Raimundo Sérgio Queiroz da Silva1
Giovanna Petrola Rocha Viana Ferreira2
Bárbara Vitória da Silva Rocha3
Francisca Edineusa Pamplona Damacena4
As relações humanas são marcadas pela pluralidade de visões de mundo, de experiências e de
valorações, encontrando-se, de forma orgânica, cercada de conflitos atuais e potenciais. Assim, os espaços
de convivência institucionalizados mostram-se propícios à eclosão de diversos tipos de tensões, tais como
perseguições, desrespeitos, humilhações, disputas achacosas, entre outros tipos de conflitos. É nesse
contexto que emerge a urgência de práticas destinadas à restauração dos laços sociais, juntamente à
construção de ambientes não violentos.
Figura 1
1 Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). Graduando em Direito na Universidade Regional do
Cariri (URCA). Membro do Grupo de Estudos em Direitos Humanos Fundamentais (GEDHUF). E-mail:
[email protected]
2 Graduanda em Direito na Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: [email protected]
3 Graduanda em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Bolsista PROEX/FUNCAP/URCA do Projeto de
Extensão Construindo a paz por meio de círculos de Justiça Restaurativa. Voluntária do #tmjunicef do UNICEF. E-mail:
[email protected]
4 Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Direito Econômico e Socioambiental. Professora do
Curso de Direito da Universidade Regional do Cariri (URCA). Orientadora do Projeto de Extensão Construindo a paz por
meio de círculos de Justiça Restaurativa. E-mail: [email protected]
O projeto de extensão “Construindo a paz por meio de círculos de Justiça Restaurativa” surge
trazendo ao alcance da comunidade uma abordagem de resolução de conflitos que tem foco nas emoções
e relações das pessoas envolvidas, que figuram como vítimas e ofensores, com vistas a auxiliá-las na
recuperação de sua estrutura psicoemocional, oferecendo-lhe suporte à superação dos danos que
sofreram, das motivações e consequências dos comportamentos em que incorreram. Em vista disso, o
combate às múltiplas formas de violência, através de práticas dialógicas, guia as atividades do projeto,
balizadas pela voluntariedade, urbanidade, confiança, empoderamento e participação5.
Figura 2:Círculo de Construção de Paz no 9º ano do Colégio Municipal Pedro Felício Cavalcante - Crato/CE
Por conseguinte, mostra-se necessário conceituar a Justiça Restaurativa para insculpir no escopo
do projeto a metodologia adotada, podendo-se dizer que é o conjunto de valores e práticas destinados à
pacificação autocompositiva de conflitos em que a vítima, o ofensor e a comunidade atuam diretamente
na construção das resoluções. Com isso, os mediadores e facilitadores atuam no sentido de organizar as
práticas e inspirar os primeiros passos na direção da autocomposição6.
Mediante tal filosofia, os alunos do curso de Direito da URCA, sob a coordenação da Profa.
Dra. Francisca Edineusa Pamplona Damacena, dispõem-se a construir com as comunidades escolares da
Região do Cariri uma nova forma de tratar conflitos. Desse modo, estabelecem contato com o corpo
administrativo e pedagógico de unidades escolares, e, com informações prévias a respeito de demandas
de convivência e dos espaços e horários para a realização dos círculos de Justiça Restaurativa, instigando
5 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução Nº 225 de 31/05/2016. Dispõe sobre a Política Nacional de
Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: <
https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2289 >. Acesso em: 13 jun. 2022.
6 MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. In: XIII Congresso
Mundial de Criminologia, Agosto 2003, Rio de Janeiro. Disponível em:. < https://biblioteca.ce-
jamericas.org/handle/2015/1944 >. Acesso em: 13 jun. 2022.
os agentes dessas demandas a se expressarem e construírem, coletiva e transparentemente, com a
comunidade um ambiente saudável de crescimento.
O projeto traz como objetivos: (1) fomentar a implantação de um sistema de práticas
restaurativas voltadas para a defesa, proteção e promoção dos direitos fundamentais em escolas e
comunidades; (2) incentivar a ambiência restaurativa nas instituições e a abordagem restaurativa nas
relações; e (3) desenvolver ações voltadas à inclusão de práticas restaurativas em escolas públicas,
municipais e estaduais, no Cariri e na URCA, tanto para o tratamento de conflitos quanto para o
aprendizado de competências, atitudes e habilidades não violentas de comunicação voltadas à prevenção
de violências em contextos educacionais.
Figura 3: Círculo de comunicação não violenta na EEF ESTADO DA PARAÍBA-Crato/CE
O referido programa iniciou suas atividades em 2018, tendo suas atividades extramuros
suspensas entre 2020 e 2021 devido a pandemia de Covid-19. Suas atividades foram retomadas em 2022
e atualmente conta com 13 alunos voluntários e 1 aluno bolsista. As unidades de ensino onde ocorreram
as atividades foram: Universidade Regional do Cariri; Liceu Diocesano de Artes e Ofícios; Colégio
Estadual Wilson Gonçalves; Colégio Estado da Bahia; Colégio Estado da Paraíba; Colégio Municipal
Pedro Felício Cavalcante. Estima-se que 310 alunos já participaram dos círculos de Justiça Restaurativa.
A partir desse enfoque, utilizam-se círculos de construção de paz e círculos de comunicação não
violenta. Na execução dos processos circulares, observa-se um conjunto de princípios e atitudes voltadas
a conectar os participantes uns aos outros e propiciar um diálogo livre de julgamentos, despido de
estereótipos impostos pela coletividade, de modo a oportunizar a solução dos conflitos, fomentando o
respeito mútuo e o sentimento de perdão. Logo, os círculos são capazes de conferir o entendimento das
razões do outro, bem como o acolhimento de suas emoções e a percepção da dignidade dos participantes,
posto que vê-se o ser humano sob lentes restaurativas7.
A abertura para reconhecer a existência de uma demanda de convivência é a primeira e mais
desafiadora etapa do transcurso. A timidez, estranheza e distanciamento são reações comumente
estampadas pelos participantes no início das práticas, esse movimento acontece devido não só aos
instintos naturais de defesa, mas, sobretudo, pela atenção constante a respeito do que os colegas estão
pensando ou o que pensarão. Problemático e paradoxal é a sensação de não pertencimento àquela
comunidade ao mesmo tempo que se submete tão intensamente ao julgamento de seus pares.8
Contudo, essa barreira não se mostra intransponível quando os facilitadores criam com os
demais participantes um vínculo de identidade. Pois, a distância entre o “estrangeiro” e os familiares de
um mesmo grupo é superada pelo reconhecimento de que se trata de um indivíduo com as mesmas
aspirações, problemas, gostos, entre outras dimensões subjetivas. Trata-se de uma etapa imprescindível
para o bom aproveitamento das práticas restaurativas, qual seja, a sensação de confiança, familiaridade e
segurança que só pessoas ou grupos com alguma semelhança podem gerar9.
Figura 4: Objetos de centro que expressam o que busca-se oferecer ao círculo
7 ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas
Athena, 2008.
8 ROSENBERG, Marshall. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos. Trad. Mario Viela. São
Paulo: Ágora, 2006.
9 CARAVELLAS, E.M.C.T.M. Justiça restaurativa. In: LIVIANU, R. (Org.) Justiça, cidadania e democracia. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2009.
O projeto funciona da seguinte forma: o facilitador começa apresentando os objetivos da
prática, deixando claro a voluntariedade da participação ativa e a urbanidade no processo de fala e escuta.
Os participantes sentam-se formando um grande círculo e, ao centro, estão dispostos diversos objetos
que simbolizam os valores que se pretende cultivar naquele ambiente. Em seguida, o facilitador
desenvolve algumas reflexões sobre o tema do círculo, a demanda que foi apresentada, e convida os
demais participantes a se expressarem. A palavra é passada para cada integrante do círculo, que pode se
manifestar ou não, e os demais devem escutar atentamente. À medida que o tempo passa, na comunicação
orgânica do círculo, os participantes se sentem mais seguros para externar seus sentimentos e as tensões
subjacentes.
Tem-se, então, a orientação do diálogo no sentido de encontrar as raízes dos conflitos e,
consequentemente, gerar a empatia necessária para a resolução amistosa. A informalidade é um parâmetro
que permite a fluidez na comunicação, facilitando a expressão de sentimentos e o irromper das tensões
latentes. Ao final é aberto um espaço para reflexões coletivas sobre a importância da conversa e o que se
pretende extrair de positivo da experiência.
Figura 5: 9º ano do Colégio Municipal Pedro Felício Cavalcante - Crato/CE
Dentre as ideias que são caras às práticas restaurativas está a de que conflitos são frutos da má
comunicação, ou de sua falta. A exteriorização dos motivos de determinadas condutas, assim como a
exteriorização dos efeitos subjetivos daquelas condutas, cria o caminho de superação dos conflitos. Ou
seja, a comunicação, como habilidade social basilar da convivência, perde-se na mecanicidade do
cotidiano, ressaltando a urgência de momentos destinados à troca, onde todos possam falar e onde a
escuta seja efetivamente realizada10 (JACCOUD, 2005).
10 JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e
Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In: SLAKMON, Catherine;
VITTO, Renato; PINTO, Renato. (Org.) Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, 2005.
Figura 6: Turma do 8º ano da EEF ESTADO DA PARAÍBA -Crato/CE
Não se olvida das dificuldades inerentes aos objetivos propostos, entretanto, quanto maior o
desafio enfrentado, maiores os impactos que se seguem. Os efeitos dos círculos de Justiça Restaurativa
podem ser classificados como mediatos ou imediatos. Como efeitos imediatos temos o apaziguamento
das tensões entre pessoas e grupos que convivem em um mesmo ambiente; a melhora no rendimento
médio das atividades; o recrudescimento nas relações com os agentes institucionais (administrativo e
pedagógico); e a maior abertura para soluções consensuais ulteriores. Já os efeitos mediatos caracterizam-
se pelo exercício de habilidades sociais que, a médio e longo prazo, possibilitam a resolução de conflitos
sem ambientes e mediadores destinados a isso; o fomento de uma cultura pacífica e aberta à
autocomposição.
Desse modo, por contribuir para a construção de condições necessárias à efetivação do princípio
restaurativo no âmbito tanto judicial quanto extrajudicial, o projeto ventila a possibilidade de estabelecer
uma conexão com comunidades, escolas e instituições relacionadas à prevenção de ameaças e violências,
realizando a socialização de informações de forma a implementar um sistema de práticas voltadas para a
defesa, proteção e promoção dos direitos fundamentais, congregando colaboradores em torno de
propósitos da Justiça Restaurativa.