COPYRIGHT © 2025 Ella Ares
Capa: Sarom Editorial
Revisão: Deborah A. Ratton
Diagramação: JV Ratton
Esta obra foi revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa, mas contém marcas próprias da
oralidade em respeito ao contexto retratado.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de
qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico,
inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso
da internet, sem permissão expressa da autora (Lei 9.610 de
19/02/1998).
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência. Nenhum dos fatos narrados e
personagens citados são reais.
E, até hoje, eu acredito que, na maior parte do tempo, o amor é
uma questão de escolhas. É uma questão de tirar os venenos e as
adagas da frente e criar o seu próprio final feliz.
Meredith Grey
Para Maria de Fátima, uma leitora amiga, que sempre se fez
presente na minha vida e que me trouxe luz e direção no momento
em que eu mais precisava. Saiba que serei eternamente grata por
esse ato lindo de amor e genuíno. Sei que o seu desejo era que a
minha próxima história fosse de um turco, mas cá te dedico um
médico; assim como esses que salvam vidas, você me salvou no
momento certo. Obrigada!
A segunda menção é um cumprimento de uma promessa que fiz,
falei que quando escrevesse esse livro, seria exclusivamente para o
irmão de uma querida leitora. Mari, aqueles que amamos nunca
morrem dentro de nós. Aqui eternizo em palavras o ‘’felizes para
sempre’’ da pessoa que você amava e partiu cedo demais. Ao menos
aqui, nesse universo e dentro dos parágrafos, tudo terminou bem.
O amor nunca morre. O amor nunca acaba.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Um momento pode mudar sua vida e te levar para viver um
capítulo extraordinário. No meu caso, tudo começou no minuto em
que passei no programa de residência médica em pediatria, e foi o
pontapé inicial para que meus dias fossem tomados por emoções,
uma atrás da outra. Primeiro, achei que não daria conta e que o
melhor seria desistir, logo depois me convenci de que, se fizesse
isso, seria uma idiotice. Segundo, fui assolada por milhares de
sentimentos quando tive a oportunidade de prestar atendimento a
uma criança que chegou com um problema de coração. E terceiro,
mas não menos importante, coloquei na cabeça que nada poderia
me parar.
Não mesmo…
Eu sempre fui uma dessas pessoas que sente medo de tudo,
de sair na rua, de ter amizades, até mesmo de receber ligações de
números desconhecidos no celular, e, quando chegou a hora de dar
adeus a esses anseios que me impediam de ser uma pessoa normal,
sofri como se estivesse dentro de um inferno de fogo. No entanto,
foi essencial, pois só assim consegui entrar na faculdade de
medicina, levar a sério os estudos e, por fim, conseguir um trabalho
que iria me ajudar muito no futuro.
Só que houve um motivo para um dia ter sido assim, fechada
e reclusa. Ninguém era desse jeito sem mais nem menos e, no meu
caso, fora porque nasci órfã. Meus primeiros quatro anos de vida
passei dentro de um orfanato e, pelo que lembro, foram os mais
intensos e difíceis. Isso me fez desenvolver alguns medos, tanto que
só vim começar a falar uma frase completa sem gaguejar aos dez
anos de idade, quando fui adotada e meus pais me colocaram para
fazer tratamento psicológico, além de acompanhamento com
fonoaudiólogo, entre outras coisas essenciais.
É, essa era uma outra parte da minha vida que a maioria não
conhecia e sempre preferimos manter em segredo. Meus pais eram
um casal de médicos, minha mãe adotiva fora por anos uma
cardiologista, e o meu pai, um pediatra renomado. Os dois foram os
maiores incentivadores para que eu seguisse os passos na medicina.
E, claro, também fui por vontade própria e decidi por qual caminho
seguiria.
Talvez por ter crescido ao redor de médicos, vendo como
trabalhavam, compartilhavam experiências, esse desejo de me
tornar uma nasceu em mim como uma flor pequena, que foi
florescendo aos poucos e tomou grandes proporções.
— Vamos precisar refazer os exames de sangue, tudo bem?
Estava em um atendimento ambulatorial com uma criança que
chegou apresentando sintomas de uma virose, náusea, tontura, e
logo entrei com o procedimento padrão.
— Tia, está doendo…
Estendi uma mão para tocar na cabeça do menino.
— Sei que sim, por isso vamos fazer esses exames para saber
a raiz do problema — expliquei. — Assim como entrar com uma
medicação que vai te ajudar bastante, viu?
— Você jura?
— Com certeza, garotinho. — Fiz um sinal da cruz com os
dedos. — Eu vou, acompanhada da enfermeira, colocar um soro no
seu bracinho, tudo bem? Durante o processo, vai ficar bem
deitadinho na cama com a sua mamãe, que não vai te deixar.
Ele ficou me olhando receoso, a mãe, que estava perto,
segurou na mão dele.
— Não vai doer nada, viu? Será uma picadinha de nada. — Dei
um sorriso de lado.
— Promete?
— Prometo, até porque depois disso estaremos a um passo de
te curar, o que acha?
— Eu quero ficar bom… Quero voltar a jogar bola com meus
amigos. — Suspirou.
— Isso vai acontecer bem mais rápido do que imagina. —
Tentei passar o máximo de confiança e segurança ao menino. —
Pode confiar em mim, campeão.
— Confio, doutora.
Saí da sala após uma sequência de atendimentos na
companhia da médica que estava comigo supervisionando. Ela me
auxiliava e me dava chance de conduzir algumas coisas, dependendo
do caso e da necessidade. Como naquela manhã foram casos
simples, tudo correu dentro dos conformes e consegui tirar de letra.
— Está indo muito bem, como sempre — elogiou, enquanto
seguíamos para a cantina do hospital.
— Obrigada, doutora. Tem sido uma experiência única
trabalhar aqui; cada vez mais, sinto que escolhi a profissão certa.
— Isso é bom, já vi outros no seu lugar perdidinhos,
despreparados, sabe? Mas a senhorita sabe o que precisa fazer, o
que é excepcional, e tudo de que precisamos aqui.
Abri um sorriso de lado.
— Suas orientações têm sido preciosas demais ao longo
desses dois anos aqui.
— Esse é o meu papel, ensinar e instruir no caminho certo.
Grace teve que mudar o percurso no caminho e se despediu
com um sorriso. Ela era clínica geral e acompanhava nossa turma no
programa. Durante os últimos anos, aprendi muito ao seu lado. Sua
delicadeza e paciência fizeram toda a diferença no meu processo de
evolução.
Mordi a língua para não dar um gritinho quando senti uma
cutucada na barriga. Se estivéssemos em outro lugar, eu teria
rodado a mão na cara do meu melhor amigo.
— Liam, seu… — Cruzei os braços, e parei no meio do
corredor. — Tem que parar de chegar assim do nada e com essas
brincadeiras sem graça! — Fiz careta.
— É que você estava com cara de paisagem, pensei que um
susto iria te trazer de volta à realidade. — Gargalhou baixo. — E aí,
como foram os atendimentos?
— Correu tudo bem, só uns casos de virose, muitos até, eu
diria.
— Ah, é o que mais acontece nesta época do ano. — Deu de
ombros. — Estava indo comer alguma coisa?
— Isso, tenho um tempinho livre antes de fazer as visitas da
tarde. — Sorrio.
— Então vamos juntos, estou com a barriga roncando de
fome.
— Claro, devo admitir que também estou nesse estado, com
as tripas fazendo barulho.
Gargalhamos juntos e fomos caminhando.
Liam se tornou meu melhor amigo no tempo da faculdade, e
me acompanhou junto no programa de residência, apesar de ter
seguido para a cardiologia. Era aquele tipo de pessoa que contagia o
ambiente com suas brincadeiras. As dele às vezes soavam como
chatas, mas no final das contas serviam muito para descontrair e
fazer dar risada. No começo, achei um tanto estranho seu jeito de
chegar chegando com tudo, abraços apertados, uma melação que
só, mas o tempo foi me fazendo entender que isso fazia parte da
sua personalidade, o que me fez passar a aceitar.
Era importante que ele não fosse o único amigo ali, em dois
anos fiz mais amizades do que posso contar nos dedos, e algumas
levaria para a vida inteira.
— Ei, estão indo para onde?
Fomos parados no meio do caminho por Mia, a loira de óculos
que fazia parte do nosso time de amizades, fechando o trio.
— Em busca de algo para comer, quer vir junto?
Liam logo foi piscando o olho para ela e soltando um beijo no
ar, quem via a interação dos dois jurava que eram namorados, mas
nem de longe era isso.
— Ah, sendo assim vou também. — Deu de ombros. — Mas
não vou pagar nada.
— E quando é que você paga mesmo? A conta sempre sobra
para mim.
— Problema seu, quem mandou ser o homem do trio? Meio
que é obrigado a isso.
Fiquei calada ouvindo a troca de farpas entre os dois.
— Ei, é melhor irmos logo, aqui não é lugar para conversinhas
assim — sugeri.
Os dois se fuzilaram pelo olhar, e logo fomos embora dali.
Mais um plantão vencido com sucesso, fiz o trajeto até o
estacionamento de cabeça baixa. No fone tocava Like A Prayer, da
Madonna, e estava tão distraída que nem percebi o minuto em que
tropecei em uma pedrinha no chão, batendo de frente com uma
geladeira Electrolux.
Não era bem uma, mas pela altura… Meu Deus.
Senti só a mão tocar meu braço, segurando-me, e nossos
olhares se encontraram. Era a primeira vez, em anos trabalhando
naquele hospital, que via aquele loiro de cabelos castanho-claros e
olhos azuis; era a mesma coisa de estar vendo o próprio Capitão
América na minha frente, só que de roupa branca.
— Hã… Me desculpe — foi tudo que falei, dando um passo
para trás.
Vi sua boca se movimentar, mas não ouvi, até que me dei
conta de que estava de fone, então tirei de uma vez por todas,
apressada.
O desconhecido revirou os olhos e colocou as mãos nos bolsos
da calça.
— Isso deve ser um mal de vocês, jovens, vivem sempre no
mundo da lua.
— Oi?
— Está vendo aí, ainda por cima escutam música alta que
prejudica a audição.
— Tá, e quem é você mesmo? — Semicerrei os olhos, sem
entender nada.
— Ninguém importante, e é bom que tenha cuidado por onde
anda, mocinha.
— Igualmente, geladeira Electrolux… — Dei de ombros.
— Ei, garota, de que porra foi que me chamou?
— Depois sou eu que escuto música alta e não escuto nada…
— ironizei.
— Você é muito engraçadinha, pode me dizer seu nome e por
que me chamou assim?
— Eu não, também não sou ninguém importante, boa noite…
Tchau!
Voltei a colocar meu fone de ouvido e saí andando apressada.
Ainda bem que o desconhecido ficou para trás e não tentou me
acompanhar.
Só fiquei… Que merda acabou de acontecer?
Encarei o prédio do hospital e senti o ar sumir em meio ao
nervosismo.
Entrei por aquela porta inúmeras vezes como médico cirurgião
e anestesista, mas, pela primeira vez, iria passar como o novo chefe
de cirurgia. Fora escolhido pela diretoria para ocupar o cargo que
por muitos anos fora do meu pai, que decidira encerrar a carreira e,
por fim, se aposentar, seguindo o mesmo rumo que a minha mãe.
Havia outras pessoas competentes e capazes para ficar no
meu lugar, caso escolhesse abdicar, mas optei por encarar o desafio
de cabeça erguida e não dar para trás. Se fizesse isso, colocaria na
lama todos os meus anos de trabalho, preparação e especialidades
que fizera; por isso não podia desistir facilmente.
Tirei os óculos escuros e guardei no bolso da calça.
Assim que entrasse, daria a largada para um novo capítulo em
minha vida. Na verdade um de muitos outros que foram escritos nos
últimos tempos. Alguns intensos, outros nem tanto assim.
Senti meu celular vibrar e corri para ver quem era. Sorri ao ver
uma mensagem do meu melhor amigo, Henry, sua esposa e os
filhos, que eram meus afilhados, me desejando boa sorte. Enviei um
coração de resposta, e esse apoio sem sombra de dúvidas me fez ter
coragem de entrar o quanto antes. Logo de cara fui bem
recepcionado por algumas pessoas que já tinham conhecimento da
minha posição e segui percurso até a sala que seria minha dali
adiante.
Nem tive tempo de me sentar na cadeira, a porta foi aberta
pelo meu pai. Era de esperar encontrá-lo por aí, principalmente no
meu primeiro dia como chefe.
— Querido…
— Pai. — Levantei-me para cumprimentá-lo.
— Cheguei primeiro que você. — Sorriu. — Fiquei ansioso,
coisa de pai, sabe? Um misto de orgulho e ansiedade. E porque
esperei muito por esse momento…
— E sei muito bem disso, tem me dado instruções desde que
me entendo por gente — brinquei. — Estar aqui será um verdadeiro
desafio, mas farei dar certo.
— Eu sei que vai, Marcelo, e esse vai ser só o começo de
muita coisa boa que está por vir. Os últimos anos não foram fáceis,
mas agora tudo vai melhorar.
Engoli em seco.
— É o que espero — concordei.
Eu sabia muito bem a que meu pai se referia: aos
acontecimentos que me devastaram. Começou com o casamento do
meu melhor amigo, que logo se tornou pai. Na ocasião, conheci uma
mulher, que fez meu coração bater forte de um jeito que nenhuma
outra conseguiu, e o nosso envolvimento foi só a ponta do caos.
Isabella fazia parte da minha lista de contatinhos, e por muito
tempo mantivemos um caso com encontros de uma noite. Eu me
apaixonei pela primeira vez em anos e acreditei que ela também
havia se apaixonado por mim, mas tudo no fim não passou de uma
encenação barata. Planejamos nos casar, até cerimônia foi marcada,
sonhávamos em construir uma vida juntos, aquela baboseira toda de
“felizes para sempre”, mas o nosso não terminou nada bem.
Estranhei a descoberta de uma gravidez não planejada, uma
vez que sempre me preveni, e nunca passou pela minha cabeça que
ela iria furar uma camisinha pelas minhas costas. Como a amava
demais, aceitei a ideia de que seria pai de um bebê inesperado.
Irracional, completamente obcecado por aquela desgraçada,
perdoei aquele deslize como o otário que era naquela época.
Até descobrir, pouco tempo depois, a traição, o que acabou
com a porra do meu coração e com tudo de bom que havia em mim.
Peguei a vadia na cama com outro, e ainda por cima carregando um
filho que era meu — porque com toda certeza fiz questão de fazer
um teste para comprovar.
Foi horrível…
Depois daquele dia, terminei tudo e só mantive contato por
causa do bebê.
Era uma menina, que por um milagre da vida veio ao mundo
cheia de saúde. Após isso, fiz questão de tomar a guarda e pegá-la
para criar, usando todos os recursos que tinha para manter Isabella
bem longe da filha e de mim. No começo, a vadia não aceitou muito
bem, bancando a mãe arrependida, alegando que, apesar do que
fez, ainda me amava, mas não me permiti cair na sua lábia.
Nunca mais.
Eu me odiava por um dia ter acreditado nela…
Foi a única vez na vida que permiti que outra me enganasse…
Depois que Jade estava segura na mansão dos meus pais, com
pouco menos de três meses de vida, surgiu a oportunidade de
passar três anos em um programa de médicos dentro de um
acampamento do Exército. Foi a experiência mais louca, insana,
traumática e nela conheci o sabor amargo da morte de perto.
Retornei para casa, ao fim da missão, completamente
diferente.
— Marcelo?
A voz do meu pai me trouxe de volta à realidade.
— Sim. Tenho certeza de que vou tirar de primeira o cargo de
chefe de cirurgia.
— Vai, sim, filho. E eu vou estar sempre por perto para o que
precisar.
— Muito obrigado, pai.
— Posso te esperar hoje à noite para o jantar? Vai te fazer
bem ficar um pouco com a sua filha, já faz mais de um mês que não
vai nem a ver. — Tocou na minha ferida.
Senti um arrepio na nuca.
Jade era sangue do meu sangue, parecia-se muito comigo
fisicamente, mas nunca consegui desenvolver amor paterno como
deveria ter feito desde o começo, e a culpa era toda de sua genitora,
que estragou nossa relação.
Jade tinha quatro anos, morava com meus pais, uma vez que
minha mãe, junto de babás, me ajudaram a criar a menina, já que
me tornei a porra de um pai ausente em tudo. No início tentei me
aproximar, criar conexão, mas não obtive sucesso algum, e isso me
fez começar a ter crises de ansiedade fortes a ponto de eu precisar
de ajuda psicológica para compreender. Foi assim que descobri que,
se quisesse mudar essa realidade, precisava perdoar Isabella por
tudo que aconteceu.
Mas eu não conseguiria…
Se eu respirasse o mesmo ar que aquela puta, seria capaz de
matá-la.
No entanto, apesar de não estar muito presente na criação
dela, dava tudo que a menina precisava, garantia que tivesse uma
infância de qualidade, regada do bom e do melhor. E, por de certa
forma conviver com meus pais, que a amavam como filha, dava para
ver de longe que era uma criança feliz; isso era tudo que mais
importava.
— Vou pensar… Tenho umas coisas para arrumar no meu
apartamento assim que sair daqui, pois como bem sabe me mudei
não faz muito tempo e está uma verdadeira bagunça. — Forcei um
sorriso.
Meu pai riu, pois sabia que havia uma empregada para ajudar
nessas atividades.
— Até quando vai continuar fugindo da menina, filho? Não vê
que os anos estão passando?
Fiquei calado.
— Pensei que o senhor tinha vindo aqui só para me dar os
parabéns.
— Também, mas não posso deixar de puxar sua orelha para
outras coisas.
— Se eu for a esse jantar vai parar de ficar batendo nessa
tecla chata?
— Vou tentar, mas não posso prometer nada. — Riu de lado.
Balancei a cabeça negando.
— De toda forma, sou grato pela oportunidade que vou ter
aqui, pai. Sei que vai ser a melhor experiência da minha vida e que
vou aprender lições para a vida toda.
— Não me restam dúvidas. Saiba que não será fácil, mas tudo
sempre termina bem.
Assenti.
Ficamos conversando mais um pouco, antes de eu enfim ser
apresentado a todos.
Chegamos à parte da pediatria do hospital, e um rosto familiar
chamou minha atenção, era justamente o da garota que encontrei
na última noite no estacionamento. Passei a língua nos lábios ao
perceber que, apesar de jovem, já era formada em medicina e
escolhera o caminho que um dia cogitei seguir.
Meu pai me apresentou para algumas pessoas, mantive um
sorriso no rosto, e cumprimentei todas com aperto de mão,
esbanjando simpatia o máximo que consegui. A porra do maxilar já
estava cansado, e a cabeça também, de tanto acenar.
Aproveitei um momento, enfim sozinho, para caminhar
disfarçadamente até a desconhecida, que estava atenta e focada na
conversa com uma criança pequena.
— E para que serve este aqui?
— Este é para ouvir a batida do seu coraçãozinho…
— Estetoscópio — falei me enfiando na conversa dos dois.
Assim que me viu, a garota arregalou os olhos.
— Opa, o destino nos colocou frente a frente outra vez.
— É… — Ficou sem jeito, desviando o olhar para o lado.
Era uma mulher bonita, não muito alta. Deveria ter cerca de
vinte e poucos anos, pele clara, olhos verdes, cabelos lisos e escuros
acima do ombro, e uma franjinha que a deixava atraente. E, para
completar o pacote de nerd, usava óculos de grau e um gloss
delicado que marcava bem sua boca e os lábios volumosos.
— Bom ter um rosto diferente dos que já conheço por aqui,
senhorita — comentei.
— É o que parece, chefe. — Forçou um sorriso, colocando as
mãos nos bolsos do jaleco. — Doutor Marcelo.
— Decorou meu nome, ainda bem, porque pensei que iria me
chamar novamente de geladeira. Não foi assim que me chamou
naquele dia?
Ela revirou os olhos, e deu de ombros.
— Passado… E foi fora das paredes do hospital, ou seja, não
tem importância.
— Quer dizer então que posso te chamar do que quiser fora
daqui?
— Prefiro que nem me chame de nada, senhor… Se me der
licença.
— Toda. — Mas, antes que fosse embora, segurei em seu
braço. — E o seu nome?
— O senhor é agora o chefe, vai ter acesso a essa informação
sem que eu precise abrir a boca para falar. — Piscou um olho. — Até
logo.
Deixei que fosse embora, e avistei meu pai me encarando com
cenho franzido. Tentei disfarçar puxando assunto com a criança, que
me olhava atenta em tudo.
— E você, rapazinho, qual é o seu nome?
— Acredita que o homem que chamei de geladeira Electrolux é
o novo chefe de cirurgia do hospital?
— O QUÊ? — Mia se engasgou com um pedaço de pão na
boca.
Abandonei meu lanche na mesa para dar um tapinha de leve
em suas costas.
— Sua doida, cuidado! — Peguei a garrafinha de água e
despejei no copo. — Aqui, bebe devagar, vai te ajudar. — Balancei a
cabeça para os lados. — Se eu soubesse que iria ter esse tipo de
reação, nem teria contado. — Cruzei os braços.
— E como não ficar entalada depois de uma coisa dessas? A
minha amiga nerd mostrando as asinhas sem mais nem menos. —
Deu um gole generoso na água, e devolveu o tapa no meu braço
devagar. — O que tinha na cabeça para chamar o novo chefe assim?
E se ele te colocar para fora do programa?
— Tenho certeza de que não vai, não faz nem duas horas que
troquei palavras com ele na apresentação que estava acontecendo
— sussurrei baixinho.
— E vem cá, como foi que isso aconteceu? Você não faz o tipo
de quem sai alfinetando as pessoas sem motivo algum.
— Eu estava indo para casa quando o encontrei no
estacionamento; na verdade estava ouvindo música alta e trombei
de frente com ele, e daí surgiu o apelido.
— Então ele é tudo isso que estão dizendo por aí? Lindo, e um
monte de coisa…Vi uma foto, mas ainda não tive o prazer de
encontrá-lo pessoalmente.
Engoli em seco.
— Um pouco, mas não chega a ser tudo isso, sabe? É só mais
um homem comum como qualquer outro, tem uma beleza mediana,
que dá para quebrar um galho, entende? Faz o tipo com que eu
nunca seria capaz de ficar, não mesmo. — Dei de ombros.
Mia se engasgou novamente, e fiz careta sem compreender o
porquê, até que ela fez um movimento com o olhar e virei-me para
ver o que havia atrás de mim.
Marcelo surgiu, sabe lá como e de onde, mas lá estava de
braços cruzados.
— Oi, garotas. Estava procurando dois residentes para uma
cirurgia de uma criança, e recebi boas recomendações, só não
estava preparado para chegar aqui e descobrir que sou a pauta da
conversa.
Fiquei sem saber onde enfiar a cara.
— Então, Aurora, gostaria de acompanhar seu chefe de beleza
mediana na cirurgia?
— Aham, claro. — Limpei a garganta, e senti Mia chutar meu
pé debaixo da mesa. — Vai ser um prazer, doutor Marcelo.
— Faço as palavras da minha amiga as minhas, doutor.
— Vejo vocês duas daqui a uma hora… — Virou-se e saiu
caminhando.
— Doida, vai lá pedir desculpas antes que seja tarde demais.
— Eu? — Fiz careta. — É claro que não, até porque não retiro
uma palavra do que falei.
— Tá, mas isso não pegou nada bem, ainda mais que ele
ouviu tudo…
Mordi o lábio com força.
— E o que quer que eu faça?
— Vá lá e peça desculpas por ter sido bocuda e falado merda
sem pensar…
Revirei os olhos.
— Eu não sou do tipo que veste esse papel de arrependida,
Mia.
— Não, mas vai ter que fazer se não quiser viver um inferno
aqui dentro. Ele é a porra do chefe, entendeu? Sabe muito bem de
quem é filho, e isso já diz tudo…
Apoiei as duas mãos na mesa, e olhei para os lados nervosa.
— Se eu fizer isso, vai ser só por causa do trabalho, porque de
fato não fui, nem vou, com a cara desse riquinho que só está aqui
por não passar de um mero herdeiro. —Levantei-me da cadeira.
— Como não vai com a cara de uma pessoa que mal conhece?
— No estacionamento ele me chamou de jovenzinha, e quis
dizer que eu era lerda só porque não prestei atenção nas coisas
idiotas que falou. — Cruzei os braços.
— Aurora, quando você cisma com alguém é um caso perdido!
— Com toda certeza, agora deixa eu ir lá dar uma de
arrependida — zombei.
— Vai lá, e cuidado para não estragar ainda mais as coisas.
— Pode deixar.
Consegui permissão para entrar na sala do doutor, e encontrei-
o sentado à mesa, revisando um papel que tinha em mãos, focado a
ponto de nem se dar ao trabalho de parar um pouco para me
receber. Respirei fundo antes de criar coragem e falar.
— O que quer, doutora Jones? Veio pessoalmente falar da
minha beleza mediana?
Mordi a ponta da língua com força.
— É sobre isso que vim falar mesmo, quero pedir desculpas
pela brincadeira boba — menti.
— Então pode dar meia-volta e ir embora. — Gesticulou com
os dedos.
— Sim, mas antes vai me desculpar por essa besteira que
falei?
Em partes era brincadeira, afinal Marcelo não era feio e nunca
seria, mas também não era tudo isso que as pessoas estavam
pintando como se fosse um deus grego, a oitava maravilha do
mundo, uma obra pintada por Picasso, isso não. Podia ter seus
quase dois metros de altura, ser bem musculoso, rostinho de quem
tão cedo não iria criar ruga, e cabelos que andavam bem longe de
ser brancos.
Como já falei, parecia o Capitão América…
Mas isso não vinha ao caso, uma vez que nunca vou ser uma
dessas que estão por aí nos corredores suspirando e cobiçando o
nosso superior, que mal chegou ao hospital. Eu estava ali para
trabalhar, somente, e isso sempre seria minha prioridade. E por essa
razão não me cabia vestir o papel de admiradora daquele doutor que
nascera com a bunda virada para a Lua. Enquanto muitos por ali
tiveram que ralar a cara para conquistar alguma posição, o poderoso
só precisou nascer em uma família rica.
Bem antes de ele ser intitulado ao cargo de chefe de cirurgia,
pude conhecer seu pai de perto. Este inclusive era uma pessoa
humilde, prestativa e elogiada pelos quatro cantos. Construiu um
legado que nunca seria esquecido, e com toda certeza seu filho
nunca chegaria aos seus pés, assim como andava longe de ser como
o meu.
Engoli em seco.
Meu genitor adotivo era cirurgião pediátrico, e por muito
tempo atuou em clínicas, mas migrou para as mesas de cirurgia,
onde permaneceu até se aposentar. Eu sentia dentro do peito que
iria trilhar o mesmo caminho desde que me formei, tanto que, no
minuto em que Marcelo veio me chamar para participar de uma,
meu coração bateu mais forte.
Fiquei animada.
Participei de outras cirurgias, assistindo ou atuando de forma
significativa, o que agregara muito ao meu aprendizado. E por isso
me esforçava muito para ter outras chances. Porque, ao contrário de
como acontecia para o bonitão sentado na cadeira, as coisas não
iriam cair do céu e parar direto nas minhas mãos.
Nunca.
Eu podia ser filha de grandes médicos, mas era só isso,
nenhum dos dois vinha de família de donos de hospitais, nem havia
um cargo maior me esperando em determinada idade. E esse era o
ponto que me fazia torcer o nariz para o novo chefe de cirurgia.
Marcelo podia ter muita capacidade, mas nunca seria como
seu pai, que pude conhecer. Sei que havia chances de estar errada e
pagar a língua no futuro, mas preferia continuar acreditando na
minha intuição.
— Se minha desculpa vai te fazer ir embora da minha sala,
então te desculpo.
Franzi o cenho.
— Vim aqui humildemente me redimir por uma bobagem e
você nem se dá ao trabalho de me olhar… Se fizesse isso, saberia
que estou falando de coração.
— Eu sinto cheiro de gente mentirosa de longe, e o seu está
impregnado no ar. — Finalmente soltou os papéis na mesa. — Pode
sair daqui, Aurora.
— Só falei aquilo porque…
— Não vai com a minha cara, não gosta de mim, e bla-bla-blá
— completou. — Isso ficou claro desde a última noite que nos
encontramos por acaso.
— Até que o senhor é bem inteligente para alguém jovem… —
alfinetei.
— De rosto até posso ser, mas na identidade consta outra
informação. Só que isso não vem ao caso, doutora Jones. — Torceu
os lábios. — Mais alguma coisa?
— Não, só vim pedir desculpas mesmo…
— Aceitas, mas só porque você precisa disso, não eu. Até
porque sei que tudo que falou era verdade e que, no fundo do
coração, não retira uma palavra, não é mesmo?
Senti vontade de concordar, mas fiquei calada.
— Te vejo na sala de cirurgia, doutor Bennett.
— Mudei de opinião, não vou mais precisar da senhorita.
Pisquei os olhos.
— Por quê?
— Existem outras pessoas aqui no hospital melhores e mais
capacitadas para isso.
Neguei com a cabeça.
— Marcelo, e-eu…
— Pode ir, Aurora, estou cheio de pendências na mesa, como
pode ver.
Saí tremendo de raiva por aquele cretino ter me retirado de
última hora da cirurgia. Eu amava participar, e não ficar assistindo de
braços cruzados.
Ódio!
Mia estava certa, comprara briga com a pessoa errada.
— Qual é a sensação de agora ser o chefe da porra toda?
Jason deu um gole generoso em sua bebida, e fiz o mesmo, só
que tomei tudo que havia no copo, sem um pingo de delicadeza,
porque dias como aquele, em que não precisava trabalhar nem
salvar vidas, dedicava exclusivamente a fazer coisas fora da lei,
como beber até não aguentar ficar em pé ou lembrar do próprio
sobrenome.
— Uma grande merda, as pessoas daquele hospital me tratam
como um cristal, e sei que tudo é porque herdei a cadeira do meu
pai — soprei as palavras. — Tudo seria bem diferente se eu tivesse
conseguido o cargo por mérito próprio.
— E como não mereceu, otário? Você é um puto competente,
um excelente cirurgião, seu artigo foi um dos melhores a ponto de
ser publicado na revista científica mais respeitada do país, e sabe
que posso muito bem passar horas aqui citando outros mil motivos.
— Bajulador do caralho! — Enchi o copo com mais uma
quantidade de tequila.
— O que posso fazer? Entre nós dois, você é o melhor. Eu, por
outro lado, não passo de um mero ginecologista que vive olhando
bocetas alheias, fazendo partos de bebês enquanto odeio a ideia de
um dia ser pai. — Gargalhou.
Dei uma risada sincera, foi engraçada a forma como o
bastardo havia falado.
Jason é um dos amigos que fiz enquanto estava em uma
missão no Exército, e ultimamente vinha sendo meu único parceiro
de copo de mesa de bar e reclamações cotidianas da vida, uma vez
que o meu melhor amigo, Henry, não estava mais por perto para
ocupar essa cadeira. O médico se tornara pai de família, casado com
Mary, uma cantora atrapalhada, mas uma grande mulher, que gerou
os meus afilhados que eu amava muito. Por causa de toda a
distância e o meu trabalho na cidade, conversávamos mais por
telefone, e às vezes eu tirava um tempinho para visitá-los
pessoalmente, além de matar a saudade dos gêmeos.
— Não menospreze sua profissão, bastardo. Eu acho que teria
seguido por esse caminho se conseguisse ser mais profissional. —
Dei de ombros. — Minha alma de puto cafajeste nunca me permitiria
ver tanta boceta sem sentir a porra do desejo.
— Você é um doente do caralho, isso sim! Eu sou pior que
você quando o assunto é mulher, mas, quando estou exercendo o
meu papel, não consigo pensar em nada além! Só exerço a minha
função e dou o pé. — Piscou um olho, todo sarcástico.
— Sabe que estou brincando, idiota. Não é como se eu nunca
tivesse feito algum parto. — Revirei os olhos. — E eu faria
exatamente o mesmo que você. Quando somos médicos, não sobra
espaço para emoções desse tipo.
— Exatamente, cara, nós, médicos e cirurgiões, somos a porra
de um cubo de gelo.
Peguei o copo e ergui oferecendo um brinde, Jason fez o
mesmo.
— Agora me diz, não encontrou nenhuma enfermeira gostosa
no hospital?
— Muitas, e outras só faltam descer as calças ao me ver. —
Beberiquei a bebida.
— Normal, qualquer uma faria isso vendo um loiro alto, forte e
de olhos azuis. Você é quase como a porra de um boneco — soou
com tom de ironia.
— E você, como um Shrek? Aquele dos pântanos que ninguém
quer?
— Ora, se não querem! Posso estar cego de um olho por causa
daquela missão desgraçada, mas isso nunca impediu as garotas de
se aproximarem, fora que meu pau funciona perfeitamente — disse
convicto de cada palavra.
Dei outra gargalhada sincera, uma atrás da outra.
Por isso que nos tornamos amigos.
Jason parecia não ter um pingo de juízo, fazia graça de
qualquer situação. O tempo que passou em missão e os traumas
que trouxe, físicos e emocionais, não roubaram a sua essência, ao
contrário de mim, que me tornei rabugento e seco.
Houve um tempo da minha vida em que fui divertido, fazia
graça de tudo, vivia com um sorriso nos lábios, mas, desde que as
coisas aconteceram para pior, essa parte ficou adormecida, e quase
não me reconheço ao me olhar no espelho.
Engoli em seco e bebi mais.
— De toda forma, pretendo não me envolver com ninguém no
trabalho — enfatizei.
— Selou uma promessa, doutor Marcelo?
— Algo assim. — Dei de ombros.
Desde que optei pelo celibato, nenhum rostinho bonito e
boceta poderia ser capaz de me fazer quebrar uma regra.
— Quero ver até quando vai bancar o santo e manter o pau
nas calças.
— Prefiro ficar assim a sair enfiando sem ter sentimentos
envolvidos.
— Pensei que não quisesse se apaixonar novamente…. —
alfinetou.
— E eu não quero. — Coloquei o copo na mesa e pisquei um
olho. — Só que pretendo fazer sexo com alguém que seja digno e
mereça cada estocada minha.
Jason se acabou em rir da minha cara.
— Era só o que faltava, de cafajeste puto para a porra de um
virgem. Essa vibe de homem puritano não combina com você,
doutor.
— Eu não vou correr o risco de colocar outra vadia desgraçada
na minha vida. Então prefiro continuar como estou, e olha que nem
sinto mais falta de sexo…
— Se continuar assim, vai acabar mudando de lado, aí o pau
vai torar.
— Só não quebro a sua cara porque somos amigos.
— O único que você tem, e o melhor, devo lembrá-lo?
Neguei com a cabeça.
— Sabe que isso é uma mentira. Sua sorte é que Henry não
está aqui, pois aí sim iríamos quebrar sua cara em mil pedaços,
otário.
— Acha que tenho medo dessas coisas? Só se me matasse.
Levei tanta surra na vida que simplesmente não consigo ter mais
medo de ninguém. E isso leva ao ponto em que não são muitas
coisas que me tiram do sério, sabe?
Rimos juntos.
— Sim, sei. Quando vou conhecer seus pais perfeitinhos?
— O que é isso, doutor Marcelo, que papo estranho é esse?
Revirei os olhos com vontade de surrar a cara do bastardo.
— Até parece que não conheceu os meus naquele dia. E outra,
posso estar em um celibato eterno, mas não parei de gostar de
boceta.
— Ainda bem, porque aqui só posso ser seu amigo e nada
mais.
— Minha vontade é de te matar e esconder seu corpo, idiota.
— Faça isso e vai cantar de galo dentro de uma prisão,
correndo o risco de pegar prisão perpétua — zombou.
— Chega desse assunto, e deixa sua família secreta em oculto
— pontuei.
Jason não gostava de falar dos pais, nem mesmo dizia se tinha
irmãos. Eu, por outro lado, fazia algumas brincadeiras a respeito,
perguntava, mas era só isso e ponto. Era um direito dele não falar e
dar informações que o incomodavam.
— Isso, me conte o que aconteceu de bom nessa semana que
passou…
— Me tornei chefe, fui bajulado, resolvi um monte de coisas,
organizei outras e entrei em cirurgias. E, como de costume, vi
algumas pessoas morrerem.
— A morte é uma grande porra, a danada sempre se faz
presente em tudo.
— Isso é verdade, e terrivelmente drástico. Só que nada dói
mais do que chegar para um familiar e contar que aquele ser que
estava na mesa de cirurgia foi a óbito.
— Eu prefiro levar cem tiros a ter que fazer isso…
— Digo o mesmo, mas às vezes não tenho saída, e é preciso
dar a notícia.
— Deveríamos ser formados em qualquer outra coisa, menos
isso.
— De fato, eu facilmente teria me tornado um advogado,
engenheiro…
— Eu, dono de puteiro, cabaré, essas coisas, sabe?
Não contive a gargalhada alta.
— Chega, Jason, o álcool está subindo para sua cabeça rápido
demais.
— E tomara que o seu suba para o pau, porque está cheio de
galha seca na cabeça.
Franzi o cenho, e demorei para entender que estava se
referindo ao fato de eu não fazer sexo, como se isso estivesse
mexendo com meus neurônios de uma forma absurda.
Só sendo…
Eu gostava de ficar em casa nos dias de folga, principalmente
para fazer uma faxina de qualidade no apartamento em que morava,
colocar roupas para lavar na máquina e maratonar na sala uma das
minhas séries favoritas. Porque não bastava ser médica e viver
dentro de um hospital, tinha que ser fã de carteirinha de Grey's
Anatomy. Só que o espírito festeiro que habitava dentro do corpo de
Mia não me deixou em paz até que eu aceitasse acompanhá-la em
um barzinho, ocupando assim o lugar de Liam, que costumava ir,
mas por algum motivo especial acabou não podendo.
E sobrou para mim…
Inventei um monte de desculpas para que ela arrumasse outra
pessoa melhor para o passeio, mas não foi o suficiente para
convencê-la a me deixar quietinha no aconchego do meu lar. Tudo
que me restou foi tomar um banho premium, lavei os cabelos, cuidei
de todo o corpo e rosto, pois, já que era para sair, precisava estar no
mínimo apresentável; vai que encontrasse algum gatinho para dar
uns beijinhos.
Pensei logo nisso.
A minha vida amorosa era bem parada, parecia que os rapazes
não olhavam para mim, ainda mais por ter um estilo típico de nerd.
Eu gostava de manter o corte de cabelo curtinho, nunca arrisquei
pintar, então eram sempre pretos e lisinhos. Os óculos que não
podiam sair de jeito nenhum do meu rosto se deviam a certo grau
de miopia que tinha no olho direito, e isso só contribuía para que
ninguém me olhasse diferente, fosse com um pouco de atração,
fosse com desejo. Em contraste com Mia, que tinha uma lista de
contatos de homens que dariam tudo para tê-la.
É importante lembrar que eu não sentia um pingo de inveja.
Eu gostava do meu jeito e estilo, não seria capaz de mudar nada
para agradar ao senhor ninguém. Se alguém se interessasse por
mim, deveria ser pelas minhas qualidades, que iam muito além de
aparência física. Até o momento, nenhum engraçadinho apareceu,
mas seguia sem perder a esperança de que iria.
— Não… Está parada em frente ao armário faz quantos
minutos?
Mia apareceu na porta do quarto completamente arrumada.
Assim que saí do banho, fiquei em um impasse, sem saber
bem o que vestir.
— Não encontro nada que seja bom o bastante para ir a um
barzinho. Só tenho vestidos comportados, calças, blusas moletom,
nenhum cropped ou algo do tipo.
— Bom, se esse for o problema, posso te emprestar alguma
coisa… O que acha?
Esqueci de comentar que dividimos apartamento desde que
entramos no hospital para fazer residência. A casa dos meus pais
adotivos ficava bem longe, o que me obrigava a passar horas e
horas dentro de um ônibus ou no carro até chegar. Por isso decidi
que o melhor seria alugar um lugar para morar durante o programa.
Mia, uma amiga que conheci na faculdade, ciente da situação não
pensou duas vezes em me chamar para morarmos juntas, e esse
arranjo vinha dando certo.
— Suas roupas são de quem está pronta para passar a noite
em cima de um pau. — Gargalhei, soltando um comentário com tom
de brincadeira.
— Ainda bem, porque tudo que estou precisando é de gozar
um pouquinho.
Fiz careta, balançando a cabeça para os lados.
— Acho que você está precisando fazer o mesmo, Aurorinha.
Vai por mim, é muito bom.
— Devo lembrá-la de que os homens praticamente fogem de
mim? — Bufei, e me sentei na cama.
— Só fazem isso porque você os coloca para correr, somente
isso. Olha o chefe bonitão, teve logo que colocar um apelido nele e
travou uma briguinha sem graça.
Revirei os olhos.
— Ei, estamos falando de homens de verdade, não de
herdeiros e riquinhos da elite.
— Estou dando um exemplo recente, mas posso citar aquele
que você mandou catar coquinho, ou aquele em que botou um
apelido que só pela misericórdia…
Tapei os ouvidos, não queria ouvir aquele monte de besteira.
— Ei, mocinha, vou pegar uma roupa logo, ou vamos perder a
noite aqui no quarto.
Assenti com a cabeça, e joguei o corpo contra a cama,
morrendo de preguiça.
Não demorou muito para Mia retornar com uma roupa estilo
piranha. Eu decidi ficar calada e usar aquela coisa, talvez tivesse
sorte e achasse um boy de qualidade.
Era um vestido curto em um tom claro, comprimento acima
dos joelhos, coberto de brilhos. Até que realçou bem minhas curvas
e seios. Sequei os cabelos para fazer um penteado no topo da
cabeça, e a minha amiga fizera uma maquiagem forte. Os olhos
foram presenteados com uma paleta escura, e os lábios, com um
batom vermelho.
Assim que me vi em frente ao espelho, quase não me
reconheci. Parecia outra.
— Seu vestido de quenga fez milagre em mim, Mia.
— Nossa, você é um porre, Aurora, não sei como ainda sou
sua amiga. — Riu.
— É só porque me ama. — Dei de ombros, convencida. —
Agora podemos ir?
— Com certeza, preciso encher a cara até esquecer que sou
médica.
Pensando por esse lado, até que não seria ruim…
Eu queria matar aquela loira por ter encontrado um conhecido
e me deixado sozinha. Só não fiquei completamente irada porque fui
até o bar pedir um drinque, e tive a companhia de outras pessoas
que estavam por ali bebendo e conversando.
— Aqui, senhorita…
Agradeci ao bartender com um sorriso meigo e fui logo
degustar a bebida.
Agrr!!
O gosto não era bom, e me arrependi imediatamente de ter
pedido aquela merda. Afastei o copo, dando por encerrada qualquer
possibilidade de continuar bebendo. Se eu fosse um pouco mais
inteligente, pegava um carro de aplicativo e ia embora. Maldita fosse
a hora em que fui na onda de Mia, e cedi à sua chantagem
emocional.
— É uma miragem, ou é você mesmo?
Não…
Não…
Não…
Coloquei uma mão na testa em lamento ao ver Marcelo se
sentar ao meu lado.
— O mundo é realmente pequeno, darling.
— Devo concordar, porque as estatísticas não me indicavam
que eu iria acabar te encontrando justo no dia em que decidi sair um
pouquinho de casa, que azar!
— Eu faço parte daqueles um por cento, tanto que aqui estou.
— Deu um sorriso de galã, cheio de graça. — O que faz aqui
sozinha, darling?
— Primeiro, meu nome é Aurora, e segundo, fui deixada para
trás. — Para continuar aquela conversa com o doutor era necessário
álcool, então voltei atrás na palavra e bebi mais um pouco. — E
você?
— Meu amigo foi embora, e, como sou inimigo do fim, decidi
ficar.
— Se pensa que vai ficar aqui tirando o meu sossego, pode ir
dando meia-volta.
— E por que não posso ficar aqui? Até onde sei o bar não é
privativo, darling.
— Pode ser, mas isso não te dá o direito de ficar aqui perto de
mim. É só ir encontrar outro lugar melhor ou quem sabe uma
companhia mais agradável, sabe?
— Nada disso, vou ficar aqui, porque quero e ninguém irá me
tirar do seu lado.
Revirei os olhos, e bebi mais.
— Sabe que eu não gosto de você, não é? Ainda mais porque
me deixou fora de uma cirurgia, e fui excluída de várias outras, o
que acredito ter dedo seu, doutor Marcelo.
— Eu? Que calúnia! Como pode ter certeza de que fui eu que
fiz isso?
— Porque foi, e isso acabou com a porra da minha semana! —
comentei, furiosa.
Marcelo gargalhou, passando a língua nos lábios, um
movimento suave e atraente.
— Passe segunda na minha sala para que possamos resolver
seu problema, darling.
— Ainda bem que falou, porque estava pensando seriamente
em fazer isso. — Fiz careta. — Mas, já que estamos aqui, podia me
dar um motivo para ter feito algo assim? Não é por nada, mas sou a
melhor da minha turma…
— O seu ego grande me surpreende, doutora…
— Não é isso, é só aquilo, contra fatos não há argumentos. Por
isso não aceito ser passada para trás sendo que nunca dei motivos
para isso! — Cruzei os braços.
— Na segunda conversamos sobre isso… — disse desviando o
olhar para pedir bebida ao garçom. — Quer alguma coisa, darling?
— Quero, mas primeiro, quanto quer para parar de me chamar
desse jeito? Me deixa agoniada.
— Duas doses de tequila… Isso. Com gelo, por favor.
Fiquei parada, estática com o tamanho da sua ousadia.
— O que pensa que está fazendo? Não quero beber com você!
— Não quer, mas assim como eu precisa relaxar um
pouquinho, então vamos beber.
— Puff! — fiz um barulho na boca, insatisfeita.
— Nem vem com essa carinha de cachorro furioso que não me
bota medo.
— Pois deveria ter. — Pisquei um olho. — Mal sabe o que
posso fazer.
— Me conte uma coisa que fez e saberei se devo ter ou não
medo…
— Coloquei laxante na água do professor que me assediou. —
Dei de ombros.
Não era uma mentira. Aconteceu no ensino médio, mas era
um assunto que não gostava de comentar, e preferia deixar
guardado a sete chaves.
— Ainda não sinto medo.
— Dei um chute nos ovos de um colega que tentou copiar o
meu trabalho.
Marcelo se mantinha implacável, como se nada daquilo que
falei o abalasse.
— Aham, conta outra…
— Fiquei esperando uma menina vir me bater com um pau nas
mãos. Se ela tivesse vindo, teria quebrado o rosto daquela
desgraçada que praticava bullying comigo.
— Caraca, darling… Isso me deixou excitado pra caralho!
Ainda bem que estava sentada, ou teria caído para trás com
aquela confissão.
— Olha aqui, chega disso, estamos indo longe demais.
Decidi me levantar, mas sua mão forte e grossa segurou o meu
braço.
— Não vai, fica aqui, por favor.
— Esqueceu que não gosto de você?
— Eu também não, mas é aquilo… Melhor ter um inimigo por
perto do que longe.
Revirei os olhos com tanta força que senti um leve incômodo.
— Fica aqui só um pouquinho, por favor…
— Não vou pagar nenhuma bebida que pedir para mim —
deixei bem claro.
— Achou mesmo que eu seria um desses que pede para dividir
a conta?
— Quando se trata de você, estou sempre pronta para esperar
o pior.
Marcelo riu.
— Vai se surpreender comigo, darling.
— Fica me chamando assim que, até o fim da noite, quebro
uma taça de vidro no seu rosto que lembra a porra do Capitão
América. — Voltei a me sentar na cadeira.
— Se acha que pareço com o ator, então isso significa que sou
bonito?
— Você tem um espelho em casa. — Pisquei um olho. — Sabe
a resposta, doutor.
Deixei aquele riquinho sem palavras, e foi ótimo, logo nossas
bebidas chegaram.
Odiava quando eu dormia e me esquecia de fechar a maldita
janela do quarto.
Eu tinha o sono leve, ou seja, qualquer barulho ou claridade
conseguia me acordar. Abri os olhos de uma vez, e de primeira
estranhei uma mão estendida em meu peitoral. Estranhei, porque
não costumava levar nenhuma mulher para a minha cama, aquele
era um ambiente sagrado e nenhuma energia feminina deveria fazer
morada ali.
Aurora.
Pisquei os olhos, e saltei o quanto antes para fora da cama.
Coloquei as duas mãos no rosto, e só consegui respirar aliviado
quando a vi completamente vestida.
Uff!
— Que porra foi isso?
Olhei para baixo e percebi que estava tanto de cueca quanto
de calça.
Flashes da última noite vieram em peso. Jason precisou ir
encontrar uma ficante e me deixou sozinho; consequentemente
encontrei Aurora no bar e ficamos bebendo. Nem parecia que
éramos duas pessoas que se detestavam e que nunca iriam gostar
uma da outra. Eu não me lembrava do momento em que fomos
parar na minha residência, quem dirigiu e como aquela garota
terminou justamente na minha cama.
Tive pena de acordá-la, parecia serena, agarrada a uma
almofada, os cabelos esparramados, embolados, a boca um pouco
aberta, o que achei engraçado. Vendo-a naquela enorme cama, deu
para notar o quanto era miúda, parecia uma bonequinha. Ela se
mexeu um pouco e o vestido levantou ligeiramente, então puxei o
lençol para cobri-la, tendo todo o cuidado do mundo para não me
dar ao luxo de olhar para baixo. Isso seria feio, ainda mais com a
garota no trigésimo sono.
Segui caminho para o banheiro, tomaria uma ducha para
clarear a cabeça.
— Deus, o que foi que aconteceu? Por que não me lembro do
resto? Porra!
Entrei no banheiro, descartei calça e cueca, indo direto para o
boxe. Isso que dava beber até esquecer o próprio nome, levei para
casa justo a doutora que trabalhava no meu hospital, e que, claro,
preferia ser amiga do Capeta a ter qualquer tipo de relação comigo.
Tudo que rolou na última noite se devia ao álcool no nosso sangue,
porque era claro como o Sol o quanto Aurora me odiava e, bom,
sem a porra de um motivo.
Eu sabia muito bem que havíamos começado com um pé
errado, uma troca de farpas, mas nada como um pedido de
desculpas para apaziguar as coisas e contornar a situação. O
problema era que aquela mulher na minha cama parecia ser
rancorosa, ao longo da vida eu tinha conhecido tantas pessoas assim
que sabia reconhecer uma de longe. Por isso, desacreditava que
houvesse alguma possibilidade de nos entendermos melhor.
E, bom, que se foda!
Estava calejado e acostumado a estar completamente sozinho
na maior parte do tempo, não precisava da amizade daquela que
prestava serviço pediátrico para o hospital. Aurora era só mais uma
que cruzava meu caminho, sem um pingo de importância.
Tomei um banho gelado, escovei os dentes e ainda dei um
trato na barba.
— Preciso passar no salão para dar um jeito nesse cabelo,
puts!
Quando terminei tudo, enrolei uma toalha na cintura e retornei
para o quarto.
— SÓ PODE SER UM PESADELO, SOCORRO!
Aurora estava acordada, e jogou uma almofada em mim.
— Ei, primeiramente bom dia… — Me defendi segurando o
travesseiro e devolvendo-o à cama. — Pare com isso, ou vai ter uma
bela visão do meu pau, porra!
— Como é que vim parar aqui? Minha nossa senhora! —
Cobriu o rosto com as mãos. — Trata de vestir uma roupa agora
mesmo ou vou voltar a gritar!
— Pode fazer isso, não tenho vizinhos no apartamento, já que
o prédio é meu. — Caminhei até o guarda-roupa para pegar algo
para me vestir. — E, bom, não sei como a senhorita veio parar na
minha cama, o que sei é que não te toquei, acordei vestido e você
estava do mesmo jeito — deixei claro.
— Ainda bem, porque eu morreria se soubesse que
transamos…
Ouvir aquilo não deveria doer, mas doeu um pouquinho.
— Eu não só morreria, como encontraria um meio para me
desinfectar — entrei na onda para não ficar por baixo; ainda me virei
para soltar um beijinho para a garota.
— Até onde sei, não sou um animal peçonhento e
contaminado.
Vesti a cueca por baixo da toalha, e coloquei uma bermuda da
mesma forma.
— E eu não sou um monstro para você querer morrer só por
ficar comigo.
— Tá, peguei pesado, mas é que não seria bonito saber que
fui para a cama com o chefe de cirurgia…
— Seria melhor se eu fosse enfermeiro, cardiologista? Ou um
pediatra também?
— Nenhuma opção.
Virei-me para encará-la.
— Aurora, não aconteceu nada entre nós dois, ok? Acho que
bebi além da conta, e você deve ter dirigido meu carro, ou pode ser
que viemos juntos de táxi, preciso ainda ver nas câmeras —
expliquei abrindo os braços. — Se quiser tomar um banho, vou
descer para preparar um café da manhã enquanto isso…
— Tem certeza de que não fizemos nada?
— Eu não sou do tipo que gosta de fazer sexo estando
bêbado… Prefiro praticar bem consciente, sabe? — Mordi o lábio só
para provocá-la.
— Certo… Se estou vestida, é porque nada aconteceu, é isso
— ficou repetindo, como se estivesse em transe.
— Não aconteceu, Aurora, e isso posso garantir. Agora vai
tomar um banho, vou mandar trocar os panos de cama porque estão
podres, fedendo a bebida, e a senhorita deve estar mais ainda…
— Está querendo dizer que estou podre, hã?
A doutora bravinha saltou para fora da cama, apontando um
dedo em minha direção.
— Acordei ao seu lado, e foi a primeira coisa que senti…
Fedendo muito! — menti na caradura, e prendi um riso para tornar o
momento bem sério.
— Se estou assim, é porque você encheu meu rabo de bebida,
otário!
— Pelo seus cálculos, melhor álcool do que o meu pau, não é
mesmo?
— Claro, porque se esse…, essa coisa, tivesse entrado em
mim, eu estaria morta de arrependimento por ter cometido o pior
erro da minha vida!
Tentei não levar para o coração, mas ficava cada vez mais
difícil não fazer isso.
— E eu, Aurorinha, teria pulado da ponte. Aproximei-me,
apertei com cuidado sua bochecha. — Agora vai para o banho, ou te
expulso da minha casa, porque não gosto de ter convidados
fedorentos, principalmente no meu quarto.
— Só vou fazer isso porque quero apagar os vestígios da
minha imprudência, depois vou pegar o rumo de casa, e você,
doutor, vai pagar meu táxi…
— Como vou fazer isso se não te fodi? Eu só faço isso com as
putas…
Aurora piscou os olhos e retrucou.
— Estou brincando, te vejo daqui a pouco na cozinha, darling.
Encerrei a troca de farpas, e fui logo preparar algo para
comermos juntos.
Café era algo que não podia faltar na mesa, e claro, ovos,
panquecas. Fiz tudo isso enquanto a bravinha se dedicava em
exterminar do corpo o odor da bebida. Sabia que tinha pegado um
pouco pesado, mas ela também não fora delicada comigo. Como
pode alguém dizer que prefere morrer a saber que fizemos sexo?
Nunca ouvi isso antes, foi pesado e feriu meu ego.
Malvada, malandra, maldita.
Estava me servindo quando Aurora apareceu de cabelos
limpos.
— Nossa, que cheiro bom… Deus amou a limpeza, sabia? —
brinquei.
— Eu sou limpa, mas você nunca vai saber o quanto…
— Quem disse que tenho vontade de saber isso? — Mordi a
panqueca. — Pode ficar à vontade, e comer o quanto quiser.
— Lembrei.
— Foi, e aí?
— Você estava mesmo muito bêbado, e eu, um pouco, mas de
alguma forma fui imprudente ao te trazer para casa… Céus, já
pensou se tivéssemos sido pegos em uma blitz? Eu teria sido presa
por dirigir levemente embriagada. Bom, só sei que é só disso que
me lembro — disse, puxando uma cadeira para se sentar. — Agora
como dormimos juntos, não sei, não.
— Pode ser que, em meio ao cansaço, conversa vai e vem,
isso aconteceu.
— É, deve ser isso.
— Agora coma, que daqui a pouco vou te deixar em casa.
— Só precisa pagar um táxi e está tudo bem.
— Vou passar na casa dos meus pais e então aproveitar a
viagem.
— Eu pude conhecer o trabalho do seu pai no hospital, e, bom,
ele era magnífico em tudo que fazia, se esforçava muito. Todos
fomos pegos de surpresa com a saída dele.
— É, assino embaixo, mas agora tem a mim à frente, o que
será mil vezes melhor.
— Aham, diz isso baseado em quê?
— Na força de vontade que tenho de construir meu legado
para que no futuro alguém fale essas mesmas coisas que você falou
sobre o meu pai.
— Boa sorte então, doutor Marcelo.
— Igualmente, doutora Aurora.
O silêncio pairou, e foi até melhor. Eu amava comer calado…
— A próxima vez que aquela loira oxigenada conseguir me
tirar de casa, pode ter certeza de que vou estar morta, à beira da
decomposição! — Soltei uma lufada de ar, sentando-me numa
cadeira. — Acredita que ela me deixou sozinha e foi atrás de macho?
— Cruzei os braços, revirando os olhos.
Liam me encarou, com um olhar que dizia que já esperava
aquilo da nossa amiga.
— Estamos falando de Mia, então é de se esperar isso a pior.
— Estalou os dedos, enquanto se movia na cama.
— Sim…
Estávamos na sala de descanso do hospital, já passava da
meia-noite, e ainda havia um longo caminho pela frente até que
nosso plantão chegasse ao fim. Ficamos na emergência, e
infelizmente apareceram algumas crianças doentes, em sua maioria,
com infecções virais e bacterianas, o que me levaria a ficar
acompanhando de perto. Havia alguns casos bem delicados e que
precisaram de internação imediata, enquanto outros pacientes foram
para casa dar continuidade ao tratamento apenas com
medicamentos, por apresentarem sintomas leves. Nos últimos dias,
situações desse tipo eram o que mais estava aparecendo.
A saúde da criança, principalmente nos primeiros anos de vida,
exige atenção, tanto pela falta de conhecimento, como pelo contato
direto com pessoas que podem infectar com viroses, entre outras
coisas. Tanto que, vez ou outra, aparecia uma apresentando um
problema de saúde adquirido devido a uma troca de saliva em algum
alimento, ou contato direto com alguém de casa que estava doente.
Eram muitas razões…
Nós, como profissionais da área, explicamos para os
responsáveis da criança a importância das vacinas, higiene,
alimentação, e de ter alguns cuidados essenciais, principalmente
com bebês, que muitas vezes davam entrada no hospital com
pneumonia, bronquiolite, e muito mais. Por isso se fazia necessário
ficar em alerta e ter todo o cuidado possível para não gerar um
problema maior.
Eu amava a pediatria, cuidar daqueles serzinhos inocentes, e
fazia isso com amor. Sei que muitas pessoas escolhem um caminho
a seguir por outros motivos, mas não têm como seguir na ala
pediátrica se não aplicar muito amor àquelas crianças. Porque ali,
quando estávamos de frente para uma, tínhamos que ser
cuidadosos, carinhosos, descontrair a situação, brincar e conseguir
um sorriso dos pacientes.
Os minis…
Era fato que havia uma grande influência do meu pai adotivo,
que com toda certeza, sendo o melhor no que fazia, me inspirava
todos os dias a ser pelo menos um por cento do que ele era. E, pela
experiência que eu estava construindo, já podia afirmar que me
tornaria excelente na minha área, não por títulos, mas porque meu
dever era proteger, cuidar e fazer o melhor para os anjinhos.
Amava ser a tia aurora…
Ou a super-Aurora.
Um dos títulos que ganhei de alguns pacientes mirins.
Outro detalhe importante é que nem tudo eram flores. Havia
casos bem delicados, assim como já presenciei alguns em que o
câncer ou outro problema levou a vida de um ser pequeno que tinha
uma vida pela frente. Era triste ver e não poder fazer nada, uma vez
que tudo dentro da medicina já havia sido feito para salvar, sem que
fosse suficiente para impedir uma fatalidade. E, por mais que
tentasse não me envolver, a dor assolava e me quebrava por dentro
em mil pedacinhos.
É como já ouvi uma vez, aprendemos na faculdade sobre
como salvar vidas e lidar com a morte, mas ela não nos ensina a
continuar sobrevivendo depois dela…
Lembro-me do dia em que um paciente com leucemia foi a
óbito. Fiquei devastada, passei a noite inteira chorando, porque me
apegara mais do que deveria, torcia para que o pequeno tivesse
uma chance de viver, mas a doença avançou e não teve jeito. E no
dia seguinte tive que ir trabalhar, encarar um plantão com o peito
doendo, a alma dilacerada por dentro, principalmente quando
passava pelo quartinho em que ele havia ficado internado por
algumas semanas.
Nossa…
Essa é a parte mais dura e crua da nossa profissão.
— E o que aconteceu depois? — Liam perguntou, virando-se
de lado.
— Não vai querer saber, e aqui não é o melhor lugar para falar
disso.
— Sério? Não me diga que encontrou um bofe e foi dar uns
beijinhos?
— Antes tivesse sido isso, mas não foi. O que apareceu para
mim foi um sapo, um que me deu uma vontade imensa de encher
de sal até vê-lo morrer agonizando.
— Porra… Uma médica que salva vidas desejando a morte de
alguém?
— Eu salvo crianças, e, bom, elas são melhores que muita
gente! — Dei de ombros.
— Sei, e posso saber quem foi esse cristão que tirou sua paz
no bar?
— Não posso dizer aqui, já falei… — sussurrei.
— Ah, então aquilo que Mia falou sobre você e o chefe é
verdade? Foi ele que encontrou no barzinho?
Revirei os olhos, querendo afundar a cara do babaca em um
travesseiro.
— Repetindo pela última vez, aqui não é lugar para falar disso,
da última vez que ousei fui pega em flagrante, então prefiro me
precaver de outro deslize.
— Sou seu amigo já faz um tempão, doida, e meio que entendi
tudo… — Gesticulou com os dedos. — Tá aí o motivo pelo qual não
entra mais nas cirurgias.
— Sobre isso, vou tentar conversar com Grace … — Lembrei-
me de um ponto importante. — Estou ficando cansada de estar só
no ambulatório, emergência…
— Sabe que para conseguir mudar essa realidade terá que
rebolar um bocado.
— Rebolar? E por acaso tenho cara de dançarina ou algo do
tipo?
— Quero dizer que terá que fazer as pazes com seu príncipe
sapo…
Liam era muito esperto, e claro, Mia era uma baita fofoqueira,
porque contou tudo.
— É mais fácil eu pegar uma vasilha cheia de sal e jogar na
cara dele…
— Devo lembrá-la de que essa pessoa tem poder para te
demitir?
— Ele não pode fazer isso — resmunguei, mordendo a língua
sem querer.
— Pode demais, então é bom que pense na possibilidade de
rebolar um pouquinho.
Franzi o cenho, ainda sem entender essa ideia que ele insistia
em falar.
— Aurora, vai ter que baixar a guarda e tentar ser amigável
com nosso chefe. Olha, passei algumas horas com ele em uma mesa
de cirurgia, e posso dizer que o cara é bacana, muito habilidoso,
aprendi muitas coisas ao seu lado.
Fiz careta, recusando-me a acreditar no que ouvia.
— Vou ver se estão precisando de alguma coisa e te deixar
dormir…
— Pode ser, mas pense sobre o que falei, viu?
Não disse nada.
Levantei-me e saí da sala o quanto antes. Eu estava nuazinha
de amigos. Mia me levara para aquele bar e só a vi no dia seguinte.
Liam, agora, entrava no time dos baba-ovos do chefe de cirurgia, e
isso era tudo que faltava para completar o pacote.
Ainda havia o fato de que eu dormira ao lado do Marcelo; só
dormimos mesmo, porque, por tudo que era mais sagrado, eu tinha
acordado intacta e com o meu lindo hímen no lugar.
Puff!
Saí caminhando pelo corredor vazio com a cabeça baixa.
E aquele cara de Capitão América me deu carona até em casa,
depois de preparar um café da manhã que simplesmente amei, tudo
natural e feito na hora, nem se comparava àquelas coisas
congeladas que eu costumava comprar para merendar.
— Cuidado, ou vai se esbarrar em mim outra vez…
Falando no cão, parei de frente para o loiro de olhos azuis.
— Boa noite — cumprimentei-o fingindo ser educada.
— Se a noite for boa, amanhã te digo — falou cheio de
gracinha na voz.
— Às vezes os plantões costumam ser tranquilos…
— Não hoje, estão para chegar na ambulância vítimas de um
acidente. Um ônibus virou dentro de um matagal, temos pessoas
gravemente feridas e mortas.
Engoli em seco.
— Meu Deus… Posso ajudar em alguma coisa?
— Claro, vai ser bom ter um pediatra por perto caso houver
alguma criança ferida no meio.
Assenti.
— Obrigada por não me excluir dessa vez, doutor.
— E quando foi que fiz isso mesmo?
— Cínico… — murmurei baixinho.
— Assim você me ofende, darling, tentei ser gentil e me
devolve assim?
— Deve ser porque me dá muitos motivos para agir assim. —
Dei de ombros.
— Te deixei dormir fedorenta ao meu lado, preparei seu café e
te dei carona.
Meneei a cabeça para os lados.
— Vou derrubar meus frascos de perfume na sua cara só para
você ver que ando longe de ser uma pessoa fedida.
— Se jogasse outra coisa, até que aceitaria sem reclamar. Mas
álcool por álcool, estou tentando passar longe. — Piscou um olho.
— Sai do meio, doutorzinho…
— Saio nada, darling… Se quiser, que dê seu jeito.
Respirei fundo antes de passar por ele, a geladeira Electrolux,
esbarrando em seu braço de propósito. Só ouvi sua risada rouca, e
um tanto gostosa de ouvir. Ogro!
Minha mãe me chamou… Não! Praticamente implorou para
que eu fosse assistir a uma apresentação na escola de Jade. Fiquei
sensibilizado pela forma como me abordou, a insistência, como se a
qualquer momento fosse se ajoelhar aos meus pés. E, por causa
disso tudo, me organizei ao máximo para poder comparecer.
Só por isso.
Passei uma noite de plantão, que por sinal foi bem agitado
devido a um acidente com muitas vítimas, e no dia seguinte fui
direto ao apartamento me arrumar. Por se tratar de um evento
formal, não podia deixar de usar um terno para estar apresentável e
ao nível. Eu me sentia nervoso por dentro, principalmente por saber
que iria passar alguns minutos de frente para minha filha sabendo
que era a porra de um pai ausente.
Fracassei…
Tomei um copo de tequila para tentar me tranquilizar, e a
tremedeira na mão não passava. Era complicada a minha relação
com a menina, e a culpa era toda minha por ter decidido colocar
uma distância entre nós dois. Sua mãe havia quebrado a porra do
meu coração. Por conta disso, eu tinha ingressado em uma missão
no Exército, que com toda certeza terminou de foder com o homem
completo que eu sempre fora.
Voltei ainda mais quebrado…
Fui oferecer serviço de saúde e de brinde ganhei alguns
traumas.
Não fazia a mínima ideia do que Jade pensava a respeito de
mim, nas vezes que fui à casa dos meus pais, ela sequer se
aproximava e mal me olhava direito. Na última, eu a ouvi chamando
o meu pai de pai, o que não deveria ser nenhuma novidade para
mim, já que minha mãe havia falado a respeito disso.
Eu nem podia dizer nada, porque era o maior culpado.
Entreguei a menina para o casal cuidar, e por amor e devoção a mim
aceitaram cumprir essa missão. E em partes sou terrivelmente grato
por isso, afinal Jade teria crescido infeliz se a tivesse deixado sob a
guarda da desgraçada da sua mãe.
Cheguei à escola no horário marcado, e parti direto para o
auditório. Vi um grande movimento de pessoas, famílias ali
presentes, sorrisos no rosto e muito entusiasmo.
— Filho, que bom que veio…
Senti a mão da minha mãe tocar meu ombro, nem percebi
quando se aproximou.
— O que é que você não me pede sorrindo que não faço
chorando?
— Você perdeu várias apresentações da sua filha enquanto
estava fora do país, colocando sua vida em risco para salvar outras,
agora que voltou tem a chance de consertar algumas coisas,
aproveitar que ainda tem tempo, meu querido.
Engoli em seco.
— Foi ela que pediu para que eu viesse? — questionei, com
medo da resposta.
— Não, e nada de fazer cara feia, sabe muito bem que a culpa
é toda sua. — Dona Gelsa estendeu uma mão para apertar a minha
bochecha. — Marcelo, filho, sabe que nós te amamos mais que tudo,
não é mesmo?
— Sim, mamãe, e é por isso que estou aqui, pode ficar ao
menos satisfeita?
— Posso, mas ainda teremos um longo caminho pela frente. E,
do fundo do meu coração, desejo que essa seja a primeira de muitas
outras que você virá prestigiar.
Fiquei calado.
— Marcelo, estou ficando a cada dia mais velha, como avó
penso muito no futuro dessa menina que veio pequena para meus
braços e depende de mim para tudo.
— Não estou entendendo…
— Eu quero um dia morrer com a certeza de que Jade está
feliz com o pai, um que vai protegê-la acima de tudo.
— Sério mesmo que quer falar sobre essas coisas, dona Gelsa?
Podemos apenas curtir essa apresentação em paz?
— Tenho que aproveitar a ocasião, porque você simplesmente
nunca me dá espaço. Então é isso, filho… Eu quero que tente se
aproximar da sua filha, por favor. Jade está crescendo, cada vez
mais entende as coisas e não acho justo que seu pai fique com um
título que te pertence. Pode pensar sobre isso? Por favor?
— Estou aqui, não estou? Então isso já deve ser alguma coisa.
— É um bom começo, e enche meu coração de esperança. Por
muito tempo, tentei ser compreensiva, não te forçar a nada,
esperando pelo momento certo, e acredito que estamos cada vez
mais perto disso…
— Tá, agora podemos nos sentar? Estou um pouco cansado do
plantão.
— Podemos, sim, tem um lugar separado para nossa família.
— Não me diga que chamou todo mundo?
— Mais ou menos, só vem sua avó, a prima favorita de Jade e
sua irmã.
— Poxa, mãe, é apenas uma apresentação de criança…
— É, mas não é de qualquer um, é da Jade, nossa menina
sorridente e meiga.
Fiquei sem saber o que falar novamente.
— Vem, vamos nos sentar.
Eu não era do tipo que se emociona facilmente, mas meus
olhos se encheram de lágrimas quando a menina apareceu junto das
outras colegas de sala. Jade estava vestida de bailarina, e
apresentaram um belíssimo concerto clássico.
Ela estava sorridente do começo ao fim, nem mesmo parecia
ter sido gerada no ventre daquela puta desgraçada. Tirei algumas
fotos para guardar de lembrança. Minha mãe ficou o tempo todo
apertando minha mão, feliz demais por me ver ali, e a culpa ficou
me assolando por dentro por ser o pior pai que havia ali presente.
Foi assim que me senti.
No final da apresentação, a maioria dos pais foi para o palco, e
a minha família, que estava ali presente, trilhou o mesmo caminho.
Eu fui com a maior cara de pau, ainda que ficasse de longe, vendo
dona Gelsa encher a neta de beijos e abraços.
— Minha linda! Você foi perfeita demais, parabéns!
— Foi mesmo, a tia está muito orgulhosa, princesa…
Minha irmã, alguns anos mais nova que eu, felicitou a
sobrinha, que seguia toda sorridente. O próximo foi meu pai, e a
minha prima, que era a favorita da garotinha. Jade tinha meu
sangue, e eu nem sabia qual era sua cor preferida, bem naquele
concerto foi que descobri a sua paixão pelo balé.
Respirar ficou difícil.
— Princesa, olha quem veio te prestigiar… O papai. Quer falar
com ele?
Jade finalmente me encarou, e, porra, senti que não passava
de um estranho.
— Não — sua resposta foi certeira.
— Poxa, ele veio aqui só para te ver… Hum?
Eu já estava com uma vontade imensa de dar o fora dali.
— Ele não é meu pai, meu papai é o vovô… — Correu para
abraçar meu pai.
Dei um sorriso sem graça de lado, nem podia contestar porque
essa era a verdade.
Troquei um olhar com a minha mãe e decidi ir embora.
Aproveitaria as próximas horas para encher a cara depois de ter
passado por um furacão de emoções.
A menina não me via como pai, e nem podia culpá-la por isso.
— Marcelo?
Minha irmã segurou meu braço e me virei para encará-la.
— Não fique triste, vou tentar conversar com ela…
— Está tudo bem. — Dei um beijo carinhoso em sua testa. —
Preciso ficar um pouco sozinho. Hoje tive que lidar com muitas
emoções de uma vez só.
— Certo, qualquer coisa me liga, tudo bem?
Assenti.
Meus pais ficaram nos encarando apreensivos, e saí
caminhando.
Essa situação não deveria ter me magoado, mas foi
exatamente o que aconteceu.
Eu me sentia um verdadeiro zumbi.
Sobreviver a um plantão era sempre difícil, e o último da noite
foi muito desafiador, principalmente pela quantidade de crianças que
estavam no acidente de ônibus, que deixou algumas vítimas fatais.
Pelo que soube, as famílias presentes estavam indo para uma
excursão quando o desastre sobreveio de forma drástica. Alguns
anjinhos chegaram com ferimentos, e duas crianças acabaram
morrendo de parada cardíaca. Foi preciso que toda a equipe do
hospital entrasse em ação, prestasse atendimento e fizesse o
impossível para salvar aquelas pequenas vidas inocentes.
E no dia seguinte trabalhei sem parar, tomei tanta cafeína que
passei a agir no automático. Fiquei responsável por acompanhar a
internação de meus pacientes, levar para fazer exames e outros
procedimentos para averiguar o grau de fratura de alguns que
quebraram braços, pernas. Como falei no começo, um verdadeiro
caos. Apesar da situação delicada, era melhor agradecer uma fratura
do que perder a vida. Meu coração esteve a ponto de sair pela boca
quando tive que dar a confirmação de três mortes, sabendo que os
pais dessas pessoas estavam em situação delicada, cheios de
ferimentos. Eles estavam bem conscientes e, ao saber, ficaram
devastados, com toda razão.
Eu que tive que prender o nó na garganta.
Uma coisa era certa, sempre iria ficar sensibilizada com as
crianças...
— Tia Aulola, você vai voltar?
Antes de ir embora, passei rapidinho pelo quarto onde os
anjinhos estavam.
— Vou, sim, neném linda. Só vou em casa dormir um
pouquinho, sabe?
— Jula?
— É, a tia precisa recuperar as forças para voltar e continuar
cuidando de você.
A menininha me deu um sorriso de lado, estava visivelmente
cansada.
— Quelia ver a mamãe…
Precisei engolir em seco. Como diria para aquele anjinho que
sua mãe estava em uma situação delicada, e iria passar por uma
cirurgia bem complicada no cérebro?
— Logo a verá, princesa — falei, rezando por dentro para que
aquilo se cumprisse.
— Tá bom…
— Por enquanto, vou te deixar em boas mãos até o meu
retorno, viu?
Forcei um sorrisinho, eu me sentia muito cansada em todos os
sentidos.
— Ora, ora, o que temos por aqui.
Mia apareceu na sala com uma prancheta em mãos, já que iria
assumir o plantão.
— Quantos nenéns lindos. Eu me chamo Mia, e vou cuidar de
vocês. Quem quer se apresentar primeiro?
Troquei um sorriso com a minha amiga, que iluminou a sala
com sua energia vibrante. Ela podia não ter o juízo certo no lugar,
mas era uma excelente pediatra, dessas que compram ursinhos para
dar de presente, e um monte de coisas.
— Agora é a minha hora de ir, preciso dormir pelas próximas
vinte e quatro horas.
— Bom descanso, doutora Jones. — Piscou um olho brincando.
— Obrigada — despedi-me dela e das crianças para enfim
partir.
Abri a porta do carro e joguei a bolsa no banco. Quando segui
para o outro lado e fiz menção de entrar, algo chamou a minha
atenção. Era Marcelo, de terno e com a cabeça encostada no
volante, parecia desolado e isso me deixou intrigada.
Caminhei até onde o doutor estava e bati na porta para
chamar sua atenção.
— Hum, oi…
— O que aconteceu? — fui logo perguntando, porque de fato
me preocupou.
— Minha filha não gosta de mim, e a porra da culpa é toda
minha!
O vidro estava aberto, e consegui sentir o cheiro forte de
álcool. Outro ponto que me deixou com a pulga atrás da orelha foi o
fato de ele ter uma filha, bem chocante. Algo em mim destravou e
pedi que abrisse a porta para que eu pudesse entrar.
E ele me obedeceu, estranhamente. Aposto que vai chover
mais tarde.
— Marcelo, o que está fazendo aqui no estacionamento?
Ninguém pode te ver assim, você é o chefe e isso não vai pegar
nada bem — lembrei-o.
— Não ligo para isso, porra… Eu só penso no quanto aquela
menina me odeia.
— Seria invasivo se eu perguntasse onde está a mãe da
menina?
— Em algum lugar do mundo dando a porra da boceta para
outro otário.
Fiquei sem palavras.
— Fui a uma apresentação dela mais cedo, estava linda
demais, saltitante, mas no final não quis nem conversar comigo e
disse que o meu pai era o pai dela…
Qualquer um facilmente entenderia que a menina fora criada
pelos avós, e que a ex do doutor era uma sem-noção, enfim. Deduzi
tudo isso atando as pontas soltas da sua conversa.
— Como veio parar aqui nesse estado alcoólico? — questionei.
— Gosto de beber em um barzinho que fica aqui perto… —
respondeu embolado.
— Bom, acho que vou bancar o anjo salvador e te levar para
casa.
— Não vou, me jogue em qualquer lugar mas não me leve
para lá…
— Então vou te deixar aqui e correr o risco de manchar seu
nome facilmente? Eu te odeio, doutor Marcelo, mas não a ponto de
permitir uma coisa dessas.
— Pois deveria… Estou tão fodido na vida que nada mais me
importa, se quer saber.
— Está falando isso porque está bêbado e com zero raciocínio.
— Tenho propriedade para isso, darling.
Começou…
Bufei.
— Vou pegar minha bolsa e vamos dar o fora daqui!
— Me deixa, Aurora… Só vai embora.
— Não me dê ordens, doutor que bebe mais que um Opala!
— Que merda quer dizer isso?
— Amanhã te digo, quando estiver devidamente recuperado.
Saltei para fora do carro.
Droga! Eu deveria estar no caminho de casa, e não cuidando
daquele idiota.
Marcelo passou o caminho inteiro dizendo que não iria para
casa, e o que fiz? Levei aquela geladeira Electrolux para o meu
minúsculo apartamento. Ainda bem que a minha amiga não voltaria
nas próximas horas, o que me daria tempo para lidar com aquele
bêbado, que, apesar desse pequeno detalhe, era muito cheiroso.
Não era qualquer cheiro, exalava riqueza, um amadeirado forte
e bem sensual.
— Nem acredito que servi de apoio para você o caminho
todo…
— Por que nessa porra não tem elevador? Caralho, não morro
mais depois dessa.
— Vai ter quando eu ficar mais ou menos rica e procurar um
cantinho melhor.
— Eu vi na ficha de quem você é filha, imaginei que morava
em um lugar chique.
Joguei seu corpo mole no sofá com força, e o babaca só riu
baixinho.
— A riqueza é dos meus pais, não minha! Quero construir
minhas coisas, frutos do meu trabalho, sem precisar usar ninguém
como ponte, o que não foi seu caso.
— Diz isso só porque fui nomeado? Tem que ver toda a minha
trajetória; faz anos que sou médico, trabalho com dedicação e muita
competência. Meu pai podia me nomear se quisesse, mas a diretoria
teria que aprovar antes, e, como pode ver, decidiram me dar uma
chance por acreditarem na porra do meu potencial.
— Sei. — Dei de ombros. — Assim como não suporta cheiros
ruins, digo o mesmo. Tem um banheiro no corredor, vai lá lavar seu
corpo e boca fedorenta, pois vou fazer um café quentinho para
mandar essa bebida no seu sangue embora.
Marcelo levantou-se, e passou as mãos nos cabelos
bagunçados.
— Aham, valeu por me salvar…
— Imagina, eu faria isso por qualquer cachorro abandonado
na rua.
— Quer dizer que virei animal?
— Não, pensando bem, seria uma ofensa para o reino animal.
Ele gargalhou rouco, e saiu andando todo atrapalhado. Minha
pupila dilatou quando aqueles quase dois metros de altura
tropeçaram no tapete e caíram de frente no chão.
Juro que tentei não rir, mas foi difícil me conter.
Corri logo em seguida para ajudá-lo a se levantar, e suas mãos
me agarraram.
— Não acredito que vou ter que te dar um banho, doutor…
— É o que parece, vai ter a chance de ver meu pau, só que
mole.
Fiz careta, com nojo só da possibilidade de ver aquela coisa.
— Só que não, vai tomar banho, mas será bem vestido! É
pegar ou largar.
— Por que está fazendo isso? Você me odeia…
— Já falei que estou pagando de anjo, mas só por essa noite.
— Obrigado?
— De nada.
Consegui me levantar e puxar aquele corpo pesado e bem
musculoso.
— Agora vamos, ou terei que te expulsar do meu apartamento.
Eu já estava acostumado a acordar com uma puta dor de
cabeça.
O latejar na testa não chegou perto do incômodo que senti no
ouvido. Abri os olhos de uma vez. Logo notei que estava todo
enrolado, o calor me assolando, e me esquivei das cobertas. Em
seguida notei que estava apenas de cueca boxer. E, bom, aquele não
era o meu quarto, por isso pensei que só podia estar sonhando.
— Droga… Onde estou?
Estendi uma mão para esfregar os olhos, e levantei-me em um
rompante.
Caminhei até um interruptor para acender a bendita luz, e
notei que se tratava de um quarto simples, onde havia apenas uma
cama de solteiro e nada além disso.
Engoli em seco, e me arrependi por ter bebido muito na última
noite. Eu tinha um sério problema quando o assunto era álcool, pois
gostava de usar meu tempo livre para esvaziar quantas garrafas
conseguisse, e no dia seguinte ficava podre de ressaca. Meu pai já
havia puxado minha orelha a respeito disso, ele se preocupava ainda
mais agora que eu fora designado para um cargo importante. Eu
estava à frente de cirurgias, e qualquer erro meu poderia colocar
uma vida a perder além da carreira de toda a minha equipe.
Eu tentava não me aproximar de um copo de álcool e já tinha
eliminado qualquer rastro de bebida do meu apartamento temendo
me tornar um alcoólatra. Mas, quando as coisas apertavam na
cabeça, corria para buscar refúgio num bar.
Porra…
Era duro pensar que chegara a esse nível. Estava tão quebrado
por dentro, emocionalmente fodido por escolhas que fizera e me
colocaram nesse inferno.
Flashes da apresentação da minha filha me acertaram em
cheio. Sorri orgulhoso ao recordar que Jade estava linda, dançava
toda empolgada, e suspirei sabendo que ela preferia meu pai a mim,
com razão, porque eu não passava de um estranho que só a ajudava
financeiramente.
As coisas seriam diferentes se sua mãe não tivesse me traído.
A menina não era culpada, mas a mágoa em meu coração ruíra
tudo. Perdi os primeiros meses de vida da minha filha, aniversários,
consultas e por aí ia…
Se jade era o que era, eu devia isso aos meus pais, que
assumiram a responsabilidade por sua criação, protegendo-a e
desempenhando o papel de verdadeiros guardiões com maestria até
os dias atuais. Esse foi um dos principais motivos pelos quais aceitei
o cargo de chefe, o desafio e a responsabilidade de proporcionar ao
meu pai a merecida aposentadoria. Se por um lado eu dava
desgosto por não cuidar da minha filha, por outro retribuiria
conquistando a posição que sempre almejaram para mim, mesmo
com minhas falhas.
E minha maior falha era a maldita bebida, que poderia foder
tudo que me restava.
Decidi sair do quarto, precisava tomar um banho e ir para
casa; tinha um compromisso na parte da tarde e sob hipótese
alguma poderia faltar. Assim que pisei no corredor, ouvi um som
ligado, não estava muito alto, mas incomodou.
Justin Bieber? Sério isso?
Parei à porta da cozinha, cruzei os braços e fiquei quieto vendo
Aurora cantar, erguer os braços animada, ao som de Beauty And
Beat. Foi uma cena engraçada, inusitada e mais surpreendente ainda
era o fato de ter dormido em seu apartamento. Como se um balde
de água tivesse caído sobre a minha cabeça, lembrei que a encontrei
no estacionamento do hospital e que fez o favor de me dar carona.
Do restante não conseguia me lembrar bem, provavelmente tinha
pegado no sono.
Eenie Meenie ecoou pela caixinha, outro feet do cantor, e foi aí
que a doutora ficou ainda mais animada, manjando bem na letra,
como se houvesse decorado. Prensei os lábios para não cair na
gargalhada, já que vê-la assim estava sendo divertido.
Onde estava a garota que queria me matar?
Ali só parecia mais uma jovem descompromissada, livre de
problemas, com uma alma leve, que se permitia ser feliz com a
porra de uma música. Aurora se virou, e seus olhos se arregalaram;
para descontrair entrei no clima e dancei.
— Eenie, meenie, miney, mo. Catch a bad chick by her toe. If
she holla, if-if-if she holla let her go… — cantei agitando as mãos no
alto.
Convenhamos e convenhamos, podia já estar na casa dos
quarenta e quatro anos, mas sabia aquela letra, porque tinha uma
irmã que um dia já fora fã daquele cantor.
Aurora desligou o som, e cruzou os braços, fuzilando-me pelo
olhar.
— Te faço cavar sua própria cova se disser a alguém que me
viu fazendo isso.
— Opa, e que mal tem isso? Não vi nada de mais, só um
espírito entrando no corpo de uma garota que na maioria do tempo
age como se fosse uma senhorinha.
— Engraçadinho… Cadê suas roupas? Acha que é bonito estar
na casa dos outros só de cueca? Ainda mais sendo a porra do meu
chefe! — enfatizou.
— Acordei atordoado, e nem me preocupei em me vestir, peço
desculpas. — Limpei a garganta, e fui até a mesa para puxar uma
cadeira e me sentar. — Mas acho que já passamos dessa fase, você
dormiu primeiro na minha casa e cá estou eu na sua, consegue ver
o nível que avançamos? De inimigos para amigos…
— Não te vejo como amigo nem nunca verei!
— E por quê? Sou tão ruim assim? — Fiz um bico fingindo
estar magoado.
— Não adianta explicar, sua cabeça parece não servir para
raciocinar.
— Sou médico cirurgião, como pode dizer isso na minha cara,
doutora?
— Dizendo, oras, e quanto a sua profissão, isso não vem ao
caso. O que estou tentando dizer é que não penso em ser sua
amiga, e o fato de termos dormido na casa um do outro não nos
aproximou em absolutamente nada.
— Assim você fere o meu coraçãozinho…
— Quer me dizer o que estava fazendo no hospital bêbado
daquele jeito? Sei que mencionou uma coisa sobre a filha e tudo
mais…
— É coisa minha, e acho que, já que não somos amigos, não
preciso te dizer.
— Salvei sua barra, e impedi que seu nome fosse colocado em
fofoquinhas pelos corredores do hospital, então mereço no mínimo
um pouquinho de informações.
— Mas não vai, princesa dos anos dois mil. Qual é a parada de
ser fã de Justin Bieber?
— Quem disse que sou fã?
— Te vi cantando duas músicas como se estivesse dentro de
um show dele.
— Você cantou uma parte e acho que nem isso te faz parecer
um fã.
— É verdade, sou bem velhinho para essas coisas de
adolescentes.
— Diz como se eu fosse uma… — Revirou os olhos.
— É, sim, de longe consigo sentir seu cheirinho de leite.
— O único cheiro que sentiu em mim foi de bebida, e isso não
conta.
— Ah, nem me fale, que só de lembrar sinto vontade de
vomitar…
— Ainda bem que te coloquei para dormir em um quarto de
visitas, jamais deixaria o fedor que exalava seu corpo ficar
impregnado no meu quarto.
— Como tem certeza disso? Não me diga que me banhou?
— Mais ou menos isso…
Pisquei os olhos.
— Viu o pau do seu chefe?
— Nam, ecaaa! Tudo que fiz foi te colocar dentro do chuveiro,
e você me ajudou a tirar suas roupas; depois disso peguei uma
cueca, das novas, que Liam gosta de deixar quando vem dormir no
quarto em que te coloquei — explicou. — Eu precisava te pôr para
receber uma ducha ou iria me perturbar pelo resto da noite.
— E como me vestiu? Duvido que não tenha visto nada…
— Você estava bêbado, mas não completamente inconsciente
e me ajudou.
— Sei, só me diz por que não me lembro de nada?
— Agora pronto, foda-se! Deveria me agradecer por ter feito
tudo isso.
— Obrigado? — Soltei um beijinho.
— Vou te servir um café da manhã, depois trate de se vestir
para me dar uma carona até o hospital, onde deixei meu carro, já
que vim no seu…
— Pode deixar, doutora, que salvou a minha reputação.
— De nada.
Ela me mostrou a língua antes de se virar e fiquei rindo
baixinho.
O plantão no hospital mal começou, e logo fui escalada para a
emergência.
Enquanto me preparava, fui informada por Grace, a médica e
minha mentora ali, sobre o que acontecera. Os corredores
tumultuados, profissionais de saúde agitados. Muitos leitos estavam
ocupados, e havia muitas pessoas precisando de atendimento. Um
incêndio em uma fábrica de sapatos, as chamas se espalharam
muito rápido para a parte de cima do prédio, o que deixou famílias
em situação delicada. O corpo de bombeiros prestou toda a
assistência necessária e possível, mas foi quase impossível conter
certos danos físicos.
Havia muitos feridos com queimaduras graves e outros em
estado crítico.
— Aqui, esta é a ficha de alguns pacientes que estão na
enfermaria…
Assenti.
— Faça tudo que acabei de pedir, logo volto para averiguar
melhor a situação.
— Pode deixar, doutora…
— Agora vai, Aurora, não temos tempo.
Engoli em seco, e parti conforme fui orientada, para a
emergência. Ao passar pela porta, me segurei para não fazer careta
ao ver a quantidade de feridos nas camas. Li na prancheta a ordem
de prioridade, e então fui até um homem que gemia de dor.
— Olá, me chamo Aurora…
Tomei um susto quando um garotinho que aparentava ter
quatro anos surgiu por baixo da cama e agarrou minha perna.
— Pai tá dodói… Muito dodói... — Seus olhinhos estavam
cheios de lágrimas.
— Acabei de chegar e prometo que vou fazer de tudo para
curá-lo. — Estendi uma mão para tocar em sua cabeça, e avistei um
machucado na testa do menino. — Hum, posso te pegar para
colocar aqui na cama? Quero ver uma coisinha.
— Doutora, ele correu na hora em que as coisas começaram a
pegar fogo, justo no segundo em que uma tábua acertou direto aí
onde está vendo — o pai disse preocupado. — Ainda bem que minha
esposa não estava em casa na hora.
— Sei… — Peguei a criança com cuidado e coloquei na cama
para examinar.
Era um corte superficial, não muito grave, só precisaria
higienizar e cobrir. Já o homem ao lado iria precisar de bem mais
que isso, tinha escoriações em várias partes do corpo. Ainda bem
que não estava sozinha, havia enfermeiros por ali, inclusive Liam,
que prestava atendimento a uma senhorinha. Nem tive tempo de
cumprimentá-lo em meio a toda agonia; não dava para focar em
nada, senão em dar o melhor para aquelas pessoas.
— Esses imprevistos são horríveis, não é mesmo? O pior já
passou, e o melhor ainda está por vir, não é mesmo pequeno? Pode
me dizer qual é o seu nome?
— João… — respondeu, e em um movimento vi que uma das
mãos estava bem vermelha, logo fiquei preocupada.
— Se me der licença, a tia Aurora vai ver esse machucado
aqui, viu? Pode me dizer como conseguiu?
— Meu brinquedo… O fogo tava matando… — sussurrou
apressado.
Era uma queimadura pequena, mas precisaria ser cuidada para
evitar agravamentos.
— Bom, vamos ter que cuidar disso aqui. Só vou dar uma
olhadinha no seu pai e pedir para alguém vir dar continuidade
enquanto cuidarei de você, João.
— Eu só queria o meu ursinho…
— Foi atrás daquela bosta e quase perdeu a vida.
— Mas era meu… Vovó me deu.
— Bobagem, foi tentando te salvar que acabei me
machucando mais.
Fiquei calada diante da interação dos dois, enquanto
examinava o senhor. Aquelas escoriações iriam precisar de um pouco
de atenção, e entraria com uma medicação, principalmente porque
nas próximas horas ele iria sentir muita dor nas partes feridas.
Liam, assim que acabou com a senhorinha, veio me dar
suporte, pois precisei focar na criança. Peguei o menino no colo
novamente para colocá-lo em outra maca.
— Então, João, qual foi o ursinho que você perdeu? — puxei
assunto, enquanto pegava o material para limpar o ferimento na
testa da criança.
— Um panda, vovó me deu quando eu ainda estava na barriga
da mamãe.
— Ah, foi? Eu tenho uma amiga pediatra que ama muito ursos,
sabia? Tanto que ela deve ter vários na bolsa. Posso pegar um para
você, o que acha?
— Jura? — Deu um sorrisinho de lado.
— Juro de dedinho.
Limpei o machucado, passei uma pomada e fechei para evitar
que ele ficasse passando a mão no local e causasse alguma
infecção. A próxima parte era cuidar da outra queimadura, e que
com toda certeza era a parte mais delicada.
— Perfeito, João, agora vamos ver um médico que tem
superpoderes e vai me instruir nos próximos passos para cuidar do
dodói na sua mãozinha — falei com carinho, sempre com um sorriso
no rosto para passar confiança e segurança.
— E vai doer?
— Vai não, escutou o que falei? Ele tem superpoderes e faz a
dor desaparecer.
— Sendo assim, tá bom, mas e a minha mamãe?
— Vamos encontrá-la. — Sorrio de lado.
Fiz um carinho nos cabelos do menino.
O único médico que encontrei disponível para me ajudar foi
Marcelo, que acabava de sair de uma cirurgia. João, meu
minipaciente de quatro anos, sofrera uma queimadura de primeiro
grau, e entramos logo com o procedimento para tratar.
— Doutor, você tem qual poder?
Eu estava terminando de enrolar a mão do menino, que puxou
assunto com o loiro, o médico estava visivelmente cansado.
— Hum… Eu tenho um bem especial, sabia?
— Jura? E qual é?
— Tenho em mãos a chance de tirar problemas de dentro das
pessoas e arrumo toda a bagunça que encontro pela frente —
contou pacientemente.
— Então o senhor é como a tia Aurora?
— Quase isso, temos poderes parecidos, só que em áreas
distintas.
Fiquei calada, enquanto terminava o meu papel como médica.
— Pronto, João, agora vamos dar uma olhadinha em seu pai…
Liam entrou do nada na sala chamando meu nome, e fiquei
em alerta. Pensando no pior, levantei-me de uma vez e saí para ver
o que era.
— O pai do menino vai ficar em observação, teve uma queda
repentina de pressão, coração começou a bater rápido demais. Estou
esperando o cardiologista sair de uma cirurgia para olhar o paciente.
Entrei com medicação e fiz tudo que podia, agora temos que
aguardar vaga para fazer alguns exames…
— Sei, e veio aqui me pedir para ficar com o menino?
— Vai ter que pedir isso para outra pessoa, estão precisando
de você. Chegou uma grávida com pré-eclâmpsia, e ao que tudo
indica vai acontecer um parto prematuro.
Coloquei uma mão na testa.
— Meu Deus, parece que este hospital vai cair a qualquer
momento…
— Só vim dizer isso, tenho que ir cuidar de outras pessoas.
Assenti com a cabeça, e Marcelo saiu da sala, vindo até mim.
— Aposto que a brinquedoteca que meu pai criou para a
pediatria está vazia, e tem uma enfermeira responsável por lá —
sugeriu, colocando as mãos no bolsos do jaleco. — Preciso ir, o
dever me chama.
— Certo, de toda forma muito obrigada…
— De nada, Aurora. — E assim foi embora.
Ninguém tem controle sobre como um plantão pode começar e
terminar. As últimas vinte horas foram intensas, nem tive muito
tempo para me sentar, comer alguma coisa, porque simplesmente
não deu. Comecei com um pai e seu filho, parei em um
acompanhamento de parto prematuro, e o restante do tempo passei
atendendo pacientes internados na enfermaria, foram muitos.
Nos jornais só se falava do bendito incêndio na fábrica. Foi um
verdadeiro caos.
Abri a porta do carro e joguei minha bolsa dentro, quando
meu telefone tocou. Era a minha mãe e decidi atender, caso
contrário receberia uma visita inesperada.
— Filha… Estou sabendo do que aconteceu. Como você está?
Ajeitei o telefone na mão.
— Tudo sob controle, estou indo agora para casa.
— Faça isso, e quando chegar me ligue novamente, tudo bem?
— Sim, mamãe, beijos… — Guardei o celular.
— Dia cheio, Aurora?
Virei-me para encarar Marcelo.
— Sim, e o seu?
— Ainda não acabou… — Forçou um sorriso. — Bom descanso.
— Obrigada — falei, entrando logo no carro para ir enfim
embora.
Eu sempre soube que seria cirurgião, não apenas pelo fato de
que meu pai também era. Ele fundou um hospital, atuou em um
cargo de chefia com grande competência e foi reconhecido
nacionalmente pelo seu trabalho. No meu caso, a paixão começou
desde que ingressei na faculdade de medicina, eu logo soube que
iria além, lidar com bisturis, tesouras, pinças, espátulas, agulhas e
afastadores.
E consegui me tornar um…
Fiz residência, aproveitei ao máximo para aprender, agarrei
cada oportunidade e não deixei que nada me distraísse no caminho.
Lembro-me da primeira cirurgia solo que fiz como se fosse ontem;
um paciente de apendicite, fiquei um pouco nervoso, ainda que me
sentisse completamente preparado. Sentir medo era esperado, dado
que eu nunca tinha feito isso sozinho, mas no final deu tudo certo.
Fui parabenizado e elogiado por outros profissionais presentes.
Aquele momento só comprovou o que sempre soube, nasci
para ser cirurgião.
Ao longo dos anos, fiz várias cirurgias e participei de outras.
Sem sombra de dúvidas, cada experiência é única, e sempre há
aprendizados para a vida inteira. É doloroso quando uma vida
escapa pelas minhas mãos graças a uma complicação de que, como
ser humano, eu não tenho controle algum. Nesses momentos, nós,
médicos, fazemos o possível, mas, quando a hora de alguém chega,
não há quem possa impedir.
Na primeira vez que perdi um paciente, senti uma dor absurda
no coração, doeu como se fosse parte da minha família, a culpa me
sufocou e me deixou muito mal. Pensei até em desistir da minha
profissão, mas meu pai me deu um aperto no ombro, e um conselho
que guardo até os dias atuais dentro de mim.
“Não temos controle sobre nada… Certas coisas da vida são
como devem ser.”
Por isso, sempre quando algo acontecia, eu tentava colocar na
cabeça que fizera o meu melhor, tentara, me entregara ao máximo,
e não deveria carregar aquela culpa. Meu velho gostava de dizer que
o que acontecia na mesa de cirurgia ficava lá, e não podíamos trazer
para fora, pois corríamos o risco de adoecer mentalmente.
Muitos gostam de dizer que devemos separar o pessoal do
profissional, só que em alguns casos é uma tarefa difícil. Somos
humanos e criamos vínculos, torcemos pelos pacientes. Por mais que
me esforçasse, ser frio não era e nunca seria o meu forte. Eu
sempre fui divertido, gostava de fazer piada com tudo e levava as
coisas na esportiva. E, por mais que sentisse que essa parte de mim
estava azeda, vez ou outra ela dava as caras.
Dei um gole no café, e relaxei os ombros na cadeira.
Tentara descansar na última noite, repor as energias, mas não
consegui, fiquei revirando na cama para um lado e para o outro. E
tudo porque estava com vergonha pelo papelão que havia feito na
frente de Aurora. Tinha bebido muito, passado da conta, e ainda dei
trabalho para aquela que me odiava.
Eu fingia odiá-la também, mas era claro como sol que não
sentia nada disso por aquela baixinha; como não podia ficar por
baixo, retribuía as farpas ao nível. Tivemos que trabalhar juntos no
último plantão e de fato foi bom, sem brigas, só compartilhamos
conversas a respeito dos pacientes e como tratar algumas coisas.
Foi bom. Aurora não era uma má pessoa, parecia bem focada,
determinada, e tinha um jeito bem dinâmico de cuidar dos pacientes
mirins; falava docemente e sorria. É aquilo, não dá para escolher
pediatria sem ao menos amar de verdade crianças. E aquela garota
de franjinha e óculos tirava de letra, sem precisar fazer esforço.
Meu celular vibrou, e vi o nome do meu melhor amigo na tela.
Como tinha um tempo livre, decidi atender para colocar os papos em
dia.
— Quem é vivo sempre aparece…
— Te liguei não faz dois dias, babaca!
— E cá estou morrendo de saudades. — Fiz um bico e caí na
gargalhada.
— Idiota. Só liguei para saber como estão as coisas por aí,
chefe.
— Agitadas, muito trabalho, cirurgias, e assim vai.
— Quando vai vir visitar seus afilhados?
Henry levava uma vida bem pacata, havia se aposentado da
medicina, e curtia a vida com a esposa e os filhos gêmeos. E pensar
que acompanhei o amor dos dois. Tudo começou quando o doutor
encontrou a cantora em um evento em que ela trabalhava. Um
incidente no percurso os levou a uma noite juntos, e essa foi só a
primeira das muitas que vieram, além de uma gravidez inesperada.
Meu melhor amigo queria uma esposa perfeita, e achou uma
baixinha de cabelos pretos, tatuagens e com alguns piercings,
quebrando todos os estereótipos da boa esposa que povoavam a
mente dele. Os dois não tinham nada a ver um com o outro, mas
um acaso do destino os uniu.
Eles eram felizes, e me deram a honra de ser padrinho dos
gêmeos. Eu os amava.
— Logo, estou morrendo de saudade e precisando descansar
também — respondi.
— É bom que venha mesmo, ou teremos que ir aí te buscar
pessoalmente.
— Se fizer isso vai ser melhor ainda. — Dei de ombros. —
Estou quebrado, porra.
— E vai se quebrar mais ainda, agora que é a porra do chefe.
— Riu zombando.
— Acho que você deveria fazer amizade com uma pediatra
aqui, os dois juntos conseguem acabar com a minha raça e
humilham até a minha última geração.
— Peraí, que conversa é essa? Estou perdido. Explica isso do
começo.
— Não é ninguém importante, só uma residente que me
detesta com todas as forças. Aí você gosta de zombar de mim na
caradura, caso se junte a ela estou frito!
— Então vocês são inimigos?
— Ela, sim, porque eu não consigo odiar ninguém além
daquela… — Parei de falar. — Bom, você sabe.
— E essa pediatra tem mais ou menos quantos anos?
Torci os lábios para o lado.
— Vinte e quatro, baixinha, o que a faz parecer ter bem
menos. Tem aquele estilo de nerd, sabe? Ainda por cima usa óculos
e uma franjinha. — Riu. — Não é bonita demais, por isso nem pense
besteira, seu cara de cu!
— Quando as coisas começam com muito ódio, tendem a
terminar com amor.
— Com certeza, logo ela seria capaz de me colocar para cavar
minha própria cova. Nem faça essa cara de incrédulo, porque foi
exatamente o que ouvi a médica falando.
— Amor, vem ouvir essa fofoca quentinha.
Revirei os olhos, e não demorou muito para Mary aparecer na
chamada de vídeo.
— E aí, qual é a boa da vez? Quando vou conhecer a minha
cunhada?
— Acho que nunca, doidinha, porque pretendo ficar solteiro
até a morte.
— Aham, mente mais, que acredito em você, Marcelo. Pode
me dizer logo!
— É uma pediatra valente que parece colocar medo nele,
acredita?
Ai, que vontade de surrar a cara do meu amigo!
— Olha aqui, casal, preciso ir nessa, tenho mais o que fazer.
— Não sem antes dizer quando vem nos ver…
— Em breve, Mary, um beijo nas crianças e um soco na cara
do seu marido.
Eu me despedi deles e desliguei a chamada.
Aproveitei que estava mexendo no celular, e dei uma olhada
no grupo da minha família, dona Gelsa compartilhou algumas fotos
de Jade na apresentação. Abri um sorriso involuntário, e fiquei
pensando nas palavras que ouvi da minha mãe.
Será que era momento de virar a página, esquecer o passado
e tentar ser um pai?
A matriarca da família não mentira ao dizer que estava ficando
velha, uma forma de comunicar que não tinha a mesma disposição
de antes, afinal criar uma pessoa exigia muito esforço, dedicação e
paciência. O problema era que eu não fazia a mínima ideia de como
começar e consertar tudo.
Bom, o primeiro passo seria tentar…
Mandei uma mensagem para a psicóloga e agendei uma
sessão. Após isso, continuei vendo fotos da minha filha, era muito
linda e, porra, idêntica a mim.
— Jade, não sei como vou consertar nossa relação, mas
tentarei…
Guardei o celular e dei continuidade ao meu trabalho
atendendo às demandas.
Eu odiava ficar doente, mil vezes merda!
Mesmo tomando todos os cuidados necessários, acabei
contraindo uma virose, o que consequentemente me deixou de
atestado e também de molho na cama. Meus pais, ao saberem,
trouxeram uma farmácia para me ajudar na recuperação; era tanto
medicamento que eu teria um estoque até a próxima geração.
Sim, os dois eram completamente exagerados…
Sempre soube disso e, quando eu era pequena, isso se tornou
ainda pior. Lembro que, a cada roupa comprada, outras da mesma
cor vinham junto no pacote. Meu armário vivia sempre cheio, de
sapatos a utensílios pessoais. Confesso que nunca valorizei esse
exagero, sendo que no final das contas tudo se tornava um
acúmulo. Quando fui ficando maiorzinha, tendo voz para me opor às
decisões que tomavam, passei a fazer doação para o orfanato em
que vivera por longos anos.
E isso nunca mudou…
Todo ano volto lá para levar coisas que não uso, em perfeito
estado, para ser usado em algumas meninas adolescentes, já que,
apesar de ter vinte e quatro anos nas costas, permanecia com corpo
e estatura de quem tinha dezoito. Eu sabia que isso era frustrante,
tentara por um tempo malhar e reforçar a alimentação, mas nada
podia fazer se aquela era a minha genética herdada dos meus pais
biológicos, os quais não conheci e nem desejava.
Desde pequena e quando fui adotada, sabia que o casal de
médicos não eram os meus pais de verdade, e isso nunca me soou
como problema, nem me impediu de chamá-los pelo título que
mereciam. Graças a eles, tive tudo que qualquer outra criança
receberia sendo a filha verdadeira. Recebi amor, carinho e proteção.
Eu os amava muito…
Tossi e corri para pegar um lenço na cômoda da cama para
limpar o nariz.
— Aurora…
Meu irmão, que estava no apartamento, bateu à porta antes
de entrar no quarto. Jason era o filho mais velho dos meus pais e foi
gerado no ventre da minha mãe antes de ela sofrer uma
complicação, graças a um mioma, e precisar fazer histerectomia.
O meio perturbado também era médico, atuava como
ginecologista, e ficava navegando o mundo, trabalhando em vários
hospitais, inclusive fora do país, anos atrás, em uma missão no
Exército. Graças a isso, era cego de um olho.
E, por incrível que pareça, nada disso roubou sua alegria e
espírito divertido.
— O que quer? Deveria estar em qualquer lugar, menos aqui.
— Tossi de novo.
— Nossa linda mãe me pediu para fazer uma sopa, já que você
só sabe cozinhar o básico e comer congelados como se não
houvesse amanhã, por isso fica doente.
— Se já fez, pode ir embora, estou morrendo de sono… —
menti na caradura.
Eu só queria ficar sozinha, amava o silêncio da casa, coisa que,
quando Mia ou Liam estavam por ali, era impossível. Ambos eram
barulhentos, do tipo que mexia com o meu sistema nervoso e me
deixava à beira de um colapso.
— Eita que gosta de me mandar embora, deixei de ser seu
irmão favorito?
— É o único que tenho.
— Sorte a sua, porque no meu caso tive que lidar com você,
uma baixinha chorona e que roubou a atenção dos meus pais —
ousou brincar.
— Devo lembrar como me recebeu no passado? Que você,
cara de bunda, aprontou todas comigo, pregou chiclete no meu
cabelo, escondeu minhas bonecas. E são só exemplos de várias
outras coisas que aconteceram.
— Eu era criança, pouco mais velho, e claro que sentiria
ciúmes.
— Ainda bem que nos entendemos, e continuo sendo a
favorita dos nossos pais.
— Só porque é toda certinha, estudiosa e excelente em tudo
que faz. — Deu de ombros, colocando as mãos nos bolsos da calça.
— Eu, por outro lado, quase fiz nosso pai infartar quando fui prestar
serviço médico no Exército, e nossa mãe pirou.
— Pirou? Ela chorou todas as noites, teve até que tomar
ansiolítico.
— É por isso que não sou o preferido da família… —
Gargalhou.
— Não acho que seja, sabe, eles gostam muito do filho que
têm. Dá para ver, pelos quatro cantos da casa, fotos suas até dizer
chega. — Fiz careta. — E, mesmo odiando a escolha que você fez,
no fim se sentiram cheios de orgulho.
— Eu poderia ter voltado morto, sorte que aquela explosão
levou só um olho.
— Nem brinca com isso! Apesar de tudo, que bom que voltou
vivo.
— Faz anos que voltei, Aurora.
— Sei, mas nunca está perto o bastante, sempre viajando.
— Mas agora isso vai mudar, estou esperando uma resposta
para trabalhar no mesmo hospital em que você faz residência —
contou com entusiasmo.
— Como assim?
— Ué, pelo que vi estão precisando de um ginecologista,
então…
Levantei-me em um rompante da cama.
— Não vai trabalhar comigo! Tudo menos isso!
— Vai ter que contestar o chefe, ele é o único que pode
impedir isso.
— Me peça para morrer em vez de implorar para aquele
Capitão América!
— Marcelo já teve muitos apelidos, mas esse aí é novidade. —
Riu alto.
— Como sabe que esse é o nome dele? — Franzi o cenho.
— Somos amigos de longa data e parceiros de copo de
cachaça.
Era só o que faltava.
Senti vontade de colocar tudo que comi para fora.
— Meu irmão favorito é amigo do cara que não suporto nem
ver…
— Nem vem com isso de favoritismo, repito, sou o único que
você tem, doida! E que história é essa de que não suporta? O que
aconteceu entre os dois que não sei?
— Não aconteceu nada, já que prefiro beber veneno a ter algo
com ele. — Fiz o sinal da cruz, só para dar mais uma dose de drama.
— É que tivemos alguns encontros paralelos e desastrosos, ou seja,
o ódio é recíproco.
— Engraçado que aquela cabeça loira não comentou nada
sobre isso.
— E nem vai, só falei porque você mencionou o nome do
doutor-chatão.
— Vai ser engraçado trabalhar com os dois, quero ver é
pancadaria.
— Eu jamais protagonizaria uma briga no meu ambiente de
trabalho!
— O ódio leva qualquer pessoa a cometer besteira, Aurora.
— Tenho total controle e juro de pé junto que isso nunca vai
acontecer.
— O melhor seria fazer as pazes, vai por mim, Marcelo é gente
boa.
— Como médico, é espetacular e brilhante, mas como pessoa
é horrível.
— Vamos comer um pouco da sopa, aí me conta mais sobre
essa treta dos dois.
— Conto se ficar do meu lado…
— Sou amigo de ambos, você é minha irmã e ele, irmão do
coração, então fodeu!
— Eu quero saber como criaram esse laço forte. — Semicerrei
os olhos.
— Conto se me contar também o começo dessa confusão.
Pensei bem antes de assentir.
Agora pronto, Jason era amigo daquele doutor que me deixava
irritada…
Só havia uma forma de acabar com meu dia, ver Marcelo,
respirar o mesmo ar que ele, ouvir sua voz e assim sucessivamente.
Resumo, eu odiava aquele babaca.
Convidei minha mãe para um passeio em um parque de
diversões, e Jade viria junto. Tomei a iniciativa após passar uma
madrugada inteira revirando na cama, assombrado pelo sorriso da
menina que não saía da minha cabeça. Claro, a sessão com a
psicóloga fora bem esclarecedora para me ajudar nisso.
Eu sabia muito bem que não iria conseguir ser um pai de
verdade da noite para o dia, foram anos sendo ausente, mas tentar
e fazer um esforço já era alguma coisa. O que viria depois disso
seria consequência, boa ou não, pouco me importava.
Dona Gelsa confirmou por mensagem, avisando que iria, e
tratei de cuidar dos outros detalhes para que fosse um bom
momento. Meu pai não poderia participar, uma vez que precisava
acertar algumas coisas com a direção do hospital, e a minha irmã
tinha um compromisso referente à faculdade, estava cursando
medicina veterinária. Marli seria a primeira da família a quebrar a
tradição de doutores.
A maioria dos meus primos eram cirurgiões, clínicos gerais, e
assim sucessivamente, por isso, quando a princesa da casa falou que
salvaria a vida dos animais, nos pegou de surpresa. Ainda assim,
demos total apoio, porque era isso que a família fazia. Apoiávamos
uns aos outros, independentemente das escolhas. E isso dizia muito
sobre quem éramos, os Bennetts, tanto que, quando precisei de
suporte, foram meus pais que me acolheram e à bebê que era do
meu sangue, para amá-la e protegê-la.
Nem meu pai nem minha mãe me julgaram…
Por isso que tenho uma dívida eterna com os dois, e que
viverei em função disso.
— Aqui, Roberto, assinei tudo que precisava e revisei
minuciosamente.
— Perfeito, meu caro. Tenho certeza de que esse será um
passo importante para o hospital. Vai melhorar ainda mais a
emergência e os pacientes serão beneficiados.
O patriarca da minha família, antes de deixar o cargo de
cirurgião-chefe, tinha em mente expandir o hospital para uma área
que estava parada e poderia ser usada para melhorar atendimentos,
até mesmo no quesito internações. E, por isso, o meu objetivo dali
para a frente seria me esforçar para conseguir dar continuidade.
A pediatria também estava precisando melhorar,
principalmente a ala oncológica. O objetivo era organizar um
ambiente equipado, garantindo todo o conforto que aquelas crianças
mereciam, e acrescentar uma dose de diversão, uma parte lúdica,
que sem sombra de dúvidas iria fazer grande diferença no
tratamento delas. A que tínhamos era muito pequena e carecia de
profissionais da área.
Outro ponto que precisava ser melhorado.
Desde que assumi a cadeira, meu foco era rever todas as
questões necessárias, um trabalho conjunto com outros superiores e
diretores. Por isso vinha lapidando, preparando e buscando soluções
e alternativas para tirar do papel.
— Vou precisar sair, pelas próximas horas não tenho nenhum
compromisso ou cirurgia, mas meu telefone está vinte e quatro
horas ligado, caso algo aconteça.
— Pode deixar, chefe, qualquer coisa aviso. — Deu um sorriso
largo.
Troquei um aperto de mão com Roberto, peguei a maleta e saí
da sala.
Ao pisar os pés no corredor, dei de cara com Aurora vindo de
cabeça baixa. Fazia semanas que não tinha o desprazer de me
encontrar com aquela baixinha irritante.
— Opa, opa… — Parei só para chamar sua atenção.
— Oi? Precisa de alguma coisa?
Desci o olhar pelo seu corpo, mas foi só por causa da roupa,
que chamou a atenção. Ela usava um jaleco colorido, rosa e cheio de
bichinhos. Fiz careta e contive o riso.
— O que é isso? — Gesticulei com os dedos em sua direção.
— Stitch, é a nova febre entre as crianças, sempre chega uma
ou outra falando disso, aí achei na internet e comprei — contou
apressada. — Quer dizer, por que estou te contando isso? Não é
como se essa informação fosse mudar sua vida.
— Calma. — Dei um passo para trás, dramatizando. — Se for
me engolir, diga, que abro os braços ao menos para facilitar.
— Haha, que engraçadinho… — Revirou os olhos.
— Fiquei sabendo que estava doente, essas viroses derrubam
qualquer um… — Molhei os lábios, e não consegui tirar o olhar dela.
— Melhorou cem por cento?
Por que mesmo com a cara fechada, soltando fogo imaginário
pelo nariz, ela continuava bonita? Aurora não era feia, e quem
ousasse dizer isso estaria no mínimo cometendo um grave pecado.
Ainda que eu nunca fosse capaz de dizer algo assim em voz alta, em
silêncio admitia o quanto era bonita.
Apenas bonita, e ponto.
— Foi, mas já estou bem e preparada para trabalhar muito.
— Estou vendo, tanto que veio para causar… Esse seu jaleco
está um pouco apelativo.
— Trabalho com crianças, tudo que é colorido e fofo os deixa
atentos, sabe?
— Sei. Ainda bem que não sou criança, porque iria odiar ser
atendido por uma médica que está vestida parecendo um palhaço…
— soltei sem querer.
— Eu bem que adoraria atender você, só para espetar seu
braço com agulha várias vezes — disse em tom de ameaça. —
Agora, se me der licença…
— Dou nada, o corredor é enorme, e não tem nada te
impedindo…
— Como pode ser tão chato? — Balançou a cabeça para os
lados.
— Só sou com quem merece, e a senhorita adora me causar
efeito contrário.
— Meu azar é amar esse trabalho e não ter coragem de tentar
a sorte em outro lugar, do contrário faria, porque ter que te
encontrar pelos corredores é um saco!
— Tenho uma opção para resolvermos isso, o que acha?
— Hum, e o que seria? — disse, cruzando os braços.
Uni os dois dedos indicadores, fazendo uma barreira.
— Precisa cortar aqui, aí estaremos oficialmente sem nos
falar…
— Isso parece coisa que as crianças que atendo fazem, que
horror! Me recuso a brincar com um marmanjo desse tamanho. —
Fez careta.
Dei uma risada sincera.
— Você é uma graça, Aurora, bom, nos vemos por aí…
— Ei, mas topo a ideia de não nos falarmos mais de jeito
nenhum!
— Por mim, perfeito…
— Adeus, doutor Marcelo.
— Adeus, doutora Aurora.
Fui embora gargalhando.
Fazemos um plano, e de repente as coisas desandam.
No meio do caminho, recebi uma ligação de Roberto avisando
que precisavam de mim na sala de cirurgia, uma vez que o doutor
responsável sofreu um mal súbito, precisaria passar por um
procedimento de última hora. Uma coisa atrás da outra. Consegui
ligar para a minha mãe avisando o que aconteceu e que não poderia
ir, mas, como ambas já estavam a caminho, podiam ir para não
perderem os ingressos.
Mil vezes porra…
Retornei rápido para o hospital, só tive de deixar a maleta na
sala e correr para onde me aguardavam. Troquei a roupa, e fiz todos
os procedimentos necessários.
— Cara, sinto muito… Eu sabia que hoje era um dia importante
para você.
— Disse certo, era, porque agora o meu dever é salvar aquele
homem. — Engoli em seco. — O que me conforta é o fato de que
minha mãe sabe que essa é a minha missão.
— O que é um dia para quem já perdeu anos, não é mesmo?
Roberto sabia da minha situação, trabalhou por muito tempo
com meu pai, me conhecia como ninguém, e agora estava me dando
todo suporte necessário; assim como era neurocirurgião, o melhor
que tínhamos no quadro do hospital.
— Vai ter outras oportunidades, pode ter certeza disso.
Assenti.
— Então, o que temos pela frente?
— Paciente de cinquenta e nove anos com câncer gástrico em
um estado bem delicado, vamos fazer a remoção de uma parte do
estômago… — explicou detalhadamente.
Tentei prestar atenção, mas minha cabeça estava em outro
lugar.
Jade.
Construir um vínculo com a minha filha estava sendo um
verdadeiro desafio.
Mais uma vez na emergência, e eu não podia nem reclamar,
porque isso era melhor do que estar em casa, espirrando, com uma
tosse horrorosa e comendo coisas que ajudariam na recuperação e
imunidade. Odiei essa temporada sem fazer nada, a única parte boa
foi que pude assistir à minha série favorita por horas seguidas.
No entanto, nada se comparava estar bem e poder trabalhar.
Assim que fiquei cem por cento, fiz exame de sangue e tudo
estava normal, sem chance alguma de contaminar ou passar para
meus anjinhos mirins. Retornei ao hospital fazia poucos dias e, como
sempre, fui invadida por uma emoção e adrenalina.
— Aurora, uma paciente está chegando…
Preparei-me para recebê-la na porta. Fui informada de que era
uma menina de quatro anos, que caiu em um brinquedo, e
aparentava ter quebrado o braço além de outros ferimentos. Li a
ficha inteira, e corri para prestar o atendimento no ambulatório.
A criança estava acordada, veio acompanhada da avó, que não
parava de chorar.
— Está tudo bem, vamos cuidar muito bem dessa princesa
linda! — falei carinhosa.
— Por favor, meu filho vai me culpar se alguma coisa
acontecer com a menina.
— Não vai acontecer nada, pode ficar tranquila. A propósito,
meu nome é Aurora.
— Cuide da minha menina e faça o impossível, te imploro… —
a senhora disse, em prantos, agarrando meu braço.
Mantive a calma e passei toda confiança necessária naquele
momento.
Um enfermeiro trouxe a criança até a sala de atendimento,
pedi de imediato um exame de raios X para ver a fratura e a
gravidade. Em seguida cuidei dos outros ferimentos. A avó veio
junto, e pedi para uma profissional da saúde medir a pressão dela,
que por sinal estava bem alta; se não baixasse logo teríamos que
entrar com uma medicação.
— Oi, linda, como é seu nome?
— Jade — respondeu baixinho. — Tá doendo…
— Imagino que sim, consegue me contar como isso
aconteceu?
— Ela caiu de um brinquedo, foi bancar a esperta e se
machucou.
Quem respondeu foi a responsável pela criança.
— Sei. Essas coisas acontecem, não é, Jade?
A menina só assentiu com a cabeça.
— Você tem o nome de uma princesa.
Sorri, agradecida pelo elogio.
— E eu posso saber qual é sua princesa favorita? — puxei
assunto, mas mantive o foco em cuidar do ferimento antes que
viessem buscá-la para fazer o exame.
— Cinderela — respondeu. — Ainda tá doendo muito… Muitão
mesmo!
— Vou te dar um remédio que vai fazer essa dorzinha ir
embora, tá bom?
— Tá bom, princesa Aurora.
— Certinho, Princesa Jade. Você é linda, sabia?
Não só isso, como se parecia muito com alguém que não
conseguia me lembrar. Talvez fosse só uma simples coincidência, ou
coisa da minha cabeça, vai saber.
O responsável do exame entrou na sala.
— Oba, vamos lá…
A menina se agarrou na minha mão.
— Não quero ir sozinha — sussurrou manhosa.
— E quem disse que vai? Eu vou estar ao seu lado. — Sorrio
carinhosa.
— Tá.
— Obrigada, doutora Aurora, vou ficar aqui esperando, me
sinto tonta…
— É por causa do nervosismo e sua pressão, que subiu muito.
Daqui a pouco a enfermeira volta para medir novamente, qualquer
coisa te passo um remédio.
— Não será preciso, vou ficar bem.
Assenti.
— Preparada, princesa Jade? — Ajudei a colocá-la na cadeira
de rodas.
— Tô, princesa Aurora. Tudo para essa dor ir embora
rapidinho.
— Perfeito então!
Olhei bem para a menina novamente, e do nada pensei em
Marcelo, não sabia explicar por que, talvez por causa da cor dos
olhos e da cabeleira loira.
Espantei os pensamentos e foquei a atenção na minha
paciente mirim.
No exame descobrimos a fratura no braço dela, e devido ao
local seria necessário realizar um procedimento. Ao retornarmos dei
entrada na internação a fim de aplicar o medicamento para dor, até
que o ortopedista chegasse ao hospital.
— Viu, nem doeu…
— Você furou a minha veia, princesa Aurora?
— Foi, mas bem devagarinho, que nem te fez chorar, viu?
— É, não doeu. E o meu braço? — perguntou curiosa.
— Ainda vamos ter que cuidar dele, mas temos que esperar
seus pais…
A responsável pela menina precisou sair da sala para fazer
uma ligação.
— Eu não tenho mãe, só uma vovó e um papai que é o meu
avô.
Respirei fundo.
— Bom, então somos gêmeas nesse quesito, sabe? Não
conheço minha mãe verdadeira. E quem precisa de uma, não é
mesmo? — Pisquei um olho.
— Meu pai de verdade não gosta de mim — contou
sussurrando baixo.
— Ah, ele que perde, porque você é uma menina maravilhosa!
— Acha isso de mim, princesa Aurora?
— Demais. — Dei um sorriso e acariciei seu rosto. — Como se
sente?
— Tá melhorando a dorzinha…
— Vai melhorar cada vez mais. Eu prometo, viu?
A porta da sala foi aberta de forma tão brusca que tomei um
susto.
— Sai de perto da minha filha!
Virei-me para encarar Marcelo, que aparentava estar furioso
em níveis elevados.
— Ela é minha paciente, ou seja, não vou sair daqui coisa
nenhuma!
Trocamos um olhar, e um parecia mais raivoso que o outro.
Quem ele pensava que era para chegar e tentar atrapalhar um
atendimento? Foda-se que era o chefe!
— Não vai ser mais, acabei de chegar, então pode dar meia-
volta!
Pisquei os olhos.
— Perdeu a noção, foi? É claro que não vou sair daqui! Para
ela ser sua paciente, você teria que ter chegado primeiro, então só
tem uma pessoa que precisa sair daqui.
— Não vou embora, é a minha filha e preciso cuidar dela!
O discurso de pai protetor não me desceu…
— Ninguém aqui vai tirar seu título, papai, como pode ver sou
a médica da menina, e estou aqui a cumprir o meu papel!
Marcelo ia abrir a boca para rebater quando a senhora
retornou à sala.
— Que coisa mais feia, filho, peça desculpas à doutora agora
mesmo! É ela quem está a par do caso e vai cuidar até o fim! Não
foi para isso que te criamos, Marcelo, nem seu pai te deu um cargo
para chegar tirando a autoridade dos outros.
Mordi o lábio para não dar risada da cara de tacho do doutor
babaca.
— Bom, sua filha está relativamente bem, cuidei dos
ferimentos, entrei com medicamento para a dor de que ela reclama
desde que chegou, mas precisamos ver o braço dela. Foi fraturado e
vai precisar fazer uma cirurgia, o que irá resolver o deslocamento…
— segui explicando detalhadamente.
— E Jade tem capacidade para aguentar? — questionou me
encarando.
— É claro que sim, por que não teria? — Franzi o cenho.
Marcelo realmente não sabia nada sobre a filha, estava escrito
na cara.
— Eu vou estar o tempo todo com ela, não é, princesa?
Jade estendeu uma mão para mim e fui até onde estava.
— Não vai me deixar, não é? — murmurou baixo.
— Jamais, vou estar aqui do começo ao fim. — Apertei sua
mão devagar.
— Promete?
— Com certeza!
— Aurora, faça o que tem que ser feito, vou cuidar da outra
parte…
O doutor finalmente saiu da sala, e sua mãe veio me pedir
desculpas.
— Sinto muito por isso, querida.
— Já estou acostumada com ele.
Não era uma mentira, mas quem gostava de ter que lidar com
isso?
Marcelo errou feio dessa vez, e eu não iria desculpá-lo
facilmente.
— Acha bonita sua atitude com a doutora? Já pensou no que
aconteceria se houvesse outros profissionais lá dentro, seu nome
estaria na boca de todo mundo e sobraria para quem, Marcelo?
Soltei um longo suspiro e permaneci imóvel na cadeira ouvindo
o sermão do meu pai. A primeira coisa que a dona Gelsa fez foi
pegar o telefone e contar o erro que cometi com a Aurora. Eu tinha
pleno conhecimento de que o meu comportamento não fora nem um
pouco respeitoso, agi movido pela emoção e o medo que me assolou
assim que fui informado de que Jade dera entrada no hospital ferida
e com o braço fraturado. Demorei um pouco para ir vê-la, pois
precisei finalizar a cirurgia primeiro.
— Para o senhor, papai… — respondi, sabendo que, se ficasse
em silêncio, iria contribuir para que meu velho ficasse ainda mais
irritado. — Olha aqui, sei que errei com a doutora Jones, e irei pedir
desculpas por julgar seu trabalho daquela forma.
— É um passo importante, mas, meu filho, realmente não
entendi isso. Qual o seu problema com aquela garota? Que a meu
ver é uma pediatra esforçada, tanto que ninguém aqui neste prédio
tem o que falar contra, e Jade simplesmente a amou. Tinha que ver
a confiança que ela passava, o que ajudou sua filha, mesmo ferida,
a permanecer em uma calmaria que me deixou surpreso — falou me
encarando.
— Percebi. — Engoli em seco.
Não retornei mais à sala onde a menina estava internada,
mantida sob observação, até que o ortopedista chegasse para o
plantão e desse continuidade ao atendimento. Mas não é porque
não fui lá que não fiquei observando as duas pela janela e pela
câmera de segurança que havia nos leitos. Minha filha se afeiçoou
de cara com a pediatra, parecia que eram amigas de longa data, e
confesso que fiquei com ciúme. Eu não conseguia nem puxar
assunto, tampouco sabia como me aproximar. Já aquela baixinha
conseguira fazer isso com tanta facilidade, que eu só podia
concordar com as palavras de meu pai, Aurora era perfeita no que
fazia.
— Não vai me dizer qual é o seu problema com a doutora
Jones? Porque te conheço desde que abriu os olhos pela primeira
vez, e sei que esse comportamento não foi nada normal. O Marcelo
que conheço nunca seria capaz de agir com outro parceiro de
trabalho dessa forma brusca e arrogante.
— O senhor precisa entender que há uma grande diferença
nesse caso. Quando estamos atendendo pessoas desconhecidas,
tudo parece simples, mas o peito aperta em níveis elevados quando
um paciente é alguém da família.
— Sim, sei que o medo aumenta e o desespero toma conta,
mas somos treinados para lidar com qualquer situação, acha mesmo
que em todos esses anos nunca lidei com algo parecido? Sua vó,
que Deus a tenha, um dia foi a minha paciente — contou com pesar.
— Só não pude acompanhá-la na cirurgia, porque na época fui
impedido, e fiquei bem bravo, mas logo compreendi que foi melhor
não presenciar. Acho que teria perdido o controle e isso só iria piorar
tudo.
Fiquei quieto.
— Jade estava sendo bem atendida pela pediatra, não fez
sentido você chegar e tentar tirar a médica do caso, como se não
fosse capacitada para isso. Se quiser ficar nesse cargo, é bom que
aprenda a corrigir seus erros, porque não vou tolerar, nem estar vivo
para sempre e vestir esse papel de pai disciplinador, entendeu?
— Perfeitamente, pai. Pode deixar, que vou pedir desculpas a
Aurora.
— Seja lá o que acontece entre vocês, quero que deixem isso
fora do hospital!
— Vou corrigir meu erro, e juro que isso não vai mais se
repetir.
— É bom que não, ou teremos que lidar com um problema
muito maior.
Apertei o punho com força.
Eu odiava admitir que estava errado, mas aquele era um caso
à parte.
Aurora ficou muito brava quando invadi a sala e tentei tirá-la
do caso da minha filha, para que eu assumisse a direção. Na hora
engoli todos os conceitos de certo ou errado, mandei meu juramento
e ética para a puta que pariu. A ideia de Jade ter se machucado
mexeu com meu coração, fiquei com ansiedade, e o sentimento de
culpa me pegou com força. Eu deveria ter ido àquele passeio, ficado
com as duas mulheres da minha vida, mas o dever com o trabalho
falou mais alto.
Não que me arrependesse da cirurgia que fiz, eu me formei
para isso, e o meu papel sempre seria salvar vidas, no entanto saber
que a menina estava mal e que nem sequer pude fazer alguma coisa
para impedir ou protegê-la foi um golpe duro no rosto. Por isso,
substituir a pediatra do caso, talvez, ajudasse a amenizar a minha
culpa.
Mas não podia ser assim…
A garota era formada, se destacava na turma de residentes,
era admirada até mesmo pelo meu próprio pai. Ele rasgou elogios ao
falar dela, o que me deixou ainda mais envergonhado de, como
chefe, ter cometido aquele erro. Eu sabia que não era perfeito, e
que tinha muito a aprender pela frente, mas aquilo foi um furo sério,
e que qualquer um no meu lugar saberia que não deveria cometer,
pena que era bem tarde.
Nem sei se Aurora vai me desculpar…
Saí da sala sem saber onde enfiar a cara, como dizem, com o
rabo entre as pernas. A baixinha valente me respondera ao nível,
não aceitara ser passada para trás, nem que julgassem sua
excelência como médica. Como se não bastasse tudo isso, estava
claro e evidente que Jade gostava da garota, tanto que em nenhum
momento foi capaz de me olhar, ficou calada, porque no final das
contas eu não passava de um desconhecido para a minha própria
filha, que tinha muitos motivos para me odiar.
— Depois de resolver isso, vamos focar na minha neta! Pelo
que soube, devido à fratura, será necessário reposicionar o osso… —
explicou. — E pensar que isso aconteceu em um momento em que
sua mãe piscou o olho.
— Jade tem quatro anos, pai, é normal que seja levemente
danada… — Engoli em seco. — Isso de pular do brinquedo como se
fosse a coisa mais normal do mundo a deixará por alguns meses
quietinha, talvez sirva de lição. — Dei de ombros.
— Sua mãe disse que tentou alertá-la sobre fazer estripulias,
só que foi inútil, porque sua filha decidiu não ouvir, enfim, não é
hora de chorar pelo leite derramado.
— Vou cuidar de tudo, pode ficar tranquilo, e também me
manterei longe.
— Acho que deve um pedido de desculpas a sua filha, ela
estava na sala e viu tudo.
— Não sei como me aproximar de quem me vê como um
desconhecido…
— Jade sabe que você é o pai, apesar de me dar esse título
também.
— O senhor é o melhor que ela pode ter, e isso me dá um
pouco de paz.
— Cada escolha, uma consequência, Marcelo, mas nunca é
tarde para mudar.
— Sei, verei o que posso fazer quanto a isso, vou tentar me
desculpar…
— É um bom começo, mas, com Aurora, tem que fazer tudo
direito.
— Pode deixar.
Só não sabia como conseguiria fazer isso…
Consegui informações de que minha filha estava bem, o
médico chegou para examinar seu braço e já deixar agendado o
procedimento. Minha mãe precisou ir para casa, e Marli veio para
ocupar o lugar. Em seguida, saí em busca da pediatra.
Descobri pela amiga da baixinha que ela estava na sala de
descanso.
Fui direto, e nem pedi permissão, simplesmente fui logo
entrando.
— CÉUS, QUER ME MATAR DO CORAÇÃO?
Aurora deixou o livro que tinha em mãos cair no chão,
assustada.
— Me desculpe por isso também. Vim aqui para me redimir —
deixei claro.
— Deve ter vindo porque seu pai pediu, não é mesmo? —
Semicerrou os olhos. — Porque ele já veio atrás de mim para falar
sobre o papelão que você fez.
— É, o que fiz foi uma grande merda, e por isso peço
desculpas. Olha, eu estava bem nervoso, mais cedo marquei um
passeio com a menina e a minha mãe, mas houve um imprevisto e
precisei voltar para o hospital. Imagina estar dentro de uma cirurgia
delicada e receber a notícia de que a minha filha havia se
machucado…
— Sei, não gostei do seu comportamento, achei bem
arrogante e idiota! Só te desculpo se prometer nunca mais ousar
tirar a autoridade de nenhum médico.
É
— Nunca fiz isso, Aurora, não farei mais. É que realmente
fiquei abalado. Deve ter notado que não tenho uma boa relação com
a minha própria filha, então…
— Soltar os cachorros sobre mim, que não tenho culpa de
nada, nunca vai te tornar um super-herói para aquela garotinha. Mas
acho que você já sabe disso.
— Percebi o quanto ela gostou da senhorita…
— É uma menina fofa, carinhosa, e se parece muito com você,
doutor. Assim que a vi, senti que me lembrava de alguma pessoa, e
saber que era sua filha foi uma grata surpresa.
— Ela é, mas não temos uma boa relação, não passamos de
meros desconhecidos.
— Bom, quanto a isso não posso dizer nada, meu dever e
papel aqui é cuidar dela.
— Me desculpe mais uma vez, e obrigado por tudo que está
fazendo.
— De nada, doutor Marcelo.
— Se possível for deixar em segredo o que aconteceu, ficarei
muito grato…
— Claro, vai ser nosso segredinho, mas, se pisar no meu pé
outra vez, vou sair explanando pelo hospital seu comportamento
idiota comigo. — Piscou um olho.
— Perfeito, tem em mãos algo que pode manchar meu nome…
— Sim, por isso nem ouse me irritar novamente, ouviu bem?
Ergui as mãos em sinal de rendição.
Aurora riu, pedi desculpa mais uma vez e fui embora.
Tudo correu bem com a cirurgia da filha de Marcelo. Apesar do
desespero dele e da avó da menina, esse tipo de coisa acontece é
bem comum na infância, pois crianças da idade dela não têm noção
real do perigo. Casos assim vez ou outra aparecem na emergência.
Os próximos passos seriam feitos em casa, medicação para dores e
muito repouso; posteriormente, ela iria tirar o gesso e começar o
processo de fisioterapia.
— Tia, eu fui muito boazinha, não fui?
Terminei de acomodá-la bem na cama, já que ficaria mais uma
noite internada.
— Nossa, muito mesmo! — Coloquei um fio do seu cabelo loiro
atrás da orelha. — Uma verdadeira mocinha, muito forte e corajosa!
— Sorri de lado.
— Quando vou poder tirar isso do braço, princesa Aurora?
— Bom, a princesa Jade vai precisar ficar com isso por alguns
meses, é só para ajudar a colocar seu osso no lugar — expliquei
carinhosamente. — Eu tenho uma cartela cheia de adesivos das
princesas da Disney para colocarmos juntas, o que acha? Assim vai
ficar bem legal — comentei empolgada.
— Jura? Vou pedir para a minha vovó… Será que ela deixa? —
Piscou os olhos.
— Tenho certeza de que sim, e faz muito bem em pedir a
permissão dela.
— A vovó é muito boazinha, cuida de mim desde que eu era
pequenininha…
Lembrei-me de Marcelo contando que não era um bom pai
para a filha. Ficou bem claro quem era responsável pela criação da
menina, e o papel da tia, que nesse momento estava sentada na
cadeira mexendo no celular. Ela era bem amigável, sorridente. Na
verdade todos da família eram, me trataram com respeito, em
contraste com o ogro que entrara no ambulatório parecendo que iria
me engolir viva a qualquer momento.
Tentei não levar para o coração, voltei na palavra e decidi
perdoá-lo, mas só porque seu pai veio primeiro conversar comigo,
pediu desculpas em nome do filho, e contou que tudo fora fruto do
nervosismo. Segundo ele, Dr. Marcelo perdera a razão ao saber da
filha ferida. E não escondeu que os dois tinha uma relação
complicada.
Eu fiquei com uma pulga atrás da orelha, pois, olhando para a
menina, dava para sentir um amor e carinho imensos. Jade era
falante, gostava de princesas e de dançar balé, em pouco tempo
pude conhecê-la bastante e me afeiçoar ao seu jeito meigo. E isso
me deixava com dúvidas, como Marcelo podia ser ausente na vida
daquele anjo que era a sua cópia, ou seja, um grande babaca com b
maiúsculo.
Se antes achava aquele doutor um completo idiota, o fato de
que conseguia ser um péssimo pai para aquela criança pequena
dizia muito sobre o seu verdadeiro caráter. Foda-se se tinha uma
vida cheia de compromissos, cirurgias, obrigações como chefe, e um
monte de outras coisas, nada podia justificar esse comportamento
frio.
Meu pai não tinha o meu sangue, era um fato, mas me amou
além disso, não perdia as datas comemorativas da escola, me
deixava e buscava sempre que precisava, ensinava-me atividades,
dava conselhos e direções que eu levaria para a vida inteira. E olha
que nessa época ele trabalhava muito, quase não tinha folgas, mas
isso nunca foi motivo para ser ausente e não me dar amor paterno.
A minha mãe agia de forma igual, e por isso bato no peito ao
afirmar que tive os melhores pais do mundo, os quais seriam meu
espelho para construir uma família no futuro. Nada no mundo
poderia justificar uma ausência, isso só provava que não existia
amor. Independentemente da verdade que havia por trás de Marcelo
e sua filha, isso me mostrava entre linhas que aquele homem não a
amava de verdade.
O jeito nervoso como entrara na sala não queria dizer nada,
não me convencia. Até porque, ele não tinha que me provar nada,
mas sim para aquela menina. Claramente, ela precisava do pai, uma
vez que a mãe nem se fazia presente; podia até estar morta, pensei,
mas não tive coragem de perguntar.
— Verdade, lindinha, sua vovó é uma mulher maravilhosa. Está
se sentindo confortável na cama?
— Está bom assim. Obrigada, princesa Aurora.
Sorri.
— Vou te deixar aqui com sua tia, e volto depois para te
examinar. Por enquanto, tente dormir um pouco, viu? Seu corpo
precisa de uma dose de descanso e soninho.
— Você vai me deixar?
— Não, linda, falei que vou mas volto depois…
— Jade, ela tem outros pacientes para cuidar, tem que
entender.
Troquei um olhar com a tia da criança, que enfim falara.
— É, mas, como falei, vou voltar novamente, tudo bem?
Jade assentiu e fez um bico como se fosse chorar.
— Eu não quero que você vá embora nunca mais, princesa
Aurora.
— E quem disse que vou? Vamos ser melhores amigas para
sempre — garanti.
Os amigos mirins que eu fazia na residência de pediatria eram
os melhores, a filha de Marcelo não era a primeira, nem seria a
última que se afeiçoava a mim. E eu retribuía o carinho, admitia sem
problema algum que gostara de conhecer aquele anjinho.
Quem olhasse para Jade conseguia ver e sentir uma carência
estampada no seu olhar. Talvez estivesse ligada aos verdadeiros
pais, ausentes; sabia disso porque não conhecia meus genitores, e
um dia já me sentira desolada por dentro por conta disso.
Um dia já fui como aquela menininha… Apesar de ter avós
maravilhosos, ser amada por todas, algo lhe faltava e só um amor
ainda mais forte poderia suprir.
Que vontade de esganar Marcelo…
Dei um beijo na testa da menina e me despedi.
Saí da sala, e a tia da garota me acompanhou.
— Doutora, um minuto…
— Claro.
— Eu queria te agradecer por tudo que tem feito pela minha
sobrinha, ignorando o pateta do meu irmão, que te tratou supermal
naquele dia. Nossa, quando soube disso fiquei com vontade de
quebrar a cara dele!
Ponto! Essa aí já tem meu respeito.
— Está tudo bem, apesar de minha vontade ser igual à sua.
Desculpe até por isso, mas essa pessoa de que estamos falando nos
faz desejar isso, sabe?
— Sei, de toda forma, pode deixar que vou chutar a perna
dele por nós duas.
Gargalhei.
— Faça isso e vou amar saber! — Pisquei um olho.
— Agora vou ficar de olho na nossa garotinha, te vejo depois?
— Claro que sim, até mais…
Eu me despedi e fui embora.
Parei para comer um pouco e Mia, junto de Liam, veio
também.
— Ficaram sabendo que a filha do chefe está internada no
hospital?
— Sério? Nem sabia que o doutor geladeira Electrolux era pai.
Fiquei calada, degustando meu suco de caixinha.
— É o que ouvi falarem por aí, vem dizer que não sabia de
nada, Aurora?
— Sei, tanto que a médica dela sou eu. Ué, não façam essa
cara!
Os dois pareciam não acreditar, e não entendi o porquê.
— Logo você, que detesta o chefe com todas as forças? — Mia
disse, incrédula.
— Imagino que deve ter havido algum embate entre os dois
antes disso — Liam completou.
Revirei os olhos, e peguei uma batatinha para comer.
— Eu estava na emergência quando ela chegou acompanhada
da avó — contei. — E, antes que perguntem, a menina não tem
mãe, pelo que parece…
— Não houve nenhuma discussão entre cirurgião e pediatra?
Senti vontade de jogar o suco na cara da minha amiga, mas
me contive.
— Tudo sob controle — menti, não podia contar o que de fato
acontecera.
— E a menina, como está?
Liam finalmente falou algo sensato.
— Fez cirurgia, e logo vai se recuperar em casa — respondi. —
É uma menina adorável, fica me chamando de princesa Aurora. —
Dei um sorrisinho.
— Ai, amiga, diz isso como se todas as crianças não te
amassem, nem vem, viu!
— Nem todas, algumas são mais quietas e de zero
aproximação.
— E até essas você dá um jeitinho para conquistar, sua
fofinha.
Revirei os olhos.
— A folga está chegando, vamos nos reunir em um barzinho?
— Gosto de curtir meu descanso em casa, Liam, de
preferência assistindo a Grey's Anatomy! — fui a primeira a
responder.
— Eu topo, tô dentro!
No dia em que Mia negasse fogo para uma aventura, podia
enterrar a lenda. Se havia uma pessoa que dava valor para uma
farra, era a loira com quem eu dividia a casa.
— Vocês dois se merecem, sabia? Nunca vi um povo que acha
bom beber… — sussurrei, balançando a cabeça para os lados.
— A vida foi feita para viver, gatinha, mas acho que você não
sabe disso, amiga.
— Deixa ela, Mia, vamos só nós dois, tô precisando encher a
cara. Ao menos dessa vez.
Bebi mais suco enquanto ouvia os dois marcando de se
divertirem juntos.
DIAS DEPOIS
Desde o dia em que Jade recebeu alta médica e retornou para
a casa dos meus pais, a coisa que mais ouvi por ligação foi a minha
mãe falando que a menina não parava de procurar pela princesa
Aurora, um jeito carinhoso como chamava a doutora. E sobrou para
mim a missão de tentar convencer a médica pediatra a ir visitá-la.
Relutei o máximo que consegui, afinal a garota em questão
não tinha obrigação alguma de fazer isso. Seu papel na situação
acabara no segundo em que a minha filha foi embora, em franco
processo de recuperação, de acordo com o ortopedista, e prestes a
iniciar a fisioterapia.
Graças a esse acidente, conversei com meus pais e fiquei de
encontrar uma babá para a menina, coisa que já deveria ter feito
havia tempos. Em minha defesa, preciso destacar a resistência do
casal em questão em receber ajuda. Por conta disso, nunca levei a
ideia adiante, mas era o momento de fazê-lo. Jade estava
crescendo, querendo ou não, era uma criança arteira como qualquer
outra, e a minha mãe não tinha mais fôlego como antes para ficar
de olho nela. Isso valia para o meu pai, e até para mim, que não
participava ativamente em sua criação.
Minha filha precisava de uma pessoa que ficasse cem por
cento ao seu lado, e que não fosse ninguém da nossa família. Por
isso iniciei um processo de busca para encontrar uma babá que
fosse capacitada para cuidar da menina todo o tempo em que ela
estivesse fora da escola, em atividades escolares, entre
necessidades essenciais.
Alguém bateu à porta, e dei permissão para que entrasse.
— Chefe, licença… Atrapalho?
Soltei os papéis na mesa, ajeitei-me na cadeira.
— Não, só estava dando uma olhada nas escolas e cirurgias do
dia.
Roberto puxou uma cadeira para se sentar.
— Sei. Já tem a resposta sobre o evento do próximo fim de
semana? Você vai?
— Não tenho a opção de não ir — destaquei um ponto
importante, o que não era nenhuma mentira. — Eu realmente tenho
que ir, meu pai vai estar presente para palestrar, e, como o bom filho
que sou, preciso estar na plateia para bater palmas.
Meu amigo gargalhou seco.
— Sabe que preciso escolher quais residentes irão, por isso
vim aqui perguntar se tem os nomes em mente? Vai ser um evento
importante e muitos estão ansiosos pela chance de irem
acompanhados do chefe — enfatizou bem a última palavra.
— Estou pensando sobre isso, separei algumas pessoas que
acredito que devem ir. — Vasculhei na mesa em busca do papel e
entreguei para o doutor.
Roberto recebeu, e deu um sorriso antes de olhar nome por
nome.
— O primeiro já chama a minha atenção, e devo dizer que
escolheu bem. Aurora é uma das residentes que mais se destacam
na sua turma, excepcional e ágil.
Não consegui disfarçar a cara de incômodo ao ouvir o que ele
disse.
— Escolhi justamente por isso, somente isso — enfatizei. —
Porque, se tivesse outro requisito, pode ter certeza de que essa
garota ficaria em último lugar.
— É impressão minha ou existe uma espécie de conflito entre
vocês dois?
— Como foi que você chegou a essa conclusão, Roberto? —
Franzi o cenho.
— Acha mesmo que as pessoas não notam o que acontece nos
corredores? E tem o fato de que aquela melhor amiga dela fala pelos
cotovelos… — contou.
Bufei.
Era só o que faltava.
— Quer dizer que andam notando nossas trocas de farpas?
— Não é só isso, um dia os vi trocando olhares mortais,
parecia que, se chegassem perto demais, iriam se matar facilmente.
Aposto que seu pai já puxou sua orelha a respeito disso, caso
contrário estou aqui para lembrar que isso não é nada bom, Marcelo.
Uma boa convivência torna as coisas mais leves…
— Sei, mas já pensou que o problema em questão não sou
eu? — Batuquei os dedos na mesa. — É ela que não vai de jeito
nenhum com a minha cara.
— Quando nenhum dos dois está disposto a ceder, as coisas
ficam difíceis.
— Ainda bem que sabe disso. — Suspirei fundo.
— Aproveite que o evento será em outra cidade, e use o
tempo livre para fazer amizade com ela, afinal é uma boa pessoa,
gentil e queridinha da pediatria.
Revirei os olhos.
— É por isso que você se dava tão bem com meu pai, cara de
um, focinho do outro — zombei.
— Ser comparado ao nosso ex-chefe nunca será um problema
para mim, Marcelo. O que me deixa em paz é saber que você tem os
genes dele, senão nem estaria nessa cadeira. — Continuou lendo
atentamente os nomes na lista. — Bom, aqui está tudo perfeito, não
teria escolhido diferente. Segue avaliando as pessoas muito bem!
— Obrigado! — Agradeci com um enorme sorriso nos lábios.
— Vou te deixar em paz, preciso me preparar para uma
cirurgia…
— Fui solicitado para uma mais tarde, nos encontramos por aí.
— Com toda certeza, chefe.
Roberto se levantou e foi embora.
Apoiei as duas mãos no queixo, pensando no que faria a
respeito de Aurora ir ver a minha filha. Peguei meu celular e vi que
havia três mensagens da minha mãe.
“Meu querido, ela vai sentir febre emocional de tanto
que fala na doutora.’’
Li várias vezes antes de responder.
Eu: “Vou ver o que posso fazer quanto a isso…’’
Apertei para enviar, deixei o aparelho de lado para conferir no
computador se a pediatra estava trabalhando naquele dia, e logo
descobri que sim, mais precisamente acompanhando recém-nascidos
e bebês prematuros.
“Tentar já é um bom começo. Qualquer coisa, diga que
pedi carinhosamente.’’
Revirei os olhos.
Como se isso fosse suficiente para fazer aquela garota me
prestar um favor. Preparei-me mentalmente, buscando uma
paciência vinda do além para ir encontrá-la.
Encontrei a Aurora terminando de examinar um bebezinho, e
no segundo em que seu olhar cruzou com o meu acenei com a
cabeça, chamando para conversar.
Ela não demorou para vir.
— Oi? — foi logo falando e colocando as mãos nos bolsos do
jaleco.
— Vou direto ao ponto, Jade não para de falar em você e
queria muito te ver.
A doutora abriu um sorriso de lado, tão meiga que quase me
convenceu.
— Ah, que gracinha… Vai ser um prazer ir visitá-la, como é que
ela está?
— Tem sido difícil mantê-la quieta para não ferir mais o braço,
coisa de criança… — Suspirei. — Então você topa ir lá?
— Sim, mas não posso ir agora, tenho uns anjinhos que
precisam da minha atenção.
— Eu sei disso, doutora Jones. Preciso destacar que esse foi
também um pedido da minha mãe. Ela está preocupada temendo
que a menina adoeça de tanto que pergunta por você.
— Sua filha não é a primeira que se apega a mim, estou
acostumada e, de fato, gosto dessa conexão que crio com meus
pacientes. — Sorriu de lado. — Pode só me passar o endereço,
depois, da casa dos seus pais?
— Eu posso te levar — pontuei.
— Tenho carro, gasolina e disposição para dirigir.
— Estou bancando o bom-moço e tentando ser gentil, darling.
— Guarde suas gentilezas para outra pessoa, não preciso
disso!
— E por que não? É só uma carona, não é como se já não
tivéssemos dormido juntos.
— Falando assim, dá a entender que foi bem mais que um
sono de bêbados! — Cruzou os braços, semicerrando os olhos.
— Talvez fosse, mas como somos bem inteligentes… Eu não te
quero, e você, muito menos, a mim. — Pisquei um olho.
— Finalmente saiu uma coisa decente por essa boca,
doutorzinho.
— Saem muitas coisas interessantes dela, é que você não
merece ouvi-las.
— Era só isso que tinha para me falar?
— Era.
— E o endereço?
— Não vou dizer, pois eu que vou te levar lá.
— Então sua filha não vai me ver coisa nenhuma!
— Você que sabe, depois lide com uma consciência pesada.
— Chato.
— Bravinha.
— Babaca.
— Fofinha. Então, vai topar, ou não?
— Por causa de Jade, apenas!
— Ótimo, é um bom começo, agora vou te deixar trabalhar. —
Soltei um beijo e peguei sentido contrário retornando para a minha
sala.
— Obrigada por ter vindo. Eu pedi tantão à vovó por isso…
Dei um beijo carinhoso na testa da pequena e sorri de lado.
— Agradeça ao seu pai, apesar de não aparecer, ele teve
participação nisso.
Esse era um fato que não podia deixar de destacar. Marcelo
era um pé no saco, orgulhoso, mas pude presenciar duas vezes seu
recuo implorando por algo, e nunca imaginei que o doutor fosse
capaz de se dispor assim. A primeira vez foi quando veio se
desculpar pela forma como pôs em xeque minha autoridade como
médica, e a segunda, quando pediu pessoalmente que viesse visitar
sua filha.
Nas duas vezes, conheci um lado seu diferente, mais centrado,
humilde e paciente. Ainda que, depois, voltasse a provocar e, no
fim, voltássemos a discutir, como era de costume. Desde que nos
vimos pela primeira vez, sempre estamos brigando por alguma
coisa, do menor motivo à maior provocação idiota.
Sempre assim.
— Ele te pediu? — questionou, como se não tivesse
acreditado.
A menina olhou dentro dos meus olhos demonstrando
incredulidade.
— Foi, eu estava cuidando de uns bebezinhos e ele apareceu
para me pedir. Fiquei feliz em saber que sentiu saudades de mim,
porque senti também.
— Amei a boneca que a senhora me deu, amei demais!
Jade era muito educada, percebi isso desde o hospital. E em
sua casa esse tratamento se manteve, só mostrando que era assim
independentemente de qualquer lugar. Sempre ficou claro que não
fora criada pela mãe, tampouco pelo pai, mas a forma como se
portava e falava era um reflexo da criação de qualidade dada pelos
avós, que fizeram um excelente trabalho em educá-la.
— Fico feliz que tenha gostado. Quem fez essas tranças lindas
no seu cabelo? — puxei assunto.
— Foi a titia, ficou legal?
— Com certeza! Está belíssima — teci elogios, e Jade sorriu
mais ainda.
— Princesa Aurora, promete que vai ser sempre minha amiga?
Pisquei os olhos.
— Claro, meu amor, se me prometer que será a minha
também.
— Eu prometo de dedinho.
A porta do quarto foi aberta, e dona Gelsa apareceu com uma
bandeja em mãos.
— Olá, meninas, preparei um lanche maravilhoso para
degustar enquanto conversam. — Aproximou-se com um sorriso
gentil nos lábios.
A mãe de Marcelo poderia ser facilmente comparada a um
doce de leite, era meiga, receptiva, e me tratava com tanto carinho,
parecia que éramos conhecidas de longa data. O pai do doutor, que
estava em casa, também me recebeu superbem. A única pessoa no
meio de todos que não conseguia ser muito agradável era o pai da
menina. Esse continuava me deixando nervosa e completamente
irritada.
Não posso deixar de destacar que insistiu em me trazer até a
mansão, mesmo me ouvindo dizer incontáveis vezes que tinha um
carro para me levar aonde eu quisesse.
Um grande pé no saco.
Vim o caminho inteiro de cara fechada e não abri a boca para
dizer nada. Já ele, graças a todos os santos para quem rezei, ficou
quieto e respeitou meu silêncio. Só nos falamos quando chegamos à
propriedade, e ele reafirmou que me esperaria. Até parece que tirou
o dia de folga para servir de motorista particular, logo vi.
Engoli em seco.
— Obrigada, senhora, nem precisava se preocupar com isso.
Antes de vir para cá, comi bastante — comentei.
— Aceite pelo menos uma taça de suco.
— Isso aí não dá para recusar. — Dei um riso baixinho.
— Estamos muito felizes que tenha vindo ver Jade, essa
menina deu tanto trabalho, queria porque queria te ver, ficava
pedindo sempre que tivesse uma oportunidade.
— Não tem problema, eu vim com todo amor do mundo. Essa
garotinha é uma querida, e ganhou um espaço no meu coração
assim como outros pacientes têm.
— Essa atitude dela nos pegou de surpresa, Jade não tem
muitas amigas, é bem seletiva, sabe? Mas com você parece que as
coisas foram um pouco diferentes. Meu marido comentou que a
senhorita é querida entre as crianças do hospital pelo brilhante
trabalho que faz, tenho certeza de que um futuro belo a aguarda
pela frente.
Fiquei emocionada.
— Meu coração ficou quentinho com esse elogio, muito
obrigada, dona Gelsa.
— Eu que agradeço, querida, por ter vindo e por acolher tão
bem a minha neta.
A menina segurou no meu braço, e virei-me.
— Vovó, a princesa Aurora pode vir aqui outras vezes?
— Pode, sim, meu amor. As portas estarão sempre abertas
para recebê-la.
— Eu posso mostrar a minha coleção de bonecas, vovó?
— Sim, princesa, pode ficar à vontade. Só vim aqui para deixar
esse lanche.
Fiquei quieta, vendo a interação das duas.
— Princesa Aurora, quer ver o tantão de bonecas que tenho?
— Opa, quero muito!
— Eu tenho um montão! Meu papai-avô me deu a grande
maioria.
— Sério?
Jade confirmou com a cabeça.
— Marcelo também comprou, cinquenta por cento — dona
Gelsa sussurrou.
— Isso quer dizer que ele gosta muito da princesa Jade, não é
mesmo? — opinei, um pouco incerta e temendo que a menina não
reagisse bem.
Droga.
Tarde demais.
— Ele não gosta de mim.
— Gosta, sim, minha neta, seu pai te ama muito, só não sabe
demonstrar.
— Eu não gosto de nenhuma das bonecas que ele me deu!
Troquei um olhar com a avó da menina, e me senti mal pelo
que falei.
— Jade, vamos deixar esse assunto de lado e ir ver as
bonecas? Bom, meu tempo aqui é curto, e quero aproveitar ao
máximo, será que podemos? — murmurei rápido, foi o primeiro que
me ocorreu para quebrar o clima tenso.
— Sim, sim.
— Ótimo, garotas, vou deixar a bandeja aqui para quando
quiserem comer.
— Pode deixar, dona Gelsa.
A senhora me agradeceu silenciosamente, e só dei um sorriso
amigável de volta. Pelo visto, a relação da criança com o pai era
bem mais complicada do que parecia.
E eu só me perguntava… Por quê?
Horas depois, a mãe de Marcelo me levou para conhecer a
casa e sua estufa. E claro que fui, pois amava plantas e rosas, só
não tinha no apartamento por falta de espaço e tempo para cuidar
adequadamente. Fomos conversando, e ela contou um pouquinho
da cisma que a sua neta tinha com seu doutor, mas não deu muitos
detalhes, só destacou mais o desejo de que ambos se dessem bem.
Era bem triste pensar que pai e filha pareciam meros
desconhecidos.
Em algum momento, a senhora precisou me deixar sozinha
para atender a uma ligação. Aproveitei para explorar mais o lugar e
tirar fotos de algumas rosas.
— Primeiro vira amiga da minha filha, e agora, da minha mãe.
Tomei um susto ao ouvir a voz de Marcelo.
— Sabia que ela quase não deixa ninguém entrar aqui? É
quase como um santuário; eu, que sou filho, só entro se for às
escondidas.
— Posso perguntar o motivo? — indaguei, mas não me virei
para encará-lo.
— Ela tem ciúme deste lugar, e, claro, no passado andei
quebrando alguns vasos… Sabe? Coisa de criança e que não sabe
ficar quieta. — Gargalhou rouco.
— Entendi. — Não dei muita atenção.
— E como foi lá em cima?
— Tudo bem, conversei e brinquei com Jade, até dar a hora
dela de fazer a lição de casa — comentei.
— Sei.
Meus cabelos estavam presos no topo da cabeça, por isso
senti a respiração do doutor ao pé do meu pescoço, o que me fez
parar e ficar sem reação alguma.
— Devo admitir que estou com ciúme, darling.
— E por que deveria ter? — respondi, quase gaguejando.
— Tem tido a chance pela qual estou me esforçando e
fracassando.
— Se não conseguiu ainda, é só continuar se esforçando
mais…
— Eu realmente não sei o que fazer, nem por onde começar.
Acho que não nasci para ser pai mesmo, porque tudo só me leva
para mais longe da minha filha.
Por que estava falando aquilo tudo atrás de mim?
Tossi e, por fim, me virei, dando de cara com seus olhos azuis.
— Tem que ser mais paciente, Marcelo. Se for mais carinhoso
e tentar surpreendê-la, pode ser que consiga obter algum êxito.
Jade não é uma menina difícil de agradar.
— Diz isso porque não sabe que sou um pai ausente há anos…
Suspirei.
— Isso explica o motivo pelo qual a garotinha nem quer saber
de você. — Cruzei os braços.
— O que acha de me ajudar?
Pisquei os olhos.
— Ajudar em que exatamente?
— A conquistar a atenção e a amizade da minha filha.
— Está brincando, não é mesmo? Porque realmente não posso
te ajudar nisso.
— Pode, sim, ela gostou de você com uma facilidade absurda,
e me fez ter esperança de que pode me dar dicas ou sugestão do
que fazer.
Gargalhei baixo.
— E o que te faz pensar que posso te ajudar? Eu nem gosto
de você, doutor.
— Pode continuar sem gostar, isso pouco me importa. —
Piscou um olho.
— Um bom começo para que pense a respeito é me levar de
volta para casa…
— E achou que voltaria a pé? Está com o cérebro confuso,
doutora Jones?
— Talvez, toda vez que fico perto de você perco o sentido,
sabe? — ironizei.
— Então isso só prova que não me odeia tanto assim.
Bufei, senti vontade de xingar até a sua última geração, mas
me segurei.
— Aurora?
— Vou me despedir da sua mãe e da menina. — Dei um
sorrisinho sem graça.
— Sabe que não vou tirar esse comentário da cabeça, não é
mesmo?
— Depois sou eu que estou com o raciocínio lento. — Revirei
os olhos.
A mãe do doutor apareceu para quebrar o clima. Era o
momento perfeito para me despedir, havia passado horas fora de
casa e precisava enfim retornar.
Encerrei a ligação com a minha irmã, que estava cuidando de
Jade. Felizmente seu processo de recuperação corria bem, muito em
breve iria iniciar as sessões de fisioterapia, mas ainda não era o
momento para falar sobre isso. Por enquanto, continuaria quieta e
seguindo todas as recomendações médicas.
Antes de embarcar para um evento importante, passei pela
casa dos meus pais para ver a menina, e deixar algumas bonecas de
presente além de uma roupa belíssima de bailarina que comprei na
internet. Fiz isso invejando o que Aurora fizera ao, no dia em que a
visitou, levar um mimo. Isso deixou a minha filha superfeliz. Eu
esperava que, fazendo o mesmo, pudesse ganhar algum ponto ou
pelo menos um sorriso.
Vim acompanhado da diretoria do hospital, e alguns médicos,
incluindo a pediatra. Era um evento importante, onde algumas
pesquisas seriam apresentadas, e em uma delas meu pai estaria
presente, por isso não pude deixar de ir. Pegaria muito mal se o
chefe de cirurgia não marcasse presença e fizesse pouco-caso disso.
Já era um desafio e tanto estar ao nível do cargo, mas nem por isso
me dedicaria menos, cada vez mais estava doando tudo de mim.
Fiquei parado, em busca de um local interessante para me
sentar. Ali, preferia me portar e sentir como o doutor que era,
aproveitaria o momento para obter mais conhecimento, o que com
toda certeza agregaria à minha profissão. Uma cabeleira escura, e a
franjinha que ninguém mais tinha, foi o que me fez ir em
determinada direção.
Passei a língua nos lábios, e fui logo me sentando ao lado de
Aurora.
— Com tanto lugar aqui, porque não foi para outro? Quer
dizer, você é o chefe, deve ter uma fileira exclusiva para esse
pessoal poderoso, não?
— Não importa, quero e vou ficar aqui, a menos que use sua
força para me expulsar.
— Olha onde estamos, acha mesmo que vou correr o risco de
manchar meu nome?
— Só seu, porque o meu ficaria intacto, já que seria a vítima
da agressão. — Dei uma piscadela, o que só serviu para deixá-la
ainda mais nervosa.
Aurora estava muito bonita naquela noite, se deu ao luxo de
deixar o estilo nerd de lado para realçar sua beleza feminina. Usava
um vestido verde-escuro, bem comportado, que não deixava espaço
algum para decote, e para o lugar em que estávamos, com toda
certeza fora uma escolha inteligente e bem respeitosa.
— Nem adianta querer brigar comigo, darling. Hoje estou em
paz igual a você.
— Diz isso pela cor que estou usando? — Franziu o cenho,
encarando-me. — Até onde sei, isso quer dizer esperança, não tem
nada a ver com bandeira de paz. Mas, ei, quem te deu o direito de
brincar com o que estou vestindo?
Ela finalmente se deu conta da brincadeira que fiz.
— Calma, que bicho mordeu a carne do seu espeto? Está
brava demais, mulher.
— Estou, achei que teria pelo menos alguns minutos de paz
neste evento! Aí vem você e se senta justamente ao meu lado! —
Cruzou os braços, revoltada.
Não pude deixar de rir.
— Quanto mais tento ser seu amigo, mais recebo coice com
força…
— Não sou vaca para dar coice.
— Mas está vestida com cor de mato, alimento rico em
carboidrato desse animal.
Aurora me deu um beliscão tão forte, que fui ao céu e voltei,
realmente doeu para caralho!
— Da próxima vez, saio chutando você para fora desse salão
com os pés!
— Caraca, doeu… Já apanhei na vida, mas ninguém nunca me
agrediu nesse nível.
Apostei alto no drama. Era uma excelente alternativa para
descontrair o clima.
— É para aprender a nunca mais brincar com coisa séria,
comparou este vestido que custou quase meu rim a alimento de
vaca! — berrou brava.
— Como pedido de desculpas, te pago uma bebida depois do
evento.
— Não quero beber nada com gente da sua espécie.
— Olha aí quem está começando, não quer ser comparada a
nada, mas me tratou agora como animal…
— Eu podia estar me referindo aos alienígenas, essas coisas.
— Está ficando cada vez pior, Aurora.
— Então pare e me deixe em paz! Melhor, levanta a bunda daí
e vai embora.
— Não, quero ficar aqui, prometo que vou ficar de boca
fechada.
— É bom que fique, ou te dou outro beliscão.
— Você é muito valente para uma médica de crianças.
— Só sou assim para gente chata e sem-noção com o senhor,
loiro azedo!
— Tá bom, darling, mas a bebida está de pé?
Ela não me respondeu.
— Boa noite, senhoras e senhores…
A voz na plateia atraiu nossa atenção e deu fim a nossa troca
de farpas.
E, bom, foi até melhor assim.
— Nem acredito que conseguiu me arrastar para um bar!
Aurora não parou de reclamar desde que retornamos para o
hotel, e viemos direto para uma parte exclusiva que fiz questão de
reservar para que ficássemos.
— Estamos de folga, a quilômetros do hospital e liberados para
nos divertirmos.
— Quero só ver se alguém pega nós dois aqui, chefe e
residente juntos! Vai ser a fofoca que irá se espalhar pelos
corredores do hospital. — Revirou os olhos.
— Ninguém vai saber de nada, basta olhar ao redor e ficará
calminha.
— O que quer com isso tudo, Marcelo? Não somos amigos
nem nada…
— Inimigos declarados também bebem juntos, qual o
problema nisso?
— Eu posso colocar veneno no seu copo?
— Não me diga que tem um frasco dentro da sua bolsa? —
Arqueei uma sobrancelha.
— Só tenho spray de pimenta, um canivete superafiado e
aparelho para dar choque. — Deu de ombros. — Já sabe, se tentar
alguma gracinha acabo com a sua raça.
— Não sou capaz disso, darling, pode ficar tranquila. Meu pai
me criou para ser um homem de verdade e respeitar todas as
mulheres acima de qualquer coisa.
— Eu sei disso, mas o que tenho vale para suas provocações
idiotas.
— Depois do beliscão que me deu, pode ter certeza de que
vou ter muito cuidado. Posso saber por que anda com isso tudo na
bolsa?
— Uma mulher tem que ter uma garantia, ainda mais no
mundo em que vivemos.
— Muito bem, está mais que certa. Quando Jade estiver maior,
vou me certificar de que faça aulas de defesa pessoal, aprender a
atirar e um monte de coisas também.
— Até que enfim saiu uma coisa interessante pela sua boca,
loiro oxigenado.
— Por que fica me chamando assim agora?
— Não sei, é bom falar isso e ver a cara de pavor que você
faz. — Riu.
— Quero ver se vai gostar quando eu te chamar de nerd,
tampinha…
Fiz careta quando sua mão rodou no meu braço.
— Merda, parece que vou apanhar a noite toda, é sério isso?
— Vai.
— Então só você pode me chamar do que quiser e tudo bem?
— Eu posso.
— E cadê o respeito com seu superior?
— Estamos bem longe do hospital, já se esqueceu disso?
Finalmente o garçom veio nos servir a primeira rodada de
bebida.
— Não vou tomar mais de um copo, pode ter certeza disso.
— Tudo bem, mas o que acha de jogarmos um pouco?
Aurora ficou me encarando incerta.
— Depende, valendo o quê?
— O que quisermos. — Dei de ombros.
— E como vai funcionar? — questionou.
— A cada resposta errada, vai ter que tomar um shot…
Fechado?
— Pode ser, mas e se eu acertar?
— Aí vai ter direito a alguma coisa.
— Eu aceito.
— Aceito também, darling, mas não me bata mais, ok?
Ela riu, assentindo.
Aurora mal aguardava pelo que estava por vir…
— Errou, sua vez de tomar o shot…
Em algum momento, a brincadeira ganhou um tom sensual.
No exato segundo em que dei permissão para ele passar limão e sal
no meu braço. E esse foi só o começo, outras partes vieram, queixo,
pescoço… Droga! O álcool deveria ter subido de uma vez ao meu
cérebro para estar agindo assim.
Eu não estava completamente bêbada, havia consciência e era
importante lembrar que, apesar de todas as gracinhas, Marcelo era
bem respeitoso e cuidadoso comigo. Tudo que fazia, perguntava
várias vezes, até ter certeza de que podia continuar.
A brincadeira começou com perguntas voltadas para a
medicina, procedimentos, e terminou em questões pessoais, até as
maiores besteiras possíveis. E o ódio foi ficando de lado, ao passo
que nos entendemos, dávamos risadas e parecíamos amigos de
verdade, mesmo que uma parte dentro de mim falasse que nunca
seríamos, que tudo acabaria quando o álcool fosse embora.
— Sendo assim, já sei onde vou tomar. — Enchi o copo com a
bebida e aproximei-me do doutor, olhando fixamente em seus olhos.
— Preparado?
— Sempre.
Dei um risinho.
Peguei um pouco de sal, coloquei na ponta da sua orelha,
suguei suavemente.
Marcelo não aguentou, passou uma mão na minha cintura,
puxando-me para encostar meu corpo contra a parede. Só fiz lamber
os lábios.
Eu nunca tinha sido tão ousada e corajosa assim em toda a
minha vida…
Arfei.
— O que faço com você?
— Nada. Vamos continuar com a brincadeira?
— Continuar uma porra, ainda mais agora que estou louco
para te beijar.
— Não pode, ainda somos inimigos declarados, sabia?
— E quem liga para isso? Só consigo pensar na minha boca
sobre a sua.
— Pode continuar pensando, fazer isso não tira pedaço. —
Mordi o lábio devagar. — Posso beber o meu último shot?
O doutor tomou da minha mão e bebeu de uma vez por todas.
— Agora tem um motivo para querer me beijar… — sussurrou
rouco.
— Que nada, tenho um bom motivo para encher o copo de
novo — retruquei.
— Faça isso e termino de virar a garrafa na minha boca.
— Por que faria isso?
— Você quer muito a bebida, e a minha boca está cheia do
que precisa…
Eu estava olhando para aqueles lábios, e senti um imenso
desejo de beijar. Marcelo ficou me encarando, sua mão apertou
lentamente a minha cintura, atiçando-me.
— Aurora, desgraçada, quero, por favor, te beijar.
— Eu não beijo inimigos…
— Então me veja como o que quiser, mas, puta que pariu, me
beije.
— E por que não fez isso ainda se quer tanto?
— Só farei se me der permissão para avançar…
— Saiba que, mesmo me beijando, vou continuar te odiando.
— Posso lidar com isso, darling. Agora posso te beijar, caralho?
Envolvi as mãos em seu pescoço e o beijei de uma vez por
todas.
Não demorou muito para Marcelo retribuir, atacando-me de
volta, como quem a qualquer segundo iria engolir a minha boca
viva. Mesmo que eu usasse um salto médio, o doutor era alto
demais, e percebendo a diferença me colocou sentada na cadeira,
enfiando-se entre as minhas pernas, retomando o beijo desesperado
e quente.
Nossa…
Tentei não comparar, mas foi impossível. Nenhum outro que já
beijei chegou aos pés daquela boca, da pegada que ele tinha e
conseguiu me deixar excitada. Eu ainda era virgem porque não tinha
encontrado nenhum que fosse capaz de acender essa chama dentro
de mim, que deixasse a minha calcinha molhada como estava
ficando.
Marcelo mordeu meus lábios com força, me apertou mais
ainda. Desci com as mãos pela sua nuca, arranhando de leve, e isso
só o fez continuar me beijando intensamente, a ponto de me deixar
sem fôlego. Percebendo como fiquei, passou da boca para o
pescoço, onde não poupou as mordidas e chupadas, que iriam ficar
marcadas.
Droga… Como podia alguém de que eu não gostava me deixar
naquele estado?
Se ele passasse a mão por baixo do vestido, sentiria quão
ensopada estava.
— Aurora, desgraçada, que porra de boca gostosa a sua…
Estou me controlando para não voltar a beijá-la e tomar seu fôlego
outra vez.
Mordi o lábio com força.
— Precisa se conter, doutor, ou terá uma paciente de
emergência em seus braços. — Cutuquei sua barriga com um dedo e
pude sentir um pouco do seu músculo definido, só pela textura
grossa. — Hum… Então você é do tipo rato de academia?
Sua testa encostou na minha, e sua mão acariciou meu rosto
suavemente.
— Sim, gosto de me exercitar sempre que tenho tempo. O que
faço com essa vontade de voltar a te beijar como se não houvesse
amanhã?
— Acho um pouco exagerado da sua parte dizer algo assim…
— sussurrei.
— Como posso agora desejar a mulher que me deixa fora de
mim, perturba o meu juízo e sempre está à beira de me matar… Me
diz o que faço? Porque, puta que pariu… — Seus lábios rasparam os
meus. — Eu daria tudo para ficar sempre te beijando.
— Esperava tudo, menos que ficasse completamente rendido
com um único beijo.
— Rendido pela sua boca, não por você, desgraçada. — Suas
mãos envolveram minha nuca, puxando os fios de meu cabelo com
muita sensualidade. — Meu desejo é te levar para meu quarto e te
fazer pagar pelas raivas que me causou. Te deixar muito mais que
sem fôlego, fazer suas pernas tremerem de prazer.
— E por que não faz isso? — provoquei.
— Eu não gosto de você, nem a senhorita, de mim…
— Gostei do motivo. — Lambi os lábios. — E assino embaixo.
— Mas nem por isso consigo pensar que possa ser uma ideia
ruim, porque não seria, não é mesmo? Tipo, nós dois juntos, eu por
cima, você por baixo. Meu pau atolado na sua boceta, tomando-a
duro, com tanta força que no outro dia ficaria completamente
sensível, me sentindo por vários dias — rosnou, rouco.
— Para de me provocar, Marcelo, sabe que isso é errado. Você
é o meu chefe…
— E a senhorita, a residente por quem estou louco,
desesperado para ter essa noite.
— Qual garantia me daria de que seria apenas uma única
noite?
— Posso assinar qualquer papel que prove que irei cumprir
com o prometido.
— Vou pegar meu celular e te fazer gravar um áudio dizendo
isso, o que acha?
— Não consegue confiar na minhas palavras?
— É claro que não confio, nem vou. — Pisquei um olho. —
Então, vai ou não?
— Pode deixar que gravo, e faço o que quiser, darling.
Gargalhei baixo.
Eu não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com a
minha vida, aceitar viver uma aventura de uma noite com o homem
que simplesmente tenho uma lista de motivos para odiar e detestar.
E não digo isso da boca para fora, realmente havia criado um bloco
de notas com uma lista de coisas que desprezava naquele projeto de
Capitão América.
Ele era..
Irritante.
Chato.
Dono de um ego enorme.
Se achava o dono da porra toda, ainda que fosse o chefe…
Tinha uma risada que me deixava nos nervos.
E sorria como se tivesse um rei na barriga.
A lista era grande e poderia ficar citando itens por horas, mas
decidi deixar de lado.
— Aurora, qual é a sua última palavra?
— Uma única noite e até nunca mais!
— Uma única noite…
Dito isso, sua boca cobriu a minha e eu sabia que, ao fazer
aquilo, iria me arrepender mais na frente de seguir por aquele
caminho proibido. Beijar Marcelo era um grande erro. Só que decidi
não ficar pensando nisso, e apenas curtir o momento. Eu nunca
tinha sentido essa vontade de ter a primeira vez com nenhum outro,
Marcelo foi o único que me fez jogar os conceitos para o alto e me
permitir viver.
Acordei com uma tremenda dor de cabeça, e mãos fortes em
volta da minha cintura. Pensei que ao despertar iria me arrepender
da noite passada com o doutor, mas até o momento não conseguia
sentir nada além da vontade de ir para o banheiro.
Tentei me soltar, mas quem disse que ele deixava? Tentei de
novo, e nada.
Marcelo ainda estava dormindo, e parecia andar longe de
acordar. Continuei na tentativa de fazer com que me soltasse, mas
novamente foi inútil.
— Droga… — sussurrei.
— Isa…
Pisquei os olhos ao ouvi-lo murmurar algo que de imediato não
entendi.
— Bella… — repetiu mais uma vez, e beijou meu pescoço sem
parar. — Isa.
Fiquei estática ao notar que me chamava pelo nome de outra
mulher.
Como podia ter passado a noite em cima de mim e no dia
seguinte chamar por outra? Senti tanta raiva na hora que usei toda
força que tinha para me soltar dele.
E consegui, mas nisso o cretino acordou de uma vez por todas
no supetão.
— Isa? Isa?
Seus olhos encontraram os meus, e peguei um sapato no chão
para jogar no babaca.
— Aurora, porra…
— Isa deve estar na puta que a pariu, seu idiota! Vai lá
procurar por ela, vai…
Saí em busca da minha roupa no chão para vestir e ir embora.
— Ei, ei, o que aconteceu? O que foi isso? — Veio ao meu
encontro, mas não deixei que me tocasse.
— Quem é essa mulher que você não parava de chamar? Sua
namorada, é isso?
— Quê? É claro que não, porra, não tenho ninguém e deixei
isso bem claro antes de tudo… Juro que não estou entendendo.
Neguei com a cabeça.
— Vou me vestir e dar o fora daqui, se possível nem quero te
ver mais…
— Aurora, porra, o que aconteceu?
— Aconteceu que acordei ouvindo você chamar por outra,
quem é que quer acordar desse jeito? Ainda mais depois de ter
passado uma noite com o babaca em questão.
Comecei a sentir tantas coisas ruins por dentro que não sabia
explicar.
O que parecia era que eu tinha transado com um homem cujo
coração pertencia a outra. Claro que havia sido um acordo de uma
noite só, mas me machucou um pouco.
— Aurora, eu…
— Nem tente vir atrás ou jogo o outro sapato na sua cara.
Entrei de uma vez por todas no banheiro, morrendo de raiva.
Joguei na lama a única chance que tive com Aurora.
Conseguia me lembrar do nome que eu tinha chamado
enquanto estava adormecido e inconsciente, mas com toda certeza
não fizera isso de propósito, não tinha intenção alguma de deixá-la
após a nossa noite juntos. Só sabia que a doutora ficara brava,
jogara sapato em mim. Por muito pouco, não pegou na minha cara,
depois saiu do quarto soltando fumaça pelas narinas de ódio.
Mil vezes caralho…
Nunca pensei que um momento incrível que vivemos fosse
terminar daquela forma. Apesar de estarmos um pouco bêbados,
tínhamos consciência e conseguimos aproveitar muito. Venerei seu
corpo de uma ponta a outra, devorei sua boca, seios, boceta, e a fiz
gozar até simplesmente perder o sentido, foi nesse momento que
penetrei. Fui assolado por um prazer descomunal, o aperto, o calor,
tanto que acabei chegando ao ápice muito mais rápido, beijando
aqueles lábios de mel.
Só de lembrar, meu pau automaticamente ficava duro.
Aquela foi só a primeira de outras três que vieram em seguida,
eu a coloquei de quatro na cama, e em seguida veio por cima,
engolindo todo o meu cacete. Fomos explorando outras posições,
navegando por orais, o que fez a foda ser do caralho. Consegui
aproveitar ao máximo, saciei noventa por cento do celibato em que
estava fazia anos. O restante eu esperava completar na manhã
seguinte, o que não aconteceu, e depois de tudo duvidava muito
que voltasse a acontecer.
Se Aurora me odiava antes, agora iria me odiar mais ainda.
Dei um soco na mesa, engolindo um monte de palavrões.
Como pude ser tão idiota? Por que tenho sempre que estragar
tudo?
Retornamos da viagem e nunca mais tive o prazer de vê-la nos
corredores. Tentei mandar uma mensagem, mas infelizmente fui
bloqueado e achei melhor dar um tempo antes de continuar com as
tentativas de me desculpar pelo ocorrido.
Eu me sentia mal por ter colocado aquela garota em uma
situação constrangedora, era claro que ninguém queria dormir e
acordar sendo chamada pelo nome de outra. Ainda havia o fato de
que simplesmente cometi um erro ao mencionar um fantasma do
meu passado, uma vez que não era apaixonado por nenhuma outra;
meu coração estava completamente congelado. Nunca que seria
capaz de levá-la para a cama sentindo alguma coisa por alguém.
Nem pensar…
Podia ser um completo desgraçado, mas nunca a esse ponto, e
por isso precisava ter uma chance de me explicar para Aurora, que
precisava me ouvir e me entender. No dia, posso ter sonhado, ou
meu cérebro pregou uma peça, só podia ser. Como já deixei bem
claro, jamais faria algo desse nível baixo para magoá-la.
Contive a vontade de bater novamente na mesa.
Eu precisava me segurar, estava em um ambiente de trabalho,
com uma imagem a zelar e não podia dar motivos para contestarem
a minha capacidade como chefe. Peguei um relatório na mesa, e
decidi dar continuidade à leitura, mas alguém bateu à porta. Dei
permissão para que entrasse, e fiquei surpreso ao ver Jason por ali.
— Até que você ficou bem nessa cadeira, cara de bunda.
Dei um sorriso contido.
— Fiquei sabendo que vai trabalhar por aqui, quando vai
começar?
Meu amigo se sentou.
— Ainda estou pensando se é uma boa ou não — respondeu.
— Com toda certeza, vai ser mais que bom, ter você na equipe
será do caralho! O que está esperando para assinar o contrato e
começar o quanto antes?
— Minha irmã vai odiar saber que estou trabalhando aqui.
— Eu nem sabia que você tinha uma, Jason. Ah, é, sempre me
esqueço que o meu grande amigo nunca comenta sobre a vida
pessoal… — alfinetei.
— Pois agora está sabendo e ela por coincidência trabalha
aqui.
— Sério? Será que conheço? — Semicerrei os olhos.
— Aurora Jones — revelou.
Senti como se tivessem jogado um balde de água fria sobre
mim.
CA-RA-LHO.
Tossi mais ainda.
— Cara, o que aconteceu? Está tudo bem, ou devo me
preocupar?
Minha cabeça deu voltas sem parar em torno do fato de que a
garota que me odiava, que levei para cama e no dia seguinte chamei
pelo nome de outra, era irmã do meu segundo melhor amigo que a
vida me deu, porque Henry sempre seria o primeiro.
— Marcelo?
— Desculpa, é que fiquei em transe com essa informação
inesperada. Até pouco tempo só sabia seu nome, e agora descubro a
existência de uma irmã, justo a que simplesmente não vai com a
minha cara, acredita?
— Aurora é um pé no saco mesmo, chata e muito
perfeccionista. Mas, só para deixar claro, não somos irmãos de
sangue.
Por essa não esperava…
— Meus pais a adotaram quando eu ainda era pequeno, sabe?
Minha mãe morria de vontade de ter outro filho, mas graças a um
problema de saúde não pôde. Aí tiveram a brilhante ideia de me
presentear com uma irmã…
— E vocês dois têm uma boa relação? — questionei, curioso.
— Um pouco, como sabe vivo mais viajando do que em casa,
mas, se eu vier trabalhar aqui, é bem provável que tenhamos mais
convívio que nunca antes.
— Pensando por outro lado, acha que isso poderia dar certo?
— Aurora é chata, mas nunca atrapalharia o meu trabalho,
bunda-mole. E vem cá, como foi que ela começou a não ir com a
sua cara? Fiquei surpreso com essa revelação.
— É só uma cisma boba, mas no geral nos respeitamos e está
tudo certo.
Omiti uma grande parte, porque nem podia revelar que
transamos, ou a nossa amizade construída no tempo do Exército
seria acabada dentro de segundos.
— Sei, vim aqui para te ver e te chamar para bebermos mais
tarde, o que me diz?
— Não vou conseguir sair tão cedo do hospital hoje, fica para
outro dia?
— Pode ser, mas nada de sumir, seu bunda-mole, nunca mais
te vi em nenhum lugar.
— Ocupado demais com o trabalho, vai saber quando vier
fazer parte do time.
— Até lá, vou ficar pensando se será uma boa ou não…
— Pense com carinho e me avise, que cuidarei de todo o resto.
— Pode deixar, doutor Marcelo.
Ficamos conversando mais um pouco antes de meu amigo ir
embora.
Mais tarde, fui chamado pela cirurgiã pediatra para
acompanhar um procedimento. A criança em questão fora vítima de
envenenamento. As medidas para lidar com as consequências disso
foram tomadas o quanto antes, no entanto seria necessário fazer a
retirada de um objeto que estava no estômago, perfurando-o, era
um caso bem complicado, a polícia estava investigando e havia
muitas pontas soltas.
Aurora estava presente, e não era mais nenhuma surpresa, a
essa altura do campeonato ficava bem claro que seu desejo era
seguir por aquele caminho. Trocamos um olhar por acaso, senti um
aperto no coração, mas foquei no problema.
— Doutor, os batimentos começaram a cair, a pressão
também…
— Hora de iniciar o processo de ressuscitação, vamos! Não
podemos perdê-la!
— Agora!
— Hemorragia aqui, doutora…
Tudo ocorreu muito rápido, e infelizmente, por mais que
tivéssemos feito o que estava em nossas mãos, e o possível dentro
da medicina, a menina na mesa morreu.
— Óbito às treze e quinze da tarde.
Olhei para Aurora, e vi lágrimas escorrerem por seus olhos. A
pediatra do caso ficou abalada fisicamente, afinal estávamos falando
de uma criança de quatro anos.
Sempre que um anjinho morria, algo dentro de nós se
quebrava. Isso era um fato.
Saí da sala desolado por entrar com uma missão e sair com
aviso de morte.
— Doutor, minha filha? Minha filha?
Encontrei os pais no meio do corredor, e aquele era o segundo
momento pior.
— Deu tudo certo? Deu, não foi?
— Sinto muito, mas…
Essa era a pior parte sobre ser médico, e ninguém falava
disso. Porque, no final das contas, nenhum familiar estava preparado
para ouvir a notícia de óbito.
Não consegui conter o choro assim que entrei na sala de
descanso.
Tirei a máscara com força, e dei alívio ao nó preso na
garganta. Aquela criança vulnerável e inocente era vítima de uma
sociedade doente. Aceitou um doce grande, de origem duvidosa e,
como se não bastasse estar envenenada, ainda havia um objeto
cortante dentro, que perfurou seu estômago. Impossível imaginar
como foi que conseguiu engolir; talvez, na hora da fome, nem tenha
pensado nisso.
Eu estava na emergência quando a pequena chegou
vomitando, e precisou ser socorrida imediatamente, pois
apresentava dificuldade respiratória. A cirurgiã da pediatria, ao ter
conhecimento do caso, solicitou um exame no qual vimos o objeto, e
constatou que precisaria ser feito uma cirurgia o quanto antes. O
problema foi que terminou em óbito. Três paradas cardíacas, e na
última não resistiu.
Quando se está dentro da sala, temos que segurar ao máximo
a emoção, doar o nosso melhor para salvar a vida de quem for, mas,
quando a notícia da morte vem, sempre pega de surpresa, e não há
coração forte que aguente a dor. Fiquei mal, tentei não transparecer,
porque ali não era nem deveria ser lugar para chorar.
Assim que fui liberada, segui caminho em busca de me
acalmar.
Marcelo ficou de conversar com a família, já que até a pediatra
ficou fragilizada. E como não ficar? Na faculdade não ensinam sobre
como ser frio quando coisas assim acontecem. Certo que algumas
pessoas são mais resistentes, mas, para ser bem sincera, falando
sobre bebês ou crianças, não há nada que alivie essa dor.
Nada.
Era só mais um anjo indo embora cedo demais.
A porta da sala se abriu, e o chefe de cirurgia veio me abraçar
apertado.
Eu estava frágil pela situação, não consegui me afastar, apenas
retribuir.
— Não sabe o quanto sinto por isso, estávamos indo bem, e
de repente aquilo aconteceu. — Me agarrou com força, como se
quisesse tirar a dor de mim.
Chorei baixinho.
— Ela era só um anjinho, como alguém tem coragem de fazer
algo para matá-la?
— O mundo está cada vez pior, espero que a polícia consiga
achar o culpado.
Encostei o rosto em seu peitoral, choramingando sem parar.
— Estou com um aperto no peito, pensei que ela iria acabar
bem, não morta.
— É o nosso desejo como médicos, Aurora, mas às vezes uma
complicação piora tudo e não há nada que possamos fazer, sabe
muito bem disso.
— Sei, mas não deixo de pensar que as coisas poderiam ser
diferentes…
— Não podemos nos culpar pelo controle que não está só em
nossas mãos. A criança estava com uma hemorragia muito grande, o
que só complicou mais ainda.
Afastei-me, passando uma mão no rosto.
— Você falou com os pais? O que disseram?
— Falei com a mãe, o pai não estava presente e podia ser um
suspeito, pelo que entendi. Esses homens desgraçados que não
aceitam o fim de relacionamentos. Se for comprovado, espero que o
idiota apodreça na cadeia!
— Não sabe o quanto ouvir isso me deixa com mais ódio
ainda! Não podem simplesmente terminar e fim de papo? Tem
sempre alguém que morrer?
É
— É bem complicado, Aurora, isso tem acontecido cada vez
mais…
— Eu não aceito, aquela menina não tinha culpa de nada! —
Chorei mais.
Marcelo me puxou para outro abraço, e beijou a minha testa.
— Sinto muito, querida, fizemos o que podíamos para salvar
aquele anjinho.
— E não foi o suficiente, podíamos ter tentado mais…
— Se ficar pensando assim, não ajuda em nada. Precisa saber
que fez, sim, todos nós que estávamos naquela sala fizemos alguma
coisa para salvar a menina!
Neguei com a cabeça.
— Seu plantão acaba a que horas? — perguntou.
— Ainda falta muito — murmurei fanhosa. — Por quê?
— Eu queria poder conversar com você, mas acho que agora
não é o momento.
— Estou bem, apenas sensibilizada com a morte daquele
anjinho. — Afastei-me novamente, cruzando os braços. — O que
quer falar?
— Queria te pedir desculpas pelo que aconteceu naquele dia,
que não tive intenção alguma de dizer aquele nome, não estava
consciente do que dizia e não entendo por que isso aconteceu. Eu
sei que sou um idiota, Aurora, mas nunca coloquei ninguém no meio
do que tivemos — falou olhando dentro dos meus olhos. — Por isso
te peço desculpas.
— Sei… — foi tudo que falei.
— Eu juro por tudo que é mais sagrado que não fiz por mal,
pode ter sido um delírio, posso até conversar com a minha psicóloga
sobre isso… — soou sincero.
— Não sabia que tratava da sua saúde mental, doutor.
— Precisei, ainda mais depois da temporada que passei no
Exército. Vi muita coisa, e foi impossível não voltar perturbado, com
uns traumas nas costas.
— Meu irmão também foi, e voltou cego de um olho —
comentei, achei necessário falar.
— Descobri hoje que seu irmão é o meu amigo, o mesmo que
fiz durante a missão.
Arregalei os olhos.
— Eu soube, por alto.
— Fiquei chocado ao saber. — Sorriu de lado.
— Mais um motivo para ficar bem longe de mim. — Apontei
um dedo em sua direção. — Não pela amizade em si, mas porque
isso nunca daria certo. Recebo suas desculpas, mas vou levar um
tempo até esquecer que me chamou pelo nome de outra.
— Não sabe o quanto sinto por isso que aconteceu, estou
morrendo de vergonha.
— Acho que ela era uma mulher importante, por isso nunca
esqueceu. Você dizia, Isa, Bela.. Sussurrou com tanta veneração
como se estivesse a sentindo por perto.
Marcelo parou, e ali descobri que esse nome lhe soava familiar.
— Seria muito invasivo perguntar quem ela é?
— E-eu, não, quer dizer, vou indo…
— Ei, não vai dizer?
O babaca foi embora na velocidade da luz, apavorado depois
do que falei.
Essa mulher tinha feito parte do seu passado, e com toda
certeza ele não a esquecera.
Maldita seja a hora em que o álcool entrou no meu sangue e
me fez ter a primeira vez com o homem que, se antes eu odiava,
agora iria odiar mil vezes mais ainda.
Mais um motivo para pôr na lista.
Marcelo era um grande desgraçado e completamente patético.
— E como foi o evento, não paquerou nenhum médico por lá?
Dei um gole no suco, e olhei de relance para Mia. Eu sabia
que, se abrisse a boca para contar o que de fato aconteceu, seria
como ir para rede nacional, afinal a loira não sabia guardar segredo.
Era minha amiga, com toda certeza, mas não era tudo que ela
precisava saber. Por isso eu manteria em segredo o máximo que
conseguisse.
— Fui para aprender, não namorar — fui bem direta. — Acha
que as pessoas que estavam lá foram com segundas intenções? É
bem óbvio que não!
Exceto Marcelo, esse me chamou para beber, brincamos de
shots, e o resto, bom, essa era uma consulta para adultos acima de
dezoito anos.
— Sei, senhora azeda… Às vezes, penso que você tem oitenta
anos.
— Tenho certeza de que eu tenho, mas só para algumas
pessoas, porque para meus lindos pacientes mirins sou uma criança
de cinco anos. — Pisquei um olho.
— Sim, não podemos esquecer isso. Ranzinza para o mundo, e
fofa para as crianças. — Riu baixinho. — Hoje foi um dia corrido, não
é mesmo?
— Nem me fale, participei de uma cirurgia em que uma
menininha morreu.
— Liam comentou sobre isso, e achei bem triste. Já acharam
quem fez isso?
— Parece que o pai é um dos suspeitos, acredita nisso?
— Os valores se inverteram, Aurora, o amor tá quase extinto
do universo.
— Pior que está mesmo, só penso que, se a menina não
tivesse comido o doce, ainda estaria viva e com uma vida inteira
pela frente.
— É bem triste mesmo, pensando por esse lado. Agora,
mudando de assunto… Vamos passar o feriado de Páscoa na casa
dos meus pais?
— Vai ficar para a próxima, sabe que a minha mãe faz questão
da minha presença, e o meu pai nem se fala…
— Poxa, só porque eu queria te apresentar para o meu irmão
que chegou.
— Sabendo disso, aí é que não vou mesmo! Para de me
arrumar namorado, Mia!
— Ué, não posso te querer como cunhada? Seria maravilhoso
demais!
Fiz careta, e voltei a beber meu suco. De repente vi Marcelo
passando com o neuro.
— Esse aí é tão gatinho, pena que nunca me deu moral. — Mia
comentou.
Fiquei calada.
Só fiquei pensando no jeito como ele saiu correndo da sala.
Idiota mesmo.
— VOCÊ FEZ O QUE, PORRA?
Henry berrou do outro lado da linha e senti vontade, se
pudesse, de socar seu rosto. Como não podia simplesmente sair
contando por aí as consequências da noite que tivera com a doutora,
tive que contar para a única pessoa em que eu confiava de olhos
fechados. Eu tinha outros amigos, isso era um fato, mas ninguém
nunca chegaria aos pés do médico perfeitinho que enfim encontrara
a tampa da sua panela e era um superpai. A maior referência de ser
humano que eu tinha e em quem podia confiar.
Por isso e mil outros motivos.
— É, chamei o nome da mãe de Jade, acredita nisso? Que
desgraça!
Desde que Aurora contou o tamanho da mancada que cometi,
senti uma vontade imensa de tacar a cabeça na parede e lavar a
boca com água sanitária, só por ter falado o nome da mulher que
mais odiava em toda a minha vida. Aquela que me fez querer ver o
Capeta, em vez de dar de cara com seu rosto fodido de merda.
— Cara, agora essa doutora não vai querer nem olhar na sua
cara.
— Também não é para tanto, afinal não faz nem uma semana
que fui oferecer um abraço amigável após perdemos uma criança na
mesa de cirurgia. E, por incrível que pareça, ela não se afastou e
aceitou de bom grado o meu carinho.
— Devo lembrá-la que foi tudo por causa de um momento de
fragilidade? Se eu fosse você, trataria de comprar um buquê de
flores, chocolates, essas coisas, sabe?
— Está me dando dicas baseado no jeito atrapalhado como
conquistou a Mary?
— Bom, eu podia ter vários defeitos, mas tentei ser um
verdadeiro lorde o máximo que consegui. E a prova disso foi que
nosso amor sobreviveu a tudo.
— Já está falando de amor, até parece que esqueceu que
minha situação é outra.
— Estou dizendo que sua mão não vai cair se tentar ser gentil,
sabe? E outra, você errou muito, ainda que estivesse inconsciente
quando a chamou pelo nome daquela inquilina do satanás. —
Gargalhou. — Comece por um buquê de flores, sempre dá certo.
— E se ela não gostar? Minha situação vai ficar pior, cara.
— Se quiser, posso pedir mais sugestões a minha esposa, o
que acha?
— Deixa Mary fora disso, porque ela é bem capaz de aparecer
aqui só para me bater.
— Estamos indo para a cidade na próxima semana, e vamos
passar no hospital para te ver. Eu quero ver como o meu melhor
amigo está se saindo como chefe.
Soltei uma lufada de ar.
— É um desafio, mas acredito que estou me saindo bem,
então nem precisa vir conferir. Já basta o meu pai, que vez ou outra
vem aqui, parece estar me cercando, sabe?
— Entendi, é muito compreensível, afinal passou anos nessa
cadeira aí, deve estar com saudade do cargo, e com toda certeza,
conferindo a sua capacidade de perto.
Bufei.
Isso só podia ser uma piada.
— Ainda não tinha pensado por esse lado, obrigado por me
lembrar, doutor.
— Ex-doutor — corrigiu. — Às vezes me sinto como seu pai,
tenho saudade de atender, conhecer todos os dias novos pacientes,
essas coisas todas. Mas depois passa, porque sei que cumpri meu
papel do começo ao fim, e agora vivo a melhor fase da minha vida.
Tenho a minha esposa maravilhosa e filhos sensacionais.
Abri um sorriso largo.
— Isso é verdade, mande um beijo para meus afilhados. Estou
com saudades.
— Quando pretende deixá-los ter contato com sua filha? Anos
se passaram, e esse momento parece cada vez mais longe de
acontecer.
Engoli em seco.
— Vamos ver sobre isso depois, primeiro preciso me aproximar
de Jade, e segundo, consertar a merda que cometi com Aurora
naquela bendita noite.
— Sabe que foi no dia seguinte, seu idiota, e é bom que faça
isso o quanto antes. De toda forma, iremos, sim, te visitar, porque
preciso conhecer essa tal pediatra que te tirou do celibato e
conquistou o coração da sua filha.
— Vai ver que é só mais uma garota normal, não tem nada
que possa surpreendê-lo.
— É claro que tem, ou você não me ligaria quase chorando em
busca de ajuda.
— Ah, Henry, quer saber, tchau, tenho mais o que fazer.
— Eu também tenho, vou dar uma cuidada na minha horta e
ensinar uma atividade escolar das crianças.
Riu.
— Até logo mais, meu amigo.
Nos despedimos e a ligação foi encerrada.
Coloquei o aparelho sobre a mesa, e me preparei para
organizar uma dependência referente a duas máquinas que iriam
chegar para compor a sala de cirurgia. Só que Roberto, o neuro do
hospital, chegou bem na hora e tive que dar atenção.
— Chefe, desculpa te interromper, mas estamos com um
problema.
Fui logo me levantando.
— O que aconteceu?
— Chegou à recepção uma mulher ferida, desesperada e
agressiva, é importante destacar que se trata de uma paciente que
está com uma gestação de oito meses, parece. Ao menos foi o que
respondeu quando perguntamos…
Pisquei os olhos.
— Seja mais direto, Roberto, não estou conseguindo entender
aonde quer chegar!
— Ela grita que quer que tirem o bebê, é isso! Parece
transtornada, fora de si, não tem documento, e ao que parece está
em situação de rua — contou. — Dois enfermeiros conseguiram
contê-la, e a levamos para um quarto, onde está trancada. Foi
necessário fazer isso, porque a barriga está cheia de hematomas.
— Cara… Vou ver isso pessoalmente. Chamem o pessoal da
psiquiatra, o ginecologista de plantão e um pediatra para o caso de
o bebê nascer.
— Esse é o problema, estamos sem o ginecologista de plantão.
— Não seja por isso, sei quem chamar, agora vamos resolver
isso!
Jason atendeu ao meu pedido e, por ser um caso bem
delicado, foi necessário fazer um parto de emergência, sobretudo
porque a paciente começou a apresentar uma hemorragia. Um parto
complicado e prematuro, a criança não estava completamente
desenvolvida para sobreviver fora do ventre da mãe.
Era um menininho, tão pequeno, muito abaixo do peso e foi
preciso ir direto para a incubadora. Ficaria em observação, e as
próximas horas seriam decisivas.
— Muito obrigado por ter vindo. — Cumprimentei meu amigo
após a cirurgia. — Você salvou a vida daquela mulher e a do bebê,
que espero que sobreviva.
— Imagina, só que a mãe vai precisar de muito suporte
mental. Uma pessoa em sã consciência não seria capaz de atentar
contra si e forçar um parto antes do tempo.
— Já contatei os assistentes sociais, vamos tentar descobrir se
tem família e alguma pessoa para se responsabilizar pela criança.
— Ainda bem que acolheram aqui, apesar de ser um hospital
privado…
— Eu nunca seria capaz de negar ajuda, ainda mais em uma
situação delicada como essa.
— Sei disso, doutor Marcelo. Acho que, depois de hoje, posso
ser oficialmente o ginecologista do hospital, o que acha?
— Acho perfeito, podemos ir até a minha sala para conversar
sobre isso?
— Com toda certeza, o que vamos ter é tempo. Eu quero
acompanhar de perto esse bebê, estou realmente preocupado com a
situação e temo pelo pior.
— Jason… Você.
Aurora apareceu, e fiquei estático.
— Sim, irmãzinha, estou aqui em carne e osso. E antes de
mais nada, se acostume porque irei trabalhar aqui pelos próximos
meses.
— Eu soube que salvou a vida daquela paciente, como está o
bebê?
— Vai ficar bem, é o que espero. Se tiver disponibilidade para
o caso, quero que fique monitorando, só pelo tempo que volto da
sala do chefe, ok?
— Claro, pode deixar.
Fiquei em silêncio enquanto os ouvia conversar.
Aurora me lançou um olhar rápido, nem sorriu, nada. Eu não
podia tirar sua razão, tivemos uma noite incrível, e no dia seguinte
estraguei da pior forma possível. Talvez fosse hora de colocar em
prática as dicas que recebi do meu amigo Henry.
— Por que sinto que vocês não têm apenas uma treta besta?
A voz de Jason me trouxe de volta à realidade, e sua irmã já
tinha ido embora.
— O que quer dizer com isso? — Devolvi a pergunta.
— Eu vi o jeito como se olharam, parece que tem muito mais
por trás. Não é? Saiba que não sinto nem um pouco de ciúme dela,
nem vou te matar caso tenha interesse nela. Sou um cara bem
resolvido quanto a essas coisas, Marcelo.
— Só vamos para a minha sala, por favor. Depois conversamos
sobre isso.
— Então a minha intuição não estava errada. Vocês já ficaram!
— Gargalhou, zombando.
Não dei atenção, até porque não era o momento para falar
sobre isso.
Passei o feriado de Páscoa na casa dos meus pais, aproveitei o
tempo para matar a saudade dos meus velhinhos, como gostava de
chamá-los. Foi bem agradável, conversamos bastante, contei um
pouco das minhas últimas experiências no trabalho e do quanto me
afeiçoava pela área de cirurgia pediátrica. Meu pai era o que mais
me apoiava, e a minha mãe morria de orgulho e felicidade.
Jason fez parte do momento, e partilhou a novidade em
primeira mão, contando que era o novo ginecologista do hospital em
que eu fazia residência. Não fiquei nem um pouco surpresa, embora
não soubesse que ele e Marcelo eram amigos de longa data. Eu e
Jason não éramos próximos, se fôssemos, talvez soubesse desse
vínculo que havia começado ainda no Exército. Dividimos os mesmos
pais desde pequenos, mas nunca fomos aqueles irmãos grudados,
era cada um em seu canto, por isso jamais contamos segredos um
para o outro.
Mas, no geral, tínhamos uma convivência pacífica pelos laços
familiares que nos uniam. Se eu não podia vê-lo com um amigo, a
vida me dera outros, melhores, como era o caso de Mia, que apesar
dos defeitos era uma boa pessoa, e Liam, um ótimo parceiro,
confidente e ótimo conselheiro. Agora, com sua contratação, teria
mais contato com Jason, querendo ou não.
Só conseguia pensar no quanto isso seria desafiador…
Quando eu era mais nova, gostava de acreditar que essa
estranha relação que tínhamos, dividida entre distância e respeito,
se devesse ao fato de não ser sua irmã de sangue, e de alguma
forma roubei um pouco do amor dos pais que ele tinha
exclusivamente. Mas tanto a minha mãe quanto meu genitor adotivo
falavam que não era isso, mas sim porque o babaca em questão era
um tanto complicado. E, de fato, era. Jason aprontava todas, e
amava deixar todos preocupados ao extremo. Enquanto sempre fui
mais calma, tranquila e me mantinha na zona de conforto.
Talvez por isso nunca fôramos bons amigos.
— Já pensou o que as pessoas vão dizer se souberem que
você ficou com o chefe?
Tomei um susto, e virei-me de lado para ver a praga do meu
irmão.
Eu estava na varanda da casa, mexendo no celular, que quase
deixei cair no chão.
— Que conversa é essa? — Olhei para os lados para ver se não
tinha ninguém ali.
— A vida me deixou esperta, Aurora, e não foi difícil ver que
tem algo acontecendo entre você e o meu amigo. Afinal de contas,
não há como duas pessoas se odiarem em vão. — Deu de ombros,
pondo as mãos nos bolsos da calça.
— Só pode estar delirando, não tem nada acontecendo entre
nós dois!
— Preciso deixar claro que não me importo nem um pouco,
mas talvez não vai pegar bem para seu lado se as pessoas
descobrirem.
— Ninguém vai saber de nada, idiota! Até porque não tem
nada acontecendo.
— Porque você não quer, não é mesmo? Ele está a fim demais
e nem esconde.
Fiz careta e tossi.
— Jason, pode parar com essa conversa, ou vou acabar
vomitando…
— Maninha, apesar de não sermos próximos como
deveríamos, saiba que torço por você e quero seu bem, assim como
desejo para Marcelo, que é um cara legal, sabe? O tempo que passei
trabalhando ao seu lado, pude conhecê-lo melhor, e afirmo que é a
pessoa certa para se envolver porque sei que não vai te machucar.
Ah, e chamar o nome de outro é o que mesmo? Uma nova
forma de demonstrar carinho?
Senti uma vontade imensa de falar, mas decidi permanecer
calada.
— Olha, ele não me disse nada, beleza? Eu que sou esperto
demais, decidi adiantar antes que ficassem com cisma ou medo de
mim, caso tivesse conhecimento do rolo.
— Acha que pode me colocar medo, Jason? Ou em qualquer
outra pessoa? Só pode estar blefando, devo lembrá-lo que quase
não sabem que somos irmãos?
— Marcelo sabe, e deixei bem claro que não tenho ciúmes de
você, maninha.
— Nem nunca deveria ter, isso seria no mínimo estranho —
sussurrei com desdém.
— Pouco importa, meu papel é te proteger e quebrar a cara de
quem ousar te machucar, mas sei que o nosso chefe nunca seria
capaz disso.
— Olha aqui, vou dizer pela última vez, porque essa conversa
está ficando estranha. Eu não tenho nada com seu amigo, nem vou
ter, entendeu? — Cruzei os braços. — E seu discurso de irmão
protetor não lhe caiu nada bem, então pode dar o fora.
— Tá bom, de toda forma já dei o recado e falei tudo o que
precisava.
— Disse, disse, e acabou não falando nada de futuro! Que
patético!
Jason deu de ombros, rindo baixinho, ainda bem que a nossa
mãe apareceu com uma bandeja cheia de cookies e um monte de
gostosuras feitas de chocolate.
— Aí estão os amores da mamãe, venham degustar o que
acabou de sair do forno.
— Só pelo cheiro sei que está divino — comentei, sorrindo.
Da casa dos meus pais, fui direto para o meu apartamento, já
que não quis dormir por lá, afinal o babaca do meu irmão conseguiu
me deixar irritada. Mia não estava presente, só retornaria na
segunda-feira, então teria tempo de sobra para me jogar no sofá e
ficar assistindo a minha série favorita, como se não houvesse
amanhã.
Fiquei surpresa que logo na recepção me entregaram um
buquê de flores enorme. Quem em sã consciência seria capaz de me
enviar algo daquele tamanho? Agradeci ao porteiro, e fui direto para
dentro da casa para ver o bendito cartão.
“Antes de mais nada, me desculpe pelo fiasco daquela manhã.
Eu não queria nunca, nunca mesmo, ter falado uma idiotice daquela,
por isso mil desculpas.
Assinado, Marcelo’’
Joguei no sofá ao terminar de ler, e fiquei incrédula com seu
gesto gentil. Em seguida, dei uma gargalhada sincera, ele realmente
não me conhecia de verdade, podia mandar era todas as flores de
uma estufa que ainda assim, não iria desculpá-lo verdadeiramente,
do fundo da minha alma.
O que fez não foi nada legal, foda-se se estava adormecido, eu
me senti mal, e isso era o que importava. Por isso nunca me
envolvia sexualmente com ninguém, homens por si só eram
desprezíveis, babacas, e Marcelo provou ser isso e muito mais.
Idiota.
Ainda bem que fora uma única noite, até porque teria que
estar muito louca caso eu quisesse repetir o mesmo erro. Quanto
mais distante puder ficar do doutor, ficarei.
Meu celular vibrou na bolsa, corri para pegar e ver quem era.
Um número novo me mandou mensagem.
“Espero que tenha gostado das flores e me
desculpado.’’
Marcelo… Falando na cobra, apareceu o rabo…
Eu: “Uma pena que não gosto dessas coisas. Só quero
flores no meu funeral.’’
Não demorou muito para que me ligasse.
— Que papo é esse de funeral? — foi logo falando, assim que
atendi. — Pensei que gostasse de flores, quer dizer, todas as
mulheres gostam dessas coisas.
— E por acaso sou “todas as mulheres”? Acho que sua
situação só piorou, doutor.
— Você é uma caixinha de surpresas, Aurora, nunca sei
quando erro ou acerto. Mas dessa vez pensei que andasse perto de
ganhar um ponto extra.
Até gostei das flores, mas nunca vou falar em voz alta.
Marcelo não merece saber.
— Não menti quando falei que só quero receber isso quando
morrer, então odiei.
— Pode me dar mais uma chance para conseguir seu perdão?
— Eu no mínimo me desculpo, porque só quem pode te
perdoar é Deus.
— Engraçadinha…
— Sabia que, quando uma pessoa te bloqueia, é porque não
quer contato? Aí você vai lá e compra outro número. Não dá para
entender seu nível de burrice.
— Nem ouse me bloquear novamente, preciso continuar
conversando com…
Desliguei o telefone por pirraça, e em seguida foi exatamente
o que fiz. Era meu celular, minha internet, e ele não iria me
perturbar ali onde eu tinha total controle.
Vai nunca.
ALGUMAS SEMANAS DEPOIS
Eu estava me esforçando, e não era pouco, para me
aproximar da minha filha. Nos últimos dias e semanas, dividi a
atenção entre o trabalho e a menina, algo que não era nada fácil de
fazer, mas todo sacrifício em prol daquilo sempre seria válido.
A demanda como chefe de cirurgia era grande, exigia muito
cuidado, atenção, paciência, foco e humildade para tomar boas
decisões. Confesso que uma parte de mim estava bem exausta, e
com uma vontade imensa de abandonar a posição, mas a outra
continuava confiante de que estava no caminho certo.
Retornando ao ponto principal, passei a visitar a casa dos
meus pais com frequência, encontrava um tempo para pegar Jade
na escola, e a cada oportunidade puxava assunto. No começo ficou
bem acanhada, sem querer responder, mas por incentivo da minha
irmã e da nova babá, foi se soltando e voltando a atenção para mim.
Recentemente a tinha levado para um passeio no zoológico e no
parque de diversões, foram momentos bem descontraídos em que
pudemos aproveitar muito.
Era claro que a menina ainda não me via como pai, andava
bem longe disso. Tanto que me chamava pelo meu próprio nome, e
ainda não me dera um abraço. E, bom, quem podia culpá-la ou
julgar por isso? As coisas só chegaram àquele nível porque fui um
completo babaca e idiota. Por isso, pegava esse exemplo para não
errar dentro do hospital sob hipótese alguma. De toda forma, só o
fato de estarmos nos aproximando, tendo momentos legais, já era
alguma coisa, e serviu para deixar meus pais cheios de orgulho e
esperançosos.
Até eu tinha esperança de que tudo ficaria bem no final.
No próximo sábado iria acontecer seu aniversário, e Jade
queria o tema da Bailarina, tanto que pediu aos avós que
acontecesse um concerto no jardim para que suas amigas do ballet
e outros conhecidos da escola viessem assistir. E, como eu estava
focado em tentar ser um “pai”, entrei no meio da conversa e falei
que iria cuidar de todos os detalhes, como se já não estivesse
atarefado o bastante. Mas, em se tratando da minha filha, tudo que
fizesse nunca seria suficiente ou o bastante.
Jade merecia o melhor…
Marli me deu uma força, contratou um buffet para cuidar dos
comes e bebes. Também contratamos alguns brinquedos para as
crianças que viessem se divertir, e fiquei responsável por acertar
outros detalhes, além, é claro, de custear todos os gastos.
— Marcelo…
Estava terminando de organizar algumas coisas na mesa dos
meus pais, finalizando um acerto do aniversário da menina, quando
senti sua mãozinha tocar meu braço.
Sempre que me chamava assim, meu peito ficava apertado,
até porque, pouco tempo atrás, nem mesmo falava isso, tampouco
olhava dentro dos meus olhos, mas graças ao meu esforço contínuo
aquele já era um grande avanço.
— Oi — respondi, me virando.
Jade ainda estava com gesso no braço, e em algumas
semanas iria fazer fisioterapia e substituir por uma órtese
termomoldável, bem mais confortável.
— Eu queria que você entregasse esse convite à princesa
Aurora, por favor.
— Hum, e isso quer dizer que quer chamá-la para seu
aniversário? — Franzi o cenho.
Apesar de saber do carinho que ambas sentiam uma pela
outra, não esperava por isso. A pediatra meio que se afastara
completamente e eu mal a via no hospital.
— Sim, quero muito, Marcelo.
Senti vontade de corrigir e dizer que era seu pai.
— Bom, acho que posso fazer isso. — Dei um sorriso de lado.
— Será que ela não vem mesmo depois de ser convidada?
— Aposto que vem, sim, não precisa se preocupar quanto a
isso. Vou entregar o convite.
— Você jura de dedinho que vai fazer isso?
— E quando foi que prometi algo e não fiz? Não viu que vou
trazer para sua festinha seu concerto de ballet favorito e um monte
de outras coisas? — falei empolgado.
— Acho que a vovó também seria capaz de fazer algo assim…
— Jade, sei que não sou a melhor pessoa do mundo pelos
seus olhos, mas, de verdade, estou tentando mudar e melhorar a
nossa relação. Só que, para isso, antes você precisa me dar uma
chance e se permitir me ver além dos meus defeitos.
— Ainda não sei… — Piscou os olhos me encarando. — Se a
princesa Aurora vier, já vai ser um passo muito importante.
Menina esperta, nem parecia ter quatro anos. Era inteligente
e muito certeira.
— Eu juro de dedinho que vou fazer de tudo para sua médica
vir para a festa.
— Obrigada, Marcelo.
— De nada, Jade.
Em seguida me entregou o convite e saiu correndo.
— Cuidado para não cair… — ainda tentei falar.
Não consegui encontrar Aurora, mas entreguei à sua amiga o
convite, e torci mentalmente para que fosse ao aniversário, ou a
menina teria um novo motivo para me odiar. Se a doutora não
tivesse me bloqueado pela segunda vez, teria a chance de enviar
uma mensagem, como faria isso estando sem acesso algum?
Convenhamos e convenhamos, que garota complicada e difícil pra
caralho…
No silêncio da noite, eu me pegava revivendo os momentos
que passamos juntos, minha boca grudada na sua, seu corpo miúdo
sobre o meu, as mãos passeando em suas costas, tocando seus
cabelos, meu pau deslizando para dentro da sua boceta, porra.
Graças a isso, ia dormir pulsando e morrendo de vontade de repetir
a dose, o que matematicamente seria impossível. Que ódio!
Perdi todas as chances que tinha com a pediatra no minuto
em que falei o nome da defunta, porque, apesar de Isabella não
estar morta, para mim dava no mesmo. Sequer sabia do seu
paradeiro, e tampouco por onde andava, o dinheiro que dei serviu
para que desaparecesse do mapa e ficasse bem longe da nossa
filha. Um acordo que fizemos perante a justiça e assinado pela
própria desgraça. Nem gosto de falar sobre isso, muito menos de me
lembrar, tanto que nem sei por que acabei sussurrando essa lástima
após viver uma noite inesquecível com outra pessoa.
Não fora qualquer uma, mas Aurora. Única e inesquecível.
— Estou te achando disperso, o que aconteceu?
Assustei-me quando a dona Gelsa apareceu e tocou no meu
ombro. Estávamos todos reunidos no jardim da mansão, onde enfim
acontecia o aniversário de Jade.
— Não é nada de mais, mãe, só um pouco preocupado.
— Pode me dizer o que te deixou assim, aéreo?
— Medo de Aurora não vir e a sua neta ter um novo motivo
para me odiar.
— Ainda temos tempo pela frente, em algum momento ela
virá.
— E se não vier? Sinto que Jade não vai gostar nada disso.
— Bobagem, querido, relaxe que logo a doutora irá dar as
caras.
Minha mãe deu um beijo carinhoso em meu rosto e foi
cumprimentar os convidados. Fiquei parado no mesmo lugar em que
estava, com o peito quase saindo pela boca.
— Marcelo?
Falando na garotinha, eis que surgiu e parou na minha frente.
— Cadê a princesa Aurora? Não entregou o convite?
— Entreguei, sim, ela deve ter se atrasado… Logo chegará.
— Vamos já cortar o bolo e nada dela… — Fez um bico nos
lábios. — Não entregou o convite, não foi? Pode dizer a verdade.
— É claro que sim, princesa, tem que acreditar em mim.
— Não sei se acredito, você nunca faz nada certo, nunca! Te
pedi um único favor e simplesmente não fez! Como quer ser meu pai
e mudar sendo que só erra?
Porra, ouvir aquilo doeu.
— Por isso não gosto de você, nunca vou gostar! Meu pai é
vovô, e ponto!
Jade começou a chorar, e fiquei sem saber o que falar para
me defender. Fui salvo por Aurora, que apareceu inesperadamente,
dando um abraço por trás na pequena.
— Surpresa!
As duas se abraçaram, mas nada mais importava. Jade havia
lançado palavras pesadas contra mim, provando que, querendo ou
não, meu esforço para nos aproximarmos foi vão. Ela não confiava
em mim e nunca confiaria.
Uma lágrima escorreu pelo meu olho sem que tivesse
controle.
— Marcelo, está tudo bem?
Meneei a cabeça para o lado, não quis responder e virei-me
para ir embora.
Eu estava sobrando, e com certeza a minha presença era
insignificante.
Aurora veio atrás de mim, e tentou pegar no meu braço.
— Ei, o que houve?
— Jade estava dizendo o quanto não gosta de mim,
aproveitou seu atraso para dizer algo desse nível… — Parei próximo
de uma árvore e encarei-a. — Vai lá ficar com ela, afinal qualquer
pessoa aqui nessa casa é melhor que eu, que sou o pai.
Ela ficou me encarando.
— Céus, nem sei o que dizer, me atrasei porque precisei
trocar o pneu do carro.
— Você não tem culpa, o único responsável por deixar as
coisas chegarem a esse nível sou eu. Agora vou embora e, por favor,
não venha atrás de mim…
— Marcelo, e-eu sinto muito.
— Tchau, Aurora.
E fui sabendo que ao sair dali beberia até não me lembrar de
mais nada.
Existe um ditado que diz, não se meta onde não foi
chamada…
Cheguei bem atrasada à festa de aniversário de Jade, e de
quebra descobri que esse foi o gatilho perfeito para pai e filha se
desentenderem. Eu não havia feito nada errado, sabia bem disso.
Mas de alguma forma aquela criança precoce, que expunha seus
pensamentos sem medo algum, conseguira me fazer sentir culpa.
Isso me surpreendeu bastante, e fez o doutor ir embora magoado.
Vi o segundo exato em que uma lágrima escorreu pelo seu olho, e a
dor estampada na cara.
Por isso, fui procurar dona Gelsa para conversar sobre o que
aconteceu, o que vi, perturbada com o jeito como Marcelo saiu,
visivelmente abalado. Depois disso, encontramos um espaço sem
movimentação para falarmos abertamente com a pequena, para
saber mais a respeito da discussão. Eu não tinha nada a ver, mas
não pude fazer vista grossa e simplesmente deixar de agir.
— Então, Jade, quer me contar o começo de tudo?
Permaneci de braços cruzados, observando o posicionamento
da avó da menina.
— Eu fui perguntar se ele não tinha…
— Ele, quem? Essa pessoa tem nome, não? — questionou
bem séria.
— Marcelo.
— Marcelo, que é meu filho e o seu pai de verdade, certo?
Jade assentiu com a cabeça.
— Certo, continue…
— Perguntei se não tinha entregado o convite para a princesa
Aurora, e depois acabei falando umas coisas… — murmurou,
culpada.
— Disse exatamente o que e quais palavras usou para
argumentar?
— Falei que não gostava dele, e que o meu avô sempre seria
meu papai…
— Sua convidada se atrasa um pouco e você se dá ao direito
de agir desse jeito, Jade? Cadê a educação que te demos? Até onde
sei, não foi essa neta mimada que criamos. Você nunca foi tão
impaciente e nunca usou disso para ferir ninguém.
— Foi sem querer, vovó, pode me desculpar?
— Não é a mim que deve pedir desculpas, mas ao seu PAI —
destacou bem a palavra. — Marcelo tem tentado se aproximar de
você, ser mais presente, e posso dar outros motivos, fora que se
dispôs a cuidar da sua festa de aniversário pessoalmente. Eu
entendo que aceitar isso tudo da noite para o dia não é fácil, mas o
que custa dar uma chance? Cadê a criança bondosa e amorosa que
sempre iluminou essa casa?
— Desculpa, vovó, o que fiz foi muito feio…
— Isso foi uma birra, e não vou tolerar esses
comportamentos, Jade. Sei que pode não gostar do seu pai por ter
sido ausente nesses últimos anos, mas, apesar disso, ele sempre
cumpriu com o papel de pai indiretamente, te deu tudo de que
precisava, e te livrou de coisas que só quando tiver idade suficiente
você irá saber. Como sua avó, respeitarei seu tempo para perdoá-lo
de vez, mas vou pedir que nunca mais use essas palavras para
magoar outra pessoa só porque ficou frustrada ou porque algo não
saiu do jeito que esperava… Marcelo saiu daqui chorando, sabe? E,
como mãe dele, me sinto destroçada por dentro.
Jade fez um bico, ameaçando chorar.
— Desculpe, vovó… Não pensei que ele iria ficar assim.
— Se quer ser desculpada, terá que pedir primeiro ao seu pai,
e se permitir dar uma chance para conhecê-lo melhor sem estar
apegada ao que aconteceu no passado.
— Tá bom, vovó, e me desculpe novamente. Eu tô muito
triste por dentro.
— Agora vai curtir sua festa, preciso conversar com Aurora.
Jade assentiu com a cabeça e saiu correndo.
— Querida, sinto muito por isso. Parece que, à medida que
cresce, essa menina começa a dar trabalho, e tudo que nos resta é
repreender e educar mais ainda.
Engoli em seco.
— Sei, por isso vim procurar a senhora, não achei que foi
uma atitude interessante, sabe? Ela descontou a raiva no pai só
porque me atrasei, como se me quisesse presente no horário que foi
marcado, e de verdade, a vida não funciona assim — arrisquei falar,
sabendo que era uma opinião pessoal.
— Está mais que correta, querida. Tudo isso tem sido novo
para Jade, por isso vou conversar com Marcelo também, para que
tenha mais paciência.
— Desculpa me intrometer novamente, mas talvez uma ajuda
psicológica seja viável.
— Com toda certeza, apesar de os dois já fazerem, podemos
cogitar algo em conjunto.
— Sim. — Dei um sorriso de lado.
— Sabe me dizer para onde meu filho foi? Estou muito
preocupada.
— Não sei, dona Gelsa, mas posso tentar encontrar.
— Pode fazer isso por mim? — Me encarou esperançosa.
— Posso, sim. Só vou dar um beijo em Jade e avisar que
voltarei depois.
— E muito obrigada, Aurora, o que fez foi ousado, mas fez
toda a diferença.
— Peço até desculpas por me envolver em um assunto
familiar, mas…
— Nada disso, querida. Fez mais que certo e tem o meu
apoio.
Eu sorri de lado.
— Eu realmente amo sua neta e espero que a relação com o
pai melhore.
— Tenho orado por isso todos os dias, e Deus irá agir na hora
certa.
— Amém.
Demos um abraço bem apertado.
Eu nem sabia por que estava fazendo aquilo, nem as
motivações por trás, mas desde que pisei os pés na mansão da
família de Marcelo para curtir um aniversário de criança comecei
agindo sem pensar, e pelo visto continuava na sequência de decisões
que, em sã consciência, jamais tomaria. Mas, como já estava dentro
do fogo cruzado, só restava continuar em frente, era tarde demais
para recuar.
Tive que desbloquear o número do doutor e ligar várias vezes
seguidas. Por sorte, numa dessas me atendeu e disse que estava em
seu apartamento. Pedi a bendita localização, pois precisava ir vê-lo,
dizer na sua cara que sua mãe havia conversado com Jade. O doutor
precisava saber que tudo isso não passara de uma birrinha.
Cheguei ao endereço, meu carro ficou no estacionamento e
fui logo entrando.
Nada me preparou para Marcelo atendendo a porta só de
cueca. Ah, não…
Fiz careta.
— Veio me julgar? Se for, pode dar meia-volta e ir embora.
— Não acredito que já está enchendo a cara de álcool. — Fui
entrando. — Consigo sentir o cheiro de longe. E não, só vim aqui
dizer algo e ir embora.
Ele fechou a porta e se jogou no sofá.
— Então? Algum recado da minha filha que me odeia?
— Não é bem assim, precisa dar um desconto, sabe? Não faz
muito tempo que vocês mal se falavam, então tudo para ela é muito
novo e desconhecido. Apesar de o comportamento dela no
aniversário não ter sido nada sensato e correto — comentei. — Sua
mãe conversou com ela, e logo tudo ficará bem.
Sorriu de lado.
— Por que está se envolvendo nisso, Aurora? Você não gosta
de mim, me detesta, e agora simplesmente está tentando consertar
a minha relação com a menina.
Dei de ombros.
— Não estou fazendo nada de mais, oras. Só vim aqui te dar
um recado e dizer que sua mãe também estava muito preocupada.
— Pode dizer a ela que estou bem e ficarei mais ainda.
— Claro que não vai, está fedendo a cachaça barata!
— Tomei só dois copinhos…
— Que babaca, aqui tem café? Vou passar um para você
tomar e se recompor. Enquanto isso vai tomar um banho e vestir
uma roupa mais fechadinha.
— Por quê? Não gosta de me ver só de cueca?
— Só se você fosse outra pessoa, aí sim.
— E quem seria esse outro, posso saber?
— Tipo o Capitão América, sabe?
— Isso está bem longe da sua realidade, Aurorinha.
— Acha que ele nunca olharia para uma mera mortal como
eu?
— Não, até porque o ator é casado, darling. Ou seja, isso é
quase impossível, portanto tem que se conformar comigo, que estou
aqui em carne e osso.
Mostrei a língua.
— Vai tomar um banho agora mesmo! Se não quiser que eu
te dedure para sua mãe.
— Era só o que faltava, querida do meu pai, da minha mãe e
da minha filha. Quem mais falta?
— Sua irmã também gosta muito de mim. — Pisquei um olho.
— Parece que todos beijam o chão que a senhorita pisa,
menos eu.
— Ainda bem, porque é exatamente isso que quero, que não
faça parte da lista de pessoas que gostam de mim.
— Como se tivesse controle sobre isso, darling.
— Vai tomar banho, Marcelo, seu mal é falta de cafeína no
cérebro.
— Você que acha, se soubesse do que realmente preciso
ficaria em choque…
Revirei os olhos. Não podia acreditar que tinha largado uma
festinha cheia de bolo, doce e salgados para estar em um
apartamento lidando com aquele loiro, alto, idêntico ao meu
personagem favorito. Eu só podia estar louca e sem juízo algum.
Tomei uma ducha gelada a contragosto, afinal estava limpo o
suficiente e não estava fedendo a bebida como aquela mulher na
minha cozinha afirmava. Aurora dramatizou, e como um belo pau-
mandado obedeci sem pensar duas vezes. Eu estava cansado do que
aconteceu mais cedo, agir no piloto automático era melhor do que
começar uma discussão.
Passei um xampu nos cabelos, uma escova nos dentes para
abafar as duas doses de álcool que passara para dentro e que
sequer me deixaram inconsciente. Se aquela franjinha não tivesse
batido à minha porta, era bem provável que eu tivesse perdido o
controle e esvaziado uma garrafa para amenizar a dor que latejava
no meu peito.
Caralho…
Doeu muito ouvir a minha filha falar daquele jeito, com tanta
firmeza, olhando em meus olhos, como se eu fosse um monstro.
Fiquei ruim de imediato, mas durante o caminho para casa tentei
não levar para o coração, foquei no detalhe de que ainda era muito
cedo para ter sua confiança, e que agiu com uma dose de birra por
sua convidada favorita se atrasar. Juro que tentei mentalizar isso, só
fracassei na hora em que servi uma dose generosa de bebida e
passei para dentro.
Fraquejei nesse ponto.
Meu celular estava cheio de mensagens da minha mãe, cliquei
na conversa e enviei um áudio para dizer que estava tudo bem e não
precisava se preocupar. Não demorou muito para ela ver e acabar
me ligando, então atendi.
Deixei o aparelho na cama, enquanto fui pegar algo para
vestir.
— Marcelo? Filho?
— Estou bem, dona Gelsa, fique em paz.
— Jade quer falar com você, mas tem que ser pessoalmente.
Peguei uma cueca boxer e uma bermuda jeans.
— Amanhã dou uma passadinha aí, também preciso falar com
ela.
— Sinto muito pelo que aconteceu, querido, era para tudo ser
diferente.
— Não temos controle sobre todas as coisas, mãe, fique em
paz.
— Aurora passou aí para te ver? Meu Deus, aquela garota é
um anjo.
— Passou, e está na cozinha fazendo um café forte para mim
— comentei.
— Não acredito que encheu a cara, filho…
— Foram só dois copos e estou completamente consciente.
— É o que espero, e novamente, sinto muito pela forma como
tudo acabou.
— Era de se esperar, mãe, Jade não vai me amar da noite para
o dia. Tudo que me resta é ter paciência, continuar tentando até que
as coisas se acertem de vez.
— Me alegra saber disso, agora vou te deixar em paz para
tomar o café. Mande um beijo para Aurora.
— Até mais, dona Gelsa.
— Te amo, meu filho.
— Também te amo, mãe.
Desliguei o telefone e fui terminar de me arrumar para enfim
descer.
Aurora não só preparou o café, como invadiu geladeira e
armário para fazer sanduíches. Quando cheguei à cozinha, ela
estava devorando um pedaço generoso.
— Em minha defesa, não comi nada quando saí de casa e
nem pude degustar aquela mesa saborosa da festa de aniversário da
sua filha.
— Pode comer o tanto que quiser, hoje você merece, por ser
a salvadora da pátria. — Puxei uma cadeira para me sentar ao seu
lado.
— Gosto de pensar que agi hoje como uma médica que cuida
dos pacientes…
— No caso, seria na ala da psiquiatria, só pelo meu histórico
de anormalidade. — Coloquei um pouco de café na xícara e bebi.
— Eu facilmente te encaminharia para o CAPS, pode ter
certeza.
— Mudando o assunto, também estou com fome, obrigado
por isso. — Peguei um sanduíche na bandeja.
— Agradeça quando lavar as louças, só fiz um favor e depois
de comer vou embora.
— Ué, já deixou de ser a médica que cuida dos pacientes?
— Cumpri minha missão e os dois já estão de alta. — Piscou
um olho.
Gargalhei.
— Ainda me sinto doente, tem que me examinar mais uma
vez antes de ir.
— Toma logo seu café… — Revirou os olhos.
Comemos em silêncio, e me senti bem mais leve de espírito
com o estômago abastecido. Após a refeição, realmente lavei tudo e
ela prontamente foi secando, com raiva e dizendo que queria ir para
casa o tempo todo, mas nem dei atenção.
Finalizei lavando as mãos, e pegando um pano para secar.
— Agora posso ir?
— Como seu chefe, digo que tem total permissão para isso.
— Que bom…
Quando ia passando por mim, segurei em seu braço com
cuidado.
— Aurora, obrigado por tudo que fez hoje, de verdade…
— É estranho te ver no papel de quem agradece. — Riu. —
De nada.
— Sinto que a minha dívida com você aumenta um pouco
mais a cada dia.
— Diz isso por quê?
— No momento certo saberá por quê. — Dei um passo em
sua direção, deixando nossos rostos quase nivelados. — Jogou as
flores fora?
— Joguei.
— Realmente não gostou?
— Não.
Olhei em seus olhos.
— A senhorita é uma mulher muito difícil de domar.
— Vai voltar a me tratar como se eu fosse um animal?
— Por que tudo tem que levar para o outro lado? Quando falo
sobre domar, quero dizer que ter controle sobre você é
completamente impossível.
— E por que gostaria de ter?
— Curiosidade, talvez?
Aurora tentou se afastar, mas não deixei.
— O que pensa que está fazendo? — questionou.
— Estou com vontade de te beijar…
— Vai ficar só no desejo.
— Quero mesmo colar a boca sobre a sua e devorar seus
lábios.
— Querer não é poder…
Encostei a testa na sua, coloquei as duas mãos no seu rosto.
— Por favor.
— Não… — sussurrou.
— Gosta de me ver implorando, não é mesmo?
— Talvez?
Encurralei seu corpo contra a parede, e, sem que esperasse,
sua boca encostou na minha, ambas se roçando, uma provocação
quente, até que enfim nos beijamos.
Agarrei sua cintura, colocando-a sentada sobre a mesa.
Brinquei com sua língua, suas mãos passavam em volta do meu
pescoço. Devorei-a mais ainda, mordi, suguei e, caralho, meu pau já
estava pulsando, completamente louco de desejo.
— Desgraçada, se nega a mim o tanto que consegue, mas no
fim…
Nem terminei de falar, Aurora mordeu meus lábios tão forte
que quase saiu sangue.
Desci as mãos pelas suas costas, apertando-a o tanto que
consegui. Aquela boca era o que costumavam chamar de chave de
cadeia, ela facilmente me prenderia, e me teria ali pelo tempo que
quisesse. Beijei-a intensamente, desesperado, louco por mais.
Minha vontade era me infiltrar por dentro da sua roupa, mas
não sabia se era o certo.
— Marcelo, hum…
Ataquei seu pescoço delicado com beijos e mordidas.
— Eu preciso ir…
— Não vai, fica comigo.
— Jamais, preciso ir.
Afastei-me a duras penas, e tive infelizmente que obedecer.
— Tem certeza de que não quer ficar?
— Totalmente, valeu pelo lanche aí, e tchau…
Aurora fugiu de mim. Senti que estava tão entregue no beijo,
mas em algum momento voltou atrás na decisão e escolheu me
deixar ali parado, louco para tê-la.
Isso só me fez perceber que não me perdoara por aquela
noite.
Caótico, era a palavra que definia aquela manhã no hospital.
Uma forte tempestade caiu lá fora, em algumas partes do
país deixou bairros inundados, em uma situação bem delicada, e
quando algo assim acontecia, consequentemente provocava
incidentes e uma sequência de desastres. Fui colocada na
emergência e recebi algumas crianças que foram vítimas de um
desabamento, já que estavam na escola quando tudo aconteceu. A
chuva começou bem serena, mas foi aumentando em nível absurdo
e ainda não havia parado.
— Ah, vai doer, vai muito…
Minha pequena paciente fez careta quando me aproximei
para examiná-la.
— Primeiro, quem foi que disse que iria doer? — Coloquei o
material na mesa.
Havia outras por ali que estavam sendo atendidas por colegas
de residência; montamos uma equipe, e nos dividimos para dar
conta de todos os feridos.
— Tenho muito medo de agulha. Tem como usar essa coisa
aí?
Dei um sorrisinho de lado para a menina que tinha um corte
delicado na testa, onde era necessário fazer uma sutura, e puxei um
banquinho para me sentar à sua frente.
— Princesa, você tem um machucado que precisa ser cuidado
o quanto antes, tá? Seus pais já foram informados do que aconteceu
na escola, e logo estarão aqui.
— Alguém… Algum coleguinha meu morreu? Foi tudo tão
rápido…
— Eu não sei responder a essa pergunta, e acho que
podemos ver isso depois, que tal? Agora preciso realmente cuidar
desse machucado o quanto antes. Olha aqui… — Peguei a bandeja
com todos os materiais que usaria. — Isto aqui é um fio que vou
colocar para fechar o machucado na sua testa, costuma incomodar
um pouco, mas logo a dor passa. Tem que fechar os olhos e pensar
que isso vai fazer parte do seu processo de recuperação — falei bem
carinhosa. — Pode confiar em mim? Prometo fazer bem
devagarzinho, tanto que nem vai sentir quando acabar.
— Qual é o seu nome, doutora?
— Aurora, e o seu?
— Camila — respondeu, piscando os olhos. — Meus pais vão
vir mesmo?
— Com certeza, e então? Vai confiar em mim para curar o seu
ferimento?
— Os doutores conseguem fazer isso?
— Curar? Sim! — sussurrei, com um sorriso nos lábios. — E
nós, pediatras, temos um superpoder, que é salvar crianças, pode
acreditar nisso?
— Posso, mas ainda estou com medo…
— Que tal fechar os olhos, e cantar para mim sua música
favorita?
— As pessoas vão rir de mim…
— Vão não, canta uma, se eu souber posso te ajudar
enquanto cuido da sua testa.
— Promete de novo que não vai doer demais?
— Prometo, agora fecha os olhinhos e canta para mim, por
favor — murmurei carinhosa.
— “Se a vida é uma montanha-russa pra trilhar, com os olhos
vendados cruzo os dedos. Quero alguém pra me abraçar. Então eu
vou, enfrento as curvas, sem medo de sentir solidão, penso em
você, sei que não vai me abandonar…” — cantarolou.
Minha paciente parecia ser fã da Barbie, sabia cantar o
clássico “Pra sempre unidas”, e como eu conhecia muito bem a letra,
acompanhei para deixá-la confiante. Aproveitei o momento
descontraído para iniciar a sutura com muita delicadeza.
Camila só fez careta, e se saiu muito bem ao final do
procedimento.
— Não ouviu o que falei? Nem doeu demais. Foi uma boa
garota, parabéns!
— Jura?
— Juro, e ainda cantou muito bem.
— Agora vou te deixar aqui quietinha para dar uma olhada
nas outras crianças, ok?
— Tá, espero que ninguém tenha morrido…
— Não fique pensando nisso, princesa. Logo volto para te ver,
tudo bem?
Camila deu um sorriso de lado e ajeitou-se na cama para se
deitar. Como não apresentava outros ferimentos ou queixas, ficaria
apenas em observação até que os pais chegassem para enfim
buscarem-na.
Encontrei Liam, que me puxou devagar.
— Caralho… A coisa está feia, hoje é um dia em que dormir
vai ser quase impossível.
— Sei, sabe dizer se chegaram mais crianças na emergência?
— Sim, algumas com fraturas e todas foram encaminhadas
para o ortopedista, trauma, e você deve passar lá para ver de perto.
— É o que vou fazer, daqui a pouco retorno para ver as
crianças deste andar.
— Onde será que Mia está? Ainda não vi aquela cabeleira loira
hoje.
— Foi buscar material na enfermaria e logo está retornando.
— Ok, Aurorinha, nos vemos por aí…
Nos despedimos, e segui para dar continuidade ao meu
trabalho.
No final da tarde, tive que passar na sala do chefe para pegar
uma assinatura para uma cirurgia em uma criança. Os pais não
tinham plano de saúde para custear, mas no hospital havia a opção
de fazer um acordo, dependia exclusivamente de que Marcelo desse
a palavra final para dar continuidade ao processo.
— Licença — pedi assim que fui entrando.
O loiro estava em pé falando ao telefone, tive que esperar até
que terminasse.
— Desculpe, isso era importante. — Enfim se virou para mim.
— Onde preciso assinar?
— Não vai nem contestar ou dizer alguma coisa contrária?
— Meu pai criou essa opção justamente para casos assim, e
como chefe é o meu dever continuar com esse projeto. Temos uma
criança que precisa de cirurgia, e há um fundo, que dependendo do
contexto da família, ao ser solicitado, cobre tudo. Então, Aurora,
onde assino?
Aproximei-me para entregar os papéis, Marcelo pegou a
caneta e assinou.
— Pronto.
Trocamos um olhar rápido, que só serviu para me deixar
envergonhada.
— Aurora, está tudo bem?
— Tudo bem! Obrigada pela assinatura.
— É…
— Hum?
Parecíamos dois perdidos, que não sabiam se comunicar
adequadamente.
A porta foi aberta, e Roberto, o neuro do hospital, surgiu para
quebrar o clima.
— Chefe, podemos ir para a sala de cirurgia?
— Podemos, vou me preparar agora mesmo.
— Bom, se me derem licença…
Aproveitei o momento para ir embora, ainda sem entender o
que acontecera. Pela primeira vez não houve discussão, zero troca
de farpas ou brincadeiras bobas. Talvez fosse o clima pesado que
instaurado no hospital e que deixava todos em modo alerta. A chuva
lá fora ainda não havia cessado, e novos pacientes chegavam.
— Amiga, te achei, preciso da sua ajuda, tem uma menina
que não quer fazer um raio X. Te juro que tentei de todo jeito, imitei
seu jeito carinhoso, mas nada serviu.
— Me leve até onde está a criança, que vou ver o que posso
fazer.
— Tomara que consiga, porque nada do que fiz ou falei surtiu
efeito.
Meu amigo estava certo, esse seria um plantão em que
descansar seria impossível. A cada hora aparecia alguém atrás de
ajuda, ou para atender, ou organizar trâmites para cirurgias. E eu já
estava morrendo de fome, as pernas trêmulas de tanto andar.
Às vezes, tínhamos que levar ao pé da letra a frase “medicina
por amor”.
Saí do hospital com a cabeça cheia, depois de um dia bem
intenso e cansativo. Graças à equipe que tínhamos, conseguimos
colocar tudo em ordem. Todas as pessoas que chegaram foram
atendidas, tratadas, e cirurgias foram feitas; participei de algumas,
além de ter cuidado de questões burocráticas.
Mas, por não ser um robô, sentia meu corpo sobrecarregado
e no limite.
Assim que cheguei ao estacionamento, encontrei Aurora
parada.
— Aconteceu alguma coisa? — fui logo perguntando, por
precaução.
— Meu carro não quer ligar, problema na bateria. E adivinha
só? O rapaz que cuida disso não está trabalhando mais a esta hora e
nem atende ao meu telefone.
— E o que faz aqui? Esperando um milagre? Acho que do céu
só cai raio.
— Ah, que engraçadinho… Pensei em ligar para meus pais,
mas, com a chuva que caiu mais cedo, imagino que a estrada para
lá deve estar horrível. Então só me resta ficar esperando, aqui, que
um dos meus amigos saia e me leve para casa.
— Eu posso te dar carona, sem problema algum.
— Sua sorte é que estou tão cansada que facilmente aceito.
— Está com fome também?
— Muita, só comi algumas barrinhas proteicas para segurar o
rojão de hoje.
— Foi bem complicado, me sinto exausto, mas com um pouco
de energia para preparar uma refeição de qualidade para dois, o que
acha de me acompanhar?
— E a carona até a minha casa?
— Fica para depois de encher sua barriguinha.
Aurora fez careta.
— Repito, só vou aceitar tudo isso porque mal consigo ficar de
pé.
— Ainda bem que seu inimigo número 1 tem uma alma
bondosa e caridosa, não é?
— Tem, ao menos é o que parece, e nem tenho fôlego para
discordar.
— Você, na sua skin cansada, vai se tornar minha versão
favorita.
— E posso saber por quê?
— Não rebate, não me xinga, e ainda aceita tudo que falo
facilmente.
— Só preciso dormir uma hora para recuperar a sanidade
mental, aí vai me ter soltando os cachorros. — Piscou um olho.
— Vamos embora logo, Aurora, está frio e tarde, estamos com
fome.
— Mais uma vez devo concordar com você, geladeira
Electrolux.
— Vou me acostumar com seu jeitinho submisso e, porra,
estou gostando.
— Que idiota, doutor Marcelo…
— Vem, vamos logo, porque hoje o seu mal é sono…
Aurora não respondeu, só mostrou a língua.
A doutora passou o caminho inteiro dormindo, tanto que tive
dó de acordá-la, ao chegarmos ao meu apartamento. Tirei-a do
carro nos braços e só a soltei quando a coloquei sobre a minha
cama, onde poderia dormir mais à vontade e em paz. Feito isso, fui
tomar um banho generoso e de qualidade para depois descer até a
cozinha, preparar uma refeição rápida para enfim acordá-la para
comer comigo.
Só que nem precisei fazer isso, a pediatra acordou sozinha.
Pedi que tomasse um banho, deixei até uma blusa minha
nova, caso quisesse usar.
Preparei um bife em camadas com cebolas, uma salada e um
macarrão para acompanhar. Como já tinha muita habilidade na
cozinha, fiz tudo em minutos.
— Onde foi que aprendeu a cozinhar tão bem? O cheiro está
por todo o lugar.
Aurora surgiu, banhada, usando minha blusa, que ficou abaixo
do seu joelho.
— Nem faz essa cara, só não vesti a minha roupa porque está
puro hospital.
— Posso colocar na máquina de lavar enquanto jantamos… —
sugeri.
— Nada disso, daqui a pouco vou vestir para ir para casa e
está tudo certo.
— Posso te servir? — perguntei, terminando de conferir tudo
no fogão.
— Ainda não respondeu a minha pergunta, doutor.
— Sempre morei sozinho, e consequentemente gosto de
preparar minhas comidas. E você?
— Não sei cozinhar bem, faço o básico do básico e tudo bem.
Mas Jason sempre soube se virar melhor, e prepara algumas coisas
maravilhosamente.
— Eu sei disso, a convivência que tivemos no passado me fez
conhecer esse lado dele. Um ótimo profissional e tem dotes
culinários de impressionar.
— Deve ser porque vive viajando pelo mundo e aprende de
tudo um pouco.
— Exatamente, e você? Nunca gostou de viajar?
— Gosto do nosso país, e não pretendo conhecer nada além
daqui.
— Não vem me dizer que tem medo de viajar de avião…
— Ando horas de ônibus, mas não me coloque dentro dessa
máquina de que falou.
— Posso saber por que tem tanto medo?
— Só saberia se fosse meu amigo, coisa que não é nem nunca
será.
— Está vestida na minha blusa, já dormimos juntos, ou seja,
sou mais que isso.
Aurora revirou os olhos.
— Só não vou te responder porque não quero te traumatizar,
sabe?
— Pode dizer, estou tão cansado que só vou dar risada do que
falar.
— Marcelo, coloca a minha comida e cala a boca, por favor!
— Coloco, sim, darling. Tudo que pedir hoje farei.
— Vou me lembrar disso quando for me levar para casa.
— Irei na maior humildade do mundo.
— Sei.
Dei risada, e fui colocar o prato da pediatra bravinha. Talvez
seu mal agora fosse fome.
— Como pode ter me deixado dormir tanto, Marcelo?
Eu estava no banho quando ouvi os gritos estridentes da
doutora. Na última noite, após a refeição, fomos para a sala,
jogamos conversa fora e acabamos dormindo. Como tinha o sono
leve, percebi primeiro e a trouxe para o meu quarto. Não era idiota
de dormir no chão, então fiquei do outro lado e dei continuidade ao
sono. Acordei primeiro para tomar uma ducha e preparar o nosso
café da manhã.
Saí do banheiro com uma toalha em volta da cintura.
— Você estava cansada demais, darling. Sinto muito por isso.
Aurora entrou, passando por mim feito um furacão para
escovar os dentes. Entreguei uma escova lacrada para que usasse, e
foi exatamente o que fez.
— Nem adianta ficar resmungando assim, dormiu feito a Bela
Adormecida.
— Então quer dizer que me envenenou com aquela comida
maravilhosa?
— Primeiro, quanta ofensa e, segundo, obrigado pelo elogio,
darling.
— Tenho que ir para casa ou vou me atrasar para o próximo
turno…
— Ainda é cedo, cinco e cinquenta — lembrei.
— Muito tarde, minha nossa…
— Que nada, tempo de sobra para te encostar nessa pia e…
Aurora terminou de escovar e veio me dar um tapinha com a
mão.
— Doutor indecente, pode parar com isso!
Ergui as mãos em rendição, gargalhando rouco, e a toalha
acabou caindo. Ela percebeu, e abriu a boca em choque ao ver que
meu pau estava duro, e como estava…
— Em minha defesa, acordo todas as manhãs assim, é algo
fisiológico — menti.
Em partes.
Eu estava assim porque não conseguia esconder o quanto a
desejava.
— Já tinha esquecido o quanto isso era grande…
— Isso é o meu pau, darling, que esteve dentro de você uma
noite toda.
— Acha que me lembro daquilo? Já se apagou da minha
cabeça faz tempo.
— Então por que sua pupila está dilatada e você começou a
respirar ofegante? Sinto que não esqueceu porra nenhuma, mas, se
for o caso, saiba que vou adorar relembrá-la.
— Prometemos que seria uma única noite e nada mais!
— Promessas foram feitas para serem quebradas, e sou a
prova disso.
Nos encaramos, passei a língua nos lábios, louco para avançar
nela. Só que não fazia, gostava de esperar que a dona encrenca me
desse antes a permissão.
— Uma única vez e nunca mais…
— O que quiser, darling.
Parti em sua direção, e agarrei-a pela cintura. Tomei sua boca
em um beijo desesperado, e a desgraçada retribuiu, mordendo meus
lábios, com as mãos em volta do meu pescoço.
Encurralei seu corpo contra a pia do banheiro. Não tive um
pingo de vergonha de roçar meu pau em sua barriga; como o tempo
naquele momento era nosso pior inimigo, precisava agilizar o quanto
antes. Comecei a me desfazer da blusa que ela usava e a calcinha
por baixo. Cutuquei sua boceta com a mão, encontrando-a do jeito
que gosto, molhadinha e pulsando. Conforme o beijo aumentava,
introduzi um dedo em sua entrada e em resposta ganhei um
gemido.
— Eu adoraria me abaixar e te chupar, porra, mas isso vai ficar
para depois, quando tiver muito tempo para aproveitar…
— N-não haverá outra vez, doutor — disse entre gemidos,
conforme socava o dedo.
— Vai haver, porque preciso chupar sua boceta, e não posso
viver sem isso.
— Hã…
Coloquei mais um dedo, preparando-a para me receber. Aurora
era pequena, delicada demais, e eu não podia esquecer que, até a
nossa última noite, era virgem.
— Posso te foder agora, darling? Quero e necessito estar
dentro de você.
— Vem logo!
E como dizer não a esse pedido?
Passei suas pernas em volta da minha cintura, e me preparei
para penetrá-la. Era uma posição que exigia muito esforço, mas os
anos de treino na academia tinham que servir para alguma coisa.
Meti meu pau de uma vez, o que nos fez gemer alto.
Sua boceta me acolheu, me sugou e tive que me segurar para
não gozar.
Como era bom estar ali de novo, dentro do verdadeiro paraíso
secreto.
Nos beijamos novamente, conforme fui socando fundo,
metendo ritmado, dando estocadas brutas, com precisão, causando
um atrito e esfregão na sua fenda. Aurora gemia entre meus lábios,
se remexia, e a foda ficou mais insana.
Tive que mudar as posições, pois precisava ver seu rosto de
prazer no espelho, fui por trás, enfiando-me novamente na boceta
apertadinha, aplicando sua bunda com força. Os olhos dela se
reviraram, apertava o balcão como apoio, gemendo manhosa. Me
agarrei em sua cintura, penetrando feito um animal no cio, não tive
um pingo de delicadeza, queria que aquela rapidinha fosse
memorável e crua.
Levei uma mão livre até sua intimidade para massagear seu
ponto de prazer, conforme o meu se formava, porque era demais
assisti-la pelo espelho, uma cena do caralho e que fodia com a porra
da minha cabeça em níveis elevados.
— Ah, que boceta… Me segura, vai, me aperta mais…
— Marce-lo, e-eu. — Arqueou o pescoço para trás,
desesperada, fogosa.
— Goza bem gostoso no meu pau, e vou encher sua bocetinha
de porra!
Rocei mais firme os dedos, seus fluidos se misturando aos
meus.
E acabamos explodindo em um orgasmo, um atrás do outro.
Minha cabeça caiu sobre seu pescoço, seu cheiro me
embriagando, meu coração batendo forte por aquela dona encrenca
que ousava dizer que aquela seria a nossa última vez. O que ela mal
sabia é que andava bem longe de ser…
— Caralh… — Não terminei de falar, um gemido me impediu
totalmente.
Eu vivia um verdadeiro dilema, “Nunca cuspa no prato que
comeu”, e aquele “Nunca diga dessa água não beberei”, porque fazia
mais de um mês que estava ficando às escondidas com o doutor,
justo aquele que jurei de pé junto odiar. E ainda odiava.
— Vai logo, tenho que… Marcelo! Por que parou? — Arfei,
encarando o loiro que estava entre as minhas pernas, com a boca
mais precisamente na minha boceta.
— Ainda não aprendeu a pedir educadamente, se quer gozar
vai ter que pedir direito, é pegar ou largar — soprou as palavras,
causando um atrito gostoso e provocante.
— É por isso que te odeio…
— Me odeia tanto que está louca para gozar na minha boca.
— Sabe muito bem que meu ódio é com você em si, não com
seus lábios e o pau…
Essa era a mais pura verdade. Por mais que tivesse opiniões e
conceitos contrários com relação ao doutor, uma parte de mim
gostava da forma como me tomava, me dava prazer, levava-me para
uma viagem perigosa entre o Céu e o Inferno. Só por isso, só por
isso mesmo, que ainda estava me permitindo viver aquele momento.
— Então, se é só por isso, vai voltar ao trabalho cheia de tesão
reprimido.
Marcelo tentou se afastar, mas o prendi com as pernas, e
pisquei um olho.
— Olha aqui, eu estava muito bem atarefada e pronta para
curtir meu descanso, quando você simplesmente me chamou até a
sua sala. Cá estamos, no banheiro, com um único propósito, então é
bom que me faça gozar logo! — Mordi os lábios com força.
— Doutora, aprenda a pedir com carinho que te darei isso e
muito mais.
— É sério que vai me fazer implorar por um orgasmo?
— Da última vez isso deu certo, tanto que quase não saí de
dentro da sua boceta.
Fechei os olhos envergonhada.
— Nem adianta ficar assim, sabe muito bem em que nível
insano estamos, darling.
— Marcelo, só cumpra seu papel antes que alguém bata na
porta e nos pegue no flagra! Tem que ser ágil, afinal esta aqui é a
nossa última vez.
— Disse isso nas outras sei lá quantas vezes, e sempre
acabamos ficando de novo.
— Porque você simplesmente não me deixa em paz, doutor.
— Em minha defesa, sua boceta sempre está molhada à minha
espera. — Piscou um olho, sarcástico. — Mas só porque sou um bom
parceiro, e não temos muito tempo, vou lhe proporcionar um
orgasmo, mas depois vou descontar essa sua desobediência. — Deu
uma mordida na minha coxa sem um pingo de cuidado.
Gemi.
Marcelo tinha uma pegada que só pela misericórdia, me
sacudia toda, e deixava minhas pernas bambas, a parte íntima
sensível em níveis elevados. E quem disse que eu achava ruim? Que
nada. Eu me entregava, me permitia sentir cada momento como se
fosse o último mesmo, e curtia tudo que aquele loiro, alto, com
braços fortes e peitoral musculoso me proporcionava em cada foda
cheia de lascívia.
De fato, o que era a última vez se tornou várias.
Tudo começou em uma manhã em que acordei na sua casa e
ficamos no banheiro. Logo depois, qualquer lugar e oportunidade
livre era o momento certo para ficarmos. Perdi a conta de quantas
vezes fui parar em seu apartamento, ou ele, na minha casa, quando
a minha melhor amiga estava de plantão. Sem contar com as
escapadinhas no carro, ou em alguma sala abandonada do hospital,
até mesmo na sua sala.
Realmente nos tornamos inseparáveis.
Porém, era só sexo. Não podia passar disso.
Éramos compatíveis no beijo, em cada toque, na entrega, e
muita química sexual. Só que quando acabava e precisávamos falar
sobre alguma coisa, a teima voltava e as trocas de farpas davam o
ar da graça. Não conseguíamos deixar de nos provocar, isso era a
prova de que nunca poderíamos ser um casal de verdade. E, bom,
não era um desejo nosso e tudo bem quanto a isso.
Ainda não havíamos conversado a respeito disso e achei até
melhor.
Marcelo voltou a abocanhar minha boceta, seus dedos
molhados adentraram, e me segurei para não abrir a boca demais,
revelando o que estávamos fazendo ali. Aquele, por si só, era um
ambiente proibido e perigoso, mas o doutor não resistiu quando
entrei para entregar alguns papéis, logo correu para nos trancar e
me atacou.
Eu nem queria imaginar o que diriam se soubessem do nosso
“caso sexual’’.
Conseguir um espaço e reconhecimento pelo meu trabalho
árduo era difícil, e, se soubessem que eu estava indo para a cama
com o chefe da cirurgia, com toda certeza poderiam dizer que
simplesmente seria beneficiada só por isso.
— Sua cabeça parece que está em qualquer lugar, menos aqui,
darling.
Ele reduziu os movimentos e arfei, frustrada.
— Droga, parou novamente? O que foi, doutor? Não consegue
dar conta do recado?
— Eu dou, sabe bem disso, mas estou aqui embaixo te dando
prazer enquanto seus pensamentos parecem estragar a porra do
momento! Quer me contar o que está acontecendo?
— Não é nada, só pensei alto demais. — Forcei um sorriso. —
Agora continua logo!
Marcelo meneou a cabeça para os lados, e voltou a me sugar
com força. Dessa vez, pegou pesado e não consegui focar em mais
nada, senão em sua boca e nos dedos que me tocavam avidamente,
circulando com tanta precisão que acabei gozando fácil.
Tanta provocação serviu exatamente para isso.
Derreti.
Só não caí porque o doutor simplesmente me segurou.
— Te assistir explodindo nos meus lábios é e sempre será uma
delícia.
Fiquei calada, até que senti seus braços me abraçarem
apertado.
— Adoraria te foder aqui, mas em uma hora entro em uma
cirurgia e, se gozar, vou ficar completamente incapacitado de ter
atenção. — Gargalhou baixo. — Te vejo à noite?
— Não.
— Por que não?
— Isso está ficando sério demais, Marcelo.
— Disse isso todas as vezes, não vai ser agora que vou
acreditar. Está com a mente nublada por conta do orgasmo e por
isso não está dizendo nada com nada, darling.
Balancei a cabeça para os lados.
Ficamos com as testas encostadas, e uma batida à porta nos
deixou em alerta.
— Merda… Fica aqui enquanto vou ver quem é?
— Com certeza, sem a menor chance de sair e sermos pegos
no flagra.
— Fique aqui dentro e deixe a porta bem fechada, de toda
forma serei cuidadoso.
— Ok. Vai lá…
Marcelo beijou meus lábios, antes de ajeitar a roupa para ir
ver quem era.
Fiquei sem saber onde enfiar a cara, e busquei fôlego para me
recompor, me limpar adequadamente, porque sob hipótese alguma
poderia atender com cheiro de sexo.
Jamais.
— Oi, querido, vim trazer Jade para o retorno e viemos te dar
um oi…
— Oi, Marcelo…
Ai, não! Reconheci as duas vozes. Era a mãe do médico e a
filha.
Minha vontade era cavar um buraco no chão e desaparecer.
Ainda bem que aquela cabeleira loira servia para alguma coisa,
meu inimigo, não mais tão inimigo assim, conseguiu tirar as duas da
sala e pude enfim sair do banheiro. Passei pela porta principal como
se estivesse fugindo do próprio Diabo.
Como ainda tinha mais um tempo livre, decidi ir em busca de
alguma coisa para comer. E foi assim que encontrei o doutor
acompanhado da filha e da mãe. Ao me verem, acenaram. Dei um
sorriso de lado, indo ao encontro deles, já que não tive saída.
— Princesa Aurora, saudades!
Jade veio me cumprimentar com um abraço, e devolvi.
— Oi, lindinha, como está o seu braço?
— Está bom, já vou poder fazer as fisioterapias, sabia?
— Ah, isso é muito bom! Vamos nos ver com mais frequência
por aqui.
— Sim, e estou muitão feliz! Quando vai poder ir à minha
casa? Ganhei mais bonecas, e dessa vez foi o Marcelo que me deu,
de onde foi mesmo que veio? — A pequena voltou a olhar para o
pai, que respondeu carinhosamente.
Fiquei feliz em ver que tudo acabou bem e voltaram a se falar
direito.
— Que coisa maravilhosa, logo mais apareço para ver de
perto. — Abri um sorriso de lado.
— Se quiser ir esse final de semana, Aurora, será um imenso
prazer recebê-la.
Dona Gelsa, sempre gentil.
— Obrigada, senhora. Com tanto convite assim, não há como
recusar.
— Marcelo pode te levar, não é mesmo, filho?
Encarei o doutor, que tinha um sorriso contido nos lábios.
— Sim, mamãe, posso fazer isso.
Queria dizer que tinha um carro para ir sozinha, mas fiquei
quieta por não querer começar uma discussão na frente da menina
que me encarava animada. Jade começou a compartilhar um monte
de coisas, falou que foi a um museu, assistiu a alguns concertos;
apesar da pouca idade, ela amava muito. E em tudo, o que me
deixou mais surpresa foi saber da participação de Marcelo em todos
esses programas.
— Princesa Aurora, você vai mesmo na minha casa, não vai?
— Querida, pode ter certeza de que ela vai, sim.
O pai falou, atraindo a atenção da criança, que se voltou para
encará-lo.
— É sério, Marcelo, você vai levar ela, né? Diz que vai, por
favor.
— Vou, sim. Eu juro de dedinhos.
— Obaaaaa!
Achei fofo o minuto exato em que ela se aproximou para tocar
um soquinho com ele. A interação fez até a vó dar um sorriso largo.
Engoli em seco ao perceber que deixava passar batida alguma coisa,
estávamos tão focados em foder, que nem fiquei sabendo desse
avanço envolvendo pai e filha. Mesmo ciente de que era tudo casual,
sem compromisso algum, estranhamente me senti mal por dentro.
Talvez eu não estivesse mais separando bem as coisas. E é aí
que está o problema.
— Bom, vou deixar vocês, preciso comer algo antes de
retornar ao trabalho.
Eu me despedi das duas, ignorei Marcelo e fui embora o
quanto antes.
— Aqui, oh, gostou?
Jade apareceu com uma boneca em mãos, vestida em um dos
conjuntos que havia comprado recentemente em uma loja a que
fomos, e fizera a festa, comprando tudo que sentia vontade de ter.
Como eu ainda estava aprendendo a ser um pai de verdade, deixei
que pegasse tudo que queria, sem me preocupar com o valor final. E
ela amou. Quando chegamos em casa, levei um belo puxão de
orelha da minha mãe, mas nem liguei, porque pela primeira vez
ganhei um abraço da minha filha.
— Ficou muito linda! Acho que essa é a sua preferida, não é
mesmo?
— Sim, porque ela é doutora e eu quero muito um dia ser
uma!
Sua resposta me deixou surpreso, não esperava por algo
assim.
— Sério? Vejo que vai dar continuidade ao meu legado na
medicina, então.
— Eu quero ser como a princesa Aurora, que cuida das
crianças. — Sorriu de lado. — Ela cuidou do meu dodói naquele dia
e ainda cuida, todo dia.
— É verdade, mas sabe de uma coisa? Acho que ela vai ser
uma cirurgiã-pediátrica.
Jade piscou os olhos.
— Assim como você?
— E como seu avô também — pontuei. — Mas ainda irá cuidar
das crianças e adolescentes, porque é exatamente isso que mais
ama fazer acima de tudo.
— É verdade que você gosta dela? Vovó disse para a titia e
acabei ouvindo.
Pisquei os olhos.
— É, eu realmente gosto da princesa Aurora, mas não sei se
ela gosta de mim.
Omiti o fato de que a maior parte do tempo passávamos
brigando. Só tínhamos uma trégua quando estávamos fazendo sexo,
o que se tornara um hobby fixo nas últimas semanas. Sem sombra
de dúvidas era muito bom, mas sentia falta de um pouco mais,
talvez uma dose de conversa, coisa que grande parte dos casais
costuma fazer, mas a dona encrenca só faltava me engolir se
puxasse algum assunto mais além.
Eu queria saber um pouco mais sobre seus gostos,
preferências, até sobre sua família. Pelo que soube, Aurora era
adotada, e eu queria não só saber mais sobre isso, mas também
falar de coisas sem importância, isso deixava qualquer relação mais
agradável. Só que não encontrara ainda nenhuma oportunidade, e
claro, a garota não dava espaço algum.
Adorava estar sobre seu corpo, venerando cada pedacinho,
beijando sua boca. Não conseguia simplesmente me contentar só
com isso, mas era o que tinha e, querendo ou não, restava-me
aceitar, uma vez que ela nunca iria querer nada além. E com toda
razão, pois Aurora era jovem e não tinha por que se prender a
nenhum laço afetivo. De fato, desconhecia a raiz desse desejo e
pensamentos, sendo que nem passava pela minha cabeça a ideia de
me apaixonar de novo, e firmar um compromisso sério.
Ou talvez estivesse?
Pisquei os olhos.
Aurora dominava meus pensamentos na maior parte do
tempo, vinha me fazendo agir com imprudência, sem me preocupar
com as consequências, porque fora a única em anos que conseguiu
me devolver o sabor e o desejo de estar vivo. Antes de ela aparecer
na minha vida, eu não passava de um cara amargurado, frio, que
nem tinha objetivos para seguir, no entanto ali estava eu,
determinado a ser uma pessoa melhor, por mim e também por Jade,
que entrava nessa equação.
Cheguei à conclusão de que em tudo isso havia um dedo da
pediatra. A começar pela festa de aniversário da minha filha, onde
tentou intervir na situação e encontrar um cenário para melhorar as
coisas, o que de fato aconteceu. Consegui conversar com a
pequena, recebi um pedido de desculpas e pedi também. Desde
então, vínhamos nos aproximando, dessa vez com mais paciência.
Sem sombra de dúvidas tudo ficou melhor, passamos a ter um
convívio mais sadio e pacífico.
Jade me deu uma chance, e isso era tudo de que eu precisava
para me redimir e conquistar a confiança da minha filha. Eu sabia
que ainda havia um longo caminho a percorrer, mas seguia
confiante, determinado, e paciente para que o episódio daquele dia
não se repetisse.
O ponto em meio a tudo isso era que a doutora, talvez sem
intenção, me influenciou nessa estrada a qual estava percorrendo
cheio de esperança e força. Talvez isso explicasse o desejo de que a
nossa relação fosse mais que sexo. Só em pensar nisso, eu
conseguia esquecer o meu passado trágico com a mãe da minha
filha, a mulher que conseguira me estragar para qualquer outra no
mundo.
Exceto Aurora…
— Marcelo?
A voz de Jade interrompeu meus pensamentos paralelos.
— Oi, princesa, me desculpe…
— Estava pensando em quê? — Piscou os olhos curiosa.
— Que hoje vai ser um dia muito bom, Aurora vem para cá,
esqueceu?
— Como esquecer? Esperei por isso a semana toda! — Sorriu.
— Posso perguntar por que é que você gosta tanto dela?
— Ela é muito fofa, meiga, me tratou bem e tem cheirinho de
mamãe…
Franzi o cenho.
— Cheirinho? Que conversa é essa?
— Foi um livro que a vovó leu para mim uma vez, e dizia
assim, que toda mãe tem um cheiro único, e de alguma forma
consigo sentir isso, sabe?
— Confesso que não estou entendendo… — foi tudo que falei.
— Toda mãe tem cheiro de amor, cuidado e proteção. Igual à
princesa Aurora.
— É assim que a vê?
— É — respondeu empolgada.
— Entendi, Jade. Você está certa, Aurora tem cheiro de tudo
de bom.
Eu me contive para não dizer mais coisas, nem dar fogo ao
seu desejo expressado. Era bonito ver que enxergava a pediatra
daquele jeito, mas jamais a submeteria a um casamento movido por
esse pensamento. Se fosse para acontecer, o que era algo bem
complicado até de cogitar, seria por outros motivos justos e
coerentes.
— Jura que sente isso nela também?
— Muito — confirmei.
— As meninas da minha sala têm família, sabe? E a minha é
incompleta. Quando vi a princesa Aurora usando um jaleco parecido
com o seu, pensei que…
— Pensou o quê?
— Que ela seria perfeita para ser a minha mamãe, assim
poderíamos ser uma família. A vovó nunca mais iria precisar ir nas
festinhas que são para as mães, e o vovô, nas dos pais — seu
comentário não mostrou indiferença ao papel dos meus pais em sua
vida, apenas o desejo inocente de uma criança da sua idade.
Um nó se formou na minha garganta.
— Jadeeee, hora do banho!
A babá entrou no quarto, e a conversa tomou outro rumo.
— Marcelo?
Ela, antes de ir, atraiu a minha atenção.
— Oi?
— Promete que vai pensar no que falei agora?
Logo compreendi, mas, como não podia falar que isso era algo
complicado demais, apenas respondi o que veio à mente:
— Sim, agora vai lá tomar um banho, miniporquinha.
Fiz o soquinho com a mão, ela bateu no meu em
cumprimento, e saiu correndo.
Fiquei ali, largado no sofá dos meus pais, pensando na
conversa que tivemos.
— Aí está você, irmãozinho.
Marli apareceu com um balde de pipoca em mãos.
— Soube que vamos ter visita mais tarde, é a pediatra, né?
Sua filha está morta de paixão por ela… — comentou.
— Muito, tanto que agora há pouco disse que Aurora tem
cheiro de mãe.
— Jade está crescendo e todo dia sai uma pérola diferente,
essa foi boa!
— Isso é mais sério do que parece, pode ter certeza. Eu fiquei
sem saber o que responder, porque nunca condenaria aquela garota
a assumir um papel que cabe àquela puta que está em algum lugar
do mundo vivendo a própria vida…
— Nem fale o nome, porque pode atrair energia ruim e fazê-la
voltar.
— Eu que o diga, tenho pesadelo só de imaginar aquela
escória retornando…
— Estaremos de prontidão para mantê-la bem longe de Jade,
pode ter certeza. Agora, voltando ao ponto principal, está rolando
algo entre você e a doutora?
— É minha irmã, e confio em você de olhos fechados, por isso
assumo que sim. Mas não passa de um caso bobo, porque a dona
encrenca diz me odiar.
— Como alguém que odeia outro consegue ficar e tudo mais?
— É um ódio da boca para fora, eu mesmo nem ligo quando
ela fala isso. — Dei de ombros.
— Vai ser só um caso e nada mais?
— Bom, é o que parece. — Suspirei fundo.
— Eu te conheço, Marcelo, e sinto que está começando a
gostar da doutora.
— Gostar não é suficiente para mudar o nosso estado caótico,
maninha. Vou tirar isso da cabeça e pôr um ponto-final enquanto é
tempo.
— Faz bem, se não vai dar em nada, é melhor cortar pela raiz.
Engoli em seco.
Era duro concordar, mas minha irmã estava realmente certa,
acabaria logo com o que tínhamos, me pouparia de sofrimentos e
livraria Jade de ter ilusões bobas.
Aurora veio à casa dos meus pais, almoçamos todos juntos, e
em seguida a convidada passou um tempo com a minha filha. Mais
tarde, levei-a para seu apartamento; não conversamos muito, o que
deixou o clima bem estranho.
Assim que parei, decidi começar a falar o que já havia
colocado em mente.
— E-eu…
— Já sei, o que tínhamos de sexo casual acabou por aqui, tá?
Dona encrenca falou rápido, e me deixou com os olhos
arregalados.
— Aurora…
— Eu não sou burra, Marcelo, me tratou com desdém o dia
todo, e isso foi um sinal perfeito para deixar claro que as coisas
entre nós ficaram azedas. Então ok, foi bom enquanto durou, mas
agora cada um segue seu caminho e ponto! Droga. — Colocou uma
mão na cabeça, e fiquei preocupado.
— Está tudo bem? Sentindo alguma coisa?
— Uma puta dor de cabeça, já tomei um monte de remédio e
nada! — disse, tirando o cinto de segurança. — Valeu pela carona,
tchau.
— Aurora, se acha que vai sair do meu carro doente, está
muito enganada!
Ela saiu, mas fui atrás.
— Quer ir até o hospital? Não posso te deixar aqui…
— Vai embora, Marcelo. Some daqui.
— Sumo nada, quando começou a sentir as dores?
— Não é mais da sua conta, vai embora.
Aurora saiu em direção ao apartamento, mas segurei seu
braço.
— Por favor, me deixa te ajudar?
— Está tudo bem aqui?
O tal do Liam apareceu com sacolas na mão, o melhor amigo
da pediatra.
— Ela está com dor, e estou tentando levá-la para o hospital…
— expliquei.
— Comprei alguns remédios, e chá para fazer, Aurora vai ficar
bem.
Fiquei com as mãos presas quando ela aproveitou para entrar
em casa.
Droga!
— Se precisar de alguma coisa, pode me ligar? Eu realmente
me preocupo com ela.
— Eu sei disso, do mesmo jeito que gosta muito dela e está
estampado na cara.
Assenti.
— Qualquer coisa, me avisa, por favor — pedi antes de voltar
para o carro.
Fui embora morrendo de preocupação, aquela conversa que
tivemos foi a pior da história, nem pude me explicar direito, e ela
sequer me deu espaço para falar. Ódio!
Esse era o problema, Aurora me deixava sem palavras e
encurralado.
Mas aquele não era nosso fim, eu retornaria para consertar a
merda que causara.
— Acho que precisa mesmo marcar uma consulta e verificar
essas dores de cabeça, faz dias que reclama e tudo que podíamos
fazer já foi feito…
Ignorei o comentário de Liam, e mantive o foco em repassar
alguns prontuários.
— É sério, Aurora, não dá para ficar tomando remédio e mais
remédio…
— Eu sei disso, e logo vou marcar um check-up completo,
apesar de acreditar que tudo isso seja fruto de stress… — Suspirei
fundo.
— Tem certeza de que não tem nada a ver com o chefe, que
ficou plantado em frente ao prédio nos últimos dias à sua espera? A
qualquer mínima chance aqui no hospital, ele se mantém confiante
de que vai conseguir falar com você…
Engoli em seco.
— Olha, sou seu amigo e sei que não tenho nada a ver com
isso, mas acho que precisam conversar para esclarecer seja lá o que
aconteceu.
— Disse certo, Liam, não aconteceu nada, por isso não
precisamos conversar. Aqui, fiz a minha parte. — Entreguei a
prancheta com os prontuários. — Agora vou me preparar para as
rondas.
— Aurora, está se sentindo bem para continuar com o plantão?
Se quiser, Mia pode te cobrir — sugeriu, com um olhar de
preocupação.
— A dor está melhorando, e com certeza consigo dar conta,
fique em paz. — Forcei um sorriso.
— Promete me procurar se precisar de alguma coisa? Sabe
que, além de amigo, sou também praticamente o seu irmão do
coração. — Riu e tive que concordar.
O nível de amizade que tinha com o residente em cardiologia
eu nunca andei nem perto de desenvolver pelo meu irmão de
verdade, que, por sinal, agora estava trabalhando por ali.
Infelizmente era obrigada aturá-lo. Querendo ou não. Lidar com um
parente em um ambiente de trabalho não é a coisa mais fácil do
mundo, ainda mais Jason, que levava tudo na brincadeira e adorava
me deixar sem paciência.
Parecia até Marcelo… Deve ser por isso que eram melhores
amigos.
Ah, quanto a esse doutor, eu fugia o máximo que conseguia,
não podia lidar com ele nesse momento, tampouco encará-lo nos
olhos, depois de como tudo acabou. É importante destacar que
quem adiantou o desfecho fui eu. Aquela manhã com sua filha, a
última que passamos juntos, pude ver como se distanciava. Ele mal
me dirigiu a palavra e, quando o fez, senti dentro do coração que
era para pôr um ponto-final no nosso relacionamento. E, como
nunca gostei de ser passada para trás, tomei a frente e terminei
primeiro.
Terminei nem sei o que, uma vez que tudo que tínhamos era
sexo. E muito bom, não posso negar. De toda forma, no final das
contas foi até melhor assim…
Suspirei fundo.
— Vou indo, Aurora, preciso acompanhar um paciente em um
exame.
— Claro, vai lá.
— Te vejo mais tarde para comermos alguma coisa juntos?
— Sim, e de quebra vou levar Mia para você pagar o lanche
dela, como sempre.
— Vou começar a cobrar por esse ato de caridade.
— Ai, nesse dia, pode ter certeza de que as coisas vão
desandar de vez.
— Como se já não tivessem…
Liam se despediu e foi embora. Fiquei sem entender o que
quis dizer com isso. Era claro que o seu nível de amizade com a
minha parceira de residência era bem diferente, um grau de
intimidade que fazia qualquer outra pessoa estranhar. Podia até dizer
que ambos viviam uma espécie de “amigos com benefícios”. Nunca
chegaram a comentar abertamente sobre isso, mas eu não era boba
e percebia tudo.
Em uma ocasião, vi o futuro cardiologista saindo do quarto da
loira. Eles mantinham um relacionamento aberto e, frequentemente,
envolviam-se com outras pessoas. Esse comportamento, sim, era
inusitado.
Saí caminhando pelo corredor, e um latejar na cabeça veio
junto de uma vontade imensa de vomitar.
As crises de enxaqueca sempre me pegaram em cheio, mas a
vontade de colocar tudo para fora era novidade, e me deixava
preocupada. Talvez estivesse mesmo sobrecarregada, cansada e
precisando de férias para desacelerar. Só que isso ainda não era uma
opção, não quando estava focada totalmente na residência.
— Merda, vou ter que tomar mais um remédio! — murmurei
baixinho.
— Aurora?
Marcelo…
Olhei para os lados, caçando uma possibilidade de fugir, mas lá
estava ele à minha espera, parado à porta da sua sala e com um
olhar de cachorro arrependido.
— Podemos conversar? É um minuto, por favor…
Fiquei encurralada, das outras vezes consegui fugir, mas
agora…
— Certo, um minuto! — falei, passando pelo doutor e indo
direto me sentar.
Marcelo fechou a porta e seguiu até sua cadeira, de frente
para mim.
— Eu sabia que em algum momento iria conseguir te pegar…
Como se sente? Fiquei preocupado naquele dia, tive que ficar
mandando mensagem para meu amigo.
— Nem deveria fazer isso, não somos nada um para o outro…
— Não fale assim, Aurora, apesar de nosso relacionamento ter
se resumido a sexo, nunca consegui te ver apenas como um buraco
para me enfiar dentro — disse firme. — Eu me preocupo e sempre
irei me preocupar, portanto, está tudo bem?
— Está — respondi omitindo um pequeno detalhe. — Liam me
disse que você ficou no pé dele, perturbou tanto por causa de uma
simples dor de cabeça.
— Sinto que tem mais que isso, estou há dias te observando e
parece que tem alguma coisa fora do lugar. Quer conversar sobre
isso?
— É cansaço, doutor, apenas isso. Em breve ficarei cem por
cento.
— Agora, sobre aquele dia no carro, você não me deu espaço
para falar e nem nenhuma chance para me explicar. Tudo que fez foi
sair ditando o futuro, como se tivesse lido meus pensamentos ou
tivesse algum poder nas mãos de decidir as coisas.
— E eu errei, por acaso? Para um bom entendedor, meias
atitudes bastam.
— O ditado não diz dessa forma, darling. — Gargalhou seco.
Revirei os olhos.
— Então? Tem mais alguma coisa para falar, ou posso ir
embora?
— Quero dizer que, bom, eu realmente iria colocar um ponto-
final, só que usaria outras palavras melhores. Amei cada minuto que
passamos juntos, mas pensei bem e considerei que talvez não fosse
bom continuar com algo que não iria passar de sexo. Eu me conheço
o bastante para saber que bastariam alguns meses para me
apaixonar por você.
Pisquei os olhos.
— E você, Aurora, parece o tipo de pessoa que iria odiar isso.
— O que exatamente?
— Odiaria me ter apaixonado e rendido aos seus pés.
Estranhamente não consegui dizer que sim, nem que não.
Merda!
— Não estou certo?
— Certíssimo — respondi num impulso. — Ainda bem que
acabou.
— Se é o que diz…
— Agora posso ir embora? — falei me levantando.
— Aurora, e-eu…
— Sim?
Outro latejar na cabeça, e dessa vez foi tão forte que tudo
ficou escuro.
— Aurora…. Porra!
Acordei e a primeira coisa que percebi foi que estava em uma
cama, não qualquer uma, mas a de um quarto do hospital, pelo visto
acabei sendo internada. Mas…
Senti uma mão tocar meu rosto, um beijo suave na minha
testa.
— Oi…
— O que aconteceu? — sussurrei com dificuldade.
— Você desmaiou, e corri para te segurar — Marcelo explicou
devagar. — Está sob observação após fazer alguns exames para
averiguar seu real estado de saúde.
Não sei por que, mas senti que estava me escondendo alguma
coisa.
— O que eu tenho? O que aconteceu? — Fiquei nervosa.
— Calma, vai ficar tudo bem… Roberto logo virá para te
explicar tudo.
Percebi que uma lágrima escorria pelo olho do doutor.
— Fiquei desesperado quando te vi daquele jeito, senti muito
medo…
Estendi uma mão para tocar na sua e confortá-lo, mediante
sua vulnerabilidade.
Quando ia falar alguma coisa, o doutor entrou na sala
trazendo os exames.
— Senhorita Jones, que bom que acordou! Como se sente?
Um pouco melhor?
— Não sei dizer ao certo, pode me explicar o que está
acontecendo? Eu sei muito bem que não iria me internar sem um
bom motivo, não é mesmo?
— Marcelo e o seu amigo comentaram sobre crises de
enxaqueca, então realizamos uma tomografia, e foi aí que
descobrimos um pequeno problema. Acho que você nunca pensou
que poderia ter algo assim, até por ser bem silencioso e só
apresentar um agravamento quando há a possibilidade de ruptura, o
que é seu caso… — O neuro começou a me mostrar as fotos do
exame. — Isto aqui é um aneurisma que está comprimindo essa
parte aqui do cérebro onde precisamos operar.
Quase perdi o fôlego, e apertei com força a mão do homem
que não saiu do meu lado. Eu esperava ouvir qualquer coisa, menos
que tinha aquilo na cabeça.
— Olha, sei que ninguém está preparado para ouvir algo
assim, pega qualquer um de surpresa, mas o que posso dizer é que
tem solução e pode ser tratado. Entrar com uma medicação seria
uma opção, mas não a cura, dada a circunstância em que se
encontra… Se fizer o procedimento ficará bem por completo, isso
posso assegurar.
Roberto, neurocirurgião, continuou falando com delicadeza.
— Só que há um porém…
— O quê? — questionei.
— Você está grávida, Aurora, um feto de aproximadamente
oito semanas. E é aí que acabamos preocupados, porque no seu
caso só há duas possibilidades. Pode querer continuar com a
gravidez pelos próximos meses, mas correndo o risco de o
aneurisma se agravar mais ainda; isso seria como pôr sua vida em
risco, uma ruptura pode ser fatal. A outra opção é operar agora e
correr o risco de perder o bebê… Sinto muito, mas essas são as
alternativas.
Fui colocada dentro de um fogo cruzado.
— E-eu…
— Vou deixar vocês sozinhos, precisam conversar. A decisão
está em suas mãos, doutora Jones.
Roberto saiu da sala, e em seguida lágrimas rolaram pelos
meus olhos.
— Eu estou doente e ao mesmo tempo grávida…
— Sou o pai, e estou me sentindo um desgraçado por não
saber o que fazer nesta situação! — disse, colocando as duas mãos
no rosto. — Aurora…
— Estamos falando de um bebê… Como não desconfiei disso
antes?
— Esse não é o problema, Aurora, mas sim o que está na sua
cabeça. Eu não posso te perder, entendeu? — Aproximou-se,
segurando meu rosto. — Tem que fazer a cirurgia, por favor…
— Está me pedindo para colocar a vida dessa criança em
risco?
— E espera morrer e deixá-la aqui para eu criar sozinho?
Porra, não fui um bom pai para Jade, ainda estou aprendendo, por
favor, precisa pensar direito…
— Marcelo, não sabe o que está falando, eu não vou morrer —
cuspi entre lágrimas. — Nem essa criança que cresce aqui no meu
ventre…
— Você não pode ter esse bebê, não pode, por favor — falou
sem parar.
— Não acredito que está me pedindo isso, como pode cogitar
algo assim?
— Caralho, não ouviu o que o Roberto disse agora há pouco?
Se não fizer a cirurgia o quanto antes e esperar mais alguns meses
enquanto o bebê se desenvolve, correrá um grande risco de vida!
Aurora, precisa fazer a escolha certa! Eu não estou pedindo para dar
fim ao nosso filho, até porque nem quero isso, mas, se tiver que
escolher um para viver, essa pessoa tem que ser você!
Chorei mais ainda.
— Estou com medo… Não sei o que pensar.
— Estou do seu lado, e não vou te deixar.
— Está me pedindo para abrir mão do nosso filho…
— Quero que se salve, por favor…
Balancei a cabeça em negativa, e mais lágrimas rolaram pelos
meus olhos.
— Eu não vou perder meu filho, Marcelo. Essa é a minha
escolha.
Estava determinado a virar a noite, mas encontraria uma saída
para resolver aquela situação da mulher que carregava o meu filho.
Eu não poderia perder Aurora, seria demais e com toda certeza
resultaria no meu fim também. Era uma situação complicada, inédita
para mim, mas precisava fazer bom uso da paciência e de todo o
conhecimento disponível a fim de encontrar a melhor solução.
Ela não poderia morrer… Isso não vou aceitar.
— Temos aqui no hospital uma equipe ótima, um
ginecologista-obstetra, que por sinal é irmão dela e excelente no que
faz, ele vai nos acompanhar na cirurgia. Sabemos que é um feto
muito pequeno, ainda se desenvolvendo, mas pode dar certo…
Roberto explicou, era o que vinha fazendo nas últimas horas.
Deixei Aurora no quarto aos cuidados de outros profissionais
de saúde, e vim ter uma reunião com meu amigo; ele estava a par
do caso e eu confiava de olhos fechados.
— Pode? Eu quero uma certeza! Ela não quer perder o nosso
bebê, nosso! Pode isso? Sequer sabia da existência e agora posso
perdê-lo.
— Entendo. Sinto muito, de verdade.
Ainda não consegui processar essa informação, deve ter sido
gerada em uma de nossas primeiras vezes quando me esqueci do
preservativo. Até conversamos sobre isso, e ainda comprei a pílula
do dia seguinte por garantia, o que pelo visto acabou não servindo.
Eu tinha plena consciência de que havia uma vida no ventre da
garota, uma que iria precisar lutar muito, e que talvez, por um azar,
acabasse morrendo graças àquela maldita doença, que nos pegou
de surpresa. Quando recebi o resultado, senti como se minha alma
tivesse saído do corpo, perdi o fôlego e só fiz chorar, e muito.
Porra…
— É por isso que estamos aqui, Roberto. Eu quero encontrar
uma saída.
— O melhor que pode fazer por aqui é dar força a sua mulher.
Aurora vai precisar de apoio, está em uma situação delicada e
precisará de todo suporte necessário.
— Farei isso sem sombra de dúvidas, mas quanto à cirurgia?
— É inevitável, ela precisa fazer, agora ou em alguns meses,
quando ficar pior.
Apertei o punho com força.
Isso sim, era estar entre a espada e a cruz. Havia duas vidas
em jogo, em risco, e felizmente só uma podia ficar viva, ou um
milagre dos céus poderia salvá-las. Eu nunca me considerei uma
pessoa religiosa, mas naquele momento senti que seria capaz de
fazer uma promessa para que o inesperado acontecesse
imediatamente.
— E, cara, sinto muito por isso. É uma barra complicada para
os dois, mas estou no meio; farei o que puder para salvar a vida da
sua mulher e, com sorte, o bebê.
Roberto era um profissional excepcional, não me restavam
dúvidas. Tanto que, desde que estava a par do caso, não me fizera
perguntas pessoais, soube respeitar, o que me deixou aliviado por
dentro, afinal eu não queria falar ainda sobre isso. Logo os pais de
Aurora iriam precisar saber do que estava acontecendo, assim como
os meus, e eu tinha que estar preparado para estar ao lado dela.
Ainda que não estivéssemos juntos como casal, éramos os pais
daquele bebê inocente.
E isso era o maior laço possível.
— Obrigado, Roberto. Estou confiante de que tudo vai acabar
bem.
— Estarei por perto quando tiverem tomado a decisão, é só
me falar.
Assenti com a cabeça.
— Já tive alguns casos assim que não terminaram bem, mas
outros, sim, deram certo. Você sabe como a medicina funciona,
milagres podem ou não acontecer; de toda forma, fazemos o nosso
melhor e tudo que está ao nosso alcance! Aurora é uma garota
jovem, o aneurisma não é o pior que já vi, perfeitamente tratável…
— afirmou.
— Mas ainda tem a chance de acabar tendo uma complicação
e perder o bebê.
— Sim, é uma gestação recente, então essa possibilidade não
pode ser descartada.
— Meu desejo é de que tudo isso não passe de um pesadelo,
porra!
— Vai passar, Marcelo. É só uma tempestade passageira.
— Gostaria muito que fosse, e como, meu amigo.
Levantei-me da cadeira.
— Vou ver como ela está, depois conversamos mais, Roberto.
— Daqui a pouco passo lá para examiná-la novamente.
Acenei com a cabeça, e fui logo saindo da sala.
Cheguei bem na hora em que vieram servir o jantar da Aurora.
— Pode deixar, dessa paciente eu cuido.
— Mandão…
— Teimosa.
Peguei a bandeja e levei com cuidado até a cama onde ela
estava.
— Espero que esteja com fome, o cheiro parece divino…
— Sempre é, as comidas daqui são ótimas e bem-feitas! —
Sorriu de lado.
— Você está bem? Como estão as dores?
— Diminuíram um pouco, só estou confusa com tudo que está
acontecendo. Não quero nem pensar quando meus pais souberem
disso. Pode esperar mais um pouco antes de entrar em contato com
eles? Jason prometeu que guardaria segredo…
— Pode deixar, não vou abrir a boca. Só que em algum
momento vão precisar saber, e, nesse dia, saiba que vou estar do
seu lado. Esse bebê não foi parar aí dentro por acaso — tentei
descontrair, pegando uma colher para mergulhar na sopa.
— Não fala assim, Marcelo, faz parecer que quer que o bebê
sobreviva.
— E eu quero… — Levei uma quantidade até sua boca e ela
aceitou de bom grado. — Não sei se é o momento certo para falar
disso, mas a minha relação com a mãe de Jade não terminou bem,
fui traído e um monte de coisas. Mas nunca deixaria a minha filha na
mão daquela mulher, tanto que peguei a guarda e entreguei para
meus pais me ajudarem a criar. Bom, não sou o melhor pai do
mundo, fiquei ausente, foquei no trabalho, e agora, depois de muito
tempo, estou tentando fazer as coisas direito. O que quero dizer é
que posso ter muitos defeitos, mas nunca abandonaria um filho
meu, sangue do meu sangue, isso nunca.
Aurora ficou calada.
— Sei que falei daquele jeito, mas fiquei nervoso e com medo
de te perder. Sabe quando temos que falar para a família que é
preciso desligar o aparelho do paciente? Me senti dentro daquela
situação, ainda que em um cenário diferente. Parece que preciso te
escolher ou escolher o bebê, e isso não é nada fácil…
— Prefiro acreditar que a cirurgia dará certo. Jason passou
aqui, conversamos, e ele prometeu fazer o que for necessário…
Falou que, apesar das poucas semanas, já houve outros casos piores
em que o feto sobreviveu. Eu quero muito acreditar nisso.
— E eu mais ainda.
Continuei colocando colheradas em sua boca com cuidado.
— Nem chegamos a namorar e logo surgiu um filho por acaso
— comentei com tom de brincadeira.
— Isso que dá transar feito coelhos. Fomos imprudentes
demais.
— Em minha defesa, ficar longe de você é uma tarefa muito
difícil, assumo.
— Foi consequência de uma das nossas últimas noites. —
Piscou um olho.
— E espero que sobreviva para conhecer os pais, que vivem
em pé de guerra, que se odiaram tanto que acabaram parando na
cama. Apesar de que isso vou omitir, seria muita informação, não é
mesmo?
Ela riu baixinho.
— Demais. É melhor ficar de boca fechada, assim nos poupa
de uma vergonha.
Trocamos um olhar e senti um aperto no peito.
— Bom, é melhor comer, vai precisar criar força para carregar
meu filho.
— Não é só seu, é meu também.
— Vamos fazer escala para dividi-lo, pode se preparar, darling.
— Nada disso, vai ser apenas meu, no máximo te darei só aos
fins de semana.
— É o que veremos…
— Marcelo?
— Oi?
— E se eu acabar perdendo? — perguntou com pesar.
— Quero acreditar que não vai, assim como não quero te
perder.
— Você nem gosta de mim, aposto que nem vai chorar no meu
funeral.
— É bem capaz que no dia seguinte aconteça o meu enterro
também. Acha que consigo viver em um mundo onde você não
exista?
— Diz isso como se não me odiasse…
— Não sei que tipo de ódio é esse que me faria morrer logo
após sua morte.
Aurora piscou os olhos.
— Isso é tudo, menos ódio, darling. Pode ter certeza.
Roberto bateu à porta antes de entrar.
— Olá, boa noite…
Ninguém nunca está preparado para saber que sua vida pode
estar por um fio. Como médica, assisti de perto a alguns casos, que
acabaram em morte, e outros, ainda piores. Quando se está do
outro lado, qualquer pessoa consegue reagir de um jeito passivo,
mas a situação muda totalmente quando os papéis são invertidos.
Nunca imaginei que havia um problema na minha cabeça, e em
partes tenho culpa por não dar a devida atenção aos sintomas,
assim evitaria chegar naquele nível.
Dias, horas, nem sabia dizer ao certo quanto tempo se passara
desde que estava em uma cama de hospital, sendo acompanhada
por outros profissionais e um neuro, todos empenhados em garantir
meu bem-estar e que nada de ruim acontecesse. Eu ainda não tinha
decidido se queria fazer aquela cirurgia, temia muito por perder o
bebê, que, apesar de não ter sido planejado, já era muito desejado.
Não queria perdê-lo…
Marcelo estava ao meu lado o tempo todo. Apesar de suas
obrigações como chefe de cirurgia, se dividia para dar conta e ainda
vir me ver, me dando força, como se por dentro não estivesse
completamente devastado com toda a situação. Porque de fato
fomos pegos de surpresa, o aneurisma e a descoberta da gestação.
Meu irmão, que agora era meu médico, também não me
deixou sozinha, ficava me dando força, conversando sobre as
possibilidades de a criança ficar ilesa durante a cirurgia, e eu me
enchia de esperanças de que era verdade. No último dia, realizamos
alguns exames e ultrassom. O feto estava se desenvolvendo
saudável, mas, como estava bem no comecinho, todo e qualquer
cuidado era pouco.
— Está suspirando demais, filha. Algum problema?
Minha mãe saltou da cadeira e veio até mim. Eu tinha tentado
esconder dos meus pais o que estava acontecendo, mas foi uma
tarefa muito difícil, e, temendo o inesperado que pegava qualquer
um de surpresa, decidi abrir o jogo e revelar. Logo foram me ver, e
felizmente não me julgaram, nem mesmo pela gravidez. E, claro,
Marcelo não mentiu quando disse que não me deixaria sozinha.
Marcou presença, assumiu a responsabilidade e ganhou um ponto
extra com meus pais. Eles foram com a cara do doutor, o que me
deixou aliviada.
Tudo estava em paz, e isso era tudo de que eu precisava.
— Estou cansada de estar nessa cama, queria voltar ao
trabalho. — Suspirei.
— Se marcar a cirurgia, em breve vai poder voltar a fazer o
que mais ama.
— A senhora sabe do risco que existe por trás dessa
intervenção, nem quero imaginar como seria acordar e descobrir que
acabei perdendo o bebê.
— Meu amor, isso não vai ser o fim, você é uma garota forte,
sobreviveu à pior fase da sua vida dentro daquele orfanato, e a um
monte de outras coisas. Acha mesmo que não vai ter forças
suficientes para sobreviver a um aborto? Aurora, em toda sua
residência, quantas mulheres já não viu de perto que passaram por
isso?
Compreendi a linha de raciocínio da minha mãe, apesar de
falar por falar. Até inteligência artificial falava, mas sentir na pele era
mil vezes pior, e ela bem sabia disso, porque graças a um problema
no útero foi impossibilitada de gerar filhos.
Eu já havia, sim, visto casos de aborto espontâneo ou outros
que passaram na emergência, mas isso não vinha ao caso.
Estávamos falando de mim, pessoa, não de uma residente em
pediatria, e por isso o meu caso não podia ser comparado. Até
porque não havia uma dor maior que outra, e nem uma justificava
outra, e ponto-final.
— Filha, você é nova, se perder vai poder ter quantos quiser…
Neguei com a cabeça.
Ainda bem que a porta do quarto foi aberta, dona Gelsa e Jade
passaram por ela. Minha mãe se aproximou de mim para me dar um
beijo na testa e disse que nos deixaria sozinhas.
— Aceita mais um pouquinho de perturbação, querida?
Dei um sorriso carinhoso para a mãe de Marcelo.
— Vocês são sempre a minha melhor visita. — Dei um sorriso
de lado.
— Princesa Aurora, sabia que eu fui na igreja com a vovó para
orar por você?
Jade subiu na cadeira, só para ficar próxima o bastante e
conversarmos melhor.
— Foi? Nossa, que coisa mais linda! Muito obrigada, princesa.
— É, eu pedi ao Papai do Céu para te curar, te proteger e
cuidar do meu irmãozinho.
Pisquei os olhos.
Troquei um olhar com a dona Gelsa, e compreendi em silêncio
que o doutor contara sobre esse detalhe. Praticamente todas as
pessoas que nos cercavam já sabiam disso e, por sorte, não
julgavam ou falavam besteiras. Até porque éramos adultos e
responsáveis pelas nossas escolhas, assim como o bebê que era
nosso, e ponto. Se falassem algo contra era apenas pelas nossas
costas, porque até então só recebíamos muito apoio. Meus amigos,
tanto Mia quanto Liam, me acolheram, iam sempre me ver, e
disputavam a vaga para ser padrinhos.
— Oh, meu amor, tenho certeza de que Deus ouviu sua oração
sincera — sussurrei me segurando para não chorar.
— Eu quero muito poder segurar meu irmãozinho, sabe? No
meu quarto tem tanto espaço que podemos comprar um berço e
colocar lá, o que acha?
— Muito bom. — Dei um sorriso largo. — Perfeito.
— É, vou pedir a Marcelo para ele morar com a gente… Né? Aí
você vem também, não vem, princesa Aurora?
— Vou, sim, querida. O bebê vai amar ter uma irmã como
você, meiga e carinhosa.
— Será que ele, ou ela, vai estranhar porque chamo meu pai
pelo nome? Porque tenho certeza que o neném vai chamar
direitinho. Vovó disse que está na hora de mudar isso, e eu tô
pensando sobre isso, sabe?
Céus, Jade era muito esperta, e tagarela, achei uma gracinha
seu jeito de falar.
— Sei, e o que está pensando? Quer me contar?
— Até que ele é bonzinho de verdade, lê as historinhas
comigo, agora me ajuda a fazer a tarefa, me busca na escola, e
gosto de ficar contando sobre as aulas de ballet… Eu pensei muito, e
também vovó me ensinou a orar a Deus sobre isso.
— Fez bem, princesa, e espero que encontre a resposta de
que precisa.
— Aham, posso tocar no meu irmãozinho?
— Jade, minha neta, ainda é bem pequenininho…
— Ah, vovó, mas eu queria tocar, posso, princesa Aurora?
Gargalhei.
— Pode, sim.
Dona Gelsa pegou a neta para colocá-la na beirada da cama. A
filha de Marcelo, que falava pelos cotovelos, estendeu uma mão até
a minha barriga. Nessa hora, a porta foi aberta, e o doutor veio até
onde estávamos com um sorriso.
— Posso saber o que as duas estão fazendo? Quero participar
também.
— Eu tô tocando no meu irmãozinho, quer tocar também?
— Quero, sim, querida.
Jade pegou na mão do pai e colocou sobre meu ventre.
— Marcelo, podemos orar igual fiz com vovó na igreja?
— Podemos, sim…
— Tá, fecha os olhos e estende só uma mão para o céu…
Decidi seguir as instruções da menina, com o coração batendo
forte.
— Deus, sou eu, a Jade, é, tô pedindo de novo, mas agora
com a Aurora e o meu papai Marcelo, que ficou por muito tempo
longe de mim, só que tá ficando bonzinho, e enfim vamos poder ser
uma família de verdade, mas o senhor precisa nos ajudar —
sussurrou com confiança. — Papai do Céu, cuida do bebê, protege, e
salva a princesa Aurora, deixa os dois ficarem bem, por favor? Juro
que não como mais doce, e largo as aulas de ballet…
Céus, ela estava mesmo falando aquilo tudo? Fiquei
emocionada.
— É… Escuta tudo que essa princesa está falando, Papai do
Céu. Cuida da Aurora e do nosso filho, te suplico.
— Amém.
— Amém.
Até Marcelo ajudou a filha na oração. Não aguentei, foi assim
que desabei em lágrimas. Assim que abri os olhos, não era só eu
que estava chorando. Dona Gelsa e o doutor se encontravam na
mesma situação. Jade era a única sorridente.
— Ei, princesa Aurora, não chora mais não, viu? Deus já ouviu
nossa oração.
— Eu acredito fielmente que sim, meu amor.
Acordei no meio da madrugada com febre, meu corpo
convulsionando. Marcelo foi o primeiro a perceber, e chamou a
equipe médica para vir me atender o quanto antes.
Roberto foi o primeiro a chegar e me examinar.
— Não temos mais tempo, ela terá que fazer a cirurgia…
— E-eu, o bebê… — foi tudo que sussurrei.
— Querida, vai ficar tudo bem, confie em mim.
Não consegui enxergar mais nada ao meu redor.
— Roberto, você tem que salvá-la, por favor…
— É o que farei, cara, precisa se acalmar.
— Aurora, não pode me deixar agora, eu te proíbo de morrer!
Foi a última coisa que ouvi antes de perder completamente os
sentidos.
Fui impedido de entrar na sala de cirurgia devido ao meu
nervosismo e tive vontade de matar Roberto com as minhas próprias
mãos. Fui contido por enfermeiros e levado para a minha sala, onde
meu pai, que estava presente, fez questão de me trancar para tentar
me acalmar, como se isso fosse possível. Eu me encontrava
devastado e sem controle.
Antes disso estava tudo indo muito bem, até acontecer uma
complicação, o que resultou na antecipação da cirurgia. Ainda bem
que o neurocirugião, o melhor que tínhamos no hospital, se
encontrava presente para seguir com o procedimento. Desde então,
horas e horas se passaram, e eu ainda não sabia de nada. Minha
mãe ficou de conversar com os pais de Aurora, enquanto fiquei
preso na porra da sala.
— Eu preciso… Preciso! — Levantei-me da cadeira possesso. —
Tem que abrir isso, estou perdendo o resto de paciência que tenho.
— Filho, por favor, mantenha a calma, ou sabe que posso
mandar aplicar um remédio na sua veia e te colocar para dormir!
Não me faça tomar uma decisão dessas… — falou paciente. — Então
tente ficar calmo, é o que te peço.
— Calma? A minha garota está em uma sala de cirurgia e
grávida…
— Não está sozinha, mas rodeada dos melhores profissionais.
Daqui a pouco teremos notícias, e sinto que vão ser boas!
Neguei com a cabeça.
— O bebê, porra… — Segurei-me para não pegar um objeto e
jogar na parede.
— Vai sobreviver, assim como a mãe, os dois são fortes,
confie, meu filho.
— Eu nem sabia que o ódio que juramos sentir um pelo outro
tinha resultado em um bebê. Como isso foi possível? Minha cabeça
fica dando voltas e mais voltas… E penso se não estou pagando por
alguma coisa, talvez por ter sido um pai de merda com Jade? É isso,
Deus quis me castigar… — cuspi as palavras entre lágrimas.
— Sabe que não é nada disso, filho, o imprevisto sobrevém
para todos. Você passou anos estudando, sabe que o corpo humano
é um cubo mágico, e que há coisas sobre as quais não temos
controle algum. Aurora nem sonhava que tinha isso, nem ambos
previam que no meio de tudo aconteceria uma gravidez inesperada.
— É, mas aconteceu… E eu me sinto um merda por não poder
fazer nada!
— Já salvou muitas vidas, querido, e agora outros profissionais
estão fazendo o mesmo papel com aquela garota e o seu filho.
Precisa confiar e ter esperança.
— Tento ter, mas… Caralho! Estou ficando sem ar!
— Marcelo, filho…
Meu pai se aproximou para me dar um abraço, e aceitei,
vencido pelo cansaço.
— Não posso perdê-la, pai, agora que descobri que é
impossível permanecer vivo em um mundo onde ela não esteja…
Acho que me apaixonei. — Chorei.
— Sabemos disso, querido, e tenho certeza de que nunca
odiou aquela garota.
— Nunca — confirmei. — Nunca foi ódio…
— Eu tenho esperança de que ela vai ficar viva para dizer o
mesmo.
Apertei o velho com força, e nesse momento bateram à porta.
Corri para abrir. Meu pai entregou a chave que estava em seu bolso,
e abri com rapidez.
Roberto, meu coração quase saiu pela boca.
— O que houve? Deu tudo certo?
O neuro entrou, e fui atrás, quase partindo para cima.
— Fala, porra, diz logo!
— Deu tudo certo, conseguimos operá-la e dar fim ao
aneurisma… — explicou detalhadamente o procedimento.
— E quanto ao meu filho? Está vivo? Sobreviveu?
— Milagres acontecem dentro e fora da medicina, Marcelo, e a
criança é a prova viva disso. Jason ficou presente monitorando o
feto, a qualquer complicação estávamos prontos para parar, mas não
foi necessário. Deu tudo certo e nenhuma intercorrência. Aurora está
bem, livre do problema e com o bebê bem acolhido na sua casinha…
Senti as pernas vacilarem, e o meu pai me segurou.
— Quando ela acordar, venho te avisar para vê-la. Por ora,
está descansando e vai precisar de muito repouso, até para evitar
qualquer risco à criança… Vão ser meses bem delicados, sem muita
agitação, stress, apenas paz e muita paz mesmo.
Assenti.
— Preciso ir, qualquer dúvida vou estar na minha sala.
— Roberto, obrigado por salvar a vida da Aurora e do nosso
filho.
— Farei isso quantas vezes forem necessárias.
Suspirei aliviado.
Ela estava viva, e o bebê sobreviveu…
Eu não gostava de me automedicar, mas foi necessário, dada a
situação. Tomei um ansiolítico para conseguir me acalmar, ou iria
acabar sofrendo um infarto. Nervosismo, ansiedade, medo, tudo isso
misturado me causou falta de ar, mãos trêmulas, parecia que a
qualquer momento iria cair duro no chão.
Conversei em outro momento com Roberto sobre a cirurgia, e
ele garantiu mais uma vez que tudo correra bem, sem complicações,
e que o feto estava muito bem. Não satisfeito, fui encontrar Jason,
que explicou melhor e me deixou bem mais calmo, sobretudo depois
de pegar as gravações onde dava para ver o bebezinho no útero.
E, ali, chorei muito. Acho que chorei todas as lágrimas da
minha vida.
— Querido, desculpa, mas ela queria te ver…
A porta da sala foi aberta, e Jade passou apressada.
— A… A princesa Aurora está bem? — Parou bem na minha
frente.
— S-sim, querida. Sua oração foi ouvida.
— Obaaa! Eu sabia! Pode entregar isto aqui a ela? — Minha
filha estendeu um papel na minha direção, aceitei, agradecendo com
um sorriso. — Por favor?
— Vou entregar, sim, ficou muito bonito. — Realmente havia
ficado.
— Aham, aqui é você, ela, eu e o bebê que ainda não sabemos
se é menina ou menino, né?
Assenti emocionado.
— Jade, sei que essa é a primeira vez que falo abertamente
sobre isso, vou aproveitar que estou cheio de coragem e
sensibilidade para te pedir perdão. Eu não fui um bom pai no
começo, e pelos motivos mais errados possíveis, mas sempre
carreguei no peito o fato de que era a minha filha,
independentemente de tudo, e te protegi com unhas de dentes… —
Eu me contive para não mencionar sua genitora. — Agora estamos
tendo a chance de consertar um erro do passado, e espero que isso
continue, porque ser seu pai é uma honra. Você é uma menina
carinhosa, gentil, rica de milhares de qualidades que posso passar
horas enumerando aqui, pois não será suficiente. O destino me
colocou no papel de pai outra vez, e, de verdade, estou morrendo de
medo por dentro. Mas sei que não vou falhar, nunca mais, vou ser
tudo que você precisa daqui para a frente e para seu irmãozinho
ainda no ventre.
Jade ficou me encarando, calada.
— Me perdoe, de verdade. Uma vida será pouco para tentar
me redimir…
— Tudo bem. Eu não te odeio, tá? Vovó sempre disse que você
precisava de um tempo para se curar e cuidar da cabeça, né
verdade?
— Foi, mas agora estou aqui, firme e forte para ser seu pai
para sempre. Eu juro.
— Não vai mais embora?
— Nunca mais. Vou ficar aqui, te proteger e te dar muito amor.
— Então tá bom…
Dei um sorriso de lado, e a pequena me deu um abraço
apertado.
— Obrigado pela segunda chance, Jade.
— De nada, papai Marcelo.
Apertei-a com cuidado, confiante de que um dia me chamaria
só de pai…
O tempo iria tratar de resolver isso.
— Não acredito que passou a noite aí…
Acordei com a voz suave de Aurora, e abri um sorriso largo.
— Oi, darling. Como se sente?
— Antes me diga… O bebê sobreviveu?
Levantei-me da cadeira, indo até ela para segurar em sua
mão.
— Sim, um verdadeiro milagre, e agora acho que acredito no
poder da oração. Jade fez mesmo Papai do Céu te proteger e ao
nosso bebezinho.
Aurora sorriu.
— Eu iria ficar muito mal se acordasse e você me contasse
outra notícia. Ainda bem que aquela pequena tagarela sabe mesmo
orar…
Rimos.
— Devo sua vida ao Roberto, que agiu a tempo e deu o seu
melhor. Na verdade, a toda equipe que estava presente, cuidando
para que tudo terminasse bem.
— O pesadelo acabou então?
— Sim, agora terá que ficar descansando por um tempinho, e
até lá vou amar ser o seu médico particular. Já até ajeitei tudo para
te levar para o meu apartamento…
— Quer dizer que não estava dormindo, mas sim fazendo
planos? Bem sua cara.
— Eu quero cuidar de vocês, Aurora, e o meu apartamento é o
melhor lugar. Tem a casa dos meus pais também, mas acho que por
enquanto seria bom ficar comigo.
— Sabia que tenho pais também?
— Tem, mas eu quero fazer isso, podemos não brigar? O que
custa só dizer sim?
— E quando falei que não queria? Acho que está blefando,
doutor…
Dei um beijo demorado em sua testa.
— Meu pai me trancou na minha sala só para eu não entrar no
centro cirúrgico. Fiquei louco, tudo que já passei de ruim não chega
perto do medo que senti de te perder. Eu não queria perder o bebê
também, misturou tudo e por muito pouco não infartei.
— Sei…
— A vida está me dando uma chance de ser um pai para a
minha filha, te conquistar e também ser um pai para o nosso
bebezinho.
— Que papo é esse de me conquistar?
— Não é o momento para falarmos sobre isso, o foco agora é
cuidar da sua saúde.
— Marcelo?
— Oi?
— Obrigada.
Não aguentei, beijei seus lábios devagar, e ela retribuiu, ambos
emocionados.
Felizmente aquele capítulo terminara bem…
— Aqui está o seu bebê-milagre, podemos chamá-lo assim,
não é mesmo?
A obstetra nova do hospital falou carinhosamente, enquanto
realizava um ultrassom, um de tantos outros exames que fiz nos
últimas dias. Enfim me dariam carta-branca para continuar com a
recuperação em casa. Felizmente todos estavam ótimos, sem
alterações, e o que faltava mesmo era conferir mais uma vez como
estava o bebê, que para toda a glória sobrevivera a uma cirurgia
delicada estando dentro do meu ventre, bem acolhido.
Era realmente um milagre.
Acho que nem o neurocirurgião acreditou que isso seria
possível, e, como médica, tenho plena consciência de que as
chances realmente poderiam ser mínimas, ainda mais mexendo na
parte mais importante do corpo, a cabeça, que lidera todo o resto.
Graças ao procedimento, estava livre daquele problema, e não tive
nenhuma complicação quando poderia ter acabado com a vida do
meu bebê.
Não tive nem tempo para processar a ideia de que seria mãe,
logo me vi agindo como uma faria, porque de fato estava
determinada a aguentar o que fosse, apenas para deixar aquela
sementinha ficar forte o bastante. No entanto as coisas não saíram
como planejado, a cirurgia aconteceu, e tudo terminou bem. Sentia
dentro do peito que nasci de novo, e aquela criança no meu ventre
era parte de tudo isso.
— Podemos, sim — respondi carinhosamente. — Está tudo
bem mesmo?
— Sim, só vai precisar repousar mais um pouco, assim que
completar o terceiro mês pode respirar mais aliviada. A maioria das
mamães ficam apreensivas, e com razão, os primeiros meses são
bem importantes e decisivos. Só que esse neném é muito forte e vai
continuar firme no forninho até os nove meses, senhorita.
— É o que espero. — Dei um sorriso de lado.
— Vou te passar alguns medicamentos que fazem parte do
pré-natal, e vamos ficar acompanhando de perto o desenvolvimento
do bebê-milagre.
— Eu seria muito idiota se falasse que estou louca para voltar
ao trabalho?
— Imagina, querida, você ama o que faz e com toda certeza
logo voltará. Tem dois grandes médicos te acompanhando, Roberto,
Marcelo, e o seu irmão cabeça-dura.
Gargalhei baixinho.
— Como assim? Vocês se conhecem?
— Estou tendo que conhecer agora que estou trabalhando
aqui… — Revirou os olhos. — Desculpa falar, é que te vi dando um
leve esporro nele, então me senti encorajada para dizer que como
médico ele é ótimo, mas como pessoa… Um chato.
— Assino embaixo. Só que agora vou pegar leve, Jason fez
parte da minha cirurgia e cuidou do meu nenenzinho. Acho que isso
faz dele um ser humano melhor, não é?
— Quero acreditar que sim.
Rimos juntas.
Callie encerrou a conversa, e deu continuidade ao exame.
Pouco tempo depois, Marcelo apareceu na sala, demonstrou tristeza
por não ter chegado antes para participar, já que precisara fazer
parte de uma cirurgia da qual não podia se ausentar. Tentei
confortá-lo falando que na próxima daria certo, uma vez que havia
longos meses pela frente, não faltariam oportunidades e muitos
exames.
A doutora se despediu após encerrarmos, e, por fim, nos
deixou sozinhos.
— Já mandei preparar tudo, minha casa será sua pelo tempo
que desejar.
Sorrio de lado.
— Meus pais ficaram com uma cara de chateados quando
descobriram que você tomou a frente, mas nem dei corda, sabe? Eu
sei como eles são, se eu desse um espirro, na mesma hora iriam
correr para me levar ao hospital. — Fiz careta.
— Pude perceber que são bem protetores, lembram um pouco
os meus.
— É, mas, apesar de tudo, eu amo muito a minha família, até
porque são tudo o que tenho, já que meus pais biológicos não faço a
mínima ideia de quem sejam…
— E você tem vontade de conhecer, Aurora? — Segurou na
minha mão carinhosamente.
— Não — fui sincera. — Sei que algumas pessoas sentem esse
desejo, mas não partilho disso. Se me deixaram para trás, não
merecem me conhecer adulta. E, de toda forma, o destino me deu
novos pais maravilhosos e muito carinhosos.
— Protetores também — completou. — Eu tenho uma dívida
com os meus, não só pelo que fizeram por mim, mas por terem
assumido um papel importante na vida de Jade, quando a minha
cabeça estava fodida demais para isso. Agora, depois de muito
tempo, estou em busca de consertar isso, e só posso agradecer a
minha filha por ser amorosa e me dar uma chance para me conhecer
de verdade…
— Fico feliz que estejam se dando bem, acredita que te odiava
um pouquinho a mais por causa disso? É que na minha cabeça não
fazia sentido um pai ser um merda para uma garotinha tão doce
quanto aquela tagarela.
— Não te julgo, eu mesmo me odeio pelas coisas que fiz e
escolhi.
— Nunca é tarde para consertar, não acha?
— Tenho certeza disso, por essa razão farei o melhor daqui
para a frente. Quero amar muito Jade, a ponto de ela não ter
dúvidas, na verdade amarei os meus dois filhos.
Só fiz sorrir largo.
Ainda não tínhamos conversado direito sobre o bebê, tudo
aconteceu rápido demais. Quando a oportunidade viesse, iríamos
falar sobre como chegamos àquele ponto, colocar as cartas na mesa
como dois adultos, e, claro, pensar no futuro. Não dava para ficar
mais com brigas, rivalidades ou trocas de farpas bobas, porque havia
uma vida sendo gerada e ela precisava de pais maduros.
Durante o momento complicado que passei, conheci uma
versão sua apaixonante, um homem protetor, parceiro, e que mesmo
rodeado de afazeres se fazia presente, cansado, abatido, sem comer
direito e cheio de olheiras, mas sempre sorridente. E eu sentia que
não estava fazendo isso por obrigação, havia algo maior por trás, e
de fato gostei, porque não me senti sozinha, já que sua força se
tornava a minha.
Era impossível suportar um processo sem apoio, felizmente
estive rodeada de afeto, amigos, parceiros de trabalho, minha
família e a do doutor, e ele, que entre todos se destacou. Quanto a
isso, nunca irei me esquecer, serviu para me fazer rasgar o bloco de
notas de todos os motivos para odiá-lo com todo meu coração.
Porque, no fim, eram apenas motivos bobos…
Engoli em seco, olhando diretamente em seus olhos.
— Está pensativa, posso saber o que tanto batuca em silêncio?
— Estou morrendo de vontade de comer um donut de
chocolate. — Lambi os lábios.
— Não acredito… Preciso conversar com seu médico antes
disso, darling.
— Faça isso, ou seu filho vai nascer com a cara de um doce.
— Prefiro que nasça igual a você, é o meu maior desejo.
— E se vier idêntico a sua fuça?
— Está querendo dizer que virei cachorro? — Semicerrou os
olhos. — Ou que sou um?
— Se fosse, estaria mais para um rottweiler — comparei na
brincadeira e dei risada.
— Nem queira saber o que você seria, por respeito vou ficar
de boca fechada…
— Se tornou tão bonzinho, que parece um golden retriever,
feliz agora?
— Até que melhorou… Mas ainda prefiro que o bebê se pareça
com você.
— E eu posso saber o porquê?
— Porque vou amar uma outra versão de você, do tanto que já
gosto dessa aqui. — Tocou em meu rosto, fazendo uma carícia leve.
Fiquei sem palavras, e nossos olhares em sintonia. O clima se
quebrou quando Liam, Mia e algumas crianças entraram na sala para
me fazer uma surpresa.
— TIA AURORAA!
— OLHA O QUE EU FIZ…
— SURPRESAAAAA!
Coração ficou quentinho e aquecido ao ver aquele acolhimento
dos pacientes que tive o privilégio de atender. Agradeci aos meus
amigos pelo gesto fofo de carinho.
Era indescritível sentir o amor daquelas crianças maravilhosas
que faziam parte de mim. Essa era a verdadeira mágica que só se
vivia dentro da pediatria.
Aurora tivera alta e, como prometido, trouxe-a para o meu
apartamento. Com a ajuda de minha mãe e irmã, conseguimos
organizar tudo. Um quarto foi montado para que ficasse bem
acomodada, e o preenchemos com tudo de que iria precisar, além de
coisas que servir iam para distraí-la enquanto estivesse de atestado
médico. E o resultado ficou excelente, tanto que a pediatra amou
cada pequeno detalhe.
— Não acredito que tenha comprado tudo isso… Como sabe
que sou fã da série?
Havia um quadro certificado Universidade Grey's Anatomy
personalizado com o nome dela, um caderno para fazer anotações,
como eu sabia bem que gostava de escrever sobre qualquer ponto
importante para não esquecer. Havia também uma caneca
personalizada, e uma camiseta que, com toda certeza, iria servir de
pijama por causa do tamanho. Fora a garrafinha de água e um
monte de miniaturas pequenas para colecionar.
— Era o sonho ter pelo menos um por cento disso tudo! Dessa
vez acertou, da mesma forma que exagerou. — Deu risada,
meneando a cabeça para os lados. — Vou ter que me acostumar que
você faz tudo em dupla quantidade.
— Eu sou mesmo exagerado, mas em minha defesa foi tudo
pelo seu sorriso. Tinha que ver a carinha que fez quando viu tudo
isso exposto. Ficou parecendo um pintinho na água. — Pisquei um
olho, colocando as mãos nos bolsos da calça.
— O tempo em que vou ficar de repouso vai ser perfeito para
maratonar a série.
— Por isso mandei colocar televisão na maioria dos cômodos.
— E antes não tinha? — Franziu o cenho.
— Não, fico pouco em casa e, quando acontece, opto por
dormir muito…
— A maioria dos médicos valoriza o sono, uma vez que graças
aos plantões não conseguimos fazer isso adequadamente.
— No Exército, dormir era uma coisa bem complicada, sempre
tinha alguma pessoa que chegava doente, foi assim que desenvolvi
insônia. Hoje em dia só pego no sono se estiver muito cansado, por
isso priorizo os exercícios físicos, que me ajudam muito — comentei.
— Posso perguntar por que quis fazer parte de uma missão
desse nível? É um gesto humanitário, porém muito arriscado, meus
pais ficaram mal quando Jason quis ir.
— Eu precisava encontrar algo que ocupasse a cabeça, ainda
mais depois que descobri que fui traído pela mulher que dizia me
amar e que estava grávida de mim. Foi uma cena desesperadora ver
aquela vadia com outro carregando a bebê…
— Tenho uma curiosidade, posso perguntar?
— Pode.
— Você sabe onde está a mãe de Jade, ou já morreu?
— Viva, mas se encontra bem longe daqui. — Cruzei os
braços. — A guarda da menina é minha, desde que selamos um
acordo. E, antes que pense que fui errado em fazer isso, precisa
saber que aquela desgraça não queria mesmo assumir o papel de
mãe. No começo até pareceu que sim, mas foi tudo uma mentira.
Peguei Jade ainda bebezinha e levei para meus pais cuidarem… Foi
difícil no começo, mas no final das contas foi a melhor coisa que
podia fazer pela minha filha.
— Não tem medo de que um dia ela volte para tentar contato
com a menina?
— Sim, mas tenho um arsenal para impedir que isso aconteça.
E claro, se um dia Jade quiser saber a respeito da mãe, lhe darei as
respostas de que precisa. Mas por ora é uma menina pequena e que
não precisa de saber da merda que aconteceu.
— Faz bem em protegê-la… — sussurrou.
— Protegi de muitas coisas, a mãe sequer tinha capacidade
mental para criá-la. Se tivesse ficado de braços cruzados, a minha
filha estaria hoje cheia de traumas. E tem o fato de que não foi uma
gestação planejada, aquela vadia fez tudo pelas minhas costas, e,
como estava com os olhos vendados pela paixão, acabei aceitando
para no fim ser traído.
— Sinto muito, deve ter sido bem ruim…
— Foi mais que isso, me deixou várias sequelas na alma, e
graças a isso criei um maldito bloqueio, o que me tornou um pai de
lixo para Jade. A psicóloga sempre dizia que, se quisesse passar por
cima disso, tinha que antes perdoar as coisas que aconteceram, e
acredito que estou conseguindo …
— Espero que continue conseguindo, Jade merece o melhor. —
Sorriu de lado.
— Ela está tão feliz pela chegada de um irmão, só vive falando
disso.
— É verdade, foi uma surpresa a qual nem estávamos
esperando…
— Não, mas veio, talvez, com propósito de selar a paz entre
nós.
Aurora se sentou na cama, e a acompanhei, indo ficar ao seu
lado.
— É verdade, temos que deixar as brincadeiras de lado e ser
mais maduros — comentou com firmeza na voz.
— Estou disposto a fazer o que for necessário em prol do
nosso filho.
— Então já pode começar a ser menos exagerado?
— Peça a outra isso, porque acho que vou morrer sendo
assim.
Gargalhei.
A mãe do bebê cutucou meu braço em repreensão.
— Às vezes fico pensando no porquê de aquela bendita pílula
ter falhado.
— Somos médicos, sabemos da probabilidade dessas coisas
falharem.
— Não, a culpa é toda sua mesmo, que esqueceu de encapar
seu pau…
— Sim, a culpa é toda minha por ter uma porra vitalícia e
potente demais! Fiquei anos no celibato, mal batia uma punheta
direito e, quando deixei de ser virgem pela segunda vez na vida,
acabei engravidando a médica que me detestava demais…
— Ainda detesto um pouco, se quer saber.
— Diz isso da boca para fora, e, como prova de que é mentira,
te engravidei.
— Não fez isso querendo…
— E como pode ter certeza disso? — provoquei.
— Ah, não, pode parar, sabemos que foi por acaso do destino
mesmo.
— Que nada, isso aconteceu por consequência da nossa última
noite.
— Foram tantas últimas…
— E cada uma melhor que a outra.
— Você que está dizendo, nunca vou assumir uma barbaridade
dessas!
Estendi uma mão para apertar a bochecha da dona encrenca.
— Vou te deixar descansando um pouco enquanto preparo
algo para comer, tudo bem?
— Pode ir, vou ficar bem admirando o kit de Grey's Anatomy
que você me deu!
— Aproveite, se gostar posso trazer mais uns dez desse aí.
— Faça isso e não falo com você pelos próximos nove meses;
sou fã da série, não completamente obcecada a ponto de ter
milhares de coisas que não vou usar.
Dei de ombros.
— Você quem manda, dona encrenca.
— Certo, geladeira Electrolux.
Fiz uma refeição repleta de carboidratos, proteína e suco
natural. Levei tudo para a doutora comer, fiquei o tempo todo por
perto. Após finalizar, trouxe tudo para a cozinha, e ela disse que
tomaria um banho para ficar assistindo até pegar no sono. Usei o
espaço para ir à casa da minha mãe, enquanto minha irmã ficaria
com a Aurora.
Prometi que iria ajudar Jade numa atividade da escola e não
faltaria.
Eu estava bem cansado, não tinha conseguido ainda dormir
direito. Era compreensível graças às coisas que vinham acontecendo,
mas logo tudo mudaria.
— Aqui, soma esse número com este aqui…
O braço quebrado da pequena estava imobilizado ainda, e em
breve estaria devidamente recuperado. Por sorte, a mão que usava
para escrever e fazer qualquer atividade estava ótimo, era canhota
assim como sou. Mais uma coisa que a ligava demais a mim, como
se não bastassem os traços físicos e personalidade.
— Tá… Quando vou ver a Aurora? — perguntou.
— Qualquer dia desses, só vamos deixá-la descansar mais, ok?
— Tá bom então, e o bebê?
— Bem protegido na barriga da sua melhor amiga.
Estávamos na sala de estar, ambos sentados no chão. Dona
Gelsa já havia passado por ali para deixar suco e biscoitinhos, que
aceitamos de bom grado.
— O neném vai poder mesmo ficar no meu quarto, papai
Marcelo?
— Vamos ver isso mais para a frente, princesa, pode ser? O
que garanto é que ele, ou ela, vai estar sempre por perto, para que
cresçam juntos e sejam muito parceiros.
— Quero muito isso, muitão! Do tamanho do mundo! — Sorriu
meiga.
— E vai acontecer, pode ter certeza!
— Obrigada, você tem prometido e sempre cumprido com o
que diz.
— Pode ter certeza de que farei muito mais. — Toquei em sua
cabeça com carinho.
— Eu tô muito ansiosa para voltar às aulas de ballet, usar
aquela roupa que me deu.
— Vai ser questão de tempo até que isso aconteça, logo estará
cem por cento.
— Amém… — Riu. — Posso comer mais biscoito, papai
Marcelo?
— Pode sim, inclusive quero um.
Aproveitei mais o momento com a minha filha, e de olho no
celular. Minha irmã ficou de avisar qualquer coisa, e até então não
mandou dizer nada, sinal que tudo bem.
Jade sorriu para mim, e o coração bateu mais forte. Quanto
tempo perdi, e tudo que me restava era continuar correndo atrás do
prejuízo e fazendo valer cada segundo.
Tempo era ouro, e deveria ser bem vivido ao lado de quem
amamos.
SEMANAS DEPOIS
Em uma realidade paralela, teria odiado ficar tanto tempo sem
fazer nada, no entanto as pessoas que me cercavam não me
deixaram nenhum espaço para que pudesse reclamar, uma vez que
se fizeram presente na minha vida, e com toda certeza isso fez toda
a diferença. Receber apoio, carinho e atenção estando em um pós-
cirúrgico foi muito importante.
Marcelo, apesar de passar o dia inteiro no hospital e em alguns
dias virar a noite de plantão, sempre estava perto de mim, fosse
para torrar a minha paciência ou me fazer dar risada.
Podia não parecer, mas o doutor era um excelente palhaço nas
horas vagas.
A convivência diária me fez conhecer uma versão sua que até
então desconhecia, um lado seu mais livre, natural demais,
espontâneo, descontraído, sem ter aquela dose de farpa que
costumávamos trocar. E claro, seus dotes culinários, além de ser
também um excelente dono de casa quando se tratava de outros
afazeres. Pude acompanhar o desenvolvimento da sua relação com a
filha, era de admirar e aplaudir todo seu esforço.
Jade vinha muito ao apartamento e me fazia companhia; em
alguns momentos, seu pai fazia parte. Da última vez brincamos, os
três, de boneca, o que terminou com o rosto de Marcelo todo
maquiado. Foi uma situação bem engraçada e a mãe dele caiu na
gargalhada ao ver as fotos que tirei para registrar. No fim, acabei
tendo o rosto pintado também.
Só de me lembrar disso, meu coração palpitou, até parecíamos
uma família juntos.
Por falar nisso, meus pais não deixaram um dia sequer de vir
me ver, de alguma forma o que aconteceu comigo nos deixou ainda
mais perto. Antes, mantinha mais contato por telefone, até por
conta do trabalho e da distância entre uma casa e outra, mas,
depois da cirurgia, voltamos a ter mais contato, passando por cima
de qualquer barreira. E o mesmo aconteceu em relação ao meu
irmão, Jason, que agora vivia me mandando mensagens,
preocupado comigo e o bebê.
Ele seria um ótimo tio, assim como meus amigos, excelentes
padrinhos.
Fazia pouco tempo, Liam e Mia foram me visitar e trouxeram
um monte de roupinhas de tons claros, as primeiras coisas que meu
filho havia ganhado para compor o enxoval. E, movida pela emoção,
acabei chorando de soluçar feito uma criancinha.
É, todas as lágrimas que não chorei antes agora botava para
fora.
Eu nunca fui uma pessoa muito sensível, mas a descoberta da
gravidez, a cirurgia… Tudo contribuiu para que me tornasse uma
manteiga derretida. Agradeci muito aos meus melhores amigos o
presente, e usaria quando o neném nascesse, com certeza. E, claro,
seriam os padrinhos, nem Marcelo nem ninguém iria tirar o título dos
dois.
Enchi um copo com água e bebi em goles pequenos.
Acordei essa manhã muito enjoada, logo agora que estava
próximo de ser liberada para retornar ao trabalho. Começava a sentir
os sintomas da gestação, que felizmente estava decorrendo bem. Fiz
alguns exames e ultrassom, tudo dentro dos conformes. E, graças a
isso, poderia retornar para a minha vida, mantendo todos os
cuidados necessários, entre outras coisas, que iria levar ao pé da
letra.
O pai do bebê queria me deixar naquele apartamento até o dia
do parto, mas torci o nariz para sua ideia patética, e ainda joguei
umas três almofadas no seu lindo rosto.
Ele não era meu dono nem nada do tipo para querer mandar
na minha vida…
Apesar de estarmos em “paz”, sem brigas, vez ou outra
tínhamos uma teima de leve, só para descontrair o clima e não
deixar a chama se apagar. Sentiria falta disso quando voltasse para a
minha casa. De acordar com uma mesa preparada de café da
manhã, ser paparicada com outros pratos maravilhosos, mimada
com um monte de coisas que nem chegava a usar, maratonar nos
fins de semana os filmes da Marvel e a minha série favorita. Não só
isso, como receber massagem no pé, cafuné nos cabelos… E pensar
que tudo isso vinha do homem que me fizera odiá-lo no começo com
todo meu coração. Dessa sua versão que fazia meu coração bater
acelerado toda vez que ficava perto o bastante, porque seu cheiro
causava um rebuliço no meu estômago.
E nem era de náusea…
Marcelo exalava cheiro de conforto, paz, e sempre que me
abraçava, mesmo contra a minha vontade, quebrava um tijolinho do
muro que construí em volta de mim. E isso era ruim, porque não
queria desenvolver sentimentos pelo pai do meu bebê, não quando
precisávamos ser maduros o suficiente para criar uma criança
separados.
Deixei o copo vazio na mesa, e assim que me virei encontrei-o
parado com uma caixa em mãos, fiquei tão absorta em pensamentos
que nem vi quando chegou.
— Oi — cumprimentou, abrindo um sorriso galanteador e de
lado.
— Oi. — Fiquei sem graça, e olhei direto para sua mão.
— Antes que pergunte, isto aqui é para você. — Aproximou-se
para me entregar.
Agradeci assim que recebi e, quando abri, pisquei os olhos
sem acreditar.
— Não pode ser…
Dentro da caixa havia um pijama cirúrgico que eu usava no
trabalho, só que aquele em especial estava todo personalizado e
colorido como as crianças gostavam, acompanhado do jaleco para
compor o presente.
Uma lágrima escapou pelo meu olho sem que eu tivesse
controle.
Deixei de lado e me aproximei o bastante para lhe dar um
abraço apertado.
Marcelo foi quem ficou surpreso, já que era a primeira vez que
eu tomava iniciativa.
— Caralho… Se soubesse, teria feito antes. — Me abraçou de
volta com carinho.
— Eu amei o presente, quanta gentileza da sua parte, doutor.
— Percebi que estava ansiosa para voltar e tratei de te dar
algo para usar no primeiro dia. — Beijou minha bochecha, e
acariciou meu rosto com a mão. — Enfim vai poder dar continuidade
àquilo que mais ama na vida.
Afastei-me para limpar o rosto.
— Por pouco tempo, se pensar bem…
— Já quero te ver andando pelos corredores com um lindo
barrigão. Não queria dizer isso, mas, já adiantando, vou ficar
terrivelmente excitado…
Fiz careta.
— Não acredito que falou uma coisa dessas! — Balancei a
cabeça para os lados.
— Brincadeira, fofinha… Mas a verdade é que vai ficar muito
linda carregando o nosso filho, que vai nascer do ventre da melhor
pediatra que o hospital terá.
— Bebeu o que para chegar aqui amaciando o meu ego?
— Nada, fiz um voto e não vou colocar mais álcool na boca.
— Sério? Logo você que dá um valor a uma taça de bebida?
— Parei. Cheguei à conclusão de que estou ficando velho, já
sou pai de uma menina de cinco anos, agora vem outro, e ambos
merecem ter um pai melhor.
Eu sorri de canto.
— Muito bem, seus filhos e seus pais agradecem a iniciativa de
milhões. Eu não tenho nada contra quem bebe, inclusive já até
consumi indevidamente, mas sei que a prática exagerada não leva
ninguém a lugar nenhum, só faz destruir e muito.
— Busquei refúgio no álcool muitas vezes, porque não tinha
propósito de vida, Aurora, mas enfim encontrei e preciso lutar
arduamente em prol disso. Jade e o bebê são a minha maior
prioridade daqui para a frente.
Senti sinceridade em suas palavras.
— Encontrei uma mala no corredor, já começou a se organizar
para ir embora?
Engoli em seco, e puxei uma cadeira para me sentar.
— É.
— Aurora, sei que a vida é sua e tudo mais, no entanto não
consigo deixar de pensar no fato de que você poderia ficar aqui. O
apartamento é grande, passo boa parte do tempo fora, como
percebeu nessas últimas semanas.
— Não posso aceitar isso, seria como tirar sua privacidade…
— Fique aqui, por favor. Se quiser, posso até me mudar para o
outro quarto, da frente; não sei se já notou, mas esse apartamento
inteiro é meu. E, sem querer diminuir nada nem ninguém, mas aqui
é o melhor lugar para ficar enquanto está grávida, estarei perto para
te acompanhar onde precisar e cuidar de você.
— Doutor, doutor, não acredito que está me propondo isso…
— Eu é que não acredito que quer me deixar, quer dizer, ir
embora. — Piscou os olhos. — A culpa é toda sua, que me fez ficar
acostumado com sua presença, com a bagunça que faz quando
termina de comer e os copos que ficam perdidos no chão. Fora a
quantidade de cabelos que fica nas fronhas da cama, enfim… — Riu.
— Continua falando que talvez eu acabe voltando para a
minha antiga casa.
— Nada disso, fique aqui, por favor.
— E se eu não quiser?
— Te faço querer…
— Se fizer uma panqueca de carne moída já é um bom
começo.
— Faço mais de dez, basta me pedir.
Gargalhamos juntos.
— Agora, sem brincadeira, não quero que vá, Aurora. Fique
aqui, faça deste lar o seu, fique e me deixe cuidar de vocês… Sei
que pode parecer que não tenho muito a oferecer além disso tudo e
outras coisas materiais, mas, se me der uma chance, só uma, vai ver
que posso ser mais que um rostinho bonito. — Piscou um olho.
— Diz isso como se eu já não tivesse conhecido suas outras
versões.
— Estou torcendo para que tenha gostado de ao menos uma.
— Só o tempo vai te responder.
Ficamos nos olhando, parecia que nossas bocas chamavam
uma pela outra.
— Bom, vou preparar o que a dona desta casa pediu.
— E eu vou guardar o presente que o dono da casa me deu.
Saltei da cadeira com cuidado, e, ao passar pelo doutor, seu
cheiro novamente voltou a me deixar enfeitiçada, senti vontade de
partir para cima e atacá-lo…
Beijar.
Morder.
Droga!
Foi fácil deixar de odiar Marcelo, e mais fácil ainda seria
começar a me apaixonar…
— Se eu não vier atrás, você não tira a bunda dessa cadeira
para ir me ver!
Henry Leblanc passou pela porta da minha sala feito um
furacão. Levantei-me da cadeira para ir cumprimentá-lo com um
aperto de mão e um abraço apertado.
— Bastardo! Não acredito que veio mesmo! — Fiquei surpreso
com sua visita.
Nos afastamos e convidei-o para ir se sentar, enquanto fui
fazer o mesmo.
— Vim, faz dias que te mando mensagem e sou deixado no
vácuo!
— Cara, passei por tanta coisa que não tive tempo de pensar
em nada.
— Sei, sua mãe me atualizou, nem faça essa cara, tive que
apelar para quem podia me dar respostas. E fiquei com mais
vontade de quebrar a sua cara! Como pode me deixar de fora em
uma situação como essa?
— Tudo aconteceu muito rápido, Aurora estava com umas
dores fortes, achava que era uma coisa, e, no fim, se tornou outra
pior… E, no meio disso, um bebê que nem sabíamos que estava
crescendo em seu ventre. — Ajeitei-me na cadeira.
— Meus parabéns antes de mais nada, e sinto muito de
verdade. Como sua mulher está?
— Bem, graças a todos os santos para quem orei. — Senti um
aperto no peito só de lembrar. — A cirurgia foi um sucesso, e o bebê
sobreviveu, para toda honra e glória.
— Ainda bem, mas ainda estou com raiva por ter me deixado
de fora disso. Se tivesse me ligado, teria pegado estrada e vindo lhe
dar todo suporte necessário. Estou aposentado da medicina, não de
salvar o meu melhor amigo, porra!
— Você entende que tudo aconteceu rápido demais? Não
consegui pensar em nada, cara, até hoje não consigo dormir direito.
Acordo toda madrugada para confirmar que Aurora está viva, preciso
ouvir sua respiração para ficar em paz — revelei. — Nada do que
passei chega perto desse inferno que vivi…
— Vejo que tudo não passou de um caso, está com os quatro
pneus arriado!
— Estou, assim como você ficou lá no passado pela sua
cantora apocalíptica — lembrei.
— E como fiquei, Mary era para ter sido coisa de uma noite só,
mas o destino nos pregou uma peça mandando dois bebês, e uma
convivência fez um amor nascer. Tanto que estamos firmes e fortes
até os dias de hoje — falou orgulhoso. — E não sabe o quanto estou
feliz por ver que você achou a tampa da sua panela.
— Ainda não somos um casal, se quer saber. Ela mora na
minha casa agora, mas não temos nada… Estamos mais para duas
pessoas que estão amigas pelos filhos.
— Sabe que na minha vez aconteceu isso, não é mesmo? E
veja como acabou…
— Eu gosto dela, sou homem o suficiente para admitir isso.
Aurora perturbou a minha cabeça no começo de um jeito
devastador, e indiretamente foi me moldando. Se olhar bem, verá
que não sou mais aquele idiota frio de antes, a prova é que
reconheci meu erro com minha filha, e estou lutando todos os dias
pelo amor dela…
— Isso foi lindo de ouvir, fico feliz por isso também. Jade
merece o melhor.
— Merece até além, por isso nunca vou desistir. E,
continuando, sinto que Aurora me deu um empurrão para melhorar
certos aspectos que ficaram adormecidos com o passar do tempo,
sabe? Reconhecer, acertar, e buscar melhorar, passando por cima do
passado e de tudo de ruim.
— Você a ama.
— Oi?
— Você a ama, porra.
Neguei com a cabeça.
— Não, gosto dela, e esse é um sentimento diferente.
— Idiota, você está completamente apaixonado e amando!
Ama muito. Foi capaz de passar por cima dos seus medos, engoliu o
orgulho, se reencontrou, buscou ser um pai de verdade para sua
filha, se envolveu depois de anos na solidão… Coisas assim só são
possíveis de acontecer quando existe amor por trás.
— Acho que está exagerando, ex-doutor Henry.
— Está escrito na sua testa, estampado no seu olhar, só
precisa ter coragem para falar em voz alta e dizer para a sua
mulher! Espero que faça isso antes, a vida é cheia de surpresas
inesperadas da noite para o dia.
— Sim, sei disso…
— Você já passou por muitas fases, Marcelo, e essa vai tirar de
letra.
— Me diz qual é o milagre pelo qual sua esposa não está aqui?
— Ela foi em busca da mulher que conquistou seu coração.
— Como assim, porra?
— Mary viu uma foto dela com Jade, será fácil achar por aqui,
pois, pelo que soubemos, já está trabalhando, não é mesmo?
— Sim — confirmei.
— Mais uma vez, estou feliz por você e nunca mais me deixe
no escuro.
— Pode deixar, seu cabeça-dura. Inclusive, desculpa por isso…
— Só vou te desculpar se vierem passar o fim de semana na
casa de campo.
— Vou pensar com carinho, claro, se Aurora quiser também.
— Nem acredito que estou te vendo vir para meu time de
homens apaixonados.
— Veja bem, você foi primeiro, e como é uma péssima
influência, me chamou…
Gargalhei com sinceridade.
— Somos tipo o joio e o trigo. Meio bom, meio ruim —
completei.
— Praticamente, só que você sempre foi a semente estragada
da plantação.
Dei de ombros.
— Fui, no entanto estou me tornando um homem de família.
— Está, e enfim posso deixar de me preocupar com você,
bastardo.
— Tem que se preocupar com meus afilhados, que estão
crescendo, inclusive onde estão?
— Não foi dessa vez que deu certo trazê-los, tiveram que ficar
em casa com a babá.
— Uma pena — comentei.
— Mais um motivo para vir nos visitar.
— É verdade.
Ficamos conversando por um bom tempo até o dever me
chamar.
Era bom rever meu melhor amigo.
Horas mais tarde, em casa e preparando uma salada para
compor a refeição, ouvia Aurora contar do encontro que tivera com a
esposa do meu amigo. Mary a abordou no corredor, sem mais nem
menos, puxou para uma sala e ficaram conversando.
— Pensei de cara que era uma paciente maluca, sabe? Tentei
manter a calma porque um simples susto pode ser muito ruim para
o meu bebê.
— Nosso — corrigi. — Mary é doidinha, sinto muito por isso.
— Pior que não, conhecendo mais de perto dá para ver que é
gente boa, muito carinhosa, conversadeira e teceu elogios para
você, acredita?
— Ela é minha amiga, nunca seria capaz de falar mal de mim.
— Riu baixo.
Terminei o preparo, e fui dar mais uma olhada nas panelas.
— Pensando por esse lado… Enfim, gostei dela.
Lavei as mãos para me virar para a garota que me encarava
sorridente.
— Esqueci de dizer que nos convidaram para um final de
semana na casa de campo. O que acha? — comentou a respeito do
que eu já sabia.
— Só se quiser, é uma viagem bem longa, precisa saber disso.
E acredito que talvez seja bom esperar um pouco mais, sabe? Ainda
é tudo muito recente.
— Verdade, ainda tem isso…
— E como foi seu retorno?
— Muito bom, a gente só dá valor a uma coisa quando precisa
ficar afastada dela. Nossa, senti falta de tudo, dos atendimentos, das
crianças, em resumo, de tudo mesmo.
— Aproveite cada momento, porque em breve até caminhar
será difícil…
Aurora fez careta.
— Eu deveria mandar cortar seu pau por ter me engravidado
no auge da residência.
— Diz isso agora, mas no dia chorou por cima e por baixo. —
Pisquei um olho.
Joguei um pano de prato para ela segurar, e jogou de volta em
mim.
Riu baixo.
— Está sendo tão ruim assim carregar o nosso filho?
— Carregar um feijãozinho, né? Porque ainda é
pequenininho…
— Não chame nosso filhote assim, poxa. — Fiz um bico com os
lábios.
Aurora revirou os olhos, aproximei-me devagar, ficando em sua
frente.
— Como disse, é nosso, então posso chamar como eu quiser.
— Então posso chamá-lo de filhotinho de onça? Já que a mãe
é quase uma…
Ganhei um soquinho de leve no estômago, e só não ganhei
mais porque segurei em suas duas mãos, acabamos dando risadas,
e nossos lábios se encostaram. Os rostos ficaram nivelados, a
respiração começou a ficar lenta, e fechamos os olhos juntos.
— Aurora…
— Marcelo.
— Eu quero te beijar — revelei. — Preciso. Por favor.
— Por que sempre tem que implorar para me beijar? —
sussurrou baixo.
— Sinto que preciso fazer isso, e, por mim, imploraria a vida
inteira.
— Gosto quando faz isso…
— Posso, por favor, te beijar, minha darling?
— Que conversa fiada… É assim que se faz.
Aurora agarrou meu pescoço e me beijou.
Confesso que naquele momento quase chorei de emoção. O
toque dos seus lábios sobre os meus, seu sabor único, a forma como
nos encaixamos, parecia tudo tão certo, perfeito, como se fôssemos
feitos um para o outro; isso era o que diziam ser a oitava maravilha
do mundo. E a minha estava ali, envolvida nos meus braços.
Era ela.
Aurora.
— É sério, todo dia quando acordo fico processando que a
minha amiga do coração estava enrolada até o talo com o chefe…
— Percebi só pelo jeito como ele ficava olhando para ela o
tempo todo.
Peguei um morango e levei até a boca, ignorando os
comentários de Liam e Mia. Os dois pareciam os bobos da corte, e
que tiraram o dia para tirar a minha paciência.
— Bem que dizem que ódio e amor andam lado a lado, e
nesse caso resultou até em um bebê. Quem podia prever algo desse
nível? Estou chocada até agora…
— É o que acontece quando duas ficam além de beijos, loira.
— Logo a nossa mascote, quase uma santa e que chamava o
doutor até de geladeira Electrolux?
Revirei os olhos.
— Sabiam que estou aqui? — decidi falar, enquanto mastigava
a fruta. — E eu bem certa de que vocês estavam do meu lado, mas
só esperaram a minha recuperação para começar com as
brincadeirinhas idiotas. Sabe que posso muito bem escolher outros
padrinhos para o bebê, não é mesmo?
— Nem ouse fazer isso, amiga, te proíbo até de pensar numa
coisa dessas…
— Então parem de ficar falando essas coisas, ainda mais na
minha cara. — Estreitei os olhos e tentei soar ríspida.
— Aurora, não faça isso, estou guardando umas economias até
para comprar um presente bem maneiro para o meu afilhado. Se for
um menino, sei o que darei, mas se for menina… Estou pensando…
Fuzilei Liam com o olhar, e gargalhamos em seguida.
Aquela conversa estava bem irritante, mas em nenhum
momento levei para o coração, nem mesmo cogitei ficar magoada
pela forma como falavam sem parar. Meus amigos e qualquer outra
pessoa do meu círculo tinham o total direito de comentar a respeito
do meu envolvimento com Marcelo, que aconteceu às escondidas e
só veio a público porque precisei me submeter a uma cirurgia.
Uma de que nunca iria me esquecer…
Eu me sentia bem, a recuperação fora bem tranquila graças a
todo atendimento que recebi, o procedimento fora um sucesso, e o
bebê que crescia em meu ventre também ia muito bem. Em alguns
dias faríamos outro ultrassom, além de exames rotineiros por
precaução e segurança. Em geral, vinha me cuidando
adequadamente, desde alimentação a exercícios, até comecei a
fazer acompanhamento psicológico e foi de fundamental
importância.
Não posso esquecer que Marcelo cuidava muito bem de mim e
do nosso feijãozinho. Provinha tudo que podia nos oferecer de
melhor, além da sua presença, paciência, cuidado e proteção,
confesso que passei a amar a sensação de ser paparicada.
Desde que nos beijamos, meio que nos tornamos um casal,
ainda que não tivéssemos colocado nenhum rótulo. Apenas
dormíamos juntos, e fazíamos um monte de outras coisas bobas que
namorados costumam fazer, como ver filmes clichês juntos, fazer
refeições juntos e, claro, vir de mãos dadas ao trabalho.
É… Na primeira vez fiquei morrendo de vergonha, mas deixei
para lá. A essa altura do campeonato, nada mais importava, cada
um que pensasse o que quisesse. Éramos pais de uma criança que
em breve iria nascer, nossas famílias e amigos sabiam, então
qualquer pensamento contrário não cabia dentro dessa equação
nem tinha valor.
— Amiga, sabe que estamos brincando, não é mesmo? Você é
adulta, pouco importa o que fazia ou deixava de fazer pelas nossas
costas. Até porque o que fez não chega perto das coisas que
fazemos… — Riu, piscando o olho. — O que precisa saber é que tem
e sempre terá o nosso apoio, ok?
— Exatamente, Aurora, somos seus amigos e vamos sempre
estar aqui.
Dei um sorriso sincero.
— Eu sei que sim, e não sabem o quanto sou grata por todo
esse apoio.
— Retribua não pensando em dar outros padrinhos para o
bebê, viu? Se fizer isso, tanto eu quanto Liam vamos dar um jeito de
roubar a criança quando nascer.
— Quero ver se vão dar mais que presentes. — Peguei mais
fruta para comer. — Vou precisar de ajuda para banhar, trocar fralda
e um monte de coisinhas.
— Faço isso sem pensar duas vezes. Tudo que precisa é
separar um quartinho para mim e Liam, assim podemos te dar
suporte durante o puerpério, não é, doutor?
— É, sim, vamos fazer tudo que nos pedir, Aurora.
Não contive a risada.
— Nem acredito que vou ter a chance de dormir a noite toda
em paz, já que meus melhores amigos vão bancar a babá e cuidar
do meu filho.
— Vamos, sim, pode ter certeza, amiga.
— E assino embaixo, Aurora. Conte conosco.
Balancei a cabeça em negativa.
— Agora mudando um pouco o assunto… Amiga aquele seu
irmão é um saco! Acredita que esses dias ele me atrapalhou em um
atendimento? Juro que quis matar o idiota com as minhas próprias
mãos.
— Devo concordar, Mia, Jason não é um ser humano
maravilhoso… Porém, depois do que aconteceu comigo, meio que
vou passar um tempo sem xingá-lo. — Fiz careta.
Liam precisou se levantar, tinha que voltar ao trabalho na
cardiologia, deu um beijo carinhoso em nossa testa antes de ir
embora.
— Ai, não, Aurora, só falta dizer que vai idolatrar aquele neuro
chato…
— Não me diga que já pegou ranço do cara com que queria
ficar. — Franzi o cenho.
— É outro que é um pé no saco, parece que ninguém se salva
neste hospital.
— Sei, e o nosso amigo que acabou de sair daqui? Esse não
conta?
— Como bem disse, somos amigos… E isso já diz tudo!
— Mas isso nunca impediu de vocês brincarem de casinha,
pega-pega.
— Já ouviu falar sobre amizade colorida, só acontece isso e
nada mais!
— E por que não pode se tornar mais que isso? — questionei,
curiosa.
— Vou deixar para te responder outro dia, o seu doutor
geladeira vem aí…
Olhei de relance para o lado, observando Marcelo se aproximar
em passos lentos.
Meu coração ficou apertado.
— Disfarça mais que está apaixonada, amiga.
— Eu? O quê? — Tentei fingir que não tinha entendido o que
havia falado.
— Olá garotas, e olá minha pediatra e buchudinha.
Fiz careta.
Minha amiga cumprimentou de volta, aproveitou para se
despedir e ir embora.
— Que bom ver que está comendo direitinho, melhorou?
Marcelo puxou uma cadeira para se sentar do meu lado.
— Passou, estou seguindo as dicas da obstetra e tem dado
muito certo.
— Nem menciona essa doutora, porque ela e seu irmão estão
me dando dor de cabeça. Parece que nenhum dos dois consegue
trabalhar juntos. — Soltou uma lufada de ar. — Já posso cogitar
substituir um dos dois?
— Seria uma grande pena, se quiser posso conversar com
Jason depois.
— Se fizesse isso iria me ajudar muito, estou lidando com
algumas pendências e perder um dos dois seria algo totalmente fora
de cogitação no auge da semana.
— Pode deixar que assim que terminar o meu trabalho vou
atrás dele.
— E o bebê? — perguntou carinhosamente.
— Bem aqui dentro da minha barriga…
— Estou ansioso para o nascimento, e Jade mais ainda. Só fala
nisso.
Sorri de canto.
— Mais tarde vou te deixar em casa e passarei na casa dos
meus pais, tudo bem? Minha filha quer muito me mostrar o que
ganhou de presente do meu amigo Henry e a esposa — comentou, e
pegou na minha mão.
— Se quiser posso ir sozinha, não precisa se preocupar.
— Faço questão de te levar, minha darling.
— Desde quando me tornei sua? Agora só fica me chamando
assim…
— Sempre foi, até quando me odiava com todo o coração.
— E quem disse que parei de odiar?
— Parou quando te engravidei, acho que essa é a prova de
que nunca foi ódio de verdade. Como pode um sentimento ruim
gerar um milagre da vida?
— Bom, pensando por esse lado…
— Continuamos essa conversa mais tarde, o que acha?
— Vou ficar te esperando enquanto assisto a minha série
favorita.
— Não sei como não consegue se cansar daquilo, é tanta
temporada que já me perdi.
Gargalhei.
— Eu particularmente amo e vou assistir a quantos episódios
fizerem.
— Por mim, pode ficar à vontade. — Apertou a minha mão,
levando-a até sua boca para dar um beijo. — Se cuida e qualquer
coisa me chama.
— Pode deixar, doutor.
— Nos vemos por aí, doutora.
Trocamos um sorriso, e ele foi embora.
Será que Mia estava certa e estou com cara de quem está
apaixonada?
Marcelo insistiu em me levar até a casa dos pais para ver a
Jade, mas me sentia cansada, enjoada e achei melhor ir outro dia,
quando estivesse melhor. Antes de partir, fez questão de me deixar
bem acomodada no apartamento, e comprou o meu jantar, já que
não teria tempo para fazer. Eu não tinha nenhuma disposição para
cozinhar. Tudo que fiz foi tomar um banho, vestir um pijama e
degustar a comida largada no sofá, vendo um episódios de “Grey's
Anatomy”.
Só sei que, quando terminei de comer, tirei um cochilo. Acordei
com o pai do meu filho já em casa, banhado e devorando um pote
de chocolate.
— Oi.
Pisquei os olhos.
— Dorminhoca. — Veio se sentar ao meu lado. — Cheguei,
falei e não ouviu. Aproveitei que estava no terceiro sono para tomar
um banho e comer.
— Fez isso tudo enquanto eu dormia? Céus, e que horas são?
— Quase meia-noite, e a minha mãe e Jade mandaram um
beijo.
Agradeci com um sorriso.
— Por que não me dá um pouco desse doce?
— Depende, quer na colher, ou provar na minha boca?
— Do jeito que for suficiente para saciar meu desejo.
Marcelo encheu bem a colher e levou até meus lábios.
— Aqui, minha darling.
Devorei no mesmo instante, e fiz um barulhinho com a boca
de aprovação.
— Ainda não me acostumei com você me chamando de minha
para lá e para cá.
— Pois precisa, porque em pouco tempo vai ser a minha
esposa…
— Desta vez você sonhou bem alto, doutor Marcelo.
— Sonhos se tornam realidade, e por isso sei que vai
acontecer.
— Nem cheguei a ser sua namorada, já me quer como esposa.
Apressado…
— Posso pedir sua mão, basta me dar carta-branca. Ainda não
fiz isso porque sei que poderia te assustar — sussurrou baixo. —
Sem falar no medo de receber um belo não.
— Logo você com medo? Essa é outra novidade…
— Então posso te pedir em namoro?
— Depende da sua capacidade de aguentar a resposta.
Coloquei a colher novamente no pote e enchi com o chocolate.
— Aurora, Aurora, você é um cubo mágico que estou amando
desvendar. É um desafio, e a coisa mais extraordinária que
aconteceu na minha vida.
— Só faltou dizer que está apaixonado.
— E eu estou, só você que é lerdinha demais e não notou.
Abri a boca para responder, e ele me beijou, tomando tudo de
mim… Ah!
— Ainda não acredito que vai fazer isso…
Henry estava vestido de palhaço para um pequeno evento que
aconteceria na área da pediatria. Havia muitos pacientes internados,
uma parte em tratamento de câncer. Naquele dia, em especial,
haveria um momento bem dinâmico para distrair os pequenos, e era
claro que a minha mulher estaria marcando presença. Foi graças a
isso que tive a brilhante ideia de pedir sua mão em casamento.
Eu sei que era um pouco precipitado, mas, como já havíamos
pulado algumas etapas, e sentia dentro do meu coração que era a
mulher da minha vida, não vi razão para esperar mais. Ficaríamos
noivos se ela me dissesse sim, e aproveitaríamos o tempo para nos
conhecermos mais ainda, até que enfim viesse o nosso casamento.
— Tem certeza mesmo? — meu melhor amigo perguntou.
— E como! — garanti com um sorriso.
Tive muitas dúvidas ao longo da vida, errei, fui do Céu ao
Inferno, e tudo que passei só serviu para me preparar para me
tornar o que sou. Na verdade, essa era a minha melhor versão, o
que buscava ser o melhor no que fazia, um pai presente, dedicado, e
um parceiro perfeito que a mãe do meu filho merecia ter para
sempre ao seu lado.
Não completamente perfeito, mas me esforçaria diariamente
para ser…
Desde o dia em que comentei com Aurora sobre a ideia do
pedido de namoro, não voltamos a conversar sobre, pois achei
melhor arquitetar um plano para que fosse um momento épico. Foi
assim que criei um grupo com meus amigos, Henry, Jason; até Mia e
Liam marcaram presença. Discutimos algumas possibilidades para
que ficasse ao nível e não houvesse nenhum erro.
No fim deu tudo certo.
Eu estava com a roupa de médico, rosto pintado de palhaço e
tinha em mãos um violão. Passei as últimas semanas ensinando uma
música que ousaria cantar. Era fato que não tinha o dom para ser
cantor, mas arriscaria em prol do momento.
— Eu sei que sim, idiota. E não sabe o quanto estou feliz por
fazer parte disso!
— Obrigado por ter vindo. Estou tão ansioso que as pernas
estão até tremendo.
— Tente ficar calmo, ou vou ter que aplicar um remédio na sua
veia.
A porta da sala foi aberta, Jason entrou e estava com o
mesmo figurino.
— O que você não me pede sorrindo que não faço chorando?
Cara, estou horrível.
Gargalhei.
— Até que não, esse chapéu na sua cabeça ficou perfeito —
comentei, rindo.
— É bom se adiantar, o pessoal já está por lá esperando as
atrações…
— Só vou tomar um pouco de água e partimos.
— Espero que a minha irmã diga sim, ou vou me odiar para
sempre por ter me vestido de palhaço à toa.
— Ela vai dizer, sim. Aurora é fechada, nega o que sente por
ser durona demais, mas sei o que sente por mim, está presente em
cada gesto e olhar.
— É bom mesmo, termina aí para irmos dar um show de
horrores.
Revirei os olhos.
Caminhei até o banheiro para dar uma última olhada antes de
ir.
Era hora de tirar do papel tudo que planejei nos mínimos
detalhes.
Aurora estava distraída com as crianças, enchendo alguns
balões e fazendo pinturas de rosto. O pessoal que contratei para
fazer uma apresentação já havia terminado, e a próxima atração
seria a minha. Movida pela neblina do momento, ela nem notou
quando ajeitei bem o violão na mão e comecei a tocar. Tudo tremia
por dentro, até porque era a primeira vez que estava fazendo aquilo,
mas me mantive forte e focado.
Cantarolei a letra, One Less Lonely Girl, do seu cantor favorito,
o Justin Bieber.
— Mas chega disso. Se você me deixar entrar no seu mundo…
Vai ter uma garota solitária a menos.. Oh. Eu vi tantos rostos bonitos
antes de te ver. Agora tudo o que vejo é você. Eu estou indo atrás
de você…
A pediatra finalmente me notou, e deram espaço para que
viesse até mim.
— Não preciso destes outros rostos bonitos. Como preciso de
você. E quando você for minha, nesse mundo. Vai ter uma garota
solitária a menos…
Pisquei um olho para a minha garota, que encarava incrédula.
— One less lonely girl.. There's gonna be one less lonely girl…
Algumas crianças começaram a bater palmas, nem percebi
quando uma lágrima escorreu pelo meu olho. Puxei uma respiração
funda antes de terminar de cantar.
Mais aplausos.
Entreguei o violão para Henry, e caminhei até a minha
gravidinha. Fiz outra coisa inédita, que nunca pensei fazer na vida,
mas, com Aurora, tudo era diferente, único e inesquecível; fiquei de
joelhos e puxei uma caixinha do bolso do jaleco.
— Não tente me matar, por favor… Eu sei que você tinha uma
lista com um monte de motivos para me odiar, mas esses dias achei
esse caderno no chão e lá estavam também motivos para me amar.
E, quer saber? Não sabe o quanto amei ler cada um, me senti o
homem mais realizado e perfeito do mundo. Acho que ninguém além
dos meus pais enxerga tantas coisas boas em mim como você,
darling. Foi graças a sua chegada na minha vida que pude
reconhecer meus erros, e pude ter força para consertar algumas
coisas. E olha que, em nenhum momento, me pediu isso, tudo que
fez foi me odiar e me dar um sorriso cínico.
Só ouvi alguns risinhos ao nosso redor.
— Acho que já sabe que sou apaixonado, mas não sabe de
fato o quanto sou… Porque olha que sou muito, minha Aurora. Tanto
que estou aqui, em meio ao que você mais ama na vida, que é estar
rodeada por essas crianças iluminadas. Então, na presença dos
nossos amigos e do nosso filho em seu ventre, peço sua mão. Eu
quero que seja minha namorada, esposa, senhora da minha vida
para sempre.
— Marcelo, e-eu… É um pedido de casamento?
— É, ainda não percebeu? Será que terei que cantar
novamente? — Gargalhei.
— Seu… — Estreitou os olhos cheios de lágrimas.
— Quer se casar comigo, minha darling?
— E eu tenho outra saída? É claro que aceito!
Todos bateram palmas.
Peguei a aliança dentro da caixa e coloquei no seu dedo. Em
seguida dei um beijo demorado nele. Assim que me levantei, beijei
sua testa em respeito a todas as crianças ali.
— É agora que fingimos ser Meredith Grey e Derek Shepherd?
— sussurrou.
— Vamos prometer aqui perante todos? — Acariciei seu rosto
com uma mão.
— Sim.
— Então vou começar, eu prometo te amar para sempre, te
irritar todos os dias, mas só quando for necessário, e arrumar as
bagunças que você deixa por toda a casa.
— Prometo puxar sua orelha sempre que tirar minha paciência,
e jogar um pano de prato na sua cara toda vez que me fizer comer
azeitona… — Riu baixo.
— Sendo assim, vos declaro marido e mulher!
Jason decretou, e as crianças presentes bateram mais palmas.
Nos abraçamos apertado, e beijei tanto sua testa quanto a
barriga.
Foi um momento especial, que iria contar para nossos filhos no
futuro.
O sorriso não cabia no rosto.
A felicidade nos encontrou, e tudo graças às consequências da
nossa última noite.
— Bom, eu sei que é natural ficar assim, mas… É estranho,
não? Até semanas atrás só havia uma pele lisa e fina, agora tá meio
assim, grandinha, isso!
Parada de frente para o espelho, fiquei analisando a barriga,
que decidiu criar um volume. Nem era pela quantidade de comida
que eu comia, mas sim dando evidências de que meu bebê estava
começando enfim a crescer e ganhar forma. Sorri largo.
— Continua belíssima, darling. Vem cá para eu te encher de
beijos, vem.
Fiz careta, virando-me para o meu noivo, é, estranhamente
éramos noivos.
Ainda me pegava pensando que Marcelo aproveitou um
momento descontraído, justo quando a minha cabeça estava focada
em qualquer outra coisa menos nele, para pegar um violão e
começar tocar um clássico do meu ídolo da adolescência. Toda
menina lá nos anos dois mil adoraria ter sido uma garota One Less
Lonely Girl, e pude viver isso, no entanto de uma forma bem
diferente. Fui pedida em casamento perante os pacientes mirins,
nossos amigos e uma parte do hospital, que viu tudo.
Céus…
Depois disso, fiquei morrendo de vergonha, mas nem dei a
devida atenção, afinal havia uma aliança na minha mão, um homem
que se mostrava determinado e preparado para me amar até meus
cabelos começarem a ficar brancos. Isso por si só era um grande
motivo para ficar feliz, e não tímida pelo que iriam pensar. Ter um
amor, uma pessoa para compartilhar a vida, nunca me soou
atraente, até enfim me permitir me envolver com o doutor que
bagunçou meus dias e me deu um bebê.
Esse foi o maior presente…
Mais tarde, aconteceu um jantar de família, que meu noivo
organizara, e só tive conhecimento na hora em que chegamos ao
restaurante. Foi outro momento bem emocionante. Ele fez o pedido
novamente e, claro, pediu minha mão para o meu pai, que, apesar
de emocionado, disse que sim. Jade foi a que mais ficou feliz, saltou
de felicidade e nos encheu de beijos com abraços.
Aquela garotinha era uma verdadeira luz, por onde passava e
tocava. Nunca vou me esquecer do dia em que orou na minha
barriga, pediu pela vida do irmão e a minha. Fizera com tanta fé,
compaixão e humildade que os anjos do Céu devem ter ouvido.
Eu me sentia muito feliz por ver o avanço do Marcelo com a
pequena, isso só mostrava que a disposição para recomeçar, perdoar
e se permitir é um passo extremamente importante e essencial.
— Você já me beijou o bastante, tanto que ainda estou
dolorida. — Estreitei os olhos, cruzando os braços em frente à
barriga.
— Eu quero mais, não consigo te ver pelada e não ficar de pau
duro… Vem logo!
— Vou nada, doutor gostosão, quero uma pausa de cinco
horas, por favor.
— Por quê? Já estou pronto para ordenhar leite dentro da sua
bocetinha.
Gargalhei, achei engraçada a forma como falou.
— Me poupe e nos poupe, doutor. — Pisquei um olho.
— Não faz isso, minha darling. Vem que vou te dar o que tanto
deseja…
— O que eu queria já consegui, pode ter certeza. Devo
lembrar que foram mais de três vezes seguidas? Minha boceta meio
que está dolorida…
— Meio? Então é hora de deixá-la completamente, terminar o
serviço, sabe?
Minha libido aumentou depois dos três meses. Acontecera
tanta coisa de uma vez só que a coisa que menos passava pelos
meus pensamentos era transar, mas, como tudo foi se encaixando
em seu devido lugar, comecei a relaxar e então veio a vontade
intensa. Desde então, nossas noites vinham sendo bem quentes,
ardentes e com muitos orgasmos. Marcelo foi o que mais adorou,
estava com testosterona alta para gastar, tanto que não conseguia
manter as mãos longe de mim.
Caminhei até a cama, e fui puxada com cuidado pelo meu
noivo pelado.
— Já te falei o quanto é linda hoje?
— Só umas cem vezes. — Me acomodei em seu colo, passando
as mãos em volta do seu pescoço.
Marcelo beijou meus lábios com delicadeza e sorriu.
— É porque é verdade, tenho a noiva mais linda, perfeita e
gostosa. Sou um homem de sorte, não acha?
— Muito. Não é todo babaca que pode ter uma mulher desse
nível. — Riu baixo.
— Sempre com o ego lá em cima, não é, doutora Jones?
— Só falo a verdade, contra fatos não há argumentos, doutor
gostosão.
— Eu deveria te comer agora mesmo para acabar com essa
marra.
— Hum, e por que não faz? — Mordi seu lábio com força.
Apesar de estar levemente ardida, minha boceta começou a
pulsar e escorrer.
Marcelo atacou a minha boca, senti seu pau duro cutucar a
minha entrada; não demorou muito para ajustar as posições e
encaixar pouco a pouco. Gemi, era sempre uma sensação deliciosa
tê-lo dentro de mim, me tomando por inteiro.
Nossa.
— Gostosa, estava fugindo de mim, mas a boceta, pegando
fogo…
Voltou a reivindicar meus lábios, mãos em volta da minha
cintura, enquanto metia por baixo e eu quicava por cima, uma dança
sensual, erótica e muito deliciosa.
Eu estava sensível demais, cada metida, socada, dava a
sensação que a qualquer momento iria derreter. Rompi o beijo para
poder jogar a cabeça para trás e gemer. Marcelo abocanhou meus
seios, mordeu, chupou, brincou com os bicos.
Apoiei-me em seu peitoral, comecei a descer mais rápido, e
meu noivo estocava de encontro; naquele ritmo intenso não iríamos
demorar para encontrar o ápice.
— Puta que pariu, deliciosa demais!
Sua boca se fechou no meu bico, mamou com tanta força que
jurei ter visto estrelas. Marcelo sabia que eu amava ser tocada ali,
causava um rebuliço no meu ventre, deixando-me ainda mais
excitada. Tanto que rebolei fundo no seu pau como se não houvesse
amanhã, rápido, com força, recebendo o máximo que conseguia.
Um gemido cortou minha garganta.
— Caralho…
Explodi em um orgasmo e o meu noivo veio me
acompanhando.
— Porra!
— Agora sim, vou ficar mais de vinte e quatro horas longe do
seu pau.
— Se reclamar mais uma vez, como sua boceta agora mesmo!
Gargalhei e ele veio me beijar, dessa vez mais lento e
apaixonado.
Aproveitamos o domingo para passear com Jade. Fomos a um
parque aquático, e fora uma diversão que só. A menina brincou com
pai até não aguentar mais. Até tentei participar um pouco, mas o
enjoo me pegou. Fiquei quietinha tomando um suco e mascando
uma bala de menta. Tirando essa parte, foi muito bom.
Um momento bem descontraído, em que cada vez mais ambos
se entendiam. E, de fato, era muito lindo ver de perto Marcelo se
descobrindo pai, errando, acertando, avanços sinceros pelos quais
merecia todo aplauso e reconhecimento. A pequena estava feliz
como nunca e, aos poucos, aquele vazio que um dia vi em seu olhar
dava espaço para outro sentimento. E isso era ainda mil vezes
melhor.
— Viu o quanto ela ficou feliz?
Chegamos em casa e corri para o banheiro, bexiga à beira de
explodir.
— Vi, sim, os dois se divertiram e foi ótimo! — respondi,
sentada no vaso.
— Você também, darling. Jade gosta muito de você.
— E eu não sei disso? Acho que ela foi nossa cupido mirim.
— É verdade, disso não me restam dúvidas…
Terminei, e fui logo tirando a roupa para tomar um banho.
— Eu posso entrar nesse boxe com a minha noiva?
— E quando é que você não entra?
Marcelo deu de ombros, entrando no banheiro, e vindo me
abraçar por trás.
— Não sei se gosto mais desse seu perfume, ele me causa
embrulho no estômago.
— Será que foi por isso que ficou enjoada no passeio?
— Talvez, agora se afaste, ou vou vomitar…
— Não acredito que não vou mais poder usar meu perfume,
custou caro.
— É bom jogar fora, ou sou capaz de pedir a separação antes
de nos casarmos.
Tapei o rosto com a mão.
— É forte demais, esse cheiro amadeirado me faz… — Não
terminei de falar.
Uma onda de náusea tomou a minha boca e coloquei tudo
para fora.
— Tudo bem, amor, você venceu. Vou me livrar desse
perfume, agora vem cá.
No final da nossa noite, meu noivo, cuidando de mim, limpou
tudo, me banhou com toda paciência que só ele tinha. Em seguida,
tomou seu banho para depois pegar uma caixa, retirando do quarto
o frasco caríssimo, que me deixara terrivelmente nauseada.
— Agora tente descansar, princesa…
Um beijo carinhoso na minha testa, abri um sorriso de lado,
morrendo de sono.
— Obrigada… — ainda consegui sussurrar.
— Não me agradeça. Eu te amo…
Escutei, mas não sabia dizer se ouvira bem, logo em seguida
adormeci.
— Obaaaa, você veio mesmo!
E como não vir? Jade iria se apresentar depois de uma
temporada longe do ballet, e sob hipótese alguma eu faltaria. Fui
tomado por lembranças da última apresentação, em que fiquei de
lado devido às escolhas erradas que fiz. Aquela era uma página
virada, minha filha me dera uma nova chance e estávamos iniciando
um ciclo positivo, com certeza apenas o começo de grandes coisas.
— Vim sim, princesa. — Abri um sorriso largo.
Fui surpreendido quando abraçou a minha perna, me abaixei
para devolver o abraço.
— Nossa, tô muito feliz! A princesa Aurora não vem?
— Vai vir mais tarde, tinha que cumprir um horário no hospital,
sabe? Cuidar de algumas crianças da sua idade que precisavam de
atendimento, entende?
— Entendo sim, até porque quero ser uma… Pediatra, isso!
— E vai ser a melhor, não me restam dúvidas, princesa.
Jade era um poço de luz, bondade e amor, como a minha
noiva linda costumava falar. Eu nunca vou me perdoar por ter ficado
ausente por tantos anos, houve perdas irreparáveis, tudo que
restava era aproveitar o presente e o futuro.
Tinha pleno conhecimento de que mais para a frente iria ter
que conversar sobre sua mãe, contar como consegui sua guarda e
impedi que a vadia tivesse qualquer contato. É importante lembrar
que só fiz isso levando em consideração que aquele ser desprezível
não queria mesmo cuidar da menina, e sim colocá-la para adoção.
Não posso esquecer que, no auge dos sete meses, tentou provocar
um aborto, mas essas coisas horríveis a minha filha nunca iria saber.
Apenas o necessário, e ponto.
Jade não merecia saber dessas coisas horríveis.
Eu não me arrependo de nada do que fiz, tomei a guarda,
entreguei a menina para meus pais criarem enquanto estava sem
condição psicológica para isso, e ainda garanti que a vadia fosse
para o mais longe possível. Pelo que sabia, Isabella estava na
Turquia, arrumara um trouxa por lá e nem sonhava em retornar ao
país. Sua vida se resumia em encontrar homens e mais homens. No
que dependesse de mim, Jade nunca teria o desprazer de saber que
aquela mulher imunda era sua mãe.
Isso nunca.
— Estou ansiosa, treinei muitão, mas ainda tô com medo de
errar, é normal isso?
— Sim, querida, mas tenho certeza de que vai conseguir se
sair muito bem! — Fiz um carinho em seus cabelos. — Fez sua parte
e isso diz muito sobre sua capacidade!
Minha filha sorriu.
— Eu tô mesmo feliz que você veio, dessa vez como meu pai
de verdade.
— Estou mais ainda, princesa, e nunca saberá o quanto. Fui
muito babaca, ausente e distante, mas saiba que tentarei entregar o
meu melhor daqui para a frente. Quero e vou fazer parte de todas
as etapas da sua vida — selei uma promessa, que já vinha
cumprindo nos últimos meses.
Uma parte de mim se dedicava ao trabalho, em atuar como
chefe, médico e cirurgião. Outra existia apenas para Aurora, a
mulher da minha vida e mãe do meu filho. Já este, tinha uma parte
especial em meu coração, assim como minha filha, Jade, e aos dois
eu fazia questão de dedicar uma grande parte de mim. Desde que
coloquei na cabeça que precisava mudar, vinha me esforçando para
estar presente, fizesse chuva ou sol, cansado ou não. No final das
contas, estar rodeado das pessoas que amava fazia toda a diferença,
e meus esforços se tornavam completamente válidos.
— Vou ficar na primeira fila junto dos seus avós para te
aplaudir bem forte!
— Vai mesmo, papai Marcelo?
— Com toda certeza.
— Promete que a princesa Aurora vai vir mesmo?
— Ela te ama e vai vir, sim, nem que chegue um pouquinho
atrasada.
— Não tem problema, eu entendo, é o trabalho dela e no
futuro será o meu!
— Quero estar vivo para prestigiar essa sua fase, vai ser
sensacional, princesa.
— Vai, sim, papai Marcelo!
Dei outro abraço apertado na minha filha e um beijo em sua
testa. Logo se despediu, era hora de retornar para a sala onde
estavam os colegas de ballet.
— Ela está tão feliz que você veio…
Virei-me para encontrar minha mãe junto do meu pai, ambos
sorriam largo.
— É bom ver que estão sobrevivendo a uma fase difícil e se
permitindo viver uma segunda chance — comentou, carinhosa.
— Sim, sei que tenho muito a consertar pela frente, e sigo
confiante de que vou conseguir.
— O primeiro passo já foi dado, meu filho, e isso é o mais
importante.
— É verdade. — Coloquei as mãos nos bolsos da calça.
— Onde está Aurora? Pensei que iriam vir juntos.
— Ela não podia vir, é dia de plantão, mas vai tentar trocar
com a amiga por algumas horas, tudo para vir dar um beijo em
Jade.
— Encontrou a pessoa certa, querido, alguém que te ama e
ama sua filha.
— Eu nem sabia que era merecedor de encontrar uma mulher
maravilhosa como ela…
— A vida sorriu para você, filho, e pode não parecer, mas
merece muito mais.
— Não vejo a hora de nosso bebê nascer, vai ser o melhor
amigo de Jade — sussurrei emocionado.
— Diz como se sentisse que é menino, será que vai ser?
— Não importa o sexo, vou amar com todo meu coração. —
Sorri largo.
— E como estão as coisas no hospital, filho? — meu pai puxou
assunto, como se não soubesse de nada; se aposentou do cargo de
chefe, mas vivia nos corredores.
— Acho que o senhor tem a resposta. — Pisquei um olho,
dando risada.
— Isso é verdade, a vida toda tive que dividir meu marido com
o hospital, assim formamos um trisal — minha mãe falou brincando
e revirando os olhos.
— Ela está tão linda, pena que cheguei tarde…
Aurora comentou, jogada na cama enquanto eu massageava
seus pés.
— Jade não vai te amar menos por isso, pode ter certeza.
Acho que ela te ama muito mais do que a mim, diz até que quer ser
pediatra, acredita?
— Se for, vou amar dar todo apoio e suporte. Na minha vez
isso foi muito importante, meu pai foi o que mais me incentivou a
correr atrás do meu sonho.
— Nem nos meus melhores sonhos imaginei que iria encontrar
a mãe perfeita para meus filhos. — Apertei em um ponto em seu pé,
o que a fez gemer em apreciação.
— Essas suas mãos são um verdadeiro pecado, e salvação. Os
dois juntos.
— Salvei muitas pessoas mesmo, assim como vi algumas
morrer…
— Esse é o bônus que vem junto quando se escolhe medicina.
— Eu estava comentando com sua sogra que acho que nosso
bebê é um menino.
— Vou fazer um exame de sexagem logo, Liam e Mia estão me
enchendo de presentes, sabe o que deram hoje? Mamadeiras,
fraldas… Minha nossa!
Ri baixo.
— Os dois estão empolgados, até parecem um casal, não
acha?
— E são, mas nunca vão assumir, só ficam escondidos.
— Penso que rolos assim podem terminar mal, o que acha?
— Como assim?
— Ou é amizade ou é amor, não tem como ser os dois ao
mesmo tempo…
— Bom, faz sentido. — Deu de ombros. — De toda forma, amo
os dois.
— Nosso filho vai ter muitos padrinhos, Henry e Mary querem
ser também.
— E Jason? Ouvi falando que quer uma vaguinha… —
Gargalhou.
— O que vamos fazer? É muita gente para um único bebê.
— Vamos escrever em um papel os nomes e sortear.
— Isso não vai dar certo, darling, será briga na certa.
— Então deixa todo mundo ser padrinho e fim de papo. Bom
que não vamos precisar gastar muito dinheiro, já que todos vão nos
encher de presentes.
É
— É uma ótima ideia, gostei.
Aurora piscou um olho, encerrei a massagem para ir beijar
seus lábios.
— Minha noiva é linda e maravilhosa. Completamente minha.
— Meu doutor gostoso é possessivo… Todinho meu para
morder.
Beijei-a com o peito explodindo de sentimentos por aquela
dona encrenca que se tornou o amor da minha vida.
Assim como amor e amizade não se misturam, ódio e amor
também não, tanto que, no meu caso, somente um venceu.
Amor. Amor. Amor. Amor.
O tempo passou rápido, em um dia estava recebendo a notícia
de um aneurisma que precisava ser operado e consequentemente
corria o risco de perder o bebê. E cá estava, recuperada, saudável e
com um barrigão de cinco meses prestes a descobrir o sexo do meu
filho. Cogitei a possibilidade de fazer o exame de sexagem fetal, mas
decidi esperar para descobrir pelo ultrassom mesmo, uma vez que
não via necessidade de apressar as coisas, mais do que já foram
adiantadas, enfim.
Minha relação com Marcelo começou apressada e com pé
esquerdo. Quando enfim nos entendemos como casal, não via razão
para ficar pulando etapas, apesar de estarmos noivos e com data
marcada para casar. De toda forma, escolhi aproveitar cada fase da
gravidez até que chegasse o dia da descoberta, que seria revelada
em um evento fechado para família e amigos.
Nossos pais cuidaram de tudo, e os padrinhos do bebê, no
total, eram cinco. Mia e Liam da minha parte, Henry e Mary, do lado
do meu noivo, e meu irmão, que não aceitou ficar de fora. Por
consideração a tudo que fizera por mim no momento em que mais
precisei, não vi por que excluí-lo. Quanto mais pessoas amando meu
filho, melhor, e sentia que o quinteto iria fazer isso com muito
carinho.
Até esse momento nem precisara comprar absolutamente
nada, ganhara fraldas em grande quantidade, e muito mais. Só teria
que me preocupar em organizar tudo no quarto. Nem posso deixar
de mencionar que o time de avós paparicava e não poupava
presentes, tanto que cuidaram do chá-revelação nos mínimos
detalhes.
Eu estava muito ansiosa…
Senti os braços do meu noivo envolverem minha cintura,
parando em torno do meu barrigão, e abri um sorriso de lado.
Amava ser acolhida assim.
— Vai surtar quando chegar ao jardim e vir como tudo ficou —
comentou.
— Aposto que deve estar muito bonito, nossos pais deram
tudo de si por esse evento.
Marcelo beijou meu ombro, e tocou no meu ventre com
carinho.
— Isso é verdade, até Jade participou, fez aposta com todo
mundo que era uma menina. — Riu baixo.
— Eu vi, e o meu palpite é que será um menininho —
sussurrei, animada.
— Estou sem preferências, só quero que venha com saúde e
idêntico a você. — Virou-me com cuidado para olhar dentro dos seus
olhos. — Uma miniversão sua.
— Vai ficar insistindo tanto nisso que é bem provável que
venha mesmo.
— Tomara. Não sabe o quanto te acho linda, forte, corajosa…
Uma vez Jade disse que você tinha cheirinho de mãe, estranhei
quando a vi falar, mas depois entendi. E é verdade, seu cheiro não é
só disso, mas de amor, bondade e benevolência. Um misto de
qualidades que te tornam única, inesquecível e o amor da minha
vida.
Pisquei os olhos.
— Marcelo… Conseguiu me deixar sem palavras.
— Lembra daquele dia em que você deduziu as coisas antes
de tudo e meio que terminamos aquele casinho de uma noite? Eu ia
mesmo acabar, mas porque não queria só sexo. No começo até que
pareceu ser suficiente, mas depois fui sentindo a necessidade de
mais, porque você causou isso, Aurora. Me fez desejar um romance,
namoro, aliança e tudo que estivesse disposta a dividir comigo.
— E o destino deu um empurrão ao colocar um bebê no meu
ventre.
— É verdade, mas, muito antes disso, já te queria para
caralho. Eu desejava muito além do que um dia pensei que sentiria
por alguém… Pensei que nunca teria essa chance de encontrar o
amor verdadeiro, aquele que vi meu melhor amigo achar, e cheguei
até a perder a fé de que isso era possível, mas aí veio você e tudo
mudou.
Estendi uma mão para tocar em seu rosto.
Eu não era tão boa com declarações quanto meu noivo, tinha
certa dificuldade para colocar em palavras o que estava dentro do
meu coração. Que bom que Marcelo conseguia compreender isso e,
ainda assim, continuava me amando intensamente, da mesma forma
que o amava muito.
E como…
— Eu te amo, Aurora, e amo tudo que estamos construindo
juntos.
Abri um sorriso largo.
— Sou grata por tudo também. No começo te odiei do fundo
do meu coração, mas esse sentimento mudou para algo ainda mais
lindo e verdadeiro. Se tudo que passamos nos trouxe até aqui, faria
tudo de novo e de novo, porque no fim ficaríamos juntos. — Selei
seus lábios, apaixonada.
— Sempre que fala assim tenho vontade de chorar. —
Gargalhou.
— Não seja bobo, pode não parecer, mas também sou
fofinha…
— É raro, quase como petróleo, mas nem por isso te amo
menos. Existem pessoas que enchem a boca para declarar amor, só
que muitas vezes é tudo mentira, só um exemplo… E outra, sinto a
veracidade dos seus sentimentos sempre que me abraça, beija,
porque é nisso que o amor verdadeiro faz morada, nos mínimos
detalhes. Me ama quando fica me esperando chegar do trabalho, ou
quando abandona um episódio da sua série favorita para ficar
grudadinha em mim.
Lágrimas rolaram pelos meus olhos.
— Acho que te amo… — sussurrei emocionada.
— Acha, ou ama? — Estreitou os olhos com ar de brincadeira.
— Amo. — Passei as mãos em volta do seu pescoço.
Marcelo me beijou, e retribuí completamente apaixonada.
O homem que um dia julguei odiar estava certo, o amor não
estava presente nos enormes textos com fotos de declarações para a
sociedade tietar, o verdadeiro amor se fazia presente nos mínimos
detalhes, tanto que foi isso que me fez amá-lo.
E eu amava muito.
— O bebê chutou. — Encerrei o beijo, ao sentir uma ondulação
no ventre.
— Jura?
O doutor se ajoelhou de frente para a minha barriga.
— Oi, meu amor, até você ficou surpreso com a declaração da
mamãe, hein?
Outro chute e fiz careta.
— Parece que sim, darling. — Deu risada. — Vamos já
descobrir o seu sexo, mas, de toda forma, saiba que o papai e a
mamãe te amam muito, viu? E sua irmãzinha.
— E seus avós, padrinhos, um monte de gente que vai te
mimar bastante.
— Isso, meu amor. O que não vai faltar assim que nascer é
amor. Venha no seu tempo que estaremos ansiosos pela sua
chegada, nosso bebê-milagre.
Fiz carinho nos cabelos do meu noivo, e novas lágrimas
rolaram pelos olhos.
— Preparados?
Mia e Liam estavam ansiosos para abrir a caixa que soltaria os
balões para fora.
— Muito! — respondi em sintonia com o pai do meu bebê.
Marcelo segurava em uma mão minha, e Jade em outra,
fazendo parte do momento. Não vi necessidade alguma de excluir a
pequena, éramos agora uma família e eu a amava muito. Era uma
bênção em nossa vida e amava muito o irmãozinho.
— Contagem regressiva, cinco, quatro, três, dois, um…
A caixa foi aberta e vários balões na cor azul subiram de uma
vez.
— AHHHH!
— AEEEEE!!
Meu noivo e sua filha me abraçaram, meu palpite estava certo.
Todos os amigos e familiares presentes bateram palmas, assovios,
uma verdadeira festança.
— Um menino, meu amor. Te amo muito, muito!
— Um irmãozinho, nossa, amei demais!
Sorri entre lágrimas, e meu noivo me encheu de beijos
estalados.
— Te amo, Aurora.
— Te amo, Marcelo.
— Ei, eu amo vocês também!
O pai da pequena se abaixou para pegá-la no colo, e nos
abraçamos.
— Agora, sim, uma família de verdade!
ANOS DEPOIS
— É assim que se coloca, irmão, oh… Aprendeu?
Mason, de três anos, balançou a cabeça em afirmativa. Jade
estava sentada no chão com o caçula da casa ensinando uma
atividade de caça ao tesouro, enquanto minha esposa ainda não
tinha chegado do seu plantão.
Eu me entretinha com os pequenos, ou nem tanto assim. A
minha menina crescera muito nos últimos anos, e cada vez mais se
parecia comigo e o pequeno, que a encarava animado.
Pedi e desejei tanto que meu filho viesse a cara da mãe, que
nasceu à minha, era loirinho de olhos azuis, herdara cada traço meu
no quesito aparência, mas a personalidade era toda da minha
esposa, e isso com toda certeza fazia a diferença.
Eu amava muito ser pai daqueles dois, adorava participar de
tudo e, mesmo chegando em casa cansado do trabalho, encontrava
fôlego para passar alguns minutos ali, brincando, conversando,
paparicando e os enchendo de amor.
Aurora não era muito diferente, fazia o mesmo. Minha
maravilhosa pediatra era excelente no que fazia, perfeita esposa
para mim e uma mãe incrível para nossos filhos. Sim, ela acolheu
Jade como se tivesse sido gerada em seu ventre, e enfim minha
menina pôde ter a chance de receber amor materno, o mais
verdadeiro possível.
Pouco tempo atrás eu descobrira que a genitora da minha filha
havia morrido, não fui mais a fundo para descobrir como ou quando,
e então entrei em contato com a psicóloga para saber o que poderia
fazer. Foi assim que marcamos uma sessão e Jade participou. No dia
fiquei surpreso. Apesar de lhe revelarmos grande parte da verdade,
minha menina reagiu de uma forma que nos deixou de boca aberta.
“Tudo bem, papai Marcelo. Eu tenho a melhor mãe do mundo
e isso basta…”
Nem consegui conter a emoção, chorei muito. Dali em diante,
Jade passou a me chamar apenas de pai, e deu um novo título para
a minha esposa que tanto amava.
— Apendi.
— Bom garoto! — Fiz um carinho na cabeleira loira do meu
menino.
— Papai, quando vamos ver os meus amiguinhos? Estou com
saudades — estava se referindo aos filhos do meu melhor amigo,
Henry.
— Vou conversar com sua mãe. — Abri um sorriso de lado.
— Aposto que ela vai querer ir, e eu vou amar demais da
conta!
Gargalhei.
— Sua mãe ama fazer seus gostos, princesa, e eu não sou
muito diferente. Tudo para fazer você e seu irmão felizes.
— É verdade, papai.
Jade sorriu largo, e voltou a brincar com o irmão. Os dois se
davam muito bem, sempre se deram na verdade. Mason, ainda na
barriga da mãe, não podia ouvir a voz da irmã que ficava chutando
sem parar. E, quando enfim nasceu, o vínculo ficou mais forte.
Peguei o celular no bolso da calça e vi que Aurora mandara
mensagem avisando que estava vindo, pegou carona com os
amigos, que iriam passar para ver o afilhado.
Liam e Mia amavam nosso menino como se fosse filho deles, e
esse amor se estendeu para Jade, que também era muito querida e
sempre ganhava presente.
Eu me sentia completamente realizado, vivia agora em uma
mansão rodeado das pessoas que eu amava, filhos preciosos, e
tinha uma esposa que era o meu sonho realizado, o motivo pelo qual
a chave virou na minha vida para melhor. Tudo que me tornei devia
à garota que ainda usava franjinha, ouvia Justin Bieber, era
antiorganização e me deixava completamente louco, insano, em
cima da cama.
Meu grande amor.
Nesses anos que se passaram, nos casamos na igreja e na
companhia das pessoas que faziam parte da nossa vida. Decidimos
deixar a lua de mel para quando Mason completasse seis meses de
vida. Até planejamos levá-lo junto, mas, graças à insistência das
nossas mães, o pequeno ficou na companhia das vovós e de uma
babá. Já que estava desmamado, correu tudo bem.
Aproveitamos muito como casal, nos divertimos, e dali em
diante estabelecemos uma regra de sempre tirar um tempo para
curtirmos momentos sozinhos. Era importante fazer isso para manter
a essência do casamento sempre viva sem nunca se apagar.
E eu tinha plena certeza de que nunca iria se apagar…
Aurora era o grande amor da minha vida, e eu me esforçava
todos os dias para ser o seu. Para quem nos via de fora, parecíamos
eternos namorados, mas também ótimos pais, médicos, uma
verdadeira dupla trabalhando lado a lado.
Era assim que se construía um amor, diariamente e sem
cessar.
— Mason, é aqui, coloca.
— Tá…
Sorri de canto, observando as minhas preciosidades brincando.
Estávamos com uma viagem marcada para a Disney, e Jade
era a que mais estava ansiosa; o pequeno partilhava do mesmo
sentimento, apesar da pouca idade.
— Acho que a mamãe chegou… — Levantei-me animado.
— Obaaaaa!
— Mamaaaaaa!
Mais tarde, à noite, degustava uma taça de vinho na
companhia da minha esposa. As crianças estavam dormindo e
podíamos enfim aproveitar juntos.
— Como foi o dia hoje, darling?
— Intenso, só estou preocupada com algo…
— Pode compartilhar qual é a sua preocupação?
— Liam, Mia, Jason…
— O que têm os três? Não me diga que formaram um trisal.
— Não é nada disso, temo que meus amigos nunca resolvam
essa confusão em que vivem, ao passo que se envolvem com outras
pessoas, e se der errado isso?
— Bom, isso é um pouco complicado. De toda forma, torço
para que sejam felizes, independentemente do que escolherem
fazer. E quanto ao seu irmão?
— Jason está querendo ir para outra missão no Exército, logo
agora que a tal obstetra deixou de cisma com ele. Pode isso?
— É bem difícil, enfim… No tempo certo aposto que eles vão
também, por enquanto vamos ficar só na torcida. O mais importante
é que nos entendemos e cá estamos.
— Muito, fomos de ódio para o amor… — Riu baixinho.
— Passamos por muitas coisas e estamos aqui firmes e fortes.
— Porque nos amamos muito.
— E como eu te amo, Aurora.
— Te amo, doutor Marcelo.
— Como era que você me chamava antes?
— Geladeira Electrolux…
— É mesmo, até me esqueci disso.
— Meu maridinho está ficando gagá…
— Vou te mostrar o quanto estou em cima daquela cama, o
que acha?
— Acho uma excelente ideia.
— Quem sabe, com sorte, eu consiga te engravidar de novo.
— E com sorte vai conseguir, afinal parei de tomar o
anticoncepcional…
Puxei-a para um beijo apaixonado e terno.
— Te amo demais, minha pediatra gostosa.
— Te amo muito mais, doutor indecente.
Para cada escolha na vida, uma consequência… E as
consequências da nossa última noite nos trouxeram até aqui. Afinal
só existe uma única soma para o amor.
Amar sem medidas.
FIM
Quarto livro do ano concluído com sucesso, às 13h06 do dia
01 de Maio. Vou começar agradecendo a Deus pela saúde, coragem
e bênçãos sobre a minha vida. Essa história caiu em minha mão
como um presente divino, depois de quase perder o gosto pela
escrita e acreditar que não era boa o bastante para continuar sendo
autora. Ainda bem que foi só um episódio ruim, que logo foi embora.
Amém.
Eu amei escrever esse livro e vou sentir tanta saudade. Posso
escrever um monte de romances, mas alguns se destacam mais que
outros, e este aqui foi um. Não tive bloqueio, desânimo, nem nada
do tipo. Fluiu e derreteu na boca igual chocolate e só posso
agradecer a Deus pelo dom concedido de escrevê-los.
Aurora e Marcelo, amo vocês, digito essas palavras com
coração apertado, e com um nó na garganta da falta que vou sentir
de passar as tardes ouvindo playlist dos anos 2000 e Justin Bieber.
Amei dar voz aos personagens que trouxeram luz para minha vida e
desejo muito que conquistem um monte de outras pessoas por aí.
Em todo processo de livro acontece alguma coisa e dessa vez
foi um surto de leve, nada que um martelo não fosse capaz de
quebrar; detalhes que não precisava mais ter por perto e o entalo
preso na garganta que precisava pôr para fora. Quanto mais vivo,
percebo que “seres’’ são decepcionantes, falsos, e que, na maioria
das vezes, tenho que ser eu por mim mesma. A única torcida mais
forte e vibrante acima de tudo. E é isso que vou levar no coração,
que, se tenho Deus e a mim mesma, é tudo que mais importa.
Agradeço aos meus leitores, aos que ficam e me abraçam. Sou
infinitamente grata por ter comigo-anjos de luz que fazem de mim
essa autora determinada e forte.
Nos vemos em breve, em nome de Jesus.
Com amor, Ella Ares.