar como Deus possa ser a razão do conhecimento sem ser conhecido, utiliza-
se o seguinte exemplo: O raio do sol às vezes procede de sua fonte como que através de uma
iluminação indireta, às vezes diretamente. Embora o sol seja a razão de se ver o que é visto no
raio que dele procede do primeiro modo, entretanto não é como visto em si. Daquilo, porém, que
é visto no raio dele procedente do segundo modo, o sol é razão de conhecimento de tal modo que
é também conhecido. Portanto, quando a luz incriada ilumina o intelecto como que através de
uma iluminação direta, então, na medida em que é vista, é a razão de se ver as demais coisas nela.
No entanto, ela ilumina o nosso intelecto na vida presente como que através de uma iluminação
indireta. Portanto, é a razão de que o nosso intelecto veja embora não seja vista.
216. Estabelece:--se, por outro lado, como esta luz desempenha um tríplice papel em relação
ao ato de visão, a saber, de luz estimulante, de representação que modifica e de caráter ou exem-
plar que configura à sua semelh.ança. Disto se conclui outrossim que é requerida uma influência
especial. De fato, assim como esta essência não é naturalmente vista em si por nós, igualmente
não é naturalmente vista sob o aspecto de exemplar de alguma outra essência. Como Agostinho
o afirma na sua obra Sobre a Visão de Deus: 29 de fato ~stá no seu poder, ser visto - "Se o qui-
ser, é visto; se não o quiser, não é visto".
217. Finalmente, acrescenta-se que a perfeita noção da verdade se dá quando as duas repre-
sentações exemplares concorrem na mente, isto é, uma inerente (criada) e outra proveniente de
fora (não-criada). É deste modo que atingimos a expressão da verdade. perfeita.
2 7
Cf. Henrique de Gand, Suma, a. 1, q. 3.
28
Isto é, não temos nesta vida um conhecimento da natureza divina enquanto tal. Só a conhecemos atrv~s
dos atributos que são comuns a ela e às criaturas e não através dos atributos que lhe sejam próprios; Para
a discussão desta questão, ver Opus Oxoniense I, d. 3, parte 1, q. 1, Infra seção II: o conhecimento natuni.l
do homem a respeito de Deus,
29
Agostinho, Carta 147, a Paulina, Sobre a Vis(jo de Deus, c. 6, n. 18 (P.L. 33, 603).
3 0
Scot usa, como Agostinho, o termo "acadêmico" no sentido de "cético". Trata-se dos seguidores de Pla-
tão reunidos na Academia. Aqui no caso faz-se referência à chamada média Academia e sobretudo à terceira
Academia onde floresceram os ensinamentos céticos.
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 243
31
Aristóteles, Metaf. IV, c. 5, 1010 a 7-11.
32
Agostinho,SolilóquiosI, c. 8,n. 15 (P.L. 32, 877).
33
Boécio, Sobre as Semanas (De Hebdomadibus) (P.L. 64, 1311).
3 4
Aristóteles, Metaf. II, c. 1, 993 b 4-5.
3 5
Aristóteles, Analíticos Primeiros I, c. 1, 24 b 22-24. Trata-se do silogismo da primeira figura em que se
percebe claramente como a conclusão segue-se necessariamente das premissas. No silogismo da segunda ·e
terceira figuras a evidência da ilação não aparece tão claramente.
244 scot
experiênCia dos sentidos. Daí dizer no livro XV Sobre a Trindade, cap. 12 ou 32: 3 6 "Longe esteja
de nós duvidar de que seja verdadeiro o que aprendemos pelos sentidos corporais, pois através
destes aprendemos o céu, a terra, o mar e tudo o que está contido neles". Se não duviamo~ da
verdade dos sentidos, é evidente que também não nos enganamos. Portanto, estamos certos do que
é conhecido por via dos sentidos. De fato, tem-se certeza, quando a dúvida e o engano são
excluídos.
226. Em terceiro lugar, ê pàtente também que Agostinho concede a certeza a respeito dos
nossos atos, no livro XV da mesma obra, cap. 12 ou 31: 3 7 "Quer esteja dormindo ou acordado,
vive, pois cabe ao vivente dormir e ver em sonhos".
227. Se ~bjetars que viver não é um ato segundo mas primeiro, 38no lugat citado segue-se
isto: Se alguém disser "Sei que sei ou que vivo", não pode se enganar, não importando quantas
vezes reflita sobre o que é conhecido primeiro. E no mesmo lugar: Se alguém disser "Quero ser
.feliz", como não será imprudente responder-lhe: "Talvez te enganes"? Refletindo ao infinito sobre
isto, l 1sei que quero", etc. E ainda no rnesmo lugar: Se quem quer que seja disser: "Não quero
errar"; por acaso não é verdade que ele não quer errar? E encontram-se outros argumentos - diz
ele - que valem contrà os acadêmicos que sustentam que nada podé ser conhecido pelo h~meril.
Na mesma obra segu~ isto a respeito dos três livros Contra os Académicos: 39 "Os argumentos
dos acadêmicos contra a percepção da verdade rtão abalarão muito quem tiver entendido estes
livros".
228. Ainda no mesmo livro XV, cap. 15 ou 38: 4 0 '~Aquilo que sabemos de tal modo que
nunca possa ser eliminado pertence à natureza da alma, coino acontece c:o.m o fato de sabermos
que vivemos". 41 Fica assim esclarecido o que diz respeito ao primeiro artigo.
229. Quanto ao artigo segundo, para que o erro dos acadêmicos não tenha lugar em nada do
que potje .ser conhecido, déve~s examinar de que modo se deve falar a respeito dos três objetos de
conhecimento supramencionados (nn. 224i 225 e 226-228), isto é, se é possível ter naturalmente
certeia infalível: [primeiro] sobre os princípios evidentes por si mesmos e sobre as conclusões; em
segundo lugar, sobre o que é conhecido por experiência; em terceiro lugar, sobre os nossos atos.
230. [Certeza dos primeiros princípios e das conclusões que deles derivam.]
Quanto à certeza dos princípios, digo o seguinte. Ôs termos dos princípios evidentes por si
3 11
37
(P
Agostinho, Sobre a Trind. XV, c. 12, n~ 21 .L. 42, 1075).
Ibid. (cal. 1074).
38
O ato primeiro é uma determinação constitutiva do próprio ser; é um ato pelo qual um ser é o que ele
é. O ato segundo designa a operação ou atividade do ser já constituído. Assim, o ato primeiro supõe uma
potencialidade no plano do próprio ser, sendo por isso denominado ato do que é imperfeito (actus imperfec-
ti}, pois na ausência de tal ato um ser não é propriamente. O ato Segundo é denominado ato do perfeito (actus
perfecti) porque a operação supõe o ser já plenamente constituído e revela sua perfeição ..
39
Agostinho, Sobre a Trind. XV, c. 12, n. 21 (P.L. 42, 1074-1075).
40
Ibid. c. 15, n. 25 (cal. 1078).
41
Duns Scot acrescenta aqui uma nota. "Note-se que há quatro tipos de conhecimento nos quais nos é
nec:essária a certeza: a respeito do que é pura e simplesmente cognoscível (nn. 230-234); a respeito do que
é cognoscível pela experiência (nn. 235-237); a respeito de nossos atos (nn. 238-239); a respeito do que é
conhecido por nós rium determinado momento pelos sentidos (iln. 240-245). (O primeiro é manifesto: O ter-
ceiro conclui-se que é evidente por si mesmo, pois, do contrario, não se poderia julgar o que é evidente por
si mesmo. O segundo e o quarto inclúem uma infinidade de proposições evidentes por si mesmas às quais se
acrescentam outras baseadas no testemunho de. vários sentidos). Exemplos: O triângulo tem três âng4los
iguais a dois retos; a lua se eclipsa; estou acordado; aquilo é branco. O primeiro e o terceiro precisam dos
sentidos apenas como ocasião, pois há pura e simplesmente certeza ainda que todos os sentidos errassem. o
segundo e o quarto se sustentam em virtude do princípio: "O que acontece freqüentemente a partir de; algo
que não é livre, tem este algo como causa natural apropriada;,. É deste princípio que deriva o que foi pro-
posto a [respeito do segundo e quarto casos]. Tanto no segundo como no quarto caso, às vezes, acresce uma
proposição necessária (cf. proposições citadas nos nn. 236, 243 e 244). Assim, remete os testemunhos; de
Agostinho (nn. 225•228) até o artigo segundo que trata deste assunto ou que lhe traz a solução." ·
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 245
mesmos têm tal identidade entre si, que um deles evidentemente inclui de modo necessário o
outro. Assim, o intelecto que compõe estes termos, pelo fato de que os apreende, tem presente em
s{ a causa necessária - e mesmo a c.ausa evidente - da conformidade deste ato de composição
com os termos que entram na composição. Por isso; esta conformidade, cuja causa evidente o·
intelecto apreende nos termos, lhe é necessariamente evidente. Portanto, não se pode dar no inte-
lecto a apreensão dos termos e sua composição sem que se dê a conformidade destà composição
com os termos, assim como não podem se dar duas coisas brancas sem que se dê a semelhança
entre elas. Ora, esta conformidade da composição com os termos é a verdade da composição. Por-
tanto, não pode se dar a composição de tais termos sem que seja verdadeira. Assim, não pode se
dar a percepção desta composição e a percepção do.s termos sem que se dê a percepção da confor-
midade da composição com os termos e, portanto, a percepção da verdade, pois o que é percebido
primeiro 42 inclui evidentemente a percepção desta verdade:
231. Esta razão é confirmada pelo Filósofo no livro IV da Metafisica 43 através de um argu-
mento semelhante. Aí, ele sustenta que o oposto de um princíp.io como, por exemplo, deste "é
impossível que o mesmo seja e não seja", não póde estar presente no intelecto de alguém, porque,
neste caso, opiniões contrárias estariam presentes simultaneamente na mente. O que, sem dúvida,
é verdadeiro das opiniões. contrárias, isto é, que se opõem formalmente, pois a opinião que atribui
o ser a algo e a opinião que atribui o não-ser ao mesmo são formalmente opostas.
232. Assim, argumento que, na questão a:qui discutida, há alguma oposição entre as intelec-
ções presentes na mente, ainda que não se trate de uma oposição formal. De fato, se está presente
no intelecto a noção do todo e da parte e a composição de ambos, e tendo em vista que estes ele-
mentos incluem a causa necessária para a conformidade da composição com os termos, então, se
estiver presente no intelecto a opinião de que esta mesma composição é falsa, coexistiriam nele
duas noções incompatíveis. Embora as duas noções não sejam formalmente opostas, uma delas
coexistiria com a outra·e seria· a causa necessária da noção oposta a esta segunda, o que é impos-
sível. De fato, assim como é impossível que o branco e o preto estejam presentes simultaneamente
porque são formalmente contrários, igualmente é impossível que estejam presentes simultanea-
mente o branco e o que é precisamente a causa do preto. Isto é de tal modo necessário, que have-
ria uma contradição em admitir a presença da causa do preto sem a presença deste.
233. Assegurada a certeza dos primeiros princípios, fica claro como se terá certeza das
conclusões tiradas destes graças à evidência da forma do silogismo perfeito, 4 4 visto que a certeza
da conclusão depende apenas da certeza dos princípios e da evidência da ilação.
234. Mas, por acaso, não errará o intelecto neste conhecimento dos princípios e das conclu-
sões, se todos os sentidos se enganarem a respeito dos termos? Respondo que, no que diz respeito
a este conhecimento, o intelecto não tem os sentidos como causa mas apenas como ocasião. Pois
o intelecto só pode ter noção dos termos simples recebendo-a dos sentidos - mas, uma vez rece-
bida, o intelecto pode, por seu próprio poder, compor os termos· simples. Se uma composição for
evidentemente verdadeira em virtude dos termos simples em questão, o intelecto, por seu próprio
poder e por causa dos termos, assentirá a esta composição e não em virtude dos sentidos de que
recebe extrínsecamente os termos. Exemplo: Se a noção de "todo" e a noção de "maior" forem
recebidas dos sentidos e o intelecto compuser esta proposição "qualquer todo é maior do que sua
parte'', 4 5 o intelecto, por seu próprio poder e em virtude dos termos em questão, assentirá indubi-
tavelmente a esta composição. E não o faz apenas porque vê os termos reunidos na coisa (como
acontece quando assente à proposição "Sócrates é branco" - neste caso ele o faz porque vê os
termos reunidos na coisa). Digo até mesmo que se todos os sentidos, dos quais são recebidos estes
tenrtos, fossem falsos ou, o que contrib:ui mais para o engano, se alguns sentidos fossem falsos e
a.lguns verdadeiros, o intel~co não se enganaria a respeito dos princípios .em questão porque os
42 43
Isto é, a percepção dos termos.~ Aristóteles, Metaf. IV, c. 3, 1005 b 29-32. - 4 4 Cf. nota 36.
4 5
Pode-se supor que Sco.t, corretamente, só se refere aqui aos todos finitos, já que era admirador de Grosse-
teste (1168-1253), para o qual o todo só é maior do que a parte em não se tratando de um todo infinito. A
mesma posição foi defendida, modernamente, por Bertrand Russell.
246 SCOT
termos que. são a causa da verdade estariam sempre presentes em si. Assim, se as representações
da. brancura e da pretura fossem miraculosamente impressas durante o sono num cego de nas-
cença e estas representações permanecessem depois, quando tivesse acordado, o inteletto que
abstraísse a partir de tais representações formaria esta proposição: "O branco não é preto". O
intelecto não se enganaria a respeito desta proposição, embora os termos fossem tomados do sen-
tido em estado de erro, porque o conteúdo formal dos termos ao qual o intelecto chegou é a causa
necessária da verdade desta proposição· negativa.
encontra também nenhum outro termo médio anterior através do qual se demonstre por que tal
propriedade pertence a tal sujeito, mas chega-se a este enunciado como a um primeiro princípio,
evidente por causa das exper.iências. Embora neste caso a incerteza e a falibilidade sejam removi-
das por esta proposição, "o efeito mais freqüente de uma causa não-livre é o efeito natural dela",
no entanto, este é o grau mais baixo do conhecimento científico. E talvez não se tenha então um
conhecimento da união atual dos extremos, mas apenas um conhecimento da sua união possível.
Se, de fato, a propriedade é uma realidade absoluta, distinta do sujeito, poderia ser separada deste.
sem que houvesse contradição. Portanto, aquele que tem experiência, teria conhecimento não de
que algo é assim de fato, mas de que, por natureza, é algo apto a ser assim.
238. [Conhecimento dos nossos próprios atos]
A respeito do terceiro tipo de objetos de conhecimento, isto é, a respeito dos nossos atos,
digo que se tem certeza de muitos deles como se tem certeza dos primeiros princípios evidentes
por si mesmos. Isto é esclarecido no livro IV da Metafisica, 5 0 onde o Filósofo diz, a respeito dos
argumentos daqueles que afirmam que "todas as aparências são verdadeiras", que tais argumen-
tos buscam saber "se neste momento estamos acordados ou dormindo". "No fundo, todas essas
questões são equivalentes: o que eles querem é que se dê razão de tudo." E acrescenta: "Procuram
a razão do que não tem razão, pois não há demonstração do princípio da demonstração". Portan-
to, segundo o que o Filósofo diz nesta passagem, que estejamos acordados é evidente por si
mesmo do mesmo modo que o princípio da demonstração.' Que tal proposição seja contingente,
nada obsta, pois, como foi dito em outro lugar, 51 há uma ordem entre as proposições contingen-
tes, de tal maneira que alguma proposição é primeira e imediata. Do contrário, ou regredir-se-ia
ao infinito nas proposições contingentes, ou algo de contingente derivaria de uma causa necessá-
ria, sendo ambos impossíveis.
239. Assim como se tem certeza de estar acordado como de algo evidente por si mesmo,
igualmente se tem certeza também de muitos outros atos que estão no nosso poder; tais como "eu
entendo", "eu ouço", e de muitos outros que são atos do ser já constiuíd~ 52
Com efeito, embora
não haja certeza de que eu veja o branco localizado fora, ou em tal sujeito, ou a tal distância por-
que pode produzir-se uma ilusão no meio ambiente, ou no órgão ou por muitas outras vias, no
entanto, há certeza de que vejo; mesmq que se produza uma ilusão no órgão, a qual parece ser a
maior das ilusões, por exemplo, quando, não estando nenhum objeto presente, produz-se no pró-
prio órgão o mesmo ato que, por natureza, se produziria estando o objeto presente. Assim, se a
faculdade [isto é, o sentido da vista] atuasse nestas circunstâncias, aquilo que se chama de visão
estaria verdadeiramente presente nela, quer a visão seja uma ação, ou uma recepção, ou ambas.
Se, porém, a ilusão não se produzir no órgão próprio mas em algo de próximo que pareça ser o
órgão, como, por exemplo, se a ilusão não se prodÜzir no encontro dos nervos mas no próprio
olho, dar-se-á a impressão de uma representação igual à que, por natureza, seria impressa pelo
branco. Ainda assim, a vista veria, pois tal representação ou o que, por natureza, é visível nela
seria visto porque tem suficiente distância em relação ao órgão da vista que é o encontro dos ner-
vos já citados. Isto é evidenciado pelo que Agostinho diz no livro XI Sobre a Trindade, cap. 2, 5 3 ·
isto é, que os restos das imagens que permanecem no olho são vistos quando os olhos estão fecha-
dos. É também evidenciado pelo que o Filósofo diz no tratado Sobre o Sentido e o SensívelJ 5 4 a
saber, que é visto o fogo gerado pela elevação violenta do olho e que se propaga até a pálpebra
fechada. Embora não sejam as mais perfeitas, estas são verdadeiras imagens, porque há distância
suficiente entre as representações e o órgão principal da visão.
5 o Aristóteles, Metaf IV, e. 6, 1011 a 3-13. - 51 Duns Scot, Opus Oxon., pról., q. 3 (n. 169).
52 Cf. nota 39. - 53 Agostinho, Sobre a Trind. XI, e. 2, n. 4 (P.L. 42, 987).
5 4 Aristóteles, Sobre o Sentido e o Sensível, e. 2, 43 7 a 23-26. ·
248 SCOT
cido pelos sentidos, ou as mesmas coisas têm aparências opostas para os diversos sentidos, ou
não, isto é, todos os sentidos que conhecem este objeto têm o mesmo juízo sobre ele.
241. Se se dá a segunda hipótese, então tem-se certeza sobre a verdade do que é conhecido
'pelos sentidos em virtude desta proposição já citada anteriormente: "Algo, se não for a causa
livre, é a causa natural do que acontece o mais freqüentemente como provindo dele". Portanto,
como uma determinada alteração dos sentidos se produz o mais freqüentemente como proveniente
de um determinado objeto presente, segue-se que a alteração ou representàção produzida é o efeito
natural de tal causa. Assim, esse objeto exterior será branco ou quente ou algo tal qual se apre-
senta naturalmente através da representação produzida por ele o mais freqüentemente.
242. Se porém os diversos sentidos têm juízos diferentes sobre algo que é visto no exterior
(por exemplo, a vista diz que o bastão, parcialmente imerso na água e parcialmente no ar, está
quebrado; a vista sempre diz que o sol é menor do que é e que tudo que é visto a distância é menor
do que é), em todos estes casos há certeza do que é verdadeiro e de qual sentido está errado. Isto
se dá em virtude de alguma proposição que repousa na alma e é mais certa que qualquer juízo dos
sentidos e em virtude dos atos concordantes de vários dos sentidos. De tal maneira que sempre al-
guma proposição corrige a mente ou o intelecto a respeito de quais atos dos sentidos são verda-
deiros e quais falsos. No que concerne a esta proposição, o intelecto não depende dos sentidos
como de uma causa, mas como de uma ocasião.
243. Exemplo: O intelecto tem esta proposição repousando nele: "Nada de mais duro que-
bra-se ao ser tocado por algo mole que cede diante del"~ ;Esta proposição é de tal maneira evi-
dente pelos seus próprios termos, que, mesmo se estes fossem recebidos de sentidos errôneos, o
intelecto não poderia duvidar dela. Mais ainda, o seu oposto implicaria contradição. Ora, que o
bastão seja mais duro do que a água e que a água ceda diante dele é atestado pelos dois sentidos
da vista e do tato. Segue-se, portanto, que o bastão não está quebrado como o sentido da vista o
julga. Assim, o intelecto julga, por meio do que é mais certo do que qualquer ato dos sentidos,
qual sentido está errado e qual não está a respeito da quebradura do bastão.
244. Do mesmo modo, no que con.cerne ao segundo caso citado (n. 242), embora a noção dos
termos seja recebida do sentido errôneo, é evidente para o intelecto que "a dimensão aplicada a
uma outra dimensão permanece absolutamente igual a si mesma". Ora, que a mesma dimensão
possa ser aplicada ao que é visto de perto e ao que é visto de longe_ é atestado tanto pela vista
como pelo tato. Portanto, a dimensão é igual quer seja de perto, quer de longe. Portanto, a vista
erra quando declara que esta 'dimensão é menor. ;;
245. Esta conclusão é inferida de princípios evidentes por si mesmos e dos atos de dois senti-
dos que conhecem que assim é o mais freqüentemente. Portanto, sempre que a razão julga que o
sentido erra, não o julga por meio de algum conhecimento adquirido dos sentidos precisamente
como causa, mas por meio. de algum conhecimento ocasionado pelos sentidos. Neste último o
intelecto não se engana mesmo que todos os sentidos se enganassem. Concorre também para este
julgamento da razão um outro conhecimento adquirido de um sentido ou de vários, tal como este
se dá o mais freqüentemente. Sabe-se que este conhecimento é verdadeiro por meio da proposição
muitas vezes alegada, a saber, "o que acontece o mais freqüentemente", etc.
246. Neste artigo terceiro deve-se responder, a partir do que ficou dito (nn. 230-245), às três
razões [alegadas por Henrique de Gand].
Resposta à primeira razão (n.º 211), isto é, à que é baseada na mudança do objeto: O antece-
dente é falso. Não se trata também de uma opinião de Agostinho, mas sim do erro de Heráclito
e de seu discípulo Crátilo que.não pretendia falar mas apenas mover o dedo, como se diz no Üvro
IV da Metafisica. 5 5 Mesmo que o antecedente fosse verdadeiro, a conseqüência não é válida, pois,
5 5
Aristóteles; Jtfetaf. IV, e. 5, 1010 a 7-15.
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 249
segundo Aristóteles, ainda assim poder-se-ia ter conhecimento certo do que foi dado, isto é, de
que tudo está constantemente em mudança. É também inválida a seguinte conseqüência: Se o ob-
jeto é mutável, éntão o exemplar que é produzido por ele não representa nada sob um aspecto
imutável. De fato, não é a mutabilidade do objeto que é a razão da produção do exemplar, mas
sim a natureza do próprio objeto (que, este sim, é mutável). Portanto, o exemplar _produzido por
ele representa a própria natureza do objeto. Conseqüentemente, se a natureza enquanto ·tal tiver
alguma relação imutável com algo, então este algo e a própria natureza são representados, cada
um pelo seu exemplar, como imutavelmente unidos. Assim, através de dois exemplares produzi-
dos por dois objetos mutáveis (não na medida em que são mutáveis, mas na medida em que são
naturezas), pode-se ter noção da imutabilidade da união destes objetos.
247. 5 6 Mesmo que o objeto não produza o exemplar como mutável, se no entanto o objeto
é mutável, como a relação dele com outro é imutável? Resposta: A relação é imutável no sentido
de que entre os extremos não pode haver a relação oposta [aquela que há] nem, uma vez postos
os extremos, não haver a relação em questão. No entanto, tal relação é destruída pela destruição
de um ou de ambos os extremos.
248. Em sentido contrário: Como se assevera que a proposição é necessária, se a identidade
de qualquer dos extremos pode ser destruída?
Resposta: Quando a.coisa não existe, não tem identidade real. Mas, nesse caso, se existe no inte-
lecto, tem identidade na medida .em que é um objeto conhecido. Esta identidade é necessária só de
certo modo, visto que os extremos não podem existir no intelecto sem que possuam tal identidade.
No entanto, esta identidade pode não existir, assim como um extremo pode não ser conhecido.
Portanto, a proposição no nosso intelecto é necessária de um certo modo, visto ser intransfor-
mável em proposição falsa. Seria necessária de maneira absoluta no intelecto divino, pois os
extremos não têm uma identidade absoluta em nenhum modo de ser, salvo naquele que possuem
ao serem conhecidos pelo intelecto divino. -
249. É claro também que algo pode ser representado sob o aspecto de imutável, embora aqui-
lo que o representa seja em si mutável. De fato, a essência de Deus será representada no intelecto
sob o aspecto de imutável por algo totalmente mutável, quer se trate da representação inteligível
ou do próprio ato de conhecimento. Isto se evidencia atrav,és de um caso semelhante, pois, através
de finito, pode-se representar algo sob o aspecto de infinito.
250. À segunda razão (n. 212) respondo que a mutabilidade da alma pode ser entendida de
duas maneiras: uma, da afirmação para a negação~ vice-versa, como, por exemplo, da ignorância
para a ciência ou da não-compreensão para a compreensão; outra, como que de um contrário
para outro, como, por exemplo,da correção para o engano e vice-versa. A alma é mutável em rela-
ção a qualquer objeto no primeiro sentido da mutabilidade e tal mutabilidade não é dela removida
por nada existente formalmente nela. Mas só é mutável no segundo sentido da mutabilidade, em
relação aos complexos que não são evidentes pelos seus próprios termos. 5 7 Em relação porém ao
que é evidente pelos seus próprios termos, a alma não pode mudar no segundo sentido da mutabi-
lidade. De fato, os próprios termos apreendidos são a causa necessária e evidente da conformi-
dade da composição feita, com eles. Portanto, se a alma, em sentido absoluto, é mutável da corre-
ção para o erro, não se segue que não possa ser corrigida por nada de si mesma. Pelo menos, pode
ser corrigida a respeito daqueles objetos acerca dos quais o intelecto não pode errar, uma vez
apreendidos os seus termos.
251. À terceira razão (n. 213) respondo que, se ela tivesse alguma evidência, antes concl_uiria
contra a opinião que nega a representação inteligível. 5 8 De fato, a representação que pode repre-
sentar o sensível como um objeto nos sonhos seria uma imagem sensível e não uma representação
5 6
Os nn. 247 e 248 têm o caráter de uma anotação. Foram, no entanto, conservados no corpo do texto pela
edição Vaticana. ·
5 7
Isto é, uma relação às proposições ou enunciados que não são evidentes por si mesmos.
58
Duns Scot anota: "O que é a opinião daquele (Henrique de Gand) que sustenta a presente opinião (a que
ficou expressa nos nn. 211-213)". Cf. H. de Gand, Quodlibeta IV, qq. 7, 8 e 23; Quodlibeta V, q. 4.
250 SCOT
inteligível. Portanto; se o intelecto dispuser apenas da imagem sensível como meio pelo qual o ob-·
jeto lhe esteja presente e não dispuser de nenhumarepresentação inteligível, não parece que possa
distinguir o verdadeiro do verossímil através de algo em que o objeto lhe é revelado. Mas, sulon-
do uma reps~tação inteligível no intelecto; este raciocínio não é válido. De fato, o intelecto.não
·pode tomar esta representação inteligível como sendo um objeto em si mesma, país não dispõe de
tal representação inteligível dormindo:
252. Se objet;;i.res que, se a imagem sensível pode apresentar-se como um objeto; portanto ó
inteleeto, em virtude deste erro da faculdade da imaginação, pode errar ou pelo menos ser impedi-
do, de tal maneira que não possa operar como acontece nos sonhos e com os loucos; pode-se res-
ponder que, embora o intelecto seja impedido quando há tal erro na faculdade da imaginação, no
entanto, nesta circunstância, o intelecto não erra porque não exerce nenhum ato.
253. Mas, entãó, como o intelecto saberá ou terá certeza de quando é que a faculdade da
imaginação não erra, já que é pré-requisito esta não errar para que o intelecto não erre? Respondo
que esta verdade repousa no intelecto: "Uma faculdade não erra a respeito do seu objeto propor-
cionado a não ser que esteja indisposta". É também evidente para o intelecto que a faculdade da
imaginação não está indisposta quando estamos acordados, de tal modo que a imagem sensível se
apresente como um objeto. De fato, é evidente por si mesmo; para o intelecto, que quem com-
preende está acordado, de tal maneira que a faculdade da imaginação não é impedida quando
estamos acordados como b é durante ó sono.
254.. Insiste-se ainda contra a dita certeza a respeito dos nossos atos, da seguinte maneira:
parece-me que vejo ou que ouço quando, no entanto, nem vejo nem ouço. Portanto, não há certeza
a este respeito.
i55. Respondo que uma coisa é mostrar, contra aquele que a nega, que uma determinada
proposição é verdadeira; outra é mostrar, àquele que a admite, como é que ela é verdadeira.
Exemplo: No livro IV da Metafisica, 59 o Filósofo não aduz, contra quem nega o primeiro prin-
cípio, 6 0 a impossibilidade de que haja simultaneamente opiniões contrárias na alma. De fato, os
negadores do primeiro princípio admitem como premissa que possa haver simultaneamente opi-
niões contrárias na alma. Aduz, porém, contra tais negadores do primeiro princípio, outras ·
impossibilidades, maís manifestas para eles, embora não sejam mais manifestas em si mesmas.
Por outro lado, mostra, aos que admitem o primeiro princípio, como é que ele é evidente. Com
efeito, ele é evid.ente pelo fato de que o seu oposto não pode vir à mente. O que ele prova: pois,
neste caso, opiniões contrárias poderiam permanecer juntas. Ora; tal conclusão é, no caso, ainda
mais absurda do que a suposição inicial.
256. O mesmo se dá na presente questão. Se admites que nenhuma proposição é evidente por
si mesma, não pretendo discutir contigo, pois é evidente que cometes um descaramento e não
estás persuadido do que dizes. Isto é patente pelos teus atos, como o Filósofo indica no livro IV
da Metafisica. 6 1 Com efeito, se estiveres sonhando com obter logo alguma coisa, não buscarás tal
coisa ao acordares, como o farias se estivesses próximo de obtê-la acordado. Se porém admites
que alguma proposição é evidente por si mesma e que uma faculdade indisposta pode errar a res-
peito de não importa o que, como é claro nos sonhos, então, para que alguma proposição seja
conhecida como evidente por si mesma, é necessário que se possa conhecer quando é que uma
faculdade está disposta ou não. Por conseguinte, é possível se ter noção a partir de nossos atos de
que uma faculdade está de tal modo disposta, que é evidente por si mesmo o que lhe aparece como
taL
257. No que diz respeito à forma do sofisma aqui em questão (n. 254), respondo que, assim
como parece a quem sonha que ele se vê, igualmente poderia lhe parecer que o oposto de um prin-
cípio evidente por si mesmo é pensável. Disto, porém, não se segue que tal princípio não seja:evi-
dente por si mesmo, como também não se segue que não seja evidente por si mesmo, para quem
ouve, que ele ouve. Porque,. a respeito de ambas as verdades, uma faculdade indisposta pode errar,
mas não uma faculdade disposta. E é evidente por si mesmo quando é que ela está disposta e
quando não. Do contrário, não seria possível reconhecer nenhuma outra proposição como sendo
evidente por si mesma. De fato, não seria possível reconhecer qual proposição é evidente por si
mesma: se aquela à qual o intelecto assente quando disposto ou aquela à qual assente quando
indisposto.
: 258. Neste quarto artigo argumento contra a conclusão da opinião [de Henrique de Gand] (n.
: 214) da seguinte maneira. Pergunto: o que é que este entende por verdade certa e integral? Ou
entende, por isto, a verdade infalível, isto é, a verdade isenta de dúvida e engano. Neste caso, foi
provado e declarado anteriormente, nos artigos segundo e terceiro, que tal verdade é possível por
meio do que é puramente natural. Ou entende por verdade integral a verdade que é atributo do ser.
Neste caso, como o ser pode ser conhecido naturalmente, o verdadeiro também pode ser conhe-
cido na medida em que é atributo dele. E se o verdadeiro pode ser conhecido, a verdade também
pode ser conhecida, por .abstração. De fato, qualquer forma que pode ser conhecida como inerente
num sujeito também pode ser conhecida em si e em abstrato à parte do sujeito. Ou, de outra
forma, entende, por verdade certa e integral, a conformidade com o exemplar. Se se trata da
conformidade com o exemplar criado, fica evidenciado o que pretendemos provar. Se se trata da
conformidade com o exemplar incriado, então a conformidade com. ele só pode ser conhecida se
o próprio exemplar incriado for conhecido. Com efeito, uma relação só pode ser conhecida se o
seu termo 6 2 o for. Portanto, é falso sustentar que o exemplar eterno é a razão do nosso conheci-
mento e que permanece desconhecido.
259. Ademais, argumento em segundo lugar da maneira seguinte: O simples intelecto pode
conhecer por via de definição o que conhece de maneira confusa, buscando, pelo método da divi-
são, a definição do que é assim conhecido. Este conhecimento definitivo parece ser o mais perfeito
conhecimento que cabe ao simples intelecto. A partir de tal conhecimento perfeitíssimo dos ter-
mos, o intelecto pode conhecer da maneira a mais perfeita o princípio e, a partir do princípio, a
conclusão. Nisto ó conhecimento intelectual parece se completar de tal maneira, que não parece
necessário o conhecimento de alguma verdade além das mencionadas [isto é, os termos, os princí-
pios e as conclusões].
260. Ademais, em terceiro lugar, a luz eterna que dizes (n. 215) ser necessária para a posse
da verdade integral, ou causa algó naturalmente anterior ao ato, ou não. Se causa, ou o faz nó ob-
jeto ou no intelecto. Ora, não pode causar riada no objeto porque este, na medida em que existe
no intelecto, não tem existência real, mas apenas intencional. Portanto, o objeto não é suscetível
de possuir nenhum acidente real. Se causa algo rto intelecto, então a luz incriada só o move para
conhecer a verdade integral mediante o seu efeito. Se é este o caso, a opinião comum 6 3 parece
atribuir o conhecimento à luz incriada exatamente tanto quanto esta posição. De fato, a opinião
comum afirma que o conhecimento é visto no intelecto agente que é efeito da luz incriada, e efeito
mais perfeito do que o seria aquela luz acidental criada. Se, porém, a luz incriada nada causa de
anterior ao ato [de conhecimento], então, ou a luz sozinha causa o ato, ou a luz junto com o inte-
lecto e o objeto. Se a luz sozinha, então o intelecto agente não tem nenhuma função no conheci-
mento da verdade integral. O que parece inadrriissível, pois esta é a mais nobre função do nosso
intelectç). Portanto, o . intelecto agente, que é 0 que há de mais nobre [entre as faculdades de
62
Uma reiãção s-upõe urh sujeito no qual ela exü;te e um ten;n©· ao qual ela se refere (p. ex., a relação pàter-
nidade tem como sujeito pai e como termo o filho). Obviamente este não é o único sentido dO termo, que
também significa, p. ex., palâvr·a ou conceito (como no n. 259).
63
Cf. Alexandre de Rales, Suma Teológica III, parte 2, inq. 2. q. 1, c. 2, resp. l; Tomás de Aquino, Suma
Teológica, parte 1, q. 84, a. 5; q. 12, a. 11, resp. 3; Boaventura, Sobre a Ciência de Cristo, q. 4.
1
1
•1
1
252 SCOT
conhecimento] 6 4 na alma, concorreria de algum modo para tal ação. A inco.erência aqui inferida
deriva também, de outro modo, da opiniã.o supramencionada. Com efeito, de acordo com quem
sustenta tal opinião (n. 215), o agente que utiliza um instrumento não pode ter uma ação que
ultrapasse a ação do instrumento. 6 5 Portanto, como o poder do intelecto agente não alcança o
1
conhecimento da verdade integral, segue-se que a luz eterna, usando o intelecto agente, não teria
possibilidade de exercer esta ação de conhecimento da verdade integral de tal maneira que o inte-
lecto agente continuasse tendo nisto o papel de instrumento. E se disseres que a luz incriada causa
esta verdade integral junto com o intelecto e o objeto, esta é a opinião comum 6 6 que afirma que
a luz eterna, como causa remota, causa toda verdade certa. Portanto, ou esta opinião [de Henri-
que] será inadmissível, ou não diferirá da opinião comum. 6 7
261. No que concerne à questão, digo que, por causa das afirmações de Agostinho, 68 é preci-
so conceder que as verdades infalíveis são vistas nas regras etrnas~ O "nas" pode ser tomado no
senti d~ de "num objeto" e isto pode acontecer de quatro modos: ou como num objeto próximo,
ou como no que contém o objeto próximo, ou como naquilo em virtude do que o objeto próximo
move o intelecto, ou como num objeto remoto.
262. [l .0 modo.] Para compreensão do primeiro modo digo que todos os inteligíveis são dota-
dos de ser inteligível em virtude do ato do intelecto divino. 6 9 Nesses inteligíveis são visíveis todas
as verdades que a seu respeito podem ser ditas. De tal maneira, que o intelecto que compreende
estes inteligíveis e que, em virtude deles, compreende as verdades necessárias a seu respeito, vê
neles, como em objetos, estas verdades necessárias. Ora, estes inteligíveis, na medida em que são
objetos secundários do intelecto divino, são verdades porque são conformes ao seu exemplar, isto
é, conformes ao intelecto divino; são luz, porque manifestos; e aí, no intelecto divino, também são
imutáveis e necessários, São porém eternos apenas de um certo modo, porque a eternidade é uma
característica do que existe [realmente] e estes inteligíveis só têm existência de um certo modo.
Este é, portanto, o primeiro modo em que se pode dizer que vemos na lui eterna, a saber, no obje-
to secundário do intelecto divino, que é verdade e luz eterna da maneira como foi exposto.
263. [2. 0 modo.] O segundo modo é igualmente claro, porque o intelecto divino contém estas
verdades como se fosse um livro, como o testemunha Agostinho no livro XIV Sobre a Trindqde,
cap. 15: 7 0 "Estas regras estão escritas no livro da luz eterna", isto é, no intelecto divino na medi-
6 4
Wolter, op. cit., p. 183, nota 22, observa: "Esta ou alguma outra restrição similar deve ser acrescentada
porqye, segundo Scot, a vontade ou faculdade do amor é mais nobre que o intelecto agente ou que o intelecto
poss1vel".
6 5
Cf. H. de Gand, Suma, a. 3, q. 4. - 6 6 Cf. nota 64. - 6 7 Da qual Scot participa.
68
Trata-se dos testemunhos aduzidos nos argumentos iniciais da questão (nn.· 202-206). Evidentemente, a
posição de Scot discrepa da de Santo Agostinho, mas os escolásticos raramente afirmavam brutalmente suas
discordâncias em relação a uma grande "autoridade'', sobretudo se esta "autoridade" é a de Agostinho ou
de um Padre da Igreja. Seg~ndo um princípio geralmente aceito de então, as palavras destes c'não deviam ser
negadas, mas explicadas". E o que Scot empreende neste artigo quinto. Aliás, ele próprio formula no Opus
Oxon. I, d. 8, parte 2, q. única (n. 250), o princípio da interpretatio iíí meliorempartem: "Não pretendo atri-
buir-lhes [a Aristóteles e Avicena] coisas mais absurdas do que as.que eles próprios dizem e do que 2 s que
se deduzem necessariamente de suas palavras; desejo dar de suas palavras a interpretação mais razoável que
me for possível". .
69
Segundo Scot, há um conheGim~t divino de todas as criaturas possíveis, quer elas venham a; existir,
quer não. Conhecendo o possível, Deus lhe dá uma espécie de "existência" - a existência como conteúdo
ou objeto de pensamento. É por isso que estas criaturas possíveis são dotadas de inteligibilidade, ou "ser
inteligívej". Este "ser inteligível" depende do intelecto divino de tal modo, que Deus não conhece as coisas
porque são inteligíveis, mas sim elas são inteligíveis porque Deus as conhece. Estes inteligíveis são também
chamados de objeto secundário do intelecto divino, sendo o objeto _primário a própria essência divina.
70
Agostinho, Sobre a Tri!1d. XIV, c. 15, n. 21 (P.L. 42, 1052).
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 253
da em que contém estas verdades. Embora este livro não seja visto, são vistas as verdades que
estão escritas neste livro primordial. Nesta medida, poder-se-ia dizer que o nosso intelecto vê as
verdades na luz eterna, isto é, que ele as vê naquele livro como em algo que contém o objeto. Um
destes dois modos parece estar implicado na compreensão do que Agostinho afirma no livro XII
Sobre a Trindade, cap. 14: 71 "A noção de quadrado permanece incorruptível e imutável", etc. De
fato, só pode permanecer assim na medida em que é objeto secundário do intelecto divino.
264. Há, no entanto, uma dúvida a respeito do primeiro modo (n. 262). Se de fato não vemos
estas verdades tais como existem no intelecto divino Gá que não o vemos), como então se.pode
dizer que vemos na luz incriada [em sentido absoluto] pelo fato de vermos no que é luz incriada
em sentido derivado, e que apenas existe na luz incriada [em sentido absoluto], isto é, no intelecto
[divino] que conhece a luz em sentido derivado. 7 2
265. [ 3 .0 modo]. A isto o terceiro modo 7 3 responde da s~guinte maneira: Os inteligíveis, na
medida em que sao objetos secundários do intelecto divino, têm existência apenas de uni certo
modo. Ora, justamente enquanto algo é ser apenas de um certo modo, e na medida em que existe
apenas desta maneira, não se pode atribuir-lhe uma operação verdadeiramente real. Se é que uma
operação lhe é atribuída, isto se dá em virtude de algo que existe em sentido absoluto. Portanto,
não compete a estes objetos secundários mover o intelecto, precisamente, senão em virtude da
existência do intelecto divino que existe em sentido absoluto e através da qual estes inteligíveis
têm existência num sentido derivado. Assim, portanto, vemos no que é luz eterna apenas ein senti-
do derivado, como no objeto próximo. Mas, de acordo com o terceiro modo, vemos na luz eterna
incriada, como na causa imediata em virtude da qual o objeto próximo move o intelecto.
266. De acordo com o que precede pode-se dizer. também que, segundo este terceiro modo,
vemos na luz eterna como quem vê na própria causa do objeto. Com efeito, o intelecto divino dá
a estes inteligíveis o ser inteligível e por seu ato faz com que este objeto seja tal e que aquele seja
tal outro. Por conseguinte, faz com que tenham, como objetos, um determinado conteúdo inteligí-
vel, através do qual movem posteriormente o intelecto para o conhecimento certo. E que seja
apropriado dizer que nosso intelecto vê na luz, porque a luz é a causa do objeto, evidencia-se por
. . meio de um caso semelhante. Com efeito, diz-se propriamente que compreendemos na luz do inte-
lecto agente, embora esta luz seja apenas a causa ativa, isto é, a causa que toma o objeto [poten-
ciaJ] atual, ou a causa em virtude da qual o obj~t move [o intelecto], ou ambas as coisas.
267. Portanto, a dupla causalidade do intelecto divino (que é a verdadeira luz incriada, a
saber, que produz os objetos secundários no ser inteligível, e que é aquilo por cuja virtude os obje-
tos produzidos também movem atualmente o intelecto) pode como que integrar uma terceira
subdivisão [do terceiro modo] pela qual se pode dizer que vemos verdadeiramente na luz eterna.
268. Pode-se objetar contra estes dois modos que integram a terceira subdivisão [do terceiro
modo], que diz respeito à causalidade [e pelo qual se diz que vemos na luz eterna], porque parece
que neste caso se diria de preferência que vemos em Deus na medida em que quer ou em Deus
como vontade, do que em Deus na medida em que é luz, pois a vontade divina é o princípio ime-
diato de qualquer ato seu a respeito do que lhe é exterior. Respondo que o intelecto divino, na me-
dida em que é de certo modo anterior ao ato da vontade divina, 7 4 produz estes objetos no ser inte-
ligível. Assim, o intelecto divino parece ser uma causa meramente natural em relação a estes
objetos, pois Deus só é causa livre em relação a algo que pressupõe de algum modo antes de si a
71
Ibid. XII, c. 14, n. 23 (P.L. 42, 1011).
7 2
Lembremos que a luz incriada em sentido absoluto é o objeto primário do objeto divino, isto é, a sua pró-
pria essência, e a luz incriada em sentido derivado é o objeto secundário do intelecto divino, isto é, os
possíveis.
73
Este terceiro modo comporta três subdivisões. Vemos na luz eterna por que Deus: 1) produz os inteligí-
veis no ser inteligível dando-lhes um conteúdo inteligível determinado; 2) dá a estes inteligíveis a força de
moverem um infelecto criado~ 3) é a causa dos inteligíveis nos dois sentidos precedentes (considera-se a
dupla causalidade anterior em conjunto). Scot fala da segunda subdivisão no n. 265, da primeira no n. 266
e da terceira no n. 267. Estas três subdivisões do terceiro modo dizem respeito à causalidade divina (cf. início
do n. 268).
7 4
Anterioridade lógica ou de natureza; não anterioridade temporal.'
254 SCOT
vontade como ato voluntário. Ora, como o intelecto produz os objetos no ser inteligível na medi-
da em que é anterior ao ato da vontade, assim também parece cooperar com estes inteligíveis,
como causa· anterior, para a produção do efeito natural destes, a saber, que, enquanto apreen,didos
e compostos, causem a conformidade da apreensão consigo mesmos. Portanto, embora seja possí-
vel não compor tais termos, parece implicar contradição que algum inteleGto forme tal composi-
ção não sendo ela conforme com os termos. Com efeito, embora Deus coopere voluntariamente
para q-µe o intelecto componha ou não estes termos, entretanto, se os compuser, a conformidade
desta composição com os termos parece seguir-se necessariamente do conteúdo destes. Conteúdo
este derivado do fato de o intelecto de Deus os ter causado naturalmente no ser inteligível.
269. Por meio disto se esclarece também por que não é necessária uma iluminação especial
para ver nas regras eternas. De fato, Agostinho afirma que só se vê nelas o que é necessário em
virtude dos seus próprios termos. Ora, em tais casos, tanto a causa remota como a próxima são
ao máximo naturais em relação ao efeito, isto é, tanto o intelecto divino o é em relação aos obje-
tos que movem o nosso intelecto quanto, estes objetos o são em relação à verdade da composição
que os concerne. Ademais, embora a percepção desta verdade não seja a tal ponto natural que o
seu oposto implique contradição, a causa próxima coassistida pela causa remota é natural. Com
efeito, os termos apreendidos e compostos são capazes de causar naturalmente a evidência da
conformidade da composição com os termos. Pode-se supor que Deus coopere com os termos,
para a produção do seu efeito, por influência geral e não por necessidade natural. 7 5 Mas, quer
haja influência geral, ou, o que é mais, necessidade natural de influir nos termos para que produ-
zam seu efeito, é patente que não se requer nenhuma iluminação especial.
270. O que foi suposto a respeito do intento de Agostinho (n: 269) esclarece-se pelo que ele
próprio diz dos filósofos no livro IV Sobre a Trindade, cap. 35 7 6 : "Alguns deles foram capazes
de elevar o olhar da mente além de toda criatura e atingir em parte algum pouco da luz da verdade
imutável, os quais ridicularizam muitos cristãos que vivem só da fé por ainda não serem capazes
disto". Portanto, quer dizer que os cristãos não viram nas regras eternas o que crêem, mas que os
filósofos vêem nelas muitas verdades necessárias.
271. O mesmo vale a respeito do livro IX Sobre a Trindade, cap. 6 7 7 , onde diz: "Não como
é a mente de cada homem", etc., como se dissesse: não é o contingente, mas o necessário que é
visto nas regras eternas.
272. Na mesma obra, no livro IV, cap. 36 78 , argúi contra estes filósofos: "Porque argumen-
tam, com toda verdade, que tudo que é temporal acontece segundo as razões eternas, acaso pude-
ram, por isto, perceber nestas próprias razões quantos são os gêneros de animais e quantas eram
as sementes de cada um deles nos princípios?", etc.; "acaso não pesquisaram tudo isto, não atra-
vés daquela ciência imutável, e sim através da história dos lugares e dos tempos, e deram fé ao
que foi experimentado e observado por outros?" Portanto, entende que o contingente, que só é
conhecido através dos sentidos ou só é crido através das narrativas, não é conhecido através das
regras eternas. No entanto, a iluminação especial é mais requerida para o que deve ser crido do
que para os objetos de conhecimento necessários. De fato, neste caso, a iluminação especial é dis-
pensada ao máximo e basta apenas a iluminação geral.
cap. 14 80 , que "cabe a muito poucos atingir as razões inteligíveis por meio do olhar da mente" e
nas Oitenta e Três Questões 81 que "apenas as almas puras chegam até elas'?"
273. Em sentido contrário: 7 9 porque diz então Agostinho no livro XII Sobre a Trindade.
7 5
Necessidade natural refere-se à causa não-voluntária e não-livre; influência, à causa voluntária e livre.
No caso da causalidade divina em relação ao conhecimento humano, Scot mantém que, mesmo que Deus aja
como causa livre, trata-se de uma influência geral e não especial. Quer dizer, o conhecimento humano não
exige nada a mais do que o que é exigido pelas leis gerais do relacionamento entre as criaturas (e suas opera-
ções) e Deus.
7 6
Agostinho, Sobre a Trindade IV, c. 15, n. 20 (P.L. 42, 901-902). - 7 7 Jhid. IX, c. 6, n. 9 (P.L. 42, 966).
78
Jbid. IV, c. 16, n. 21(P.L.42, 902). - 79 Cf. H. de Gand, Suma, a. 2, q. I e a. 7, q. 2.
80
Agostinho, Sobre a Trind. XII, c. 14, n. 23 (P.L. 42, 1010).
81
Agostinho, Sobre Oitenta e Três Questões Diversas, q. 46, n. 2 (P .L. 40, 30).
SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 255
274. Respondo que esta pureza não deve ser entendida como ausência de vícios, pois no livro
XIV Sobre a Trindade, cap. 15 82, ele sustenta que o injusto vê nas regras eternas o que se deve
fazer de justo e no livro IV da mesma obra, capítulo supracitado 8 3 , afirma que os filósofos vêem
a verdade nas regras eternas sem terem a fé. Ainda ria mesma questão 8 4 assevera que ninguém
pode ser sábio sem ter conhecimento das idéias daquela maneira como talvez concedessem 8 5 que
Platão era sábio. Esta pureza deve, porém, ser entendida como se referindo à elevação do intelecto
à consideração das verdades tais como aparecem em si mesmas e não tais como aparecem nas
imagens sensíveis.
275. Nisto deve-se ter em conta que a coisa sensível exte:çior causa na faculdade da imagina-
ção uma imagem sensível confusa e dotada de unidade acidental, representando a coisa segundo
sua quantidade, figura, cor e demais acidentes sensíveis. Ora, como a imagem sensível representa
apenas confusa e acidentalmente, assim muitos percebem apenas o ser acidental. No entanto, as
verdades primeiras são precisamente tais em virtude do próprio conteúdo dos termos na medida
em que estes termos são abstraídos de tudo que está unido acidentalmente com eles. De fato, a
proposição "Qualquer todo é maior que sua parte" não é uma verdade primeira na medida em que
o todo está realizado na pedra ou na madeira, mas na medida em que o todo é abstraído de tudo
a que está unido acidentalmente. Portanto, o intelecto que nunca compreende a totalidade senão
num conceito acidental, como, por exemplo, na totalidade da pedra ou na da madeira, nunca com-
preende a verdade integral deste princípio porque nunca compreende o conteúdo preciso do termo
graças ao qual o princípio é verdadeiro.
276. Portanto, cabe a poucos chegar até às razões eternas, porque cabe a poucos ter
compreensão do essencial e cabe a muitos ter conceitos acidentais como os mencionados. Mas
não se diz que estes poucos se distinguem dos demais por causa de uma iluminação especial, mas
sim por causa de condições naturais melhores, visto terem um intelecto que abstrai mais ou que
é mais perspicaz; ou por causa de uma pesquisa maior, pela qual alguém chega a conhecer aque-
las qüididades isto é, essências que outro, igualmente dotado, não conhece porque não pesquisa.
Deste modo entende-se a asserção de Agostinho no livro IX Sobre a Trindade, cap. 6 8 6 , a respeito
de alguém que está na montanha e vê embaixo a neblina e em cima a luz pura. De fato, quem sem-
pre só compreende o conceito acidental, da maneira como a imagem sensível representa tais obje-
tos como se fossem seres por acidente, é como se estivesse no vale circundado de neblina. Mas
quem separa as qüididades, que aparecem na imagem s~nível com muitos outros acidentes adjun-
tos, compreendendo-as precisamente por meio de um conceito essencial, tem embaixo a imagem
sensível como sé fosse a neblina e ele próprio está na montànha na medida em que, em virtude do
intelecto incriado que é a luz eterna, conhece esta verdade e vê o que é verdadeiro em cima, como
verdade superior.
277. [4. 0 modo]. De um último modo, pode-se conceder que as verdades integrais são conhe-
cidas na luz eterna como no objeto remoto 'do conhecimento. De fato, a luz incriada é o primeiro
princípio das realidades especulativas e o fím último das realidades práticas. Portanto, os primei-
ros prindpios, tanto das realidades espcula~iv como das práticas, derivam dele. Daí o conheci-
mento tanto das realidades especulativas como das práticas, através de princípios derivados da
luz eterna na medida em que esta é conhecida, ser mais perfeito e anterior ao conhecimento deri-
vado dos princípios próprios ao gênero em questão. É deste modo que compete ao teólogo o
conhecimento de todas as coisas, como foi dito na questão sobre o objeto da teologia 8 7 , e tal
conhecimento é mais elevado do que qualquer outro. Diz-se que a verdade integral é conhecida
deste modo porque é conhecida através do que é só verdade sem nenhuma mistura de não-ver-
dade, pois é conhecida através do ser primeiro do qual, uma vez conhecido, são derivados os prin-
c1p1os para conhecer deste modo. Qualquer outro ser, porém, de que se derivem princípios de
conhecimento num determinado gênero é verdadeiro de maneira deficiente. Só Deus conhece
desta maneira todas as coisas como totalmente íntegras, pois, como foi dito na questão sqbre o
objeto da teologia 88 , só ele conhece todas as coisas precisamente através de Sua essência. ffodo
outro intelecto, porém, pode ser movido por um objeto distinto de si para conhecer alguma verda-
de pela virtude divina. De fato, conhecer que o triângulo tem três ângulos [iguais_ a dois ângulos
retos], na medida em que é uma certa participação de Deus e que tem no universo tal posição que,
de um certo modo, expressa melhor a perfeição de Deus, é conhecer que o triângulo tem três ângu-
los [iguais a dois ângulos retos] de maneira mais elevada do que conhecer isto através da própria
noção do triângulo. Igualmente, conhecer que se deve viver comedidamente por causa da obten-
ção da felicidade última que consiste em atingir a essência de Deus em si mesma, é conhecer este
objeto do conhecimento prático de maneira. mais perfeita do que conhecê-lo através de algum
. princípio do gênero dos costumes como, por exemplo, que se deve viver de maneira honrosa.
278. É desta maneira que Agostinho fala da luz incriada na medida em que é conhecida, no
livro XV Sobre a Trindade, cap. 27 ou 82 89 , onde, dirigindo-se a si mesmo, diz: "Viste muitas
verdades e as que discerniste, tu o fizeste por meio desta luz, pela qual, na medida em que luzia
para.ti, viste; dirige teus olhos para a própria luz e fixa-os nela se puderes; assim verás como a
geração do Verbo de Deus difere da processão do Dom de Deus". E pouco depois: "Esta luz reve-
lou a teus. olhos interiores estas e outras coisas. Qual é pois a causa de não poderes ver a própria
luz com olhar fixo senão, com efeito, a tua fraqueza?", etc.
como da sua causa essencial e principal. Com efeito, o conhecimento sensível é de fato algo aci-
. dental, como foi dito (nn. 234 e 245; cf. n. 275), embora aiguns dos atos dos sentidos sejam certos
e verdadeiros. Mas a qüididade da coisa é 'conhecida em virtude do intelecto agente (que é uma
participação da luz incriada iluminando as imagens sensíveis) e é disto que resulta a integridade
verdadeira. Fica assim refutado o primeiro argumento de Henrique (n. 211) e, de acordo com o
intento de Agostinho, este argumento nada mais prova do que isto.
À segunda razão de Henrique (n. 212) respondo que a alma está sujeita a mudança de um ato
para outro totalmente distinto por causa da diversidade dos objetos e por causa da ilimitação e
imaterialidade dela, pois ela se refere a todo e qualquer ser. Finalmente, ela pode passar do ato ao
não-ato, pois não está sempre em ato. Mas, e:rri relação aos primeiros princípios, cuja verdade é
evidente por causa dos seus próprios termos, e em relação às conclusões evidentemente deduzidas
dos termos, ela não está sujeita à mudança de um contrário para outro, isto é, do verdadeiro para
o falso. De fato, as regras, pela luz do intelecto agente, dirigem corretamente o intelecto e, embora
a própria representação inteligível dos termos seja mutável quanto ao ser, ela representa os termos
de maneira imutável, quanto à representação na luz do intelecto agente. Ora, os termos de um prí-
meiro princípio são conhecidos através de suas representações inteligíveis; portanto, a união des-
tes é evidentemente verdadeira e certa.
À terceira razão (n. 213) deve-se dizer que conclui contra ele [isto é, Henrique]. De fato, ele
só admite a representação inteligível ou a imagem sensível. Ora, tal razão não é válida para a
representação inteligível que represente a qüididade. No entanto, deve-se qdmitir que, se as facul-
dades sensíveis não estiverem impedidas, a representaÇão sensível representa de maneira verda-
deira a coisa. Ora, no sono as faculdades dos sentidos exteriores estão impedidas. Por isso a facul-
dade da imaginação, conservando as representações sensíveis de acordo com a diversidade do
fluxo dos humores da cabeça, as apreende como se fossem as coisas de que são apenas semelhan-
ças, pois têm força de coisas, segundo o Filósofo no tratado Sobre os Movimentos dos Ani-
niais. 9 2 Esta terceira razão nada mais conclui do que isto.]]
Ê necessário que haja alguma ciência universal que considere por si os transcendentais. 1
Chamamos esta ciência de "metafisica'', sendo denominada a partir de "meta", isto é, "além", e
"física", isto é, "ciência da natureza". Trata-se, podemos dizer, da ciência transcendental, pois
tem por objeto os transcendentais.
113. Mas e~tão surge Úma dúvida sobre que tipo de predicados são aqueles que se predicam
[formalmente] de Deus, como "sábio", "bom", etc. Respondo que o ser se divide em infinito e
finito, antes do que nas dez categorias, 2 pois o segundo destes, isto é, o ser finito, é comum aos
dez gêneros. 3 Portanto, tudo o que cabe ao ser enquanto indiferente ao finito e ao infinito, ou
como próprio ao ser infinito, c~be-lh não enquanto restrito a um determinado gênero, mas ante-
riormente e, por conseguinte, enquanto transcendental e fora de qualquer gênero. Tudo o que é
comum a Deus e à criatura é tal que cabe ao ser na medida em que é indiferente ao finito e ao infi-
nito. De fato: enquanto cabe a Deus é infinito e enquanto cabe à criatura é finito. Portanto, cabe
ao ser antes que se divida nos dez gêneros e, por conseguinte, tudo que é deste tipo é
transcendental.
114. Mas então surge outra dúvida: Como pode a "sabedoria" ser considerada um transcen-
dental se não é comum a todos os seres? - Respondo que, assim como não é da natureza do gê-
nero supremo ter sob si -várias espécies, mas sim não ter nenhum gênero acima de si (como, por
exemplo, a categoria· do "quando", que, por não ter nenhum gênero acima de si, é um gênero
supremo, embora tenha poucas espécies ou nenhuma), assim também tudo que não tem nenhum
gênero sob o qual esteja contido é transcendental. Donde pertence à natureza do transcendental
ter somente um predicado superior, o ser. Mas é acidental ao transcendental que ele seja comum
a muitos inferiores.
115. Isto é evidente também pelo fato de o ser ter não só atributos simples conversíveis com
ele como o "uno", o "verdadeiro" e o "bom", mas também alguns atributos em que os opostos se
distinguem contrapondo-se, como, por exemplo, "necessário ou possível", "ato ou potência" e ou-
1
,,,..._,. Numa primeira aproximação pode-se dizer que os transcendentais são os aspectos da realidade que trans-
. cendem o ser fisico. Mais rigorosamente, tudo aquilo que transcende o ser finito, seja como próprio do infi-
nito ou como comum ao infinito e ao finito. Como as categorias aristotélicas se referem ao ser finito, pode-se
também dizer que é transcendental tudo aquilo que não está incluído em nenhuma delas. Scot enumera pelo
menos quatro classes de transcendentais: 1) o ser, o primeiro dos transcendentais; 2) os atributos conversí-
veis com o ser - uno, verdadeiro e bom; 3) um número ilimitado de atributos disjuntos, tais como "infinito
ou finito", "necessário ou contingente", etc., sendo cada uma destas disjunções coextensiva com o ser; 4) as
perfeições puras, isto é, aquelas que não focluem em sua noção formal nenhuma imperfeição, tais comà ·
.. "sabedoria", "vontade", etc.
2
-•. Isto é, as categorias aristotélicas, consideradas aqui como os gêneros supremos do ser finito.
3
- "- Expressão equivalente às dez categorias aristotélicas.
334 SCOT
tros semelhantes. Ora, assim como os atributos. conversíveis do ser são transcendentais porque
derivam do ser enquanto não restrito a algum gênero, assim também os atributos disjuntos são
transcendentais. E ambos os membros dessa disjunção são transcendentais, pois nenhum restringe
o ser a um determinado gêq.ero. No entanto, um membro desta disjunção é formalmente próprio,
convindo apenas um dos membros a um determinado ser, como, por exemplo, o "necessário" na
divisão "necessário ou possível", ou o "infinito" na-divisão "finito ou infinito", o mesmo aconte-
cendo com os demais. Assim também a "sabedoria" e tudo o mais que seja coinum a Deus e à
criatura pode ser transcendental, embora alguns atributos deste tipo prediquem-se somente de
Deus, outros porém de Deus e de alguma criatura. Pois não é necessário que o transcendental
como transcendental predique-se de todo ser, exceto se for conversível com o primeiro transcen-
dental, isto é, o ser.
137. Digo que, ... uma vez que nada pode ser mais comum que o ser, e que o ser não pode
ser um predicado comum unívoco e qüiditativo 4 de tudo que é por si mesmo inteligível Qá que não
pode ser predicado desta forma nem das diferenças últimas 5 nem de seus atributos), 6 segue-se que
nada é objeto primeiro de nosso intelecto 7 em razão de sua comunidade qüiditativa em relação a
tudo que é por si inteligível. Não obstante isto, digo que o primeiro objeto do nosso intelecto é o.
ser porque nele concorre uma dupla primazia, isto é, a de comunidade e a de virtualidade. 8 Pois
tudo que é por si mesmo inteligível, ou inclui essencialmente a noÇão de ser ou está contido virtual
4
Traduzimos por "predicado qüiditativo" as expressões dictum in quid e praedicatum in quid; por "predi-
cado qualitativo", dictum in quale epraedicatum in quale. ·
O primeiro grupo cie expressões refere-se aos predicados que expressam a essência (qüididade) de algo, -seja
de maneira determinada (espécie) ou indeterminada (gênero). O segundo grupo refere-se aos predicados que
exprimem alguma determinação ou qualificação da essência, seja esta uma determinação ou qualificação
essencial (diferença específica) ou não-essencial (propriedade ou acidente).
Para que algo sejapraedicatum in quid, além de o predicado expressar a essência é preciso que ele seja atri-
buído ao sujeito à maneira de algo subsistente, quer dizer, deve ser expresso por um substantivo. Exemplos:
substância, brancura, racionalidade, animal, animal racional, vida, verdade, bondade, etc. Para um praedi-
catum in quale é preciso que o predicado seja atribuído ao sujeito à maneira de denominação, isto. é, que se
expresse por meio de um adjetivo, advérbio oü particípio. Exemplos: substancial, branco;racional, vivente,
verdadeiro, bom, etc. O ser (ens) pode. ser predicado in quid e in quale, conforme seja tomado como substan-
. tivo ou como particípio presente.
5
Para a distinção entre conceitos irredutivelmente simples e não irredutivelme'nte simples, ver nota 24 da
seção II. Scot considera que devemos chegar finalmente a um único conceito qiiiditativo irredutivelmente
simples: o ser usado como substantivo. Mas as diferenças últimas, ou seja, os conceitos qualitativos irré!duti-
velmente simples que restringem o ser a um determinado conceito, serão tantas quantos os tipos de conceito.
Wolter propõe que se distinga, segundo Scot, três tipos de diferença últimas: 1) a haecceitas ou diferenças
individuante; 2) certas diferenças específicas; 3) as diferenças transcendentais, como, por exemplo, as que
restringem o ser ã uma das categorias ou que o dividem antes da divisão em categorias, como, por exemplo,
"finito ou infinito'', "necessário ou contingente", etc.
6
Atributo ou propriedade designa aquelas determinações ou características que derivam da es~ncia de
algo e estão necessariamente ligadas a esta essência, embora não façam parte dela. O ser tem dois tipos de
atributos: os que são simplesmente conversíveis com ele - uno, verdadeiro e bom; os que são conversíveis
~isjuntame!_ - infinito ou finito, necessário ou contingente, simples ou composto, etc. ·~
7
Isto é, aquele objeto através do qual o intelecto capta tudo o mais.
8
Primazia de comunidade ou de predicação comum quer dizer que o ser concebido como um substantivo
pode ser atribuído aos gêneros, espécies e indivíduos; às partes essenciais dos gêneros; ao ser incriado. O ser
é um predicado qüiditativo (praedicatum in quid) de tudo isto. .
Primazia de virtualidade quer dizer que a relação do ser para com as diferenças últimas e os atributos do ser
é, po~ assim dizer, in~ret, isto é, que as di~ernças últimas estão incluídas essencialmente (como diferenças
espcifa~ o~ det~rmços transcendentais) ei;i algum dos conceitos supramencionados e que os atributos
do s~r es!ao i_~cl.wd?s virtualmente (com~ propnedades) nele e nos seus inferiores (os conceitos que recebem
p:edicaçao qmditativa do ser). Ver tambem nota 27 da seção II, para a distinção entre inclusão essencial e
virtual.
SOBRE A METAFÍSICA 335
ou essencialmente em algo que inclui essencialmente a noção de ser. De fato, todos os gêneros,
espécies e indivíduos, todas as partes essenciais dos gêneros e o ser incriado incluem o ser qüidita-
tivamente. Por outro lado, todas as diferenças últimas estão incluídas essencialmente em algum
dos supramencionados e todos os atributos do ser estão incluídos virtualmente no ser e nos seus
. inferiores. Portanto, aquilo para o que o ser não é um predicado unívoco e qüiditativo está
incluído naquilo para o qual o ser é unívoco deste modo. Fica assim claro que o ser tem primazia
de comunidade em relação aos primeiros inteligíveis, isto é, em relação aos conceitos qüiditativos
dos gêneros, espécies e indivíduos; de todas as partes essenciais destes; e do ser incriado. E tem
primazia de virtualidade em relação a todos os inteligíveis incluídos nos primeiros inteligíveis,
isto é, em relação aos conceitos qualitativos das diferenças últimas e dos atributos próprios.
138. A comunidade do ser, predicado qüiditativamente, em relação a todos os conceitos qüi-
ditativos supramencionados (n.137), suposta por mim, prova-se a respeito de todos estes pelas
duas razões alegadas na· primeira questão desta distinção para provar a comunidade do ser ao ser
criado e incriado (nn. 27 e 35 da seção II). Para que tal suposição se torne clara, exponho agora
um pouco as razões citadas.
A primeira do seguinte modo (n. 27 da seção II). Acontece, com efeito, a respeito de qual-
quer um dos supracitados conceitos qüiditativos (n. 137), estar o intelecto certo de que este é ser,
duvidando das diferenças que restringem o ser a tal conceito. Assim, o conceito de ser, enquanto
se aplica a este conceito, é distinto dos conceitos inferiores a ele a respeito dos quais o intelecto
está em dúvida; distinto de tal maneira, que estejam incluídos em ambos 9 os conceitos inferiores,
pois estas diferenças restritivas pressupõem o mesmo cone.eito comum de ser que restringem.
139. Exponho a segunda razão da seguinte maneira (n. 35 da seção II): Assim como foi argüido
(n. 138; n. 27 da seção II) que Deus não é naturalmente cognoscível por nós, exceto se o ser for
unívoco ao criado e ao incriado, igualmente pode-se argüir a respeito da substância e do acidente.
Pois se a substância não move imediatamente nosso intelecto a alguma fotelecção dela, mas ape-
nas o acidente sensível o faz, segue-se que não poderíamos ter dela nenhum conceito qüiditativo,
a não ser que algo de tal possa ser abstraído do conceito do acidente. Ora, o único conceito qüidi-
tativo deste tipo, abstraível do conceito do acidente, é o conceito de ser.
140. O que se supôs com referência à substância (n. 139), isto é, que não move imediatamente
nosso intelecto a um ato a respeito dela, prova-se. Com efeito, de tudo que, estando presente,
move o intelecto, a ausência pode ser naturalmente conhecida pelo intelecto quando este não é
movido; como está claro no livro II Sobre a Alma 1 0 que a vistà percebe as trevas, isto é, quando
a luz não está presente e a vista, por conseguinte, não é movida. Portanto, se o intelecto fosse mo-
vido imediatamente pela substância a um ato a respeito dela, seguir-se-ia que, estando a subs-
tância ausente, o intelecto poderia conhecer que ela não está presente. Assim, poderia conhecer
naturalmente que a substância do pão não está na hóstia consagrada do altar, o que é manifesta-
mente falso. 1 1
145. Portanto, não· se tem naturalmente nenhum conceito qüiditativo da substância imediata-
mente causado por esta, mas apenas o causado pelo acidente ou dele abstraído em primeiro lugar.
Este conceito não é senão o conceito de ser.
_.,.,.,,,,. 146. Pelo mesmo argumento (n, 139) chega-se também à mesma conclusão 1 2 no que diz respeito
às partes essenciais da substância. Pois, se nem a matéria nem a forma substancial movem o inte-
9
Isto é, por um lado, os coneit~ qüiditativos, por o"utro, as diferenças que os determinam.
10
Aristóteles, Sobre a Alma II, cap. 2, 425b21.
1 1
Scot alude ao ensinamento teológico de que, na Eucaristia, depois da consagração, a substância do pão
e do vinho não está mais presente, embora os acidentes ou caracteres perceptíveis de ambos permaneçam os
rncsmo.Oite~ em' seguida os nn. 141-144 que aduzem algumas instâncias ao argumento do n. 140 e
respondem a elas. •
a elas.
12
Isto é, a comunidade do ser predicado qüiditatlvamente. Cf. n. 138.
336 SCOT
lecto a um ato a respeito delas, pergunto: que conceito simples da matéria ou da forma haverá no
intelecto? Se dizes que algum conceito relativo: por exemplo, de parte; ou que algum conceito aci-
dental: por exemplo, de alguma propriedade da matéria ou da forma; pergunto: qual é o conceito
qüiditativo ao qual este conceito acidental ou relativo é atribuído? Se não houver nenhum con-
ceito qüiditativo, nada haverá a que se possa atribuir este conceito acidental. Ora, o único con-
ceito qüiditativo que pode haver .é o impresso por aquilo que move o intelecto, isto é, o acidente,
ou abstraído deste. E tal conceito será o de ser. Assim, nada se conheceria das partes essenciais
da substância, a não ser que o ser seja algo de unívoco, comum a elas e aos acidentes.
147. Estas razões (n. 138) não implicam a univocação qüiditativa do ser em relação às diferenças
últimas e aos atributos. A réspeito da primeira razão (n. 27 da seção II) mostra-se isto pelo fato
de o intelecto estar certo de que tais diferenças últimas e atributos são ser, duvidando se são este
ou aquele ser. No entanto, o intelecto não está certo de que são ser qüiditativamente, mas, por
assim dizer, por predicação acidental. 1 3 Ou de outro modo e melhor. Qualquer conceito destas
diferenças últimas e atributos é irredutivelmente simples 1 4 e, portanto, não pode ser concebido
sob um aspecto e ser ignorado sob outro, como é evidente pelo que diz o Filósofo no fim do livro
IX da Meta/tsica 1 5 a respeito dos conceitos irredutivelmente simples: a respeito destes não há
erro como acôiiteGe no que se refere à qüididade dos complexos. Isto não deve ser entendido como
se o simples intêlecto 1 6 errasse formalmente a respeito da intelecção da qüididade, pois na sim-
ples intelecção não há verdade nem erro. Mas, no que se refere à qüididade composta, o simples
intelecto pode errar virtualniénte. Pois, se esta noção é em si falsa, então inclui virtualmente uma
proposição falsa. Mas a noção irredutivelmente simples não inclui de modo próximo nem virtual
nem formalmente 1 7 uma proposição falsa. Portanto, não há erro a seu respeito. Com efeito, ou
ela é captada totalmente ou não o é, e então é completamente ignorada. Portanto, a respeito de ne-
nhum conceito irredutivelmente simples, não pode haver certeza no que concerne a um aspecto
seu e dúvida no que concerne a outro aspecto.
148. Por isso fica também clara a resposta à segunda razão supra-alegada (n. 35 da seção II),
pois tal conceito irredutivelmente simples (n. 14 7) é completamente ignorado, a não ser que seja
concebido na totalidade do que é em si mesmo.
149. Pode-se também responder de um terceiro modo à primeira razão (n. 147). De fato, o con-
ceito a respeito do qual há certeza é distinto daqueles em relação aos quais há dúvida. Se este
mesmo conceito certo preserva-se com ambos aqueles duvidosos (n. 27, seção II), ele é verdadei-
ramente unívoco, já que é captado junto com estes últimos. Não é porém necessário que esteja
incluído nestes qüiditativamente. Poderá estar incluído desta maneira ou ser unívoco em relação
a eles como o determinado em relação aos determinantes ou como o denominável em relação aos
denominantes. 1 8
150. Portanto, em resumo, o ser é unívoco em relação a tudo. Mas em relação aos conceitos não
irredutivelmente simples é um predicado qüiditativo; em rela9ão aos irredutivelmente simples é
unívoco como o determinável ou o denominável, não porém ·como um predicado qüiditativo, por-
que isto inclui uma contradiÇão. 1 9
151. Fica assim claro como no ser concorre uma dupla primazia, isto é, a primazia de comuni-·~
dade qüiditativa em relação a todos os conceitos não irredutivelmente simples e a primazia de
virtualidade, em si ou nos seus inferiores, em relação a todos os conceitos irredutivelmente
simples.
13
Cf. nota 8. - 1 4 Cf. nota 5.
1 5
Aristóteles, Metafisica IX, cap. 10, 1051b25-28; 13-15.
1 6
19
Cf. nota 18 da seção I. - 1 7 Cf. nota 27 da seção II. - 18 Cf. nota 8.
Isto é, estes conceitos não seriam mais irredutivelmente simples como Scot evidencia nos nn. 132-136
não traduzidos. '
SOBRE A METAFÍSICA 337
livro I da Física porque, tomando a mesma premissa maior contra Avicena, deseja provar que
Deus e as substâncias separadas são sujeito da metafisica e que não se prova na metafisica que
Deus existe, pois nenhuma espécie de substância separada pode ser provada senão através do
movimento, o que pertence à física.
Mas parece-me que Avicena se exprimiu melhor do que Averróis. Portanto, arguo contra
este do seguinte modo: Esta proposição -·"Nenhuma ciência prova que seu sujeito existe"-,
sustentada por ambos, é verdadeira por causa da anterioridade do sujeito em relação à ciência.
Pois, se fosse posterior, provar-se-ia "que ele existe" naquela ciência em que é concebido como
posterior e não apenas como objeto adequado. Mas o sujeito goza de maior prioridade em relação
à ciência P<?Sterior do que em relação à anterior. Portanto, se a ciência primeira não pode provar
que seu sujeito existe, muito menos a ciência posterior.
De outra forma, pode-se argumentar da seguinte maneira: Se o físico pode provar que Deus
existe, então "que Deus existe" é uma conclusão da física. Mas, se a metafisica não pode provar
deste modo que Deus existe, então "que Deus existe" é pressuposto como um princípio na metafi-
sica e, em conseqüência, a física é anterior à metafisica.
Ademais, a partir de toda propriedade manifesta no efeito pode-se concluir que a causa exis-
te, se é que aquela só inere em virtude de tal causa. Ora, não são apenas aquelas propriedades do
efeito, consideradas na física, que são as únicas a serem atribuídas a Deus, mas também as consi-
deradas na metafisica. Pois não só o movimento pressupõe o motor, mas também o ser posterior
pressupõe o anterior. Assim, a partir da prioridade nos seres pode-se concluir que um ser primeiro
existe e isto de maneira mais perfeita do que se conclui na física, a partir do movimento, que um
primeiro motor existe. Daí, a partir do ato e da potência, da finitude e da infinitude, da multidão
e da unidade, e a partir de muitas outras coisas deste tipo, que são propriedades e atributos meta-
físicos, pode-se concluir, na metafisica, que Deus existe ou que um ser primeiro existe.
Portanto, no que concerne a este artigo, digo que Deus não é sujeito da metafisica, pois,
como foi provado acima na primeira questão, 2 5 a respeito de Deus como sujeito primeiro, há ape-
nas uma ciência e esta não é a metafisica. 2 6 Isto prova-se da seguinte maneira: A respeito de
qualquer sujeito, mesmo de uma ciência subordinada, conhece-se imediatamente através dos sen-
tidos que ele é de tal natureza que não lhe repugna existir, como é patente· no. que concerne ao
sujeito da óptica. Com efeito, apreende-se imediatamente por meio dos sentidos que a linha visível
existe. Pois, assim como os princípios são apreendidos imediatamente; uma vez apreendidos os
termos através dos sentidos; assim também, contanto que o sujeito não seja posterior ao seu
princípio 2 7 nem menos conhecido que este, é necessário que o sujeito da ciência seja apreendido
imediatamente por meio dos sentidos. Mas nenhuma noção apropriada a respeito de Deus, conce-
bível por nós, é apreendida imediatamente pelo intelecto· humano nesta vida. Assim, nenhuma
ciência naturalmente adquirida pode dizer respeito a Deus sob alguma noção apropriada. Prova
da premissa menor: a ·primeira noção que concebemos a respejto de Deus é que Ele é o ser primei-
ro. Esta noção, porém, não é apreendida por nós através dos sentidos, mas nos é necessário pri-
meiro conceber a compossibilidade da união destes dois termos [isto é, "ser" e "primeiro"].
Donde, antes de conhecermos esta compossibilidade, ser necessário que se demonstre que algum
ser primeiro existe. Portanto, etc.
Concedo, portanto, com Avicena que Deus não é sujeito da metafisica. A afirmação do Filó-
sofo no livro I da Metafisica 28 dizendo que a metafisica trata das causas altíssimas nada obsta.
Pois ele fala como o fez no livro Idos Analíticos Primeiros, 29 onde diz: "Primeiro é necessário
dizer acerca de que e a propósito de que é esta investigação. É acerca da demonstração e a propó-
sito da disciplina demonstrativa, isto é, da ciência geral do demonstrar ou silogizar". Daí, "acerca,..._._
de" indicar propriamente o aspecto da causa final assim como o da causa material. Dondei a
metafisica ser acerca das causas altíssimas como seu fim e a ciência metafisica atingir o seu termo
no conhecimento destas.
2 5
· Duns Scot, Opus Oxon. I, q. 1, a. 4.
2 6
A ciência que tem a Deus como sujeito primeiro é a teologia.
2 7
Isto é, alguma proposição imediatamente evidente da qual ele seja sujeito.
28
Aristóteles, Metaf I, cap. 2,passim.
29
Aristóteles, Analíticos Primeiros I, cap. l, 24a lüss.