A Transformaçao Da Universidade Neoliberal e Suas Relacóes Com A Episteme Capitalista
A Transformaçao Da Universidade Neoliberal e Suas Relacóes Com A Episteme Capitalista
DOSSIÊ ESPECIAL
E SUAS RELAÇÕES COM A EPISTEME CAPITALISTA
Christian Laval*
Conhecemos cada vez melhor as lógicas de mercantilização da universidade pública e da educação em geral.
Tal transformação neoliberal do ensino superior passa essencialmente pela concorrência entre estabelecimentos
públicos e privados, assim como entre os próprios estabelecimentos públicos. Opera em todos os níveis, regional,
nacional e internacional. Tem efeitos múltiplos, notadamente na “governança” das universidades, até mesmo nas
condutas dos estudantes e docentes. Esta transformação é global; ela diz respeito, ao mesmo tempo, a estruturas,
modos de regulação e práticas. Durante muito tempo, foi pouco compreendida teoricamente, porque – realizada
por reformas e mutações parciais – responde a um paradigma coerente, que só pode ser entendido reconstruindo
sua gênese e sua coerência. O artigo pretende definir e expor as grandes articulações da episteme capitalista, ou
seja, a concepção original do conhecimento e da verdade que acompanha o desenvolvimento do capitalismo,
desde o utilitarismo à ideologia do cérebro-máquina, passando pelas teorias do conhecimento-informação e do
capital humano. Sem a compreensão de tal paradigma, entende-se como difícil a oposição de um paradigma alter-
nativo mais igualitário e mais respeitoso dos valores de verdade.
Palavras-chave: Conhecimento. Universidade. Neoliberalismo. Episteme Capitalista.
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A TRANSFORMAÇÃO NEOLIBERAL DA UNIVERSIDADE ...
de fevereiro de 1600, por ter defendido a hi- ocorrer hoje em todo o mundo. Se as doutrinas
pótese da infinidade dos mundos. Na Enciclo- que construíram esta “economia do conheci-
pédia, Diderot diz a respeito de Bruno que ele mento” insistem na função do conhecimento
“estimula por seu exemplo e por seus escritos no crescimento ou na acumulação do capital,
os homens a pensar segundo eles próprios” não deixam intata a natureza do próprio co-
(Diderot, 1751, p. 117). E devemos também nhecimento. “A economia do conhecimento”
relembrar a condenação de Galileu, forçado a não quer dizer nada mais do que a transfor-
retratar-se pela heresia de sua tese sobre o mo- mação do conhecimento em valor econômico,
vimento da Terra. No Discurso preliminar da por isso, em forma-mercadoria. É o cerne da
Enciclopédia (1751), D’Alembert comenta esta episteme capitalista.
condenação enfatizando que “Foi assim que o
abuso da autoridade espiritual reunida à tem-
poral obrigou a razão ao silêncio; e faltou pou- UMA CONCEPÇÃO UTILITARISTA
co para que o gênero humano fosse proibido DO CONHECIMENTO
de pensar” (D’Alembert, 1751, p. 47). Isto é o
que D’Alembert chama de “o despotismo teo- Antes de se tornar uma realidade insti-
lógico”. Deter-se nesta ameaça do “despotismo tucional, que é propriamente a obra neoliberal
teológico” seria ficar cego a outro perigo con- atual, esta concepção do conhecimento estava
temporâneo, aquele do neoliberalismo aplica- já muito presente em todos os discursos imbu-
do ao campo do conhecimento. ídos da razão econômica que acompanharam o
Se o ideal da liberdade de pensar, cri- desenvolvimento da civilização industrial e ca-
ticar e pesquisar foi parcialmente alcançado pitalista. É mesmo um componente importante
nas democracias liberais, é hoje insidiosamen- do que Max Weber chamou “o espírito do capi-
te ameaçado, de dentro, pela tirania da utili- talismo”, ele próprio ligado à figura do homem
dade e da rentabilidade, por outras palavras, econômico, conduzido apenas por seu interes-
pelo despotismo da racionalidade econômica se. Para este utilitarismo, tal como foi formula-
quando ela se aplica ao campo da pesquisa e do no fim do século XVIII, o conhecimento é
da educação em todo o mundo. Esta concepção um instrumento de produção de bem-estar. Ele
neoliberal do conhecimento não é apenas uma representa um valor apenas pelo alcance práti-
ideia, sendo institucionalizada há décadas, co que tem para aquele que o produz, o possui
por meio de políticas em matéria de pesqui- e sabe utilizá-lo. O conhecimento é avaliado
sa e de ensino inspiradas – ou lideradas por pela capacidade de criar um efeito, facilmente
economistas e por razões econômicas. O seu assimilado a um efeito econômico ou, pelo me-
objetivo, baseado na racionalidade econômica nos, a um efeito suscetível de ser mensurável
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tal como é entendida pelo imaginário neoli- em termos econômicos. Os autores utilitaristas
beral, é fazer com que o conhecimento sirva clássicos foram os primeiros a fazer a teoria
outros propósitos que não a emancipação e a da subordinação da ciência à “arte”, isto é, à
democracia, fazer que ele sirva a “eficiência prática a partir de uma filosofia empirista: a
econômica”. Em outros termos, as políticas ciência é produzida pela prática, mas no ou-
neoliberais aplicadas ao mundo acadêmico tro sentido a ciência vale apenas pelos efeitos
não têm outro objetivo senão impor uma nova de melhoramento da prática. Jeremy Bentham,
definição e novas condições para a produção um dos filósofos utilitaristas mais importan-
do conhecimento. É por isso que é apropriado tes, passou grande parte de sua vida a refletir
questionar o que chamamos “a economia do sobre instituições de ensino que deveriam ser
conhecimento”, pois é a própria razão das re- submetidas ao princípio de utilidade. A cresto-
formas no ensino e na investigação que estão a matia, no léxico de Bentham, é precisamente
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Este “conhecimento especial de circunstâncias rico que não tenha qualquer relação com uma
efémeras, ignoradas dos outros” (Hayek, 1945, característica deste bem particular, mas que
p. 522), a exemplo do corretor de imóveis que reflete ou em que se resume o seu significado
conhece os “bons negócios”, é por definição em termos de estrutura de produção” (Hayek,
temporário. É um conhecimento que não deve 1945, p. 526-527).
ser conhecido por todos, que tem valor ape- Para F. Hayek (1945), é mister “conside-
nas para um determinado indivíduo e que, em rar o sistema dos preços como um mecanis-
certo momento, se encontra em circunstâncias mo de “comunicação da informação” (Hayek,
particulares – e que, graças a ele, ganha vanta- 1945, p. 526) que torna inútil qualquer outra
gem sobre os outros por ser o único a possuí-lo. forma de conhecimento. Será suficiente que
Para Hayek (1945), o desprezo pelo co- os agentes “observem o movimento de alguns
mércio e pelo tipo de conhecimento a ele li- ponteiros, como um engenheiro pode consul-
gado provém da crença errônea, segundo a tar qualquer mostrador, e ajustar assim suas
qual a economia é vista como um problema atividades a mudanças das quais nunca sabe-
tecnológico de aplicação de regras gerais no rão mais do que aquilo que o movimento dos
modelo da produção industrial (construção preços terá refletido” (Hayek, 1945, p. 527).
de uma planta industrial, instalação de um Em outros termos, a gestão da produção, como
dispositivo técnico). No entanto, o problema a do governo dos homens, encontra o seu mo-
econômico fundamental é antes aquele da delo no sistema dos preços de mercado. Se pu-
mudança permanente no mercado. O conhe- dermos atribuir um valor quantitativo a qual-
cimento mais útil será, portanto, aquele que os quer atividade, a qualquer função, a qualquer
agentes econômicos possuirão sobre as varia- pessoa, teremos então uma informação sufi-
ções dos mercados e não os científicos sobre ciente e pertinente para fazer escolhas óptimas
os processos contínuos, sobre as tendências relativamente à utilização de recursos produti-
de longa duração. Em outras palavras, as leis vos. Não se trata necessariamente de criar um
científicas às quais se recorre na produção dos mercado em sentido estrito, mas de criar um
bens têm menos valor que os conhecimentos “pequeno sistema econômico coerente”, como
que servem para “fazer a diferença” na relação diz F. Hayek (1945), que funcionará como um
de concorrência. Os agentes econômicos pre- mercado. Seria um erro denunciar a ignorân-
cisam dos “conhecimentos pertinentes” para cia que este sistema implicaria se fosse gene-
suas decisões econômicas, eles precisam saber ralizado ao conjunto das atividades humanas.
muito rapidamente e da forma menos onerosa Esta ignorância é, pelo contrário, a sua quali-
para eles como utilizar e interpretar os conhe- dade primeira: o mecanismo de informação do
cimentos parciais e locais que possuem. Como mercado poupa conhecimentos inúteis.
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estes são muito numerosos, eles só podem ser Para F. Hayek (1945), é vantajoso agir
utilizáveis se se dispõe de um meio prático sem saber o que estamos a fazer ou porque o
para resumi-los, reter somente um dado abstra- fazemos – de fato, é a maior conquista da civi-
to que os resumirá. Isso só pode ser feito com lização. Os benefícios da ignorância são muitas
um sistema de preços no qual as inumeráveis vezes ignorados, as vantagens da inconsciên-
circunstâncias serão resumidas em um valor cia são ignoradas. No entanto, é com mecanis-
numérico. Os conhecimentos pertinentes são, mos não conscientes que melhor fazemos os
portanto, reduzidos a um indicador quantitati- indivíduos agirem. Os progressos da civiliza-
vo que, por si só, resume a totalidade das in- ção dependem da implementação de dispositi-
formações úteis para o decisor. Para obter esta vos e arranjos como o do mercado que permi-
informação numérica, será necessário atribuir tem “dispensar um controle consciente e criar
“a cada tipo de recurso raro um índice numé- incentivos que levem os indivíduos a agir em
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um sentido desejável sem que ninguém lhes humano” para umas e da “inovação” para as
tenha dito o que se devia fazer” (Hayek, 1945, outras a chave do crescimento futuro.
p. 527). Agir sem pensar é o objetivo deste tipo O capital humano (ou competências) e
de conhecimento. O mercado, basicamente, inovação são os dois aspectos complementa-
é um dispositivo que dispensa o pensamento res da forma geral do conhecimento, as duas
graças a um simples sistema de signos que não categorias operacionais a partir das quais os
compreendemos mas que nos guia entretanto poderes públicos recompõem o campo da
na ação. Entendemos, então, porque Hayek educação. Os seus principais indicadores são
pode considerar que as causas não importam, a colocação profissional dos estudantes e o
que o conhecimento científico não tem valor número de patentes registradas. Esta concep-
ou, pelo menos, não tem o valor que lhe é atri- ção do conhecimento e suas duas variações –
buído na esfera econômica. Os preços são su- a competência e a inovação –resultam numa
ficientes para determinar ações de adaptação redução da formação humana e da atividade
que sejam racionais. intelectual a seu mero valor econômico: valor
Qual é a relação entre esta teoria do co- de troca no mercado de trabalho das formações
nhecimento-informação e a transformação em escolares e universitárias por um lado; valor
curso do ensino e da pesquisa? Esta teoria pro- de troca no mercado das patentes e dos outros
priamente mercantil do conhecimento não foi títulos de propriedade intelectual da atividade
retomada tal qual pelos governos porque sua de pesquisa.3
transposição prática direta teria sido um ata- Esta representação econômica muito
que frontal contra a ciência e uma destruição particular do conhecimento constitui o quadro
rápida das instituições de ensino e de pesqui- universal das políticas universitárias e científi-
sa. Mas ensina-nos o que está subjacente às cas hoje, de tal forma que nenhum país parece
reformas neoliberais, nomeadamente uma re- poder escapar, influenciado pela globalização,
lativização, para não dizer uma desvalorização a esta lógica dominante. E ainda menos porque
do conhecimento verdadeiro, cujo modelo tem esta imposição retórica anda de mãos dadas
sido até o momento a ciência. Esta desvaloriza- com o conjunto dos dispositivos e discursos
ção é o lado obscuro do que chamamos “a eco- que fizeram da concorrência econômica o nec
nomia do conhecimento”. É ela que, em últi- plus ultra4 da política geral dos governos. Dito
ma análise, poderia levar à destruição total do de outra forma, o esquema diretor da econo-
aparelho educativo e científico dos Estados.2 mia do conhecimento constitui muito mais do
que uma teoria econômica entre outras. “A eco-
nomia do conhecimento” é o nome oficial da
O que chamamos “economia do conheci- racionalidade política que sustenta, legitima e Cad. CRH, Salvador, v. 38, p. 1-14, e025048, 2025
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preender um ramo particular da economia con- pital humano”, medidas pela percentagem de
siderada como ciência, e mais precisamente um diplomados na população ativa ou pelas des-
ramo especializado da economia do crescimen- pesas com a educação, têm sempre um efeito
to. Podemos também, compreender com este positivo na taxa de crescimento econômico.
termo uma fase histórica da economia fundada A Estratégia de Lisboa consistia, portanto, em
sobre o conhecimento.5 Em realidade, esta am- recuperar o atraso em relação aos Estados Uni-
biguidade não é de todo uma ambiguidade. Se dos, investindo muito mais na educação e na
entramos, como alguns pensam, em uma nova investigação, e ainda mais especificamente
fase de desenvolvimento da economia, então no ensino superior,7 uma vez que a literatura
sua lei fundamental de desenvolvimento, as econômica supostamente mostra que, quanto
molas de seu dinamismo, devem logicamente mais avançado é um país em termos de educa-
dar origem ao desenvolvimento de uma teoria ção e tecnologia, menos tem de confiar na imi-
adequada aos novos fatos e processos. Esta teo- tação e muito mais na inovação.8 Nesse sentido
ria vem por sua vez reforçar a crença no fato de político e estratégico, o conceito de “economia
que o novo papel do conhecimento é realmente do conhecimento” não designa apenas um de-
o caráter distintivo desta nova era do capitalis- terminado estado ou uma determinada dinâ-
mo. A teoria tem em suma um duplo aspecto, mica da economia, mas também designa um
observacional e performativo. conjunto de medidas e políticas capazes de
O principal papel político que impulsio- fortalecer, intensificar e acelerar as seguintes
nou o conhecimento para o cerne das questões características:
econômicas foi desempenhado pela Organi- a) A tendência para o aumento da proporção
zação para a Cooperação e Desenvolvimento do chamado capital intelectual, imaterial ou
Econômico (OCDE), pela Comissão Europeia intangível, medido por indicadores do nível
que assumiu o controle na década de 1990, e de educação, de formação e de qualificação
depois por outras organizações econômicas e da mão de obra, das despesas em I&D e mes-
financeiras neoliberais. A OCDE deu o mote e mo do estado de saúde da população;
lançou um programa de investigação de indi- b) A transformação dos modos de produção e de
cadores e recomendações que está bem resumi- trocas devida à “revolução informacional”;
do no relatório de 1996 intitulado “A economia c) O peso crescente dos setores de alta tecno-
baseada no conhecimento”. Um pouco mais logia na produção industrial e nas exporta-
tarde, em 2000, o Conselho Europeu retomou ções, tornando-os num conjunto de setores
o tema para torná-lo um objetivo da “Estraté- estratégicos determinando o lugar das eco-
gia de Lisboa”. O objetivo era fazer da União nomias na divisão internacional do trabalho
Europeia “a economia do conhecimento mais e sua competitividade;
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desencoraja todos os perdedores. Portanto, não e drenar o máximo de rendas.15 Esta corrida ao
é apenas pelo poder intrínseco da razão econô- lucro do monopólio tecnológico está no cerne
mica “em geral”, que a economia do conheci- da concorrência entre oligopólios globalizados
mento se impõe. É por uma política deliberada e dita em grande parte sua lógica à transforma-
que ela se impõe nos dispositivos. ção imposta à universidade e à pesquisa públi-
ca em termos de parceria com o setor privado,
de valorização econômica dos resultados da
pesquisa, de incubação de empresas novas no
12
Philippe Aghion e Peter Howitt, op.cit., p. 259. 14
Cf. James Boyle, The Public Domain, Enclosing the Com-
mons of the Mind, Yale University Press, 2008.
13
Fabian Muniesa et Michel Callon, “La performativité des
sciences économiques”, in Philippe Steiner et François Va- 15
Cf. Michele Boldrin et David K.Levine, Against Intellec-
tin, Traité de sociologie économique, PUF, 2009. tual Monopoly, Cambridge University Press, 2008.
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a criar novos conhecimentos, essencialmente melhante foram tomadas nos diferentes países
por remunerações simbólicas e progressão na da OCDE no decorrer dos anos 1990. Revelaram
carreira independentemente dos rendimentos uma nova figura do científico, o “pesquisador
diretos eventuais que pudessem advir de suas empreendedor” que comercializa ele próprio
sua descoberta em seu proveito pessoal; que
16
A economia do conhecimento rompe com o ethos da pode criar sua própria empresa paralelamente
ciência tal como Robert King Merton o tinha definido:
universalismo, “comunismo” (isto é, organização e gestão ao seu emprego universitário; que pode até esta-
do conhecimento como bem comum), desinteresse, inte-
gridade moral, ceticismo organizado.CF.Robert K.Merton, belecer contratos “mutuamente vantajosos” en-
The Sociology of Science, The University of Chicago Press, tre a universidade que o acolheu e sua empresa.
1973, pp. 267-278.
17
Cf. Maurice Cassier et Dominique Foray, “Économie de
la connaissance: le rôle des consortiums de haute techno- 18
Cf. Dominique Foray, “Science, technologie et marché”,
logie dans la production d’un bien public”, Économie et in Les sciences sociales dans le monde, Unesco-Éditions de
prévision, n°150, La Documentation française, 2001. la Maison des sciences de l’homme, 2001, p. 284.
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O ensino não sai ileso desta transforma- A política neoliberal no caso das universidades
ção. As universidades postas em concorrência
entre si, e cujas fontes de financiamento pú- Se, segundo a nova doxa, a universidade
blico secam, precisam encontrar outros meios e a pesquisa devem ser colocadas a serviço da
para funcionar. Assim, elas são convidadas a competitividade econômica, convém evidente-
“diversificar” suas fontes de recursos. Todos os mente governá-las segundo os princípios empre-
meios são bons para aumentar suas receitas, sariais. O que os americanos chamam a universi-
ou pelo menos para compensar a diminuição dade empreendedora é um modelo institucional
dos créditos públicos: aumento das taxas de elaborado e implementado desde os anos 1980
matrícula dos estudantes no modelo das esco- por especialistas em gestão da qualidade e em
las e universidades privadas, o que tem como benchmarking,21 e ele tem três características
efeito o crescimento da dívida estudantil; co- maiores: é regido pelo modelo de uma empre-
financiamento sistematizado dos projetos de sa (em realidade como um grupo composto de
pesquisa; bolsas de estudos outorgadas pelo filiais administradas por uma holding que as
setor privado (com contrato de confidenciali- controla); trabalha em simbiose com o mundo
dade); patrocínio de cátedras que permite au- dos negócios; difunde em todos os níveis a “cul-
mentar consideravelmente as rendas dos pro- tura empresarial”, ou seja, seu “espírito” é o do
fessores que ingressaram no grande mercado empreendedorismo (entrepreneurship) que visa
das estrelas acadêmicas, etc.19 promover a criação de empresas pelos pesqui-
Esta transformação é assumida há muito sadores e pelos estudantes. As universidades
tempo pelas instituições oficiais. Em 2002, a empreendedoras têm um “dever de desempe-
Comissão europeia declarava em um de seus nho” econômico. Transformação do manage-
órgãos de divulgação: “o tempo em que, tra- ment, autonomia de gestão, competição e po-
dicionalmente, os conhecimentos adquiridos larização entre universidades são as palavras
no espaço científico acadêmico constituíam chaves do padrão global, que ocupam o lugar
um patrimônio aberto, colocado à disposição da velha universidade humboldtiana do início
de todos, pertence ao passado. No campo dos do século XIX, orientada para o conhecimento
conhecimentos, produção rima hoje com pro- desinteressado e enciclopédico. Mergulhados
teção e exploração”.20 A universidade, como na concorrência, dependentes das agências de
qualquer empresa no seio da nova economia financiamento público ou privado que os co-
fundada no conhecimento, deve aumentar seu locam em competição, os estabelecimentos são
capital de conhecimento, protegê-lo e obter forçados a adotar um comportamento empre-
dele o máximo retorno. Sobretudo, deve explo- endedor que aumentará seu desempenho eco-
rar seu capital simbólico e cultural, construir nômico. A concorrência é o único horizonte e
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uma reputação, fazer frutificar internacional- o único quadro estratégico de tal reforma. Ela
mente sua imagem de marca (a exemplo da é seu objetivo e seu meio. Quanto maior a con-
Sorbonne que é exportada no Emirados Árabes corrência entre estabelecimentos e entre pes-
Unidos), extrair a máxima renda possível de quisadores, eles melhores serão. A palavra que
seu “estoque” de docentes e de pesquisadores. resume esta lógica concorrencial é “excelên-
cia”. Esta cultura da excelência anda de mãos
dadas com uma “obsessão de controle” segun-
do a fórmula de Michael Power, uma cultura
19
Uma lei francesa de 2006 possibilitou e encorajou a cria-
ção das fundações e das cátedras financiadas pelos gran-
des grupos de bancos, de seguros e de energia fóssil (Axa,
21
Uma técnica de análises apuradas sobre as empresas
Total, BNP Paribas, Crédit agricole). concorrentes para verificar, através de métricas e informa-
ções, a que se deve o seu sucesso (ou fracasso). Também
20
“Vers un marché des connaissances”, in Magazine de la chamada de “análise competitiva”, comparando as concor-
recherche européenne, n°34 juillet 2002, p. 12. rentes com a sua empresas em diversos aspectos.
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que se baseia sobre uma verdadeira relação derar as condutas”, segundo a expressão de Fou-
de desconfiança para com os pesquisadores, cault. Os sistemas de medição e de classificação
docentes ou estudantes, todos supostamente são utilizados como sistemas de governo dos in-
movidos por seus interesses privados22. Modi- divíduos e das unidades nas quais eles trabalham.
fica bastante o princípio da colegialidade, uma O julgamento pelos pares no seio de
vez que a equipe “governante” se confere um uma comunidade científica é substituído por
direito de controle sobre as políticas dos labo- um sistema de preços dos produtos do conhe-
ratórios e a qualidade dos pesquisadores, e isto cimento supostamente mensuráveis com base
através de bônus ou da modulação de serviços em indicadores “objetivos” de desempenho
e de carreiras a sua disposição. Relações hie- e excelência. A instauração de bônus de ex-
rárquicas parecidas às que encontramos nas celência, a estratégia que visa aumentar con-
empresas privadas substituem as relações mais sideravelmente as diferenças nas condições
igualitárias e cooperativas que dominavam as materiais entre indivíduos e entre centros de
instituições da “ciência aberta”. pesquisas segundo seu desempenho, a desi-
gualdade das condições de trabalho e a con-
sequente remuneração, constituem diferentes
A avaliação do conhecimento e a incitação aplicações dos preceitos de gestão, conforme o
econômica objetivo da universidade empreendedora. Isto
não deixa de produzir efeitos diversos. As pon-
A política econômica do conhecimento tuações numéricas podem induzir manipula-
fabrica um mercado do conhecimento de duas ções, fraudes, ou mais simplesmente reorienta-
maneiras. Em primeiro lugar, fazendo de tal for- ções da atividade, reorientada para o resultado
ma que a lógica dos direitos exclusivos se es- mensurado em detrimento de outros aspectos
tenda à produção pública, por outro, fazendo mais substanciais. Este sistema de incentivos,
de tal forma que a lógica concorrencial regule a como bem mostrou Maya Beauvalet, pode até
repartição dos recursos em função das priorida- ser muito “desincentivador”. A concorrência
des politicamente definidas, conduzindo ipso pode induzir uma queda no investimento dos
facto a uma desigualdade crescente nos rendi- indivíduos no coletivo, uma diminuição da
mentos dos pesquisadores e nos financiamen- ajuda mútua, uma destruição da cooperação.23
tos de pesquisa e de ensino. A construção de O jogo dos indicadores incitativos ocor-
um modo de regulação competitiva pressupõe re em todos os níveis da construção dos mer-
a implementação de dispositivos específicos, cados. Está presente até mesmo no nível das
notadamente a elaboração de ferramentas de políticas científicas e universitárias nacionais
avaliação ad hoc, que sejam consistentes com graças à importância dada pelas políticas e as Cad. CRH, Salvador, v. 38, p. 1-14, e025048, 2025
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de avaliação (número de citações, número de BOYLE, J.The Public Domain, Enclosing the Commons of
the Mind. [s.l.]: Yale University Press, 2008.
publicações etc.). Assim, o universo acadêmi-
BRUNO, I.; CLEMENT, P.; LAVAL, C.La grande
co aos poucos está perdendo o domínio de sua mutation,Néolibéralisme et éducation en Europe. [s.l.]:
Syllepse, 2010.
autonomia através da perda de seus próprios
CASSIER, M. ; FORAY, D. Économie de la connaissance:
critérios de julgamento. Poderíamos correta- le rôle des consortiums de haute technologie dans la
production d’un bien public.Économie et prévision, [s.l.],
mente aqui parafrasear Marx quando, no iní- n. 150, 2001.
cio do Livro I do Capital, ele escreve que “na D’ALEMBERT, J. R. Discours préliminaire à l’Encyclopédie.
produção de mercadorias, o valor de uso não Paris : Briasson ; David l’aîné; Le Breton ; Durand, 1751.
p. 47.
é absolutamente algo que amamos por si só.
DIDEROT, D. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des
Aqui se produz somente valores de uso porque sciences, des arts et des métiers. Tome II. Paris: Briasson;
David l’aîné; Le Breton; Durand, 1751.
e na medida em que são o substrato material,
FORAY, D. Science, technologie et marché. In: UNESCO.
o suporte do valor de troca”.26 Na economia do Les sciences sociales dans le monde. [s.l.]: Unesco-Éditions
de la Maison des sciences de l’homme, 2001. p. 284.
conhecimento, não amamos o conhecimento
FORAY, D.L’économie de la connaissance. [s.l.]: Repères;
por si próprio. Só o amamos com a condição La Découverte, 2000.
de que seja o suporte e o meio de obter lucro. GINGRAS, Y. Les dérives de l’évaluation de la recherche,
Du bon usage de la bibliométrie. [s.l.]: Raisond’agir, 2014.
p. 102-103.
HAYEK, F. A. The Use of Knowledge in Society. The
Recebido para publicação em 17 de dezembro de 2024 American Economic Review, [s.l.], v. 35, n. 4, p. 519-530,
Aceito para publicação em 08 de março de 2025 1945.
Editor Chefe: Renato Francisquini Teixeira MARX Karl, Le Capital, Livre I. [s.l.]: Quadrige PUF, 2014.
MERTON, R. K.The Sociology of Science. [s.l.]: The
University of Chicago Press, 1973.
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:
Christian Laval – Conceitualização de dados. Curadoria de dados. Investigação. Escrita – esboço original. Cad. CRH, Salvador, v. 38, p. 1-14, e025048, 2025
Escrita.
Michel Collin – Tradutor.
26
Karl Marx, Le Capital, Livre I, Quadrige PUF, p. 209.
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THE NEOLIBERAL TRANSFORMATION OF THE UNIVERSITY AND ITS RELATIONS WITH THE
CAPITALIST EPISTEM
Christian Laval
We are increasingly aware of the logicofcom modificationof public universities and education in general.
This neoliberal transformation of higher education is essentially based on competition between public
and private institutions, but also between public institutions. It operates at all levels, regionally, nationally
and internationally. It has multiple effects, notably on the “governance” of universities and even on
the conduct of students and teachers. This transformation is global, and concerns structures, modes of
regulation and practices at the same time. For a long time, little understood the or etically, because it
wascarried out through partial reforms and mutations, it responds to a coherent paradigm, which can
only be understood by reconstructing its genesis and coherence. This article aims to define and expose the
major articulations of the capitalist episteme, that is, the original conception of knowledge and truth that
accompanies the development of capitalism, from utilitarianism to the ideology of the brain-machine,
including theories of knowledge-information and human capital. Without understanding this paradigm,
it will be difficult to oppose it with na alternative paradigma that is more egalitarian and more respectful
of truth values.
Keywords: Knowledge. University. Neoliberalism. Capitalist Episteme.
Christian Laval
Sabemos cada vez mejor la lógica de la mercantilización de las universidades públicas y de la educación
en general. Esta transformación neoliberal de la educación superior implica esencialmente competencia
entre establecimientos públicos y privados, pero también entre establecimientos públicos. Opera en todos
los niveles, regional, nacional e internacional. Tiene múltiples efectos, en particular en la “gobernanza”
de las universidades, e incluso en la conducta de estudiantes y profesores. Esta transformación es global
y concierne al mismo tiempo a estructuras, modos de regulación y prácticas. Durante mucho tiempo poco
comprendido teóricamente, porque llevado a cabo mediante reformas y mutaciones parciales, responde a
un paradigma coherente, que sólo puede entenderse reconstruyendo su génesis y coherencia. El artículo
tiene como objetivo definir y exponer las principales articulaciones de la episteme capitalista, es decir, la
concepción original del conocimiento y la verdad que acompaña el desarrollo del capitalismo, desde el
utilitarismo hasta la ideología cerebro-máquina, a través de las teorías del conocimiento-información y el
capital humano. Sin comprender este paradigma, será difícil oponerse a un paradigma alternativo que sea
más igualitario y más respetuoso de los valores de verdad.
Palabras clave: Conocimiento. Universidad. Neoliberalismo. Episteme capitalista.
Cad. CRH, Salvador, v. 38, p. 1-14, e025048, 2025
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