ÁFRICAS: HISTÓRIAS E CULTURAS
Juvenal Conceição de Carvalho
“Aquele que mata o pássaro ontem com a flecha lançada hoje”
Motumbá, Motumbá!
Agô, Agô!
RESUMO: Este artigo discute a importância da História da África,
destacando a diversidade e a anterioridade das formações sociais
africanas. Faz uma reflexão sobre os mitos que encobrem a História
da África. Sugere caminhos para enfrentar as generalizações e a ho-
mogeneização das trajetórias dos povos africanos.
PALAVRAS-CHAVE: História da África; Mitos; Formações Sociais.
ABSTRACT: This article discusses the importance of African history,
focusing the diversity and anteriority of African social formations.
Reflects on the myths that shroud the history of Africa. It suggests
ways to deal with generalizations and mixing of the trajectories of
African people.
KEYWORDS: African History; Myths; Social Formations.
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 85
Introdução
O espaço atualmente chamado de África foi o palco onde teve
início a aventura humana na Terra. Essa constatação já oferece uma
pista sobre qual é a importância do conhecimento sobre a História
deste continente. Trata-se de uma trajetória milenar, combinada
com imensa vastidão territorial e uma diversidade cultural que não
pode ser reduzida a uma História única. São experiências ricas que
cobrem todas as dimensões da vida, desenvolvidas de modo original
e pioneiro em relação a qualquer outra parte do planeta.
Além disso, devemos considerar que a construção do Brasil
está umbilicalmente ligada ao continente africano. As pontes que li-
gam os dois lados do Atlântico são maiores do que se costuma pensar.
Os antepassados de mais da metade da população brasileira foram
trazidos de lá. Um comércio sistemático que, com períodos de maior
ou menor intensidade, durante três séculos, ligou os dois mundos
na formação de um complexo produtor de açúcar em uma margem
com a mão-de-obra fornecida pela outra margem deste “Rio chama-
do Atlântico”46. Ao transportar pessoas, esse comércio colocava em
circulação suas crenças, valores, hábitos, formas de ser, de pensar e
agir, enfim, colocava em contato suas variadas culturas. O Brasil de
hoje é fruto dos confrontos e das trocas provocados por este contato.
Assim sendo, qualquer introdução ao estudo da História da
África deve partir deste duplo significado: a importância dos povos
africanos para a formação do Brasil, em particular, e a importância
desses povos para a História de toda a humanidade. Porém, isso deve
ser feito enfrentando o desafio de evitar os mitos, as generalizações
simplificadoras e homogeneizadoras das múltiplas e complexas tra-
jetórias dos povos deste continente. Digo que é necessário relativizar
a ideia de unidade, de uniformidade das vivências e das culturas.
46. Ver a esse respeito, ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos Viventes: A formação do Brasil no atlân-
tico Sul - Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; RODRIGUES, José Honório. Brasil
e África: outro Horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961; SILVA, Alberto da Costa. Um Rio
Chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/EDUFRJ, 2003.
86 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
O ponto de partida é a noção de que não existe um povo afri-
cano, uma cultura africana, uma História africana. Tal ideia pode pa-
recer estranha para nós, aqui no Brasil, país onde toda evolução da
história e da cultura está marcada pelas histórias e culturas africa-
nas trazidas para essa margem do Atlântico por milhões de homens
e mulheres enviados pelo tráfico para aqui serem escravizados47. Po-
vos de lugares diferentes, às vezes distantes, muitas vezes inimigos,
de culturas distintas, foram afastados dos referenciais formadores de
suas identidades, para serem misturados e transformados, todos, in-
distintamente em “Negros da Guiné”.
Daí a ideia, predominante no senso comum, de que todos os
“pretos” são uma coisa só, que não existe diferença. A escola, os livros
didáticos quando muito dividem os escravizados, seguindo o modelo
de Nina Rodrigues, em Bantos e Sudaneses48. Assim, Bantos seriam to-
dos aqueles oriundos do centro - sul do continente, falantes de línguas
aparentadas, pertencentes a uma mesma família linguística. Sudane-
ses seriam todos os povos oriundos da chamada África Ocidental. Tais
classificações possuem uma grande superficialidade, pois escondem
as diferenças nada desprezíveis entre os diversos povos africanos.
Falar línguas aparentadas não significa, necessariamente,
proximidade cultural. Brasileiros e romenos falam línguas de origem
latina e, no entanto, o que os dois povos têm em comum? Devemos
concordar que não são lá muito parecidos. Falar de Bantos e Suda-
neses é desprezar as particularidades das culturas de povos como os
Bakongos, Mbundu, Ambundos, Tchoke, Lubas, Lundas, Iorubas, Haussas,
Egípcios, Etíopes, Akans,....!
47. Sobre a presença africana no Brasil existe uma longa tradição de estudos. Para um debate inicial
ver CARVALHO, Juvenal de. Revista Veja: um olhar sobre a independência de Angola. São Paulo:Gan-
dalf, 2009; CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário Afro-brasileiro. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2005; RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1961; RODRIGUES Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da UNB, 2004;
SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África: A dimensão atlântica da política externa do Brasil ( de
1946 a nosso dias). Brasília: EDUNB, 1996; SILVA, Alberto da Costa. Um Rio Chamado Atlântico. Rio de
Janeiro: EdUFRJ, 2003; SLENES, Robert. Malungu Ngoma Vem! A África coberta e descoberta do Brasil.
Revista da USP. DEZ/FEV de 1991/1992.Número 12.
48. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da UNB, 2004.
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 87
O objetivo deste texto é provocar uma reflexão sobre as ge-
neralizações uniformizadoras que transformam aspectos específicos
de um povo, de um lugar e de um tempo determinado em caracte-
rísticas de todo o continente. Assim, falaremos sempre em Áfricas,
no plural, para destacar a riqueza da diversidade histórica e cultural
em todas as suas dimensões: política, ideológica, econômica e social.
Unidade e Diversidade
A Diáspora africana criou uma História comum para os su-
jeitos envolvidos no circuito Atlântico. Falar de “povo africano”, de
“povo banto” ou “povo sudanês” pode explicar novas identidades
geradas pelo tráfico, pela escravização e o colonialismo, mas informa
pouco sobre as culturas dessas pessoas na África49 antes e para além
dos tráficos. É preciso superar os mitos para conhecer os diferentes
povos africanos.
Como tratar de todas as especificidades e romper os mitos? A
longa duração, a vastidão territorial e a imensa diversidade cultural faz
do estudo da História da África um grande desafio. A tentação para
generalização é grande. Insisto que falar da África como se fosse uma
unidade política, econômica, social ou mesmo geográfica é um erro.
O caminho é estudar aspectos, lugares, povos e questões específicas.
Alguns temas podem englobar maior número de povos e re-
giões mais vastas, mas é difícil imaginar e aceitar uma uniformização
em qualquer aspecto. Pensemos, por exemplo, na situação da mu-
lher, especificamente daquelas que estavam nos círculos de poder.
Comparando Kush50, situado na região das cataratas do rio Nilo, com
o reino do Ndongo, parte do que hoje conhecemos como Angola, o
49. Sobre identidades africanas na diáspora ver OLIVEIRA, Maria. Inês Cortês de. Quem eram os “ne-
gros da Guiné?” a origem dos africanos na Bahia. Revista Afro - Ásia. Salvador, número 19-20, 1997;
SLENES Robert Malungu Ngoma Vem! A África coberta e descoberta do Brasil. Revista da USP. - DEZ/
FEV de 1991/1992. Número 12.
50. Sobre Kush ver: MOKHTAR, Gamal(org.). História geral da África II: África antiga. 2.ed. revisada.
Brasília: UNESCO, 2010.
88 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
que encontraremos? Em Kush, teremos as Candaces, rainhas mãe
que detinham uma parcela de poder, já no Ndongo, Nzinga51, filha
e preferida do soberano para sucedê-lo, apesar das suas qualidades
políticas, diplomáticas e militares não conseguiu chegar ao poder.
Veremos que a condição da mulher não era a mesma em todo o conti-
nente. Cabe ainda pensar como viviam nestes dois reinos aquelas que
não estavam nesses espaços de poder. Ora, poderíamos então falar de
uma História da mulher na África? Estariam elas submetidas às mes-
mas condições em todos os lugares, nos diferentes tempos?
O mesmo pensamento se aplica a qualquer outro tema. As
organizações políticas, as expressões artísticas, as estruturas econô-
micas, os sistemas de crenças, tudo deve ser examinado em situa-
ções específicas. Existe então um amplo campo aberto para pesquisas
pontuais sobre determinados países, regiões ou períodos históricos.
Apesar disso, alguns autores ao longo do século XX, se lan-
çaram na empreitada de produzir Histórias gerais sobre a África. Tais
obras panorâmicas são instrumentos poderosos para indicar cami-
nhos, abrir perspectivas de estudos, identificar lacunas. Em geral,
partem da seleção de alguns temas e regiões que consideram deci-
sivos, estruturantes para uma compreensão de conjunto que sugere
uma unidade que precisa ser debatida. São escolhas feitas por autores e
editores que privilegiam certas dimensões em detrimento de outras. O
debate sobre a geografia do continente africano presente nestas obras
panorâmicas são um indicativo dos perigos desta alternativa.
Os trabalhos que adotam essa abordagem da História da Áfri-
ca quase sempre começam com um capítulo dedicado à caracteri-
zação dos aspectos geográficos da África. Assim é a obra de Pierre
Bertaux, África: Desde la prehistoria hasta los Estados actuales”52,
51. Ver GLASGOW, Roy. Nzinga: resistência africana à investida do colonialismo português em Angola.
1582-1663. São Paulo: Perspectiva, 1982. PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: Mulher, Guerra e escravidão.
Brasília: Thesaurus, 2000.
52. BERTAUX, Pierre. África: Desde la prehistoria hasta los Estados actuales. Madrid: Siglo veintiuno
editores, 1985. 9ª : Vol. 32 (Coleção: Historia Universal Siglo veintiuno).
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 89
assim é a História Geral da África produzida pela UNESCO53; assim é a
Enxada e a Lança54 de Alberto da Costa e Silva; assim é o livro de John
Iliffe, Africanos: História dum Continente55. Qual seria a razão de tal
escolha? Segundo Joseph Ki-zerbo:
Na verdade, as dificuldades específicas da história da Áfri-
ca podem ser constatadas já na observação das realidades
da geografia física desse conti¬nente. Continente solitário,
se é que existe algum, a África parece dar as costas para o
resto do Velho Mundo, ao qual se encontra ligada apenas
pelo frágil cordão umbilical do istmo de Suez. No sentido
oposto, ela mergulha integralmente sua massa compacta
na direção das águas austrais, rodeada por maciços cos-
teiros, que os rios forçam através de desfiladeiros “herói-
cos” que constituem, por sua vez, obstáculos à penetração.
A única passagem importante entre o Saara e os montes
abissínios encontra-se obstruída pelos imensos pântanos
de Bahr el-Ghazal. Ventos e correntes marítimas extrema-
mente violentos montam guarda do Cabo Branco ao Cabo
Verde. Entretanto, no interior do continente, três deser-
tos encarregam-se de agravar o isolamento exterior por
uma divisão interna. Ao sul Calaari. Ao centro, o “deser-
to verde” da floresta equatorial, temível refúgio no qual o
homem lutara para se impor. Ao norte, o Saara, campeão
dos desertos, imenso filtro continental, oceano, fulvo dos
ergs e regs que, com a franja montanhosa da cordilheira dos
Atlas, dissocia o destino da zona mediterrânea do restan-
te do continente. Sobretudo durante a pré-história, essas
potências ecológicas, mesmo sem serem muralhas estan-
ques, pesaram muito no destino africano em todos os as-
pectos (...) A natureza e os homens, a geografia e a história,
não foram benevolentes com a África” (KI-ZERBO, 2010:
XXXIV-XXXV).
53. A coleção História Geral da África tem 8 volumes e foi produzida por um comitê científico da UNES-
CO, presidido por Bethwell Allan Ogot. Em 2010, o MEC publicou uma nova edição que está disponível
em formato digital para quem desejar.
54. SILVA, Alberto da Costa. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
55. ILIFFE, John. Os africanos: História dum continente. Lisboa: Terramar, s/d.
90 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
Essa transcrição do texto de Ki-Zerbo revela uma forte ten-
dência em explicar a situação socioeconômica da África em função
das condições geográficas, ou no mínimo atribuir um grande peso a
essa determinação. A geografia teria levado a maior parte do conti-
nente para um isolamento total ou parcial, mantendo-o assim afas-
tado das rotas de trocas que viabilizariam o progresso. A concordân-
cia com este tipo de argumento parece ser geral e por isso as obras
panorâmicas iniciam sempre com este tema. Porém, cabe perguntar
se realmente a natureza foi cruel com a África.
A tese difundida é a de que tais condições naturais foram um
filtro, uma barreira para os contatos dos diferentes povos africanos
entre si e com povos de outros continentes. Tudo isso seria demons-
trado com a inexistência de golfos, baias e penínsulas, as planícies
costeiras estreitas e abruptamente limitadas por planaltos, os rios
pouco navegáveis a partir do mar, o regime dos ventos no atlânti-
co, soprando na direção Sul, dificultando a navegação, o deserto do
Saara separando o continente em duas grandes áreas, duas Áfricas
extremamente distintas: Uma ao norte, conectada com o mundo
mediterrânico. A outra, ao Sul do deserto, completamente isolada.
Tal situação era agravada pela baixa densidade demográfica na maior
parte do continente, onde predominava pequenos agrupamentos
humanos e grandes espaços vazios.
Alberto da Costa e Silva (2006) considera que, apesar disto, a
ideia do isolamento total deve ser relativizada. Afirma que os contatos
e influências são antigos. Seja entre os vários povos dentro do próprio
continente ou seja entre os africanos com povos da Ásia, China, Índia,
e da península arábica. Mesmo o Saara não foi um impedimento com-
pleto para os contatos, como alerta Paulo Farias de Moraes (2004) ao
se referir ao deserto do Saara como “a outra costa d’África.” John Iliffe
(S/D) afirma que se existe uma característica comum na História da
África é a mobilidade populacional, os deslocamentos constantes, as
migrações. Como então falar de isolamento total?
Também neste terreno ambiental a diversidade é a carac-
terística predominante. As paisagens variam dos desertos, das
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 91
florestas tropicais às montanhas geladas. A natureza não foi mais
nem menos cruel com os africanos. Para o ser humano as condi-
ções naturais serão sempre adversas, ou será que viver no frio é
algo fácil? Em todos os lugares o ser humano foi forçado a se adap-
tar, dominar e transformar a natureza para garantir a sua sobrevi-
vência. Isto os africanos fizeram e foram pioneiros. As dificuldades
naturais não impediram o africano de agir, dominar e transformar
o meio para sobreviver.
Os problemas sociais e econômicos da África na atualidade
não são frutos de condições ambientais extremas e desfavoráveis.
Analisar as histórias, as relações sociais, a exploração econômica,
as estruturas de poder, as conexões com outros continentes é o que
pode explicar o lugar da África nas relações internacionais do mun-
do capitalista.
Atualmente, depois da criação do Sudão do Sul, a África é
um continente com 55 países. Além disso, devemos considerar que
dentro de cada um destes países existe uma grande diversidade de
línguas, religiões, de costumes, de crenças e valores. Não podemos
dizer que todos vivem do mesmo jeito, com as mesmas identida-
des, com os mesmos problemas. Por exemplo, a crise alimentar não
atinge todo o continente. Sim, existe lugar onde muitas pessoas não
tem o que comer, mas isso não quer dizer que todos os africanos
passam fome.
Outro exemplo é a pobreza que os meios de comunicação in-
sistem em retratar como um problema africano. Alguns países como
a Etiópia e a Somália são pobres, mas outros são ricos, muito ricos,
talvez esse sim seja o grande problema africano. Angola, por exem-
plo, tem petróleo, diamantes, ferro. A África do Sul tem muito ouro,
carvão, diamantes, manganês e urânio. A Guiné tem Bauxita. A Zâm-
bia tem cobalto e cobre. A Líbia, o Egito, a Nigéria, o Sudão, O con-
go, a República Democrática do Congo, o Gabão, todos também têm
petróleo. O Marrocos, o Saara ocidental, Tunísia, Senegal possuem
reservas de fosfato. Portanto, não é possível desconsiderar essa va-
riedade de situações.
92 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
A Invenção da África56
Outro mito a ser superado é o nome. Desde quando aquele pe-
daço de terra passou a ser chamado de África? Será que os habitantes
deste espaço chamavam tudo de África? Será que um morador do reino
de Ketu sabia da existência de um morador do reino do Congo e con-
siderava o mesmo como irmão? A palavra África pode ser encontrada
nos tempos do Império Romano, mas ninguém sabe ao certo sua ori-
gem e significado. Pode ter origem no nome de um povo berbere, os
Afrig, que viviam ao sul de Cartago. Neste caso significaria “região dos
Afrig”. Talvez seja derivado do latim ou do grego, significando ensola-
rado ou isento de frio. No hindu pode significar o que está a Ocidente57.
O nome que os habitantes daquelas terras usavam para iden-
tificar o lugar nós não sabemos. Nem mesmo sabemos se eles tinham
um nome para definir toda região. O que existe no outro lado do
Atlântico é uma porção enorme de terra que já recebeu muitas de-
signações. Núbia, Sudão, Guiné, Líbia, Senegâmbia são palavras que,
em algum momento foram usadas para se referir a partes ou ao que
hoje chamamos de África.
Na Diáspora, pessoas de diferentes lugares do continente fo-
ram forçadas a atravessar o oceano e a passarem a viver juntas. Assim,
povos de tradições, de culturas diferentes trocaram experiências, co-
meçaram a valorizar traços comuns existentes ou a construir outros, a
inventar identidades para enfrentar os desafios da vida nas Américas.
Neste contexto é que a África, tal qual conhecemos, foi inventada.
A Antiguidade e Anterioridade das Formações Sociais Africanas
A historiografia ocidental difundiu por muito tempo a ideia
56. Ver APPIAH, kwame Anthony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de janeiro:
contraponto, 1997.
57. Ver KI-ZERBO Joseph (Coord.). História Geral da África I: metodologia e pré-história da África. 2.ed
revisada . BRASILIA: UNESCO, 2010.
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 93
de que existia um vazio político e econômico no continente africano
antes do século XV, quando os navegadores europeus começaram a
invadir construindo feitorias em pontos do litoral. A crença de que
a África é uma coisa só, que é tudo igual, que era esse grande vazio
político ainda é predominante. Tal argumento falso não resiste a um
exame das Histórias da África neste período.
Os africanos, com pioneirismo, dominaram e transformaram
o meio ambiente, produziram culturas baseadas na caça, coleta e na
pesca. Desenvolveram a agricultura e a criação de animais. Criaram
modos de vida ricos e diversificados; construíram Estados, coloniza-
ram, fizeram guerras e comércio dentro e fora do continente; produ-
ziram monumentos, criaram cidades, criaram técnicas e produziram
conhecimentos nas mais diferentes áreas.
Antes da invasão colonial europeia eram mais de 10 mil países58.
Algumas sociedades africanas, como os pequenos grupos de caçado-
res e coletores nunca organizam estruturas políticas estatais59. Mas, a
maioria construiu Estados desde muito cedo. Impérios gigantescos,
com muito poder econômico, político e militar como foi o caso do
Egito, de Gana, Mali, Songhai. Reinos como o da Etiópia, Kush, Axum,
Kanen, Congo, Ndongo, Matamba, Lunda, Monomotapa, Benin, Oyó.
Foram estados com grande território e muita gente sob seu comando.
Alguns duraram séculos, outros duraram milênios. Citei aqui apenas
Impérios e alguns dos grandes Reinos. Mas a maioria era de pequenos
reinos, considerando o território e o número de habitantes.
Os Estados africanos, independente das formas organizati-
vas que assumiram, apareceram antes do que os Estados formados
no Oriente ou em qualquer outro lugar. O Egito Faraônico é o maior
exemplo da antiguidade e anterioridade das sociedades africanas
neste terreno. Os egípcios construíram uma sociedade fascinante.
58. WESSELING H. L. Dividir para dominar. Rio de Janeiro : UFRJ/Revan, 1998. (p.406). Ver também
OLIVER, Roland. A Experiência Africana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; SILVA, Alberto da Costa. A
enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
59. OLIVER Roland A Experiência Africana. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994.
94 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
Souberam aproveitar todas as possibilidades que o meio oferecia.
Criaram complexos sistemas de irrigação para reter as águas do Nilo
e leva-las para áreas nas quais a enchente não chegava. Exploravam
minérios, fabricavam joias, construíram templos, palácios e monu-
mentos grandiosos. Para fazer tudo isso eles desenvolveram conhe-
cimentos e técnicas na matemática, geometria, arquitetura, quími-
ca, zoologia, em todas as áreas. Coisas que abriram caminho para a
ciência que veio muito depois.
A anterioridade africana se manifesta em todas as dimensões.
A escrita também nasceu na África com os Hieróglifos egípcios. Eles
escreviam em pedras, nas paredes dos monumentos e também em
papiros. Porém, mesmo quem não tem escrita pode transmitir sua
cultura e sua História através da palavra, da fala. Muito do que hoje
está escrito foi inicialmente transmitido pela oralidade. Podemos
aprender tanto com a escrita quanto com a fala.
O Egito não vivia isolado. As ligações com outras partes da
África eram imensas. As trocas comerciais são antigas. Todo tipo de
produto e com quantidades variadas, trocas com povos próximos e
em longa distância também.
Subindo o Nilo no rumo das cataratas está a região chamada de
Núbia onde estava localizadas as cidades de Kerma, Napata e Méroe ou
o reino de Kush; mas acima ficavam os reinos de Axum e da Etiópia. Os
soberanos do Império kushita cultuavam os mesmos deuses egípcios
e construíam pirâmides. As relações de cooperação, de comércio, de
disputas, conflitos, invasões e dominação eram tão intensas que pode-
mos falar de um mesmo complexo cultural na região do Nilo. A derrota
para Axum fez uma parcela das classes dirigentes de Kush se dispersas-
sem pela África. Segundo Oliver, “em termos reais, Kush foi o protó-
tipo dos Estados ulteriores da savana subsaariana” (OLIVER, 1994: 77).
Os deslocamentos populacionais, por motivos políticos, eco-
nômicos ou ambientais é um traço significativo da História das Áfri-
cas60. O movimento dos povos que viviam da criação de animais e a
60. Ver ILIFFE, John. Os africanos: História dum continente. Lisboa: Terramar, s/d.
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 95
expansão dos agricultores Bantos são exemplos de processos que pro-
moveram o contato e a difusão de práticas culturais. Aqui, talvez, en-
contremos elos, conexões profundas entre diversos povos africanos.
Somos Todos Descendentes de Africanos
A humanidade procurou, ao longo dos tempos, explicações
para a sua existência. Quem somos? Onde estamos? Para onde ire-
mos? Mas, talvez, a questão mais inquietante de todas é de onde nós
viemos? Como chegamos até aqui? Qual é a origem da nossa espécie?
Os diferentes povos, as diferentes culturas responderam, e respon-
dem, a tais indagações de maneiras variadas.
A reconstrução dos processos que deram origem à espécie
vem sendo feita lentamente, a partir dos registros arqueológicos e,
mais recentemente, pelos estudos feitos pela Biologia. Considerando
as evidências disponíveis até o presente, ainda existem muitas dú-
vidas e espaços vazios no quebra-cabeça da evolução, mas também
existem algumas certezas.
A Teoria da evolução sustenta que o Homem moderno, O Homo
Sapiens Sapiens é resultado de um longo processo de transformações e
adaptações iniciadas a alguns milhões de anos atrás. Um pequeno ani-
mal quadrúpede que vivia nas árvores é o antepassado mais longínquo.
Começou a descer das árvores até se separar em duas grandes famílias:
a dos Pongídeos e a dos Hominídeos. A evolução de uma deu nos atuais
macacos, gorilas, chimpanzés. A outra deu origem aos Australopitecos,
ao Homo Habilis, ao Erectus até chegar o Homo Sapiens Sapiens.
Apesar de toda a resistência do mundo ocidental, todas as
evidências indicam que o lugar onde as transformações que deram
origem à nossa espécie aconteceram foi em alguma parte da banda
Oriental e do Sul do continente africano. Nestas regiões encontram-
-se registros de todas as etapas da evolução e cada nova descoberta
da arqueologia só reafirma esta tese. O desenvolvimento dos tes-
tes com o chamado DNA Mitocondrial tem levado os especialistas à
mesma conclusão sobre o local de origem do Homo Sapiens Sapiens.
96 | Tranças e Redes: tessituras sobre África e Brasil
Ainda restam dúvidas sobre, por exemplo, o tempo em que
cada transformação ocorreu, mas com todas as evidências disponí-
veis até o momento, podemos ter algumas certezas. Os dois cami-
nhos, de arqueólogos e biólogos levam ao mesmo lugar61. Os Homo
Sapiens Sapiens possuem uma origem única. Todos tiveram um mes-
mo antepassado e saíram da mesma região: África. Se todos os ho-
mens e mulheres são Homo Sapiens Sapiens, não importa a aparência
física, são descendentes de africanos.
“Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça
glorificarão sempre o caçador.”
Considerações Finais
O que sabemos sobre a África aqui no Brasil, vindo dos meios
de comunicação, da escola, das igrejas ou de organizações ditas hu-
manitárias, ainda é marcado por imagens negativas que associam o
continente à pobreza, ao primitivismo, a selvageria, ao atraso, ao
misticismo, à feitiçaria, a irracionalidade, ao exotismo, ao não civi-
lizado. A homogeneização transforma casos específicos como a fome
na Etiópia, a guerra na Somália, ou a ditadura no Zimbabué em uma
realidade característica de todo continente.
Os preconceitos sobre a África e os africanos estão enraiza-
dos de tal modo no imaginário brasileiro que chega ao ponto de um
presidente da República, em viagem oficial a Namíbia, declare seu
espanto ao desembarcar em uma cidade limpa62! Tudo isso revela um
pensamento parcial e distorcido que tenta invisibilizar os exemplos
positivos, que esconde a diversidade humana, política, social, reli-
giosa, geográfica e econômica da África. Conhecer as Histórias dos
“leões” é abrir os caminhos para superar os contos do caçador.
61. Ver OLIVER, Roland. A Experiência Africana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
62. O presidente Lula, em visita oficial, na capital da Namíbia, fez a seguinte declaração: “Estou surpre-
so porque quem chega a Windhoek, não parecer estar num país africano. Poucas cidades do mundo são
limpas e bonitas”. Ver matéria “Lula comete gafe ao elogiar limpeza de capital africana” publicada no
jornal O Estado de São Paulo ( Estadão), Sexta-feira, 7 de Novembro de 2003, 13:13 | Online.
Ana Rita Santiago; Denize de Almeida Ribeiro; Ronaldo Crispim Sena Barros; Rosangela Souza da Silva (Organizadores) | 97