A HOMOAFETIVIDADE EM MORANGOS MOFADOS, DE CAIO
FERNANDO ABREU
Giovanna Sequinel Pacheco de Carvalho1
Salua Iara da Silva2
Luiz Rogério Camargo3
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso explora a homoafetividade na obra
Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu. O livro é composto por diversos contos,
os quais abordam o desejo homossexual e as lutas de seus personagens. A narrativa foi
escrita em 1982 na época do Brasil ditatorial, no qual a sociedade buscava suprimir o que
divergia da conduta heteronormativa a qual defendia. Assim, o propósito deste artigo é
fazer uso da literatura para identificar as dificuldades enfrentadas pelos personagens e
o resultado de imposições sociais nas escolhas destes indivíduos. Utilizam-se de textos-
base da psicologia e da literatura para aprofundar-se no objetivo de confirmar o quão
a obra de Abreu é contemporânea e como os seus contos permitem reconhecer em
denúncias do século passado conflitos ainda enfrentados por aqueles que assumem
desejar pessoas do mesmo sexo, na medida em que enfrentam as mesmas questões
Abreu privilegiou a temática homossexual dentro da sua obra permitindo que a literatura
fosse utilizada como produto de comprovar o quão difícil é a busca pelo amor de quem
pratica amar o contrário do que o senso comum permite.
Palavras-chave: Homossexual. Homoafetividade. Amizade. Amor. Sexo.
1
Aluna do 7º período do curso de Letras Português e Inglês da FAE Centro Universitário.
E-mail: [email protected]
2
Aluna do 7º período do curso de Letras Português e Inglês da FAE Centro Universitário.
E-mail: [email protected]
3
Orientador da pesquisa. Professor da FAE Centro Universitário. E-mail: [email protected]
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 107
INTRODUÇÃO
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, interior
do Rio Grande do Sul, no dia 12 de setembro de 1948. Em 1967, ingressou nos cursos
de Letras e Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas não se
formou. No ano seguinte, mudou-se para São Paulo e foi trabalhar na redação da revista
VEJA. Contista, romancista, dramaturgo, jornalista e como ele mesmo se apresentou:
Muito prazer: meu nome é Caio Fernando Abreu. Faço literatura, teatro,
música, cinema e crítica. Mas de amor é o que eu gosto mais. Explico
devagar. Tenho sangue espanhol, português, negro, índio, judeu e árabe.
Nasci em 12/09/48, em Santiago do Boqueirão, uma cidade estranha onde às
vezes nevava, quase na fronteira do RGS com a Argentina. Filho de militar e
professora. Neto de fazendeiros. Gosto de chuva, vento e frio. Detesto cebola,
gravata e intelectualismo. Estudo letras e Artes Dramáticas, na Faculdade
de Filosofia da UFRGS. Além disso, escrevo crítica de cinema para o Correio
do Povo e faço cinema – como autor – com um amigo, Sérgio Roberto Silva
(DIP, 2009, p. 307).
Foi um dos escritores que abordou em suas obras questões sexuais e de gênero,
manifestadas nos anos 80, indo além do padrão legitimado pela sociedade, que pouco
abordava textos com teor sexual e menos espaço ainda dava para a literatura que tivesse
conteúdo homossexual ou homoerótico. No entanto, esse conteúdo era comum em
grande parte da obra do autor, tornando-se marca dessa literatura.
Abreu foi perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por
conta do conteúdo apresentado em escritos. Com essa situação, sua saída foi se refugiar
no sítio da sua amiga Hilda Hilst, também escritora. No começo da década de 1970,
ele se exilou, indo morar na Europa, mas, em 1974, retornou a Porto Alegre. Em 1994,
Abreu foi para a França, decorrente de um convite da Casa dos Escritores Estrangeiros,
porém, teve de voltar para o Brasil no mesmo ano, pois acabou descobrindo ser portador
do vírus do HIV, vindo a falecer no dia 25 de fevereiro de 1996.
Seu primeiro texto foi escrito aos 6 anos, mas seu primeiro conto publicado foi
em 1966: “O Príncipe sapo” e, no mesmo ano, ele deu início ao seu primeiro romance,
chamado Limite branco. Em 1970, é publicado seu primeiro conjunto de contos,
chamado Inventário do irremediável, pelo qual recebeu o prêmio “Fernando Chinaglia”.
E em 1982, ele lança a obra Morangos mofados, que foi o responsável por torná-lo
conhecido. Trata-se de um livro, no qual seus contos retratam a vida diária de pessoas
que vivem em solidão, ou no meio de drogas e bebidas, sexo e homoafetividade.
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Além disso, Morangos mofados é uma obra composta ao todo de 18 contos,
construídos entre o fim da ditadura militar e o começo da democracia brasileira, ou
seja, situa-se em um período social conturbado. Além de narrar crises sociais, a obra
explora grandes problemáticas da essência humana de forma individual, de maneira
que seus diversos contos vão intercalando dores, medos e angústias dos personagens.
Dessa forma, cria-se uma perspectiva do mundo LGBTQI+4 e de suas amarras sociais,
o que explica ter ultrapassado seu tempo e décadas depois continuar sendo uma
obra com problemática atual, correspondendo ainda a crises existenciais do homem
do século XXI.
Morangos mofados é o quarto livro de contos publicado por Abreu. Na obra,
os contos são apresentados de forma separadas por “características”, sendo essas: “o
mofo”, “os morangos” e “os morangos mofados”.
Os contos da parte “o mofo” são: “Diálogo”; “Os sobreviventes”; “O dia em que
Urano entrou em Escorpião”; “Pela passagem de uma grande dor”; “Além do ponto”;
“Os companheiros”; “Terça-feira gorda”; “Eu, tu, ele”; “Luz e sombra”.
Já os contos apresentados na parte “os morangos” são: “Transformações”;
“Sargento Garcia”; “Fotografias”; “Pêra, uva ou maçã?”; “Natureza viva”; “Caixinha de
música”; “O dia em que Júpiter encontrou Saturno”; “Aqueles dois”.
E a última parte, que se chama “morangos mofados”, leva um conto com o
mesmo nome.
A obra é composta por diferentes personagens anônimos, e o que os relaciona é a
complexidade da alma humana. Tendo o livro uma temática homoafetiva, isso torna-se
ainda mais incisivo, já que foge à conduta heteronormativa esperada da sociedade que
tende a tencionar o domínio do querer alheio. Tudo isso se agrava quando considerada
a época ditatorial em que os personagens estão inseridos no contexto da obra. É nessa
perspectiva de repressão que Abreu delineou personagens cheios de querer, mas muitas
vezes impotentes no poder e receosos no fazer.
Configurando-se contos com desenlaces distintos, todos expõem a existência do
indivíduo a ponto de se perceber as diversas lutas interiores enfrentadas. O autor soube
representar personagens sofridos, abatidos e angustiados por opressões e repressões,
os quais são vítimas de seus desejos seja por medo de fracassar como sujeito, ou pela
necessidade de se encaixar em padrões preestabelecidos de uma sociedade que impõe
regras a serem seguidas de modo a suprimir desejos que não estão adequados aos
princípios que essa sociedade dita como corretas.
4
L: Lésbicas; G: Gays; B: Bissexuais; T: Transexuais; Q: Queer; I: Intersexuais.
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É notável que Abreu, na obra Morangos mofados, preocupou-se em abordar
diferentes questões e impasses por parte dos personagens e em diferentes situações,
mesmo que dentro da mesma temática sexual homoafetiva. “Terça-feira gorda”, por
exemplo, narra a aproximação e relação de dois sujeitos masculinos, realçando a
sua frustração perante as condutas negativas daqueles que testemunham os dois. Já
“Sargento Garcia” aborda relação de soberania e dominação em relações homoafetivas,
a partir de um persuasivo sargento que se sente atraído pela delicadeza e educação
de Hermes, garoto sensível e puro, buscando seduzi-lo, até que se entregam ao prazer
sexual. Por outro lado, o conto “Aqueles Dois” mostra a aproximação de Raul e Saul,
que trabalham em uma empresa chefiada por um patriarca, sendo demitidos após os
indícios e suspeitas da homossexualidade de ambos.
A partir destas considerações visa-se estudar a obra Morangos mofados de modo
a compreender a busca dos personagens pela satisfação dos seus próprios desejos;
entender as atitudes que os mesmos tomam em favor das próprias vontades, sejam
elas sexuais, amorosas ou de amizade, bem como analisar os desafios que enfrentam
para realizarem esses desejos.
O presente trabalho será dividido em três tópicos: sendo o primeiro “A amizade
homoafetiva” na obra, o qual tratará do tema amizade e será abordado o conto: “Aqueles
dois”. No segundo tópico intitulado “Amor homoafetivo na obra” será discutido o tema
amor e os contos analisados serão “Dialogo”, “Os sobreviventes” e “Além do ponto”. E
por fim o tópico “O sexo homoafetivo na obra” que tratará a temática sexo dentro dos
contos “Os sobreviventes”, “Terça-Feira Gorda” e “Sargento Garcia”. As escolhas dos
contos são justificadas pela forma como autor soube explorar tais temáticas dentro
da obra.
1 REVISÃO DA LITERATURA
A obra Morangos mofados foi escrita no final do regime militar brasileiro. Regime
autoritário e repressor, sabe-se que este sistema reprimia qualquer indivíduo que
divergisse da sociedade conservadora. Para James Green e Renan Quinalha o Estado se
esforçava para criar táticas que reprimissem determinados comportamentos sexuais,
em especial a homossexualidade (GREEN, 2006, p. 17-25).
Sabe-se, que a obra é composta por contos que falam abertamente de
homossexualidade, drogas e sexo. Há nesta obra, uma disparidade entre o querer do
sistema e a literatura de Abreu, além de uma afronta ao regime. Pode-se considerar os
textos como uma espécie de denúncia social, a qual permite inferir que a obra de Abreu
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é um inventário da época em que o autor viveu sua literatura, assim, pode ser tomada
como um grande relato de um período turbulento do país. Sobre a obra Morangos
mofados Jaime Ginzburg considera:
Publicado em 1982, o livro Morangos Mofados está situado historicamente no
ponto tenso de passagem da ditadura militar ao regime democrático no Brasil.
Habita no livro uma reflexão, elaborada de modo difuso e inquietante, sobre
as condições dessa passagem. Trata-se de um livro fragmentário, em termos
estruturais gerais, inclusive na elaboração de foco narrativo. Para sustentar
uma concepção de personagem associada à mínima moralia adorniana, em
que o sujeito não apenas não supera as limitações como não é capaz de
formulá-las, Abreu elabora uma concepção específica de linguagem de prosa.
Silêncios, lapsos, ambiguidades e descontinuidade apontam constantemente
para a implosão das condições necessárias para a clareza da fala, dando
lugar a elaborações em que o detalhe impressionista, a metáfora e o ritmo
assumem funções semânticas (GINZBURG, 2012, p. 408).
O autor era assumidamente homossexual, e sua obra é a representação de
sua vida. Toda essa representatividade veio a totalizar contos repletos de dramas,
desencadeando sentimentos que compõem a essência da maioria dos personagens
sendo eles: melancolia, desesperança, tristeza, amargura e desejo de suicídio, por
exemplo. Consequentemente o desprazer de viver é reflexo da falta de liberdade de
pensar e agir. Trata-se, pois, de indivíduos censurados, rechaçados, ameaçados e até
tratados de forma violenta pela sociedade. Tais perseguições sociais criam em torno
destes indivíduos estigmas negativos de modos a marginalizá-los diante a sociedade.
Goffman (1982, p. 12-13) sugere que são estigmas relacionados às deformidades físicas,
estigmas de raças e religião e estigmas relacionados às culpas de caráter individual.
Para todos estes estigmas o autor afirma:
Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, inclusive aqueles que
os gregos tinham em mente, encontram-se as mesmas características
sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na
relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e
afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para
outros atributos seus (GOFFMAN, 1982, p. 14).
Representante do movimento de contracultura5 Abreu era nitidamente oposto
a normas sociais impostas pelo sistema e todos estes estigmas que marginalizavam
5
Termo inventado pela imprensa estadunidense, para nomear manifestações culturais que
aconteceram na década de 1960. Manifestações essas, que tinham como objetivo contestar o
sistema cultural e social vigente, vindo através desse sentimento influenciar gerações e traçar
novos paradigmas sociais, uma nova onda comportamental que buscava liberdade para o
pensamento seja ele crítico ou não (ZOUAIN, 2020, p. 16).
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a homossexualidade. Souza analisa a época e como tais normas interferiam na vida
da sociedade:
O regime militar atrelado ao aparato institucional do Estado, sobretudo
o direito, predizia e fortalecia a masculinidade e a heterossexualidade
compulsória, fundada nos preceitos da moral e dos bons costumes, que
consistiam nos alicerces da família e do Estado, tal qual ocorreu nos períodos
de guerra na Europa e Estados Unidos (SOUZA, 2017, pág. 45).
Sendo assim, Abreu preencheu sua literatura com contos que chocam por
representar a realidade da época. A proximidade entre autor e obra possibilita ao leitor
perceber o retrato de determinadas mazelas enfrentadas no período. São histórias
nas quais o escritor aponta os danos causados pelo sistema na vida dos indivíduos
de maneira que se pode reconhecer destinos arruinados como no conto “Terça-Feira
gorda”, no qual não apenas é retratado o repúdio ao relacionamento dos personagens,
mas termina com a morte de um dos amantes.
Por meio de sua escrita, Abreu compôs personagens que se assemelham a si
mesmo, dando voz àqueles que não tinham espaço na sociedade. Na sua obra, são
vistas lutas internas e externas, as quais deixam marcas perpétuas nos protagonistas.
Compreende-se que Abreu não escrevia para agradar, ou relatar apenas as belezas da
vida, nesse sentido, Morangos mofados, já a partir do título, evidencia que há nela um
lado amargo, o lado do mofo. Tal mofo é evidente nas narrativas e compromete toda
a estrutura do que afeta.
A fundamentação teórica deste Trabalho de Conclusão de Curso é construída
a partir de contos da obra Morangos mofados de Caio Fernando Abreu objetivando
analisar a homoafetividade dentro da obra. Para isto serão usados estudiosos como
Michael Foucault, José Carlos Barcellos e Erich Fromm. De forma a entender como a
homossexualidade é tratada na obra e sua representação social. Sendo o principal foco
a figura do homossexual e como este é representado na literatura.
1.1 A AMIZADE HOMOAFETIVA NA OBRA
1.1.1 A Amizade no Conto “Aqueles Dois”
O conto “Aqueles dois” é o penúltimo do livro Morangos mofados e retrata a
amizade de dois homens, Raul e Saul, que são colegas de trabalho, e se tornam amigos
mais íntimos. No conto, percebe-se uma certa dúvida e incerteza sobre se há uma
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relação homoafetiva ou somente uma fraternidade entre os dois. Em terceira pessoa,
o narrador conta a história de Raul e Saul, nomeados como “aqueles dois”, diferentes
desde as iniciais dos seus nomes até seus gostos pessoais:
Raul tem 31 anos, vem de um casamento ruim e sem filhos, ouve música,
toca violão e canta. Saul tem 29 anos, teve um “noivado tão interminável
que terminara um dia” [..] Os dois se conhecem no primeiro dia de trabalho
de ambos: Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu
nome? sorrindo divertidos da coincidência (ABREU, 2005, p. 102).
Em seu primeiro encontro parece haver uma sincronia entre eles, os rapazes
percebem que são “diferentes” dos demais colegas de repartição. Tal sincronia é relatada
por Abreu de uma forma quase espiritual, muito além de uma mera coincidência do
destino ou do acaso. Abreu descreve esse encontro dessa forma:
Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece
de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum deles se
perguntou. Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou
qualquer outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no
primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém, que não tinham
preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-
las (ABREU, 2005, p. 102).
O bom relacionamento vai se firmando ao decorrer do conto. Os dois se
aproximam no trabalho, a princípio com comentários do dia a dia criando laços,
descobrindo preferências em comum como o gosto pelo cinema e logo percebe-se
uma afinidade e cumplicidade entre os rapazes:
Até um dia em que Saul chegou atrasado e respondendo a um vago que-
que-houve contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme
na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o
outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por
fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou: que
filme? Infâmia [“The children’s hour”, de William Wyler. Adaptação da peça
de Lilian Hellmann] contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, um
filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento,
como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito, não é aquela história
das duas professoras que. Abalado, convidou Saul para um café (ABREU,
2005, p. 104).
Tal aproximação permitiu criar uma amizade, na qual eles dividiam relatos da
vida pessoal e o desejo de se manterem próximo aumentou. Isto acabou produzindo
um olhar preconceituoso de seus colegas de repartição, no início eram das mulheres,
“às vezes elas cochichavam sem que eles percebessem” (ABREU, 2005, p. 106), e
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nos dias seguintes pelos outros homens “Os funcionários barrigudos e desalentados
trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem.
No entanto, nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas enigmáticas”
(ABREU, 2005, p. 106).
Abreu escreve Morangos mofados nos últimos anos de regime militar. O autor
aborda atmosfera pesada da época. Utilizando fragmentos de filmes, música, astrologia,
candomblé, em seus contos, o escritor sai do tradicional, com seu jeito único de fazer
literatura. O crítico José Castello considera que:
Caio acreditava que a literatura não pode ter limites – nem mesmo aqueles
limites literários consagrados pela crítica, pela universidade, ou pelos
escritores. Tem de estar em transformação, ser um depósito de desmentidos
e de incoerências. Densa, nervosa, irregular, a obra de Caio é um exemplo
vivo dessa estratégia que liga a literatura ao acaso e a desliga das certezas:
“Não tenho opinião definitiva sobre nada, não acho que isso seja insegurança,
acho que é abertura” (CASTELLO, 2006).
Evidentemente, a maneira que Abreu opta por construir sua obra abordando
elementos como cultura, história e realidade corroboram para que seus contos sejam
diferenciados. Dentre eles, está o modo natural que o autor trata dos relacionamentos
entre iguais. O conto “Aqueles dois” demonstra como jovens e amigos estiveram expostos
a críticas sociais sem ao menos terem dado motivos para tanto. Tais personagens
representam na obra uma minoria que por suposições alheias acabam sendo julgados
e sofrendo interferências em suas vidas. Dentro da sociedade a fraternidade masculina
é aceita quando há apenas laço de amizade, a partir do momento que há uma relação
mais íntima, causa estranheza e por vezes repúdio.
A homoafetividade trata de relacionamentos de pessoas do mesmo sexo. Assim,
pode-se distinguir Homossexualidade como orientação sexual, e homoafetividade
como exercício dessa orientação, focando nos sentimentos. Há uma dificuldade da
sociedade de entender e aceitar as relações afetivas entre homossexuais. Klecius
Borges, importante psicólogo no Brasil, trata a homossexualidade “de forma positiva e
afirmativa, creditando o sofrimento e as dificuldades que lésbicas e gays enfrentam ao
heterocentrismo e à homofobia dominantes em nossa cultura” (BORGES, 2009, p. 21-22).
No caso de Raul e Saul, o relacionamento entre os dois se torna mais nítido, de
maneira que os dois desenvolvem uma homoafetividade:
Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu
amigo muito solitário ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com
Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E
porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes
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da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois
aniversários, aconteceu alguma coisa (ABREU, 2005, p. 106-107).
Essa aproximação dos personagens aumenta a homofobia por parte da sociedade,
causando a não-aceitação social. Os personagens conseguiam sentir este preconceito.
Deste modo, desenvolvem receios e angustias. Tanto que um dia Saul chega a sonhar
que estavam sendo reprimidos. Neste sonho Saul afirma ter cada vez mais a aproximação
e afetividade entre eles e o que causa estranheza nos colegas de repartição:
E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto,
acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele.
Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do
outro. Acordou pensando estranho, ele é que devia estar de luto (ABREU,
2005, p. 107).
Outra situação em que é possível perceber a afetividade, desejo e carinho entre
eles é na noite de Ano-Novo, em uma cena que carregada de erotismo, mas também
de um afeto mútuo, sem acusações ou julgamentos:
Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou
que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você
também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama
atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia
ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de
olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que
Raul não percebesse suas fundas olheiras (ABREU, 2005, p. 139).
Durante todo o conto é possível perceber esse afeto que há entre os personagens,
mas não há uma confirmação da concretização desse sentimento – amor – que se espera
que aconteça. Os dois sofrem até o final com o preconceito e a intolerância. O término
do conto se dá com a partida de Raul e Saul da repartição, após serem despedidos. A
saída dos personagens juntos daquele ambiente de opressão permite compreender
que Saul e Raul foram libertos:
Raul e Saul esvaziam suas gavetas, descem pelo elevador em silêncio, param
em frente ao prédio, esperam um táxi. Quando o carro chega, Raul abre
a porta para que Saul possa entrar. Na janela, alguém expressa: “ai-ai!”,
como se reprovasse os dois. No entanto, os reprovados em toda a história
são os que ficaram naquela repartição; que ficaram presos naquele “prédio
grande e antigo, parecido com uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária”
(ABREU, 2005, p. 140).
O narrador dá entender ao final do conto que aqueles que reproduziram ódio
diante da relação de Saul e Raul dentro da empresa acabam infelizes, sendo eles
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 115
prisioneiros das próprias crueldades. Já os protagonistas acabaram como que libertos e
satisfeitos com o destino que tiveram. Tal desfecho demonstra a libertação dos “amigos”
que juntos descobriram não se enquadrar em um ambiente de pessoas infelizes:
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a
gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais
conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a
nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram (ABREU, 2005,
p. 140).
O conto possibilita a reflexão de uma luta, apesar de árdua, com saldo positivo, aos
que não permitiram ser doutrinados e arriscaram um lugar na sociedade, neste caso o
trabalho, em defesa de uma relação que poderia ser desde uma amizade e cumplicidade
ou até um amor. Raul e Saul não permitiram que a maldade de preconceituosos os
levasse a desistir um do outro.
Este texto se encerra com a libertação daqueles que estavam por ser marginalizados
em meio aos seus opressores. Dentro do contexto histórico em que a obra se encaixa,
pode-se inferir que as lutas de Saul e Raul provavelmente não cessaram com a saída
da repartição. No entanto, houve o querer estar juntos, e isto possibilitou a eles a
capacidade de superar a primeira de suas lutas sociais.
2.2 O AMOR HOMOAFETIVO NA OBRA
O livro apresenta dezoito contos e muitos deles não falam só da questão sexual,
ou amistosa, mas principalmente da questão amorosa que está envolvida entre as
personagens apresentadas. Assim, é importante abordar o que eles sentem, o que foi
reprimido por questões sociais e o que gostariam de viver, mas que por algum motivo
não podem ou não conseguem.
2.2.1 O Amor no Conto “Diálogo”
A obra se inicia com um conto que é nomeado como “Diálogo”, que se trata
especificamente de um diálogo entre duas pessoas, cujos nomes não são apresentados,
sendo apenas diferenciadas por pessoa “A” e pessoa “B”. A história deste conto pode
se tratar de duas pessoas que se gostam como amigos ou uma possível atração, já que
a pessoa “A” começa falando “Você é meu companheiro” (ABREU, 2005, p. 23) e, a
partir disso, ambas ficam numa conversa que parece durar para sempre, principalmente
considerando os parênteses que são apresentados no final, no qual diz “ad infinitum”.
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O personagem “B” parece confuso com o que é passado, visto que ele procura
uma definição mais explicada do termo “companheiro”, que pode significar que a pessoa
“A” o vê como um amigo ou como realmente um companheiro, alguém que quer levar
para toda sua vida. A conversa se prolonga por meio de várias indagações que “B” faz
a “A”, uma vez que ele sente que a frase não é somente o que foi dito, mas que possui
um segundo sentido do que foi proferido, como ele diz em “Tem alguma coisa atrás,
eu sinto” (ABREU, 2005, p. 10). Tânia Pellegrine diz sobre o diálogo “o conto é apenas
um diálogo mínimo entre personagens A e B, em que a incomunicabilidade é levada ao
absoluto, pontilhada por expressões meramente fáticas que apenas sustentam a fala
de cada um” (PELLEGRINI, 1999, p. 73).
Ou seja, existe uma falha na comunicação das personagens, na qual uma quer
atribuir um significado para a frase proferida e o outro tenta compreender o sentido
que ele quis expressar, mas isso não fica claro em nenhum momento. Eles se veem
cada vez mais confusos ao decorrer da narrativa, visto que se parece um jogo no qual
os dois tentam ser compreendidos, mas não conseguem. Em um determinado ponto,
parece que a conversa troca os papéis, a pessoa “B” está tão confusa com tudo que
foi proferido que acaba dizendo “Você é meu companheiro” (ABREU, 2005, p. 11) por
último, o que acaba dando a sensação de que isso nunca terminaria, visto que agora
“A” quer saber o que “B” tomou como significado disto.
Quando analisada a falha de comunicação que há entre os personagens fica
percebida certa insegurança. Dada a época que este conto foi construído e o contexto
histórico, aqui já situado como opressor, pode-se compreender que caso estes
personagens fossem do mesmo sexo não poderiam assumir um relacionamento por
medo de repressão. O que causa estranhamento é por justamente isso acontecer em
um diálogo, ou seja, uma conversa íntima. Desta forma, leva a entender que a repressão
ditatorial do período acabava por conseguir silenciar até mesmos as mais íntimas
confissões. Ao que parece os personagens estão receosos de sentir e expressar seus
sentimentos.
Por outro lado, pode-se questionar se estes personagens têm outros receios, ou
seja, seria por parte de ambos, medo de assumir um relacionamento, considerando
suas emoções e negando-as. Neste caso, o que torna o diálogo de difícil compreensão
se dá por conflitos internos dos personagens que podem ter inúmeras causas. E as
respostas não ficam claro nas falas:
A: eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
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B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein? (ad infinitum) (ABREU, 2005, p. 11).
A conversa prossegue sem fim, um questionamento sobre quem um é na vida
do outro, o que se percebe é a falta de coragem em assumir ao outro, ou até mesmo
aceitar. Dentre as questões aqui analisadas não se sabe se este receio é um receio de
medo social, em assumir-se como gay em uma sociedade opressora ou conflitos internos
e emoções não esclarecidas.
1.2.2 O Amor no Conto “Os Sobreviventes”
No conto “Os sobreviventes”, os personagens não são denominados por “A” e
“B”, mas sim por pronomes pessoais. Eles também não possuem nomes e não são
identificados de outra forma que não seja “eu” ou “ela”. A palavra “eu” é apresentada
de maneira oposta à palavra “ela” no texto, ou seja, pode deduzir que se trata de uma
conversa entre um homem e uma mulher. O discurso é feito em primeira pessoa, as falas
se apresentam de forma confusa em meio à descrição das cenas e dos atos, discurso
direto e indireto, por isso necessita de grande atenção do leitor, para que as falas não
se percam e não sejam incompreendidas.
É apresentada uma relação que por muitos anos deu certo, mas agora eles estão
sentados juntos e bebendo, discutindo sobre o que passaram, mas que agora precisam
esclarecer tudo, como é possível observar em:
Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo,
inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos,
tantos pontos de vista sócio-políticos existenciais e bababá em comum só
podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta.
Que foi que aconteceu, que foi meu deus que aconteceu, eu pensava depois
acendendo um cigarro no outro e não queria lembrar, mas não me saía da
cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios que nem sequer ficaram
duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez
na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Eu quero dizer que sim, que
acreditei, mas ela não para, tanto tesão mental espiritual moral existencial
118 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
e nenhum físico, eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes,
éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais,
éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos
não endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo
da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te
possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos
corpos, eu enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite e pedia mete
fundo, coração, explode junto comigo, me fode, depois virava de bruços e
chorava no travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas
agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta (ABREU, 2005, p. 27).
Durante essa conversa, é possível notar a frustração de ambos e o que eles tinham
de resolver, eles bebem e fumam, discutem o que tinham de gostos em comum e que
mesmo assim não fora suficiente para que ficassem juntos. Afinal, a maior questão
representada no conto é a sexualidade deles, ambos se viram interessados por pessoas
do mesmo sexo, ou seja, ele era gay e ela se reconhecera como lésbica, como é possível
identificar em “o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu
negócio é homem e o meu é mulher” (ABREU, 2005, p. 12).
Descrevendo quem eles eram e quem se tornaram, de como juntos puderam
construir identidades e ideologias e de como tudo mudou ao ponto de não se
reconhecerem, o fracasso e a descrença no futuro causam a desolação:
Mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser
continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah,
passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos
frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede, preciso tanto tanto tanto,
cara, eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era (ABREU, 2005, p. 15).
Desta forma, em “Os sobreviventes” há uma profunda discussão entre dois
personagens gays. Um homem e uma mulher que dividem suas histórias e amarguras.
Uma tensa conversa com tom de desabafo. Nesta conversa, a personagem feminina tem
muito mais fala que o homem, e isto a difere da sociedade, na qual a mulher costumava
ser submissa e não ter voz. No entanto, os personagens são opostos a tais regras sociais.
E neste caso, é possível identificar em vários momentos que ela interrompe o que ele está
falando. Dando mais importância para o que ela tem a dizer, ou com grosserias e desdém
do que ele diz, ela parece ansiosa, ou com uma agonia muito grande, precisa desabafar,
falar sobre o que está sentindo. Só assim parece que será suficiente para tirar esse peso
de suas costas, por ela isso bebe sem limites e fuma sem pensar em consequências.
Embora a sexualidade deles esteja praticamente “decidida”, isto é, ela fica com
mulheres e ele com homens, esse fator não é suficiente para evitar que eles tentassem
se encontrar sexualmente. No entanto, todas experiências de sexo foram frustrantes.
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 119
Todavia, o relacionamento deles como amigos ia além de uma simples amizade,
havia lealdade, cumplicidade e principalmente amor. Os personagens mantinham-se
preocupado um com o outro. Como mostra a narrativa:
Enquanto você, solidário & positivo, apertava meu ombro com sua mão
apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa
dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária
e bababá bababá (ABREU, 2005, p. 14).
São situações as quais comprovam que eles ao menos possuíam a vontade de que
tivessem dado certo juntos. Por algum motivo, eles decidem ficar separados e cada um segue
o rumo da sua vida sem tocar mais nesse assunto. Em nenhum momento eles pensam no fato
de que a bissexualidade poderia ser uma opção a ser considerada, já que eles se gostavam,
mas provavelmente as questões sexuais acabaram pesando muito mais para ambos e o fato
de não haver atração nesse ponto fez com que eles tivessem tomado tal decisão.
O desenrolar do conto fala sobre as expectativas que os sujeitos têm para o
futuro. A personagem feminina não consegue acreditar em nada de positivo para sua
vida. Ela se vê presa na mesma vida infeliz e se conforma com seu futuro desconhecido.
No entanto, para o personagem masculino ela fala forjando um futuro diferente “você
vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando
qualquer coisa como ontem à noite” (ABREU, 2005, p.14).
Fica notável ainda, o comportamento da mulher ao dizer que deseja sucesso para
seu ex-parceiro, fica claro o tom de ciúme e raiva ao dizer que espera felicidade e que
tudo fique certo para ele, no fundo ela estava se sentindo reprimida e não podendo
expressar realmente o que gostaria:
[...] te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como
aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bonita,
uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo,
que nos faça acreditar em tudo outra vez, que leve para longe da minha
boca esse gosto podre de fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não
tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos
mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave
gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Por trás da
madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Ângela, nem que eu rastejasse
até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo e repetindo que tudo vai bem, tudo
continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto
até que o elevador chegue axé, axé, axé, odara! (ABREU, 2005, p. 16).
Evidente, que a personagem feminina se despede em tom de quem entende que
não há nada mais o que o amigo possa fazer por ela. Eles lutaram, fracassaram, mas são
120 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
sobreviventes e agora precisam continuar. Esta sensação de que há um futuro incerto e
agora sozinho é uma liberdade que assusta. Como seguir sem quem sempre esteve ao
seu lado? A falta de resposta e o medo do desconhecido causa toda a aflição presente
na personagem. Para Zygmunt Bauman (2001, p. 26), “A verdade que torna os homens
livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir”. Ou seja,
deixar o amigo partir é a liberdade que a personagem menos desejava para si.
1.2.3 O Amor no Conto “Além do Ponto”
No conto “Além do ponto”, o amor é representado de maneira diferente do que
fora colocado na obra anteriormente, não há a presença física de uma segunda pessoa,
de maneira que ela não é citada diretamente, mas somente como “ele”. O personagem
se encontra em meio a um amor platônico, um amor não-correspondido, suas intenções
foram falhas, ele não obteve sucesso no amor que esperava receber e o conto mostra
a sua frustração, assim como a sua expectativa em relação a essa pessoa que ele ama.
Este amor o induz a negar a própria identidade, mostrando uma vergonha de si, na qual
tenta esconder do amado a sua real situação “talvez eu não quisesse que ele soubesse
que eu era eu, e eu era” (ABREU, 2005, p.30).
Como se nota, o conto mostra um personagem com o psicológico altamente
abalado, uma pessoa sensível e que demonstra uma crise de identidade muito grande,
sua personalidade é problemática, ele não se encaixa no que a sociedade vê como uma
pessoa saudável e que possui controle psicológico de sua vida. Isto acaba espelhando na
sua personalidade, tornando-o em um ser fraco. Chaplin defende que a época interfere
diretamente na formação da personalidade do indivíduo “frustração de toda uma
geração também dividida entre a ilusão do sonho e do amor e a repressora realidade
que se instaura” (CHAPLIN, 1999, p. 12) corroborando para que o ser seja fruto da sua
época e neste caso uma época complicada.
Desta forma, o período conturbado interfere na vida do sujeito tornando o
inseguro e que ao mesmo tempo um sonhador que almeja viver um amor. Visto que
acaba afetando suas necessidades criando um indivíduo carente a ponto de colocar
suas esperanças em um amor incerto. O anseio por encontrar aquele que ama à sua
espera é o que o move a cada passo e conduz cada escolha feita em seu percurso.
Logo no início do conto, é possível observar que o personagem não estima
esforços para atingir esse objetivo que tanto corre atrás, ele se coloca já de começo
numa situação complicada e que poucos estariam, chove e ele prefere andar no meio
deste clima nada agradável para que não precise gastar o pouco dinheiro que tem em
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 121
um meio de transporte que possa levá-lo ao seu destino, ele pretende guardá-lo para
comprar bebidas, o que é capaz de afogar os sentimentos reprimidos e machucados
que ele tem:
Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem
guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma
garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse
jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na
mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia
ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse o táxi não
poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que
seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque,
fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela
sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos, beberíamos sem medidas,
haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho
dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos
(ABREU, 2005, p. 39).
Erich Fromm fala sobre a questão do homem nessa relação que o mantém
preso “o homem – de todas as idades e culturas – vê-se diante da solução de uma só e
mesma questão: a de como superar a separação, a de como realizar a união, a de como
transcender a própria vida individual e encontrar a sintonia” (FROMM, 1991, p. 27).
Ao decorrer do conto, a sensação que passa para a pessoa que está lendo é de que
o amor que está esperando por ele, é um amor correspondido, que a pessoa realmente
fica ali no aguardo de que, mesmo na chuva, molhado e com cheiro de conhaque, o
seu amante chegue, é possível identificar isso em:
Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas
roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de
abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem
nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo
porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar
parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que
eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas
ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a
minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um
sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque
barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da
cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva,
era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão
perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o
conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria
lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-
las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda,
122 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele
arrumaria uma cama larga com muitos cobertores [...] (ABREU, 2005, p. 40).
O fim do conto se dá quando o personagem chega ao seu destino, mesmo depois
de todos os problemas e dificuldades que passou em sua jornada, o que pode ser uma
metáfora para a vida de uma pessoa que se assume como homossexual, e mesmo
aguentando tudo até o ponto onde deveria estar, a pessoa que ele esperava, não o
atende, ele permanece batendo na porta até que alguém atenda, mas a única coisa
que tem a receber é a frustração de uma porta fechada, a chuva, o cheiro do conhaque
e seus cigarros molhados.
A questão de sua chegada ao destino e a relação do título “Além do ponto” fazem
fortes referências a uma situação que literalmente passou do ponto que deveria, isto
é, foi além do previsto. Toda a vontade e esperança de ser recebido pelo parceiro, que
teoricamente o esperava em casa e no fim não estava, pode vir a ser uma referência das
questões pessoais dos indivíduos que se encaixam em uma sexualidade complicada e
pouco aceita, que mesmo depois de tanto andar por um caminho que buscava alcançar,
acaba sendo tão difícil quanto foi representada no conto e não é como ele espera.
A necessidade de amar e ser amado é comum entre todos os homens, seja
como for sua personalidade, sexualidade ou qualquer outra coisa, mas é muito mais
restrita e inalcançável por um homem que tem relações com outro, e não um casal
heterossexual, a repressão se torna uma coisa muito presente e que tende a colocar
muitos obstáculos no meio do caminho de quem procura esse amor quase impossível.
Dr. Fromm diz sobre o amor:
É uma força ativa no homem, uma força que interrompe pelas paredes
que separam o homem de seus semelhantes, que une aos outros; o
amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação,
permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor
ocorre o paradoxo que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam
dois (FROMM, 1991, p. 36).
É importante perceber que esses contos foram retirados da parte “o mofo” da
obra, que é dividida em três partes. Ou seja, mostra que é a parte mais amarga ou
azeda que o livro possui, por todas as consequências e o que a Ditadura Militar trouxe
para os indivíduos que presenciaram esse momento na história de nosso país. Foi um
período difícil, no qual as pessoas eram perseguidas, censuradas, machucadas, seja
esse ferimento físico, emocional ou moral. Foram tempos de muita luta e esforço para
que suas vozes não fossem caladas em nenhum momento.
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 123
Em entrevista a Marcelo Secron Bessa, para a revista Palavra, do Departamento
de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em dezembro de 1995,
Abreu ironicamente comenta:
Acho que sou uma figura atípica na literatura brasileira, enquanto uns fazem
literatura limpa, eu sou o oposto, porque lido com o trash, de onde tiro não
só “boa literatura” mas também vida pulsante. Acho que isso é aterrorizante,
principalmente no meio universitário. Tudo é muito estético, é tudo muito
cristalino. Mas deve ser insuportável para a universidade brasileira, para a
crítica brasileira assumir e lidar com um escritor que confessa, por exemplo,
que o trabalho de Cazuza e Rita Lee influenciou muito mais que Graciliano
Ramos. Deve ser insuportável (ABREU, 1997. p. 11).
Evidentemente as obras de Abreu são diferenciadas, o autor privilegia temáticas
que abordem situações do cotidiano, e seus contos mostram a atmosfera vivida na
época. No entanto, sabe-se hoje que isto acabou por valorizar sua escrita que representa
grupos minoritários e aborda lutas vivenciadas. Introduzir em sua obra tais lutas,
mostrando de verdade o que se passava na sociedade da época, permite compreender
o quão importante o escritor foi para nossa literatura, pois ele coloca em seus contos
a verdade, como Barcellos diz:
Semelhante instrumento torna-se mais relevante ainda, no caso daqueles
grupos – como os gays, os negros ou os judeus – que historicamente foram
vítimas preferenciais de processos de marginalização, sujeição e perseguição.
Para esses grupos, abrir mão da literatura é abandonar um instrumento
precioso de conscientização e resistência ao monologismo inerente ao
discurso do poder hegemônico (BARCELLOS, 2006. p.441).
É possível observar a violência e a perseguição por esse grupo, no conto “Terça-
feira Gorda”, onde o personagem se encontrava em uma relação amorosa com um
homem que havia conhecido no Carnaval em que estavam:
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o
braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez
com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-
ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito
abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca
molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente
caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas
sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros
todos em volta, muito próximos. E finalmente a queda lenta de um
figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços
sangrentos (ABREU, 2005, p. 47).
124 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
A Ditadura deixa então, uma marca muito forte e profunda nas pessoas, visto que
essas pessoas consideradas “comuns” aos olhos da sociedade da época fazem com que
seja um momento muito difícil e doloroso para quem não fazia parte desse grupo. Sendo
assim, eles reprimiam e agiam até mesmo de forma violenta e sem pensar que estavam
ferindo outras pessoas, sejam essas feridas físicas realmente ou mental. Considera-se
que Abreu estava sendo reprimido por esse movimento e que ele usava suas obras
para se expressar, consegue-se ver com clareza, nos seus contos, esses “ferimentos”
que foram deixados e que agora dificilmente são curados ou esquecidos, assim como
foram imortalizados em suas obras.
1.3 O SEXO HOMOAFETIVO NA OBRA
Perpassando uma época regida por princípios morais aos quais sexo era tabu
(embora ainda não seja possível afirmar que nos dias atuais o tópico não seja mais
considerado como um tabu, visto que ainda é bastante complicado de se comentar
sem que gere grandes polêmicas), é necessário um amadurecimento ainda maior nas
pessoas para que depois, possa ser tratado como um assunto considerado “normal”
pela sociedade. Em Morangos mofados, Abreu demonstrou pouca preocupação em
delinear sua escrita em torno de qualquer censura, crítica ou opressão. Pelo contrário,
o livro aborda justamente as mais perseguidas relações, as homoafetivas tidas como
errôneas, pecaminosas e até uma afronta ao “politicamente correto”, ou seja, uma
expressão comumente utilizada para se referir a pessoas e atos que estavam de acordo
com o que a sociedade brasileira via como a forma correta de ser e agir, aos olhos dos
próprios julgamentos.
Abreu fez uso da literatura para retratar a vida de sujeitos marginalizados perante
a sociedade de forma a expor quão difícil era vivenciar esta época ditadora, as lutas
políticas sociais eram enfrentadas por todo aquele que não concordassem com o que
era imposto pelo governo. Todo sujeito que tivesse em si o desejo de contracultura e
lutasse em pró dos próprios princípios eram tidos como errados e até criminosos. Este
cenário de uma luta infundada na qual afasta do ser humano até mesmo o direito de
ser um formador de opinião e busca sujeitos fáceis de serem controlados em favor de
um regime opressor é relatado por Abreu que usou da literatura forma a resenhar toda
a situação do Brasil ditatorial que soube perseguir e até matar sua gente como pode-se
ler na narrativa de Morangos mofados, como se mostra no conto “Terça-feira gorda”:
Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver
três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo
em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 125
no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até
esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos (ABREU, 2005, p. 43).
Para Barcellos fazer uso desta ciência como documento de testemunho de uma
época é uma importante arma:
Semelhante instrumento torna-se mais relevante ainda, no caso daqueles
grupos – como os gays, os negros ou os judeus – que historicamente foram
vítimas preferenciais de processos de marginalização, sujeição e perseguição.
Para esses grupos, abrir mão da literatura é abandonar um instrumento
precioso de conscientização e resistência ao monologismo inerente ao
discurso do poder hegemônico (BARCELLOS, 2006. p. 441).
Dentro desse contexto os sujeitos eram submetidos a fundamentos regidos pela
heteronormatividade6, a qual possui como princípio que orientações sexuais diferentes
da heterossexual sejam marginalizadas, condenadas ou perseguidas por práticas
sociais, crenças ou política e qualquer orientação sexual que fosse contrária a isto era
considerado vício. Abreu criou seus contos para mostrar o quão marginalizados são os
homossexuais, como afirma Marques Filho:
O discurso homofóbico apresenta o homossexual como uma espécie
de criatura contraditória e impossível, pois é, ao mesmo tempo, um ser
inadaptado socialmente, uma espécie de ‘monstro’ raro antinatural, um ser
que representa o fracasso moral e, sobretudo, um pervertido sexualmente
(MARQUES FILHO, CAMARGO, 2007 p. 78-79).
Não houve por parte do escritor nenhuma intenção de camuflar as ações sociais
diante daqueles que assumem sua homossexualidade ou as reações negativas na vida
destes que são perseguidos e hostilizados por divergirem do gosto sexual da maioria.
Contrariamente, a obra literária de Abreu tornou-se uma produção literária de caráter
testemunhal da sua geração, permitindo descrever um período nebuloso do Brasil, a
qual fica reconhecido o saldo trágico em muitas vidas que acabaram por ser devastadas,
oprimidas e até se findaram ali. Sem meias palavras o autor fez da sua obra espelho de uma
época que apesar de triste, não deve ser esquecida, mesmo porque alguns dos costumes
daquela época ainda assombram a atualidade, como por exemplo, a homofobia, rejeição
ao homossexual, que em pleno século XXI ainda assola os homossexuais.
6
Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais,
sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição
de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das implicações da aludida palavra, tem-
se o heterossexismo compulsório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo
inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de
reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais (FOSTER, 2001, p. 19).
126 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
Abordar o sexo dentro de obras literárias pode ser considerado um modo banal
de se fazer literatura, visto que a maioria dos livros que falam sobre o assunto foram,
em algum momento, considerados como inapropriados e até mesmo algum deles
foram censurados, como por exemplo a obra literária Admirável mundo novo, de Aldous
Huxley, que foi banida de várias bibliotecas nos Estados Unidos por mostrar, na visão
de pais e leitores conservadores, que o sexo promíscuo era legal e não deveria ser feito
somente por amor ou com o intuito de gerar uma família. Isso é ainda mais evidente se
considerado a sociedade conservadora do século XX, na qual sexo deveria ser assunto a
ser tratado de forma restrita que caberia aos casais heterossexuais construídos perante
a família e a igreja e com a função de permitir a reprodução. Segundo Foucault:
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de
casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade
da função de reproduzir [...] um único lugar de sexualidade reconhecida, mas
utilitário e fecundo: o quarto dos pais (FOUCAULT, 1988, p. 9-10).
Discorrer sobre sexualidade dentro da obra compactuou para que o livro se
tornasse uma literatura representativa do homoerotismo, visto que, representa
o erotismo, o amor, o desejo e as frustrações de sujeitos que eram vistos como
errôneos e merecedores de ficarem as margens da sociedade. As obras de Caio
pouco consideram qualquer tipo de problemática em torno do assunto sexo, sua
representatividade era do ser humano e pouco interessava a ele filtrar o sujeito
para compor personagens bons aos olhos de doutrinadores, como o próprio autor
comenta, ainda, em entrevista a Bessa:
Refletindo sobre “Pela noite”, cheguei à conclusão de que ela é uma história
antigay. Pérsio odeia gay, tem um discurso antigay fantástico. Mas dei uma
entrevista enorme para a revista Sui Generis, onde falo nisso. Acho que
literatura é literatura. Ela não é masculina, feminina ou gay. E como o ser
humano também não é. Eu não acredito nisso, acho que existe sexualidade,
com homem, mulher, vaca, criancinha, velhinho, com buraco de fechadura.
E se nós formos compartimentalizar essas coisas, acho que dilui, pois fica
uma editora gay, publicando escritor gay, que vai ser vendido numa livraria
gay, que vai ser lido apenas por gay. Enquanto que a idéia minha, eu como
astrólogo também, é uma visão aquariana, de fundir todas essas coisas,
todas essas possibilidades numa só. O homem é muito vasto (ABREU,
1997. p. 15).
Consequentemente, o autor aborda em suas narrativas erotismo implícito ou
explícito representando o sexo e suas diversas formas de acontecer. Desenhando o
sexo na sua íntegra valorizando a forma que o prazer acontece, de como a busca pelo
prazer é uma necessidade humana de satisfação. Para o autor o sexo é muito mais do
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 127
que o ato em si, ele é um estado de pensamento, como ele relata no livro Os dragões
não conhecem o paraíso:
Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você
goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real,
entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem
tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy (ABREU,
2010 p. 11).
A escrita de Abreu é uma escrita que pode abranger as palavras mais comuns aos
cânones literários, como a palavra “amor” e até mesmo ir a palavras tida como chulas,
podendo causar espanto aqueles que não conhecem seu estilo. Há vocábulos como:
“boceta”, “pau”, “fode” que podem causar estranheza ao receptor do texto. Porém, esta
é outra evidência de que o autor não se prendeu ao risco de ser censurado, mesmo
estando em meio a uma época em que a censura permeava o meio artístico, ele fez da
sua escrita um espelho dos anos 60, 70, 80 do século XX. Permitindo a aproximação de sua
obra com o leitor que é conquistado pelo equilíbrio entre a linguagem literária e a escrita
mais informal. Ao que se percebe Caio tinha a forma desafiadora de ser e escrever. Na
obra O conto brasileiro contemporâneo Antônio Hohlfeldt analisa como a obra de Abreu
se torna importante pela sua originalidade, ou seja, como o autor representou o período
e todo seu drama sociocultural “A literatura de Caio Fernando Abreu oferece importante
contribuição às letras brasileiras justamente por enfocar, com perspectiva própria, o drama
que então se vivia no momento mesmo de sua ocorrência” (HOHLFELDT, 1981, p. 145).
Ainda como forma de representação, Morangos mofados vai delineando os
relacionamentos homoafetivos representando personagens que descobrem em algum
momento de sua vida que tem esta inclinação sexual e o autor proporciona ao leitor
reconhecer em cada personagem a natural essência da alma humana. Os personagens
de Abreu têm em si marcas de toda a repressão aos quais são vitimizados, a obra vem
repleta destas marcas são angústias, medos, tristezas, desesperanças. Na sua maioria os
personagens estão cansados, oprimidos, os contos vão acabar de forma a refletir a dor
da alma humana, mesmo após um ato sexual, estes personagens terão em si alguma
tristeza. Outra marca são as dependências é bastante comum durante um conto esse
sujeito ter um contato com cigarros, álcool ou algum tipo de drogas como escape para
sua realidade ou seus traumas.
1.3.1 O Sexo em “Os Sobreviventes”
Em “Os Sobreviventes (Para ler ao som de Ângela Ro-Ro)” agora o sexo também
é tido como uma forma de tentar escapar dos devaneios e dores que as outras pessoas
da sociedade traziam aos que eram vistos como “diferentes”. No entanto, neste conto, a
128 FAE Centro Universitário | Núcleo de Pesquisa Acadêmica - NPA
tentativa dos personagens não é apenas um escape temporário, pelo contrário trata-se
de uma tentativa de fugir a própria identidade. O conto narra uma conversa íntima, uma
mulher e um homem. Dois jovens representantes de uma geração revolucionária entre
os anos 60 e 80. Ambos gays, vivenciaram toda a juventude juntos, dividiram sonhos,
ideais e parecem estar se despedindo. A conversa começa com a ideia de uma nova
vida que será empreendida pelo personagem masculino em outro lugar do mundo Sri
Lanka: “Sri Lanka, quem sabe? ela me pergunta, morena e ferina, e eu respondo por
que não?” (ABREU, 2005 p. 11). Os discursos têm tom melancólico e revela as lutas de
dois sujeitos homossexuais que acreditaram que poderiam ir contra o sistema a qual
pertencem, uma sociedade conservadora que não aceitava os desejos homossexuais.
O tom da conversa vai revelando que mesmo em meio a lutas, tentativas, busca
por uma solução eles fracassaram. A personagem feminina vai traçando o mapa deles,
trata-se de dois jovens intelectuais, que um dia acreditaram que poderiam sobreviver
e vencer as políticas impositivas da época que se internalizaram, mas que ao fim se
viram é vencido, exaustos e desesperançosos:
Um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa
de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego
de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico
onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa
bunda e essa exótica mesinha-de-centro em junco indiano que apóia
nossos fatigados pés descalços ao fim de mais outra semana de batalhas
inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados
(ABREU, 2005, p. 11-12).
O desabafo entre amigos reflete a falência do indivíduo que tenta se adequar
diante deste sistema. Não há exageros quando eles chegam à conclusão que tentaram
de tudo. Houve, sim, uma tentativa desesperada de ir contra tudo até mesmo contra
a própria identidade, em busca de adequação dentro da sociedade, no sentido de que
estes personagens pretenderam mudar seus desejos um no corpo do outro tentaram
despertar o desejo heterossexual. Como resultado disso, o ato sexual só aumentou o
sentimento de exaustão deles perante o mundo que julgava importante coibir desejos
divergentes aos considerados ideais.
A soma desta luta interna contra si mesmo, contra os próprios desejos, veio a
resultar em sujeitos entregues ao álcool que juntos fazem um balanço negativo de
duas vidas visivelmente amarguradas e marcadas por opressões. É de fácil conclusão
que eles não queriam a luta contra si mesmos, mas que era a luta que supostamente
seria mais facilmente vencida. A sociedade estava no auge da ditadura, eles não eram
os únicos a serem rechaçados, oprimir era a forma como essa sociedade trabalhava,
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 129
marginalizando todo aquele que divergisse do que para ela era ideal. Aline Bizello analisa
o impacto deste sistema na sociedade:
Os relatos de seus textos denunciam o sistema repressor responsável
pela privação dos sonhos, ideais e esperanças de liberdade, embora não
descrevam de forma explícita a ditadura militar no Brasil. O escritor, com
suas personagens, agride o ‘status quo’ dominante, pois apresenta indivíduos
de perfis opostos aos exigidos pela sociedade tradicional: são homens e
mulheres fragmentados e destituídos de identidade. Dessa forma, valendo-
se de metáforas, Caio desmistifica a visão de identidade una, denunciando,
assim, a fragmentação do indivíduo (BIZELLO, 2005, p. 3).
A negação da própria identidade como efeito de uma repressão que destruiu
sonhos e ideais leva ao caos psicológico. Foi dessa forma, que eles decidiram ir contra
si próprios e forjar juntos uma nova identidade, procuraram no sexo um do outro esta
tentativa de escape de si mesmos. Isso foi contra a própria natureza, ocasionando
tamanho fracasso. Conforme Foucault argumenta:
As relações que devemos manter conosco mesmo não são de identidade, mas
sim de diferenciação, criação, inovação. É muito tedioso ser o mesmo. Não
devemos excluir a identidade, se ela dá prazer às pessoas, mas não devemos
concebê-la como uma regra universal (FOUCAULT apud TRONCA, 1988:880).
No entanto, a sociedade conseguiu entender que o homem é escravo da sua
essência e, por vezes, também escravo de seu sistema que nega os anseios individuais,
sendo assim, o fardo que o leva a sobreviver apenas e não a viver plenamente.
Inevitavelmente este ato sexual serviu para reforçar que eles eram, sim, homossexuais
e que seus desejos não cederiam aos seus anseios de agradar à sociedade. Só resta,
como diz o título do conto, sobreviver. Apesar disso, a reação dos personagens do conto
se dá de formas distintas. De um lado, a personagem feminina sente a desesperança
tomar conta de sua alma e quer apenas viver suas desgraças trabalhando para manter
o sistema que tanto despreza e aceitar a sarjeta imposta por não ter conseguido
mudar o mundo ou se adequar a ele, por outro lado temos o personagem masculino
que demonstra esperança de deixar o amargo das repressões que viveu no Brasil para
trás, indo em busca de uma nova vida em outro lugar no mundo levando consigo os
mesmos desejos e ideais que apesar da opressão a qual sofreu não matou seus desejos
e anseios. A despedida desses amigos se dá diante de um vaso sanitário em vômitos,
os dois expulsando para fora tudo que o corpo não pôde absorver e ao som de Ângela
Ro-Ro (mencionada no título do conto) as duas vidas se separam desistindo das lutas
que juntos traçaram e não puderam vencer.
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1.3.2 O Sexo em “Terça-Feira Gorda”
Outro conto que traz dentro do livro o erotismo (e que já fora brevemente
mencionado anteriormente, porém falando sobre outro tópico), aqui será retomado
a propósito da relação sexual presente nele. Representando paixão e desejo é “Terça-
Feira gorda (Para Luiz Carlos Góes)” com tom subjetivo e narrado em primeira pessoa o
conto narra a história de dois sujeitos masculinos que estão em uma festa carnavalesca,
na qual sentem de imediato grande atração um pelo outro. O narrador-protagonista
descreve como esta atração culminou em um jogo de sedução dando abertura para que
eles confessassem um ao outro o desejo: “Eu queria aquele corpo de homem sambando
suado bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você também”
(ABREU, 2005, p. 40).
A descrição da cena em detalhes demonstra a intenção de confiar ao leitor toda a
erotização que permeou aquele momento festivo. O modo como são narrados o corpo,
o suor, a pele e a boca, permite compreender tamanho desejo os dois compartilharam
em um curto espaço de tempo. A aproximação dos mesmos logo ocasionou a crítica
social, prontamente surgiram ofensas de uma sociedade que se fez escandalizada,
como mostra a narrativa: “Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora.
Em volta, olhavam” (ABREU, 2005, p. 41).
Contudo, mesmo em meio a estas atitudes de violências psicológicas os
personagens mantiveram-se presos aos desejos, porém não sem antes se afastar
da festa. Em pró da vontade de estarem juntos seguiram para a praia, no caminho
houve mais vestígios de intolerância como, por exemplo empurrões. Enquanto eles
se afastavam do tumulto, o protagonista percebe que eles não usavam máscaras, isto
era um diferencial para a festa de Carnaval. No entanto, eles não mascaravam nada.
Ao que se percebe, aqui o autor deixou uma metáfora de que por não mascarar seus
desejos, suas vontades foram eles alvo de perseguição.
O desejo de estar um entre o corpo do outro se deu na areia da praia, os
dois homens ansiosos um pelo outro puderam enfim se aproximar: “A gente queria
ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo
a metade perdida do corpo do outro” (ABREU, 2005, p .42). E todo este instante é
narrado em detalhes mostrando a forma como os dois homens vivem aquele momento
intensamente, um completando o outro, um satisfazendo ao outro, seus corpos doados
aquela paixão, como mostra o trecho: “O mamilo duro dele na minha boca, a cabeça
dura do meu pau dentro da mão dele” (ABREU, 2005, p. 42). O momento seguinte não
fora como planejaram logo o preço da desobediência às normas sexuais ocasionou o
medo, a dor, a fuga e findou em uma morte. Como vemos na metáfora da última frase
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 131
do conto: “até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos” (ABREU, 2005,
p. 43). A soma dessa tentativa de amar se deu na morte de um dos sujeitos, e a dor do
protagonista que na fuga pôde ver o corpo que tanto desejou transformado em nada.
Desta forma, o Carnaval, conhecido como a festa da carne e pela liberdade
dos foliões reprimirá dois homens que sentiram o desejo e buscaram um no outro a
saciedade. Um ato em público teve como testemunhas foliões homofóbicos prontos
a coibir, a limitar o desejo, o prazer e até mesmo o pensar dos que não seguem à
heteronormatividade, ou seja, os que não têm desejos comuns. Esta repressão sexual
é fruto de uma sociedade repleta de costumes doentios os quais não toleram desvios.
Para Foucault: “A ideia do sexo reprimido, portanto, não é somente objeto de teoria.
A afirmação de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor [...]”
(FOUCAULT, 1988, p. 13).
Abreu aproximou o leitor destes personagens o máximo que pôde, tornou a
narrativa em primeira pessoa, buscou esclarecer que eram dois homens que desejavam um
ao outro. Isto é, eles não eram declarados homossexuais, nem tão pouco heterossexuais,
eram apenas dois sujeitos em posse de suas vontades, em uma noite de festa tentando
viver o momento diante de outros foliões que ao ver dois homens unidos pelo desejo
transformaram-se em algozes possuintes de regras que não concordam como o sexo entre
iguais. No entanto, a crueldade é tida como forma de fazer justiça. Diante desta narrativa
o leitor pode junto do protagonista passar do desejo ardente, ao pânico, a culpa e fica o
gosto amargo da dor e da injustiça reconhecendo a que ponto chega a crueldade do ser
humano que comete tamanha barbárie em nome de regras sociais e morais.
1.3.3 O Sexo em “Sargento Garcia”
A literatura de Abreu é escrita de forma que seus personagens e suas lutas possam
ser objetos de reflexão dentro da sociedade. O autor cria cenários, situações com
tamanha verossimilhança ao cotidiano que possibilita ao leitor sentir-se introduzido nas
cenas narradas. Na obra analisada, um dos seus principais contos é “Sargento Garcia
(À memória de Luiza Felpuda)” que conta como pano de fundo um ambiente militar
no qual um recruta jovem chamado Hermes cumpre suas obrigações de cidadão e se
alista ao exército. No entanto, tudo que Hermes mais quer é sair daquele ambiente
que o faz se sentir constrangido e até mesmo ridículo, visto que se encontra sem trajar
uma peça de roupa sequer, sente-se exposto de forma humilhante. Tudo tende a piorar,
quando seu nome é bradado por Sargento Garcia, um militar ríspido que trata Hermes
de forma grosseira: “Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?” (ABREU, 2005. p. 60).
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Diante um do outro, o autoritarismo de Garcia contrasta com a timidez e até
mesmo fraqueza de Hermes. O garoto nu, sendo testado e até afrontado pelo militar
viveu naquele ambiente momentos de humilhação medo e angústia. Hermes sabia que
não era para aquele local, mas percebeu que toda aquela situação era pior do que pôde
imaginar. Isso o fez sentir como uma presa diante do predador: “O leão brincando com
a vítima, patas vadias no ar, antes de desferir o golpe mortal” (ABREU, 2005. p. 62).
A narração do ponto de vista do protagonista é bem detalhada, o que leva ao
leitor para dentro daquele contexto, possibilitando o reconhecimento da cena e de
seus personagens e aproximando a situação ao cotidiano deste leitor. Ao narrar o
comportamento do sargento, tudo se encaixa perfeitamente ao típico militar do século
XX, homem autoritário, com a necessidade de reafirmar sua masculinidade em cada
atitude, a busca pela forma mais rude de tratar o outro como ferramenta empregue a
favor de demonstrar o seu poder.
Criados de forma antagônicas, ambos personagens não têm em si nenhum tipo de
semelhança de identidades. Percebe-se o quão rude e ignorante é Garcia, e por outro
lado o próprio sargento define Hermes como: “Mocinho delicado, bem? É daqueles
bem-educados, é? Pois se te pego num cortado bravo, tu vai ver o que é bom pra tosse,
perobão” (ABREU, 2005. p. 63). Apesar de toda a discrepância entre as personalidades
dos personagens, a obra carrega em si peripécias surpreendentes, quando se começa a
ler o conto Hermes logo narra insatisfação em estar ali, desgosto e medo com a forma
ignorante de Garcia e até mesmo certo nojo do que ele chama de: “cheiro de bosta
quente de cavalo”. Por outro lado, a forma estúpida de Garcia tratar o recruta gera a
impressão de que são dois sujeitos sem quaisquer afinidades. No entanto, ali mesmo
naquele quartel diante de outros alistados a história começa a se desenhar de forma
a deixar pistas que esta narrativa guarda em si surpresas. Em uma das cenas em que
Hermes tentava superar a exposição de seu corpo ele conta em detalhes a forma que
o sargento o olhava de modo a lhe causar tremores:
Sem mover a cabeça, senti seus olhos de cobra percorrendo meu corpo
inteiro vagarosamente. Leão entediado, general espartano, tão minucioso
que podia descobrir a cicatriz de arame farpado escondida na minha coxa
direita, os três pontos de uma pedrada entre os cabelos, e pequenas marcas,
manchas, mesmo as que eu desconhecia, todas as verrugas e os sinais mais
secretos da minha pele. Moveu o cigarro com os dentes. A brasa quente
passou raspando junto à minha face. O mamilo do peito saliente roçou meu
ombro. Voltei a estremecer (ABREU,2005. p. 62).
Conforme a narrativa prossegue a reviravolta das atitudes destes personagens
vão demonstrando o quão enganosas podem ser as aparências. Após enfrentar Garcia,
Memorial TCC – Caderno da Graduação – 2020 133
o jovem que caminha aliviado pela dispensa do serviço militar se depara com a oferta
de uma carona, que surpreendentemente vem daquele que há pouco o submeteu
a inúmeros constrangimentos. E foi naquele carro que Garcia mostrou sua outra
face, a nova identidade do sargento era um homem de fala calma, que chegava a se
justificar por tamanha grosseria: “Tenho que lidar com gente grossa o dia inteiro.
Nem te conto. Aí quando aparece um moço mais fino, assim que nem tu, a gente
logo vê” (ABREU,2005, p. 67).
O jovem recruta observa que o clima dentro do carro começa a mudar, e não
tarda para que o sargento demonstre a Hermes que tem por ele um desejo. Hermes
revela que nunca teve nenhum tipo de relacionamento sexual, mas o desejo é mútuo
e os dois sujeitos vão para uma pocilga na qual o jovem tem nas mãos de Garcia a
experiência que modifica sua vida. Um ambiente narrado a representar uma legítima
espelunca que é recepcionado por uma simpática travesti de nome “Isadora” revelou
todo o lado oculto de Garcia, que ali era um homem que ia contra as éticas sociais, as
quais não aceitavam relacionamentos homossexuais, ainda mais vindo de um militar
de alto escalão. Neste lugar, Garcia tinha uma aliada que conhecia o lado camuflado
do militar: – “O senhor, hein, sargento? – piscou íntimo, íntima, para o sargento e para
mim. – Esta é a sua vítima?” (ABREU, 2005, p. 71).
A cena a seguir narra todo o ato sexual de um jovem sem experiência e um militar
acostumado a saciar seus desejos ocultos em homens aos quais ele era responsável
por selecionar a vida militar. É um sexo rápido no qual a rispidez de Garcia é o reflexo
de seu hábito de sempre demonstrar poder e masculinidade e mesmo ali diante de
outro homem que o satisfaz, ainda assim tenta se impor de forma rigorosa. Hermes
não teve de Garcia tratamento que se espera durante o encontro de dois corpos que
se desejam, pelo contrário, ele narra a forma bruta que tudo aconteceu:
Tranquei a respiração. Os olhos abertos, a trama grossa do tecido. Com os
joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando
passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas
mãos se fecharam sobre a minha boca. Ele empurrou, gemendo. Sem querer,
imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há
muitos anos, uma caverna secreta. Mordeu minha nuca. Com um movimento
brusco do corpo, procurei jogá-lo para fora de mim. – Seu puto – ele gemeu.
– Veadinho sujo. Bichinha-louca.
Agarrei o travesseiro com as duas mãos, e num arranco consegui deitar
novamente de costas. Minha cara roçou contra a barba dele [..] Ele soltou o
corpo. Como um saco de areia úmida jogado sobre mim (ABREU,2005, p. 72-73).
Consequentemente, a reação de Hermes foi sair daquele lugar o mais breve
possível, mas ainda no caminho ele sabia que não era o mesmo. Ali tudo mudou, apesar
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de não ter sido da melhor forma, Garcia despertou dentro do rapaz, que tantas crises
existenciais narrava ter tido, algo que jamais voltaria a adormecer. Ele se fazia convicto
que tudo havia mudado: “Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a
dormir” (ABREU, 2005, p. 74).
O que chama atenção neste conto é a possibilidade de questionar os personagens
tão bem criados e verossímeis, um jovem descobrindo a vida, ainda puro e perdido do
outro lado um homem maduro, que é a figura perfeita do homem sério e de família com
respeito social, mas que no fundo guarda em si desejos eróticos com outros homens.
O autor denuncia em Garcia a figura da hipocrisia daqueles que vivem presos às
amarras sociais por troca de status que os garantem respeito dentro do círculo social ao
qual convivem. No caso do sargento havia uma patente militar, na qual permitia que ele
fosse respeitado e bem-visto socialmente. Desta forma, Garcia sentia-se superior pelo
fato de ser um militar, acreditava ser uma figura importante dentro daquela sociedade
e queria demonstrar uma masculinidade superior aos demais. Mesmo que para isso
precisasse mascarar seus desejos realizando-os as escondidas. Ceccheto analisa tais
perspectivas hegemônicas:
O mais importante é perceber as relações de poder ou prestígio, na
constituição desses modelos hegemônicos e subordinados; isto é, o ideal
hegemônico criado num contexto de oposição a “outros”, cuja masculinidade
era desvalorizada. Desse modo, é sobre a emasculação de outros que se
constrói um tipo de masculinidade hegemônica. Na tentativa de se conferirem
uma masculinidade socialmente valorizada, certos grupos masculinos negam
outras versões de homem, transformando-as em duvidosas e desprezíveis
(CECCHETTO, 2004, p.66).
A partir do conto, é possível refletir a respeito de quantos Garcias e Hermes
existem por aí, um que sofrem todo tipo de opressão por não esconder sua verdadeira
identidade e outro que vive uma vida às escondidas pela covardia de assumir seus
desejos, e logo este ainda tenta representar a figura de masculinidade e poder, enquanto
não passa de um covarde que nega os próprios desejos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Traçar dentro de Morangos mofados um panorama de como Abreu concebeu
seus contos de modo a privilegiar indivíduos marcados pelos preconceitos e pelas lutas
sociais e como estes personagens enfrentaram tais dificuldades trata-se de uma tentativa
de compreender o efeito que tais lutas puderam ocasionar nestes sujeitos, os traumas
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que os levaram a solidão, o desolamento, as inseguranças, as crises existenciais, as
melancolias, os desejos de morte, entre outros. Tudo isso acaba abalando a realização
do sujeito seja social ou moralmente. Este saldo negativo da época ditatorial na qual
o livro foi escrito demonstra o engajamento social de Abreu que usa da literatura para
focalizar aspectos ligados às perseguições a homossexuais.
A narrativa é feita de forma a permitir uma interação do leitor com a obra e seu
desenlace proporciona um reconhecimento dos dramas vividos por estes personagens
levando ao leitor uma melhor percepção das dores e marcas que estes indivíduos
suportam e quais caminhos percorrem em fuga de tais conflitos seja através de drogas,
sexo ou negando a própria identidade.
O sexo na obra é tratado de forma natural, porém, bastante detalhado
possibilitando reconhecer nos indivíduos os mais legítimos sentimentos da alma
humanas. São sujeitos que buscam o amor, a felicidade plena, como qualquer outro
procura na própria sorte a satisfação pessoal. A forma de abordar o sexo homoafetivo
é a tentativa de desconfigurar a ideia de que sexo entre iguais é algo imoral que torna
vergonhoso o desejo homoerótico. Os contos levam a percepção de que o ato sexual
entre iguais parte das mesmas primícias do sexo heterossexual, ou seja, mútuo desejo
e a possibilidade no outro de satisfazer as próprias vontades.
Na realidade, Abreu tinha opinião muito bem formada sobre o que significava
sexo. Para o autor não cabia ao ato sexual ser categorizado. Em uma carta ao jornal O
Estado de São Paulo pode-se compreender as considerações do autor a respeito de sexo:
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade –
voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália
igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral
ou integridade (ABREU, 2006, p. 6).
Isto confirma que a preferência em abordar temas homoeróticos em sua obra
é puramente a forma com a qual o autor prioriza sanar que sexo é apenas estado
de excitação, nem o heterossexual é o sexo unânime e nem o homossexual é sexo a
ser desprezado, aquele que o pratica no ato sexual a forma de saciar seus desejos.
No entanto, sexo é apenas sexo, ou melhor sexo é um ato saudável que não cabe a
sociedade reprimir ou ditar regras para conceituá-lo como certo ou errado. Visto desta
forma, sua obra permite conhecer sujeitos cheios de desejos como quaisquer outros,
o que diferencia é a luta que estes personagens enfrentam e apesar de lutas distintas
o algoz é sempre o mesmo: uma sociedade opressora.
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