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A Primeira Fase Do Feminismo

Gênero

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O desenvolvimento da história cultural, com a terceira geração dos Annales, e dos estudos

de gênero na segunda metade do século XX proporcionou um novo olhar crítico para a


produção literária de autoria feminina. As mulheres, sujeitos antes invisibilizados pela
literatura e pela crítica tradicional, passaram a ser objeto de novas teorias e críticas
literárias, como é o caso da crítica literária feminista. O desenvolvimento desta e os novos
paradigmas que surgem estão intrinsecamente relacionados ao surgimento da História
das Mulheres como disciplina e aos desdobramentos dos movimentos sociais femininos,
os quais, desde o seu surgimento no século XVIII, se pautavam na igualdade de direitos
básicos entre mulheres e homens, como o direito ao voto (participação e representação
políticas), à educação e aos mesmos cargos e salários É verdade que essas demandas, tão
antigas, ainda não foram atendidas em pleno século XXI, mas também é fato que os
movimentos feministas se multiplicaram e expandiram as pautas, agregando fatores como
raça, etnia, classe socioeconômica, nacionalidade, cultura, sexualidade etc. Esses
movimentos observaram as peculiaridades de cada grupo ou indivíduo, e questionaram a
suposta unidade de uma identidade feminina, comum a alguns movimentos feministas
das Primeira e Segunda Ondas, cujas pautas correspondiam, em termos gerais, às
necessidades das mulheres caucasianas, heterossexuais e de classe média ou baixa, e a
um modelo de mulher, tão caro ao sistema patriarcal.

A pesquisadora Cecil Janine Albert Zinani (2015, p. 121) aponta também, baseada na
leitura de Woolf, que muitas mulheres só possuíam o espaço da “mesa da cozinha, depois
de todo o serviço realizado, filhos e marido atendidos”. Neste modelo social em que as
mulheres eram privadas do acesso à educação formal, das condições materiais para a
produção intelectual e do acesso à publicação, suas produções não apenas eram
invisibilizadas, como inviabilizadas.
O que observamos com tudo isso é um apagamento das mulheres nas histórias da
literatura, o que também tem relação estreita, ou até é consequência, com o apagamento
das mulheres na História Ainda sobre o tema dos discursos que representam as mulheres,
Perrot (2005, p. 22) assinala que “Das mulheres, muito se fala. Sem parar, de maneira
obsessiva. Para dizer o que elas são ou o que elas deveriam fazer”. As mulheres passam
a ser conhecidas por meio do imaginário e dos discursos masculinos. A literatura é,
portanto, um campo fértil para a criação e reprodução desses discursos, imagens e
modelos femininos.
O texto atribuído ao escritor é exemplar para pensarmos qual identidade feminina, que
modelo de mulher se constrói e se consolida socialmente: uma mulher com características
e sentimentos opostos aos masculinos – delicada, afetiva, sonhadora e virtuosa. Apesar
de supostamente ter sido produzido no século XIX, tal construção imaginária e social
feminina é milenar. Fato é que a representação acerca do sujeito feminino vai determinar
o seu lugar socialmente – no espaço privado, longe da vida pública. A condição social
feminina é inferior à masculina: o homem é a razão, a mulher, o coração. A ela estão
atreladas as atividades do cuidar – casa, marido e filhos – e características como o
sentimentalismo e a virtuosidade – sendo esta associada à retidão moral. Tendo em vista
essa inferioridade “natural” feminina, qualquer tipo de atividade ou produção intelectual
será desmotivada, desvalorizada e/ou interpretada por esse viés do feminino: uma
produção da emoção, o que impossibilita a sua participação na esfera da razão, do mundo
público e masculino.
A teoria da diferença sexual e da inferioridade feminina, que justificou e ainda justifica
a
opressão da sociedade patriarcal, teve como consequência direta o afastamento da mulher
do âmbito público, da produção cultural formal, da política, e, como já mencionado, do
desprestígio ao que foi e é produzido por elas. Com isso, a ausência, a invisibilidade ou
a presença tímida das mulheres na história da literatura, reflete-se até os dias atuais na
escassez de nomes femininos em grandes premiações ou mesmo na crítica literária.
Assim como Lauren, houve um grande número de mulheres que utilizou pseudônimo
masculino como forma de serem aceitas e driblar a crítica, que, além de ignorar a
produção feminina, também emitia duras e preconceituosas críticas sobre as mulheres
escritoras.
A crítica geralmente reduzia a produção feminina às “características tipicamente
femininas”, o oposto do masculino (DUARTE, 1997). Esse tipo de crítica produzida
pelos homens, que atribuía estatuto inferior à escrita feminina, [...] costumava limitar a
escritora numa mesma unidade e identidade que a reduziria a um pequeno denominador
comum: o feminino, sem se dar conta da redução biologicista ou da construção histórico-
social de tal expressão, praticamente anulando o caráter individual de cada uma (o que
não ocorreu, em nenhum momento, com a crítica voltada à produção de autoria
masculina). Quando a intenção era valorizar o trabalho de uma escritora, associava o seu
poema a alguma característica do masculino: forte, duro, viril, e a poetisa passava a ser
chamada de poeta (DUARTE, 1997, p. 91).
Entretanto, tais mudanças proporcionaram também o surgimento e desenvolvimento de
uma nova crítica literária, principalmente na segunda metade do século XX, uma crítica
feita por mulheres e sobre mulheres, baseada nas especificidades da produção literária
feminina, analisando a produção das mulheres segundo seu contexto de produção, sua
cultura particular, e levando em consideração sua história, etnia, classe social, cor,
formação etc. Afinal as mulheres, em sua maioria, não escreviam como os homens por
distintas razões históricas, culturais, sociais e políticas, da mesma forma que não há
características específicas do que viria a ser uma suposta literatura feminina. Sobre a
suposta “diferença” da escrita das mulheres em relação à escrita dos homens com base na
“diferença sexual”, Virginia Woolf, em Um teto todo seu, já considerava que: Seria mil
vezes uma pena se as mulheres escrevessem como os homens, ou vivessem como eles,
ou se parecessem com eles, pois se dois sexos é bastante inadequado, considerando a
vastidão e variedade do mundo, como faríamos com apenas um? A educação não deveria
aflorar e fortalecer as diferenças em vez das similaridades? (WOOLF, 2014, p. 126).
A escritora, além da problematização em relação à inadequação de uma crítica literária
que elege como modelo a literatura produzida por homens, opondo este à literatura de
autoria feminina, também faz uma crítica à concepção biológica binarista, sendo esta
redutora, e de como ela é transposta para a crítica literária. É clara a existência de
diferenças entre ambas as produções, masculinas e femininas, diferenças estas existentes
também entre a literatura produzida por homens de contextos históricos distintos, assim
como por mulheres em diferentes contextos. O contraste reside, então, nas experiências
masculina e feminina – considerando experiência o contexto histórico, social, político e
cultural em que as mulheres viveram, que é diferente do masculino8, e levando em
consideração o seu afastamento do mundo público, o difícil acesso à educação e à cultura
formal, assim como os entraves para a produção literária.
Na segunda metade do século XX, sob forte influência do desenvolvimento dos estudos
de gênero, começou a se solidificar uma crítica literária voltada ao estudo especificamente
de obras femininas em relação aos contextos específicos de produção. A crítica norte-
americana Elaine Showalter, em um estudo intitulado A crítica feminista no território
selvagem (1994), em que cunhou essa crítica feminista de ginocrítica, afirma que uma
crítica produzida com base em um arcabouço feminino, desvinculando a produção
literária feminina da história literária masculina (padrões estéticos) e observando as
especificidades de cada produção (cultura feminina), será capaz de compreender a
literatura de autoria feminina: Uma teoria baseada em um modelo da cultura da mulher
pode proporcionar, acredito eu, uma maneira de falar sobre a especificidade e a diferença
dos escritos femininos mais completa e satisfatória que as teorias baseadas na biologia,
na lingüística ou na psicanálise.
[...] Uma teoria cultural reconhece a existência de importantes diferenças entre as
mulheres como escritoras: classe, raça, nacionalidade e história são determinantes
literários tão significativos quanto gênero (SHOWALTER, 1994, p. 44).
Para Showalter, a crítica literária que relaciona a escrita da mulher e a cultura da mulher,
ou seja, todos os elementos que estão envolvidos no construto do sujeito, e que, segundo
ela, “intervêm” no processo de criação, desde temas a estilos, gêneros e expressão,
conseguiria melhor compreender a produção literária feminina, com todas as suas
peculiaridades e, desta forma, revisar a sua importância dentro da história da literatura.
Faz-se necessário a revisão do cânone, de pensar o lugar de algumas vozes excluídas, das
vozes “dissonantes”.

A primeira fase do feminismo empreende uma crítica contundente em relação à noção de


universalidade do sujeito e aos parâmetros de verdade e subjetividade, afirmando que
tudo isso era, na realidade, uma construção masculina. O ato fundador da crítica feminista
foi uma releitura de obras que fazem parte da tradição literária ocidental, quase em sua
totalidade escrita por homens. Tal crítica se concentrava nos modos de representação das
personagens femininas e continha um caráter de denúncia, afirmando que elas eram
muitas vezes representadas como seres passivos, sem qualquer influência no desenrolar
da ação de romances centrados na experiência masculina, tais como, por exemplo, o Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes. Na opinião de Rita Felski essas personagens podiam
até ser complexas, mas nunca teriam os destinos morais dos personagens masculinos,
uma vez que “as mulheres da ficção existem como o reflexo da lua, brilhando na projeção
da luz moral do homem” (FELSKI, 2003, p. 17). Uma das obras na qual aparece a
preocupação em analisar estereótipos criados por autores masculinos é Sexual Politics,
de Kate Millett, publicada em 1970. Em tal obra, que é a precursora do feminismo anglo
americano, Millett analisa textos de D. H Lawrence, Henry Miller, Norman Mailer e Jean
Genet considerando as relações de poder entre os sexos e denunciando o machismo nas
representações do feminino.
Judith Fetterley, em seu livro The Resisting Reader, de 1977, afirma que “ler o cânone
do que é considerado literatura clássica americana é identificar-se com o masculino. A
leitora feminina é forçada a identificar-se contra si mesma” (FETTERLEY apud FELSKI,
2003, p. 33). Para Fetterley, o fato de a literatura ser predominantemente de autoria
masculina, e de abordar temas considerados masculinos, tais como as guerras, as grandes
navegações e o heroísmo, teria originado um problema de identidade para a mulher
leitora, que não conseguia se identificar com esses temas pelo fato de eles não fazerem
parte da experiência feminina. Ao afirmar isso, a autora propõe que a linguagem
“masculina” é a linguagem da exclusão e da opressão, uma vez que as mulheres seriam
levadas a ler como homens, adotando um ponto de vista próprio deles.
O caráter de resistência da leitura feminista foi bastante criticado por vários teóricos,
entre eles Harold Bloom e John Ellis, que viam as feministas como leitoras que adotavam
um ponto de vista muito pessoal ao interpretar e analisar um texto, desmerecendo com
isso a grandeza das obras literárias. Ellis, por exemplo, argumenta que investigar
estereótipos sexuais nas obras de escritores masculinos não produz insights relevantes,
afirmando que a crítica feminista não consegue oferecer uma contribuição razoável para
a crítica literária porque uma perspectiva que leva em consideração as configurações de
raça, gênero e classe torna muito restrito o escopo de análise textual. (ELLIS, apud
FELSKI, 2003, p. 10). Entretanto, para Felski a argumentação de Ellis não procede, uma
vez que uma análise de cunho feminista não quer simplesmente acusar os escritores
masculinos de machismo e/ou misoginia, e nem transformar os textos literários em meros
reflexos de vivências de gênero, mas sim enfatizar a importância das mulheres nas obras
literárias e no curso da história. (FELSKI, 2003, p. 8).
Como Felski, acreditamos que esse deve ser o objetivo de uma análise feminista, que não
está somente interessada em levantar bandeiras a respeito da igualdade e/ou diferença
sexual, mas em mostrar como as mulheres são representadas na literatura e como tal
representação se encontra relacionada a questões históricas, sociais e culturais.
Com o passar do tempo, parte da crítica feminista mudou de foco, propondo uma extensa
investigação de obras escritas por escritoras mulheres. O poeta inglês Robert Southey fez
a seguinte afirmação sobre a condição da mulher escritora em um contexto literário
definido por homens: “A literatura não é assunto de mulheres, e não pode ser”
(SOUTHEY, apud GILBERT & GUBAR, 1979, p. 8). Isso ocorreu em grande parte pelo
fato de que, na sociedade patriarcal, operou-se uma divisão na qual o feminino era visto
como algo ligado à natureza, à emoção e à esfera privada, e o masculino à esfera pública
e às realizações da ciência, da arte e da tecnologia. Como consequência, o feminino
existiria além da cultura, estando à margem da história e ausente do pensamento político
e intelectual. Na literatura, tal divisão se manifestou em uma dicotomia entre o masculino
criador, sujeito de representação, e o feminino criado, objeto de tal representação. Desta
forma, o fazer literário não era feito para as mulheres, que acabaram sendo amplamente
“escritas” na literatura, tornando-se, às vezes, personagens marcantes, mas não autoras.
Elaine Showalter, reconhecendo que as leituras da primeira fase do feminismo não tinham
um objeto próprio, pois se concentravam predominantemente na análise dos estereótipos
sexuais presentes nas obras de autores masculinos, preocupava-se com a sistematização
dos estudos feministas, propondo que, ao invés de se debruçar sobre toda a literatura, era
mais proveitoso se debruçar sobre a literatura escrita por mulheres. Showalter apresenta
uma preocupação acadêmica de estabelecer uma forma de leitura que tivesse rigor crítico.
Tal vertente da crítica feminista foi denominada ginocrítica, devido a sua preocupação
em analisar e interpretar obras escritas por mulheres. Para a pensadora, a ginocrítica
oferece muitas oportunidades teóricas, pois “ver os escritos femininos como assunto
principal força-nos a fazer a transição súbita para um novo ponto de vantagem conceptual
e a redefinir a natureza do problema teórico com o qual nos deparamos” (SHOWALTER,
1994, p. 29).
Showalter, por exemplo, não acredita que necessariamente exista uma linguagem
diferente nos escritos femininos. Para ela, o que existe é uma cultura da mulher, isto é:
“uma teoria que incorpora ideias a respeito do corpo, da linguagem e da psique da mulher,
mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem”
(SHOWALTER, 1994, p. 44).
O conceito de gênero está presente em grande parte da atual produção teórica feminista.
O gênero é definido como “toda e qualquer construção social, simbólica, culturalmente
relativa, da masculinidade e da feminilidade. Ele define-se em oposição ao sexo, que se
refere à identidade biológica dos indivíduos” (SCOTT, 1990, p. 5). Desta maneira, gênero
não é sexo: ele é uma categoria que se impõe sobre o corpo sexuado, aquilo que faz do
ser biológico um sujeito social, seja ele homem, mulher, heterossexual ou homossexual,
branco ou negro.
Segundo Lauretis, o gênero é também a representação de uma relação, a relação de
pertencer a uma classe. A noção de gênero constrói uma relação entre uma pessoa e outras
pessoas previamente constituídas como classe, não se referindo a um indivíduo isolado
e sim a uma relação social. E as representações do gênero, na visão da autora, são
construções que se dão nas mais diversas instâncias sociais por meio da literatura, do
cinema e das artes em geral. (LAURETIS, 1994, p. 209-211).
Na década de 1990, conforme já dito, torna-se mais frequente o uso do termo gênero
como categoria de análise. Ao considerarmos tal categoria na análise de um texto
ficcional estamos pressupondo que o gênero de autoria influencia as representações de
mundo contidas nesse texto, de forma que um autor não poderia produzir uma obra
totalmente livre de qualquer significado BELLIN, Greicy Pinto. A crítica literária
feminista e os estudos de gênero: um passeio pelo território selvagem. Revista FronteiraZ,
São Paulo, n. 7, dezembro de 2011. 8
relacionado ao gênero. Felski acredita que a literatura é sobre gênero naturalmente, pois
as obras sempre retrataram as vidas de homens e mulheres. E ao contrário do que muitos
podem pensar a literatura não apenas reforça a existência de uma opressão feminina: ela
traz ideias, mitos e símbolos relativos ao gênero. A introdução do gênero como categoria
de análise no debate acadêmico foi possível graças ao impacto ideológico do feminismo,
que de acordo com Felski, trouxe uma nova forma de ler e interpretar a literatura
Uma das primeiras coisas a se destacar sobre a crítica literária feminista é que ela não
configura um corpo homogêneo de conceitos e estratégias de leitura, mas sim um amplo
conjunto de variadas proposições temáticas, ideológicas e metodológicas a serem
aplicadas ao estudo da Literatura. Outra questão importante, que não se pode perder de
vista, é que um dos postulados básicos das diferentes vertentes da crítica literária
feminista é a impossibilidade de se pensar o texto literário desvinculado do seu contexto
de leitura e produção, bem como do contexto onde se realiza a sua leitura. A crítica
literária feminista se faz interdisciplinar por definição, uma vez que ela não admite a
leitura do texto em um modo desvinculado de sua exterioridade e de sua historicidade.
Um dos principais livros a popularizar a crítica feminista dos costumes, no contexto
estadunidense, foi The feminine mystique, de Betty Friedan (1963). O livro, que se
propunha a entender as origens da onda de frustração pessoal que assolava a geração de
jovens mulheres adultas da década de 1950, rapidamente se tornou um best-seller
instantâneo que inspirou toda uma geração na luta pelos direitos das mulheres. Ainda que
a matriz dos argumentos de Friedan (1963) estivesse assentada nas preocupações das
mulheres brancas de classe média e média-alta, o feminismo da segunda onda
rapidamente estabeleceu alianças e coalizões com os protestos contra a guerra do Vietnã
e com a luta pelos direitos civis, engrossando as discussões em torno das relações étnico-
raciais nos Estados Unidos. No eixo principal das reivindicações, encontrava-se a luta
contra o patriarcado e a resistência ao masculinismo, a crítica às discriminações no campo
civil e busca pela igualdade de oportunidades (principalmente no campo econômico e no
acesso à educação formal).
Emerge também uma primeira crítica à representação misógina das mulheres nas obras
canônicas. Inicia-se, no campo dos estudos literários, a adição de uma perspectiva de
análise ideológica e política quanto à representação das mulheres nos textos canônicos
Não seria exagero mencionar Sexual politics, de Kate Millet (1969), como uma das obras
fundacionais da crítica literária feminista
Elaine Showalter (1978) ocupa um papel central na crítica feminista, que até então estava
bastante centrada nas representações da mulher em textos literários, mas pouca atenção
dava ao papel da mulher como autora, produtora de capital simbólico e sujeito – não
apenas mero objeto – da criação artística e literária. Em seu estudo sobre as escritoras
inglesas que publicaram entre 1844 e 1965, intitulado A literature of their own e
publicado em 1978, Showalter formula a ideia de três fases da tradição literária de autoria
de mulheres: a) a fase feminina (1844-1880), na qual as escritoras imitam os modelos
literários vigentes – colocados em circulação pelos escritores homens –, reproduzindo os
papéis sociais de gênero; b) a fase feminista (1880-1920), que assinala um período de
protesto no qual as mulheres rejeitam as normas vigentes e defendem reformas sociais e
direitos iguais em seus projetos literários (tais como o sufrágio universal, o direito ao
divórcio e a paridade salarial); e c) a fase da mulher (1920-1965), período no qual surge
uma literatura fortemente intimista, caracterizada como “viagem para dentro”, quando as
escritoras passam a escrever sobre seus processos de autodescoberta.
O que as mulheres estariam escrevendo sobre elas mesmas? Essa proposta, que a autora
batiza como ginocrítica (isto é, acrítica literária feita por mulheres, que se ocupam da
representação literária de mulheres, em textos escritos por mulheres) é desenvolvida ao
longo de um ensaio que é hoje um clássico da crítica literária feminina: Feminist criticism
in the wild ness, publicado pela primeira vez na Critical inquiry, em 1981.
Explorando o frame teórico desenvolvido por Harold Bloom (1977) em The anxiety of
influence, e estendendo suas consequências para as autoras vitorianas, Gilbert e Gubar
(1979) chegam a uma importante formulação: a da angústia da autoria. Dado que as
mulheres escritoras não dispõem de uma tradição à qual se filiar, nem de uma matriz de
modelos literários femininos a serem perpetuados, elas se veem obrigadas a reproduzir
as formas literárias vigentes. Todavia, elas o fazem a partir de uma de escrita
palimpséstica que produz um texto de dupla voz. Por trás de esquemas narrativos bastante
tradicionais e previsíveis do ponto de vista das formas e dos enredos, subtextos
subversivos são inseridos, de maneira a materializar o ponto de vista das mulheres
escritoras no plano dos conteúdos, mas de uma maneira travestida em que as formas
literárias se apresentam de modo convencional.
The madwoman in the attic tornou-se um marco da crítica literária feminista e uma das
inspirações para importantes trabalhos no campo da arqueologia literária feminista (termo
utilizado para se referir ao trabalho de resgate de obras literárias de autoria feminina que
foram relegadas às margens do cânone justamente em função do gênero de suas autoras)
Trazer a literatura para a realidade em que vivemos, mostrar aos nossos alunos a importância da reflexão crítica como porta de acesso
e discernimento entre velhos e novos conhecimentos a partir dos quais podemos forjar realidades possíveis que venham ao encontro
do nosso desejo de identidades humanas, plenas e soberanas, no contexto de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária, é a
demanda que se impõe se quisermos ser os educadores e intelectuais comprometidos com o nosso tempo (SCHMIDT, 2006, p. 110).
Entre as preocupações da crítica literária feminista, vale retomar três pontos
fundamentais: a) preocupação com a história literária (em especial aquela escrita sob o
ponto de vista dos homens), o apagamento das mulheres autoras dessa história literária,
e a manutenção de uma mitologia literária misógina (que toma as mulheres
exclusivamente como objeto da representação); b) o lugar da leitora e da leitura nos
estudos literários, e c) a ginocrítica (mulheres que estudam textos sobre mulheres, escritos
por mulheres). Se é verdade que as mulheres, como leitoras, releem a tradição literária
sob novas lentes, as mulheres, como escritoras, reescrevem, subvertem e reelaboram a
tradição literária.
Para Rita Terezinha Schmidt, a crítica feminista inscreve no campo dos estudos literários
uma questão muito relevante: o questionamento da relação saber/poder ancorada no
paradigma patriarcal da cultura letrada. Ela possibilita então uma nova política, centrando
seus esforços na reconstrução de subjetividades e identidades com o poder de nomear e
dizer o que foi silenciado, o que poderá vir a balizar outros quadros de referenciais
teóricos, de leitura e de interpretação, bem como novas compreensões institucionais do
sentido e da função social da literatura, visto que o literário inscreve a potencialidade da
arte que é a de interpelar, a partir do registro individual e pessoal, a experiência de uma
coletividade. Mais especificamente, é “um investimento de caráter ético, com vistas à
construção de um pensamento diferencial que possa deslocar o universalismo abstrato
construído pelo colonialismo intelectual engendrado na perspectiva de uma história
única” (SCHMIDT, 2017, p. 32).
A crítica literária feminista populariza-se no início dos anos 1960, no exterior e no Brasil,
com base em publicações críticas que se destinam ao estudo específico de obras de autoria
feminina. Com o representativo aumento da literatura de autoria feminina no panorama
literário, torna-se relevante reavaliar e repensar as concepções literárias e até mesmo o
cânone literário brasileiro, bem como lançar um olhar mais cuidadoso em relação à
representação da mulher no referido contexto. Nesse sentido, a crítica feminista passa a
ter um papel extremamente relevante na representação e na ampliação de seu objeto de
estudo.
Fazendo-se uma retomada histórica, é possível perceber que os estudos feministas
começam a se desenvolver concomitantemente às lutas pelos direitos civis, na
efervescência política e cultural dos anos 1960 e 1970, reforçando, assim, a relação entre
pesquisa e prática. Com relação à literatura, o feminismo propiciou o surgimento da
crítica literária feminista, que investiga como a mulher é representada literariamente,
com o intuito de questionar os padrões patriarcais e/ou identificar a construção de
personagens femininas a partir da consciência de sua construção cultural. O caráter
interdisciplinar torna possível uma leitura do texto que abarca a sua exterioridade e
historicidade.
Essa atitude de rotular textos como inferiores não é despretensiosa, pois se o mundo é
regido pelo masculino, consequentemente a cultura será marcada pela dominação dos
que estão às margens desse domínio. Vale mencionar que a atividade criativa da mulher
era tida como resultado de seu deslocamento em relação às expectativas culturais de
gênero, como, por exemplo, a sublimação do instinto e função maternal. A mulher que
rompia a ordem simbólica restritiva masculina e escrevia era considerada uma mente
perturbada; escrever era um capricho que deveria ser convenientemente erradicado. De
acordo com Schmidt (2017), a mulher definida simbolicamente pela tradição patriarcal
como tábula rasa, falta, negação ou ausência, sofreu imensuráveis conflitos inerentes à
ansiedade que acompanhou a trajetória de escritora: “na gradativa apropriação de uma
atividade investida com as ideias do sublime e do transcendente, ideias antitéticas em
relação à crença sobre as limitações do intelecto e da sensibilidade estética feminina”
(SCHMIDT, 2018, p. 59).
A experiência feminina vista como menos importante no espaço cultural e literário
destinava às mulheres o papel de musas ou criaturas no cânone constituído pelos homens
das letras, sendo elas excluídas do processo de criação, tendo que lutar contra as
incertezas e inseguranças quanto ao lugar de escritoras. Desafiando o processo de
socialização e transgredindo os padrões culturais, essas escritoras deixaram como legado
uma tradição de cultura feminina, que apesar de construída dentro da cultura dominante,
coloca em tensão um espaço de aproximação e deslocamento das representações
configuradas pela ideologia patriarcal
[...] ver os escritos femininos como assunto principal força-nos a fazer a transição súbita
para um novo ponto de vantagem conceptual e a redefinir a natureza do problema com o
qual deparamos. Não é mais um dilema ideológico de reconciliar pluralismos
revisionistas, mas a questão essencial da diferença. Como podemos considerar as
mulheres como um grupo literário distinto? Qual a diferença nos escritos das mulheres?
(SHOWALTER, 1994, p. 29-30).
Para Beauvoir (2008) a sociedade sempre foi masculina e o poder político sempre se
manteve nas mãos dos homens. A autora propagou, por meio de seus estudos sobre a
identidade feminina no mundo, a constatação do “mito da mulher”, como pilar ideológico
do patriarcado e do cânone literário. Segundo a autora, as mulheres são representadas na
literatura como um arquétipo definido e, portanto, são atribuídas a elas características
“femininas”, ou seja, personagens passivas, instáveis, histéricas, submissas, irracionais
entre tantos outros atributos.
Surgem vários questionamentos relacionados aos papeis da mulher, seja ela escritora ou
leitora. Quanto a estes diferentes papeis desempenhados pelas mulheres Beauvoir (2008)
destaca que na literatura às personagens femininas são atribuídas características como
musa, fonte de inspiração, “coisa” da conquista, desejada e dona de magias pertencentes
à sedução dos homens.
As relações entre feminino x masculino e privado x público são ditadas pelo cânone
literário, que por sua vez sinalizavam a literatura de mulheres como um valor estético de
menor valor comparado às produções dos homens. Além disso, considera-se que as
produções literárias de mulheres relatavam vivências pessoais, característica que as
levavam à aproximação da autobiografia, isto é, relato de sua vida particular. Essas
características provindas da literatura de mulheres gerava um prejulgamento, uma vez
que seus textos remetiam às questões domésticas e íntimas, não estabelecendo relações
diretas com assuntos políticos, históricos ou econômicos. Em nossa cultura homens e
mulheres são, por natureza, colocados diante de experiências diferentes desde infância,
o que nos permite deduzir que existem diferentes olhares para a construção do mundo
masculino e feminino.
Hall (2002) ainda ressalta que “Aquilo que começou como um movimento dirigido à
contestação da posição social das mulheres expandiu-se para incluir a formação das
identidades sexuais e de gênero” (HALL, 2002, p. 46). Deste modo, o movimento
feminista contribui de forma efetiva para uma nova perspectiva sobre a ideia de como
homens e mulheres fazem parte de uma mesma identidade.
Os estudos de gênero apontam que, em geral, a literatura escrita sob a ótica feminina é
resultado de um processo de recuperação de uma voz silenciada na história, envolvendo
a conquista tanto do espaço da escritura, quanto da construção da identidade.
Nessa perspectiva de análise, é fundamental lembrar que a conquista da escritura é um
passo decisivo no processo de emancipação das mulheres. Como apontam Duby e Perrot,
a mulher sempre teve voz, no entanto, não tinha acesso à única linguagem que realmente
contaria para que sua voz fosse ouvida na sociedade – a linguagem escrita (1994).4 Como
se observa em diferentes momentos da história da humanidade, aquele que não escreve
não in@ ui, não transforma e não é ouvido, restando-lhe apenas a obediência

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.


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