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Viagens de Gulliver - 1909 OCR

O documento apresenta uma edição de luxo de 'As Viagens de Gulliver', de Jonathan Swift, redigida para a juventude brasileira. O texto descreve a infância do protagonista, suas experiências como cirurgião e suas aventuras no mar, culminando em um naufrágio que o leva a uma ilha desconhecida. A narrativa destaca a transição do personagem de uma vida tranquila para uma série de desventuras em terras estranhas.

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André Netto
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Viagens de Gulliver - 1909 OCR

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Viagens de
O B R A S JÁ P U B L IC A D A S D O MESMO A U TO R .

I. — Contos seleetos das mil e uma noites.


II, — Robinson Crusoé.
III. — Dom Quixote de ia Maneba.

Edições de luxo, ornadas com riquíssimos cliromos, prefaciadas por


summidades litterarias.

É\
■l-(i >1

AS VIAGENS

GULLIVER
TERRAS DESCONHECIDAS
POK

JONATHAN SWIFT

Redigridas para a mocidade brazilelra


POE

CARLOS JANSEN

Edição de luxo, ornada com nove bellissimos chromos

RIO DE JANEIRO - S. PAULO — RECIPE


L A E M M E R T & C .,
EDITOKES-PKOPRIETAKIOS
-
LIVRO PRIMEIRO:

V iagem a L iliput .
CAPITULO I.

^ casei em Nottinghamshire, um dos muitos condados


inglezes e, se a fazenda rural de meu pai nào era
muito considerável, em compensação éramos cinco
irmãos, sendo eu o terceiro.
Foi a minha infancia aquillo que sóe ser a
infancia dos fazendeiros, isto é, occupei-me pouco de cousas uteis,
vagueiando de preferencia por campos e florestas, em busca de
ninhos de passarinhos, ou pescando nos claros regatos.
Ncão se pódc afíirmar que semellnantes occupações agradassem
muito a meu pcui; e, píira dizer a verdade, tão pouco erão do seu
gosto, que em um bello dia, — fazia eu justamente quatorze annos!
— metteu a minha pessoa na diligencia e mandou-me á Cambridge,
onde muito tratei das sciencias.
Uma destas, porém, a que ensina á gente a contar, evidenciou
em breve a meu pai que as despezas, que commigo fazia, excediao
em muito á quota dos rendimentos que para este fim podia destinar,
e fui recambiado para a casa de um cirurgião de Londies, INIi.
Bates, como aprendiz da arte do escalpelo.
Perm£ineci quatro annos em companhia desse excellente mestre,
aprendendo não sómente tudo quanto se relaciona com o curativo
de feridas velhas e novas, como ainda muitas outras cousas, a
— 4 —

medida que me attrahiào e sabiào ti

prender-me a attencilo.
71
ít y i Estudos meus de predilecção
forão os conhecimentos náuticos,
porque já então bruxoleava-me
na alma o desejo, mais tarde
irresistivel, de vêr com os meus
olhos uma boa parte da nossa
bola terra-
quea.
'í Atirei-
me pois,
ás mathe-
maticas e
outras que
taes, ate
que a ca­
beça me
ardeu em
1 labaredas,
e convenci-
mc de que saberia governar qualquer náo, se previamente praticasse
um ou dous annos os misteres da bella navegação.
Acabou-se o meu tirocínio, como todas as cousas deste mundo ;
voltei á casa paterna, onde permaneci alguns dias, recebendo de
meu pai e de alguns tios quinhentos mil réis, mais ou menos, de
mimo, crescendo ainda o beneíicio pela promessa que me darião
annualmente duzentos, até que estivesse no caso de prover pessoal­
mente as cousas da vida. \
É escusado dizer que muito folguei com o achego e muito
esperançado parti para a universidade de Leyden, onde estudei
medicina quasi durante très annos, contando tirar mais tarde muito
bom proveito desta disciplina.
De volta a Londres, fui ter logo com o meu mestre venerando,
IMister Bates, e pedi a sua protecção para obter o emprego de
cirurgião em algum bom navio. Bates prometteu, e, o que melhor
foi, soube cumprir. Arranjou-me uma collocação na Andonnha,
a cujo bordo navcguei cousa de tres annos e meio, sem topar com
aventura alguma digna de nota. Aborreceu-me então a vida mari-
tima, e voltm- para Londres, onde me estabeleci com consultorio de
operador. /
Meu mestre auxiliou-me valiosamente cedendo-me parte de sua
clinica, e arranjando-me o maior numero de pacientes.
Achei então a minha situação tão prospera, que lembrei-me de
casar. A escolha não me levou tempo; fui ao altar e vi-me de
posse da amavel Maria Burton, íilha de um fabricante de meias,
que tinha um pequeno pecúlio.
Vivemos felizes um par de annos. Mas, morrendo o meu
protector, depressa conheci o que tinha sido para mim.
Além delle, não tinha muitos amigos, e repugnava-me lançar
mão do charlatanismo, explorado por bom numero dos meus collegas:
a minha fortuna soífreu formidável baque, e pouco depois, o numero
dos meus pacientes já não era sufíiciente para o nosso sustento.
Reuni um conselho de familia; debaterão-se mil cousas e pro­
jectos, mas 0 fim de tudo foi que eu, deixando minha mulher em
Londres, tornei ao serviço maritimo e percorrí, durante seis annos,
em vários navios, as paragens mais remotas do nosso globo.
Tendo feito algumas economias, voltei para a casa, encontrei
minha mulher de bôa saude, e entreguei-me á esperança fagueira
de saborear agora uma vida tranquilla, porque conhecia tantos
marinheiros, qiie não me podião faltar pacientes.
Mas, ai de mim! Estas esperanças mostrárão-se fallazes, e,
esgotadas as minhas economias, acceitei o ofterecimentoi do capitao
Pritchard, da Antílope, de acoinpanha-lo como cirurgião de bordo
em uma viagem ao mar das índias.
- 6 — ,

Depois cie terna despedida de minha cai’a esposa, que derramava


lagrimas amargas por causa desta nova separação, embarquei e a
4 de Maio de 1699 levantamos o ferro; ^
0 nosso navio garboso, com todo o
panno fóra, sulcou graciosamente, qual
cysne airoso, as ondas traiçoeiras do
vasto oceano.

/íi

’¥i
\

%:■

Feliz derrota le­


vámos nos primeiros
mezes : era a bonança,
que precedia á tor­
menta.
Ao deixar um
porto da índia, des-

ï
— 7 —

encadeou-se uin tem porarfuribundo, que nos açoutou de tal modo,


que perdemos o rumo e em breve já nao sabiamos em ([ue ponto
estavamos. Durante semanas inteiras reinou o temporal sem cessar.
Os marujos estavão exhaustos pelos esforços sobrehumanos que
tinbão que empregar para manter o navio em boa marcha ^ muitos
adoecerão, e, para cumulo de adversidade da sorte, escasseárão os
viveres, perdendo-se muitos nas ondas salgadas que penetravao nos
porões. Já era insupportavel a nossa situação.
Foi senão quando n 5 de Novembro, em nma grande cerração,
avistámos á distancia mingoada um recife, sobro o qual lamos
correndo em direitura.
Subirão aos céus clamores de angustia, e todos, enfermos o
validos, acudirão para desviar a desgraça imminente que nos

ameaçava. ^ .
Mas já era tarde. O vento soprava tão rijo, tão impetaosa-
mente, que era impossivel dar ao navio um impulso menos perigoso.
Corremos em carreira vertiginosa sobre os recifes, nos quaes
bramavão as ondas horrivelmente, em luta ingente.
Auxiliado por uma meia duzia de marinheiros mais calmos,
safei 0 bote maior para termos pelo menos um vehiculo de salva-
mento, embora bem íragil. ^
O resto da tripulação, o capitão inclusive, rojava-se no cliao,
estorcendo as mãos, lamentando-se, que mettia do.
Jlas os elementos se mostrarão surdos aos seus lamentos.
Violentamente impellido corria o navio, estalando em todas as
inntas, e antes que passasse um minuto, sentimos um C oqu e
horrendo, que despedaçou com estrondo atordoado.-toda a embai ca­
ção, espalhando pelas ondas mugidoras destroços de mastros, cos a( o

e quilha.
Emquanto a tripulação e o commandante perec.ao nas agu.
agitadas, eu e os meus companheiros guiavamos o nosso bo e
através da .-esaca. Por meia ho.-a quasi conseguimos mante-lo
■' «nctuando á força de remos; mas, de repente toi alcançado po,
8 —

unia onda medonha, virou, e


nós todos, com lamentosos
cdamores, desapparecemos nas
aguas inexoráveis.
Nunca soube o que foi
J' •
feito dos meus companheiros.
Quanto a mim,
nadador intrépido e
Yÿ
amesti’ado, mantive-

\S-. me á superficie das


ondas, deixando ao
;
vento e á maré o
Vj trabalho de levar-
4 / me para onde qui-
* zessem.
i"'
De quando em quando,
intentava tomar pé, mas por
muito tempo fôrão infructiferos os
v< meus esforços, e já ia perdendo a
/" esperança de salvar a vida dos mil perigos
que me rodeiavao.
Por fim sublevou-me uma onda compassiva,
arrastou-me em grande distancia e atirou-me final-
mente em uma especie de banco de areia, onde
tomei pé e empreguei todos os esforços para alcançar a ilha que
não podia ficar longe.

Mais de meia hora ])atinhei n'agua, estranhando o pouco declive


do fundo. Por fim, havia de ser pelas oito da noite, alcancei a
praia, e caminhei bem meia légua para o interior, em busca de
algum abrigo, de algum soccorro.

Com a luz incerta da noite crescente não me foi possivel des­


cobrir nem casas nem creaturas humanas, e, cansadissimo, acabei
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V
— 9

por (leitar-iiie no chão, coberto de uuia relva quasi imperceptível,


mas summamente macia.
Em breve fiquei mergulhado em urn somno profundo, e, sem
exageração o posso afiançar, nunca em dias de minha vida tinha
dormido tão descansadamente. É verdade também que nunca tinha
passado por trabalhos tão aniquiladores.
Já era dia, e o sol me brincava no rosto, quando despertei.
Quiz levantar-me, mas bem depressa percebi que nem me podia
m exer: todos os meus membros estavão tolhidos e o meu proprio
cabello, que usava crescido, parecia estar pregado no chão.
Deitado de costas, além disto, só enxergava o céu azul e o sol
dourado, que me arrojava á cara os raios ardentes e deslumbrantes.
Tratei, naturalmente, de romper os laços entorpecedores, mas
os meus esforços fôrão em vão. Meus braços, minhas pernas esta\ão
amarrados em pequenas estacas fincadas no chao, por cordas delga-
dissimas, que se cruzavão por cima de meu corpo dos hombros ás
pernas em numero incalculável.
Emquanto me senti admiradissimo por esta descoberta estranha,
ouvi em redor de mim um sussurro inexplicável. Em rigor podia
ser comparado com o zunido de enorme enxame de abelhas, mas
nada ao certo podia concluir acerca de sua origem.
De repente senti mover alguma cousa na minha perna direita,
como se fosse, veThi-gvctUcij um ratão a passeiai.
Grande precaução desenvolveu esta cousinha ao caminhar-me
pela barriga até o peito, e dahi acercando-se da minha cara, que
neste momento devia exhibir singular expressão de espanto.
Ao sentir a creaturinha perto da minha barba, revirei os olhos
L para baixo, e enxerguei por fim, com grande admiração, o sujeitinho
que havia escolhido o meu corpo para passeio.
Era um homem legitimo, digo mal, um honuinculo em regra,
que de altura não chegaria a seis pollegadas, mas de aspecto
gracioso e ameno.
— 10 —

Km ademanes nâo se afastava de uma creatuva racional ; o


trajo era decente; nas mãozinhas ostentava-se um arco com flechas,
e de cinta luxuosa, dependurava-se-lhe um carcaz nas costas.
Não incommode! este visitante estranho e o resultado toi que
em breve uns quarenta ou cincoenta lhe seguirão os passos, peram­
bulando-me na barriga e no peito, como se meu corpo fôsse uma
praça publica,
A principio armei-me de paciência; mas quando o íormigar se
tornou mais impertinente, gritei em voz alta: «Olá! E ia!»
Quem diria que o som de minha voz produzisse tamanho
espanto aos pobres homunculos!
Correrão aterrados, atropellando-se uns aos outros, empurrando-
se e rolando pelas minhas costellas abaixo!
Como soube mais tarde, muitos delles pizarão-se seriamente
nesta queda ominosa, havendo até quem quebrasse algum braço,
alguma perna.
Pelo momento, porém, não dei por isto, percebendo, apenas
um augmente considerável do sussurro desenfreiado que me rodeiava.
Entretanto, vendo que não podia desvencilhar-me dos laços que
me prendião, essa gentinha voltou do susto causado por minha voz.
Tornarão a trepar, e um delles, mais atrevido que os outros,
encaixou-se-me na gola da casaca, mangrulho donde podia avistar-
me a cara.
Não imaginam a expressão do mais profundo espanto, da
admiração sem limites, com a qual ergueu as mãozinhas ao céu ao
contemplar-me, até que por fim soltou o grito: Aekina ãegul!
A vozinha era clara e intelligivel, mas summamente delgada;
assem,elhava-se ao guincho dos ratos, só que era um pouco mais
intensa.
Os seus companheiros repetirão mais de cem vezes a exclamação :
Aekina ãegul! que naturalmente nesse tempo eu ainda não entendia,
traduzindo-a, entretanto, pela expressão mais energica de admiração
de que fôsse capaz aquelle povinho miudo. .
— 11 —

V endo, porém, que ninguém fazia menção de libertar-me dos


meus laços, impacientei-me sempre mais, de momento em momento,
cliegando por fim, por meio de um esforço lieroico, a aiiancai do
chão as estacas que me prendião o braço esquerdo. Ao mesmo
tempo consegui affrouxar as ataduras do meu cabello, de modo que
pude erguer um tanto a cabeça, e move-la de um lado para o outro.
Então tratei de apanhar um dos homunculos. Elles, porém,
desapparecêrão como um raio, soltando uns guinchos penetrantes,
que parecião traduzir um sentimento de chacota relativamente á
impotência a que eu estava reduzido.
Mas, logo em seguida, percebi uma vozinha que dizia em tom
de mando: <^Tolgo phonao^ e senti logo em minha mão esquerda
uma espicação dolorosa, comprehendendo que cem ou mais flechas
a tinhão crivado. Não excedião estas flechas a um alfinete em
comprimento, e as feridas leves que oceasionárão, também erão
como de alfinetadas.
Á primeira descarga, que já não me tinha deixado satisfeito,
seguiu-se logo outra, feita por elevação; as flechas cahirao-me no
corpo e na cara; estas ultimas incommodarão-me bastante, de modo
que cobri immediatamente o rosto com a mão, redobrando, entre­
tanto de esforços furiosos para sahir da minha posição vexatória.
A unica cousa que alcancei, foi nova chuva de flechas, chegando
alguns dos meus perseguidores, tão maliciosos como diminutos, a
querer ferir-me pelos costados com suas lanças e dardos. Fehzmente
não tiverão força para traspassar um collete de búfalo que trazia
debaixo da roupa; e assim sahi-me desta aggressão encarniçada sem
maior inconveniente.
CAPITULO II.

Entretanto já tinha imaginado que nada alcançaria pela força;


resolvi, pois, manter-me quieto até á noite, esperando poder romper
na escuridão os meus laços com a mão esquerda, já livre de peias.
Se conseguisse libertar-me, não duvidava poder arcar com todos
os indigenas, coratanto que não fossem mais altos do que os que
até então tinha visto.
V
Mantive-me, pois, quietinho, e aguardei a noite com paciência;
mas não cheguei a realizar o meu projecto.
Quando os meus sitiadores me virão tão resignado e calmo,
cessárão as suas hostilidades; pelo ruido, porém , que crescia de
momento em momento, percebi que o numero delles ia augmentando
sempre. Além disto ouvi, pouco depois, perto da minha cabeça
pancadas incessantes, martelladas como de carpinteiros a levantar
uma armação. Olhei para o lado donde vinha esta bulha, e vi que
muitos dos pygmeus estavão occupados em construir uma torre que
bem podia ter dezoito pollegadas de altura, na qual subião e
descião agilmente em pequenas escadas de mão.
Prompta a torre, subiu ao terraço um homunculo com très
companheiros, tomou postura adequada ao caso, e dirigiu-me com
muito donaire um discurso immenso, do qual naturalmente não
entendi nem uma syllaba.
- 13 —

Antes de principicii’ esta peça oratoria, tinha exclamado ties


vezes:
^Langro dehul san!» palavras que mais tarde me forão ex­
plicadas. Immediatamente uns cincoenta ou sessenta dos indígenas
chegarão-se correndo perto de mim, e aíFrouxárào um pouco as
cordas que me prendião a cabeça do lado esquerdo, de modo que
pude encarar commodamente o orador. Era um sujeito vistoso e
compassado, que excedia aos companheiros pelo menos pela metade

da ‘’cabeça, sendo elles apenas do tamanho do nosso dedo maioj.


Exhibiu-se orador habil e exercitado, porque, posto que eu nao
entendesse o que dizia, seus gestos erão tão expressivos e os movi­
mentos de suas mãos tão caracteristicos, que percebí que ora me
ameaçava, ora me aíTagava^ ora tranquillizava, ora hizia promessas.
Tendo elle terminado, respondi eu algumas palavras, acompa­
nhadas de signaes de humildade e de submissão.
Julgando ter patenteado sufficientemente as minhas intenções
paoitie'iis, tratei de signitícar-llie que tinha fome e sede, apontando
para a minha hocca e meu estomago, imitando o trabalho da
— 14 -

mastigação e da deglutição, e houve-me tão bem, que o hurgo, como


naquelle paiz chamão as pessoas de posição, me comprehendeu
))erfeitamente, e me fez um signal de concessão.
Desceu immediatamente de sua torrezinha, e logo depois senti
que me encostavão escadas no corpo e ol)ra de cem homemzinhos
subião afanosamente.
Trazião um sem numero de cestos, pratos e outras vasilhas
contendo manjai’es bem preparados, enviados por ordem d ’ el-rei.
E escusado dizer que me atirei com vontade ao presente de
Sua Magestade e que em um instante expedi tudo.
hiavião mandado um sem numero de pernas e lom bos, de
paladar succulento; mas o maior dos assados era mais pequeno do
que na minha terra uma aza de calhandra, e como a fome era
muita, mettia-os de tres a tres na bocca, mastigando ao mesmo
tempo meia duzia de pãezinhos tostados, do tamanho de uma bala
de espingarda.
A gentinha, que me rodeava, muito se admirou do meu bom
appetite, e via com espanto desapparecer os quartos e costados de
vacca e as pernas de carneiro, em minha bocca que tudo triturava.
Entretanto acudião os meus fornecedores com tanto afan com a
comida, que erão evidentes as suas intenções pacificas pai'a commigo,
pelo menos emquanto me resignasse pacientemente ao meu fado.
Saciada a fome, tournou-se impertinente a sêde. Dei a entender
aos meus homunculos que queria beber, e com grande trabalho
arrastárão para perto de mim os dous toneis maiores de toda a sua
terra. Postos ao alcance de minha mão esquerda metterão dentro
um dos fundos, e eu, com muita commodidade levei um tonel á
bocca e bebi de um só trago o seu conteúdo, o que, aliás, não era
difficil, visto que orçava em menos de meio litro. O outro teve a
mesma sorte, e achei a bebida amena e de bom paladar, melhor
([ue um bom Borgonha; o seu unico defeito era ser pouco, mas
este era irremediável, porque não havia mais, como me significarão
em resposta á minha pantomima de pedir reforço.

I
15

A minha habilidade de tragar tinha despertado nova agitação


aos homunculos. Saltárão e pulárão, e mais de mil vezes exclamarão
com grande alarido: AeTcina degul! Aelcina ãegul!
Por fim signiíicarão-me que puzesse no chão os toneis vazios
que havião íicado no meu peito, e soltárão a exclamação: Borach
mevola! para arredar os sujeitos que se achavão perto de mim, afim
que não fossem esmagados pelos toneis. Indescriptivel foi o seu
jú b ilo, quando os virão cortar o ar, arrojados ao longe por minha
m ão: Ackina clegul! Aelcina ãegul! — repetião os pygmeus, espantados
por minha força prodigiosa.
Mentiría, se dissesse que nunca senti vontade de agarrar meia
duzia destes bichinhos, que me perambulavão tão sem ceremonia
no corpo, para fazei’-lhes como tinha feito aos toneis. Resisti,
porem, á vontade que sentia, lembrando-me dos prejuízos, que me
poderião resultar, e ponderando a boa vontade que tinhão mostrado
em alimentar-me, e que não devia pagar com ingratidão. Admirava-
me, entretanto, o arrojo com que estes homunculos corrião no meu
indivíduo sem patentear o menor rcccio, apezar de eu ter a mão
esquerda livre e dever parecer-lhes como a nós parecem os monstros
anti-diluvianos.
Achando-me eu satisfeito, — visto que nada mais pedia, —
acercou-se de min um delegado d’ cl-rci, sujeito de muita importância.
Acompanhado de doze grandes da côríe, subiu-me cautelosamente
no tornoselo, encaminhou-se cheio de dignidade e uneção ao meu
rosto e exhibiu aos meus olhos uma credencial do seu soberano,
disparando-me em seguida o discurso que trazia engatilhado. Não
se lhe notava nem ira nem ameaças no discurso, mas uma certa
firmeza e decisão, destinada a exhortai’-nie a que me sujeitasse
submissamente ás decisões regias a respeito do meu pobre indivíduo.
Durante o seu discurso, o orador apontava frequentemente para um
rumo em que demorava a capital do reino, — como soube mais
tarde ; comprehendi que querião remover-me do sitio em que me
achava, e dei humildemente a conhecer (jue me submettia a qualquer
n
— 16 —

determinação de Sua Magestade, pedindo, entretanto, que me tirassem


as cordas, e me deixassem andar em liberdade.
Entendeu o enviado perfeitamente os meus gestos; significou-
m e, porém, em ar de enfado, que me calasse, que só podia ser
removido em condição de prisioneiro; mas que nada me havia de
faltar, nem comida, nem bebida, nem cuidados.
Obtendo assim a certeza de que o meu captiveiro continuaria,
lembrei-me um momento de tentar de novo libertar-me por minhas
próprias forças. Mas, se na minha mão esquerda doião ainda as
feridas feitas pelas flech as... por que provocar nova aggressão ?
Dei a entender ao hurgo que acatava as ordens, ao que elle me
fez uma reverencia ceremoniosa, retirando-se com todo o seu séquito,
provavelmente para ir dar conta de sua missão ao soberano.
Algum tempo depois da partida do hurgo, retumbárão novos
gritos jubilosos, entre os quaes consegui distinguir as palavras:
pepJom selam. Em breve senti de novo o formigueiro em redor de
mim, e percebi que os homunculos, com grande afan, aíFrouxavão
os laços da minha esqueixla, de modo que me foi licito virar-me
sobre o costado direito. A o mesmo tempo untarão-me cara e mãos
com uma j)oinada summamente perfumada, que sem demora tirou-
me todas as dores.
O ruido que me cercava, tão semelhante ao sussurro de um'
enxame de abelhas, atordoou-me por fim. Cansaço invencivel
apoderou-se de mim, e em breve adormeci e dormi durante oito
horas puxadas, graças ao narcotico que os médicos do paço me
havião misturado no vinho, como soube mais tarde.
Pareceu-me então, — e ainda hoje o creio, — que despachárão
um correio ao r e i, logo que me encontrarão; informado de tudo.
Sua Magestade reuniu o seu conselho, e ficou assentado que eu
fosse atado, alimentado e desalterado do modo já descripto, para
ser collocado em uma machina de transporte e levado á capital.
Como tive ensejo de observar no correr do tempo, esse povinho,
no qual cahi por acaso, tem disposições maravilhosas para construir

V
i
— 17 —

machinas poderosas. S. M. el-rei, protector nato das artes e


sciencias, que promovem o bem-estar da nação, é proprietário de
muitos productos artísticos da mecanica. A maior parte destes
artefactos sào destinados ao transporte de grandes pesos, troncos de
arvores grossos e compridos, edifícios inteiros e navios de guerra,
alguns de nove pés de comprimento e mais, que sào construídos no
matto mesmo, por causa da facilidade com a qual se realiza o corte
da madeira, e depois levados nos taes carros á cidade ou ao mar.
El-rei tinha ordenado, pois, a quinhentos constructores de
machinas que puzessem mãos á obra e promptifícassem o maior
vehiculo do reino, para transportai’-me para a capital.
Nào tardou o tal carro em apparecer. Era uma armação de
taboas de sete pés de comprimento e quatro de largura, elevada
très pollegadas acima do solo, descansando em vinte e quatro rodas.
Encostado este carro a meu corpo, surgiu para os pobres homunculos
a tarefa de içar-me com todo o meu peso sobre a plataforma.
Eis aqui como procederão.
Começárão por bater oitenta estacas reforçadas até que só
deixassem meio metro acima do terreno. Em seguida passarão-me
grande cópia de fitas largas nos braços, nas pernas, no peito e na
cabeça; estas fítas terminavão em grossas cordas, da consistência
de um barbante nosso, as quaes corrião por meio de roldanas, sendo
puxadas por novecentos dos mais robustos trabalhadores com todas
as forças de que dispunhão, até manter-me suspenso. Alcançado
este exito, foi facil empurrar o vehiculo para baixo de mim e
descer-me cuidadosamente sobre a platafórma. Atarão-me solidamente,
e 0 carro foi puxado para a corte, que distava meia légua, por mil
e quinhentos cavallos das cavalhariças l’égias, dos quaes nenhum
passava de doze centímetros de altura.
Correu perfeitamente a viagem, e só quatro horas depois de
começada, fui despertado do meu somno por um acaso. O carro
teve de parar, para um pequeno concerto. Aproveitarão o ensejo
Viagcus de Gulliver. 2
t a ü » it iy T T g ^ ii i£ a t jw p i

— 18 -

alguns indígenas, que ainda nao ine tinliào visto a cara, para tiepai
e contemplar-me.
Havia, entre elles, um alferes da guarda d ’ el-rei, aiTogante e
mettidiço, que, vendo o meu nariz, naturalmente monstruoso para
elle, teve a lembrança de introduzir nelle o seu cs])adim.
O resultado era de esperar. As cócegas feitas com a arma,
parecida com uma hasteazinha de capim , originarão-me tregeitos
da cara, seguidos de um formidável espirro, que me acordou. Os
indigenas, porém , sentirão susto tamanho ao ouvir o estrondo
horrendo, que fugirão com a velocidade do raio. O alferes, causador
do phenomeno, tropeçou em um botão do meu collete, e cahiu do
alto da minha perna tão desastradamente, que durante semanas
inteiras soífreu dores em todos os ossos. F o i, pelo menos, o que
depois me con­
tarão.
Concluido
0 concerto do
carro, con- IO " , J ia ü . ' ^
tinuou a via­
gem ; mas,
posto que ven-
cessemos um V;

não pudemos
alcançar a
cidade na-
quelle dia. ,
Pará-
mos, p o is ;
accendêrão ar­
chotes, e mil e
quinhentos sol­
dados, armados

ll í1
— 19

de arcos e lanças, niontárão guarda ao redor de mim. A ordem


era de matar-me na primeira tentativa de fuga. Mas eu nem sequer
cuidava em fugir, e passei tranquillamente a noite, posto que não
mais commodamente.
Na manhã seguinte continuou a viagem , e tanto íizerão os
cocheiros, que ao meio-dia nos achámos a duzentos passos da
capital.
Parámos de novo, porque vinhão ao nosso encontro el-rei e
sua corte, e todo o seu exercito, sequiosos todos de deleitar-se no
aspecto da minha pessoa phenomenal.
El-rei teve a coragem de acercar-se bastante de mim, e parecia
até ter vontade de subir-me no corpo. Seus dignitários, porém, o
detiverão desta empreza arriscada.
Perto do sitio em que nos achavamos havia um templo anti­
quíssimo, interdicto ha muito, por causa de um assassinato commettido
nelle. J^ste cdiíicio, o mais vasto de todo o paiz, devia servir-mc
de habitação. A entrada, um portão, que olhava para o norte,
tinha quatro pés de altura e dous de largura, de maneira que podia
transpô-lo de gatinhas.
De ambos os lados da porta havia uma janellinha; em uma
delias 0 feirreiro régio prendeu em fortes argollas de ferro seis
dúzias de cadeias da grossura dos cordões de ouro, usados no relogio
por nossas damas. Estas correntes, das quaes cada uma tinha
quatro metros de comprimento, me fôrão algemadas na perna esquerda
por trinta e seis cadeiados de ferro.
Emquanto se procedia a esta operação, el-rei subiu a uma torre
de cinco pés de altura, situada defronte do templo do outro lado
da estrada real, para obter um golpe de vista mais completo sobre
meu individuo. Ao mesmo tempo cerca de cem mil homunculos
me rodeiavão, contemplando-me com grande espanto, e fazendo o
possivel para tocar-me pelo menos no fato; e, apezar das ordens
severas do rei, e da opposição valente dos guardas, mais de mil
trepárão no meu corpo, e o percorrêi’ão em todos os sentidos. Sé
2*
ï' '

— 20 —

a ameaça formal da pena de morte livrou-me do tropel desses


bichinhos curiosos.
Presas as correntes, os trabalhadores julgarão poder cortar sem
perigo as cordas que me atavão ao carro.
Soltarão-me, e mal disposto levantei-me de vagar e dei alguns
passos para desentorpecer os membros endurecidos pela longa
posição fatigante que tivera até então.
O povo espantado gritou jubiloso quando viu os meus m ovi­
mentos , e para fugir da bulha e poder meditar alguns momentos
em paz, entrei de gatinhas na minha prisão e estendi-me no chão
em todo o meu comprimento.
CAPITULO III.

Depois cie um curto descanso, ergui-me e sahi do meu


templo; tanto quanto as minhas correntes m’ o permittião, passeei
de um lado para o outro, deleitando-me em contemplar a paisagem,
que realmente não só era uma das mais amenas, mas ainda
das mais interessantes que jamais encontrei em minhas viagens
numerosas.
Natureza e esforços dos habitantes havião andado de mãos
dadas para crear uma verdadeira maravilha.
A perder de vista estendião-se diante de mim cam])Os bem
cultivados e cercados, cobertos de flores e fructos, sendo todos do
mesmo tamanho, isto é, de quarenta pés em quadro.
Alternavão as cercas com selvas densas e sombrias, cujas
arvores não excedião a sete pés de altura.
Cortavão os campos regatos crystallinos, cujas margens ei’ão
enfeitadas do verde tapete de relva, dos prados matizados de milhares
de flores odoriferas.
No primeiro plano, á minha esquerda, elevava-se a capital,
com suas torrezinhas, seus zimborios diminutos, suas casinhas,
constituindo um todo semelhante ás cidades de brinquedo, com as
quaes se divertem os pequenos na minha terra.
Emquanto alegrava a vista com semelhante espectáculo ameno,
0 rei desceu de sua torre, montou a cavallo e dirigiu-se em direitura
a mim.
— 92

]\Ias para os proprios soberanos ha ás vezes inconvenientes,


que lhes tolhem a liberdade; foi desta vez o nobre ginete fogoso
que chegou a pôr em risco a vida d ’ el-rei, rebellando-se contra o
í t freio e os acicates, corcoveando e saltando como louco ao aspecto
da minha pessoa.
El-rei, porém, revelou que na arte de governar era eminente,
ainda que se tratasse do governo de um quadrúpede: mostrou-se
firme na sella, até que os estribeiros e picadores agarrassem pelas
redeas o corcel furioso.
Unindo á prudência o garbo, Sua Magestade apeiou-se então,
e acercou-se de mim, tào commedido, porém , que nào lhe poderia
ter feito mal algum, ainda que eu quizesse.
Com espanto nâo fingido Sua Magestade contemplou-me por
todos os lados, durante bastante tempo.
Por fim despertou-lhe o desejo de vêr-me comer.
A um aceno da régia mao, voárão os cortezãos, e tão depressa
como um sacrista diz anien, voltárâo com um sem numero de carrinhos,
que parárào tão perto de mim, que os podia alcançar com a mão.
Havia alli mais de cincoenta destes vehiculos, cheios dos melhores
productos dos cozinheiros reaes, sem esquecer as bebidas deliciosas.
Como estivesse de bôa disposição, fiz uma limpa v e lo z : os
assados de toda a laia desapparecerão em menos de cinco minutos,
e o vinho seguiu o mesmo caminho sem mais demora, porque eu
tinha despejado as garrafinhas microscópicas em um dos carros, bem
fechado, sorvendo assim tudo de um só trago, a bem dizer.
El-rei, a rainha, os principes e as princezas delcitavão-se
immensamente em assistir a esta refeição monstruosa para elles, e
tive occasião de vc-los detidamente, principalmente a el-rei.
Sua Magestade era um homem vistoso, cheio de robustez, sem
prejudicar a elegancia, e excedia em altura aos seus cortczàos pelo
menos na largura de uma unha minha, o que lhe dava grande
prestigio entre os seus súbditos que, como todos os povos, não
erão insensiveis á influencia dos dotes naturaes. O rosto d’ el-rei

l;í
— 23 —

era formoso e varonil ; um bello bigode sombreava-lhe os lábios um


pouco cheios, e os olhos brilhantes dardejavào raios impetuosos; o
nariz era um tanto encurvado, o (|ue dava ao rosto um aspecto de
firme energia. De tez ligeiramente morena, usava o cabello sedoso
em longos cachos, que cahião-lhe nos hombros possantes. Porte,
ademanes, gestos, tudo era magestoso, cheio de graça. Todos os
membros erSo de proporções maravilhosas. El-rei tinha alcançado
então os seus vinte e nove annos, achando-se, pois, no vigor da
sua vida, havendo governado já durante sete annos, como monarcha
feliz e victorioso. O trajo era simples, meio asiatico, meio europêu.
Um capacete de ouro, ornado de pedras preciosas e plumas ondu­
lantes cobria-lhe a cabeça; espada formidável, em bainha de ouro
tinia-lhe ao lado, e no cinturão brilhava um punhal recurvado,
igualmente guarnecido de pedraria. A espada tinha quasi très
pollegadas de comprimento e era muito larga, de modo que, para
um homemzinho tão diminuto, devia ser trabalho ingente, brandi-la.
Quando se approximava multo de mim, puxava desta espada, para
estar habilitado a defender-se, caso eu me soltasse das minhas
correntes. A voz era clara e intelligivel e de tão bom timbre, que
perfeitamente o entendia, mesmo estando eu erecto em toda a
minha altura.
Dirigiu-me varias vezes a palavra, e eu respondi-lhe sempre
com muita deferencia. Supponho, porém, que não me entendia,
assim como eu não o entendia a elle.
Sua corte, cavalheiros e damas, formigavão ao redor delle, e
os trajos multicolores déliés relumbravão de ouro e pedrarias, de
modo que toda esta mó vistosa se parecia, aos meus olhos, com um
tapete precioso, tecido artisticamente com côres pomposas.
Quando el-rei percebeu que não entendia nem uma das minhas
palavras, mandou chamar seus sábios, gente que nunca falta nas
cortes reaes, e ordenou-lhes que tratassem de entender-se commigo.
Eu mesmo esforcei-me por alliviar-lhes o trabalho, dirigindo-
lhes a palavra successivamente em allemão, inglez, francez, hespanhol.
24 —

italiano e na lingua fran ca ... mas tudo foi em vào; retirou-se, por
fim, a corte, quando ficou evidenciado que era impossivel conversar
commigo.
Apezar da guarda que me rodeava, tive de supportai’ grande
cópia de incommodos por jiarte do populacho, depois da retirada
do rei. Viao estes homunculos em mim um verdadeiro phenomeno ;
acercavào-se de mim sem vergonha, e alguns dos mais atrevidos
atirárão-me flechas, que me ferirão em varias partes do corpo.
Por fim 0 commandante da guarda, cansado de admoestar,
mandou agarrar meia duzia dos mais importunos, e entregar-m’ os,
para o devido castigo.
Se tivesse cedido ao primeiro impeto de raiva, teria esmagado
os malfeitores entre os meus dedos, o que, sem duvida, teria sido
uma grande imprudeneia na minha situação actual ; limitei-me, pois,
a dar-lhes um bom susto. Mettendo cinco em minha algibeira, fiz
menção de engulir o sexto, que tinha na mão. O 'populach o, que
me rodeava, e seguia anciosamente cada um dos meus movimentos,
soltou gritos de terror; mais ainda guinchava o meu prisioneiro,
(jue se me estorcia entre os dedos como uma lamprêa.
Tendo-o por sufficientemente castigado, sentei-o na palma da
minha mão, cortei com o meu canivete as cordas que lhe prendiam
as mãos e colloquei-o no chão. Do mesmo modo procedi com os
outros. Todos os seis saltárão de alegria e o povo applaudiu com
grande alarido de enthusiasmo. A minha clemeneia não só im­
pressionou favoravelmente aos circumstantes, como também a toda
a corte, como soube mais tarde, tendo cliegado a noticia delia em
:H
momento bem critico para mim.
A noite vinha chegando; recolhi-me, pois, ao meu templo, e
accommodei-me o melhor possivel nas lages duras e frias desta
prisão j e durante quinze dias continuou este incommode. Por fim
tive, uma cama jior ordem d ’ el-rei. Para confeccioua-la tinhão
lançado mão de seiscentas caminhas dos indigenas, e nem por isto
resultou lá muito molle e abrigada. Entretanto, já era uma melhora.
25 -

L*i • •Mrx'*'’

lÆ Û - ■

comparada com o men


leito anterior, e pela pri- "'AlíSiir^^íL ^ t
meira vez desde o meu
captiveiro, passei uma
noite mais descansada. ’C
Entretanto havia-se
espalhado por todo o paiz
a noticia da minha che­
gada; de todos os recantos do paiz acudiiïo v%..
~4
curiosos para verem o monstro arribado.
Cidades e aldêas ficarão sem habitantes, e o rei, para livrar o
commei’cio e a agricultiu-a da sensivel estagnação, teve de mandar
publicar um decreto, prohibindo a que quem quer que fosse se approxi-
— 26 —

masse cincoenta passos da rainha habitação, sera ura passe do


competente secretario do estado.
Diminuiu esta medida um pouco a aggloineração dos curiosos,
e fiquei mais folgado e descansado, do que quando tanta gente me
rodeiava e olhava boqui-aberta como a um phenomeno.
Emquanto eu vivia assim descuidadaraente, viu-se em lençóes
de, onze varas o conselho do rei, não podendo chegar a um accôrdo
relativamente ao destino que se me havia de dar.
Propostas horrendas apparecêrão, como soube posteriormente;
propostas para expedir-me desta para a melhoi’.
Embora não molestasse a ninguém, vivião todos assustados com
a ideia de que um bello dia podia chegar a romper as minhas
cadêas.
Lembrou um dos conselheiros que não seria máu matar-me
com flechas envenenadas.
Dizia outro que seria melhor privar-me dos alimentos, para
que eu mingoasse até exhalar o ultimo suspiro.
Outro havia que quiz queimar-me vivo.
A este seguiu-se conselheiro menos atroz, que se contentava
com 0 expediente de afogar-me.
E os outros, mais ou menos, rezavão pela mesma cartilha.
O rei a tudo isto tinha sacudido a cabeça, objectando com
muita prudência que o máu cheiro que exhalaria um cadaver tão
monstruoso como o meu empestaria a capital e todo o paiz, podendo
perecer a metade dos habitantes em castigo da minha morte. Assim,
considerações hygienicas chegárão, pelo menos uma vez, a salvar
uma vida.
Sobrava, porém , para o proprio r e i, a difflculdade do meu
sustento, unica apprehensão que tinha a meu respeito.
Em quanto assim deliberavão, entrou um ajudante na sala do
conselho e contou em poucas, mas energicas palavras, como eu tinha
procedido com os seis malfeitores, entregues ao meu alvitre.
A minha clemencia tal impressão fez em toda a assembléa.
— 27 —

que ninguém mais se lembrou de minha m orte, convergindo todos


os pareceres no ponto importante do meu sustento.
Assentou-se, por fim, que todas as aldêas na redondeza de mil
passos, teriào que fornecer diariamente seis bois, quarenta carneiros
e outros comestiveis, além do vinho e do pao indispensáveis, in­
demnizando Sua Magestade os seus súbditos destes fornecimentos’.
Decidiu-se, além disto, que seiscentos guardas estarião sempre
á minha disposição, e para que não tivessem de soífrer das in­
clemências do tempo, armarão-se logo seiscentas barracas ao redor
do meu templo, em que de noite pudessem dormir e de dia re-
creiar-se, emquanto eu não reclamasse os seus serviços. Trezentos
alfaiates tiverão ordem de empregar todo o seu engenho para con-
feccionar-me um trajo nacional, e seis sábios ficárão encarregados
de instruir-me com afinco no idioma vernáculo.
Finalmente, para acostumar os cavallos da guarda d’el-rei ao
meu aspecto, os regimentos tinhão do vir manobrar todos os dias
defronte do meu templo, e, para que nunca mais ginete algum se
lembrasse de sacudir o sagrado vulto de Sua Magestade, o estri-
beiro-mór mandou passear todas as manhãs os seus pensionistas ao
redor de minha pessoa.
E escusado accrescentar que estas ordens fôrão cumpridas
á risca.
Em menos de seis semanas já tagarellava eu com os meus
doutos professores, graças ao afan que havião mostrado no desempenho
de suas funcçoes, auxiliados frequentemente por Sua Magestade em
pessoa, que era um poço de sabedoria, e dignava-se ás vezes dis­
cutir commigo raizes e flexões, prefixos e suffixos, e até infixos,
que tanta impoi'tancia têm nos mysteriös da glottologia.
Logo que soube manejar soífrivelmente a lingua nacional, pedi
com grande humildade ao rei (|ue mandasse tirar-me as correntes,
deixando-me em liberdade.
Sua Magestade, porém, esquivou-se, emquanto podia, de dar
uma resposta decisiva; alludia ao futuro, e cobria-se com a dis-
28

posição constitucional, de que nada podia sem o consentimento dos


seus ministros e conselheiros. Além disto era mister que eu, antes
de tudo, lumus hélmin pesso desonar lon emposo, isto é, que jurasse
a paz com elle e seu reino. Que, por emquanto pacientasse e me
mostrasse morigerado, para não despertar a malquerença de seu
povo. Que assim tudo andaria bem e que eu havia de ser tratado
sempre com a devida attenção e solicitude.
Alguns dias depois desta entrevista, appareceu de novo Sua
Magestade, acompanhado de dous empregados da corte. Disse-me
que eu não devia vêr uma oífensa nisto, mas que ia mandar passar-
me revista dos pés á cabeça, para ver se trazia occultas algumas
armas, e tirar-m’as, para evitar perigos possiveis.
Mostrei-me prompto a virar as algibeiras e exhibir a Sua
Magestade o conteúdo delias: mas el-rei observou-me que era in­
cumbência da criadagem semelhante serviço; que confiava plena­
mente em minhas boas disposições; que nada receiava pela vida
dos empregados que fossem examinar-me, e que estava convencido
que eu os auxiliaria valiosamente, dando-me a pensar que horrível
desgraça poderia resultar das minhas armas para os seus súbditos,
se 0 tamanho destas armas correspondesse á proporção do meu in-
dividuo. Que, finalmente, tudo quanto arrecadassem, ser-me-hia
restituido, se algum dia sahisse do reino.
Terminado este discurso de Sua Magestade, os dous fiscaes
approximarão-se; agarrei-os cuidadosamente e metti-os no bolso do
casaco, e successivamente nos outros, escondendo apenas um, no
qual guardava uns objectos, que não tinhão valor algum para o rei,
mas muito para mim.
Os dous empregados remexerão completamente os meus bolsos,
e tendo trazido papel e utensilios de escrever, fizerão um inventario
minucioso de tudo quanto encontrárão.
Tendo terminado a sua faina, pedirão-me que os puzesse no
chão, e fôrão apresentar humildemente a Sua Magestade a lista do
que havião achado nas minhas algibeiras.
— 29

Como este documento curioso mais tarde cahiu em meu poder,


não quero privar o leitor do prazer de aprecia-lo desde já ; rezava
assim
«Nós abaixo-assignados encontrámos nos bolsos do grande
quinbus flestrin (monte-humano) os objectos seguintes:
«19 No bolso direito do casaco uma peça enorme de panno
encarnado, que poderia servir á Sua Magestade de tapete em algum
de seus apoisentos. O monte-humano disse que era o seu lenço de
mãos.
«29 No bolso esquerdo do casaco um enorme bahú de prata,
com tampa do mesmo metal, que fecha hermeticamente, a qual
tampa, porém, ambos juntos não pudemos levantar de tão pesada
que é. Pedimos ao monte-humano que abrisse o baliú, e, satisfeito
0 nosso pedido, achámos uma areia preta e grossa, da qual emanava
um cheiro muito activo e atordoador. Com licença do dono, cami­
nhámos um pouco dentro deste bahú pela areia mencionada; tivemos,
porém, de sahir precipitadamente, porque, tendo-nos penetrado um
pouco deste pó nas ventas, causou-nos espirros tão fortes e pro­
longados, que pensámos morrer afogados. A este caixão o monte-
humano chamava de boceta de rapé.
«39 No bolso esquerdo de sua japona descobrimos uma col-
lecção de folhas brancas e unidas cobertas de signaes gigantescos
e singulares. Segundo declaração era o diário do monte-humano e
continha vários manuscriptos. Estavão atadas por um grosso cabo,
para que não se pudesse perder alguma.
«49 No bolso direito da japona achámos uma machina comprida,
de cuja haste sahião muitos dentes, parecidos com as estacas, com
as quaes resguardamos as nossas fortalezas. Disse-nos o monte-
humano que era o seu pente, e nós acreditamos porque em nossa
presença penteou o basto cabello.
«59 Em cada um dos bolsos das suas bragas, encontrámos uma
columna ôca, enorme, de ferro, do tamanho de um homem adulto.
Estava presa esta columna em uma armação de páo, maior ainda.
— 30 —

na qual se vião varias peças de ferro, de forma singular. Inter­


rogado 0 monte-humano a respeito destes engenhos, chamou-os de
pistolas, sem querer entrar em mais amplas explicações. Em um
bolsinho do lado direito havia alguns discos de metal branco e
vermelho. Alguns dos brancos, evidentemente de prata, erão tào
pesados que não os podemos levantar. Disse serem moedas de
dinheiro.
«Continuando as jjesquizas, achámos ainda dous pilares pretos
e de forma estranha. Erão tão altos que nós, estando parados no
fundo da algibeira, não lhes alcançámos o extremo superior. Um
delles parecia inteiriço. No outro, porém, via-se no cimo uma massa
branca e redonda, mais grossa que as nossas cabeças.
«Ambos continhã.0 uma folha larga de aço, e ordenámos ao
monte-humano que nos explicasse minuciosamente estes objectes, que
nos parccião encerrar segredos perigosos para o estado. Elle tirou
as folhas de aço de sua caixa, e significou-nos que em sua patria
com uma délias se fazia a barba, e com a outra se cortava o pão.
Chamou-os faca e navalha.
«Além dos bolsos visitados havia ainda outros dous, tão pequenos
e tão chegados ao corpo, que foi impossível descer nelles. De um
delles cahia uma corrente de prata, massiça e longa. Puxámos
delia com todas as nossas forças, e fizemos surgir uma machina
em forma de um bola, construida de prata e de uma outra
substancia, que não conheciamos, mas que era transparente.
«D ebaixo do disco transparente havia outro branco, coberto de
i
figuras singulares. Quando o quizemos apalpar, fomos impedidos
pelo disco transparente, e só então soubemos-lhe da existência. O
monte-humano collocou esta machina perto dos nossos ouvidos;
ouvimos um riiido estrondoso, um bater e soccar como o de um
moinho d ’ agua. Incessantemente ouvia-se: tic^ tac, tie, tac; como
se alguém batesse com uma massa de armas contra um grande
escudo.
«A este objecte extraordinário o monte-humano chamava de
— 31 —

relogio. Parece-nos, porém, a nós, que é algum animal desconhecido,


ou 0 idolo adorado pelo monte-hmnano, porque elle disse que raras
vezes emprehendia cousa alguma sem consultar o seu relogio.
«Das outras algibeiras o monte-humano tirou uma rede grande,
parecida com aquellas de que usão os pescadores \ tinha, porém, a
forma de um sacco, e era susceptivel de abrir e fechar-se. Era
uma bolsinha para guardar dinheiro, e pelas malhas relumbravão
moedas tào grandes, que, se fossem de ouro, como affirmou o
monte-humano, serião de um valor incalculável.
«Para terminar este relatorio, cumpre-nos declarar que o nosso
monte-humano trazia no corpo um cinturíío, confeccionado com o
couro de um animal desconhecido e monstruoso. Do lado esquerdo
deste cinturão via-se a espada, que medimos e achámos do com­
primento de cinco vezes a altura de um dos nossos cidadãos
mais altos.
«D o lado direito cahia uma bolsa com vários compartimentos.
Em um delles havia espheras de um metal desconhecido, mas
muito pesado.
«Cada' uma destas espheras era do tamanho de uma cabeça, e
mão possante seria precisa para levanta-la. No segundo comj^arti-
mento descobrimos um montão de grãos pretos, tão leves e dimi­
nutos, que nos animariamos a suspender em nossas mãos pelo menos’
cincoenta delles.
«Pomos aqui ponto final no nosso inquérito minucioso e exacto,
cumprindo-nos declarar que o monte-humano auxiliou-nos com a
amabilidade e deferencia devidas á commissão de Vossa Magestade.
— Feito no quarto dia do octogésimo nono mez do glorioso reinado
de Vossa Magestade — (Assignados) : Klefrin FrelocJc. :— Marsi
Freloelc.D > •
Durante o exame das minhas algibeiras, por ordem d ’ el-rei
alguns dos mais valentes regimentos do seu exercito estavão collocados
ao redor de mim em ordem de batalha, mas á distancia prudente.
Concluido 0 relatorio, o rei o recebeu das mãos dos dous empregados.
f tJ

— 32 —

e ordenou-nie logo quo fizesse entrega da minha espada. Sem


demora desafivelei-a, collocando-a aos pés de Sua Magestade.
Vendo a minha cega ohediencia, e nao receiando sentimentos
hostis da minha parte, o rei exigiu que tirasse a espada da bainha
e lh’a mostrasse. Assim fiz e u ; a lamina, posto que alguma cousa
tivesse soíFrido pela agua salgada, ainda se conservava brilhante e limpa.
No momento de
brandi-la no ar,
repercutiu de
todos os lados
um grito de
espanto, por­
que, sob a luz
alegre do sol,
a minha espada,
movida violen­
tamente de um
lado para o
outro, despedia

♦4'l í "
tal torrente de
, •*»=’ raios, que todos
|l» os olhos tícárão deslumbrados. Só el-rei, valente
entre os valentes, mostrou-se menos assustado;
comtudo ordenou-me depressa que sumisse a espada na
bainha e que a atirasse a mais de seis pés de distancia.
Em seguida quiz ver as minhas pistolas de algibeira,
ordenando-me que dellas me servisse segundo o modo da minha
terra. Preveni-o do grande susto que levaria. Insistindo, porém.
Sua Magestade, carreguei uma das pistolas com polvora e bucha
de papel e fiz fogo. O resultado foi espantoso; mais da metade
dos guardas do rei cahirão de susto no chão. O mesmo rei assustou-
se tanto, que levou tempo a recuperar a firmeza de espirito. Por
fim ordenou-me com a voz ainda a tremer que atirasse ao longe

U
— 33 —

as pistolas, a polvora e as balas. Obodeci immecliatamente, mas


não sem prevenir o rei do perigo que havia no manejo da polvora;
que recommendasse a maior cautela, porque uma faisca bastaria
para fazer voar o seu palacio e sua capital.
Depois disto fiz entrega do meu relogio, que causou muito
prazer a Sua Magestade. — Mandou que eu Tlio encostasse no
ou vid o; deleitou-se com o tic iac da machina, e seguiu com a maior
attenção o movimento do ponteiro de minutos, que percebeu per-
feitamente, pois os olhos desses homunculos são muito mais agudos
que os nossos.
Satisfeita a sua curiosidade, ordenou aos sábios que dessem
parecer acerca do objecto estranho.
Os sábios, como era de suppôr, externarão muitas asneix'as,
sem dar com a verdade. Cançou-se Sua Magestade destas adivinha­
ções e chamou dous granadeiros da sua guai’da, que, passando
uma vara robusta pela.argolla do relogio, o tiverão de levar para
0 palacio d’el-rei, encurvados pelo peso immenso de sua carga.
Acabei, então, de entregar á Sua Magestade todos os utensilios,
a saber: minha faca, minha navalha, minha tabaqueira, meu lenço,
meu diário, meu dinheiro, e bem assim, a bolsinha com as moedas
de ouro.
As armas e petrechos de guerra perigosos fôrão removidos em
carros para o arsenal. O resto me foi restituido.
Cumpre-me declarar que no bolso secreto, que não aceusára
aos fiscaes d ’ el-rei, guardava os oculos, dos quaes ás vezes me
servia por causa da fraqueza da vista, e um pequeno oculo de
alcance. Estes objectos não podião servir ao rei sem prejudica-lo;
quanto a mim me terião feito muita falta, porque não teria encon­
trado substitutos na terra d’ el-rei. Com estas ponderações tran-
quillizei a minha consciência, persuadindo-me que por esta reserva
não peceára, nem contra Deus, nem contra o Soberano.

viagens de Gulliver.
CAPITULO IV.

Com paciência, civilidade e morigeração tinha conseguido con­


quistar a benevolencia, não só do rei, mas ainda de sua coroe, do
povo, e até do exercito, começando já a nutrir alguma esperança
de ser em breve restituido á liberdade. Tratei com afinco de con­
servar-me a boa opinião dos meus liomunculos.
Quando a gentinha miuda viu que eu não fazia mal a ninguém,
tornárão-se de dia em dia mais ousados, chegando-se a mim sem o
menor resguardo.
Ás vezes, quando eu estava de bom humor, deitava-me de
todo 0 meu comprimento no chão, fazendo bailar meia duzia delles
na palma da minha mão ou divertindo-os com outros brinquedos.
As crianças, rapazes e meninas, animárão-se tanto por fim, que
jogavão ienipo-será na minha longa cabelleira, arrancando-me ás
vezes uma exclamação de dôr, pelos puxões que me davão. Entre­
tanto deleitava-me na convivência' com estes bichinhos, e no
commercio com elles aprendia do seu idioma em uma semana mais
do que teria aprendido com os meus sábios em um mez.
Um bello dia o rei me perguntou se não gostaria de assistir a
l um dos espectáculos theatraes, e respondendo eu pela affirmativa.
Sua Magestade mandou vir immediatamente a companhia, que
representava com muita habilidade e grande enscenação.
Mais do que todos os outros, poi’ém , divertirão-me os saltim­
bancos.
35

Em um fio de linha, esticado a tres palmos acima do solo,


executavao taes artes, que tive de confessar nào ter visto nunca
cousa igual.
Cumpre saber que neste paiz a arte de saltimbancos nao é
exercida por gente de pouca monta: sao os primeiros da corte,
que nella se distinguem.
Desde a sua mais tenra infancia os cortezãos aprendem as
manobras todas desta arte, porque, sem dextreza nella, ninguém
pode obter emprego no paço. Logo que morre uma das summidades,
os pretendentes ao logar apresentão-se em concurso perante Sua
Magestade, para mosti’ar as suas habilidades na corda. O candidato
que melhor pular, que se mostrar melhor em equilibrio, na corda
teza, e mais ainda, na corda bamba, póde contar com certeza com
o emprego.
Mas nem por isto o escolhido está seguro do seu posto. Fre­
quentemente 0 rei sente o desejo de fazer dançar os seus ministros
e conselheiros, segundo o apito que elle toca, e ai! de quem não
souber aguentar-se: rua com elle, infallivelmente.
De todos os saltimbancos da corte, Flimnap, o ministro da
fazenda, é o mais insigne. Elle salta sempre uma pollegada mais
alto que os outros ministros, e exhibe sortes que obrigSo a todos
a ficarem boqui-abertos. Presenciei uma vez, como em uma taboa,
deitada sobre a corda bamba, virou tres cambalhotas seguidas,
com tal elegancia, presteza e segurança, que o proprio rei teve de
admirar-se.
Em presteza seguia-se-lhe o secretario privado de Sua Ma­
gestade, o digno Sr. Redresal. Os outros grandes da côrte vão
hombreando uns com os outx’os: são saltimbancos de força igual,
mais ou menos.
Não é de admirar que nestes exercicios acrobáticos, de quando
em quando se dêm accidentes. Eu mesmo vi dous candidatos que­
brarem os braços e as pernas. Mais immiiiente se torna o perigo,
quando são os ministros que entrão em exercicios comparativos;
3*
ninguem clelles

I > quer largar a


L
/' pasta, e todos
/ L expõem vida
nas artes mais

■ w arriscadas, para
conservarem
honra e gloria.
Flimnap, o mi­
nistro da fa­
zenda , um dia
esteve a ponto
de quebrar o pescoço, cahindo
da corda bamba*, felizmente
'ik encontrou um coxim regio,
que se achava casualmente por ah i, e S.
Ex. escapou com o susto.
Os estribeiros e picadores tinhão con­
tinuado assiduamente a acostumar os
cavallos ao meu aspecto, de modo que
estes já chegavão perto de mim sem impinar
ou ruir. Os regimentos de cavallaria se
haviào adestrado até em fazer saltar os seus ginetes por cima da
minha mão estendida no chão, e os mais assignalados levavão a
audacia a saltar-me por cima do pé.
Aproveitei esta circumstancia para preparar um espectáculo
divertido para o rei. Pedi oito varas da grossura das nossas
bengalas; fôrão trazidas para perto de mim essas machinas poderosas,
tendo cada uma quatro palmos de comprimento, mais ou menos.
Finquei-as no chão, de modo que formassem um quadrado de quatro
palmos de costado. Nestas varas estendi o meu lenço até ficar teso
como 0 couro de um tam bor; em seguida resguardei esta arena com
quatro varas mais delgadas, armadas em corrimão seguro.
— 37 —

Promptificado o meu circo, pedi ao rei que desse licença a


um esquadrão de sua guarda para nelle manobrar. Sua Magestade
mostrou-se favoravel ao meu pedido: ou agarrei os homunculos
juntos com os seus cavallos e os depositei no meu lenço. Dividirão-
se em duas turmas, e principiárão a hostilisar-se. Batêrão-se com
espadas cegas, atirarão flechas sem ponta, arrojárão os dardos e os
aparárão com os seus escudos, arremessárão, emfim, os seus cavallos,
uns ao encontro dos outros; recuando a tempo, corrião velozes
como 0 raio, perseguindo e perseguidos; era um gosto vê-los evoluir.
O rei divertiu-se tanto com este espectáculo, que o mandou
repetir tres dias consecutivos. No quarto Sua Magestade subiu em
pessoa a tal arena, capitaneando uma das turmas; e, não contente
ainda, mandou que subissem a rainha e as princezas, que colloquei
com a mão no meu lenço com carruagens e tudo, afim de que
pudessem presenciar de perto o hello espectáculo.
Deu-se, porém, um pequeno accidente, que poz fim a este
divertimento. O cavallo de um capitão de couraceiros, um ginete
nobre e possante, assustando-se de não sei que, poz-se a ruir com
tal força que abriu rasgão formidável no meu lenço, e, prendendo
o pé nesta brecha, cabiu desastramente. O cavalleiro voou por
cima do pescoço do seu animal e cabiu pesadamente no chão.
Acudi immediatamente, ergui o bomunculo e o colloquei no solo;
depois tapei com a mão o rasgão ominoso, até que tivesse descido
toda a tropa.
O official não estava maxucado; mas o cavallo tinha ficado
manco dos encontros, e teve de ser morto. Fiquei desgostoso
com o tal divertimento e desarmei o meu lenço no qual remendei
com grande trabalho a avaria havida. O rei, para quem o espectá­
culo já tinha perdido o incentivo da novidade, nenhuma reclamação
fez a respeito.
Pouco tempo depois chegarão uns mensageiros, que communicárao
a Sua Magestade que perto do logar onde me havião encontrado,
acabarão de achar um objecto singular, cujo destino ninguém sabia.
38 —

Era uma massa preta, grande, bicuda, da altui’a de um liomem,


do tamanho do aposento de Sua Magestade.
A principio suppuzerào fôsse um ser v iv o ; observárão-no de
longe, e conhecerão o errado desta supposição, visto que permanecia
completamente immovel no mesmo logar, Que tendo andado varias
vezes á roda do achado, alguns dos mais atrevidos, valendo-se dos
hombros dos seus companheiros, havião trepado no cume do objecto,
onde encontrárão uma especie de terraço, no qual os passos dos
visitantes produzirão um som ôco. Que sem duvida pertencia ao
nionte-hmnano e que, Sua Magestade querendo, poderião arrasta-lo
para a corte com um numero adequado de cavallos.
E escusado dizer que o rei não imaginava que objecto podia
ser aquelle; eu, porém, com grande satisfacção, atinei logo com a
verdade.
Quando me salvára do naufragio, íiquei tão atordoado, que
pelo caminho perdi o chapéu, sem dar logo pela falta. Mais tarde
persuadi-me have-lo perdido nas ondas do oceano, nas quaes devia
seguir um rumo qualquer.
Koguei encarecidamente ao rei que désse as suas ordens afim
de trazer o meu chapéu, cujas qualidades e destino ti^atei de explicar
a Sua Magestade.
No dia seguinte apparecêrão os commissionados, mas com o
meu pobre chapéu em misero estado. Em logar de carrega-lo em
um carro, havião perfurado a aba em vários pontos, para prender
ganchos de ferro, presos em cordas. Os cavallos, atados nestes
; I- tirantes, havião puxado a sua carga por páos e por pedras, até ao
lado do meu templo. Felizmente o solo de Liliput é tão plano e
liso , que os restos do pobre chapéu ainda permanecião serviveis.
Com orgulho e ufania pu-lo na cabeça, sendo admirado por todo o
ç
povinho neste adorno, novo para elle.
Poucos dias depois desse feliz achado, o rei passava revista
ao seu exercito em ordem de marcha, e teve a lembrança de
ordenar-me (jue abrisse as pernas, como o colosso de Rhodes, aíim

:v
— 39 —

de (jue as tropas destilassem por esta especie de arco de


triumplio.
Rompia a marcha a cavallaria, em filas de dezeseis praças,
com as espadas desembainliadas, pennachos fluctuantes e lanças
erguidas, cujas bandeirolas brincavào ao vento. Na frente ião os
cornetas a tocarem como se tivessem folego de gato.
Apóz a cavallaria vinha a artilharia com peças, carro de
muniçíio, bombas e granadas. Quando as peças me desfilárão entre
os pés, os artilheiros fizerão fogo com grande estrondo, pondo as
minhas meias e calças em risco imminente de serem chamuscadas.
Depois da artilharia vinha em columnas cerradas, de vinte e
quatro praças de frente, a infantaria: granadeiros, fusileiros, caça­
dores e sapadores. Tocava a musica alegremente; fluctuavão as
bandeiras desfraldadas ; os tambores rufavSo ; relumbravão as armas,
e em bôa ordem e marcha compassada desfilou o exercito todo.
Apezar da seriedade marcial, custava-me suífocar o sorriso que me
provocava a lembrança de q u e, com um so golpe m eu, podería
esmagar centenares destes soldados m iúdos, que me formigavao
entre os pés. El-rei gostou muito da funcçâio e mostrou-se muito
aíFavel para commigo, por ter aturado a massada com tanta paciência.
Não esquecia eu, porém, no meio dos divertimentos que se
seguião dia a dia, de insistir no pedido de minha liberdade, e por
fim consegui que Sua Magestade submettesse o caso ao seu conse­
lho pleno.
Havendo eu captado a benevolencia de todos, o meu pedido
quasi não encontrou resistência. Apenas o ministro Skyresch,
Galbet ou almirante do reino, que me era infenso não sei por que,
votou contra a«-minha liberdade.
Posto que fosse grande valido do rei, foi vencido na votação,
e 0 seu odio contra mim apenas conseguiu arrancar a concessão
que as condições da minha soltura serião redigidas por elle. Já
era bem desagradavel ; mas assim mesmo podia dar-me por feliz,
que não o fosse mais.
Concluiclo 0 seu trabalho, veiu acompanhado por vários outros
funccionarios, e leu-me as clausulas vexatórias, exigindo depois de
mim que me obrigasse a respeita-las, passando por um juramento
segundo as leis da minha patria, reforçado em seguida por outro
de conformidade com os usos de Liliput.
Este uso consistia em agarrar o pé direito com a mão esquerda,
pondo ao mesmo tempo o dedo maior da dextra no alto da cabeça
e 0 pollegar sobre o lobulo da orelha direita, emquanto a bocca
proferia a fórmula sagrada. Achei incoinmoda a posição e dei-me
por contente quando se terminou a ceremonia.
As condiçoes, porém, erão as seguintes:
«Golbosto Momarem Eolame Gurdilo Schefin Mully ü lly Que,
imperador ])oderoso de Liliput, terror e delicia do mundo, cujos
estados se estendem mais que cinco mil hlustriims até o fim do
orbe (todo o seu império não tinha doze léguas de peiúmetro), rei
de todos os reis, cujo poder é maior que o poder de todos os outros ;
homens, cuja cabeça alcança o sol, cujos pés descansão no centro
da terra, diante do qual todos os soberanos do Universo curvão a
fronte até o pó, que é ameno como a primavera, delicioso como o
1 verão, bemfazejo como o outomno e terrivel como o inverno, concede
a liberdade ao monte-humano, sob as condições seguintes:
«1? O monte-humano nunca poderá sahir do nosso império, a
não ser por uma autorisação expressa, dada por escripto, referendada
pelo nosso ministério.
«29 Sem a nossa licença o monte-humano não penetrará na
nossa capital, visto que, antes de tal visita será mister prevenir
préviamente os nossos súbditos fieis, para que tenhão de retirar-se
das ruas e praças afim de não morrerem debaixo dos pés do
visitante.
«39 Nestes passeios o monte-humano só poderá percorrer as
i
ruas principaes, evitando, sob pena grave, de pôr os pés nos prados,
jardins ou campos plantados.
Durante a sua visita o monte-humano empregará toda a
— 41

-i-J' V

IL

f
•Hi

’t.^a If

cautela para não maxucar


algum cidadão, que por in­
advertência haja ficado fóra
de sua casa; não alçará
nenhum nas palmas das mãos,
nem collocará nas suas algi-
beiras, a menos que não seja
por pedido especial.
«5? Em caso de neces­
sidade 0 monte-huniano tem ])or obrigação levar, pelo menos, duas
vezes por m ez, a nossa correspondência até os confins do império,
visto que com suas pernas compridas anda mais depressa do que
0 mais veloz correio. Sendo urgente, terá de transportar em suas
42 —

algibeiras os proprios correios, e reconduzi-los ao nosso palacio,


depois do assumpto concluido.
«6? Obriga-se o monte-humano a ser o nosso íiel alliado ein
qualquer guerra que surgir, prejudicando o inimigo o mais que
puder. Obriga-se especialmente a tomar ou destruir a esquadra
dos nossos adversários da ilha Blefuscu na guerra que parece
imminente.
«79 Nas obras publicas o monte-humano ajudará no que puder
aos nossos trabalhadores a levantar as pedras e madeiras pesadas
e colloca-las no ponto que lhe fôr designado.
«89 Afim de conhecer mais exactamente o perimetro do nosso
vastissimo im pério, o monte-humano terá de percorrer os nossos
limites, tomando por escala seus proprios passos.
> I «Em compensação da fiel observância destas clausulas, nós
promettemos ao monte-humano fornecer-lhe o seu sustento, sendo-lhe
destinadas diariamente as rações de mil oito centos trinta e nove
dos nossos súbditos. Além disto gozará do favor de privar com a
nossa pessoa, além de outras concessões vantajosas. Dado em
nosso palacio de Belfaborac no dia doze do nonagésimo primeiro
mez do nosso reinado abençoado.»
Como já ficou dito, jurei todas estas clausulas sem a menor
hesitação, e no mesmo dia fui posto em liberdade, realizando-se
este acto com toda a solemnidade e em presença d’ el-rei e de toda
a sua familia e corte.
Depois que as algemas ignominiosas, tinhão cahido ao chão,
eu prostrei-me aos pés de Sua Magestade, agradecendo-lhe coin a
maior cordialidade a graça e a confiança que acabava de dar-me.
O rei acolheu affavelmente esta manifestação de gratidão;
mandou que me erguesse, e prometteu-me seu favor constante e
inabalavel.
Por fim, apóz muitas expressões lisongeiras, que por modéstia
não repito, disse-me que contava com segurança encontrar sempre
em mim um fiel servidor, mostrando-me digno dos beneficios con-
- 43 —

cedidos e por conceder. Prometti, naturalmente, tudo quanto queria,


e estava firmemente resolvido a cumprir as promessas.
Entre as clausulas impostas admirou-me, e de certo h a -de
admirar ao leitor, que me coubessem diariamente mil oitocentas e
trinta e nove raçÔes liliputenses. Porque niío um numero redondo,
duas mil ou mil e oito centas? Não podendo explicar-me esta
particularidade, perguntei a um dos meus numerosos amigos, que
me disse:
— Meu caro, a cousa é muito simples. Quando se discutiu a
clausula acerca do teu alimento, os mathematicos d ’ el-rei tiverão
de calcular exactamente a tua altui^a, o que conseguirão mediante
os seus instrumentos aperfeiçoados; resultou que tens de altura
doze vezes a da nossa gente. De deducção em deducção, cliegárão
a encontrar que o teu corpo póde conter justamente mil oito centos
e trinta e nove dos nossos, e que, portanto, precisavas do alimento
de outros tantos liliputenses.
Admirei a perspicácia deste povinho miudo e a sabia economia
do seu rei, que tinha sabido evitar até o vislumbre de um esbanja­
mento dos dinheiros do thesouro.
CAPITULO V.

Sabe 0 leitor que eu ainda nSo conliecia a capital, e ha-de


comprehender quão grande era a minha curiosidade de visita-la.
Fiel ás clausulas juradas, pedi ao rei licença para realizar esta
visita, e sem hesitação Sua Magestade annuio ao meu pedido,
f f renovando apenas as recommendaçÔes de prudência e cautela.
Na cidade mesmo o rei mandou publicar um bando, ordenando
a todos os habitantes que se recolhessem ás suas moradas, visto
que in continenti eu ia apparecer.
Não me lembro se já referi que a capital está cix’cumdada por
uma muralha de tres palmos de altura, e dous de grossura, de
modo que as cai’ruagens dos liliputenses podem correr nella e mesmo
desviar-se uma de outra; condições que dão a entender que taes
muralhas são muito fortes e calculadas para resistir a um sitio em
regra. Por cumulo de segurança, são guarnecidas ainda, de dez
em dez passos, por torres altas e robustas, que com ufania erguem
as suas ameias altivas.
Entrei na capital, passando por cima da porta do occidente, e
f
segui uma das ruas principaes, observando a maior cautela, para
não destelhar as casas, ou mesmo derruba-las completamente com
as abas do meu fato; para o que tinha-me vestido mui rudimentar­
mente, enfiando apenas a minha japona, que era bastante curta.
Como reforço de cautela, para não dar nenhum desgosto a
Sua Magestade, caminhava de lado, á laia do caranguejo do mar.
— 45 —

e fazendo passos tao miúdos, que teria sido impossível esmagar


algum liomunculo que, por descuido, se tivesse deixado ficar na
rua. Era certo que Sua Magestade havia dado as mais severas
ordens a respeito do recolhimento nas casas; mas eu conhecia a
curiosidade immensa desta gentinha microscópica, para receiar que
um ou outro intromettido desobedecesse as ordens reaes. Eis ahi
porque andava como quem está pizando em ovos.
Janellas, sacadas e telhados, estavão atopetados de espectadores
em tal quantidade, que pensava nao ter visto jamais outra cidade
tào povoada.
Comprimentei os conhecidos que distinguia na multidão; con­
versei com este e aquelle amistosamente o mostrei-me em geral
mui cauto e civil.
A cidade de Belfaborac forma um quadrado perfeito, de
quinhentos pcs de costado. Duas ruas, da largura de cinco pes
cada uma, a cortSo em quatro quadrados menores iguaes. bo
nestas ruas podia mover-me e ainda assim com muito cuidado; as
outras tinhão apenas a largura de doze ou dezoito pollegadas, mas
em toda a parte reinava o maior asseio. As casas, de architectuia
graciosa, estavão pintadas com arte e gosto. A limpeza, que en­
contrava por todos os lados, mostrou-me que a policia da hygiene
de Belfaborac era superior á da Europa, onde, principalmente em
cidades pequenas, esterco e cisco cobrem e empestão as vias
publicas.
Gostei muito da capital, principalmente quando notei que nao
havia nenhuma casa com menos de tres andares, e que não faltavão
nem bons mercados, nem banhos esplendidos, nem edificios públicos
dignos de uma nação civilizada.
No centro da cidade, onde as duas ruas principaes se cortão
em angulo recto, está situado o palacio do rei, que forma um
quadrado immenso, cercado de um muro, separado do corpo do
edificio por um pateo de vinte pés de largura.
Não tendo este muro mais de dous pés de altura, facil me foi
— 46 —

passar por cima delle e penetrar no vasto pateo, donde pude con­
templar a meu gosto a parte externa do edifício, que, por fím de
contas, pouco me interessava, por conter só os aposentos destinados
á criadagem. As salas régias, os aposentos das solemnidades,
deitavão todos sobre dous pateos interiores, que nao me era licito
visitar. Nao era porque estes pateos fossem diminutos demais;
mas 0 portal da entrada tinha apenas dezoito pollegadas de altura
e sete de largura. Passar por cima dos edifícios, não era fácil sem
deteriora-los, porque tinliao cinco pés de altiu’a; e , ainda que as
paredes, construídas de pedra de cantaria, nada soífressem, com
toda a certeza os telhados terião ficado em misero estado.
Crescia-me a curiosidade com os obstáculos. D ei trato á
cabeça para achar um meio de introduzir-me no interior, sem prejuizo
da propiedade d ’ el-rei, e combinei fínalmente a ideia, que devia
tirar-me do embaraço. Esta ideia, communicada a Sua Magestade,
mereceu o applauso jubiloso do monarcha, que ardia por mostrar-
me os seus esplendores, tanto quanto eu anhelava poder admira-los.
Para realizar o meu intento, sahi de Belfaborac e fui á floresta
que distava obra de cem passos da capital. Com a minha faca de
algibeira cortei as duas arvores mais frondosas que encontrei; levei-
as para a minha casa, e com paciência e afinco, confeccionei dous
mochos da altura de tres pés cada um. Com estes mochos tornei
á capital, havendo precedido as mesmas medidas de precaução,
empregadas na oceasião da minha primeira visita. Colloquei um
dos meus banquinhos na entrada do palacio, e subindo a elle, passei
com cuidado o outro para o pateo interior. Agora foi facil passar
a perna por cima do telhado, sem prejudica-lo; chegado ao pateo,
deitei-me no chão em todo o meu comprimento, para olhar para os
aposentos do andar do meio, cujas janellas todas estavão abertas.
A uma destas janellas achava-se o rei, que me sorriu com afíabilidade.
Os aposentos, que tinha á vista, exhibião um lu xo, uma
sumptuosidade, que excedia a tudo quanto tinha visto na Europa
nos mais esplendidos palacios imperiaes.
— 47 —

Toda a mobilia, ou era de ouro e prata massiça, ou de


madeiras preciosas, artisticamente lavradas. Nas paredes havia
quadros pequenos, mas preciosos e maravilhosamente pintados.
Espelhos grandes, descendo do tecto ao chão, reflectião cem vezes
os esplendores do recinto. Tapetes macios, tecidos com as mais
preciosas fazendas, cobrião o soalho, e , para onde quer que
meus olhos se dirigissem, erão deslumbrados pela riqueza dos ob-
jectos artisticos e lúcos que encontravão. Era acompanhada esta
magnificência por tal asseio, por tal arranjo gracioso, que não pude
deixar de manifestar ao rei toda a minha admiração. El-rei, com-
prehendendo que minhas palavras lisonjeiras erão sinceras, conversou
coinmigo largamente acerca dos arranjos do seu palacio; por fim
deu-me a mãosinha a beijar, em signal de despedida, e eu ausentei-
me com as mesmas precauções observadas na chegada.
Poucos dias depois desta visita á capital, estava eu sentado
diante do meu templo, deleitando a vista com o panorama ameno
que abraçava.
De repente vi approximar-se uma carruagem do paço precedida
e seguida de picadores ricamente agaloados. Perto de mim parou
o vehiculo sumptuoso *, os lacaios abrirão a portinhola e I’econheci
então, no personagem que se apeioii, o meu particular amigo
Redresal, o excellentissimo secretario de Estado.
Admirado por esta visita, mais ainda o fiquei pelos modos
mysteriosos com os quaes S. Ex. me pediu uma entrevista em
particular. Quiz deitar-me no chão, para que o meu ouvido ficasse
mais perto da bocca de Redresal; mas elle me pediu que o levasse
para o interior do meu templo e o alçasse na palma da minha
mão, porque assim ficaríamos mais ao abrigo de qualquer curioso.
Satisfeita a sua indicação, S. Ex. disse-me com grande
emphase: nl
— Antes de tudo felicito-te, meu bom monte-huniano, por teres
recuperado a liberdade, posto que com algumas clausulas menos
agradaveis. Deves este favor a teu bom comportamento, e bem
— 48 -
f: '
assim aos esforços dos teus bons amigos, entre os quaes eu me
prezo de contar. Pois bem ; é chegado o momento de mostrar-te
agradecido e tirar de um grande embaraço, nào só o nosso gracioso

:x

1.

f,fÁ- í' -
soberano, como a
todo 0 povo de Liliput.
O caso é que ha muito tempo
mantemos uma guerra desastrosa
com os habitantes da ilha de Blefuscu,
Posto que a victoria estivesse ora de
um lado, ora de outro, perdemos quarenta
dos nossos melhores navios, e mais de
trinta mil marinheiros denodados nos combates e encontros in-
numeros, e ainda ninguém póde prever o íim desta miséria. Embora
os nossos inimigos soffressem perdas mais ou menos idênticas, con­
seguirão organizar novamente uma esquadra poderosa, com a qual
— 49 —

actualmente nos ameação de formidável invasao. Nào ha negar


que as nossas forças sjKo insufficientes para proteger-nos, certeza
(|ue enche de cuidados c tristeza a todos. Sua Magestade, o nosso
gracioso e valente soberano, porém, conta com o teu auxilio, meu
bom monte-humano, e enviou-me para ouvir o teu parecer, e sondar
ás tuas intenções. Dize-me, pois, o que podes e queres fazer para
livrar-nos deste apuro, e não te esqueças que sempre te hemos
tratado com estima e carinho.
Calou-se S. Ex. o Sr. secretario de Estado, olhando-me anciosa-
mente, receiando, talvez, que eu me negasse a soccorrer o paiz
ameaçado. Mas longe de mim estava semelhante ingratidão;
respondi, pois, sem titubiai', com o accento da sinceridade.
— Caro amigo e secretario de Estado; volta á presença do
teu gracioso e glorioso soberano e participa-lhe que estou firme­
mente resolvido a entrar cm liça contra seus inimigos, a extermina-
los com a minha espada, emquanto o meu peito tiver folego, e
forças o meu braço. Perca, pois, el-rei até o vislumbre de
cuidados!
Ao ouvir esta franca declaração, S. Ex. o Sr. secretario de
Estado sorriu-se, enxugando o suor que lhe banhava a testa, e
apertou-me cordialmente a mão.
— De ti não esperava outra cousa, excellente monte-himnno; —
disse elle, entrando apressadamente em sua carruagem, e voltando
para a capital.
Eu, porém, deitei-me e puz-me a parafusar de que modo aca­
baria de uma vez com esta guerra, alcançando uma victoria decisiva
para os liliputenses.
Sabia que Blefuscu era uma ilha separada de Liliput apenas
por um braço de mar da largura de oitocentos pés. Demorava ao
noroéste de nós, e na costa, que nos ficava defronte, achava-se
fundeada a sua esquadra, para poder aproveitar o primeiro vento
á feição. Sabia que os inimigos ignoravão a minha presença,
porque todas as communicações entre as duas ilhas ha muito
Viagens de Gulliver.

■1)1
— 50
|;Í.
!; i. estava 0
V
lí’ praia.
1r
? '. muito com o terror causado por
?. '
meu aspecto repentino aos blefus-
1 cuanos, que erào do tamanho dos
meus amigos.
Principiei por indagar dos
marinheiros mais ex­
perimentados qual a
profundidade do es­
treito que raedeiava

ti''".

:V .

entre as duas ',


t- í- ilhas. Colhi a / ^
certeza que nos
I lugares mais
profundos a
31
sonda accusára setenta J7 ,
glumlufs ou seis pés,
segundo o meu calculo;
nos outros apenas mostrára
cincoenta.
Muni-me então do meu oculo
de alcance, e aproveitando todos os
accidentes do terreno para occultar-
51 —

m e, arrastei-me até alcançar uma moita perto da praia, donde


observei a costa inimiga. Auxiliado pelo oculo, cheguei a contar
cincoenta náos, grandes e fortes, promptas para velejar, assim que
o vento o permittisse.
— Cuidado, meus maganoes, — pensava eu commigo, —
cuidado, que o feitiço nao se vire contra o feiticeiro.
Já estava assentado o meu plano de campanha, que, communi-
cado por mim em confidencia ao rei, causou tamanha alegria a Sua
Magestade que, esquecendo-se por um momento da seriedade con­
veniente á sua régia pessoa, pôz-se a saltar e bater palmas.
— Assim havemos de conseguir uma victoria decisiva, e mais
ainda, uma paz duradoura.
El-rei deu-me a mão a beijar, e aos seus funccionarios a ordem
de obedecer-me em tudo e por tudo.
Requeri vários rolos de cabos e grande cópia de varas de ferro.
Os cabos erão da grossura dos nossos barbantes e as varas
parecião-se com os nossos alfinetes. E u, porém, fiz trançados de
tres cabos, prendendo no seu extremo ganchos de ferro torcidos.
Confeccionei cincoenta exemplares de taes cabos e ganchos, jun­
tando todos em um nó commum, que podia conservar com facilidade
na mão, e fui ter á nossa praia, fronteira da altiva esquadra
inimiga.
Ahi estavão el-rei e toda a sua corte, espectadores anciosos do
meu emprehendimento. Tirei o casaco, os sapatos e as meias, e
metti-me no mar, caminhando em direcção á ilha de Blefuscu. Fui
caminhando até que a agua me désse ao queixo; depois nadei obra
i ^'
de trinta passos, retomando pé e continuando a minha caminhada.
Antes que tivesse decorrido meia hora, tinha alcançado os navios.
Grande foi o terror dos tripolantes, quando virão surgir, pouco
a pouco, das ondas do mar monsti’0 tamanho. Pânico horrivel
apoderou-se delles, e, soltando gritos estridentes, marinheiros e
soldados, commandantes e officiaes, tudo, emfim, que respirava a
bordo, atirou-se ao mar e foi nadando para a praia. Não os
52 —

încommodei, porque faziao justamente o que desejava que fizessem.


Orçavîïo em trinta m il, e se tivessem invadido a ilha de Liliput,
os liliputenses teriào passado um màu quarto de hora.
Agora já nSo havia perigo. Puz-me a executar o meu piano,
prendendo solidamente um gancho em cada navio.
Entretanto, nâo me correu mui commodamente este trabalho,
porque os inimigos, tendo recuperado um tanto de sangue-frio,
enviarão-me nuvens de flechas, das quaes muitas acertárão e me
causárão dores sensiveis no rosto e nas mãos. Apezar disto, pouco
caso teria feito desta aggressão, se não receiasse por meus olhos.
Lembrei-me então dos meus oculos, que tirei do bolso e colloque!
no nariz, oppondo assim um escudo efficaz aos projectis importunos,
que agora já me parecião brinquedo. De quando em quando al­
guma flecha acertava nos vidros, mas resvalava da superficie lisa.
Em breve todos os ganchos estavão lançados e cuidei de voltar.
Quando puxei dos cabos, percebi que a esquadra oíferecia re­
sistência: é que estava ancorada solidamente. Com a minha faca,
porém, cortei todas as amarras, debaixo de uma verdadeira saraivada
de flechas, que bastante me doião no rosto. Mas eu não fiz caso
deste incommodo, e reboquei toda a esquadra, desta vez sem
impedimento.
Os habitantes de Blefuscu, que não liavião atinado com o meu
, i in intento, ficárão como loucos de dôr, quando perceberão que lhes
arrebatava a sua esquadra formosa, para leva-la aos seus inim igos;
soltarão gritos tão cheios de lamentos, que eu mesmo tive pena
delles. Olhei para traz e vi como se atiravão ao chão, estorcendo-
se de desespero, puxando os cabellos, despedaçando a roupa, dando,
II
emfim, todos os signaes do mais vehemente soffrer.
L ogo que estive fóra do alcance das suas armas, parei para
arrancar as flechas das feridas, e untar-me com a pomada, que já
me havia prestado serviço tão efficaz ; senti logo diminuirem as
dores e os inchaços; guardei então os meus oculos no bolso, e
continuei a minha retirada victoriosa.
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— 53 —

Sem accidente passei a nado a parte profunda do meio do


canal; sem impedimento venci o resto do estreito, e cheguei por
íim na praia do Liliput, onde fui recebido com immenso júbilo pelo
rei e pelo povo.
Sua Magestade havia presenciado todos os incidentes da minha
excursão. Já desde o principio, quando viu seguir-me a esquadra
em arco gracioso, sentiu immenso júbilo; mas, quando cheguei ás
aguas profundas, quando o rei viu-me desapparecer por momentos
nas ondas, verdadeiro terror apoderou-se delle. Felizmente o susto
foi de pouca duração: bem de pressa viu surgir-me de novo, e
rebocar a esquadra conquistada, mesmo nadando. Gritos jubilosos
lhe irromperão então do peito, e toda a sua corte repetiu estes
gritos. Quando por fim já estava tão perto que minha voz podia
ser ouvida, gritando: — Por muitos annos viva o poderoso, o
glorioso soberano de Liliput ! — quando amarrei na praia o cabo,
que sujeitava as náos, — a alegria tomou proporções enormes, e
todos houverão-se de tal m odo, que paredão haver endoudecido
repentinamente. Kolavão-se no chão ; atiravão os chapéus ao ar, e
gritavão de contentamento, que a terra estremecia.
O rei, porém, recebeu-me com muita afíabilidade; abraçou-me
diante de todo o povo, fez-me os maiores elogios, e nomeou-me
immediatamente Narãac do império, o que é o posto mais elevado
e corresponde mais ou menos á nossa dignidade de duque.
CAPITULO VI.

Como 0 leitor tem podido vêr, até aqui cresceu-me diariamente


0 favor do rei.
Infelizmente a fortuna não é tão constante como os mortaes o

í' I: desejão, e bem depressa chegou a minha vez de reconhecer esta


triste verdade, em uma mudança dos sentimentos do soberano,
summamente desagradavel para mira.
O primeiro motivo da mingoa do meu valimento nasceu
negando-me eu de cumprir uma exigencia de Sua Magestade.
E l-rei, inebriado pela grande victoria alcançada sobre os seus
inimigos com tanta facilidade, recrudesceu em suas am bições, e
V. n ordenou-me que fosse recolher toda a frota mercantil dos habitantes
de Blefuscu, como lhes tinha arrebatado a esquadra.
E , não contente com isto, havia forjado o projecto de atacar
os seus vizinhos e de reduzir o seu paiz livre á simples provincia
de Liliput. Com o auxilio poderoso do meu braço, pareceu-lhe
cousa comesinha, restando-lhe depois só o trabalho de nomear um
I logar-tenente que governasse em seu nome o paiz subjugado.
Cumpre-me confessar que estes prejectos ambiciosos e iniquos
despertarão-me grande desgosto, e declarei sem ambages que nunca
me prestaria a servir-lhes de instrumento. Indignava-me a ideia de
reduzir á escravidão um povo livre e bom , que vivia satisfeito á
sombra de suas instituições. P or mais que fizesse el-rei, era

I -1 L
— 55 —

escusado contar commigo, porque preferia a morte á uma acçào


infamante.
Sua Magestade, comprehendendo que era tempo perdido insistir
commigo, mostrou-me um ar carrancudo, e convocou o seu conselho
pleno, no seio do qual revelou os seus projectos. Os seus con­
selheiros, que contavão com a minha força, applaudirào muito a
ideia", quando, porém, souberao que eu havia negado peremptoria­
mente o meu auxilio, arrefecerão, produzirão mil objecções, acabando
por condemnar completamente a empreza. El-rei viu-se obrigado a
renunciar ao seu plano, mas em mim recahiu toda a sua raiva,
porque não me podia perdoar haver-lhe impossibilitado a realização
de um sonho predilecto, e tão violento foi o seu desgosto, que no
proprio conselho deixou escapar algumas phrases para mim alta­
mente desagradaveis. Alguns ministros, sujeitos de má indole, por
inveja animados contra mim, aproveitarão o ensejo para augmentar
ainda a indisposição de Sua Magestade.
Calumniarão-me, accusarão-me de vários crimes e maldades, e
el-rei em sua ira facilmente prestou-lhes ouvido. Urdiu-se desde
então uma verdadeira conjuração contra mim entre o rei e seus
conselheiros, que alguns mezes depois irrompeu e quasi causou a
minha perdição.
Era lição eloquente para calcular com que facilidade os serviços
mais valiosos cahem no esquecimento, quando aquelle que os prestou
não sabe favorecer as paixões dos reis, nem satisfazer as suas
exigências insensatas.
Pouco depois chegou uma embaixada do soberano de Blefuscu,
para proceder ao tratado da p a z: compunha-se de seis enviados
extraordinários, acompanhados de seiscentos individuos. As con­
dições por elles propostas erão tão favoráveis que sem demora
fôrão acceitas. A sua entrada na capital íez-se com toda a pompa,
e correspondeu em todos os pormenores não so ao poder e a
magestade do seu soberano, como também a importância da missão
com que tinhão sido honrados.
‘ h ^
56

Também a mim os
embaixadores bzerão a sua
visita. Tinhão tido noticia
da coi’agem que havia
o]>posto aos projectos do ■

n t rei, e vinbSo agradecer o


t' i! meu procedimento, Felici-
tarào-me pelo alto valor

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que havia mos­


trado, ])ela mo­
déstia com que
gozava do favor . versar commigo.
dos grandes, e Finalmente pe­
convidarào-me finalmente a dirão-m e que
que fosse visitar o rei de lhes desse al­
r^ Blefuscu, que tinha muito gumas amostras
desejo de vêr-me, c de con- da minha força
prodigiosa. Annuindo sem demora, quebrei em sua presença varias
barras de ferro, alguns troncos de carv^alhos, arrojei ao longe
pedras enormes; sentei muitos liliputenses e blefuscuanos nos meus
— 57 —

hombros e braços, dansando com este peso desembaraçadamente,


esforçando-me, emfim, o mais que ])ude para distrahi-los agrada­
velmente.
Quando os visitantes se retirarão, agradeccrão-me com tanta
cordialidade, que bem comprehendi que não havia em suas palavras
o fingimento, que tão frequentemente se encontra nas cortes.
Prometti-llies que havia de pedir licença ao meu soberano para
visitar 0 rei de Blefuscu, e separámo-nos como bons amigos.
Quando, alguns dias depois, solicitei permissão para a visita
promettida, el-rei concedeu-m’a, mas com uma frieza tão notável,
que não pude deixar de comprehender que Sua Magestade tinha
alguma cousa contra mim. Indagando entre amigos soube que
Flimnape e Bolgrolão me havião intrigado, fazendo principalmente
cabedal da minha entrevista com os enviados de Blefuscu, como
prova evidente das minhas tenções traiçoeiras. Inteiramente inno­
cente, senti grande indignação por causa deste procedimento mali­
cioso, e modifiquei muito a opinião que tinha de ministros e outros
funccionarios do paço.
Como é sabido, para adquirir a minha liberdade, tivera de
jurar muitas clausulas humilhantes e vexatórias para mim, não
tendo como fugir a essa obrigação. Mas agora, que a tomada da
esquadra inimiga me havia valido o titulo de Nardac do império,
ficárão naturalmente eliminadas aquellas obrigações vilipendiosas,
e todos, a partir d’el-rei, a quem faço justiça neste ponto, até o
mais Ínfimo do povo, me tratarão com o respeito devido. Mas,
justamente este tratamento dispunha-me a prestar de bôa mente os
meus serviços, e não tardou a oceasião de provar ao soberano as
minhas boas disposições.
Infelizmente tive de pi’oceder de um modo tal, que veiu aug­
mentai' ainda a aversão que existia contra mim e de roubar-me o
ultimo vislumbre do favor do rei e de sua familia.
Uma noite, — havia de ser pela meia-noite, — estava eu
dormindo a bom dormir, quando fui despertado pelos gritos des-
•i
— 58 —

esperados de milhares de pessoas, das quaes muitas me batiâo des-


compassadamente na porta do doi’mitorio.
Sobresaltado fugi da cama, e, emquanto a toda a pressa enfiei
algumas peças de roupa, distingui com terror a palavra Sugluni,
que significia incêndio.
Quando abri a minha porta, chegavào a toda a brida criados
do paço; el-rei mandava chamar-me encarecidamente; um incêndio
voraz havia-se propagado no seu castello, ateado pelo descuido de
uma camarista de Sua Magestade a rainha. L escusado dizer que
voei para o theatre do desastre, onde achei, apezar dos trabalhos
assidues dos bombeiros e do p o v o , devorada grande parte da ala
habitada pela soberana.
Se tivesse trazido o meu casacao em um instante teria abalado
as labaredas com elle; mas na pressa com que acudi, apenas tinha
vestido a minha japona. Além disto a agua escasseava e os baldes
em que era trazida a pouca que se achava, erão do tamanho de
um dedal. Como haver-me para pôr fim ao terrivel incêndio? Como
salvar da total ruina esse formoso palacio, essa maravilha de arte,
luxo e riqueza, obra de muitos milhões de mãos liliputenses e de
vários séculos?
De repente lembrei-me que perto da cidade havia um immense
reservatório, uma cloaca gigantesca, para a qual corrião encanadas
todas as immundicias da capital. Na falta de agua limpa, lancei
mão do liquido daquelle reservatório; sem importar-me com o máu
cheiro, corri a encher o meu chapéu, e, despejando o seu conteúdo
nas chammas, consegui abafar promptamente o fogo.
Folguei muito por ter preservado da destruição um edificio tão
caro aos liliputenses; retirei-me, porém, sem aguardar os agradeci­ %
mentos d ’ el-rei, em parte movido pela minha modéstia proverbial,
e, para ser franco, também um tanto apoquentado pela duvida
acerca do modo com que encararia Sua Magestade o meio insolito
empregado por mim para extinguir as chammas; duvida bem fun­
damentada pela natureza do liquido tirado da cloaca.
E certo que no dia seguinte veiu tranquillizar-me a noticia de
que el-rei se havia manifestado muito agradecido; esta tranquillidade,
porém, nào foi de longa duração, porque bem depressa fui informado
reservadamente de que a rainha estava
furiosa por causa da profanação dos
seus aposentos, e que jurára que nunca
mais os mandaria recon­
struir para o seu uso. O
peior da informação foi o
additivo. Sua
Magestade, a
.graciosa so­
berana, jurára
também que
não descan-
sana, em-
quanto não se * lí
houvesse vin­
gado do pro-
fanador!
Assim, ,
em logar de
gratidão, colhi
um bom od io: odio de mulher, e ainda em cima de rainha.
Mas, o que havia de fazer senão deixar correr as cousas o seu
curso natural?
Entrincheirei-me na pureza das minhas intenções, e consolei-me
com a reflexão: que o demonio nunca é tão feio como o pintão.
; Il

I &' '

HH
CAPITULO VIL

Tenho que abrir ura parenthesis na narraçîîo das minhas aven­


turas, para encaixar algumas observações acerca dos habitantes
de Liliput, dos seus usos e costumes, leis e educação, para as quaes
mais tarde não terei ensejo favoravel.
Como já é sabido, a estatura média desses homunculos não
i I ’ passa de seis pollegadas de altura. Todas as demais cotisas do
paiz extraordinário são proporcionaes áquella altura. Os bois e
cavallos, chegados ao seu maior desenvolvimento, varião entre
quatro e cinco pollegadas; os carneiros e as vitellas ficão abaixo
de pollegada e meia, mais ou menos ; os gansos e perús assemelhão-se
em tamanho aos nossos pardaes, e ás nossas cotovias; as gallinhas
são mais pequenas que a carriça, e assim por diante, quanto aos
animaes. Mas, como a vista dos habitantes é sumraamente aguda,
lidão como nós; tanto trabalho lhes dá matar um dos seus boisi-
nhos, como aos nossos carniceiros de matar os nossos bois. Tudo
está em proporção. Entre nós, mais força, mas também mais
resistência; entre elles, pequenhez e debilidade, mas também re­
sistência menor. Comtudo, muitas vezes sentia um prazer especial
em observar os meus cozinheiros em sua lida. A destreza com
que depennavão as cotovias, do tamanho de uma mosca nossa, era
realmente maravilhosa. Mais admiravel, porém, parecia-me o trabalho
das costureiras; nunca pude descobrir nem um vestigio de agulha.
— 61 —

linha e retrós. EnfiavSo uma linha invisivel para mim em uma


agulha igualmente invisivel, e cosiíio com tal rapidez e destreza,
que excedia tudo quanto se póde produzir em costura.
As arvores mais altas, — arvores milliseculares, — apenas se
elevão sete pés acima do solo, de modo que commodamente podia
alcançar-lhes o cimo com a mão. Toda a vegetação está em pro­
porção com as arvores. Flores, cujo esmalte fazia as delicias dos
liliputenses, cujo tamanho provocava a sua admiração, pai’a mim
erão imperceptiveis a olho nú.
Não tive tempo de avaliar a extensão de sua cultura, porque
a minha estada no seu paiz não chegou a um anno. Comtudo,
estranhei o seu modo de escrever. Não traçavão as suas lettras da
esquerda para a direita como nós; nem da direita para a esquerda
como os hebreus, nem tão pouco de alto para baixo como os chins;
escrevião enviesado, de um canto do papel ao opposto, como os
nossos alumnos relaxados que têm jireguiça de pautar a sua plana.
Muito notável é ainda o modo de enterrar os defuntos. Collo-
ção-os na cova de cabeça para baixo, sem caixão nem sudário, e
enchem a sepultura de terra. A razão que allegão é que, infallivel-
mente, ao cabo de onze mil luas, a terra que elles têm por plana,
se vira, e que então os defuntos, que nesta época despertaráu,
hcaráõ na posição natural, podendo sahir das suas covas sem difh-
culdade. E certo que os sábios dizem que esta supposição é uma
grande tolice. Mas, de que serve? O povo não larga de suas
crendices e os defuntos são mergulhados de })ernas para o ar.
Algumas leis de Liliput são tão differentes das nossas, que
me vejo obrigado a menciona-las, verhi gratia, a lei acei’ca dos
delatores.
Todos os delictos contra o Estado são punidos severamente, e
todos os cidadãos têm a obrigação de denunciar os que chegão ao
seu conhecimento. Se acontecer, porém, que alguém denuncia o
proximo por vingança, malicia ou motivos inconfessáveis, e o denun­
ciado chega a justificar-se, o delator paga a sua falsidade cruelmente.
u

62

Í j decapitado e seus bens sào confiscados, sendo o accusado


indemnizado de quatro modos:
19 pelo tempo que perdeu;
29 pelo perigo que correu;
3*^ pela prisão que soflfreu;
49 pelas custas e prejuizos, originados pelo processo.
Se a fortuna do calumniador não é sufficiente, o Estado tem
de dar o que faltar.
Entre nós é differente, mas infelizmente não é melhor, porque
ordinariamente o delator injusto exime-se do castigo, e o pobre réo,
accusado injustamente, padece miséria e pena, sem a menor in­
demnização.
Furto evidente não é grave ci’ime entre os liliputenses; mas o
abuso de confiança é punido com a pena de morte. O principio
í'I i'? i1
seguido nisto pelos homunculos me parece verdadeiro e não posso
deixar de o applaudir.
Dizem elles acertadamente ([ue é possivel resguardar-se dos
ataques abertos dos ladrões por meio de muros, fechaduras e ferro­
lhos; mas que o homem de bem, nem com todo o tino e vigilância,
póde acautelar-se das ciladas e traições dos ardilosos, e é geralmente
victima ((uando não pensa em maldade. E como o commercio e o
trato social sem honestidade e lealdade, sem fé nem crença, nunca
poderia subsistir, um Estado bem avisado deve procurar manter
estas boas qualidades por meio de sabias leis. Que o remedio
mais efficaz, porém, contra enganadores e patifes é o cutello e o
baraço.
í íí i
S? í Uma vez implorei o perdão do rei|pai’a um criado que tinha
'4.• íf h I
' ;■ flVrP 1!- roubado a seu amo uma quantia considerável, (jue lhe havia sido
A • i h' t
confiada. Sem penèar em mal, observei que não me parecia crime
'IMH
'i tamanho que merecesse a morte; que pensava que alguns annos de
cadeia serião sufficientes para pagar o delicto.
Sua Magestade ficou attonito e me disse que estranhava ouvir-
\{
me qualificar um abuso de confiança entre os delictos pequenos.

d '
63

quando na verdade era o crime mais abjecto e mais prejudicial.


Que um liomicidio commettido em um momento de arrebatamento,
ainda se explicava, mas que uma deslealdade, um abuso de con­
fiança só se commettia com fria premeditaçào, evidenciando assim
toda a perversidade do criminoso.
Calei-me envergonhado, porque conheci que el-rei tinha razão.

E 0 tal criado foi enforcado, sem que lhe valesse a minha inter­
cessão.
A ingratidão é tida como crime capital. Dizem os liliputenses
que um individuo^ capaz de pagar ao seu bemfeitor o bem com o
mal, mostrando que não lhe tem amor algum, também é incapaz
de sentir amor pela humanidade; que, portanto, não seria digno
de vivei\
A educação das crianças é acertadissima, parecendo-se com a
espartana. Os pequenos são acostumados ás intemperies, inculcando-
se-lhes ao mesmo tempo as virtudes da justiça, do valor, da modéstia,
da brandura e da piedade. Acostumão-os á actividade, alimentão-os
com comida sadia, simples e escassa, instx'UÍndo-os nas sciencias e
bem assim na esgrima, natação, ec^uitação, e em todos os exercicios
do corpo. Deste modo ha poucos doentes, e os medicos não fazem
muito negocio em Liliput.
Tendo referido todas estas particularidades relativas aos filhos
do paiz, toca-me agora dizer algumas palavras acerca do meu esta­
belecimento, do meu modo de vida.
Com 0 andar do tempo havia tratado de dar ao meu templo
as commodidades possíveis. Tendo tido licença de cortar na floresta
régia as arvores que quisesse, de uma duzia das melhores consegui
fazer uma mesa e uma cadeira. Ponderando que só dispunha do
meu canivete, e que nenhum dos meus homuncrulos podia ajudar-me,
ha-de comprehender-se que não foi empreza facil fabricar aquella
mobilia. Mas com paciência e actividade vence-se grandes diffi-
culdades, e eu obtive a minha mesa e cadeira, não só próprias para
0 seu destino, mas ainda bastante agradaveis á vista.
— 64 —

Para fornecer-me camisas, lençóes e toalhas de mesa, el-rei me

t, I' havia mandado duzentas costureiras, que trabalhavao todos os dias


com afinco. Escolherão a fazenda mais resistente, mas apezar disto
deviào toma-la em quatro, porque a mais incorpada era delgada
í i f como 0 nosso fumo. O panno de linho de Liliput mede em lai-gura
tres pollegadas e uma peça inteira só tem covado e meio de com­
primento. Calcule-se (quantas peças tinlifio de empregar em uma
camisa para mim! Para tomar-me medida, eu tinha de deitar-me
no chão de todo o meu comprimento; uma das costureiras me
trepava no pescoço, outra no meu joelh o, e uma terceira media
a corda que as outras duas esticavilo. A medida com que tra-
balhavào era de uma pollegada. Acabada a medição, exigião que
mostrasse a mão e medião a grossura do meu pollegar. Em
seguida fazião-me uma reverencia graciosa, passando a cortar e
'!; coser as minhas camisas. A dm irei-m e que não me tomassem
as dimensões ao redor do corpo; porem ellas me responderão
que não havia necessidade disto, porijue, tendo a medida do
meu pollegar, e sabendo que o pulso tinha o dobro do peii-
metro deste, depois o pescoço o dobro do perímetro do pulso, e
assim por diante, era-lhes muito facil contentar-se com aquella

fi I» 'I medição.
Mais tarde verifiquei a certeza dos seus cálculos mathematicos,
admirando-me então que em nossa terra ainda ninguém se tivesse
lembrado de empregar o methodo das costureiras de Liliput.
A confecção de um casaco novo, em substituição do meu já
bastante transparente, occupou trezentos alfaiates. O chefe delles
exigiu que me puzesse de joelhos, e quando ja me preparava a
repellir com energia esta exigencia, explicou-me com um sorriso
gracioso que era só para tomar-me medida. P uz-m c, p o is, de
joelhos, e o chefe dos artistas da tesoura subiu em uma escada de
I
mão não sem ficar tremendo em todo o corpo, e deixou cahir dos
meus hombros um prumo, medindo assim o comprimento do futuio
casacão. Da medição dos braços, da cintura e dos hombros fiquei
— 65 —

eu mesmo encarregado, pois não havia


quem quizesse renovar a acção heroica
do chefe de subir em uma escada tão
alta, quando o menor dos meus movi­
mentos podia precipitar o audaz a estrellar-
se no chão.
Quando recebi o casacão, vi que me
assentava como uma luva, o que raras
vezes acontece com os nossos alfaiates,
mesmo com os melhores. Mas, olhando
de perto percebia-se que era composto de
milhares de pedacinhos, e isto porque a

O largura do panno está em proporção directa


com as dimensões dos
habitantes.
Empregavão-se tre­
zentos cozinheiros no
á 'm preparo dos meus ali­
mentos ; para maior coni-
modidade moravão em
casinhas e barracas, em
redor do meu templo, j un­
tos com as suas familias.
Cada um dos trezentos tinha de fornecer diariamente dous
pratos, e cumpre-me declarar ([ue sempre vinhao bem preparados,
([uer cozido, quer assado. Quando me sentava para comer, collo-
cava vinte copeiros em cima da mesa, para servir-me conveniente­
mente.

Cem outros estavão no chão, attentos ao meu menor signal,


trazendo os pratos pai*a a mesa, e rolando, os barris de vinho ao
meu lado, para iça-los depois, por meio de roldanas, para cima
da mesa.
Viagens do Gulliver. 5
— 66 —

Cada barril continha um bom trago, e cada prato um bom


bocado. A carne dos animaes é excellente-, não me lembro ter
comido" nenhum prato em roast-heef melhor e mais succulento.
Deve existir eximios criadores em Liliput, porque um dia me foi
servido um quarto de boi, que pude dividir em tres^bocados,
digo tres bocados bem regulares. E certo que isto não se dá
muitas vezes.
Geralmente não perdia tempo em apartar os ossos do assado;
trincava-os cora os meus dentes para maior gáudio dos assistentes,
que boquiabertos, me vião tragar um carneiro inteiro, meia^ vitella,
ou um veado assado, sem dar fé da carcassa! Razão tinhão elles,
os meus pobres homunculos, de espantar-se destas façanhas, e senão,
figura-te, caro leitor, que tens na mesa um bezerro deliciosamente
assado, que envia ás tuas ventas os mais finos aromas, e que de
repente entra um gigante que de uma vez só traga o petisco com
ossos e tudo.
Com as aves não tinha trabalho algum: perús, gansos e patos
me passavão com muita facilidade da bocca para o estomago;
pombas, perdizes e calhandras desapparecião ás dúzias de uma vez
só; ó bom lembrar-se, porém, que as taes calhandras erao do ta­
manho de uma mosca.
A funcção dos meus banquetes, tão interessante para os lili-
putenses, tinha attrahido até el-rei, que veiu com toda a sua família
assistir a um dos meus jantares. Agarrei todos, com carruagens,
■; U M ' cavallos e tudo, e colloquei-os na mesa, para que pudessem
' t ! i ■ i'
f 3 apreciar melhor o espectáculo appetecido; e p u z-m e a devorar
todos os bons bocados servidos nesta occasião com a costumada
! À pericia.
Sua Magestade arregalou os olhos, (luando viu com que
destreza fazia desapparecer em um momento verdadeiros montões
de alimentos, assados, verduras, compotas, saladas, ensopados e
quantos nomes tinhão, e mais de uma vez sacudiu a cabeça.
— 67 —

Flminap, o ministro da fazenda, que estava na carruagem d'el-rei,


achou a occasiao asada para cortar-me na pelle, segredando ao rei,
que neste andar, bem depressa seria impossivel sustentar-me sem
exhaurir o Estado. Sua
Mag-estade, que tinha á
vista as provas do meu
appetite, parecia prestar
a S. Ex. mais attençíío
que de justiça, e fazia
,* >s'"

uma cara bas­


tante feia, quan­
X.
do ouviu de
Flimnap que eu
já tinha custado
ao thesouro ini-
Ihcão e meio de sirnix (moeda de ouro do tamanho de uma lente-
joula) e sem duvida seria muito prudente arredar-me quanto antes
do paiz, e melhor ainda tirar-me a vida.
n

— 68 —

O rei nacla respondeu a estas insinuações; creio, entretanto,


que as guax-dou no amago do coraçào, e (pie mais tarde contribuirão

poderosamente a attrahir-me o desfavor do rei. Pelo momento,
porém, mio havia perigo ainda, e depois do jantar Sua Magestade
f' I r despediu-se de mim o mais graciosamente possível.

; t

i I Í

1.1

yK
CAPITULO VIII.

Sem muito tardar terei de contar aos meus leitores a minha


fuga do celebre paiz de Liliput.
Antes, porém, cumpre dar uma conta exacta da conjuração
que se forjou contra a minha vida, porque foi ella que me obrigou
a retirar-me clandestinamcnte.
Provas de sobejo já teve o leitor de que eu, com a minha
sinceridade, péssima figura devia fazer em qualquer corte.
Eu mesmo tinha colhido cedo esta convicção, mantendo-me, em
consequência, longe de todas as solemnidades, bailes e concertos,
apezar dos reiterados convites, que não podião deixar de me serem
feitos, como ao Nardac do Império.
Sentia que estaria deslocado naquellas reuniões; além disto,
pai’a dizer a verdade, ter-me-hia sido difficil dansar um minuete
gracioso ou um pas de deux com qualquer das damas do paço.
Mas, ao retrahir-me, cahi em um erro, commettido por muita
gente de bem ; não me occupando dos outros, suppuz que também
ninguém se occuparia de mim, e nem sequer sonhava com o perigo,
nem mesmo quando a tempestade já era imminente.
Estava eu em preparativos de minha projectada visita ao rei
de Blefuscu, quando alta noite, e rodeado do mais profundo mysterio,
um personagem importante da corte, — ao qual outr’ ora eu prestára
um bom serviço, quando tinha cabido em desgraça, — veiu visitar-me.
— 70 —

y'
Chegou em uma liteira bem fechada e nao declinou o nome
aos meus criados. Sem hesitaçiïo sahi, arredei a criadagem e os
I'. '■ I
n i portadores da liteira, metti esta corn dono e tudo na algibeira, e
fui para o meu aposento, cuja porta fechei cuidadosamente. Só
então 0 meu amigo atreveu-se a sahir do seu vehiculo; com grande
afan passou revista ao meu templo, para vêr se não havia algum
curioso escondido; depois sentou-se á mesa, com uma cara tão
triste, que não pude deixar de perguntar-lhe se lhe tinha sobrevindo
alguma desgraça.
11 — A h! — suspirou o meu amigo, cujo nome continuo a calar,
porque por um acaso este livro poderia cabir nas mãos de algum
liliputense, e originar incommodos ao meu bemfeitor; — ah! o que
me traz não é o meu interesse, mas o seu, e peçodhe que me ouça
sem interrupção, que a cousa é grave, para a sua honra e para a
sua vida !
Já se vê que este exordio não era dos mais tranquillizadores ;
obedeci, entretanto, á recommendação do meu amigo, que continuou :
— Ha-de saber que nestes últimos tempos numerosas sessões
I I do conselho d’ el-rei fôrão convocadas, e saberá agora que fôrão
realizadas unicamente para tratar do seu nome, da sua pessoa. Ha
dous dias, por fim. Sua Magestade tomou uma resolução. Sabe o
it I 1
meu amigo, tão bem ou melhor do que eu, que o almirante Skyresch
Bolgrolão, desde a sua chegada na ilha, votou-lhe um odio ferino,
e que este odio muito recrudesceu na occasião da gloriosa tomada
da esquadra inimiga, (|ue lhe empanou a elle o lustro de suas
façanhas. Pois bem : elle e Flimnap, o ministro da fazenda, e
ainda o general Linstoc, o veador Lalcon e o ministro da justiça
Ballmuff, formulárão accusação formidável contra o meu amigo,
declarando-o culpado de alta traição.
Sorprendeu-me tanto esta noticia, e sentia-me tão innocente,
que quiz interromper a narração do meu am igo; este, porém,
impôz-me silencio por um gesto, e continuou: A;■'
. — Sei tudo quanto quer dizer, e em toda a corte não ha quem

KV'}
— 71

esteja tào convencido de sua innocencia como eu; e, se nào, nao


estaria aqui. Mas de nada lhe servirá a innocencia, emquanto tiver
pela frente inimigos tão poderosos. Preste-me, pois, attençãò. Por
minhas relações consegui obter uma cópia dos pontos da accusação,
e grato pelos serviços que me prestou, venho communicar-lhe tudo,
posto que saiba que arrisco a cabeça, procedendo assim. Ouça,
pois, o libello
contra Quin-
bus Flestrin, o
monte-humano.
Puxou de
um rolo • de
papéis e leu : «85 1
1? Uma
lei antiga do
nosso paiz pro­
hibe, sob pena
de morte, macular o pala-
cio real do nosso sobe­
rano. O monte-humano
transgredio vilmente esta lei. \
\
atrevendo-se, na oceasião de um
\
incêndio casual, a apagar o fogo
com os resíduos da cloaca geral,
enchendo deste modo todo o
palacio de fétida immundicie.
Merece, pois, a morte o Quinbus Flestrin ou monte-humano, castigo
que propomos.
2? Tendo an’ebatado a esquadra inimiga, valendo-se de sua
força prodigiosa, o Quinbus Flestrin negou-se formalmente a ir
buscar a frota mercantil do mesmo inimigo, apezar da ordem ex­
pressa de Sua Magestade el-rei. Da mesma fórma negou o seu
auxilio para conquistar a ilha de Blefuscu, sob o pretexto^especioso
72 —

que sua consciência lhe vedava reduzir á escravidíio um povo


livre e feliz. Tendo desobedecido assim o monte-humano ás deter­
minações de Sua Magestade el-rei, propomos seja condemnado á
morte.
39 Paira sobre o Quinbus Flestrin a mais vehemente suspeita
de alta traição, por ter conferenciado privadamente com embaixa­
dores estrangeiros, offerecendo-llies, além disto, toda a especie de
divertimentos. Cresce a suspeita com a consideração de que esses
embaixadores vinhão de um paiz, com o qual Sua Magestade el-rei
ba pouco esteve em guerra ferina. Robustece, íinalmente, a intenção
traiçoeira pela pretenção de Quinbus Flestrin de visitar o monarcba
de Blefuscu, aíim de oíferecer-lhe os seus serviços. M erece, pois,
a morte o monte-humano.
Interrom])endo a sua leitura, o meu amigo accrescentou que
havia ainda muitos outros pontos de accusaçao, posto que de menor
importância, e continuou:
i, :
i í Durante o procedimento odioso dos seus inimigos. Sua Magestade
el-rei deu varias vezes mostras da affeição que lhe dedica, pro­
curando, com intenções benignas, invalidar as aceusações. Allegou
os séus serviços, prestados ao throno e á nação, observando que
não seria justo pagar-lhe com tamanha ingratidão. O almirante e
0 ministro da fazenda, porém, inoslrárão-se sempre mais emperrados,
re(|uerendo a morte mais tormentosa para o meu amigo. Propuzerão
■>
que de noite, quando estivesse ferrado no somno, se lançasse fogo
ao seu templo, afim de que perecesse nas chammas. E , no caso
rí que, por meio de sua força prodigiosa, conseguisse salvar-se das
labaredas, estarião promptos vinte mil homens para mata-lo com
flechas venenosas. Dar-se-hia aos seus criados ordem de borrifar
com um veneno cruel sua roupa de corpo e de cama, travesseiros,
cobertores, tudo, emfim, para que a dôr atroz, causada pelo veneno,
0 enlouquecesse, a ponto de despedaçar-se com as suas próprias
mãos. Tal morte horrenda lhe destinavão!
H^i!
El- rei, porém, rejeitou estas propostas, exigiu que, pelo menos.
,t 5 f. H :f
í; V
i k''V.l
— 73 —

se lhe deixasse a vida, e, coni uiu discurso ardente e inspirado,


angariou os votos da maioria do conselho.
Entíio Redresal, o secretario do Estado, (|ue sempre foi seu
amigo, convidado a emittir o seu parecer, levantou a voz e disse:
que, posto que bem conhecida a amizade que lhe dedicava, nao
queiúa deixar de manifestar sinceramente a sua intima opiniSo,
Que reconhecia a magnitude de seus crimes, mas que nào os ava­
liava susceptiveis de arrastar á pena de morte, visto que em todos
os seus actos nào surgia a menor má intenção. Que por isto
appellava jmra a clemencia do soberano, tantas vezes praticada
para a sua própria gloria. Se el-rei se dignasse perdoar-lhe a vida,
e se contentasse em mandar furar-lhe os olhos, não só a justiça
ficaria satisfeita, mas ainda todos os habitantes de Liliput, inclusive
o proprio Quinbus Flestrin, proclamarião bem alto a sabedoria e
brand.ura de Sua Magestade e de todo o seu conselho. Além disto,
se por tal procedimento se privava o amigo da faculdade de pre­
judicar, do outro lado se lhe conservava a possibilidade de prestar
serviços.
Accrescentou o secretario do Estado algumas reflexões bonitas
para demonstrar quão digna de louvores era a cegueira, accentuando
<pie augmentava^a coragem, visto que o cego não percebe o perigo
que o ameaça, brigando, portanto, com todo o denodo. E como
prova citou que o am igo, quando tomou a esquadra de Blefuscu,
mostrou-se muito receioso pelos olhos, o que pelo futuro não mais
aconteceria.
O discurso do Secretario do Estado, — continuou o meu
amigo, — longe de acalmar os espiritos, inflammou-os de novo, e,
roxo de raiva, ergueu-se o almirante Bolgrolão, e exclamou: Tu,
pois, te atreves a votar pela vida de um malvado, que mil vezes
mereceu a morte? Cuidado que por teus discursos inconsiderados
não tenhas que pedir por tua própria vida! Ao julgar de um crime,
peza-se o facto e não a intenção, que ninguém póde acjuilatar.
Sujou, sim ou não, o monte-humano o palacio real? Obedeceu ou
- 74

desobedeceoii á ordem d ’ el-rei? Deu audiência ou n~io aos em­


baixadores de Blefuscu? Eis as perguntas a que devemos responder,
e todos nós temos de confessar que commetteu os crimes de que o
accusSo. Porque, pois, adiar o castigo? O monte-hutnano e digno
de morte: matemo-lo! Que valem nestas emergencias importantes
os seus serviços prestados ao Estado? O que fez até agora a nosso
favor, amanhã o póde fazer contra n ós; e de certo o fará se realiza
0 seu desejo de visitar o soberano de Blefuscu. Além disto foi
recompensado de sobejo pelo titulo de Nardac do Impeiio. Pago
assim 0 tributo de gratidão, não temos mais obrigações para com
elle. Repito pois: Que morra! que morra! que morra!

Levantou-se então o ministro da fazenda, e abundou nos mes­


mos argumentos, reforçados com a ponderação do quanto o amigo
vai custando ao Estado. Rejeitou totalmente a proposta do secie-
tario, mesmo porque sabia por experiencia que uma gallinlia cega
come 0 dobro de outra vidente. Votava pela morte.

Replicou el-rei, declarando que, sendo elle contrario á sua


morte, e rejeitando os aceusadores o expediente de cega-lo, levantava
a sessão, adiando a decisão para outro qualquer dia.
O secretario, seu amigo, porém, queria a toda o transe ver a
questão decidida alli m esm o, e pediu licença para adduzir ainda
algumas razões novas.
— A objecção de S. Ex. o Sr. ministro da fazenda, relativa­
mente ás grandes despezas que acarreta o sustento do monte-humano,
é de certo muito valiosa, — disse elle. — Mas ha um meio de eli­
minar pouco a pouco este onus. Cego o Quinbus Flestrin, pro­
gressivamente dim inuir-lhe-hem os os alimentos, até que estejão
reduzidos a zero. O monte-humano ficará com este regimen muito
debil, perderá o appetite, e em poucas semanas morrerá de fome
' ? I' r " completamente mirrado. Assim evitaremos o perigo da putrefacção
de um corpo tamanho ^ só terão ficado a pelle e os ossos, e, se por
acaso houver sobrado um pouco de carne, facilmente cinco a seis
— 75 —

mil cicladíios a poderão raspar dos ossos e levar a paragens remotas^


onde não chegue a produzir epidemias. O esqueleto, por fim, ficaria
no museo para admirar as gerações vindouras.
Desta vez o discurso do secretario de Estado mereceu o appiauso
de todos, e assentou-se adoptar a sua proposta. O bom do seci-etario
alegrou-se muito, porque esperava ganhar tempo e salvar o amigo
da triste sorte que lhe destinavão. Resolveu o conselho pleno que
o projecto de mata-lo á fome por ora ficaria segredo de Estado, mas
que por estes dias se procedesse ao acto de furar-lhe os olhos. Não
tardará algum delegado d ’ el-rei em apparecer ao amigo, a communicar-
Ihe a resolução do excellentissimo conselho, e a exhorta-lo a sujeitar-
se resignadamente ao castigo, muito clemente á vista da magnitude
dos seus crimes. O rei não duvida que meu amigo acceite pa­
cientemente a resolução de perder a vista, e ordenou a vinte dos
seus cirurgiões que assistão á opex^ação, para que seja feita em
regra e segundo os preceitos da sciencia; por fim hão-de obriga-lo
a deitar-se no ch ão, e com pontas de lanças aquecidas no fogo
furar-lhe-hão os olhos.
Veja agora o que a prudência lhe aconselha. E u, por minha
parte, fiz o que pude, para preveni-lo do perigo imminente; e,
com esta, me ha-de dar licença de retirar-me tão mystcriosamente
como vim , porque perco infallivelmente a vida, se alguém souber
que 0 visitei.
E meu amigo despediu-se ternamente de mim e deixou-me só,
entregue aos meus negros pensamentos.
Se os meus inimigos conseguissem cegar-me, por toda a
vida ficaria preso ao solo de Liliput; nunca mais tornaria a
vêr minha mulher e os meus filhos, dos quaes sentia grandes
saudades.
Chorando a ingratidão do rei, pois que, eu que o poderia ter I
esmagado com milhares do seu povo; eu que lhe salvei o palacio
das chammas devoradoras; eu que o livrei dos seus inimigos pri-
vando-os de sua esquadra; eu que sempre me tinha mostrado
i i

— 76 —

brando, afFavel, paciente, avido de aprender, proinpto a servir e


cheio de confiança; agora, em troca de todo o meu amor havia-de
!' 1
perder os olhos e ser entregue a morrer cruelmente de fome?
i !
Kào, mil vezes mio! Castigaria os meus miseráveis perseguidores,
esmagando-os como vis insectos? Se quizesse, nem todo o paiz
poderia commigo. Com um montào de pedras destruiria a sua
capital em poucos momentos. Com o tronco de qualquer carvalho,
em cada golpe alastraria o chíio de milhares de homunculos. Mas,
iI nSo. A deslealdade do rei níío autorisava a minha. Havia jurado
que nunca emprehenderia cousa alguma contra o seu paiz e seus
súbditos, e cumpriria fielmente a promessa.
Kestava-me só fugir. líesolvi utilizar-me da licença de visitar
f. ^
o monarcha de Blefuscu, escapando assim á sanha dos meus
inimigos.
E dito, feito. Ko dia seguinte escrevi ao meu protector
Kedresal, dizendo-lhe que achava opportuno aproveitar a licença
concedida pelo nosso gracioso soberano, e mandei-lhe a carta por
um dos meus criados.
Mas, ao mesmo tempo, puz-me a caminho em procura da praia
que olha para Blefuscu; cscolhi um dos maiores navios, no qual
depositei a minha roupa, e, com a embarcação a reboque, dirigi-me
á ilha que devia ser o meu asylo.
Fiz 0 trajecto como da primeira vez, ora caminhando, ora
nadando, e meia hora depois estava em Blefuscu, onde já era
esperado, porque os embaixadores haviao prevenido ao rei da
minha projectada visita.
Vesti-me, e, sendo recebido por dous guias, pai’a andarmos
mais ligeii'0, sentei-os na palma da minha mão, e segui o caminho
que me indicarão.
A duzentos passos da capital, puz os guias no chão, e en-

I ; u carreguei-os de participar a Sua Magestade o soberano a minha


chegada, e que ficava aguardando as suas ordens.

íl
— 77 —

Uma hoi’a depois voltarão os meus guias e annunciarão-me que


el-rei, e toda a sua familia com os grandes da côrte vinhão ao
meu encontro, para dar-me a boa vinda
ao seu paiz.
Adiantei-me então mais cem passos
e avistei o monarclia e sens funccionarios
■S-
a cavallo, e a familia real em carruagens
\ esplendidas, todos ricamente vestidos.
y Quando me achei bem perto da comitiva,
Sua Magestade apeou-se, e junto com
V
elle os seus cortezãos; o mesmo fizerão
a rainha, as princezas e principes,
acercando-se de mim sem o menor susto.
l i f “ '“ "

Prostrei - nie
.^3
no chão, beijei as
mãos do rei c da rai­
nha e disse que vinha,
conforme a minha pro­
messa e a licença do sobci’ano de Liliput, render preito a Suas Magesta-
des e pôr á sua disposição todos os serviços que não entrassem em
conflicto com os meus deveres para com o monarcha de Liliput.

I
I i

— 78 —

0 rei de Blefuscu respondeu algumas palavras benevolas,



convidou-me a levantai’-m e, mostrando-se em geral nobre e aíFavel.
E escusado narrar as ceremonias da recepçíío na corte, de que
facilmente o leitor fará ideia.
H avia, porém , no meio de todas as galas, um grande incon­
veniente para mim; era a falta de uma casa, que pudesse abrigar-
me. T ive, pois, de dormir ao relento, debaixo das arvores da
floresta, e soíFri bastante das noites frias, cujas geadas me derão
um formidável defluxo.

I ' I 1

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I i í

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•! I ?

h i '
CAPITULO IX.

N ão revelei ao rei de Blefuseu a minha desavença eom o


monareha de Lilipiit, por dous motivos. Primeiro, porque não
tivera conhecimento official da resolução do conselho e receiava
comprometter o meu amigo officioso por uma indiscrição prematura.
Em segundo lugar, porque julgava que o rei de Liliput não divul­
garia 0 segredo, emquanto eu me achasse fóra de seu alcance.
Nesta supposição, poróm, enganei-me redondamente, como em
breve veremos.
Alguns dias depois da minha chegada, em um passeio na praia,
percebi ao longe um ponto negro no mar que me pareceu ser um
bote virado. Grande alegria despertou-se em mim; saltei ás ondas
e fui caminhando em direcção ao tal objecto, obtendo em breve a
certeza de que não me havia enganado, notando que o bote era
impellido para a terra pela maré enchente.
Voltei então a toda a pressa á capital e pedi ao rei que me
puzesse á disposição vinte dos maiores navios, dando ordem aos
marinheiros que me obedecessem em tudo e por tudo.
Annuiu el-rei; obtive as vinte embarcações capitaneadas por
um almirante e guarnecidas por tres mil tripulantes. Com esta
frota, municia de cabos e ganchos, approximei-me do bote, que já
se achava então muito mais perto da praia. Chegado ao seu
costado, chamei os navios, ordenei que os marinheiros me atirassem
— 80 —

r■
os cabos, prendí os ganchos no bote e mandei que a esquadi’a, com
as velas enfunadas por um vento favoravel, o tomasse a reboque,
emquanto que eu mesmo, nadando na pôpa, o impellia com as
mãos. A quarenta passos da praia tivemos de deixar a embarcação,
I'
porque jã não havia agua para mante-la a nado.
Duas horas depois manifestou-se a vasante. Bem prompto
pode alcançar-se o bote a pé enxuto, e os trabalhadores, que havia
' í
requerido nesse comenos, e que orçavão em dous mil blefuscuanos,
puzerão em movimento alavancas e machinas poderosas para aju­
dar-me a revirar o batei, o que conseguimos com muito trabalho e
com muitas gottas de suor. Vi então, e com grande alegria, que
as avarias erão insignificantes.
Empreguei longos dias em concertar e melhorar a minha
embarcação, conseguindo mesmo talhar um par de remos; feito
^ |:í i isto, entrei com ella triumphante no porto de Blefuscu, onde um
povo immenso já me aguaixlava, para admirar a minha conquista e
observar como governava o escjuife monstro, que bem podia conter
c[uatro mil liliputenses ou blefuscuanos, o que vem a dar no mesmo.
Maxúnheiro experimentado, passei de um lado para o outro com
muita facilidade, e o meu bote comportou-se nas ondas como uma
f' ':
gaivota graciosa.
Depois fui ter com el-rei, ao qual disse que um fado favoravel
^ me havia enviado aquella embarcação, para ir em busca de um
[í s M
í í ponto, donde pudesse voltar para a minha patria; que, por con­
í i í! { h-
seguinte, vinha pedir-lhe os materiaes necessários para armar cora-
li ml pletamente o bote, e bem assim venia para a partida, que desejava
11i í eíFectuar quanto antes.
O rei ouviu-me benevolamente, e vendo que não podia dissua­
dir-me da partida, para estabelecer-me no paiz delle, concedeu tudo
quanto pedia.
Sobrecarregado de trabalhos, não podia deixar entretanto, de
pensar em Liliput, e de admirar-me profundamente do silencio da sua
corte. Soube depois, por uma correspondência secreta com o meu
- 81 —

amigo, que o rei, nâo podendo suppôr que eu soubera da historia


de furar-m e os olhos, aguardava pacientemente a minha volta
de Blefuscu, es-
})erando que a
victima incauta
^Jà
cahisse infallivel-
mente na cilada.
Por fim , o
rei glorioso per­
deu a paciência,
receiando talvez
que eu tivesse

f7
I

entrado ao ser­
viço do sobe­
rano de Blefuscu.
Reuniu então o mi­
nistro da fazenda, o
almirante e os outros
membros da conjuração,
e foi resolvido despachar um enviado com a copia de um acto de
accusação. Devia este embaixador referir ao rei de Blefuscu quanto
favor me dispensara a côrte de Liliput, a ponto de deixar-me a
vida, apezar dos meus crimes nefandos, querendo tirar-me apenas
Viagens de Gulliver, 6
— 82 —

os olhos. Que eu mesmo nào negaria ter fugido ao justo castigo-,


e íinalraente, que devia voltar dentro de duas horas, sob pena de
])erder o meu titulo de Nai’dac do Im pério, e ser declarado fóra
da lei.
Em particular o embaixador devia dizer ao rei de Blefuscu
que o soberano de Liliput, em consequência da paz recente entre
os dous imizes, contava que o seu muito amado primo daria sem
demora as ordens necessárias para com pellir-m e a obedecer, e
enviar-me de maos e pés atados a Liliput, onde receberia, sem mais
preâmbulos, o castigo devido ás minhas maldades.
Keclamou o rei de Blefuscu tres dias de prazo para tomar a
sua resolução com calma e bom critério.
Terminado o prazo, mandou comparecer o enviado do seu caro
primo de Liliput e disse-lhe:
— Podes voltar para a tua terra e dizer ao teu soberano que
elle sabe como eu (lue a exigencia de entregar-lhe o monte-humano
atado de pés e mãos é completamente inexequível, pois que o
Quinbus Flestrin saberá muito bem defender-se. Dize-lhe mais que
o monte-humano nunca me fez mal algum, mostrando-me, pelo con-
l tiario, as melhores disposições de espirito. Communica, íinalmente,
ao nosso primo íiel e leal, que dentro em pouco o Quinbus Flestrin
nada terá que receiar, nem de mim, nem de Sua Magestade, pois
que encontrou um navio gigantesco e maravilhoso, no qual em
breve pretende voltar para a sua patria. Que se contente com
isto o teu amo, e de graças ao ceu de vêr-se livre de um l;^ospede,
cujo sustento custa sommas ingentes, como eu mesmo experimentei
' 3
com hoiroi. Io d e s accrescentar ainda que já dei as ordens mais
urgentes para preparar tudo para o embarque de Quinbus Flestrin,
pois que já não posso com as despezas.
Depois da partida do enviado, el-rei mandou-me chamar e
contou-me todos os pormenores da embaixada. Ri-me muito da ira
do soberano de Liliput, porque agora, de posse do meu querido
bote, nada receiava das duas nações de homunculos. Quando el-rei
^! í

jy
83 —

soube que lulo voltaria a Liliput, oífereceu-me empregar-ine em sua


terra 5 mas agradeci civilmente a offerta, porque estava firmemente
resolvido a voltar para a minha patria, e a nunca mais contai,
nem com reis nem com ministros.
__ O bote que tão singularmente achei, — disse eu a Sua
Magestade, — é um indicio da vontade do céu, que eu volte aos
meus pátrios lares: entregar-me-hei, pois, ás ondas do mar, resulte
o que resultar.
Sua Magestade contentou-se com esta declaração, e não parecia
lá muito desgostoso com a minha recusa de entrar ao serviço delle.
Percebendo isto, redobrei naturalmente de esforços para deixai um
paiz em que era apenas tolerado, e el-rei, sob pretexto de auxiliar-
m e, fez tudo para apressar a minha partida. Deu-me quinhentos
trabalhadores, encarregados de confeccionarem duas velas, o que
fizerão cosendo treze camadas das fazendas mais robustas que havia
no paiz. Eu mesmo trabalhava desde a madrugada até á noite,
tecendo cabos e amarras para apparelhar o meu bote, vendo-me
obrigado a trançar sempre vinte ou trinta cordas blefuscuanas, o
que era uma occupação ingrata e aborrecida. Faltava-me ainda
uma ancora, que os blefuscuanos não me podião fornecer, com a
melhor vontade do mundo. Lancei mão por fim de uma pedra
enorme, presa em amarras, e vi que servia regulai-mente para o
caso. Entregarão-me a graxa de trezentas vaccas para calafetar o
meu bote, o que também foi uma occupação desasseiada e des­
agradável, posto que facilima, comparada com o trabalho de cortar
as arvores mais possantes da floresta e confeccionar o mastro e o
leme. A paciência, porém, vence todas as difficuldades, e também
nisto sahi-me bem, fazendo eu a obra bruta e dando os blefuscuanos
a ultima de mão, polindo, alisando e entalhando a madeira.

Um mez depois do achado da embarcação, estava prompto a i1


fazer-me de vela. Dei esta noticia ao rei de Blefuscu, e pedi-lhe
que marcasse dia e hora da minha partida.
1 6*
11
— 84 —

No dia assignalado, compareci diante do palacio, O rei e a


rainha estavSo sentados em um throno de ouro e toda a familia
real em cadeiras de ouro formando roda aos seus progenitores.
Prostrei - me diante
dos soberanos e bei­
tir
jei-lhes a mao, que
graciosamente me
t '

estenderão.
Em seguida Sua
i I
Magestade el-rei fez
me presente de cin- 3

'//

.1 I

i '

■. f

coenta bolsas, cada uma recheiada com duzentas 1


moedas de ouro, dando-me em seguida, como
lembrança duradoura, o seu retrato de ta­
manho natural, que guardei immediatamente
em minha luva, para que não se sujasse na lida do embarque.
Por fim segmrao-se as despedidas, regadas de lagrimas copiosas,
que acho melhor ])assar em silencio.
O meu bote estava provido de cem bois e trezentos carneiros
mortos e de^ bôa copia de bebidas e de comidas já preparadas.
Como curiosidade erabarquei seis vaccas vivas, dous touros, seis

A i
— 85 —

ovelhas e dous machos, que pretendia mostrar em minha patria e


tratar de propagar-lhes a raça. Para forragens, no caminho, levava
um immenso fardo de pasto secco e um sacco de centeio. Tinha
muita vontade de levar alguns indigenas; mas o rei recusou-me
peremptoriamente a licença, exigindo-me até a minha palavra de
honra que nao raptaria nenhum, nem levaria commigo quem fosse
ousado bastante para querer seguir-me. Com muito pezar tive de
renunciar, pois, a este desejo vehemente.
No dia 24 de Setembro do anno 1701 suspendi a rainha ancora
improvisada, e deixei o porto de Blefuscu, ás seis horas da manha,
com vento favoravel.
Um povaréo immenso, apinhado na praia, assistiu á minha
partida, seguindo cora os olhos a minha embarcação e suas velas
enfunadas, emquanto as ondas do mar o permittirSo.
Milhares de brados de cordial despedida cortavào os ares;
abanei algumas vezes com o lenço, e depois empunhei a canna do
leme, pax'a governar o meu esquife.
Pela tarde, ao pCir do sol, encontrei no meu caminho uma ilha
pequena, apparentemente inhabitada, e não me fiando muito da
navegação nocturna nestes mares completamente desconhecidos,
desembarquei e, depois de resguardar cuidadosamente o meu bote,
passei a noite debaixo de uma arvore frondosa.
No dia seguinte continuei a minha viagem ao acaso, e durante
quatro dias não encontrei mais ilha alguma. Já receiava esgotar
os meus viveres e ter de morrer de fome miseravelmente, quando yi
apontar no horizonte uma vela. Cheio de alegria chamei com todas
as forças dos meus pulmões, mas não me ouvirão, porcpie continuárão
tranquillamente a sua derrota.
Felizmente o vento amainou; o que me permittiu acercar-me
do navio pesado com o meu bote leve e veleiro, de modo que os
meus gritos forão ouvidos.
O navio içou a bandeira, deu um tiro de peça e parou.
— 86 —

Sei’ia impossível descrever o meu enthusíasmo jubiloso, quando


conheci que tinha diante de mim um navio inglez, que se abria um
horizonte fagueiro ás minhas caras esperanças de tornar a vêr a patria.

' ■

1' 'O*®

Depois de ter raettido o meu pequeno rebanho nas algibeiras


do meu casação, subi a bordo, onde fui recebido pela tripulação
com grande admiração e curiosidade. Disse aos marujos que tudo

I • i;
lhes havia de contar, mas que, por emquanto, me apresentassem ao
seu commandante.
Satisfeito este desejo, soube que o navio ia para a Inglaterra,
de volta do Japão. O commandante, mister John Biddle, de De})t*
ford, era homem aífavel e marinheiro experimentado. Perguntou-me
donde eu vinha, e quando ouviu a íiel narração das minhas aven­
turas, sacudiu repetidas vezes a cabeça, como querendo dizer que
na minha parecia haver alguma cousa desarranjada. Tirei-o, porém,
desta crença do modo mais espantoso possivel, (luando fiz surgir
das minhas algibeiras o meu rebanho em miniatura, que principiou
logo a saltar alegremente pelo convez, mugindo e balando, que
dava gosto a ouvir. O que não deixou de calar também piofunda-
mente no espirito do capitão, foi a vista das bolsas cheias de moedas
de ouro e do retrato d’ el-rei de Blefuscu, mórmente quando lhe
offereci de presente duas das bolsas. Tratou-me com verdadeiro
carinho e ficou encantado, quando lhe prometti (lue depois da nossa
chegada na Inglaterra lhe daria uma vaquinha, uma ovelha e um
cordeirinho.
Correu-me a viagem ás mil maravilhas; só tive o desgosto que
os ratos me furtassem uma ovelha, da qual só deixarão os ossos.
O resto do rebanho chegou cm lindas condições; desembarcado em
Greenwich, toquei-o para a relva verdejante, onde os bichinhos
pulárão e pastarão alegremente, como se não achassem diíferença
•alguma entre os prados da Inglaterra e os de seu paiz natal.
Também eu alegrei-me bastante, porque tinha tido muito medo de
não poder salvar o meu rebanho durante a longa viagem, e, se o
consegui, foi graças á generosidade do commandante; elle me
forneceu a sua melhor bolacha que, pulverisada e diluida em agua,
sustentou maravilhosamente o gado blefuscuano.
Este gado, unico thesouro recolhido em minhas longas viagens,
bem depressa transformou-se para mim em fonte de riqueza. Fiz
optimos négociés, exhibindo-o por dinheiro, e em toda a parte
pagavão-me entradas elevadas. O povo, maravilhado pela narração
1■ i

— 88 —

das minhas aventuras, que bem depressa se havia espalhado, acudia


em massa para admirar os animaes de Blefuscu, e uma verdadeira
chuva de ouro me favoreceu. Cansado, porém, destas excursões,
vendi o meu rebanho por seis centas libras esterlinas.
Permaneci apenas dous mezes em companhia de minha mulher
e filhos 5 o socego da casa nào harmonizava com o meu espirito
aventureiro, que me impellia de novo para o mar. Entreguei á
minha esposa mil e quinhentas libras para o seu sustento; aluguei-
lhe uma bella casa 5 e passei-lhe os juros de vários capitaes valiosos,
que estavao ainda em maos de terceiros, de modo que nao tinha
M l i que receiai que os meus, durante a minha ausência, padecessem
penúria.
Satisfeitos assim os deveres de marido e pai, despedi-me de
n minha mulher, dos meus rapazes e de minha filha, e embarquei no
*Aventureiro^^ bello navio que partia jíara as índias Orientaes.
I-
Chamava-se 0 commandante John Nicolas, de Liverpool, e gozava
universalmente da reputaçílo de homem de bem.
Guardo, porém, a narração dos acontecimentos desta nova ex­
cursão para 0 segundo livro das minhas viagens, mesmo para que
0 primeiro não fique demasiadamente volumoso.

Ir 1

! M í

f i
CAPITULO I.

Ao cabo de dous mezes passados no seio da minha familia,


deixei, pois, de novo a Inglaterra, a verdejante, para confiar o meu
vulto aos azares do vento e das ondas, correndo atraz de uma
fortuna mal definida na minha propriamente.
Não era a sede do ouro que me impellia; na minha casa
tinha o sufficiente para passar uma vida folgada, uma vida sem
cuidados.
O movei das minhas viagens era a sede de aventm’as extra­
ordinárias, e posso afiirmar aífoutamente que nesta nova excursão,
a este respeito, correu-me tudo a pedir de bocea.
Aos vinte de Junho do anno de 1702 suspendeu ferros o capitão
Nicolas, singrando com vento á feição em direcção ao seu destino,
isto é, á Surate na índia Oriental.
Até o Cabo da Bôa Esperança tudo foi bem. Arribámos para
refrescar, mas fizemos a triste descoberta que o nosso navio fazia
agua. Tivemos de desembarcar grande parte da carga e de cala­
fetar o Aventureiro em regra, no que gastámos bastante tempo,
quando julgámos, por fim, podermos partir, adoeceu o commandante
de uma febre perniciosa, tendo uma convalescença demorada, de
modo que só conseguimos fazemos de vela no mez de Março, época
pouco favoravel á navegação naquellas paragens.
' — 92 —

A principio, enti’ctanto, sorriu-nos a sorte. Passámos o canal


í(f' i de Mozambique sem novidade ; mas dahi em diante começou a ad­
versidade por um vento rijo e violento, que durante vinte dias nos
impelliu em todas as direcções imagináveis, soprando ora de um
íí lado, ora do outro, mas com impetuosidade igual.
Calculava o capitao que de cinco gráos latitude sul tinhamos
sido derrotados a très gi^áos latitude norte, quando de repente o
vento cessou, cahindo inertes as velas páos abaixo.
Cansado das violências do temporal, alegrei-me muito com a
calma repentina; mas o commandante sacudiu a cabeça, e as ordens
que deu bem mostravao que receiava um recrudecimento do furor
dos elementos; chegou mesmo a predizer a tempestade para o dia
seguinte.
Posto que eu soubesse que o nosso commandante era um
marinheiro táo perito, quanto conhecedor dos mares que atravessa­
vamos, duvidei, comtudo, de sua predicção; cedo, porém, veiu o.
desengano, porque na manhã seguinte o temporal rebentou com tal
furia, que no primeiro instante o nosso navio adornou como se
nunca mais pudesse retomar o equilíbrio.
n :
Demo-nos por felizes de que bôas medidas de precaução tivessem
sido tomadas em tempo contra a violência da tempestade; sem
ellas, o Aventureiro teria ido logo a pique.

i' 1 Desta mesma violência, porém, concluimos que o máu tempo


cedo passaria, segundo um rifão antigo que diz «o que dá forte,
acaba lo g o »; mas enganámo-nos infelizmente. De instante em
instante crescia a vehemencia do tempo, e bem depressa nos vimos
Í H ; í■’ obrigados a caçar os últimos pannos. Apezar disto corremos diante
í do vento com tal rapidez, que de susto perdi quasi a respiração.
O navio comportou-se maravilhosamente ; cortava impetuosa­
mente as ondas enfurecidas, correndo como um ginete desenfreiado.
Durante quinze dias fomos o ludibrio da tempestade, que brin­
cava com' 0 nosso navio, como o gato com a bola de papel. Quando,
porfim, 0 temporal arrefeceu, terminando-se em fresca brisa do oeste
— 93 —

sudoeste, o nosso commandante não atinava mais em que paragem


navegavamos, calculando apenas que teriamos desgovernado umas
quinhentas léguas para leste. Má noticia para nós; entretanto,
tratámos de nao perder o animo, consolando-nos com a bella re­
sistência do nosso valente navio, com a robustez da tripolação e a
grande abundancia de viveres.
A agua, porém, principiava a escassear e almejavamos encontrar
uma ilha para refazer-nos.
A o cabo de alguns dias realizarão - se os nossos desejos. O
grumete de vigia no cesto de gavea, assignalou terra e em 17 de
Junho de 1703 fundeámos defronte de um ilha grande ou con­
tinente: era difíicil dizer ao certo o que era.
Ko extremo sul salua para o mar uma lingua de terra, for­
mando uma enseada tão raza que não admittia navio de mais de
cem toneladas. Tinhamos fundeado a uma milha mais ou menos;
0 commandante enviou á terra um escaler com uma duzia dos
melhores marinheiros, bem armados, e munidos de barris, e deu-
lhes a ordem de recolher-se logo que tivessem enchido o vasilhame
de agua fresca,
Muito desejoso de tornar a pizar em terra firme, pedi ao
commandante licença para acompanhar os homens ; não houve difíi-
culdade, e depressa embaix^uei no bote, com a ideia de enriquecer
0 thesouro das minhas experiencias com novas descobertas valiosas.
Desembarcados não encontrámos nem rio, nem regato, nem
vestigio algum de habitantes; os marinheiros espalharão - se pela
costa em procura de agua e eu dirigi-me para o interior, caminhando
bem meia hora com a esperança de alguma aventura notável. Por
toda a parte, porém, só encontrei pedregulho e terreno esteril, e como
não visse cotisa alguma que pudesse instigar a minha curiosidade,
voltei lentamente para a enseada.
Imaginem o susto que levei quando tornei a avistar o mar, e vi
os meus companheiros no bote, a meio caminho do navio, remando
com uma precipitação como se tivessem de escapar a morte.
— 94 —

Chamei, gritei, apezar de saber que 2iSo me podiào ouvir, mas


de repente um grito ficou-me atravessado na garganta, quando vi
um monstro terrí­
vel, gigantesco, que
corria atraz do bote,
entrando resoluta­
nii mente no mar.
f? A agua, posto

•435-

que
bastante '
funda, ape­
n !, C
nas chegava aos
joelhos do monstro,
e por um triz este con­
seguiria alcançar o bote.
Felizmente os marinheiros já tinhào um !

bom adiantamento, e o fundo do mar


era tâo pedregoso, que o gigante só
com grande difficuldade podia caminhar. Alcançárào, pois, o
navio, e o commandante, logo depois da chegada de sua gente,
alçou os ferros e fugiu com a pressa que o vento e o mar lhe
facilita vão.
E bem de vêr que não me demorei em aguardar o resultado
da perseguição. Com toda a pressa possível voltei pelo caminho

^5
— 95

vencido a pouco, e subi a uma montanha ingreme, de cujo cume


descobri bôa extensão do paiz.
Por todos os lados via campos cultivados, jardins e florestas,
e quasi fíquei pateta de admiração diante da excessiva fertilidade
do solo, pois que o capim nos prados tinha vma altura de vinte
pés e mais.
Descendo do monte tomei uma estrada real muito larga, como
então pensava, mas que na realidade só era uma vereda, como
soube mais tarde. De vagar, e com muita precaução, fui-m e
adiantando; mas, como os cereaes estavão maduros e as suas
hastes subião mais de quarenta pés acima da minha cabeça, só
podia vêr o que havia immediamente adiante ou atraz de mim.
Gastei uma hora para alcançar o fim do campo de trigo, achando
então que era cercado por uma sebe de cento e vinte pes de altura,
mais ou menos. Não me foi possivel calcular a altura de algumas
arvores, que erguião a copa acima daquella sebe, porque meus
olhos não lhes alcançavão o cume.
Neste ponto os meus passos encontrárão um estorvo em uma
escada, que punha em communicação o campo de trigo, em que me
achava, com outro vizinho. Tratei de subir ao terraço desta escada,
mas comprehendi logo a inutilidade do meu trabalho, visto que
não consegui escalar nem o primeiro degráo, que tinha seis pés de
altura, e era tão liso que não oíFerecia ponto de apoio algum.
Andei, então em busca de uma falha da cerca para poder sahir.
No momento em que descobri uma abertura, indo dirigir-me a ella
cheio de alegria, v i, apenas duzentos passos distante, no alto da
escada um outro indigena, cujo aspecto não me assustou menos do
que o do pidmeiro. Pareceu-me da altura de uma torre de igreja;
sem duvida alguma, ao caminhar de bôa vontade, abarcaria em
cada passo pelo menos a distancia de dez metros. Senti calefrios
só com a ideia de que poderia vêr-me e perseguir-me. Como ha\ ia
de escapar aos seus passos gigantescos? Para onde havia de fugir?
Onde esconder-me? Cheio de angustia olhei em redor de mim, e
— 96

achei acertado occultar-me entre as hastes do trigo, que se erguiào


i em torno de m im , formando uma especie de densas florestas.
Agachei-me depressa neste escondrijo, e só então tive o animo de
observar o meu gigante e seu procedimento.
Durante algum tempo ficou immovel a observar os campos.
De repente virou-se para um rochedo que lhe estava á esquerda,
acenou com a mão e soltou a v o z , provavelmente para falar com
algum conhecido, como então suppunha, O som desta voz, que
entretanto me passava á grande altura por cima da cabeça, fez-
II me estremecer 5 julguei ouvir o roncar do trovão, em medonha
tempestade.
A pouco tardar chegárão outros gigantes. Trazião foucinhas
do tamanho de dez metros, e vinhão menos bem vestidos do que
0 primeiro, de quem se acercárão humildemente. O patrão, — pois
tal era a sua condição, — ordenou-lhes que ceifassem o trigo no
^ ,
qual eu estava mettido, e os monstros puzerão logo mãos á obra,
como notei com grande susto. Cahirão as hastes debaixo das suas
fouces, e eu, para não ser partido pelo meio, tive de cuidar em
I í rapida fuga.

:í ifi Em ancias cruciantes encetei a retirada, esgueirando-me por


entre o trigo ; mas não podia esconder-me que cedo seria alcançado,
!'i ; íí
nu- pois que as difficuldades, que se oppunhão á minha fuga, erão
I- ;
grandes. Em muitos logares as hastes formavão moitas tão densas
que nellas não podia penetrar, tendo que dar assim grandes voltas,
que muito me demoravão, para escapar ao progi’esso incessante
das fouces.
Por fim cheguei a um ponto, onde o trigo se havia abatido, e
vi que tinha perdido o meu latim; tão emmaranhadas estavão as
espigas, que teria sido loucura querer atravessar o obstáculo. Sem
duvida as barbas do trigo, longas e afiadas como espadas, me
terião transpassado, vindo eu assim a pagar a experiencia com a
vida. Desesperado, só me occorreu atirar-me a um sulco do campo,
e permanecer nelle resignadamente á espera do meu fado.

■1 I
97

Nesta posição desesperada e penosa percebia claramente a


queda das hastes^ o ranger das fonces, o passo retumbante dos
segadores gigantescos, e meus pensamentos refugiarão-se espontanea­
mente ao seio da minha familia, perto de mulher e filhos. Amal­
diçoei a minha paixão pelas viagens, e a louca pertinácia com que
havia rechaçado os pedidos de minha pobre mulher, os conselhos
dos meus bons amigos. Lembrei-me também das minhas aventuras
em Liliput, e comparei a minha situação de então com a actual.
Alli admiravão-me como uma maravilha, como um ser sobre-humano,
executando as mais estranhas façanhas; mas aqui eu senti-me re­
baixado á situação dos liliputenses. Como eu lhes tinha parecido
a elles, a mim me parocião agora os habitantes do paiz, ao qual o
meu destino me havia conduzido, e mal podia abafar altos lamentos,
quando imaginava o que me havia de acontecer.
— O primeiro que te encontrar, — me dizia eu, — traga-te
com couro e cabello, e ficarás sepultado no estomago de um monstro,
cuja presença ninguém te mandou procurar.
Emquanto me entregava aos meus tristes pensamentos, um dos
segadores se havia acercado a dez passos de mim, e era evidente
que um instante depois ou me esmagava com o pé, ou me pai’tia
com a fouce. Para evitar esta desgraça, ergui-me e gritei com
todas as forças dos meus pulmões.
O gigante teve um sobresalto ; deixou em descanso a sua fouce
e prestou um ouvido attento aos meus gritos, olhando em redor
delle para descobiàr donde sahião.
De repente elle me viu e uma admiração profunda appareceu-
Ihe nas feições. Elle riu-se.
Durante um momento fitou-me com grande interesse; depois
estendeu a larga mão para agarrar-me. ,
Empregou, entretanto, muito cuidado neste movimento, como
empregaria em nossa terra qualquer para pegar em um bicho
perigoso e máu, sem ser mordido ou arranhado.
Viagens de Gulliver. 7
98

Correndo e saltando, ])ude evitar algum tempo a inào ameaça­


dora; porfim, porém, agarrou-me por detraz com o pollegar e o
index, alçou-me á altura de seus olhos, fitou-me com grande espanto,
e disse certamente lá comsigo: — Que hiclio curioso será este?

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"L* *
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Imagine o leitor a minha posição, esperneando no ar, a mais


de sessenta covados acima do chão, e ameaçado de ser esmagado,
se acaso aquella mão gigantesca me soltasse! Felizmente tive o
sangue frio necessário para manter-me tranquillo, para evitar qual­
quer movimento do opposição. Mas, como o gigante me apertasse
— 99

como em um torno, a ponto de tolher-me a respiração, ergui os


olhos supplicantes, puz as maos na attitude de ancia mortal e pedi
graça com os accentos mais sentidos, mais lamentosos.
Mais admirado ainda ficou o gigante, quando me ouviu falar
clara e distinctamente ; posto que não entendesse as minhas palavras,
agradou-se tanto dos meus gestos e do timbre da minha voz, que,
para evitar-me alguma queda, me apertou ainda mais, causando-me
assim, sem querer, dôres maiores.
Senti estallar todas as costellas, e, esperneando desesperada­
mente, e torcendo-me entre os dedos do meu gigante, como se torce
a enguia na mão do pescador, derramei lagrimas copiosas, e soltei
um grito horrivel.
O gigante pareceu entender estes signaes, porque tratou logo
de alliviar a minha situação. Alçou uma ponta do seu casacão e
deitou-me no b o jo ; em seguida levou-me ao seu patrão, um agri­
cultor abastado, que não longe de nós se achava no campo. Re­
conheci immediatamcnte o gigante que tinha visto no topo da escada. dt|

7*
l* ■

: I

CAPITULO II.

Admirou-se elle tanto quanto se havia admirado o peão. D e­


pois de um exame summario, elle procedeu a uma revista mais
minuciosa da minha pessoa. Com um sopro, que me j^areceu um
vendaval, afastou-me os cabellos da testa, jDara contemplar-me melhor
o rosto, que devia exhibir a expressão de angustia profunda; em
seguida examinou-me as mãos, os pés, apalpou-me o peito e as
costas, soltando de quando em quando exclamações de espanto.
Porfim chamou os seus trabalhadores, e mostrando-me a elles,
parecia perguntar-lhes se já havião visto alguma vez creatura
semelhante. Depois segurou-me por detraz pelas abas da casaca,
manteve-me suspenso no ar, e collocou-me no chão, com muito
vagar, causando-me, com tudo, tal abalo, que cahi de gatinhas.
Talvez suppuzesse elle que devia de andar em quatro pés,
como um quadrúpede; mas tirei-o logo do engano levantando-me, e

ú caminhei de um lado para o outro, lentamente, com toda a dignidade

ri que pude juntar, para mostrar-lhes que era homem como elles, e
que não tencionava subtrahir-me pela fuga.
Os gigantes rirão-se muito, sentarão-se formando roda em torno
de mim, e fitarão-me eom muita attenção para não perderem nenhum
movimento meu.
Acerquei-me do agricultor, tirei o chapéu diante delle e inclinei-
t me profundamente.
— 101 —

Em seguida dobrei um joelh o, ergui supplicante as mãos, e


pedi, tão alto quanto pude, que me tratasse benignamente. Para
reforçar o meu pedido, offereci-lhe a minha bolsinha de dinheiro,
em signal de completa submissão.
O patrão dos gigantes, aceitou a bolsinha, levantou-a á altura
dos olhos, e contemjdou-a por todos os lados, sem atinar para
que servia.
Então eu lhe pedi que estendesse a mão aberta no chão, e,
abrindo a bolsinha, despejei as moedas de ouro e prata que continha.
Mas, percebi que mesmo assim não alcançou o valor da minha
offerta, porque elle restituiu-me o dinheiro, indicando-me por gestos
que 0 guardasse na bolsinha e que melhor estava na algibeira; e,
como o conselho não era máu, segui-o á risca.
De todo o meu procedimento, dos meus gestos e olhares, o
gigante teve de concluir que eu era um ser racional e não algum
animal raro e desconhecido até então; em consequência tratou de
conversar commigo. Mas eu não lhe entendia as palavras, que me
passavão pelo ouvido como o roncar do trovão, e elle, por seu lado,
não entendia tão pouco as minhas, posto que se dignasse acercar o
ouvido da minha bocca.
Depois de ter comprehendido a inutilidade do seu tentamen,
enviou os peôes para o seu trabalho, e puxou do lenço para levar-
me nelle para a casa. Estendeu o lenço na palma da mão encostada
no chão e convidou-me a subir. Se bem que tenha de confessar
que semelhante convite me humilhava bastante, comprehendi que
seria melhor obedecer, e subi á palma da mão do gigante, o que
não foi muito difficil, porque em grossura não excedia de doze
pollegadas. Em seguida o camponez juntou as quatro pontas por
cima da minha cabeça, deu nó, ergueu-se e levantou-me com tanta
facilidade, como se elle fôra um menino travesso e eu qualquer
bichinho que levava para casa para divertimento de seus companheiros.
Chegado em sua habitação, chamou a mulher, mostrou-me e
riu-se muito, quando esta de mim desviou os olhos com signaes
í *1' í í
>) ^

— 102 —

evidentes
de susto e
nojo. Mas
esta repug­
nância du­
rou pouco.
Depois de
i examinar-
il
•„ -VV me mais
i '. 'i
ífV- minuciosa­
mente; de­
pois de ob­
servar os
meus movi­
cias, de seu marido, des- tT
\v. mentos sub­
appareceu a aversao, e cedo \ missos e dó­
: ' y.
ri mostrou a caseira os mais ternos ceis a todas
- u f ■■

cuidados por minha pessoinha. as exigen-


Tendo chegado a hora do jantar, todos os habitantes da casa
se reunirão para comer.
Uma criada trouxe o alimento que consistia em um unico
manjar, servido, porém , em um prato de um diâmetro de vinte e
quatro pés.
A servente collocou este prato na mesa e os moradores da casa
sentarão-se nos seus lugares,
Compunhão-se estes moradores, além do lavrador e de sua
mulher, da avó e de tres filhos.
f
A mim, o dono da casa agarrou-me e collocou-me na toalha,
ao lado delle. Não gostei muito desta gym nastica; resignei-me,
entretanto, evitando com muito cuidado de acercar-me demasiada­
mente da beira da mesa. Se cahisse, sem duvida alguma me
despedaçaria, porque achava-me pelo menos a trinta pés de altura
do chão.

A
103 —

A dona da casa cuidou do meu jantar, picando um pedaço de


carne em fragmentos tiio pequenos quanto o permittia o tamanho
de sua faca enorme, c esmigalhou em cima um pouco de pão.
Gostei hem destes preparativos, e ainda mais do ar de bondade
com que o prato me foi oíferecido, e por isto não me iiz de rogado.
Puxando, sem demora, do meu talher, manejei a faca e o garfo
com tão boa vontade, que todos patenteárão o prazer que sentião
por vêr-me com tão bom appetite.
Cuidava a dona da casa que quem tão bem comia, de certo
não recusaria um bom trago, e mandou que a criada trouxesse o
calix menor que achasse na casa. Encheu-o até á beira com um
liquido branco transparente, oífereceu-m’ o com sua própria mão, e
convidou-me a esvasia-lo. Continha pelo menos quatro litros, e
pesava tanto que mal o podia alçar com as duas mãos.
Antes de beber inclinei-m e diante da dona da casa, disse
algumas palavras lisongeiras, e levei o calix á bocea, para tomar
um bom trago á saude da minha hospede affavel.
Os meus modos divertirão grandemente a todos e pi-ovocárão
risadas estrondosas. Mas eu não me dei por achado, e bebi quasi
a metade do liquido, que achei de um paladar agradavel, semelhante
ao dos vinhos de frutas, preparados pelos camponezes do meu paiz.
Depois que descansei a grande custo o calix na mesa, chamou-
me 0 lavrador para perto do seu prato.
Levantei-me immediatamente e encaminhei-me para seu lado;
mas, tropecei tão desageitadamente em uma codea de pão, que me
estendi na mesa em uma queda desastrosa.
Os meus hospedes soltarão um gesto de susto; mas eu, para
tranquilliza-los, pulei para cima, sacudindo o meu chapéu no ar, e
gritei tres vezes «hurrah»!
Em seguida continuei o meu caminho; já me restavao so tres
passos a dai', quando o filho mais moço do lavrador, menino travesso
de uns dez annos, por divertimento com dons dedos pegou-me nas
pernas e levou-me tão alto, que de susto estreraeci em todo o meu corpo.
lií-
''?í!
If

— 104 —

Mas esta situação afflictiva não se prolongou. O velho saltou,


arrancou-me da mão do menino atrevido, o sentou-me na mesa, em
seguida de que deu tão tremenda bofetada no rapaz, que receiei
vêr voar-lhe a cabeça pelos ares. Comtudo o joven gigante não
pareceu dar muito peso a este castigo, e só fez má cara, quando o
pai lhe ordenou que sahisse da mesa. Levantou-se, deitando-me
um olhar furioso. Mas eu, lendo neste olhar a certeza de que
muito teria de soffrer da malquerença do menino malcriado se não
tratasse de aplacar-lhe a ira, acerquei-me depressa do pai; com
gestos eloquentes, pedi-lh e que perdoasse ao fUhinho, e tive o
prazer de vêr attendida a minha supplica.
O velho chamou o moço, ao qual beijei respeitosamente a mão.
Esta acção o acalmou, e elle passou-me a mão gigantesca pela
cabeça e pelas faces.
Entretanto ainda não tinha chegado ao íim dos sustos, que
havia de ter durante a refeição.
Mal tinha virado as costas a dona da casa, quando ouvi atraz fi
de mim um ron-ron como o produzirião uma duzia de teares. Virei-
me e vi um monstro cujo aspecto horrendo me aterrou. Teria o
triplo de tamanho de um boi regular; tinha olhos de fogo e garras
de meio covado de comprimento. Fitava-me com uns olhos terriveis
e todos os seus ademanes revela vão tal furia, que pensei que sem
demora cahiria sobre mim, me ferraria as garras e me enguliria
:•< íL,
■ com couro e cabello. Perturbei-me de tal modo que empalledeci e
í. \ (• }■!r •
fi - me senti perto de desfallecer.
■U H IT
> i> ’ L i A dona da casa percebeu porfim o meu susto e convidou-me
com um sorriso a acercar-me, emquanto ella segurava o tal monstro
com ambas as mãos.
. \h [ \ Armei-me de toda a coragem de que podia dispor, e caminhando

; I •■ lentamente para a frente, conheci que o monstro em questão era


■ I)
um gato domestico, que, sentado no coixO de sua dona, delia recebia
0 seu alimento.
Quanto mais me acercava, tanto m: medo o gato mostrava

■Cv.
^ 105 —

ter de mim, e tanto mais me crescia o animo, a ponto de passar


meia duzia de vezes diante delle a passos demorados. Mais tarde
nào fez mais caso de mim, e eu evitei prudentemente cliamar-lhe
a attençào.
Ainda nào se tinha dissipado a agitaçào causada pelo gato,
quando se abriu a porta e entrárào uivando tres càes: erào dous
dogues e um galgo. O ladrar assemelhava-se á voz do canhào, e
erào do tamanho de quatro elephantes, pelo menos, postos uns em
cima dos outros. Apezar disto tive-lhes menos medo do que ao
gato, pois sabia que o cào nunca é tào feroz e sedento de sangue,
como 0 gato astucioso, falso e cruel. Nem elles se importárào
commigo, e sahirão depois de terem recebido cada um do seu dono
um enorme pedaço de carne.
Tocava a refeiçào ao seu fim, e pensei que se findariào também
os meus tormentos, quando entrou uma criada com uma criança de
um anuo nos braços. A })equena, assim (jue me viu, arregalou os
olhos, estendeu as màos, e requereu-me como brinquedo, com uma
gritaria atroz.
Infelizmente a
mài da pequena
berradora era
condescen­
dente como to­
das as m àis;
assim ella me
agarrou e collo-
cou-me bem na
frente da filha.
Immediata- ■
mente esta apo­
derou -se de
mim, levantou-
me como se _
— 106 —

fosse uma pluma, e arreganhou a bocca para introduzir-lhe a minha


caheça, como especie nova de chupeta. Este procedimento, porém
excedeu a minha paciência; para escapar á sorte horrivel, que via
imminente, puz-me a gritar ífio descompassadamente, que de susto
a pecurrucha me deixou cahir. Sem duvida alguma me teria des­
pedaçado no chão, se a mãi não me tivesse apai’ado felizmente
no seu avental. Ella sentou-me na mesa e tratou de acalmar a
pequena, que de novo gritava por m im , dando-lhe um chocalho,
preso na cintura da menina por um caho da grossura das nossas
amarras. O chocalho consistia em um cylindro de páo oco, do
comprimento de oito pés, cheio de seixos, que pesavão mais de
duas lihras cada um, e produzião um ruido harharo, quando se
sacudia o brinquedo.
I >'
Acabou-se, porhm, a refeição, como todas as cousas desta vida
se acabão; o lavrador voltou ao campo para inspeccionar os seus
trabalhadores, deixando-me entregue ao cuidado da mulher.
■: I Apenas vi-me só com a minha bôa hospede, dei-lhe a entender
que estava muito cansado e com somno, e desejava deitar-me.
Ella me entendeu; levantando-me nos braços, como um boneco,
deitou-me em uma cama e cobriu-me com o lençol mais delgado
I I.) i que tinha, qu e, entretanto, muito me pesava e me parecia mais
I» t
grosso ([ue a mais robusta lona, com que se fabricão as nossas
velas maiores. Comtudo bem depressa, ferrei em um somno pro­
fundo, cansado e abatido como estava.
Sonhei com a patria, com minha querida mulher, com meus
(■ ■
íilhos amados, e despertei só ao cabo de duas horas. Triste e
melancólico incorporei-me, olhei em torno de mim, e vi-me era ura
aposento de trezentos pés de comprimento por duzentos de largura,

ili: pouco mais ou menos.


A cama em que tinha dormido tinha vinte covados de largura
íjlliij e vinte e quatro pés de altura, de modo que não a podia deixar
i'U i*
sem magoar-me. Era parte alguma descobri quem pudesse valer-me,
ÍhII: e assim não tive outro remedio senão aguardar que me viessem buscar.

i f;?-« !*-
■H "

— 107 —

Einquanto permanecia alii, pensando ein ineu fado singular^


ouvi de repente um forte ruido, uin silvar estrondoso, um roer
espantoso, vendo ao mesmo tempo mover-se o cortinado. Endireitei-
me assustado e vi no meu leito de brinquedo dous ratos enormes e
pançudos; puxei immediatamente do meu refle para enxotar os
bichos immundos. Mas não era tarefa tão facil como se imagina,
porcjue os ratões erão do tamanho de bulldogs, e oppunhão uma
resistência que me espantou.
Ambos me atacarão, arreganhando os dentes aliados, e com tal
impetuosidade, que um já me segurava pela gola antes que pudesse
dar um golpe com a minha arma. Mas não titubeei; finquei-lhe o
refle de tal modo na pança, que a ponta sahiu pelo espinhaço e o
bicho immundo cahiu silvando. O outro rato, vendo a triste sorte
do companheiro, fugiu, mas não sem levar uma bôa ferida nas
costas, que devia tirar-lhe a vontade de voltar. Vendo, em seguida,
que o vencido ainda bulia, dei-lhe mais très ou quatro golpes, que
0 ultimárão.
Folguei muito com a minha façanha, passeando ufano pela
minha cama, e medindo a victima da cabeça ao extremo da cauda.
Esta ultima tinha um comprimento do seis pés e duas pollegadas;
imaginem agora o resto do animal. Em breve, porem, causou-me
nojo a presença do cadaver; mas como não tivesse meio de
remove-lo, só me restava deixa-lo estendido no seu sangue.
Pouco depois a dona da casa entrou no quarto e assustou-se
ao vêr-me manchado de sangue, passeando de um lado para outro,
com a espada desembainhada. Tranquillizei-a, apontando para o
rato morto e explicando-lhe por pantomima o meu combate victorioso.
Depois disto limpei a minha espada, metti-a na bainha, e entre-
guei-mc aos braços da minha bôa hospede para sahir da cama.
n


I i
CAPITULO III.

Tinha 0 meu hospede uma filhinha de nove annos, que me


parecia ser uma moça muito bonita.
I ii-
K escusado dizer que ainda brincava com as bonecas; mas,
nesses brinquedos mesmos, observava uma ordem, um asseio, que
dava gosto vê-la lidar com os trapinhos.
Além de brincar, sabia ainda coser, bordar, lavar e engommar,
todos os trabalhos da mulher, emfim, destinados a tornar confortável
a vida domestica.
t Uesde o dia da minha chegada, mostrou-me profunda sym-
pathia, inventando o que podia jtara tornar-me a existência feliz e
segura.
Cedeu-me, por exemplo, o bei’ço de sua boneca, para servir-me
de cama, e para livrar-me de outras visitas dos ratões nojentos,
collocou o meu leito improvisado em uma gaveta, e esta em cima
de uma taboa, equilibrada em cabos que desciao do tecto; e, se
bem que a principio esta cama me parecesse dura, pouco a pouco
foi melhorando, á medida que eu ia aprendendo com a minha joven
mestra fragmentos da lingua dos meus gigantes.
A minha pequena ama secca fez-me camisas do panno de linho
mais fino que pôde encontrar, o que não impediu que a mim me
\lí parecesse grosso como panno de saccos da nossa terra; ella me
lavava, vestia, despia, considerava-me, emfim, como a sua boneca viva.

ifil
— 109 —

Aguentava eu tudo; uma vez^ por nSo me ter servido de nada


a resistência; por outi’O lado, porém, por tornar-me a mocinha a
vida alegre com seus ternos cuidados.
Além disto ella se esforçava para ensinar-me o idioma da terra,
e, graças á paciência delia, em pouco tempo já sabia trocar lingua
sofFi’ivelmente.
A mim me chrismou ella por Gildrig, o que significa manequim
e seus pais e irmãos approvárão a designação. Eu, poi'ém, a
chamava Glumdalklitch, ou mãizinha, por causa do carinho com
que me tratava.
Não media a minha Glumdalklitch mais de quarenta pés em
altura, sendo muito baixa para sua idade. Tanto mais eminente,
porém, era a bondade do seu coração, a quem fiquei devendo a
conservação da minha existência naquelle paiz tão barbaro.
Nunca se separou de mim; emquanto estive em Brobdignak,
que assim se chamava a terra dos gigantes, mostrou-se-me sempre
fiel, dedicada e cuidadosa.
Espalhara-se em pouco tempo por todo o paiz a noticia que o
lavrador havia apanhado um pequeno animal, como nunca dantes
havia sido visto em Brobdignak. Que era mais pequeno que um
SplacknuJi, um dos quadrúpedes menores da terra dos gigantes,
conformado, entretanto, como um homem; que caminhava em dous
pés, falava, e sabia mesmo expressar-se já no idioma nacional; que
era muito mimoso, delicado, obediente e confiado.
Não devia causar, pois, ^admiração que milhares de pessoas
acudissem á habitação do meu hospede, para vêr-nie e admirar-me,
como se fosse um bicho maravilhoso.
Entre outros veiu também um rendeiro, vizinho nosso, homem
velho, casmurro e esquisitão, ao qual fui apresentado, fazendo depois
diante delle os exercícios do costume em cima da mesa. Passeiava
de um lado para o outro, puxava da minha espada, adoptava posi-
ç(5es de lutador, e, com grandes inclinações, recitava phrases lison-
geiras no idioma da minha Glumdalklitch.
110 —

0 vellio manlioso rulo podia


fartar-se de admirar-me; por fim
puxou de umas canga-
Ihas com vidros circu-
lares, que fin-
COU na penca
enorme para
contemplar-
me mais a seu
gosto.
Mergulhado
no aspecto in­
sólito, curvava
a cabeça im-
mensa até á
mesa e fitou-
me com os
seus olhos ar­
regalados de
um modo tào
caricato, que
v i-m e obri­
gado a soltar uma gargalhada
homerica.
'V . O velho fez uma careta,
; e hem percebi que estava
zangado por causa da minha
hilaridade intempestiva. Comtudo nào podia sustar as minhas
risadas, porque era cousa de vêr-se como me fitava com os seus
olhos escancarados, que brilhavíio como duas luas cheias através
dos vidros redondos dos seus oculos.
it' Sem muito tardar, tive de arrepender-me da minha alegria
ruidosa.

(
111 —

0 velho que, além de sordido e avarento, era muito rancoroso,


chamou o meu hospede aparte e cochichou largamente com elle.
Pelos gestos dos dous, pelos seus olhares, que a cada momento re-
cahião em mim, por algumas palavras, emhm, que apanhei rapida­
mente, comprehendi que estavão tratando de mim, e tive muito medo.
E não foi sem motivo que me assustei, porque o velho horrendo
aconselhára a meu hospede que na primeira feira me mostrasse por
dinheiro aos habitantes de uma villa vizinha, como me contou na
manhã seguinte a minha pequena Glumdalklitsch entre lagrimas e
soluços.
— Bem vejo, — me dizia ella, — bem vejo, meu pequeno
Gildrig, que comtigo me ha-de acontecer como me aconteceu com
o meu cordeirinho. Emquanto era pequeno e engraçado, tive licença
de brincar com elle; mas quando cresceu e engordou, m’ o tirai’ão
e 0 matárão apezar das minhas lagrimas . . . Temo muito, meu
pequeno Gildrig, que te preparem um máu passo. Se o populacho
bruto principiar a apalpar-te, quebrar-te-ha braços e ])ernas, es-
maga-te todas as tuas pobi^es costellinhas.
Assim se lamentava a minha Glumdalklitsch, a minha terna
mãizinha, infundindo-me um medo atroz. lí
Entretanto, menos horror me causava a perspectiva das brutali­
dades dos gigantes, do que a ideia ignominiosa de ser exposto
publicamente, como um animal phenomenal.
Porfim, porém, acudiu-me a lembrança consoladora de que
estava em um paiz estrangeiro como prisioneiro debil e des­
amparado, de modo que a ignominia não me podia servir de U
mancha, se algum dia voltasse para a minha patria. O rei da
Inglaterra, ou qualquer outro soberano europeu, em meu lugar
teria corrido a mesma sorte, reflexão que de algum modo me
tranquilllzou.
Poucos dias depois da visita do rendeiro, foi posto em execução
o que havia aconselhado.
4
— 112 —

Collocámo-me em uma boceta, na qual haviao praticado uma


abertura lateral, para que pudesse entrar e sahir commodamente, e
em cima vários buracos para arejar o interior, no qual havia um
colchãozinlio para o meu descanso.
Montou a cavallo o meu hospede, deu a garupa á sua filha, que
me levava na caixa, e dirigiu-se a trote largo á próxima aldeia, que

/I
f

'K

> '

■11 distava cousa de sete milhas euro- \'


peas, onde se realizava justamente
uma feira muito concorrida.
Seria impossivel dar uma ideia exacta dos incommodos dessa
viagem e dos soffrimentos que me causou.
Posto que todo o trajecto só durasse uma meia hora, pois que
o cavallo em cada passo vencia pelo menos cincoenta palmos, e era
vivo e de bôa vontade, troteava de tal m odo, que eu ia sacudido
na minha boceta como uma pelota de gomma, e ainda hoje não sei
como escapei com algumas escoriações e manchas negras. Parecia-se
113

o movimento com o bater alternado da proa e da popa de um


navio, açoutado por furioso vendaval, ora trepado em onda verti­
ginosa, ora atirado ao abysmo horrendo, com a unica differença
que na minha situação os golpes se succedião mais a miudo.
Dei-me por feliz quando se terminou a viagem ominosa.
Apeiou-se o meu patrão na estalagem mais frequentada da
aldeia, combinou-se com o estalajadeiro, tomou algumas medidas
indispensáveis e mandou chamar um GruUrticl, ou pregoeiro publico,
a quem encarregou de apregoar a minha chegada em todas as es­
quinas. Devia proclamar que na Águia Verde exhibia-se um animal
maravilhoso, dantes nunca visto, Que era mais pequeno que um
Splacknuck-, que tinha, porém, figura de gente, e executava as
sortes mais graciosas.
Emquanto o pregoeiro dava conta do recado, o meu patrão foi
commigo e com sua filha ao aposento maior da estalagem, que
media bem trezentos pés em quadro, collocou-me na mesa e re-
commendou á filha que cuidasse de mim e me instruisse em voz
baixa do que me cumpria fazer.
Sem demora acudirão os homens gigantes, e o atropello foi
tamanho, que meu patrão teve de reduzir a trinta individuos cada
assistência.
Diante deste publico incessantemente renovado, exhibia as
minhas artes, marchando com muita gravidade, respondendo ás
perguntas que minha mãizinha me dirigia, com a exactidão que
me permittia o limitado de meu conhecimento da lingua dos gi­
gantes 5 dirigia-me frequentemente aos assistentes com reverencias
e rapa-pés, dando a boa vinda ao respeitável publico em phrases
bem torneadas, ensinadas por minha Glumdalklitsch. Em seguida

bebia varias vezes um dedal de vinho á saude da reunião, puxando
do espadim, que brandia no ar; armava-me com uma palha trans­
formada em lança e fazia com ella a manobra em redor da mesa,
apresentava armas e tomava posições acadêmicas como um bom
»1.
Viagens do Gulliver. 8
;t
— 114 —
: I
mestre de esgrima, aproveitando a reminiscência do que havia
aprendido na minha mocidade.
^; ;i M
• 1 z
Uma trovoada de applausos cohria os meus exercicios, que tive
de repetir doze vezes naquelle dia.
Quantos me tinhao visto contavão la fora aos outros as maiores
maravilhas, incitando-lhes a curiosidade de tal m odo, que estes
I :
ameaçavào despedaçar a porta, se nao me mostrassem a elles.
I
De resto tudo correu regularmente. Meu patrão não permittia
a ninguém que me apal})asse, e minha maizinha Glumdalklitsch
cuidava em que ninguém se acercasse a extensão do braço da mesa
em que eu fazia os meus exercicios.
Apezar de tudo isto, quasi fui victima de um desastre. Um
menino de escola, muito intromettido, e zangado por não poder
acercar-se de mim, pegou em uma avela e atirou-m a, e de certo
me teria alcançado na cabeça, se não me tivesse prostrado apressada­
mente no chão. Imagine-se o que seria de mim, se me acertasse
aquelle projectil, que era do tamanho de uma boa abobora menina.
Fiquei naturalmente muito assustado pela acção indigna desse rapaz,
mas tive a satisfacção de vê-lo expulsado do salão com bofetadas e
])ontapés.
Durante tres dias o meu patrão continuou as representações,
i* t
que fôrão visitadas com o mesmo ardor, e lhe i’endêrão bom
dinheiro.
Repleto de thesouros, voltou, emfim, para a casa, c eu tive que
y fazer de novo a terrivel viagem na boceta.
'f [ '/
i ’!
^1 > Cheguei exhausto e adoeci seriamente de tantas massadas, de
^■ !i 1
modo que tive de guardar a cama durante cinco dias. Cumpre
í
i í i ! L
dize-lo; fui alvo dos mais ternos cuidados; Glumdalklitsch não se
1 i i; ■i arredou da minha cama, e até o patrão, que agora já me conhecia
o valor, esforçou-se para dar-me um trato excellente. Mas, apenas
\ curado, recomeçarão os soífrimentos para mim.
f ''
A minha fama tinha corrido terra, e por todos os lados acudião
1 s h í ;:
w os curiosos para admirar-me, em troco de boas espórtulas. Com a
[ M ■í
1 í ■ ■■1'
HL nv 1
115 —

curiosidade de verem-me cresceu a ambição de meu patrão, que


chegou a exigir entradas elevadas, quer fossem poucos, quer muitos
os espectadores. Assim com o andar do tempo, encheu admiravel­
mente a sua hurra.
Só ao cabo de muitas semanas principiou o enthusiasmo a
arrefecer um pouco 5 eu trabalhava todos os dias, excepto ás quartas
feiras, dia feriado em Brohdignak, e de tantas exhibições enfraqueci
e emmagreci visivelmente, de modo que senti grande alegria, quando
vi diminuir a affluencia dos curiosos.
Quem, porém, não se podia conformar com esta ordem de
cousas, era 0 meu patrão, cuja cuhiça crescia de dia em dia.
Resolveu fazer commigo uma extensa excursão artistica, para
apresentar-me nas cidades principaes do império.
Procedeu, pois, a todos os arranjos prévios para uma viagem
demorada; poz em ordem a sua casa, despediu-se da mulher e filhos,
e a 17 de Agosto de 1703 partimos para a capital, que dista de
sua residência mil milhas, mais ou menos.
Como de costume Glumdalklitsch ia na garupa do lavrador-
empresario-phenomenal, e eu, na minha boceta, a tira-collo da
minha mãizinha.
Pai’a tornar-me su]3portavel 0 longo trajecto, Glumdalklitsch
havia acolchoado 0 interior da minha «gaiola», collocando nella ao
mesmo tempo a caminha da sua boneca, e alguns cestos com a
minha roupa branca. Graças aos cuidados da minha protectora,
encontrei verdadeiro conforto em logar do incommodo anterior.
O nosso itinerário corria de cidade em cidade, de aldeia em
aldeia, de castello em castello, fugindo 0 meu empresário da linha
recta para aproveitar em zig-zags extraordinários todas as locali­
dades que pudessem dar-lhe bôa colheita de entradas. Raras vezes
faziamos mais de cincoenta milhas por dia, mas dia por dia
enchia-se sempre mais a bolsa insaciável do meu patrão. A minha
mãizinha devia as jornadas pequenas, porque ella, para poupar-me
— 116 —

a mim, tinha declarado ao pai que não podia vencer a cavallo


I !■
maior trecho do que o indicado. Em geral, Glumdalklitsch
mostrou-se-me cheia de solicitude ^ ás vezes pelo caminho tirava-me
da minha boceta, e atava-me com uma fita para evitar alguma
I I quéda, facultando - me assim admirar a belleza dos sitios que
I :Í I atravessavamos, e respirar o ar puro e vivificante. Taes horas
erão para mim verdadeiras delicias, e augmentavão-me gi’ande-
mente os conhecimentos do singular paiz de Brobdignak. Algumas
vezes atravessavamos rios maiores do que os mais caudalosos do
resto do m undo, e nunca encontrámos regato algum que fosse
menos estreito e menos fundo do que o Uruguay ou Tocantins.
Gastámos dez semanas para chegar á capital, representando
eu em dezoito cidades grandes e innumeros logares menos im­
portantes.
A 26 de Outubro entrámos finalmente em Lorbrulgrud, nome
da capital, que significa «Orgulho do Universo.»
Apeámo-nos no primeiro hotel, situado perto do palacio d’ el-rei,

hi na rua principal da residência. Descansámos alguns dias, pre-


l^arando.-nos para fainas novas.
Meu patrão-empresario mandou afixar em todas as esquinas
grandes cartazes multicores, que davão uma descripção minuciosa
\
da minha pessoa e das minhas prendas.
Alugou a maior sala que pôde descobrir na capital, mandou
fabricar uma mesa de setenta pés de comprimento e largura, e
marcou o dia da minha estréa.
Chegou este dia, e com elle uma affluencia verdadeiramente
espantosa.
De manhã até á noite tive de estafar-me e fui coberto literal­
mente de applauses.
Todo 0 mundo acudiu para vêr-me, e o meu patrão, para
regular um pouco a affluencia, teve de duplicar e triplicar o preço
das entradas.
— 117 —

Não é de admirar, aliás, este enthusiasmo do publico; nesse


tempo já conhecia eu soíFrivelmente o idioma do paiz, sabia o
alphabeto e estava no caso de exhibir amostras de verdadeira
sabedoria. A minha Glumdalklitsch me havia ensinado com muita
paciência, e, como eu sympathizava muito com a mestra, tinha
aprendido com grande aproveitamento, de modo que podia passar
por maravilha no paiz dos gigantes.
>>

\;

CAPITULO IV.

M aior proveito davão, entretanto, as representações ao meu


patrão de que a mim.
\é Emmagreci a olhos vistos e adoeci com a lida incessante, em-
quanto que a bolsa do patrão engordava espantosamente.
Como todos os empresários de phenomenos, o meu tratou de
tildar rapidamente o maior proveito de mim, e vendo-me por íim
reduzido ás proporções de um esqueleto, calculava fazer ainda um
bom negocio, vendendo-me ao primeiro amador que apparecesse.
Cedo havia de vêr colmada a sua cobiça, mas, felizmente, em pro­
veito meu.
O caso é que uma manhã appareceu um enviado da rainha,
transmittindo ao meu patrão a ordem de apresentar-me na corte,
para que exhibisse diante de Sua Magestade as minhas habilidades.
Por algumas das suas damas de honor, que havião assistido ás
minhas representações publicas, a rainha tinha tido noticias do meu
talento e desejava conhecer-me pessoalmente.
Chegados no palacio real, o meu patrão collocou-me em uma


mesa, e comecei na presença da rainha os meus exercicios, como
sempre dirigidos por minha mãizinha.
E escusado dizer que esforcei-me extraordinariamente para
agradar á soberana de um paiz tão poderoso. Excedi-me a mim
mesmo, e fui coberto de applausos.
119 —

Depois de esgotar o meu repertório, ajoelhei-me diante de Sua


Magestade e pedi-lhe que me permittisse beijar-lhe o pé.
A rainha, porém, mostrou-se tão graciosa, que em logar do
pé, apresentou-me um dedo da mão.
Estreitei este dedo entre os meus dous braços, e depositei com
muita elegancia um beijo na ponta delle.
Pareceu a rainha gostar deste signal de veneração; dirigiu-me
com muita affabilidade algumas perguntas acerca da minha patria
e das minhas viagens, e eu, sabendo que os personagens altos não
são amigos do [)alavrorio, respondi em poucas palavras o melhor
que pude.
Poríim perguntou-me a rainha se não tinha vontade de per­
manecer na sua corte.
Encantou-me esta pergunta, porque fazia-me entrever a possi­
bilidade de escapar ao meu empresario-algoz.
Inclinei-me tanto que o meu cabello tocou á mesa, e disse:
— De bom grado dedicaria a minha vida toda ao serviço de
Vossa Magestade; mas sou infelizmente escravo do meu patrão e
privado completamente da minha vontade.
Dirigiu-se então a rainha ao lavrador, e perguntou-lhe senão
estava disposto a ceder-me por uma quantia sufíiciente?
O meu empresário, morto jtá })or desfazer-se de mim, antes
que a morte me levasse, tingiu entretanto muita relutância em
separar-se de mim, pedindo por íim mil moedas de ouro por meu
resgate.
Sem demora foi-lhe entregue esta quantia pelo thesoureiro da
rainha, e eu fiquei livre do meu explorador.
Se não fosse tão contrario ao respeito devido a presença da
rainha, teria saltado de alegria, por vêxMne libertado do jugo tão
ignominioso para mim.
Limitei-me, pois, a agradecimentos enthusiasticos; acudindo-me,
porém, a ideia dolorosa de que talvez tivesse de vêr partir a minha
mãizinha, tornei a dobi’ar o joelho, e suppliquei encarecidamente
— 120
que Sua Magestade se dignasse admittir igualmente em sua côrte
a minlia boa Glumdalklitsch, para que esta continuasse a ser a
minha protectora e mestra, como até aquelle dia.
A l’ainha, sem hesitação, annuio á minha supplica, e perguntou
ao lavrador se queria coníiar-lhe a filha.
f ,
O meu ex-patrão, ambicioso como era, não podia deixar de
: i
folgar em vêr sua filha estabelecida na côrte ; e como Glumdal-
klitsch fazia gosto em ficar commigo, foi assumpto concluido. Des­
pediu-se o lavrador de mim, dando-me os parabéns pelo destino
feliz; eu, porém, x’espondi-lhe apenas com uma inclinação de cabeça
-H :| fria e séria.
A rainha, estranhando a minha resei’va, quiz conhecer-lhe a
causa.
Respondi sem titubear, que não tinha motivos para mostrar-me
muito grato ao meu ex-patrão, porque nunca me tratára com franca
bondade.
Se não me matara, quando os seus pedes me levárão á sua
presença; se me tinha dado alimento e abrigo, muito pago tinha
f ‘ ficado pelo dinheiro ganho na exploração inconsiderada da minha
pessoa, e pela dadiva generosa de Sua Magestade, e que nunca
l [ s 'i
Í,; i l ‘ ;ll poderia esquecer a crueldade, com que me havia obrigado a exhaurir
as minhas forças, só para encher-lhe a bolsa. Que, finalmente, não
I H
^' t:i'II
a elle, senão á bondade da Providencia, devia a fortuna de ter
alcançado a protecção de uma i-ainha tão raagnifica e poderosa,
oimamento da natureza, joia do mundo, delicia dos seus súbditos e
ponto culminante do universo. Acalentado pelo sol de sua graça,
em breve recuperaria todas as minhas forças, renascendo mais
depressa, como uma flor que, acalentada pelo calor do dia, ergue a
cabeça sob a influencia bemfazeja do orvalho do céu.
A rainha ouviu com especial agrado o meu discurso feito a
grande custo, e admirou-se grandemente de que, em uma creatura
tão pequena como eu lhe devia parecer, residisse tanto critério e
talento.
— 121 ' —

Agarrou-rne com os seus régios dedos, sentou-me na palma da


imlo e nesta posiçrio levou-me ao gabinete de seu esposo, que
acabava de chegar de uma reunião ])lena do seu conselho.
Estranhou Sua Magestade por vêr a rainha no seu aposento
em hora tão fóra do costumei fechou a cara, já por si bastante
séria, quando deu commigo, que tremia na palma da mao da
rainha.
— Não me explico, — disse o i'ei, — não me explico, que
Vossa Magestade encontre graça em um Splacknuck. Não lhe
conhecia este gosto.
A rainha não fez muito easo dos olhares sérios de seumai’ido*,
collocou-me em eima de uma seeretária, onde prineipiei a caminhar
de um lado para o outro.
Quando el-rei viu esta manobra, pôz-se a olhar-me mais detida­
mente, prestando ao mesmo tempo um ouvido attento ás explicações
da rainha. Mandou-me minha graciosa soberana que protestasse a
minha veneração á ‘ Sua Magestade, seu esposo, e que lhe contasse
hnalmente as minhas aventuras. Assim o íiz, e, estando perto dalli
a minha Glumdalklitsch, foi chamada para conlirmar a minha nar­
ração á Sua Magestade El-rei, que ainda duvidava.
O rei, homem de aspecto e ademanes magestosos, a principio,
quando nie viu caminhar na secretária, julgára que eu era algum
automate, confeccionado com muita arte. Mas, quando me ouviu
falar e raciocinar, a sua admiração chegou a seu auge.
Apezar de tudo, porém, opinou que a minha narração era um
tecido de mentiras i que Glumdalklitsch e seu pai me tinhão ensinado
algumas palavras, e bem assim o meu conto, para poder vender-me
a preço bem alto. Duvidava igualmente da descripção do meu
naufragio, dizendo que eu era algum aborto de monstruosidade do
seu proprio paiz.
Para experimentar as minhas faculdades mentaes dirigiu-me
algumas perguntas, pensando que bem depressa appareceria a
minha ignorância. Enganou-se, porém, redondamente. Pespondi
— 122 —

a tudo com a maior minuciosidade, deixando-o attonito das minhas


repostas.
Mas nào se deu por vencido Sua Magestade. Mandou chamar
os tres mais topetudos dos sábios do seu paiz, e encarregou-os de
examinar-me a fundo.
Olharão-me, apalparão-me e interrogarão-me em detido exame.
1 ,
Respondi-lhes o mesmo que já tinha dito ao rei, e elles derão por
hm as suas opiniões, bem diversas, em verdade, mas demasiado ex­
tensas para referi-las aqui. Só em um ponto concordarão: que
tinha nascido sem força vital, visto que era incapaz de adquirir o
i|-í M
'Jíi f■
M
í t meu sustento por falta de habilidade e presteza; como havia de r,A
ti^epar nas arvores ou rotear a terra? In sunmia: que era um
Relplum SlcalJcat, isto é, uma aberração da natureza, que apparece
I
uma vez em cada millenario.
Causou-me tedio esta declaração dos pretensos sábios; voltei-me ií
para o rei e assegurei-lhe que nem de longe era aquillo que seus
sábios toleirões dizião. Não era aberração da natureza, mas filho
de um paiz longinquo, habitado por milhões de seres como eu, e
em que tudo, arvores, casas, animaes, etc. etc., guardavão proporção
com a minha altura, de modo que alli tinha sido muito capaz de
’ I ' defender-me e de proporeionar-me o meu sustento. Q ue, de resto,
em minha patria tudo estava arranjado como nos estados de Sua
Magestade, unicamente em ponto menor, assim como eu também
era mais pequeno comparado com os habitantes de Brobdignak.
Os sábios torcêrão o nariz bastante vennelho, e sacudixno a
cabeça, observando maliciosamente «que meu ex-patrão me tinha
ensinado muito bem».
O rei, porém, que já ia comprehendendo o riscado dos sábios,
mandou-os embora, e ordenou que comparecesse o meu ex-patino,
que felizmente ainda estava na capital.
I f A
El-rei subinetteu-o a um interrogatório m inucioso; em seguida
' •\ !■U sujeitou Glumdalklitsch a outro exame, e, por fim, mandou que lhe
repetisse a minha narração; cotejando os tres interrogatórios, e como
— 123 —

não deixava de ser bastante perspicaz, chegou á conclusão de que


eu tinlia dito a verdade.
Decidiu aquelle momento o meu destino.
El-rei recommendou-me muito a solicitude de sua esposa, con­
firmou a posição de Glumdalklitsch junto á minha pessoa, e mandou
dar-nos aposentos adequados no seu palacio.
Nomeou-se uma aia para Glumdalklitsch, que devia ensinar-lhe
os costumes da corte; uma camarista encaxTcgada da sua toilette,
e vários outros empregados para o serviço.
Confiou-lhe, finalmente, el-rei, o cuidado de guardar-me, e de
velar por meu bem-estar, o que aliás fazia de tão bom grado sem
ordem especial.
Regulamentada assim a minha vida, a rainha mandou chamar
0 marceneiro do paço, e ordenou-lhe que construísse uma caixinlia
destinada a servir-me de dormitorio.
Sendo o homem bem habil, e obedecendo aliás ás minhas in­
dicações, conseguiu em tres semanas um quarto, que correspondia
pei’feitamente ás exigências do caso.
Construído de madeira, tinha este quarto uma base de dezeseis
pés em quadro, com uma altura de doze.
O tecto, composto de uma unica taboa, podia alçar e baixar-se
á vontade, para deixar passar a minha cama, preparada com muita
habilidade pelo estufador do paço.
Glumdalklitsch tirava todos os dias a cama, collocava-a nos
raios do sol e sacudia os travesseiros; de noite reintegrava o meu
leito no meu dormitorio, mostrando-me assim toda a solicitude de
uma bôa mãizinha.
Todas as paredes interiores, e bem assim o tecto e o soalho,
estavão acolchoados, para que eu não corresse perigo algum ao
sahir com alguém a cavallo ou em carruagem.
A mobilia do meu quarto foi confeccionada pelo torneiro do
paço, homem habil e entendido na materia. De uma substancia
— 124 —

parecida com o mariim, fez seis cadeiras, duas mesas, uma commoda,
um armario e até uma secretária, tudo muito galante e mimoso.
Faltava á minha morada só uma fechadura, para garantir-me
contra a entrada dos ratos e cam ondongos; depois de muitos ensaios
infructiferos, o serralheiro do paço construiu esta fechadura, cuja
(!
chave eu guardava na algibeira.
Lembrando ainda que a minha habitação estava construida tão
bem e tão exactamente, que podia aguentar uma chuva de muitas
horas, se casualmente nos sorprendesse em algum passeio, e que
além disto tinha porta e janellas que fechavão hermeticamente, —
comprehender-se-ha que nada deixava a desejar em materia de
conforto e elegancia.
Com 0 tempo a minha roupa se tinha estragado muito.
Glumdalklitsch deu parte á rainha, e sem demora o alfaiate
do paço tomou-rae medida para trajos novos, que tiverão de ser
confeccionados com a seda mais leve que se pôde encontrar no
reino. Assim mesmo a roupa parecia dura, e a principio mal podia
mexer-me nella, porque a fazenda tinha a grossura de uma pollegada.
Pouco a pouco, porém , acostumei-me aos meus trajos novos,
que mostra vão uma moda meio chineza, meio japoneza.
Mas, nesta vida nem tudo são rosas, como veremos no seguinte.
Quanto mais se prolongava a minha permanência na côrte,
tanto mais crescia o favor da rainha.
Só raras vezes me era licito sahir do lado delia, e com ella
comia na mesma mesa, em um serviço de prata, que expressamente
havia mandado fabricar para mim.
Era ella que trinchava a carne em pedacinhos, que me mettia

Pli! na bocca, manifestando immenso prazer pela delicadeza com que


eu comia.
Em troco admirava-me eu não menos do modo de comer de
Sua Magestade, posto que a rainha, comparada com as outras filhas
de Brobdignak, só patenteasse appetite morigerado.
1 ; :' I
125

Cada bocado, que fincava no garfo, teria sido sufticiente para


saciar dez camponezes europeus esfomeados.
Com a maior facilidade triturava, com ossos e tudo, uma
calhandra, posto que esta ave fosse nove vezes maior do que as
nossas perúas.
Sem 0 menor esforço mettia na bocca um pão de quatro libras,
bebendo ao mesmo tempo em uma taça cada trago de tres medidas
de vinho nacional, pelo menos,
A faca e o garfo de Sua jVlagestade ei’ão do tamanho de
foices, e as colhéi’es e outros utensilios da mesa guardavão a
mesma proporção.
Ordinariamente comia a rainha só commigo e com suas duas
filhas, princezas virtuosas e formosas.
Nas quartas-feiras, poi’ém, feriados em Brobdignak, Sua Ma-
gestade El-rei honi^ava nossa refeição com a sua presença.
Tinha-me creado Sua Magestade grande affeição e dignava-se
muitas vezes conversar commigo amistosa e affavelmente.
Inquiria de mim acerca das instituições da minha patria, dos
nossos' usos, da nossa religião, das nossas leis, e eu esforçava-me,
naturalmente, para dar as respostas mais convenientes.
El-rei externava então os seus commentarios, que me confirma-
vão sempre mais a convicção que era um monarcha sabio e
criterioso.
Algumas vezes, entretanto, fazia-me ferver o sangue com suas
criticas mordazes.
Um dia, entre outros, tinha-me feito varias perguntas, e, por
estar de máu humor talvéz, tinha ouvido as respostas com um certo
sorriso de motejo indizivel.
De repente, quando eu tinha finalizado, voltou-se Sua Magestade
para o seu ministro collocado atraz de sua cadeira, e disse com
verdadeira zombaria:
— Como é miserável e desprezível a grandeza humana, desde
que póde ser macaqueada por insectos miseros c pequeninos, como
. I

— 126 —

este. Não se me dava de apostai’ que estes vermes têm, como nós,
o seu oi’g’ulho, os seus titulos, as suas dignidades. Construem tocas
e ninhos e os chamão de cidades; ostentão-se em trajos vistosos, em
carruagens de galla, que poderiamos derrubar com um sopro nosso,
e olhão com desdem os seus semelhantes, que não dispõem do
mesmo luxo. Brigão, combatem, vencem e perdem batalhas,
saqueião, matão, mentem e roubão, e apezar de tudo isto julgão-se
! 'I os donos da creação. A pre! Tenho nojo quando me lembro disto!
Assim dizia el-rei, de ordinário tão cheio de bondade, emquanto
que eu, de raiva, passava por todas as cores do arco da velha,
a ponto que quasi cheguei a perder o respeito á pessoa sagrada
d ’el-rei.
Dissipada, poróm, a minha raiva, e sobrevindo o frio raciocinio,
já não pude levar a mal a Sua Magestade o seu juizo acerca da ,
.W-
minha patria.
Colloquei-me no logar delle, e cumpre confessar sinceramente
que também eu me teria rido ás gargalhadas, se tivesse visto de
repente uma roda européa, condecorada e enfeitada de fitas,
ostentar-se em Brobdignak.
Mas, se já me era custoso aguentar as sahidas de Sua Magestade
El-rei, muito mais me amargavão as zombarias do anão da rainha,
que era a creatura mais baixa do paiz, antes de minha chegada.
Esse misero sujeito, que mal teria trinta pés de altura, atrevia-se
a vangioriar-se em minha presença, e, mais ainda, quando trepado
em uma mesa eu me entretinha com as mais formosas damas, os
mais distinctos cavalheiros, ousava aquelle horrível anão alludir
zombando á minha pequenhez.
Irritava-me singularmente o procedimento do atrevido, e, para
vingar-me de algum modo, eu o appellidava de collega, chamavo-o
a desafio, e pregava-lhe peças, como soem pregar os pagens na corte. '
Como o anão, em matéria de lingua, não podia commigo, ficava
furioso, e ás vezes tive de sentir a sua vingança em verdadeiras
vias de facto.
1 (r H !;i !• V

. \ A‘
- 127 —

Um dia, por exemplo, estando nos todos a mesa, o anào zangou-


se tanto de uma observação minha, ç[ue, sem poder ser impedido,
ag*arrou-me i^apidamente pelas pernas e me atirou em um grande
prato cheio de creme, fugindo immediatamente, como se lhe ardessem
os miolos.
Fi({uei mergulhado no crême, cujas ondas se me fechárao por
cima da cabeça, e, estando a minha maizinha ausente, e a rainha
petrificada pelo susto, eu teria perecido infallivelmente, se mio fosse
tão bom nadador.
Consegui vir á tona do crême, e evolui no elemento pastoso,
como um peixe n ’ agua.
Neste comenos Glumdalklitsch havia acudido*, tirou-m e do
prato, como uma mosca do leite, limpou-me, enxugou-me e levou-me
á cama para que não me resultasse mal do susto e do resfriamento.
Eu escapei com um ligeiro incommodo, mas o meu anão me­
donho chupou uma sova formidável, e, além disto, teve de beber o
crême, no qual eu tinha feito os meus exercicios de natação, castigo
que 0 obrigou a fazer horriveis caretas.
i\Ias a cousa não parou nisto. Sua Magestade a rainha, com-
prehendendo que d ’ ora em diante a presença do monstrengo na
corte só me podia ser desagradavel e prejudicial, deu o anão em
presente a uma dama nobre, famigerada em todo o i>aiz por sua
maldade; sob tal dominio o meu perseguidor terá aprendido á sua
custa como sabe a maldade.
Pouco antes do seu desterro, o tal anão já me havia pregado
outra peça, que não lhe causou a desgraça, porque fui tolo bastante
de interceder por elle junto á rainha.
Era 0 caso que Sua Magestade tinha chupado um osso de
tutano, deixando a canella vazia ao lado do seu prato.
O anão, que já não gostava de mim, aproveitando o momento
cm que a rainha se entretinha vivamente em uma conversação com
Glumdalklitsch, agarrou-me de improviso, apertou-me os braços
contra o corpo, de modo que não pude defender-me, e metteu-me
*k
)'

— 128
na cavidade do osso, sem importar-se com a minha reluctancia,
nem com a minlia gritaria.
, < Estava eu mettido, pois, até ao pescoço no osso, sem poder
mover-me, e o malvado aniío zombava ainda em cima de mim, com
gestos e gargalhadas.
Chamárão os meus gritos a attenção da rainha; voltou-se ella
e libertou-me immediatamente da minha prisiío.
Felizmente estava são e salvo; nem sequer tinha queimado as
pernas, porque Sua jMagestade tinha o costume de tomar os alimentos
quasi frios.
Em misero estado, porém , tinha ficado o meu trajo; meias,
calções, casaca, tudo estava manchado horrivelmente. Em castigo,
o anão ia ser desterrado, mas, como já disse, pedi á rainha que
por essa vez lhe perdoasse.
De vez em quando perguntava-me Sua Magestade a rainha
com um sorriso gracioso, se na minha terra todos erão tão cobardes
como eu. Para arredar do meu valor pessoal qualquer pecha,
tenho que dar a explicação de semelhante pergunta.
Durante o verão reina em Brobdignak uma verdadeira praga
de moscas, que são do tamanho das nossas cotovias e que não me
deixavão um momento de descanso na mesa.
Adejavão e zunião-me na cara, pousavão-me na cabeça e nas
mãos, martyrizando-me constantemente com seus ferrões, que medião
uma pollegada de comprimento.
A cara e as mãos chegavão a escorrer sangue, em consequência
das ferretoadas, e ninguém ha-de estranhar que me sobresaltava
cada vez que ouvia zunir perto de mim algum desses insectos
horrendos. Enxotava as moscas com as mãos, e sentia prazer
immenso, quando conseguia agai’rar e esmagar alguma.
'i! Mais tarde adquiri a habilidade de abatê-las no vôo com a
minha espada, o que me multiplicava a coragem e de muito me
servia, quando o anão me tomava por alvo de suas malicias. Este
malvado, apenas tinha percebido a minha aversão contra os in-

fef.
— 129 —

sectos immundos, achava um prazer indizível em juntar uma mào


cheia delles, e solta-los diante da minha cara, rindo-se ás gargalhadas
do susto que me causava. Se bem que eu náo escapasse a todos, sem­
pre conseguia partir no ar grande numero delles com a minha espada.

Mais ainda, porém, que as moscas, martyrizavrio-me outros insectos.


Um dia, Glumdalklitsch me tinlui collocado na minha caixa na
janella, para que tomasse o ar livre. Brilhava meigamente o sol,
e me parecia que não faria mal em arejar um pouco o meu apo­
sento, deixando entrar francamente a brisa.
Abri, pois, as minhas janellas, e sentei-me á rainha mesa, para
comer um pedaço de bolo doce, o meu almoço habitual. i-' ?
Viagens do Gulliver. 9 í
■M
li
T;

— 130 —

De repente, no meio desta occupação agradavel, fui sorprendido


por um rui do horrivel. Plrguendo os olhos dei com umas vinte
vespas que tinhao entrado pela janella, attrahidas pelo cheiro das
guloseimas.
Alguns destes insectos vorazes atirarào-se ao bolo, arrancando-
m ’o das m àos, pedaço por pedaço: os outros esvoaçavâo-me em
roda da cabeça, causando-me grande terror, porque podiâo picar-me,
e de certo teria morrido das suas ferretoadas.
E bom lembrar que essas vespas erao do tamanho das nossas
1 i1 .1
perdizes maiores, se nâo as excedião ainda,
No primeiro momento liquei atordoado.
Armando-me, porém, de toda a minha coragem, e puxando da
espada, ataquei os insectos immundos por todos os lados; dando
11»
innumeros golpes no ar, matei quatro dos meus aggressores; os
I^
outi^os fugirão.
Fecliei então as minhas janellas, e depois de descansar um
pouco do susto e dos esforços, tirei os ferrões ás vespas mortas.
Tinhão mais de duas pollegadas de comprimento e erão aguçados
como as melhores agulhas.
Guardei-os na minha carteira como lembrança, e consegui mais
f, tarde mostra-los na Europa a uns sábios eminentes, que os admirá-
1 :1
! 4 1
1 ■ ' rão devidamente.
(
1. *
■ ■' i i :
' t 1

j {

i1 .
CAPITULO V.

Creio que, antes de continuar a narração das minhas aven­


turas, virá a tempo dizer duas palavras acerca do paiz singular,
ao qual o meu fado, mais singular ainda, me havia levado.
Está situado em uma vasta peninsula, limitada a nordeste por
uma serrania de dez léguas de altura, que se estende de um ex­
tremo do reino ao outro.
Esta serrania está coalhada de volcoes, que constantemente
arrojão fogo e lava, o que a torna completamente insupeiavel,
Eis a razão por que os sábios da terra nada sabem do que ha
do outro lado das montanhas; e como nada sabem, chegão mesmo
a negar que haja mais alguma cousa fora do seu paiz.
Nos très lados restantes Brobdignak é banhado pelo mar. Em
toda a parte a costa cahe a prumo, e assegurarão-me que não ha
um porto seguro, no qual pudesse fundear um navio estrangeiro.
As desembocaduras dos rios estão cheias de recifes e cachopos,
que não permittem á embarcação mais ligeira de entranhar-se nas
correntes caudalosas deste paiz.
Eis a rfizão porque Brobdignak não tinha relações com o
resto do m undo, e porque nunca a noticia desse paiz dos gigantes
tinha penetrado nos outros paizes do globo.
No interior, os rios, largos c profundos, estão cobertos de em­
barcações, que põem em contacto as cidades mais remotas com a
— 132 —

capital, e as aguas dessas correntes estão cheias de peixes enormes


e saborosos, que têm preferencia sobre os peixes do mar, visto que
11 estes últimos são do tamanho dos europeus, e, por tanto, não podem
supportar a comparação com os de Brobdignak.
A terra está perfeitamente cultivada. Conta para cima de cin-
coenta cidades grandes e de primeira ordem 5 mais de cem villas
cercadas de muros, e innumeras aldôas e herdades.
A mais formosa e a maior das cidades é a capital Lorbrulgrud,
I dividida em duas partes por um grande rio.
t .
Em mais de oitenta mil casas, abriga seis centos mil habitantes.
Quanto á extensão, tem mais de doze léguas em comprimento
: (■
e dez em largura, e garanto estas medidas, porque as tomei de
. I 'r uma planta da corte que 0 rei me mostrou.
Bem no meio da cidade, encontra-se 0 palacio real; mas, não
b I'
vão imaginar que é um ediíicio só : reunem-se em grupo tantas
Í! casas, que parece uma pequena cidade em separado, comprehendendo
os mais esplendidos aposentos, dos quaes nenhum tem menos de
duzentos e cincoenta pés de altura.

E escusado accrescentar que este palacio encerra todas as


commodidades possiveis.

Das muitas carruagens que se viam nas cocheiras, uma era


destinada ao serviço de Glumdalklitsch, sempre que queria sahir
á rua.
Frequentemente, acompanhada de sua aia, visitava as lojas da
capital, e quasi sempre me levava em sua companhia.
Oi dinariamente eu ia na minha caixa ; outras vezes, porém, a
minha mãizinha sentava-me na palma da mão, para que pudesse
admirar livremente as casas, os armazéns e todas as outras
curiosidades.
A carruagem em que iamos era um monstro de tamanho, e
não se me dava de apostar que poderia abrigar mais de quinhentos
europeus.
— 133

Com 0 fim de dar-m e mais commodidade nas viagens que


fazíamos ás vezes nos arredores da capital, mandou-se fazer, em
lugar da caixa, que em geral me servia de habitação, uma outra
menor, de doze pés em quadro, por dez de altura.
Trabalhou o marceneiro da corte sob minhas indicações dii^ectas,
de modo que sahiu cousa capaz e inteiramente a meu gosto. Tres
janellas lateraes erão guarnecidas por fóra de um tecido forte de
arame; no quarto lado, em lugar de janella, havia dous ganchos
dc ferro, pelos quaes podia passar-se uma correia, que Glumdal-
klitsch apertava na cintura durante as viagens a cavallo, propor­
cionando-me uma posição commoda e segura, e alliviando ao mesmo
tempo a minha mãizinha, que outr’ ora tinha de levar nos joelhos a
minha caixa grande, e mantê-la em equilíbrio com as mãos durante
todo 0 ti’ajecto.
Além disto acompanhava-me um criado velho e experimentado,
a quem Glumdalklitsch passava ás vezes o cuidado de carregar-me,
quando ella chegava a cansar-se.
No mais, o meu aposento de viagem estava arranjado como o
outro; por todos os lados acolchoado, tinha a vantagem de tei’ a
niobilia ataiu’achada ao soalho, por causa dos abalos inevitáveis no
movimento a cavallo, abalos que agora não me fazião mais mossa,
já por estar acostumado, já por causa dos acolchoados. Pelo
caminho olhava, pois, alegremerite pelas tres janellas, gozando dos
bellos panoramas, que se ião apresentando.
Outras vezes percorríamos a capital em uma liteira, aberta a
todos os ventos, carregada por quatro lacaios robustos.
Nesta occasião o povo agglomerava-se em redor de nós, pro­
clamando-nos amistosamente, e queria vêr-me detidamente.
Glumdalklitsch sentava-me então na palma das mãos e
mostrava-me aos curiosos, que muito em conta lhe levavão esta
amabilidade. Em breve Glumdalklitsch ficou sendo pessoa muito
popular.
— 134 —

Tendo ouvido falar encomiasticamente da cathedral da resi­


dência, de cuja torre diziào ser uma verdadeira maravilha, pedi
um dia á minha màizinha que visitasse commigo este templo.
Promptamente fui attendido e levado no meu aposento de viagem
a vêr 0 monumento tao falado.
Confesso que o templo era vastissimo e a torre muito alta;
comtudo ambos ficárão áquem da minha expectativa. É certo que
a torre tinha tres mil pés de altura; mas, que era isto para o
tamanho dos homens que a tinhao construido? igualmente notei-lhe
pouca elegancia, não podendo, porém, deixar de admirar a grossura
das paredes, construidas com cubos enormes de alvenaria, alcançando
cem pés de espessura. Em certos lugares ha nichos, nos quaes se
vêem as estatuas de mármore dos reis fallecidos, todas do tamanho
mais que natural. Em um montão de cisco achei o dedo minimo
da mão de uma dessas estatuas. Medi-o e achei-lhe um compri­
mento de quatro pés e duas pollegadas, não podendo^ abraça^lo com
as duas mãos. Glumdalklitsch enrolou-o no seu lenço e levou-o
para a casa, onde mais tarde o encontrei entre os brinquedos de
minha mãizinha. .
Merece ainda menção especial a cozinha do paço. O tecto é
abobadado, e encurva-se em uma altura de seiscentos pés. O forno
iguala em tamanho á nave principal de uma igreja e é aquecido
de um modo especial e engenhoso.
Nas paredes, em ganchos e taboas, via-se uma multidão de
utensilios de cozinha, panellas, caçarolas, frigideiras e outros mais.
Proporcionados ao tamanho dos cozinheiros, são naturalmente
collossaes. Em uma das panellas, e não era mister que fosse das
maiores, podia assar-se de uma vez duas dúzias de bois bem
gordos.
- As quadras d ’ el-rei são immensas, mas de oa’dinario^ só contêm
seiscentos cavallos, visto que Sua Magestade é inimigo de despezas
supérfluas. A raça é excellente e não vi cavallo algum abaixo de
sessenta pés de altura. Em velocidade rivalisão com o vendaval, e
— 135 —

percorrem, sem molhar um pello, as extensões mais incríveis.


Quando o rei sahe a cavallo, ou nas occasiões solemnes em
carruagem, é sempre acompanhado de quinhentas praças de
cavallaria.
Estremece, então, o solo debaixo das patas dos animaes, e é
um espectáculo esplendido ver passar a galope a guarda de honra
com el-rei na frente.
! |i
í*

t :
CAPITULO VI.

N ao ha duvida que poderia ter passado uma vida bastante


satisfeita em Brobdignak, se não fosse a minha pequenhez, que
constantemente me expunha a incidentes ridiculos e desagradaveis.
Para que o leitor posse imaginar o alcance delles, citarei aqui
alguns como amostra.
Muitas vezes Glumdalklitsch descia commigo ao parque do
palacio, para reconfortar-se no ar fresco e nos meigos raios do sol,
e gozar as delicias, que oíFerecião as flores innumeras que cobrião
0 jardim de um extremo a outro.
Um dia tinhamos encetado o passeio do costume, demorando-
me eu debaixo de uma macieira-anã, a contemplar os fructos desta
arvore singular.
Acercou-se de mim o já citado anão, com um sorriso traidor
nos lábios.
Zanguei-me de sua presença, e para fazer-lhe sentir o meu
desgosto, fiz algumas comparações entre a arvore estropeada e a
sua pessoa defeituosa.
O anão enfureceu-se e, antes que eu tivesse tempo de inutilizar-
lhe a maldade, sacudiu com força a macieira, cujos fructos com
grande estrondo cahirão no chão. Abaixei-ine jsara resguardar a
cabeça de semelhante chuva perigosa, pois que cada maçã era do

^ :i \
- 137 —

tamanho de uma pipa; comtudo alcançou-me uma no espinhaço,


com tal força, que cahi desmaiado de bruços.
O horrivel anão ria-se a bandeiras despregadas, emquanto que
eu, de gatinhas, fugia da arvore ominosa, arrependendo-me tarde
de haver maguado o meu inimigo, alludindo a uma deformidade do
corpo, da qual não era culpado.
Uma outra vez Glumdalklitsch havia-me sentado em um formoso
relvai, recommendando-me que dali não sahisse, emquanto ella daria
com sua aia um passeio na selva vizinha. Prometti obediência á
minha mãizinha, e contava obedecer, quando de repente o céu se
toldou; rclampagos sulcarão as negras nuvens e o trovão começou
a roncar horrivelmente, acompanhado do estrepito de uma saraivada
furiosa.
A primeira pedra que me alcançou, bateu-me com tanta força,
que me derrubou. Continuou o granizo a cahir em cima de mim
com grande barulho, e em menos de um minuto achei-me contundido
atrozmente. Sem duvida alguma teria succum bido, se não tivesse
conseguido refugiar-me debaixo de uma sebe de buxo que havia
perto de mim. Sob os galhos protectores do meu abrigo permaneci
cheio de dores até que o temporal cessasse e Gluindalklitsch acu­
disse anciosamente.
Chorou amargamente a minha mãizinha, quando viu a que
estado as feras pedras me havião reduzido; mas não lhe.tolherão
os lamentos a actividade, e sem demora levou-me á minha cama,
que tive de guardar durante dez dias, tão coberto estava de ecchy­
moses e escoriações, originadas pelas pedras que cabem em Brob-
dignak do tamanho de uma bala de artilharia. Felizmente salvou-
me da morte a fazenda grossa e elastica da minha roupa.
Cumpre-me agora citar outro acontecimento não menos desas­
troso. Estavamos outra vez no jardim , e Glumdalklitsch havia-me
collocado em um lugarzinho ameno e abrigado, onde j)odia entregar-
me ás minhas meditações, sem perigo algum, como ella suppunha
ao afastar-se de mim.
— 138 —
l. h
Estava eu embebido nas recordações da patria, da minha
mulher, dos meus filhos, quando de repente ouvi ruido no bosque © •I
vizinho, e vi apparecer um perdigueiro branco, que pertencia
ao jardineiro da quinta real.
Approximou-se o cSo de
caça, saltou ao redor de mim, ?
ladrou, farejou-m e detida­
mente, pulando depois varias
vezes por cima de mim sem
•! ceremonia alguma.
Agachei-me em silencio
e não me mexi, nem quando
0 terrivel cão me suspendeu
nos dentes e disparou com- -'íM
migo até chegar em presença
de seu dono, a cujos pés deitou-
me ao chão. Abanando com
a cauda ~
): ficou
i ■■
i I parado a
meu
^ 1:
j t - 1'■ lado,
t ' I
como es­
perando
... • '
a recompensa da sua taçanha. - - ;í
>■ í Esta recompensa não tardou,
.r
i e consistiu em um bom par de pontapés que lhe atirou o jardineiro,
quando me viu estendido sem movimento.
Ergueu-me carinhosamente e passando-me a mão pela cabeça,
perguntou-me se estava ferido.
Mas eu só tinha estado atordoado pelo susto, porque o cão era
tão bem ensinado, que nem sequer o fato me prejudicou. Tran-
quillizei, pois, o jardineiro, que me levou á minha mãizinha.

H i!
— 139 —

])edinclo-nie pelo caminho que mio denunciasse o procedimento do


cào, 0 que de bom grado prometti, porcjue o seu dono sempre me
liavia patenteado amizade carinhosa.
Além destas aventuras tive outras muitas, mas de importância
somenos. Um dia um gcrifalte atirou-se á minha pessoa, e sem
duvida ter-me-hia levado pelos ares, se nào me refugiasse a tempo
debaixo de um arbusto, onde, de espada em punho, me defendi
contra o salteador, até obriga-lo a fugir. Em uma outra occasiào
cahi em um monticulo de toupeiras, enterrando-me até ao pescoço;
custou-me sahir do atoleiro e tive de inventar uma historia pai*a
explicar o desasseio da minha roupa, para (jue não se rissem
de mim,
E assim ás dúzias. Felizmente protegia-me sempre a Provi­
dencia, de modo que sahia com o susto,
Incommodava-me sobremaneira vêr que os mais pequenos
passaros, tordos, rouxinóes, pintasilgos, carriças, pintarôxos, não
fazião o menor caso de mim, quando me vião em meus passeios
solitários. Saltavão em redor de mim com toda a calma, procu­
rando os seus alimentos; o meu aspecto não lhes causava o menor
susto. Um tordo chegou uma vez a arrancar-me da mão um
pedaço de bolo doce e a devora-lo em minha presença. Foi em
vão que tratei de rehaver a gulodice roubada; o tordo resistiu
tenazmente, aggredindo-me com o bico afiado, e como casualmente
não trouxesse a minha espada, tive de fugir vergonhosamente.
Quando queria enxotar os passaros, viravão-me a cara, pavonea-
vão-se, olhavão-me em ar de troça, davão-me bicadas furiosas, e,
quando eu me retirava, voltavão ás suas occupações tão tranquillos
como se eu não existiáse, quando não zombavão de mim com o
seu canto.
Cansado destes desaforos, resolvi um dia pôr-lhes cobro, e
armando-me de um bom cacete, desci ao jardim.
O primeiro passaro que encontrei foi um pintaroxo.
— 140 —

Como de costume, veiu bolir commigo, mas eu assentei-lhe tào


tremenda cacetada, que o atrevido cahiu atordoado no cliào.
Agarrei-o para leva-1o como trophéo á minha mSizinha.
Infelizmente o malvado não estava morto e forcejava para
liv ra r-se-m e da mão, batendo com as azas e dando bicadas
furiosas.
Não sei como me teria sabido da empresa, se não me appare-
cesse felizmente um criado do paço, que, vendo os meus apuros,
torceu 0 pescoço ao vencido rebelde.
No dia seguinte, por ordem especial de Sua Magestade a
rainha, me foi servido assado o tal pintarôxo, e para que imaginem
0 valor de toda esta aventura, inclusive o petisco, basta que saibão
que 0 passarinho era do tamanho de um bom cysne, e de carne
deliciosa.
As vezes eu mostrava uma coragem intempestiva, que quasi
»• )
sempre me attrahia a zombaria dos que me rodeiavão.

I •
Um dia, em uma excursão com a minha Glumdalklitsch,
deixámos a carruagem, mettendo-nos em uma vereda, que conda
por um jirado florido, onde abundavão borboletas de tamanho
Ü
extraordinário, de belleza admiravel, medindo algumas quatro pés
k i B entre os extremos das duas azas.
Havia na vereda um montão de estrume de vacca, e não soube
resistir ao desejo de saltar por cima, para mostrar a minha força e
destreza. Tomei esj)aço e saltei com grande im peto. . . no meio do
!« ^
montão nojento, afundando-me nelle até os joelhos. Só com grande
custo pude sahir desta prisão pouco asseiada, com uma cara tão
singular, que até a minha Glumdalklitsch não pôde deixar de rir
ás gargalhadas.
Posto que um lacaio me limpasse com um lenço, o meu bello
trajo ficou perdido, lembrando-me assim que a precipitação é má
conselheira. E ainda em cima tive o prazer de ouvir na corte os
motejos de el-rei e da rainha, dos cortezãos e até da criadagem.

líi :
iti
141

Mas nem sempre era a zombaria o meu quinhão. Mais de


uma vez soube despertar verdadeira admiração entre os meus
amigos e protectores.
Uma vez achei-me em presença de el-rei, quando fazia a sua
toilette. Estava o barbeiro a fazer-lhe a barba, pregando-me as
proporções da navalha, do tamanho de duas fouces, um susto
1'Cgular. Comtudo, depois que o rapa-queixo sumiu em seu estojo
este instrumento formidável, acerquei-me e pedi que me desse um
pouco da espuma tirada da cara de el-rei. Satisfeito o meu pedido,
escolhi umas cincoenta pontas do pello da barba de Sua Magestade,
que podião ter um dedo de cumprimento. Feito isto talhei com um
canivete um pedaço de páo duro; com um alfinete furei buracos a
distancias iguaes, nos quaes enxertei os cabellos da barba; depois
de alisa-los e apax’a-los convenientemente, tinha um bello pente de
cabelleira, que mostrei á rainha e a Glumdalklitsch, e que lhes
despertou muita admiração.
Uma outra vez, pedi á criada grave da rainha que me désse
os cabellos, que cahião, da cabeça de Sua Magestade, durante o
acto de pentea-la. Mandei fazer pelo marceneiro do paço duas
cadeiras, iguaes ás minhas, mas sem acolchoado. Com os cabellos
obtidos fiz um trançado artistico, que em tudo imitava perfeitamente
0 assento de palhinha das nossas cadeiras européas, e offereci estes
trastes á rainha, que acceitou o presente com especial agrado,
mandando encerra-lo na sua secretária, donde só o tirava nas
grandes solemnidades, exliibindo-o como curiosidade assignalada.
Com 0 resto do cabello da rainha teci uma bolsa para dinheiro,
com 0 monogramma de Sua Magestade em fios de ouro, que, com
licença da minha graciosa soberana, offereci a Glumdalklitsch.
Foi igualmente admirada esta obra minha, posto que fosse
mais uma brincadeira do que um objecto capaz de corresponder
ao seu destino, porque as menores moedas de Brobdignak têm pelo
menos vinte pollegadas de diâmetro. A minha mãizinha sei'viu-se
desta bolsa para guardar nella os seus brinquedos mais mimosos.
- 142 —

i' A rainha, que de dia em dia mais me enchia com seus favores,
vendo-me uma vez muito triste e melancholico, tratou de distrahir-
me com bondade infinda.
Lembi*ando-se das narrações das minhas viagens maritimas,
^ I ella me perguntou se seria capaz de manejar um bote com velas
e remos, accrescentando que o exercício de remar devia contribuir
poderosamente a fortalecer a minha saude, um tanto abalada.
Naturalmente respondi-lhe que nào me faltava pratica, visto
que muitas vezes tivera de pôr mãos á obra com os marinheiros
de profissão; mas que a minha experiencia de nada me serviria em
Brobdignak, onde os mais pequenos botes erão do tamanlio das
nossas náos; e que eu, portanto, não os poderia governar sozinho.
E , quando mesmo se construisse uma embarcação menor, não se
aguentaria nos rios caudalosos do paiz.
— Não seja este o teu cuidado, meu maganão — disse Sua
Magestade, dando-me um tapinha na cara; — havemos de arran­
jar-te um botezinho e também um lugar em que sem obstáculos te
j)0ssas divertir cora suas evoluções.
Immediataraente o constructor naval teve ordem de fabricar
uma embarcação segundo as minhas indicações, e em dez dias
construiu uma gondola digna de qualquer soberano'do velho mundo.
Fabricada de madeiras preciosas, e embutida de ouro e marfim,
podia conter facilmente dez individuos do meu tamanho.
Encantada Sua Magestade, mandou pôr o bote no tanque da
t Íí fonte, para que mostrasse a minha habilidade.
^ i
A gondola fluctuou perfeitamente, obedecendo galhardamente
ao leme e aos rem os; mas o espaço era pequeno para desenvolver
com brilho evoluções interessantes. ,
Vendo isto, a rainha mandou construir um tanque de quatro­
centos pés de comprimento, cem pés de largura e oito pés de pro­
fundidade, com uma torneira afim de soltar as aguas que necessi
HM ^ tassem ser renovadas.
De posse desta bacia magnifica, entreguei-me todos os dias aos
íi;',í.'
— 143 —

niíiis variados exercícios náuticos, para divertimento meu, e não


menos da rainha e da sua corte, que durante horas se deleitavào
com a minha pericie e habilidade.
Quando estava cançado de remar, soltava os pannos, e em­
punhava a canna do remo, emquanto as damas da rainha com seus
leques fazião o vento necessário para velejar; quando as nobres
cortezàs se achavão fatigadas, alguns pagens punhão-se a soprar de
bochechas inchadas. Corria bordadas, como o melhor marujo.
Terminados estes exercícios, Glumdalklitsch tirava-me da gondola,
e pendurava esta em um prego para que escorresse a agua.
Um dia, porém , deu-se um desastre, que quasi me tirou a
vontade de navegar.
A aia de Glumdalklitsch me tinha suspendido nos braços para
sentar-me na gondola; por um descuido, escapei-lhe das mãos e
cahi de uma altura de sessenta pés.
Inhillivelmente ter-me-hia despedaçado nas lages, se não ficasse
preso em um altinete, que prendia o chalés da pobre mulher.
Sem oífender-me, passou-me o alfinete entre o tirante e a camisa,
e fiquei no ar, gritando e esperneando, até que Glumdalklitsch, acu­
dindo com muito sangue-frio, me libertasse da minha posição critica.
Um outro dih, ninguém sabe como, achou-se um sapo no meu
tanque. Só o percebi depois que Glumdalklitsch me tinha accomo-
dado no meu bote. Talvez o bicho immundo considerasse a minha
gondola como lugar de recreio para elle, porque sahiu da agua,
subiu a bordo, e desequilibrou a embarcação de tal modo, que poi
um triz não virou. Depois o intruso fez como quem está em sua
casa; saltou tres ou quatro vezes por cima de niim, regando-me
com um liquido viscoso e mal cheiroso, de modo que a sua presença
se me tornou completamente intolerável.
Agradecendo galhardamente a intervenção de Glumdalklitsch,
que me acudira, ataquei com muito brio o invasor, e dei-lhe tanto
com 0 meu remo, que coaxando fugiu vergonhosamente para as pro­
fundidades do tanque. ___________
Iff

CAPITULO VII.

Essas aventuras, porém, nada valiào, comjiaradas com a que


tive com um macaco, pertencente a um dos bichos da cozinha
de el-rei.
A minha Glumdalklitsch, tendo que tratar de alguns assumptos
urgentes, tinha sahido, deixando-me por precaução fechado no
aposento delia.
Estando muito quente o dia, as janellas de Glumdalklitsch
tinhão ficado abertas, e bem assim porta e janellas da minha boceta.
Sentado a gozar o sopro da briza, que penetrava em meu
quarto particular, ouvi de repente um rumor singular, e olhando
para a sala de minha mãizinha, vi um macaco, que pulava de um
lado para o outro.
Posto que grandemente assustado, não podia tirar os olhos do
animal curioso, que executava os mais irrisórios movimentos.
Das cadeiras saltava as mesas, das mesas em cima dos armarios ;
tudo quanto lhe cahia nas mãos virava e revirava^ fazia caretas
h ihi
íi f indescriptiveis, arrancando-me innumeras gargalhadas.
Por fim deu com a minha boceta e acercou-se delia com muita
desconfiança. Depois poz-lhe a mão, levantou-a, sacudiu-a com
grande violência, abriu e fechou a porta e as janellas, contrahindo
a cara já tão feia, para patentear a maior satisfacção.

.1

- J
— 145 —

E escusado accrescentar que senti sustos de todos os quilates


durante estas manipulações; de tal modo tiquei atordoado que, em
lugar de refugiar-me dentro de algum armario ou debaixo da cama,
permaneci pregado na minha cadeira, como um pateta.
Depois de ter brincado a fartar-se com a minha boceta, o
macaco olhou para dentro e viu-me estatelado.
Com uma gritaria de alegria immensa, estendeu a mào para
agarrar-me.
Mas este movimento ameaçador restituiu-me vida e energia.
Como picado por uma tarantula, puz-me de pé, saltei, metti-me
debaixo da mesa e das cadeiras, fugi de um canto para o outro,
íiz, emíim, todo o possivel para escapar ás unhas do macaco endia­
brado.
Imaginem o que deve sentir, como eu então senti, o passarinho,
em cuja gaiola rapaz travesso mette a mão. Como elle esvoaça e
chilra, e salta de um poleiro a outro, erriçando anciosamente as
pennas, assim corria eu á toa, gritando de susto e procurando
livrar-me do meu inimigo.
Mas ninguém foge á sua sina.
O macaco acabou por pegar-me por uma aba da casaca, e
puxou-me para fói’a da minha boceta.
Sentou-me na palma da mão esquerda, olhou para mim com
grandes tregeitos, e afagou-me com a outra mão, sem me maguar.
Assim, porém, que eu denotei querer fugir, o biçho malvado
apertou-me tão horrivelmente, que as costellas me estalarão, e os
olhos se me encherão de lagrimas. Comprehendi que era melhor
resignar-me e fiquei quieto, o que fez reapparecer a terniua de
meu algoz, que me tratava como uma ama trata á sua cria. Talvez
pensasse mesmo que eu era algum parente pequeno, que elle devia
proteger com grandes carinhos.
Durou este brinquedo horrendo até que o quadrumano ouviu
um ruido na porta: parecia que alguém a estava abrindo.
Viagens de Gulliver. 10
146

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i: , Urn.-
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I ; Com a rapidez do raio o macaco fug'iu pela janella, trepou por


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n um canno de chumbo, e em breves momentos alcançou um telhado
I f'
vizinho: em tudo isto conservava-me preso na sinistra, emquanto
que com a dextra e com as pernas executava a sua gymnastica
vertiginosa.
1 ■‘ No instante em que o meu raptor sabia pela janella, entrava a
minha Glumdalklitsch pela porta, Ella soltou um grito desesperado
quando me viu em poder do macaco.
i1

ír I

A>
- 147 —

Toda a ala do palacio, por nós habitada, ficou revolucionada,


porque Glumdalklitsch corria de aposento em aposento, chamando
por soccorro. Dahi a pouco vi os criados e lacaios acudirem com
grandes escadas de imlo. Aos magotes juntou-se a gente no pateo,
olhando para o m acaco, que se havia sentado em uma cumieira
saliente, emhalando-me nos braços como a uma criancinha de peito,
e dando-me de comer guloseimas, que guardára nas bochechas.
Quando eu não queria acceitar estes comestiveis, elle dava-me
pancada, de modo que eu tinha de gritar, abrindo assim a bocca,
contra a minha vontade.
Devia ser divertido tal espectáculo, e nao levei, a mal aos
assistentes que rissem ás gargalhadas. Talvez que eu mesmo me
tivesse rido, se visse outrem em situação idêntica. Mostravao-se
aliás promptos a auxiliar-me, atirando muitas pedradas ao macaco.
Mas a emenda ameaçava ser peior que o soneto, porque algum dos
projectis podia alcançar-me também, e então «adeus as minhas en-
commendas».
Por fim fôrão encostadas as escadas e de vários lados os meus
salvadores principiárão a subir.
O macaco vendo.isto, é provável que calculasse que com tres
mãos só, não poderia escapar ás vinte mãos vingadoras que se
acercavào; cleixou-me cahir, pois, e fugiu oom grande alarido.
Quanto a mim, fui rolando no telhado, julgando ter chegado a
minha hora suprema. Felizmonte, porém, fiquei preso na calha,
onde me achei em segurança relativa. Agarrci me desesperada­
mente, para nito cahir na calçada de uma altura de quinhentos

metros.
Entretanto os meus libertadores se approximavão. Senti como
que me suspendião; olhei e vi o criado da minha Glumdalkhtsch,
um mocetão carinhoso, que me ergueu com o maior cuidado, e me
mettou no bolso das calças, descendo depois a escada. Cheguei
sem estorvo ao ch.ão, onde fui recebido com gritos jubilosos pela

multidão anciosa.
- 149 —

Tuio me tivesse colhido de sorpreza; Que viesse agora! Com a


minha espada o receberia de modo que toda a vida haveria de
lembrar-se, ainda que fosse dez vezes maior!
Despertou este arreganho bellicose as risadas da rainha, e
naturalmente toda a corte se riu com ella.
Comprehendi que havia dito tolices, proferindo ameaças contra
um animal maior que o maior elephante das índias.
Calei-me envergonhado, e retirei-me para um canto, meditando
sobre o inconveniente de esquecer-se a gente tão facilmente de sua
pequenhez; mas firmemente resolvido a tomar a minha desforra por
algum feito notável.
Não tardou a occasião de realizar este bom proposito.
Era el-rei grande amador de musica , e organizava frequente­
mente concertos, para os quaes eu era convidado, para maior
tormento dos meus fracos ouvidos, não acostumados ao luido,
horrivel, que naturalmente produzião os instrumentos de Brobdignak.
Quando assisti pela primeira vez a um desses concertos, quasi
fiquei com o timpano despedaçado. Nem o estrondo de cem peças
de artilharia, disparadas ao mesmo tempo, alcança em intensidade
o mar bramante dos sons produzidos pelos músicos d’el-rei.
Para as funeções subsequentes, ensinado pela experiencia,
ordenei que me levassem na minha boceta para a sala immensa
dos concertos e que a collocassem no canto mais retirado. Fechei
portas e janellas, corri as cortinas, c consegui com estas precauções
poder apreciar a musica sem prejuizo dos meus ouvidos.
Havia no aposento de Glumdalklitsch um instrumento parecido
em feitio com um piano europeu, mas de dimensões, muito maiores.
D e comprimento tinha sessenta pés, e cada tecla era da largura de
uma mão. Neste instrumento a minha mãizinha estudava a liçao
com o mestre da capella régia, tendo exercicios duas vezes por semana.
Lembrei-me que na minha mocidade também eu tinha apren­
dido a tocar piano, e firmei o projecto de sorprender o soberano
com a minha habilidade.
150 —

Era icleia arrojada, ponderando que com os braços abertos,


apenas podia abraçar cinco teclas.
f

A força de perseverança, porém, consegui estudar em horas


solitárias uma valsa ligeira, vencendo as difíiculdades inauditas
que me a])resentava a empresa, com as disposições seguintes:
Em pri­
meiro lugar
mandei col-
locar no ins­
trumento , a
quatro pés
abaixo do te­
clado , uma
Á IJ È taboa larga,
na qual podia
m over-m e
sem perigo
de um lado
^ ^ para o outro.
Em se­
/ guida man­
dei fabricar
dous bastões *
robustos,
munidos em um dos extremos de
um tampão de ])elle de ratos, e no
outro de uma alça, para poder em-
punha-los commodamente. Com esta especie de vaquetas, comprimia
as teclas, o que so com as mãos não teria conseguido. Além disto
os páos alcançavão ao longe, evitando-me assim caminhadas longas
e fastidiosas. O revestimento de pelle de rato devia abrandar o
som e resguardar as teclas de attrito maior.
Preparado deste modo, esperei o meu auditorio, e quando este
— 151 -

esteve completo, rufei de boa vontade no instrumento, sem sahir


do compasso. Terminada a minha valsa, fui muito applaudido,
principalmente pela rainha, á qual a execução havia agradado
sobremodo, e que me disse muitas phrases lisongeiras. E escusado
accrescentar, entretanto, que não podia apresentar cousa perfeita,
visto que com as minhas vaquetas apenas alcançava dezeseis teclas,
ficando prejudicado o acompanhamento da melodia. E , comtudo,
difíicil seria imaginar os esforços que tive de empregar em um
instrumento tão volumoso. Estava exhausto de cansaço quando
terminei a minha valsa. Supponho que foi o trabalho mais diííicil
que emprehendi em dias do minha vida, e só o applauso unanime
e enthusiastico do auditorio, pôde indemnizar-me em parte do meu

sacrifício.
CAPITULO VIII.

P o r mais que todos os meus protectores se esforçassem para


tom ai-me agradavel a vida cm Krobdignak^ nao podia esquecer-me
da minha mulher, dos meus íilhos e dos bons amigos que havia
deixado na patria querida.
Sem duvida o pezar e as saudades ter-me-hiíío ralado o cora-
ÍN çao, se não me tivesse amparado a esperança, com suas promessas
fi> j^i bemfazejas.
t
E certo que nao poderia ter explicado claramente o que es­
perava; mas Aquelle que me fizera transpor os baluartes insuperá­
veis desse paiz singular, também podia dar-me os meios de supera-
I'i los para sahir em busca da minha terra.
Com as fibras mais intimas frementes, pensava muitas vezes
nesta volta, rejubilando com a ideia que o momento feliz talvez
; ! estivesse perto.
Posto que fosse o favorito do rei e da rainha, o mimo de toda
a corte, pensava com grandes saudades na ventura de voltar ao
seio dos meus iguaes, de passear em ruas e campos, onde nào me
ameaçasse a cada momento o perigo de ser esmagado pelo pé
dos transeuntes; estava sedento, emfim, dos nossos bosques e
campinas.
P ois, meus caros leitores, mais depressa do que pensava sahi
5r do meu captiveiro e de um modo tão extraordinário, que a minha
153 —

sabida excedeu em maravilhoso tudo quanto se conhece das minhas


aventuras estranhas.
Dous annos achava-me eu em Brobdignak, quando os soberanos
se lembrárSo de fazer uma excursão ao interior do paiz dos gigantes.
Não querendo sej)arar-se de mim, ordenou a rainha á Glumdal-
klitsch que se incorporasse commígo na comitiva real. Mettêi-ão-me
na minha boceta de viagem e partimos todos.
Graças a alguns melhoramentos, o meu aposento oíferecia agora
mais commodidade.
Uma rede, presa nos quatro cantos do tecto por grossos cordoes
de seda, constituia um ponto de descanso, garantido completamente
contra os solavancos dos movimentos, mesmo quando o criado me
levava a cavallo.
Para dar accesso ao ar livre, havia mandado practicar no tecto
uma abertura, que se podia fechar á vontade por uma corrediça.
Fazia, pois, o trajecto commodamente e sem perigo algum.
Como ponto de descanso no nosso caminho havia-se designado
um castello régio perto da cidade de Flanfasnik, que por sua vez
só distava quatro léguas do mar.
Deviamos demorar-nos nesse ponto algumas semanas, o que
me vinha muito a proposito e mais ainda a minha Glumdalklitsch,
pois que ambos estavamos incommodados, eu de um forte defluxo,
e minha mãizinlia dos trabalhos das jornadas, que a obrigarão a
ficar vários dias de cama.
Satisfeita a minha curiosidade acerca do castello, senti grande
vontade de tornar a vêr o mar.
Fingi-me, pois, mais doente do que estava, para obter de Sua
]\Iagestade a rainha licença de ir reconfortar-me nas brisas salgadas.
Uma especie de voz secreta inspirava-me a fazer esse pedido, que
promptamente foi attendido por minha graciosa soberana.
Ordenou-se a um pagem que me levasse na minha boceta á
praia e que tivesse muito cuidado em mim.
Em seguida despedi-me de Glumdalklitsch.
— 154
Parecia que minha miiizinlia receiava nao tornar a vêr-me
nunca mais. Só com a mais violenta reluctancia cleixou-me partir,
recommendando-me que niïo me mettesse em perigos inúteis, e
ordenando ao pagem que, sob pena de morte, não rae perdesse um
só instante de vista.
Quando lhe dei a mão pela ultima vez, ella desatou a chorar
e houve-se em tudo como se a nossa separação devesse ser eterna.
Só a grande custo pude separar-me íinalmente delia.
Meu pagem tomou a boceta na qual eu estava accommodado,
afivelou as correias ao redor da cintura, e, andando de vagai’,
alcançou a praia em menos de meia hora.
Mandei que descansasse a minha habitação. Obedeceu im-
mediatamente, e eu, abrindo uma das minhas janellas corrcdiças,
puz-me a olhar com saudades para as ondas, que se estendião tão
' ' i! ao longe, que me podião levar á minha patria, se Deus quizesse.
Saudades e magnas de tal modo me abalárão, que senti ne­
cessidade de descansar um jiouco na minha rede.
Ao pagem disse que podia ir dar algumas voltas, que eu não
me moveria do ponto em que estava.
( H' ■ Não podia desconfiar de mim o joven encarregado da minha
pessoa, pois que ó cousa natural para um doente o desejar dormir
uma somneca. Desejou-me elle bom descanso, fechou porta e jaiiella
para impedir corrente de ar, e afastou-se em procura de ovos de
passarinhos, gulodice muito appctccida em Brobdignak.
Eu o vi mover-se entre os rochedos*, em seguida fechei os
olhos e cahi em um somno profundo.
Não saberia dizer quanto tempo dormi-, mas fui despertado
pelo ruido que fazião uns puxões, dados na argolla de ferro, presa
no alto da minha boceta para suspcnde-la commodamente.
Percebi immediatamente que uma força invisivel ine levantava
!t pelos ares com velocidade vertiginosa. Ao encetar a subida, o abalo
:
foi tão violento que a minha habitação vacillou de um lado para
ï M w
— 155 —

0 outro, a ponto de atirar-me quasi fóra da rede. Logo em seguida,


porém, 0 movimento ascendente tornou-se calmo e uniforme.
Nao me podia explicar de modo algum o que se estava
passando com m igo; alcei a voz e mandei que parassem, mas sem
o menor exito.
Encorporei-me então na rêde e olhei cautelosamente pela janella^
só vi as nuvens do céu, mas tão perto de mim estavão, que com
as mãos as poderia ter agarrado.
Ainda assim foi-me impossivel atinar com a causa da minha
ascenção, até que por cima de mim percehi um sussurro abafado,
como originado pelo trabalho das azas de um passaro gigantesco,
reconhecendo, ao mesmo tempo, o caracter horrivel da minha situação.
Uma aguia tinha visto a minha boceta, e farejado a minha
pessoa; agarrando a caixa pela argolla de ferro, a levantara aos
ares, para deixa-la cahir em algum rochedo, onde se despedaçaria,
servindo eu então de pasto ás aguias pequenas.
Estava, pois, em um perigo imminente, exposto a ser precipi­
tado a qualquer momento.
Não tardou muito que ouvisse novo sussurro mais forte, repeti­
das batidellas de azas, sentindo ao mesmo tempo que a minha
boceta era puxada violentamente de um lado para o outro, ora
para diante, ora para traz.
Escutei com ancias profundas e ouvi vários golpes, dados pro­
vavelmente na aguia que levantara a minha habitação; logo em
seguida desci precipitadamente das nuvens em linha vertical, com
uma rapidez sempre crescente, a ponto de perder a respiração.
Terminou a minha quéda horrivel com um golpe mais estron­
doso do que a voz do salto do Niagara. Diminuiu então a veloci­
dade, mas foi escurecendo em torno de mim, escurecendo sempre
mais, até que densas trevas me rodeárão.
Comprehendi que tinha cahido no m ar; e, quando a boceta
pouco a pouco tornou a subir, e as trevas cederão ao relumbrar da
luz do dia, recuperei o animo e a respiração.
— 156 ^

Poi’ 6 ra surgiu parte da Iniíiha boceta, cujo fundo permanecia


mergulhado nas ondas, em uma profundidade de cinco pés, em
consequência das chapas de ferro, que tinha mandado pregar
nos cantos da base para reforçar a construcção.
De resto tudo ia bem. • protegido contra o em-
As chapas servião de lastro, jf bate, quando cahiu.
mantendo a minha casa em Já referi anterior-
equilibrio, depois de tê-la mente que tinha man-

íi
dado calafetar a minha boceta para tornar-la impermeável a chuva
e humidade do chão ; tão conscienciosamente fôra feito este trabalho,
que nesta emergencia o meu cubiculo m ostrou-se pei’feitamente
estanque. As portas e janellas erão corrediças e por isso não
tinhão cedido á forte pressão das aguas.
— 157 —

Ponderando tudo istoj conclui que, pelo menos pai’a o momento,


estava ao abrigo; tratei então de abrir a corrediça do tecto, afim
de arejar o meu quarto, cbeio de ar viciado e abafado.
Aspirei com verdadeira delicia a brisa maritima, e sentei-me a
meditar acerca da minba situação, que nada tinha de invejável.
Lembrei-me saudosamente da minha querida Glumdalklitsch,
de cujo lado um só instante fatal me havia arrancado para sempre.
Menos pesava-me a minha propria sorte, do que o pensamento que
minha mãizinha a estas horas chamava por mim com lagrimas e
lamentos, depois de ter visto o pagem voltar sem mim.
Um momento receei que a pobre teria de deixar a corte e a
voltar outra vez para a vida obscura de camponeza; mas acudiu-
me felizmente o pensamento que a minha mãizinha eia a favoiita
da rainha, tanto como eu. Sua Magestade havia de nomea-la dama
de companhia, creando-lhe assim um futuro agradavel e segui o.
Consolado deste modo acerca de Glumdalklitsch, voltei aos
meus proprios interesses, e força é confessar que raras vezes amante
algum de viajar se havia encontrado em uma posição mais critica
do que eu nesse momento, podendo, por qualquer caso fortuito,
perder o meu esquife, e, com elle, a vida.
Bastava uma rajada para virar o meu cubiculo e sepultar-me
nos abysmos do mar.
Um rochedo qualquer, inevitável ppr íalta de remos e leme,
podia despedaçar as janellas de minha habitação, até então preser­
vadas pela rede de arame, e precipitar assim a catastrophe.
Intentei subir ao tecto do meu aposento, passando pela abertura
superior, para vêr se descobria ao longe algum navio salvador; mas
não pude alcançar aquella abertura, nem fazendo escada das cadeiras
postas em cima da mesa.
Quanto mais remetia, tanto mais triste me apparecia a situaçao.
Posto que escapasse ás ondas, aos recifes, a todos os outros
perigos que ameaçavão a minha frágil embarcação, como havia de

ni
- 158
escapar á sorte horrível cie morrer de fome, morte infallivel se nào
apparecesse soccorro em tempo?
Nào havia nem agua, nem pào no meu cubículo, porque
ninguém podia prever a necessidade de alimentos, rodeado como
sempre estava pelos mais carinhosos cuidados.
Via, pois, a morte em face, mas nem por isso perdi a coragem ;
tive fé em Deus, que tanto mais perto está, quanto o perigo é mais
imminente.
Ha-de lembrar-se o leitor que, no lado do meu quarto em que
nào havia janellas, existiào umas alças de ferro para receber a
correia com a qual Glumdalklitsch, ou algum dos criados, prendia
a minha casinha na cintura.
De repente, depois de ter fluetuado nas ondas cerca de quatro
horas, ouvi nessas alças um ruido, parecendo-me, logo em seguida,
que alguém puxava o meu cubiculo.
Accentuarào-se as sacudidellas, até que o meu esquife adornou.
As ondas cobrirào de novo as janellas, obscurecendo o meu
aposento.
Embora nào achasse explicação para estes movimentos, via
nelles a salvaçào c^^ue se approximava.
Gritei com todas as forças dos meus pulmões; bati desesperada-
mente nas paredes do meu quarto; atei o meu lenço em uma ben­
gala, e passei esta bandeira improvisada pela abertura do tecto,
pai’a dar signaes de vida.
Nem um signal de que houvessem sido percebidos os meus
esforços desesperados !
li Comtudo, accelerando-se o movimento do meu cubiculo, nào
perdi as esperanças.
Ao cabo de uma hora, passada em silencio sepulchral, bateu o
meu esquife estrondosamente em um objecto duro, jogou horrivel­
mente de um lado para o outro, e recuou depois violentamente.
Pensei que tinha encontrado um rochedo, e recommendei a
í r®i ís
alma a Deus.
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— 159 —

Cedo, porém, ouvi na coberta um ruido como se passassem


um cabo pela argolla de ferro, e senti o meu aposento subir por
sacudidellas.
De novo passei a bandeira pela abertura, e gritei de tal
modo que fi- se achou em
quei rouco. perigo de

Desta vez vida, poderá


aquilatar de­
tive resposta.
vidamente os
Um «liur-
sentimentos
rah» repetido
que me tu-
tres vezes cor­
multuavào no
tou os ares, e
peito.
íiquei subju­
Ouvi pas­
gado de tal
sos humanos
modo pelo
na coberta do
sentimento de
meu quarto,
achar-me sal­
e uma voz
vo e em pre­
sonora per­
sença de ho­
guntou em
mens, que der­
inglez:
ramei lagri­
— Se ha
mas copiosas,
alma viva
enviando ao
neste caixão,
céu um fer­
que se dê a
voroso agra­
conhecer!
decimento.
llespondi
Só quem
incontinente
já alguma vez
que me acudissem sem demora; que era inglez, reduzido a mais
horrivel situação, por uma sorte adversa.
A mesma voz tranquillizou-me:
Não tenha susto, — ouvi dizer ; — o sou esquife está amarrado
— 160 —

no nosso navio, e já vai descer o carpinteiro para practicar uma


abertura no seu ,porão.
— Não faça tantas cerenionias, — repliquei eu; —- o tempo
urge; quanto mais depressa sahir daqui, tanto melhor. Passe o
dedo na argolla de ferro que encontrará na coberta; alce a caixa
e eleve-a á camara do commandante.
Estas palavras fôrão recebidas por gargalhadas estrepitosas,
acompanhadas de observações, próprias a mostrarem que o meu
auditorio me tinha por maluco.
Neste comenos appareceu o carpinteiro e abriu no meu esquife
um rombo sufíiciente para deixar passar-me por elle, Era seguida
atirarão-me uma escada de corda; servi-me delia, e um momento
depois, exhausto de forças e prestes a desfallecer, achei-me no
convez de uma barca ingleza.

I
CAPITULO IX.

Attonito olhei para todos os lados, podendo só mal explicar-


me 0 que estava vendo.
A tripulação rodeiou-me; os marujos me íitavão boquiabertos,
e alguns me atropelavão com perguntas, ás quaes tinha pouca vontade
de responder.
A sensação que experimentava, era de achar-me em sonho no
meio de um povo de pygmeus.
Tive vertigens e todo o corpo me estremeceu. Só me lembro
que 0 commandante, yniúer Thomas W ilcot, filho valente do York­
shire, chegou perto de mim, apertou-me a mão, e, vendo-me a des­
maiar, ordenou que me levassem a sua camara.
Offereceu-me immediatamente um calix de bom vinho e um
pouco de alimento, e obrigou-me a deitar-me em sua cama, afim
de restaurar as minhas forças em um somno repai*ador.
Antes do desmaio, porém, pedi ao commandante que mandasse
recolher a minha boceta; que continha cadeiras, mesas, armarios,
uma rêde e outros trastes mais; que era forrada de seda e acol­
choada por todos os lados, e que muito lhe agradecería se a man­
dasse fechar na sua camara.
Fitou-me o bom do marujo com olhos espantados, convencido
de que as minhas aventuras me havião privado da razao.
Viagens <ie Gulliver.
11
— 162 —

Para tranquillizar-me, porém, prometteu que daria as ordens


convenientes acerca da minha propriedade, deixando-me immediata-
mente para desempenhar a sua palavra.
Fez pouca ceremonia; mandou recolher a bordo os trastes do
meu aposento e o melhor do taboado, abandonando o resto ás
ondas do mar.
Admirárao todos a minha mobilia, dando trato aos miolos para
descobrir o que havia realmente a meu respeito.
Dormi durante algumas horas, e senti-me robustecido, quando
acordei pela volta da noite.
Estava sentado o commandante perto de minha cama 5 inquiriu
do meu estado, e convidou-me para ceiar, quando percebeu que já
podia supportai’ um bom petisco. Comi com bom appetite, con­
versei com 0 meu hospede, e perguntei-lhe como tinha conseguido
livrar-me da minha malfadada situação.
— Nada mais natural, — respondeu elle, — pelo m eio-dia
descobri com 0 oculo seu esquife extraordinário, tomando-o a prin­
cipio por uma vela. Não estando muito fóra do meu rumo, e
desejando eu obter alguma bolacha, que me ia escasseando, ordenei
ao homem do leme puzesse a prôa cm direcção da embarcação
descoberta. Chegado mais perto, vi que me havia enganado acerca
do caracter doobjecto^ destaquei, comtudo, um bote, para deslindar
0 mysterio da cousa que via. Recolhido o bote, contou-me 0 patrão
grandemente alarmado, que aquillo não era um navio, nem um bote,
nem embarcação alguma, mas uma verdadeira casa fluctuante. R i­
me muito, e não acreditando no que mc dizia, fui em pessoa
examinar o achado. Andei á roda da caixa, e descobri as janellas
resguardadas pela rede de arame, e bem assim as alças de ferro,
pelas quaes mandei passar um cabo e rebocar a caixa singular até
0 meu navio, porque estava realmente curioso de saber 0 que
haveria no inteiior. Chegado ao costado do navio, mandei passar
outro cabo pela argolla de ferro para içar a arca; mas foi im-
possivel, attendendo ao seu peso.
- 163 —

Por fim, vimos a sua bandeira, e ouvimos os seus gritos, e


tiramo-lo da caixa do modo que já lhe é conhecido.
Ouvi attentamente estas explicações, perguntando depois se o
capitao ou algum dos seus marujos no. tempo que descobrirão a
minha arca, não tinlião visto no ar alguns passaros gigantescos.
— De certo, — respondeu um dos marinheiros, — vi voar
très aguias para o norte; mas não erão maioi-es do que as aguias
soem ser em geral.
Expliquei-me este facto pela distancia, porque aguia do tamanho
ordinário, nunca poderia ter alçado o meu aposento, e, portanto,
não podiào ter sido de Brobdignak. Calando, entretanto, estas
reflexões, perguntei ao commandante a que distancia julgava estar
de terra.
— Por meus cálculos, cem milhas pelo menos, — respondeu elle.
Eu então lhe observei que, no momento de cahir na agua, não
fazia duas horas que sahira do paiz, e que por conseguinte, elle
devia ter andado errado nos seus cálculos.
Esta observação despertou de novo ao capitão a ideia que na
minha cabeça as cousas não andavão muito certas, dando isso a
entender, aliás, de um modo delicado.
— Não quer dormir mais um pouco, caro amigo? — perguntou-
me elle; — parece que desastres lhe transtornárão um tanto a
cabeça, e um bom somno é o melhor remedio para equilibrar tudo.
— Não ha tal, não ha tal! — protestei eu apressadamente; —
estou bem são da mente, e agradavelmente animado por sua
amavel conversação. Palestremos, pois, mais algumas horas, e
conte-me como as cousas se passão na minha bella patria, da qual
ha dous annos não tenho noticias.
Tornou-se serio e formal o commandante e fitou-me attentamente.
— Cavalheiro, — me disse elle, — não o negue e confesse-o
francamente que os seus soíFrimentos lhe abalarão as faculdades
mentaes. Sem duvida alguma commetteu algum crime grave, e por
castigo foi encerrado naquella caixa para morrer de fome. Não
11 *
164

tenha medo de abrir-me o seu coração, pois que de qualquer modo


que haja delinquido, não o hei-de prender. Dou-lhe, pelo contrario,
solemnemente a minha palavra de desembarca-lo livre no primeiro
porto em que chegarmos. Mas, antes disto, ha-de descarregar a
sua consciência por uma confissão sincera. Não pense que me ha-
de illudir! Suas palavras insólitas, seus olhares incertos, todos os
seus modos justificão demasiado as suspeitas que acabo de ex­
ternar-lhe.
Ouvindo estas palavras do commandante, julguei prudente
revelar-lhe todas as minhas aventuras sem rodeios. Pedi-lhe que
me ouvisse com paciência, e referi-lhe tim-tim por tim-tim, o que
me tinha acontecido desde que me embarcara no Aventureiro.
As minhas phrases bem concatenadas, e, sobretudo, a força
irresistivel da verdade sem rebuço, que nunca deixa de actuar
sobre os sentimentos de um homem de bem , cedo convencerão o
commandante de que podia confiar-me, e que não tratava com
mentecapto algum, o que colligi da mudança no trato e dos seus
olhares amistosos.
Para dissipar-lhe, porém, até o ultimo vislumbre de alguma
duvida, pedi-lhe que mandasse trazer a minha secretária, cujas
chaves eu tinha na algibeii’a.
— Aqui, cavalheiro, — disse eu, — aqui está um pente, feito
por mim com as aparas da barba do rei de Brobdignak; aqui tem
um outro destinado para pentear as minhas suissas, cujos dentes
inseri em um fragmento de unha da rainha. Isto agora, é uma
collecção de agulhas; eis aqui as mais finas, que têm um pé de
comprimento, eis alli as maiores que medem uma vara. Aqui tem
il
os ferroes das vespas que me assaltárão, e mais um crespo da
cabeça da rainha. Isto é um annel que Sua Magestade se dignou
oíFertar-me, tirando-o do dedo minimo e passando-m’ o ao pescoço
em ar de collar. A cceite-o, Sr. commandante, que eu lh’o brindo
em troca de sua benevolencia. Isto agora é o callo de uma dama
de honor, que eu extirpei-lhe pessoalmente. Tenha a bondade de
- 165 -

reparai’ <|ue níio é una callo como (pialquer outro 5 em tamanho


iguala a uma laranja de umbigo, e em resistência é mais duro que
um chifre de boi. Queira notar, finalmente, que estas minhas
' calças forão confeccionadas com o
couro de um unico camondongo.
% Estas provas devem satisfazê-lo e
levar-lhe ao animo a convicçíío
que falei a verdade, e que, de
modo algum, estou maluco.
Calei-me,
e 0 comman­
dante esten-
deu-meamão,
pedindo-me
desculpa de
haver duvi­
dado da mi­
nha veraci­
dade. Ao
mesmo tempo
devolveu - me
0 annel, que
queria rega­
lar-lhe; mTo
pude persua-
di-lo de que
devia acceitar
este signal de
gratidao, e
apenas consegui que recebesse, depois de muita reluctancia, 0 dente
de um criado de Glumdalklitsch, arrancado por engano por ura
dentista descuidado, e conservado por mim, por sao e limpo. De
comprimento media um pé, e tinha quatro pollegadas de diâmetro.
166
Tanto agradára ao commandante a minha narração singela,
que me aconselhou escrevesse a historia das minhas aventuras e
que a publicasse logo depois da minha volta á patria. A principio
recussei-me, dizendo que por fim de contas só cousas de pouco
interesse teria de narrar; que me faltava pratica, para ser escriptor;
que receiava ser alvo da zombaria, de encontrar incrédulos, e outras
cousas mais, que por fim só disfarçavão o desejo secreto de acceitar
o conselho; ao cabo cedi, como provão as paginas que estás lendo,
oh! caro leitor.
Patenteou-me o commandante a admiração que lhe causava o
tom alto em que eu falava, perguntando-me se as magestades de
Brobdignak erão surdas?
Não, de certo, — respondi eu, — mas o Sr. capitão ha-de
ponderar que, para ser ouvido por algum habitante daquelle paiz
singulai, eu tinha de falar tão alto, como se na Inglaterra quizesse
conversar com algum amigo collocado no alto de uma torre. Dabi
a intensidade da minha voz, acostumado a gritar como um prego-
eiro, costume que me ha-de custar a perder.
Demais, continuei eu, — tenho que dizer-lhe, caro amigo, que
também eu me admirei grandemente da sua voz, quando o ouvi
falar pela primeira vez. Parecia-me estar a ouvir um fraco cochi­
char, posto que percebesse cada syllaba. Da mesma maneira, ao
pisar no navio, estranhei ver-me rodeiado de pessoas tão pequenas,
'1 r i;
comparadas com os gigantes de Brobdignak; julguei ter cabido em
um roda de anãosinhos, e, apezar da situação horrível da qual mal
tinha escapado, não pude abafar uma gargalhada. Não deve levar
a mal este meu procedimento, lembrando-se que estava acostumado
á escala gigantesca de todas as cousas daquelle paiz extraordinário.
Nem a mim mesmo podia contemplar no espelho sem perder-me o
lespeito, poique o meu indivíduo apparecia-me demasiado mesquinho
e rachitico.
— E certo, — respondeu o commandante, — é certo, Sr. Gulliver,
que logo na mesa notei que reparava com muita admiração em
\

— 167 -

todos os objectos, e que a grande custo engulia uma gargalhada


prestes a irromper. Parecia-nie muito singular, e firmára-me sempre
na crença de que padecia da cabeça.
— Nào ha duvida, — retruquei eu, — que a cada momento
tinha que reprimir as risadas. Ainda neste momento sinto cócegas,
quando contemplo todas as suas çousinhas mimosas, os pratinhos,
as faquinhas, os gai’finhos, suas casquinhas de nozes de copos e
taças, uns presuntinhos e assadinhos, dos quaes très ou quatro
poderiao servir de um só bocado.
Continuei a descrever deste modo todos os trastes do comman­
dante, e tâo contagioso foi o meu bom humor, que o meu hospede
acabou por acompanhar-m e nas minhas gargalhadas. Não me
lembrava eu que a rainha tinha tido que mandar fabricar para
mim um serviço especial ; impx’essionado ainda por tudo quanto
tinha observado em Brobdignak, fechava os olhos á minha propria
jxequenhez, como em geral os homens soem fazer aos seus defeitos,
e, de volta entre os meus semelhantes, quasi via em mim um
habitante do paiz dos gigantes.
O commandante, porém, tentou destruii’-me esta illusão.
— O amigo, — disse elle, — o amigo tem, como se diz no
rifão, os olhos maiores do que o estomago. Não acho que tenha
appetite gigantesco, apezar de sua excursão arriscada e de um
jejum prolongado. Olhe que devéras daria cera libras para presen­
ciar 0 seu vôo no bico da aguia e o seu mergulho no mar. Deve
ter sido um espectáculo de arromba!
Riu-se devéras o bom do capitão, e eu fugi de perturbar-lhe a
alegria por uma susceptibilidade intempestiva, contentando-me com
a aífeição e affabilidade que me patenteava.
Vinha o meu amigo de volta de Tong-king para a Inglaterra,
e o navio, no momento em que me recolheu, achava-se em vinte e
quatro gráos de latitude e cento e quarenta e très gráos de longi­
tude, derrotado por um temporal prolongado.
i
— 168 —

Dous dias depois alcançámos a região dos ventos aliseos; nave­


gámos para o sul e arribámos em Nova-Hollanda, tomando depois
o rumo do Cabo da Bôa Esperança, que dobrámos com bom tempo.
Continuámos a nossa derrota em circumstancias favoráveis, e
ao cabo de nove mezes vimos por íim surgir das ondas os rochedos
brancos da minha patria querida.
Tão commovido estava eu que soltei gritos jubilosos; estendi
os braços pai'a a terra natal, e derramei lagrimas copiosas, lagrimas
de alegria sem liin.
Aos 3 de Junho do anno de 1706 largámos o ferro, e o
<1 .1
commandante mandou immediatamente preparar um bote para
desembarcar-me. Agradeci-lhe esta nova attenção, e, estando com­
pletamente baldo de dinheiro, oífereci-lhe deixar em garantia os
meus trastes, até poder enviar-lhe o preço da passagem que

I I marcaria.
Mas o commandante recusou nobremente qualquer retribuição,
dizendo achar-se sufíicientemente indemnizado por minha amavel
companhia.
Não insisti mais; abracei o meu hospede generoso, recebendo
fr I ' delle a promessa de que o mais breve possivel me visitaria eni
lli ' < *
minha casa de Rodriff.
Com cinco scbillins na algibeira, empréstimo de um amigo,
aluguei um cavallo e um guia, parti alegremente para o interior,
em busca do lar da minha familia querida.
Quando alcancei a cidade; quando vi as casas, as ruas, os
homens, o gado, as arvores, julguei devéras que tinha voltado a
Liliput, e muito me custou livrar-me desta illusão.
A cada momento receiava quebrar as pernas ás creaturas que
11 '
formigavão a redor de m im , gritando de susto ás vezes, e
ordenando-lhes que me sahissem do caminho, o que quasi me
valeu uma sova, sem falar nas descomposturas que por todos os
II
lados me passa vão.
Chegado diante da minha casa, nílo dava com a porta*, o
criado teve de indicar-m’ a, e quando entrei encurvei-me profunda­
mente, porque receiava quebrar a cabeça na travessa supeiioi.
Minha bôa mulher, rindo
e chorando, precipitou - se - me
ao encontro, querendo abraçar-
me ; mas eu dobrei-me até á
altura do joelho delia pen­
sando que de outro modo não
me poderia alcançar a bocca.
Minha filhinha, uma
linda menina de oito annos,
ajoelhou-se diante de mim,
para tomar-me a ben­
ção. A principio nem
a v i, e quando notei
a sua presença, alçei-a
para senta-
la na palma
da minha
mão. Mãi
e íilha pen-
sárão um
momento que
tinha enlou­
quecido. E
comtudo só se
devia procurar
a causa do
meu procedi­

mento insolito na convivência prolongada com homens de sessenta


pés de altura. Eu caminhava constantemente de pescoço esticado,
cabeça erguida e olhos pregados no céu. Aos meus compatriotas.
t
— 170 —
« I

á minha familia e criadagem olhava de cima j^ara baixo, como se


fosse eu um gigante e elles minimes pollegares, chegando a dizer
á minha mulher que se tinha tornado avarenta, privando-se a si e
aos filhos do alimento, e que por isto ficára toda encolhida, como
uma ameixa madura.
Taes palavras, os meus ademanes singulares, todo o meu pro­
cedimento extravagante, em breve me grangeárão a reputação de
m aluco, e muito tempo tive de levar, para persuadir a meus con­
cidadãos que estavão enganados.
So depois de ter narrado todas as minhas aventuras e mostrado
todos os objectos trazidos de Brobdignak, rehabilitei-me aos olhos
dos meus semelhantes, que desculparão as minhas tolices á vista
das cousas extraordinárias que me havião acontecido.
Minha mulher, porém, que durante a narração ora tinha
chorado lagrimas amargas, ora soltado risadas gostosas, jurou por
tudo quanto lhe era sagrado, que nunca mais permittiria que eu
puzesse o pé em embarcação alguma. Bastava-lhe de vida solitaria,
e já era chegado o tempo de gozar da. presença do seu marido,
sem estorvos e cuidados.

V
ip:!'

1 ! M
INDICE.

Livro I. — Viag-em a Liliput.


Livro IL — Viagem a Brobdignak.

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